EÇA DE QUEIROZ
O PRIMO BAZILIO
EPISODIO DOMESTICO
SEGUNDA EDIÇÃO, REVISTA
LIVRARIA INTERNACIONAL
DE
ERNESTO CHARDRON
Porto
EUGENIO CHARDRON
Braga
1878
Porto: 1878--Typ. do A. J. da Silva Teixeira, Cancella Velha, 62
I
Tinham dado onze horas no cuco da sala de jantar. Jorge fechou o volume de Luiz Figuier que estivera folheando devagar, estirado na velha voltaire de marroquim escuro, espreguiçou-se, bocejou e disse:
-- Tu não te vaes vestir, Luiza?
-- Logo.
Ficára sentada á mesa, a lêr o Diario de Noticias, no seu roupão de manhã de fazenda preta, bordado a soutache, com largos botões de madreperola; o cabello louro um pouco desmanchado, com um tom secco do calor do travesseiro, enrolava-se, torcido no alto da cabeça pequenina, de perfil bonito; a sua pelle tinha a brancura tenra e lactea das louras: com o cotovêlo encostado á mesa acariciava a orelha, e, no movimento lento e suave dos seus dedos, dous anneis de rubis miudinhos davam scintillações escarlates.
Tinham acabado d'almoçar.
A sala esteirada, alegrava, com o seu tecto de madeira pintado a branco, o seu papel claro de ramagens verdes. Era em julho, um domingo: fazia um grande calor; as duas janellas estavam cerradas, mas sentia-se fóra o sol faiscar nas vidraças, escaldar a pedra da varanda; havia o silencio recolhido e somnolento de manhã de missa; uma vaga quebreira amollentava, trazia desejos de séstas, ou de sombras fôfas debaixo d'arvoredos, no campo, ao pé d'agua; nas duas gaiolas, entre as bambinellas de cretone azulado, os canarios dormiam; um zumbido monotono de moscas arrastava-se por cima da mesa, pousava no fundo das chavenas sobre o assucar mal derretido, enchia toda a sala d'um rumor dormente.
Jorge enrolou um cigarro, e muito repousado, muito fresco na sua camisa de chita, sem collete, o jaquetão de flanella azul aberto, os olhos no tecto, pôz-se a pensar na sua jornada ao Alemtejo. Era engenheiro de minas, no dia seguinte devia partir para Beja, para Evora, mais para o sul até S. Domingos; e aquella jornada, em julho, contrariava-o como uma interrupção, affligia-o como uma injustiça. Que massada por um verão d'aquelles! Ir dias e dias sacudido pelo chouto d'um cavallo d'aluguel, por esses descampados do Alemtejo que não acabam nunca, cobertos d'um rastolho escuro, abafados n'um sol baço, onde os moscardos zumbem! Dormir nos montados, em quartos que cheiram a tijolo cozido, ouvindo em redor, na escuridão da noite torrida, grunhir as varas dos porcos! A todo o momento sentir entrar pelas janellas, passar no ar o bafo quente das queimadas! E só!
Tinha estado até então no ministerio, em commissão. Era a primeira vez que se separava de Luiza; e perdia-se já em saudades d'aquella salinha, que elle mesmo ajudára a forrar de papel novo nas vesperas do seu casamento, e onde, depois das felicidades da noite, os seus almoços se prolongavam em tão suaves preguiças!
E cofiando a barba curta e fina, muito frisada, os seus olhos iam-se demorando, com uma ternura, n'aquelles moveis intimos, que eram do tempo da mamã: o velho guarda-louça envidraçado, com as pratas muito tratadas a gesso-cré, resplandecendo decorativamente; o velho painel a oleo, tão querido, que vira desde pequeno, onde apenas se percebiam, n'um fundo lascado, os tons avermelhados de cobre d'um bojo de cassarola e os rosados desbotados d'um mólho de rabanetes! Defronte, na outra parede, era o retrato de seu pai: estava vestido á moda de 1830, tinha a physionomia redonda, o olho luzidio, o beiço sensual; e sobre a sua casaca abotoada reluzia a commenda de Nossa Senhora da Conceição. Fôra um antigo empregado do ministerio da fazenda, muito divertido, grande tocador de flauta. Nunca o conhecera, mas a mamã affirmava-lhe «que o retrato só lhe faltava fallar». Vivera sempre n'aquella casa com sua mãi. Chamava-se Isaura: era uma senhora alta, de nariz afilado, muito apprehensiva; bebia ao jantar agua quente; e ao voltar um dia do lausperenne da Graça, morrera de repente, sem um ai!
Physicamente Jorge nunca se parecera com ella. Fôra sempre robusto, d'habitos viris. Tinha os dentes admiraveis de seu pai, os seus hombros fortes.
De sua mãi herdára a placidez, o genio manso. Quando era estudante na Polytechnica, ás 8 horas recolhia-se, accendia o seu candieiro de latão, abria os seus compendios. Não frequentava botequins, nem fazia noitadas. Só duas vezes por semana, regularmente, ia vêr uma rapariguita costureira, a Euphrasia, que vivia ao Borratem, e nos dias em que o Brazileiro, o seu homem, ia jogar o boston ao club, recebia Jorge com grandes cautelas e palavras muito exaltadas; era engeitada, e no seu corpinho fino e magro havia sempre o cheiro relentado d'uma pontinha de febre. Jorge achava-a romanesca, e censurava-lh'o. Elle, nunca fôra sentimental: os seus condiscipulos, que liam Alfred de Musset suspirando e desejavam ter amado Margarida Gautier, chamavam-lhe proseirão, burguez: Jorge ria; não lhe faltava um botão nas camisas, era muito escarolado, admirava Luiz Figuier, Bastiat e Castilho, tinha horror a dividas, e sentia-se feliz.
Quando sua mãi morreu, porém, começou a achar-se só: era no inverno, e o seu quarto nas trazeiras da casa, ao sul, um pouco desamparado, recebia as rajadas do vento na sua prolongação uivada e triste; sobretudo á noite, quando estava debruçado sobre o compendio, os pés no capacho, vinham-lhe melancolias languidas; estirava os braços, com o peito cheio d'um desejo; quereria enlaçar uma cinta fina e dôce, ouvir na casa o frou-frou d'um vestido! Decidiu casar. Conheceu Luiza, no verão, á noite, no Passeio. Apaixonou-se pelos seus cabellos louros, pela sua maneira d'andar, pelos seus olhos castanhos muito grandes. No inverno seguinte foi despachado, e casou. Sebastião, o seu intimo, o bom Sebastião, o Sebastiarrão, tinha dito, com uma oscillação grave da cabeça, esfregando vagarosamente as mãos:
-- Casou no ar! casou um bocado no ar!
Mas Luiza, a Luizinha, sahiu muito boa dona de casa: tinha cuidados muito sympathicos nos seus arranjos; era aceada, alegre como um passarinho, como um passarinho amiga do ninho e das caricias do macho: e aquelle serzinho louro e meigo veio dar á sua casa um encanto serio.
-- É um anjinho cheio de dignidade! -- dizia então Sebastião, o bom Sebastião, com a sua voz profunda de basso.
Estavam casados havia tres annos. Que bom que tinha sido! Elle proprio melhorára; achava-se mais intelligente, mais alegre... E recordando aquella existencia facil e dôce, soprava o fumo do charuto, a perna traçada, a alma dilatada, sentindo-se tão bem na vida como no seu jaquetão de flanella!
-- Ah! -- fez Luiza de repente, toda admirada para o jornal, sorrindo.
-- Que é?
-- É o primo Bazilio que chega!
E leu alto, logo:
«Deve chegar por estes dias a Lisboa, vindo de Bordeus, o snr. Bazilio de Brito, bem conhecido da nossa sociedade. S. exc.a que, como é sabido, tinha partido para o Brazil, onde se diz reconstituira a sua fortuna com um honrado trabalho, anda viajando pela Europa desde o começo do anno passado. A sua volta á capital é um verdadeiro jubilo para os amigos de s. exc.a que são numerosos».
-- E são! -- disse Luiza, muito convencida.
-- Estimo, coitado! -- fez Jorge, fumando, anediando a barba com a palma da mão. -- E vem com fortuna, hein?
-- Parece.
Olhou os annuncios, bebeu um gole de chá, levantou-se, foi abrir uma das portadas da janella.
-- Oh Jorge, que calor que lá vai fóra, santo Deus! -- Batia as palpebras sob a radiação da luz crua e branca.
A sala, nas trazeiras da casa, dava para um terreno vago, cercado d'um taboado baixo, cheio d'hervas altas e d'uma vegetação d'acaso; aqui, alli, n'aquella verdura crestada do verão, largas pedras faiscavam, batidas do sol perpendicular; e uma velha figueira brava, isolada no meio do terreno, estendia a sua grossa folhagem immovel, que, na brancura da luz, tinha os tons escuros do bronze. Para além eram as trazeiras d'outras casas, com varandas, roupas seccando em cannas, muros brancos de quintaes, arvores esguias. Uma vaga poeira embaciava, tornava espesso o ar luminoso.
-- Cahem os passaros! -- disse ella cerrando a janella. -- Olha tu pelo Alemtejo, agora!
Veio encostar-se á voltaire de Jorge, passou-lhe lentamente a mão sobre o cabello preto e annelado. Jorge olhou-a, triste já da separação: os dous primeiros botões do seu roupão estavam desapertados; via-se o começo do peito de uma brancura muito tenra, a rendinha da camisa: muito castamente Jorge abotoou-lh'os.
-- E os meus colletes brancos? -- disse.
-- Devem estar promptos.
Para se certificar chamou Juliana.
Houve um ruido domingueiro de saias engommadas, Juliana entrou, arranjando nervosamente o collar e o broche. Devia ter quarenta annos, era muitissimo magra. As feições, miudas, espremidas, tinham a amarellidão de tons baços das doenças de coração. Os olhos grandes, encovados, rolavam n'uma inquietação, n'uma curiosidade, raiados de sangue, entre palpebras sempre debruadas de vermelho. Usava uma cuia de retroz imitando tranças, que lhe fazia a cabeça enorme. Tinha um tic nas azas do nariz. E o vestido chato sobre o peito, curto da roda, tufado pela gomma das saias -- mostrava um pé pequeno, bonito, muito apertado em botinas de duraque com ponteiras de verniz.
Os colletes não estavam promptos, disse com uma voz muito lisboeta, não tivera tempo de os metter em gomma.
-- Tanto lhe recommendei, Juliana! -- disse Luiza. -- Bem, vá. Veja como se arranja! Os colletes hão-de ficar á noite na mala!
E apenas ella sahiu:
-- Estou a tomar odio a esta creatura, Jorge!
Ha dous mezes que a tinha em casa, e não se podera acostumar á sua fealdade, aos seus tregeitos, á maneira aflautada de dizer chapieu, tisoiras, de arrastar um pouco os rr, ao ruido dos seus tacões que tinham laminasinhas de metal: ao domingo, a cuia, o pretencioso do pé, as luvas de pellica preta arripiavam-lhe os nervos.
-- Que antipathica!
Jorge ria:
-- Coitada, é uma pobre de Christo! -- E depois que engommadeira admiravel! No ministerio examinavam com espanto os seus peitilhos! -- O Julião diz bem, eu não ando engommado, ando esmaltado! Não é sympathica, não, mas é aceada, é apropositada...
E levantando-se, com as mãos nos bolsos das suas largas calças de flanella:
-- E, emfim, minha filha, a maneira como ella se portou na doença da tia Virginia... Foi um anjo para ella! -- Repetiu com solemnidade: -- De dia, de noite, foi um anjo para ella! Estamos-lhe em divida, minha filha! -- E começou a enrolar um cigarro, com a physionomia muito séria.
Luiza, calada, fazia saltar com a pontinha da chinella a orla do roupão; e examinando fixamente as unhas, a testa um pouco franzida, poz-se a dizer:
-- Mas emfim, se eu embirro com ella, não me importa, posso bem mandal-a embora.
Jorge parou, e raspando um phosphoro na sola do sapato:
-- Se eu consentir, minha rica. É que é uma questão de gratidão, para mim!
Ficaram calados. O cuco cantou meio dia.
-- Bem, vou á vida -- disse Jorge. Chegou-se ao pé d'ella, tomou-lhe a cabeça entre as mãos.
-- Viborasinha! -- murmurou, fitando-a muito meigamente.
Ella riu. Ergueu para elle os seus magnificos olhos castanhos, luminosos e meigos. Jorge enterneceu-se, poz-lhe sobre as palpebras dous beijos chilreados. E torcendo-lhe o beicinho, com uma meiguice:
-- Queres alguma cousa de fóra, amor?
Que não viesse muito tarde.
Ia deixar uns bilhetes, ia n'uma tipoia, era um pulo...
E sahiu, feliz, cantando com a sua boa voz de barytono:
Dio del oro,
Del mondo signor.
La la ra, la ra.
Luiza espreguiçou-se. Que sécca ter de se ir vestir! Desejaria estar n'uma banheira de marmore côr de rosa, em agua tepida, perfumada, e adormecer! Ou n'uma rede de sêda, com as janellas cerradas, embalar-se, ouvindo musica! Sacudiu a chinellinha: esteve a olhar muito amorosamente o seu pé pequeno, branco como leite, com veias azues, pensando n'uma infinidade de cousinhas: -- em meias de sêda que queria comprar, no farnel que faria a Jorge para a jornada, em tres guardanapos que a lavadeira perdera...
Tornou a espreguiçar-se. E saltando na ponta do pé descalço, foi buscar ao aparador por detraz d'uma compota um livro um pouco enxovalhado, veio estender-se na voltaire, quasi deitada, e, com o gesto acariciador e amoroso dos dedos sobre a orelha, começou a lêr, toda interessada.
Era a Dama das Camelias. Lia muitos romances; tinha uma assignatura, na Baixa, ao mez. Em solteira, aos 18 annos, enthusiasmára-se por Walter-Scott e pela Escocia; desejára então viver n'um d'aquelles castellos escocezes, que teem sobre as ogivas os brazões da clan, mobilados com arcas gothicas e tropheus d'armas, forrados de largas tapecerias, onde estão bordadas legendas heroicas, que o vento do lago agita e faz viver: e amára Ervandálo, Morton e Ivanhoé, ternos e graves, tendo sobre o gorro a penna d'aguia, presa ao lado pelo cardo d'Escocia d'esmeraldas e diamantes. Mas agora era o moderno que a captivava, Paris, as suas mobilias, as suas sentimentalidades. Ria-se dos trovadores, exaltára-se por Mr. de Camors; e os homens ideaes appareciam-lhe de gravata branca, nas hombreiras das salas de baile, com um magnetismo no olhar, devorados de paixão, tendo palavras sublimes. Havia uma semana que se interessava por Margarida Gautier: o seu amor infeliz dava-lhe uma melancolia ennevoada: via-a alta e magra, com o seu longo chale de cachemira, os olhos negros cheios da avidez da paixão e dos ardores da tisica; nos nomes mesmo do livro -- Julia Duprat, Armando, Prudencia, achava o sabor poetico d'uma vida intensamente amorosa; e todo aquelle destino se agitava, como n'uma musica triste, com ceias, noites delirantes, afflicções de dinheiro, e dias de melancolia no fundo d'um coupé, quando nas avenidas do Bois, sob um céo pardo e elegante, silenciosamente cahem as primeiras neves.
-- Até logo, Zizi -- gritou Jorge do corredor, ao sahir.
-- Olha!
Elle veio, com a bengala debaixo do braço, apertando as luvas.
-- Não appareças muito tarde, hein? Escuta, traze-me uns bolos do Baltresqui para a D. Felicidade. Ouve. Vê se passas pela madame François que me mande o chapéo. Escuta.
-- Que mais, bom Deus?
-- Ah! não! Era para ires pelo livreiro que me mande mais romances... Mas está fechado!
Foi com duas lagrimas a tremer-lhe nas palpebras que acabou as paginas da Dama das Camelias. E estendida na voltaire, com o livro cahido no regaço, fazendo recuar a pellicula das unhas, pôz-se a cantar baixinho, com ternura, a aria final da Traviata:
Addio, del passato...
Lembrou-lhe de repente a noticia do jornal, a chegada do primo Bazilio...
Um sorriso vagaroso dilatou-lhe os beicinhos vermelhos e cheios. -- Fôra o seu primeiro namoro, o primo Bazilio! Tinha ella então 18 annos! Ninguem o sabia, nem Jorge, nem Sebastião...
De resto fôra uma criancice: ella mesmo, ás vezes, ria, recordando as pieguices ternas d'então, certas lagrimas exageradas! Devia estar mudado o primo Bazilio. Lembrava-se bem d'elle -- alto, delgado, um ar fidalgo, o pequenino bigode preto levantado, o olhar atrevido, e um geito de metter as mãos nos bolsos das calças fazendo tilintar o dinheiro e as chaves! Aquillo começára em Cintra, por grandes partidas de bilhar muito alegres, na quinta do tio João de Brito, em Collares. Bazilio tinha chegado então d'Inglaterra: vinha muito bife, usava gravatas escarlates passadas n'um annel d'ouro, fatos de flanella branca, espantava Cintra! Era na sala de baixo pintada a oca, que tinha um ar antigo e morgado; uma grande porta envidraçada abria para o jardim, sobre tres degraus de pedra. Em roda do repuxo havia romanzeiras, onde elle apanhava flôres escarlates. A folhagem verde-escura e polida dos arbustos de camelias fazia ruasinhas sombrias; pedaços de sol faiscavam, tremiam na agua do tanque; duas rôlas, n'uma gaiola de vime, arrulhavam dôcemente; -- e, no silencio aldeão da quinta, o ruido secco das bolas de bilhar tinha um tom aristocratico.
Depois, vieram todos os episodios classicos dos amores lisboetas passados em Cintra: os passeios em Sitiaes ao luar, devagar, sobre a relva pallida, com grandes descanços calados no Penedo da Saudade, vendo o valle, as arêas ao longe, cheias d'uma luz saudosa, idealisadora e branca; as séstas quentes, nas sombras da Penha Verde, ouvindo o rumor fresco e gottejante das aguas que vão de pedra em pedra; as tardes na varzea de Collares, remando n'um velho bote, sobre a agua escura da sombra dos freixos, -- e que risadas quando iam encalhar nas hervagens altas, e o seu chapéo de palha se prendia aos ramos baixos dos choupos!
Sempre gostára muito de Cintra! Logo ao entrar os arvoredos escuros e murmurosos do Ramalhão lhe davam uma melancolia feliz!
Tinham muita liberdade, ella e o primo Bazilio. A mamã, coitadinha, toda scismatica, com rheumatismo, egoista, deixava-os, sorria, dormitava: Bazilio era rico, então, chamava-lhe tia Jójó, trazia-lhe cartuchos de dôce...
Veio o inverno, e aquelle amor foi-se abrigar na velha sala forrada de papel sangue-de-boi da rua da Magdalena. Que bons serões alli! A mamã resonava baixo, com os pés embrulhados n'uma manta, o volume da Bibliotheca das Damas cahido sobre o regaço. E elles, muito chegados, muito felizes no sophá! O sophá! Quantas recordações! Era estreito e baixo, estofado de casimira clara, com uma tira ao centro, bordada por ella, amores perfeitos amarellos e roxos sobre um fundo negro. Um dia veio o final. João de Brito, que fazia parte da firma Bastos & Brito, falliu. A casa d'Almada, a quinta de Collares foram vendidas.
Bazilio estava pobre, partiu para o Brazil. Que saudades! Passou os primeiros dias sentada no sophá querido, soluçando baixo, com a photographia d'elle entre as mãos. Vieram então os sobresaltos das cartas esperadas, os recados impacientes ao escriptorio da Companhia, quando os paquetes tardavam...
Passou um anno. Uma manhã, depois d'um grande silencio de Bazilio, recebeu da Bahia uma longa carta, que começava: «Tenho pensado muito e entendo que devemos considerar a nossa inclinação como uma criancice...»
Desmaiou logo. Bazilio affectava muita dôr em duas laudas cheias d'explicações: que estava ainda pobre; que teria de luctar muito antes de ter para dous; o clima era horrivel; não a queria sacrificar, pobre anjo; chamava-lhe minha «pomba» e assignava o seu nome todo, com uma firma complicada.
Viveu triste durante mezes. Era no inverno; e sentada á janella, por dentro dos vidros, com o seu bordado de lã, julgava-se desilludida, pensava no convento, seguindo com um olhar melancolico os guarda-chuvas gottejantes que passavam sob as cordas d'agua; ou sentando-se ao piano, ao anoitecer, cantava Soares de Passos:
Ai! adeus, acabaram-se os dias
Que ditoso vivi a teu lado...
ou o final da Traviata, ou o fado do Vimioso, muito triste, que elle lhe ensinára.
Mas então o catarrho da mamã aggravou-se; vieram os sustos, as noites veladas. Na convalescença foram para Bellas: ligou-se alli muito com as Cardosos, duas irmãs magras, estouvadas e esguias, sempre colladas uma á outra, com um passinho trotado e secco, como um casal de galgos. O que riam, Jesus! O que fallavam dos homens! Um tenente de artilheria tinha-se apaixonado por ella. Era vesgo, mandou-lhe uns versos, Ao Lyrio de Bellas:
Sobre a encosta da collina
Cresce o lyrio virginal...
Foi um tempo muito alegre, cheio de consolações.
Quando voltaram no inverno tinha engordado, trazia boas côres. E um dia, tendo achado n'uma gaveta uma photographia que logo ao principio Bazilio lhe mandára da Bahia, de calça branca e chapéo panamá, fitou-a, encolhendo os hombros:
-- E o que eu me ralei por esta figura! Que tôla!
Tinham passado tres annos quando conheceu Jorge. Ao principio não lhe agradou. Não gostava dos homens barbados: depois percebeu que era a primeira barba, fina, rente, muito macia de certo; começou a admirar os seus olhos, a sua frescura. E sem o amar, sentia ao pé d'elle como uma fraqueza, uma dependencia e uma quebreira, uma vontade d'adormecer encostada ao seu hombro, e de ficar assim muitos annos, confortavel, sem receio de nada. Que sensação quando elle lhe disse: Vamos casar, hein! Viu de repente o rosto barbado, com os olhos muito luzidios, sobre o mesmo travesseiro, ao pé do seu! Fez-se escarlate. Jorge tinha-lhe tomado a mão: ella sentia o calor d'aquella palma larga penetral-a, tomar posse d'ella: disse que sim, ficou como idiota, e sentia debaixo do vestido de merino dilatarem-se dôcemente os seus seios. Estava noiva, emfim! Que alegria, que descanço para a mamã!
Casaram ás oito horas, n'uma manhã de nevoeiro. Foi necessario accender luz para lhe pôr a corôa e o véo de tulle. Todo aquelle dia lhe apparecia como ennevoado, sem contornos, á maneira d'um sonho antigo -- onde destacava a cara balofa e amarellada do padre, e a figura medonha d'uma velha, que estendia a mão adunca, com uma sofreguidão colerica, empurrando, rogando pragas, quando, á porta da igreja, Jorge commovido distribuia patacos. Os sapatos de setim apertavam-na. Sentira-se enjoada da madrugada, fôra necessario fazer-lhe chá verde muito forte. E tão cançada á noite n'aquella casa nova, depois de desfazer os seus bahus! -- Quando Jorge apagou a véla, com um sopro tremulo, SS luminosos faiscavam, corriam-lhe diante dos olhos.
Mas era o seu marido, era novo, era forte, era alegre: pôz-se a adoral-o. Tinha uma curiosidade constante da sua pessoa e das suas cousas, mexia-lhe no cabello, na roupa, nas pistolas, nos papeis. Olhava muito para os maridos das outras, comparava, tinha orgulho n'elle. Jorge envolvia-a em delicadezas d'amante, ajoelhava-se aos seus pés, era muito dengueiro. E sempre de bom humor, com muita graça: mas nas cousas da sua profissão ou do seu brio tinha severidades exageradas, e punha então nas palavras, nos modos uma solemnidade carrancuda. Uma amiga d'ella romanesca, que via em tudo dramas, tinha-lhe dito: é homem para te dar uma punhalada. Ella que não conhecia ainda então o temperamento placido de Jorge acreditou, e isso mesmo creou uma exaltação no seu amor por elle. Era o seu tudo, -- a sua força, o seu fim, o seu destino, a sua religião, o seu homem! -- Pôz-se a pensar, o que teria succedido se tivesse casado com o primo Basilio. Que desgraça, hein! Onde estaria? Perdia-se em supposições d'outros destinos, que se desenrolavam, como pannos de theatro: via-se no Brazil, entre coqueiros, embalada n'uma rede, cercada de negrinhos, vendo voar papagaios!
-- Está alli a snr.a D. Leopoldina -- veio dizer Juliana.
Luiza ergueu-se surprehendida.
-- Hein? A snr.a D. Leopoldina? Para que mandou entrar?
Poz-se a abotoar á pressa o roupão. Jesus! Olha se Jorge soubesse! Elle que lhe tinha dito tantas vezes «que a não queria em casa!» Mas se já estava na sala, agora, coitada!
-- Está bom, diga-lhe que já vou.
Era a sua intima amiga. Tinham sido visinhas, em solteiras, na rua da Magdalena, e estudado no mesmo collegio, á Patriarchal, na Rita Pessoa, a côxa. Leopoldina era a filha unica do visconde de Quebraes, o devasso, o cachetico, que fôra pagem de D. Miguel. Tinha feito um casamento infeliz com um João Noronha, empregado da alfandega. Chamavam-lhe a «Quebraes»; chamavam-lhe tambem a «Pão e queijo».
Sabia-se que tinha amantes, dizia-se que tinha vicios. Jorge odiava-a. E dissera muitas vezes a Luiza: Tudo, menos a Leopoldina!
Leopoldina tinha então vinte e sete annos. Não era alta, mas passava por ser a mulher mais bem feita de Lisboa. Usava sempre os vestidos muito collados, com uma justeza que accusava, modelava o corpo como uma pellica, sem largueza de roda, apanhados atraz. Dizia-se d'ella, com os olhos em alvo: é uma estatua, é uma Venus! Tinha hombros de modêlo, d'uma redondeza descahida e cheia; sentia-se nos seus seios, mesmo através do corpete, o desenho rijo e harmonioso de duas bellas metades de limão; a linha dos quadris rica e firme, certos quebrados vibrantes de cintura faziam voltar os olhares accesos dos homens. A cara era um pouco grosseira; as asas do nariz tinham uma dilatação carnuda; na pelle, muito fina, d'um trigueiro quente e córado, havia signaesinhos desvanecidos d'antigas bexigas. A sua belleza eram os olhos, d'uma negrura intensa, afogados n'um fluido, muito quebrados, com grandes pestanas.
Luiza veio para ella com os braços abertos, beijaram-se muito. E Leopoldina, sentada no sophá, enrolando devagarinho a sêda clara do guarda-sol, começou a queixar-se: Tinha estado adoentada, muito seccada, com tonturas. O calor matava-a. E que tinha ella feito? Achava-a mais gorda.
Como era um pouco curta de vista, para se affirmar piscava ligeiramente os olhos, descerrando os beiços gordinhos, d'um vermelho calido.
-- A felicidade dá tudo, até boas côres! -- disse, sorrindo.
O que a trazia era perguntar-lhe a morada da franceza que lhe fazia os chapéos. E ha tanto tempo que a não via, já tinha saudades, tambem!
-- Mas não imaginas! Que calor! Venho morta.
E deixou-se cahir sobre a almofada do sophá, encalmada, com um sorriso aberto, mostrando os dentes brancos e grandes.
Luiza disse-lhe a morada da franceza, gabou-lh'a; era barateira e tinha bom gosto. Como a sala estava escura foi entre-abrir um pouco as portadas da janella. Os estofos das cadeiras e as bambinellas eram de reps verde-escuro; o papel e o tapete com desenhos de ramagens tinham o mesmo tom, e n'aquella decoração sombria destacavam muito -- as molduras douradas e pesadas de duas gravuras (a Medea de Delacroix e a Martyr de Delaroche), as encadernações escarlates dos dois vastos volumes do Dante de G. Doré, e entre as janellas o oval d'um espelho onde se reflectia um napolitano de biscuit que, na console, dançava a tarantella.
Por cima do sophá pendia o retrato da mãi de Jorge, a oleo. Estava sentada, vestida ricamente de preto, direita no seu corpete espartilhado e secco: uma das mãos, d'um livido morto, pousava nos joelhos sobrecarregada d'anneis; a outra perdia-se entre as rendas muito trabalhadas d'um mantelete de setim; e aquella figura longa, macilenta, com grandes olhos carregados de negro, destacava sobre uma cortina escarlate, corrida em pregas copiosamente quebradas, deixando vêr para além céos azulados e redondezas d'arvoredos.
-- E teu marido? -- perguntou Luiza, vindo sentar-se muito junto de Leopoldina.
-- Como sempre. Pouco divertido -- respondeu, rindo. E, com um ar serio, a testa um pouco franzida: -- Sabes que acabei com o Mendonça?
Luiza fez-se ligeiramente vermelha.
-- Sim?
Leopoldina deu logo detalhes.
Era muito indiscreta, fallava muito de si, das suas sensações, da sua alcova, das suas contas. Nunca tivera segredos para Luiza; e na sua necessidade de fazer confidencias, de gozar a admiração d'ella, descrevia-lhe os seus amantes, as opiniões d'elles, as maneiras d'amar, os tics, a roupa, com grandes exagerações! Aquillo era sempre muito picante, cochichado ao canto d'um sophá, entre risinhos: Luiza costumava escutar, toda interessada, as maçãs do rosto um pouco envergonhadas, pasmada, saboreando, com um arzinho beato. Achava tão curioso!
-- D'esta vez é que bem posso dizer que me enganei, minha rica filha! -- exclamou Leopoldina erguendo os olhos desoladamente.
Luiza riu.
-- Tu enganas-te quasi sempre!
Era verdade! Era infeliz!
-- Que queres tu? De cada vez imagino que é uma paixão, e de cada vez me sahe uma massada!
E picando o tapete com a ponta da sombrinha:
-- Mas se um dia acerto!
-- Vê se acertas -- disse Luiza. -- Já é tempo!
Ás vezes na sua consciencia achava Leopoldina «indecente»; mas tinha um fraco por ella: sempre admirára muito a belleza do seu corpo, que quasi lhe inspirava uma attracção physica. Depois desculpava-a: era tão infeliz com o marido! Ia atraz da Paixão, coitada! E aquella grande palavra, faiscante e mysteriosa, d'onde a felicidade escorre como a agua d'uma taça muito cheia, satisfazia Luiza como uma justificação sufficiente: quasi lhe parecia uma heroina; e olhava-a com espanto como se consideram os que chegam d'alguma viagem maravilhosa e difficil, d'episodios excitantes. Só não gostava de certo cheiro de tabaco misturado de feno, que trazia sempre nos vestidos. Leopoldina fumava.
-- E que fez elle, o Mendonça?
Leopoldina encolheu os hombros, com um grande tedio:
-- Escreveu-me uma carta muito tôla, que a final bem considerado era melhor que acabasse tudo, porque não estava para se metter em camisa d'onze varas! Que imbecil! Até devo ter aqui a carta.
Procurou na algibeira do vestido: tirou o lenço, uma carteirinha, chaves, uma caixinha de pó de arroz; mas encontrou apenas um programma do Price.
Fallou então do circo. -- Uma semsaboria. O melhor era um rapaz que trabalhava no trapezio. Lindo rapaz, bem feito, uma perfeição!
E de repente:
-- Então teu primo Bazilio chega?
-- Assim li hoje no Diario de Noticias. Fiquei pasmada!
-- Ah! outra cousa que te queria perguntar antes que me esqueça. Com que guarneceste tu aquelle teu vestido de xadrezinho azul? Vou mandar fazer um assim.
Tinha-o guarnecido d'azul tambem, um azul mais escuro. -- Vem vêr. Vem cá dentro.
Entraram no quarto. Luiza foi descerrar a janella, abrir o guarda-vestidos. Era um quarto pequeno, muito fresco, com cretones d'um azul pallido. Tinha um tapete barato, de fundo branco, com desenhos azulados. O toucador, alto, estava entre as duas janellas, sob um docel de renda grossa, muito ornado de frascos facetados. Entre as bambinellas, em mesas redondas de pé de gallo, plantas espessas, Begonias, Makoamas, dobravam decorativamente a sua folhagem rica e forte, em vasos de barro vermelho vidrado.
Aquelles arranjos confortaveis lembraram de certo a Leopoldina felicidades tranquillas. Pôz-se a dizer devagar, olhando em roda:
-- E tu, sempre muito apaixonada por teu marido, hein? Fazes bem, filha, tu é que fazes bem!
Foi defronte do toucador, applicar pó d'arroz no pescoço, nas faces:
-- Tu é que fazes bem! -- repetia -- Mas vá lá uma mulher prender-se a um homem como o meu!
Sentou-se na causeuse com um ar muito abandonado; vieram as queixas habituaes sobre seu marido: era tão grosseiro! era tão egoista!
-- Acreditarás que ha tempos para cá, se não estou em casa ás quatro horas, não espera, põe-se á mesa, janta, deixa-me os restos! E depois desleixado, enxovalhado, sempre a cuspir nas esteiras... O quarto d'elle -- nós temos dous quartos, como tu sabes -- é um chiqueiro!
Luiza disse com severidade:
-- Que horror! A culpa tambem é tua.
-- Minha! -- e endireitou-se, luziam-lhe os olhos, mais largos, mais negros. -- Não me faltava mais nada senão occupar-me do quarto do homem!
Ah! era muito desgraçada, era a mulher mais desgraçada que havia no mundo!
-- Nem ciumes tem, o bruto!
Mas Juliana entrou, tossiu, e arranjando ainda o collar e o broche:
-- A senhora sempre quer que engomme os colletes todos?
-- Todos, já lhe disse. Hão-de ficar á noite na mala antes de se ir deitar.
-- Que mala? Quem parte? -- perguntou Leopoldina.
-- O Jorge. Vai ás minas, ao Alemtejo.
-- Então estás só, posso vir vêr-te! Ainda bem!
E sentou-se logo ao pé d'ella, com um olhar que se fizera dôce.
-- É que tenho tanto que te contar! Se tu soubesses, filha!
-- O quê? Outra paixão? -- fez Luiza rindo.
A face de Leopoldina tornou-se grave.
Não era p'ra rir. Estava de todo! Era por isso até que tinha vindo. Sentira-se tão só em casa, tão nervosa! -- Vou até Luiza, vou palrar um bocado!
E com a voz mais baixa, quasi solemne:
-- D'esta vez é serio, Luiza! -- Deu os detalhes. Era um rapaz alto, louro, lindo! E que talento! É poeta! -- Dizia a palavra com devoção, prolongando o som das syllabas. -- É poeta!
Desapertou devagar dous botões do corpete, tirou do seio um papel dobrado. Eram versos.
E muito chegada para Luiza, com as narinas dilatadas pela delicia da sensação, leu baixo, com orgulho, com pompa:
A TI
Pharol da Guia, 5 de junho.
Quando scismo á hora do poente
Sobre os rochedos onde brame o mar...
Era uma elegia. O rapaz contava, em quadras, as longas contemplações em que a via a ella, Leopoldina, visão radiosa que deslisas leve, nas aguas dormentes, nas vermelhidões do occaso, na brancura das espumas. Era uma composição delambida, d'um sentimentalismo reles, com um ar tisico, muito lisboeta, cheia de versos errados. E terminando dizia-lhe, que não era «nos esplendores das salas» ou nos «bailes febricitantes» que gostava de a vêr: era alli, n'aquelles rochedos,
Onde todos os dias ao sol posto
Eu vejo adormecer o mar gigante.
-- Que bonito, hein!
Ficaram caladas, com uma commoçãosinha.
Leopoldina, com os olhos perturbados, repetia a data, amorosamente:
-- Pharol da Guia, 5 de junho!
Mas o relogio do quarto deu quatro horas. Leopoldina ergueu-se logo, atarantada, metteu o poema no seio.
Tinha de se ir já! Fazia-se tarde, senão o outro, punha-se á mesa. Tinha um ruivo assado para o jantar. E peixe frio era a cousa mais estupida!
-- Adeus. Até breve, não? -- E agora que Jorge ia para fóra, havia de vir muito. -- Adeus. Então a franceza, rua do Ouro, por cima do estanque?
Luiza foi com ella até ao patamar. Leopoldina já no fundo da escada, ainda parou, gritou:
-- Sempre te parece que guarneça o vestido d'azul, hein?
Luiza debruçou-se sobre o corrimão:
-- Eu assim fiz, é o melhor...
-- Adeus! Rua do Ouro, por cima do estanque.
-- Sim. Rua do Ouro. Adeus. -- E com um gritinho: -- Porta á direita, Madame François.
Jorge voltou ás cinco horas, e logo da porta do quarto, pondo a bengala a um canto:
-- Já sei que tiveste cá uma visita.
Luiza voltou-se, um pouco córada. Estava diante do toucador já penteada, com um vestido de linho branco, guarnecido de rendas.
Era verdade, tinha vindo a Leopoldina. Juliana mandára-a entrar... Ficára mais contrariada! Era por causa da adresse da franceza dos chapéos. Tinha-se demorado dez minutos. -- Quem te disse?
-- Foi a Juliana: que a snr.a D. Leopoldina tinha estado toda a tarde.
-- Toda a tarde! que tolice, esteve dez minutos, se tanto!
Jorge tirava as luvas, calado. Chegou-se á janella, pôz-se a sacudir as duras folhas d'uma Begonia malhada d'um vermelho doente, com uma baba prateada. Assobiava baixo; e parecia todo occupado em conchegar um botão d'Amarilis aninhado entre a sua folhagem luzidia, como um pequenino coração assustado.
Luiza ia passando o seu medalhão d'ouro n'uma longa fita de velludo preto: tinha uma tremura nas mãos, estava vermelha.
-- O calor tem-lhes feito mal -- disse.
Jorge não respondeu. Assobiou mais alto, foi á outra janella, bateu com os dedos nas folhas elasticas d'uma Makoama de tons verdes e sanguineos, e, alargando impacientemente o collarinho como um homem suffocado:
-- Ouve lá, é necessario que deixes por uma vez de receber essa creatura. É necessario acabar por uma vez!
Luiza fez-se escarlate.
-- É por causa de ti! é por causa dos visinhos! é por causa da decencia!
-- Mas foi a Juliana... -- balbuciou Luiza.
-- Mandasse-l'a sahir outra vez. Que estavas fóra! que estavas na China! que estavas doente!
Parou, com um tom desconsolado, abrindo os braços:
-- Minha rica filha, é que todo o mundo a conhece. É a Quebraes! É a Pão e queijo! É uma vergonha!
Citava-lhe os seus amantes, exasperado: O Carlos Viegas, o magro, de bigode cahido, que escrevia comedias para o Gymnasio! O Santos Madeira, o picado das bexigas, com uma gaforinha! O Melchior Vadio, um gingão desossado, com um olhar de carneiro morto, sempre a fumar n'uma enorme boquilha! O Pedro Camara, o bonito! O Mendonça dos callos! Tutti quanti!
E encolhendo os hombros, exasperado:
-- Como se eu não percebesse que ella esteve aqui! Só pelo cheiro! Este horrivel cheiro de feno! Vossês foram creadas juntas, etc., tudo isso é muito bom. Has-de desculpar, mas se a encontro na escada, corro-a! Corro-a!
Parou um momento, e commovido:
-- Ora, vamos, Luiza, confessa. Tenho ou não razão?
Luiza punha os brincos, ao espelho, atarantada:
-- Tens -- disse.
-- Ah! bem!
E sahiu, furioso.
Luiza ficou immovel. Uma lagrimasinha redonda, clara, rolava-lhe pela aza do nariz. Assoou-se muito doloridamente. Aquella Juliana! Aquella bisbilhoteira! De má! Para fazer sizania!
Veio-lhe então uma colera. Foi ao quarto dos engommados, atirou com a porta:
-- Para que foi vossê dizer quem esteve ou quem deixou d'estar?
Juliana, muito surprehendida, pousou o ferro:
-- Pensei que não era segredo, minha senhora.
-- Está claro que não! Tola! quem lhe diz que era segredo? E para que mandou entrar? Não lhe tenho dito muitas vezes que não recebo a snr.a D. Leopoldina?
-- A senhora nunca me disse nada -- replicou, toda offendida, cheia de verdade.
-- Mente! Cale-se!
Voltou-lhe as costas; veio para o quarto, muito nervosa, foi encostar-se á vidraça.
O sol desapparecera; na rua estreita havia uma sombra igual, de tarde sem vento: pelas casas, de uma edificação velha, escuras, estavam abertas as varandas onde em vasos vermelhos se mirrava alguma velha planta miseravel, manjaricão ou cravo; ouvia-se, no teclado melancolico d'um piano, a Oração de uma virgem, tocada por alguma menina, no sentimentalismo vadio do domingo; e na sua janella, defronte, as quatro filhas do Teixeira Azevedo, magrinhas, com os cabellos muito riçados, as olheiras pisadas, passavam a sua tarde de dia santo, olhando para a rua, para o ar, para as janellas visinhas, cochichando se viam passar um homem -- ou debruçadas, com uma attenção idiota, faziam pingar saliva sobre as pedras da calçada.
Jorge tinha razão, coitado! pensava Luiza. Mas, tambem, que podia ella fazer? Já não ia a casa de Leopoldina, tirára o seu retrato do album da sala, vira-se obrigada a confessar-lhe a repugnancia de Jorge, tinham chorado ambas, até! Coitada! Só a recebia de longe a longe, uma raridade, um momento! E emfim, depois d'ella estar na sala, não a havia d'ir empurrar pela escada abaixo!
Um homem grosso, de pernas tortas, curvado sob um realejo, appareceu então ao alto da rua; as suas barbas pretas tinham um aspecto feroz; parou, poz-se a voltear a manivella, levantando em redor, para as janellas, um sorriso triste de dentes brancos, e a Casta Diva! com uma sonoridade metallica e secca, muito tremida, espalhou-se pela rua.
Gertrudes, a criada e a concubina do doutor de mathematica, veio encostar logo aos caixilhos estreitos da janella a sua vasta face trigueira de quarentona farta e estabelecida; adiante, na sacada aberta d'um segundo andar, debruçou-se a figura do Cunha Rosado, magro e chupado, com um boné de borla, o aspecto desconsolado do doente d'intestinos, conchegando com as mãos transparentes o robe-de-chambre ao ventre. Outras faces enfastiadas mostraram-se entre as bambinellas de caça.
Na rua, a estanqueira chegou-se á porta, vestida de luto, estendendo o seu carão viuvo, os braços cruzados sobre o chale tingido de preto, esguia nas longas saias escoadas. Da loja, por baixo da casa Azevedo, veio a carvoeira, enorme de gravidez bestial, o cabello esguedelhado em repas seccas, a cara oleosa e enfarruscada, com tres pequenos meio nús, quasi negros, chorões e hirsutos, que se lhe penduravam da saia de chita. E o Paula, com loja de trastes velhos, adiantou-se até ao meio da rua; a pala de verniz do seu boné de pano preto nunca se erguia de cima dos olhos; escondia sempre as mãos, como para ser mais reservado, por traz das costas, debaixo das abas do seu casaco de cotim branco; o calcanhar sujo da meia sahia-lhe para fóra da chinella bordada a missanga; e fazia roncar o seu pigarro chronico de um modo despeitado. Detestava os reis e os padres. O estado das cousas publicas enfurecia-o. Assobiava frequentemente a Maria da Fonte; e mostrava-se nas suas palavras, nas suas attitudes, um patriota exasperado.
O homem do realejo tirou o seu largo chapéo desabado e, tocando sempre, ia-o estendendo em redor para as janellas, com um olhar necessitado. As Azevedos tinham logo fechado violentamente a vidraça. A carvoeira deu-lhe uma moeda de cobre; mas interrogou-o; quiz de certo saber de que paiz era, por que estradas tinha vindo, e quantas peças tinha o instrumento.
Gente endomingada começava a recolher, com um ar derreado do longo passeio, as botas empoeiradas: mulheres de chale, vindas das hortas, traziam ao collo as crianças adormecidas da caminhada e do calor: velhos placidos, de calça branca, o chapéo na mão, gozavam a frescura, dando um giro no bairro: pelas janellas, bocejava-se: o céo tomava uma côr azulada e polida, como uma porcelana: um sino repicava a distancia o fim d'alguma festa d'igreja: e o domingo terminava, com uma serenidade cançada e triste.
-- Luiza -- disse a voz de Jorge.
Ella voltou-se, com um vago -- hein?
-- Vamos jantar, filha; são sete horas.
No meio do quarto, tomou-a pela cinta, e fallando-lhe baixo, junto á face:
-- Tu zangaste-te ha bocado?
-- Não! Tu tens razão. Conheço que tens razão.
-- Ah! -- fez elle com um tom victorioso, muito satisfeito. -- Está claro,
Quem melhor conselheiro e bom amigo
Que o marido que a alma m'escolheu?
E com uma ternura grave:
-- Minha querida filha, esta nossa casinha é tão honesta, que é uma dôr d'alma vêr entrar essa mulher aqui, com o cheiro do feno, do cigarro, e do resto!... Mà, di questo no parlaremo più, o donna mia! Á sopa!
II
Aos domingos á noite havia em casa de Jorge uma pequena reunião, uma cavaqueira, na sala, em redor do velho candieiro de porcelana côr de rosa. Vinham apenas os intimos. «O Engenheiro», como se dizia na rua, vivia muito ao seu canto, sem visitas. Tomava-se chá, palrava-se. Era um pouco á estudante. Luiza fazia crochet, Jorge cachimbava.
O primeiro a chegar era Julião Zuzarte, um parente muito afastado de Jorge, e seu antigo condiscipulo nos primeiros annos da Polytechnica. Era um homem secco e nervoso, com lunetas azues, os cabellos compridos cahidos sobre a gola. Tinha o curso de cirurgião da Escóla. Muito intelligente, estudava desesperadamente, mas, como elle dizia, era um tumba. Aos trinta annos, pobre, com dividas, sem clientella,
começava a estar farto do seu quarto andar na Baixa, dos seus jantares de doze vintens, do seu paletot coçado d'alamares; e entalado na sua vida mesquinha, via os outros, os mediocres, os superficiaes, furar, subir, installar-se á larga na prosperidade! «Falta de chance», dizia. Podia ter aceitado um partido da camara n'uma villa da provincia, com pulso livre, ter uma casa sua, a sua creação no quintal. Mas tinha um orgulho resistente, muita fé nas suas faculdades, na sua sciencia, e não se queria ir enterrar n'uma terriola adormecida e lugubre, com tres ruas onde os porcos fossam. Toda a provincia o aterrava; via-se lá obscuro, jogando a manilha na Assembléa, morrendo de cachexia. Por isso não «arredava pé»; e esperava, com a tenacidade do plebeu sofrego, uma clientella rica, uma cadeira na Escóla, um coupé para as visitas, uma mulher loura com dote. Tinha certeza do seu direito a estas felicidades, e como ellas tardavam a chegar ia-se tornando despeitado e amargo; andava amuado com a vida; cada dia se prolongavam mais os seus silencios hostis, roendo as unhas: e, nos dias melhores, não cessava de ter ditos sêccos, tiradas azedadas -- em que a sua voz desagradavel cahia como um gume gelado.
Luiza não gostava d'elle; achava-lhe um ar nordeste, detestava o seu tom de pedagogo, os reflexos negros da luneta, as calças curtas que mostravam o elastico roto das botas. Mas disfarçava, sorria-lhe, porque Jorge admirava-o, dizia sempre d'elle: Tem muito espirito! tem muito talento! grande homem!
Como vinha mais cedo ia á sala de jantar, tomava a sua chavena de café; e tinha sempre um olhar de lado para as pratas do aparador e para as toilettes frescas de Luiza. Aquelle parente, um mediocre, que vivia confortavelmente, bem casado, com a carne contente, estimado no ministerio, com alguns contos de reis em inscripções -- parecia-lhe uma injustiça e pezava-lhe como uma humilhação. Mas affectava estimal-o; ia sempre ás noites, aos domingos; escondia então as suas preoccupações, cavaqueava, tinha pilherias, -- mettendo a cada momento os dedos pelos seus cabellos compridos, seccos e cheios de caspa.
Ás nove horas, ordinariamente, entrava D. Felicidade de Noronha. Vinha logo da porta com os braços estendidos, o seu bom sorriso dilatado. Tinha cincoenta annos, era muito nutrida, e, como soffria de dyspepsia e de gazes, áquella hora não se podia espartilhar e as suas fórmas transbordavam. Já se viam alguns fios brancos nos seus cabellos levemente annelados, mas a cara era lisa e redonda, cheia, d'uma alvura baça e molle de freira; nos olhos papudos, com a pelle já engelhada em redor, luzia uma pupilla negra e humida, muito mobil; e aos cantos da bocca uns pellos de buço pareciam traços leves e circumflexos d'uma penna muito fina. Fôra a intima amiga da mãi de Luiza, e tomára aquelle habito de vir vêr a pequena aos domingos. Era fidalga, dos Noronhas de Redondella, bastante aparentada em Lisboa, um pouco devota, muito da Encarnação.
Mal entrava, ao pôr um beijo muito cantado na face de Luiza, perguntava-lhe baixo, com inquietação:
-- Vem?
-- O conselheiro? Vem.
Luiza sabia-o. Porque o conselheiro, o conselheiro Accacio, nunca vinha aos chás de D. Luiza, como elle dizia, sem ter ido na vespera ao ministerio das obras publicas procurar Jorge, declarar-lhe com gravidade, curvando um pouco a sua alta estatura:
-- Jorge, meu amigo, ámanhã lá irei pedir a sua boa esposa a minha chavena de chá.
Ordinariamente acrescentava:
-- E os seus valiosos trabalhos progridem? Ainda bem! Se vir o ministro, os meus respeitos a s. exc.a Os meus respeitos a esse formoso talento!
E sahia, pisando com solemnidade os corredores enxovalhados.
Havia cinco annos que D. Felicidade o amava. Em casa de Jorge riam-se um pouco com aquella chamma. Luiza dizia: Ora! é uma caturrice d'ella! Viam-na córada e nutrida, e não suspeitavam que aquelle sentimento concentrado, irritado semanalmente, queimando em silencio, a ia devastando como uma doença e desmoralisando como um vicio. Todos os seus ardores até ahi tinham sido inutilisados. Amára um official de lanceiros que morrêra, e apenas conservava o seu daguerreotypo. Depois apaixonára-se muito occultamente por um rapaz padeiro, da visinhança, e vira-o casar. Dera-se então toda a um cão, o Bilro; uma criada despedida deu-lhe por vingança rolha cozida; o Bilro rebentou, e tinha-o agora empalhado na sala de jantar. A pessoa do conselheiro viera de repente, um dia, pegar fogo áquelles desejos, sobrepostos como combustiveis antigos. Accacio tornára-se a sua mania: admirava a sua figura e a sua gravidade, arregalava grandes olhos para a sua eloquencia, achava-o n'uma «linda posição». O conselheiro era a sua ambição e o seu vicio! Havia sobretudo n'elle uma belleza, cuja contemplação demorada a estonteava como um vinho forte: era a calva. Sempre tivera o gosto perverso de certas mulheres pela calva dos homens, e aquelle appetite insatisfeito inflammára-se com a idade. Quando se punha a olhar para a calva do conselheiro, larga, redonda, polida, brilhante ás luzes, uma transpiração anciosa humedecia-lhe as costas, os olhos dardejavam-lhe, tinha uma vontade absurda, avida de lhe deitar as mãos, palpal-a, sentir-lhe as fórmas, amassal-a, penetrar-se d'ella! Mas disfarçava, punha-se a fallar alto com um sorriso parvo, abanava-se convulsivamente, e o suor gottejava-lhe nas rôscas anafadas do pescoço. Ia para casa rezar estações, impunha-se penitencias de muitas corôas á Virgem; mas apenas as orações findavam, começava o temperamento a latejar. E a boa, a pobre D. Felicidade tinha agora pesadêlos lascivos, e as melancolias do hysterismo velho! A indifferença do conselheiro irritava-a mais: nenhum olhar, nenhum suspiro, nenhuma revelação amorosa o commovia! Era para com ella glacial e polido. Tinham-se ás vezes encontrado a sós, á parte, no vão favoravel d'uma janella, no isolamento mal alumiado d'um canto do sophá, -- mas apenas ella fazia uma demonstração sentimental, elle erguia-se bruscamente, afastava-se, severo e pudico. Um dia ella julgára perceber que, por traz das suas lunetas escuras, o conselheiro lhe deitava de revés um olhar apreciador para a abundancia do seio; fôra mais clara, mais urgente, fallára em paixão, disse-lhe baixo: Accacio!... Mas elle com um gesto gelou-a -- e de pé, grave:
-- Minha senhora,
As neves que na fronte se accumulam
Terminam por cahir no coração...
É inutil, minha senhora!
O martyrio de D. Felicidade era muito occulto, muito disfarçado; ninguem o sabia; conheciam-lhe as infelicidades do sentimento, ignoravam-lhe as torturas do desejo. E um dia Luiza ficou attonita, sentindo D. Felicidade agarrar-lhe o pulso com a mão humida, e dizer-lhe baixo, os olhos cravados no conselheiro:
-- Que regalo d'homem!
Fallava-se n'essa noite do Alemtejo, d'Evora e das suas riquezas, da capella dos ossos, quando o conselheiro entrou com o paletot no braço. Foi-o dobrar solicitamente n'uma cadeira a um canto, e no seu passo aprumado e official, veio apertar as mãos ambas de Luiza, dizendo-lhe com uma voz sonora, de papo:
-- Minha boa snr.a D. Luiza, de perfeita saude, não? O nosso Jorge tinha-m'o dito. Ainda bem! Ainda bem!
Era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado n'um collarinho direito. O rosto aguçado no queixo ia-se alargando até á calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabellos que d'uma orelha á outra lhe faziam collar por traz da nuca -- e aquelle preto lustroso dava, pelo contraste, mais brilho á calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, cahido aos cantos da bocca. Era muito pallido; nunca tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha no queixo, e as orelhas grandes muito despegadas do craneo.
Fôra, outr'ora, director geral do ministerio do reino, e sempre que dizia -- El-rei! erguia-se um pouco na cadeira. Os seus gestos eram medidos, mesmo a tomar rapé. Nunca usava palavras triviaes; não dizia vomitar, fazia um gesto indicativo e empregava restituir. Dizia sempre «o nosso Garrett, o nosso Herculano». Citava muito. Era author. E sem familia, n'um terceiro andar da rua do Ferregial, amancebado com a criada, occupava-se d'economia politica: tinha composto os Elementos genericos da sciencia da riqueza e sua distribuição, segundo os melhores authores, e como sub-titulo: Leituras do serão! Havia apenas mezes publicára a Relação de todos os ministros d'estado desde o grande marquez de pombal até nossos dias, com datas cuidadosamente averiguadas de seus nascimentos e obitos.
-- Já esteve no Alemtejo, conselheiro? -- perguntou-lhe Luiza.
-- Nunca, minha senhora -- e curvou-se. -- Nunca! E tenho pena! sempre desejei lá ir, porque me dizem que as suas curiosidades são de primeira ordem.
Tomou uma pitada d'uma caixa dourada, entre os dedos, delicadamente, e acrescentou com pompa:
-- De resto, paiz de grande riqueza suina!
-- Ó Jorge, averigua quanto é o partido da camara em Evora -- disse Julião do canto do sophá.
O conselheiro acudiu, cheio de informações, com a pitada suspensa:
-- Devem ser seiscentos mil reis, snr. Zuzarte, e pulso livre. Tenho-o nos meus apontamentos. Porquê, snr. Zuzarte, quer deixar Lisboa?
-- Talvez!...
Todos desapprovaram.
-- Ah! Lisboa sempre é Lisboa! -- suspirou D. Felicidade.
-- Cidade de marmore e de granito, na phrase sublime do nosso grande historiador! -- disse solemnemente o conselheiro.
E sorveu a pitada com os dedos abertos em leque, magros, bem tratados.
D. Felicidade disse então:
-- Quem não era capaz de deixar Lisboa, nem á mão de Deus Padre, era o conselheiro!
O conselheiro, voltando-se vagarosamente para ella, um pouco curvado, replicou:
-- Nasci em Lisboa, D. Felicidade, sou lisboeta d'alma!
-- O conselheiro -- lembrou Jorge -- nasceu na rua de S. José.
-- Numero setenta e cinco, meu Jorge. Na casa pegada áquella em que viveu, até casar, o meu prezado Geraldo, o meu pobre Geraldo!
Geraldo, o seu pobre Geraldo, era o pai de Jorge. Accacio fôra o seu intimo. Eram visinhos. Accacio tocava então rebeca, e, como Geraldo tocava flauta, faziam duos, pertenciam mesmo á Philarmonica da rua de S. José. Depois Accacio, quando entrou nas repartições do Estado, por escrupulo e por dignidade, abandonou a rebeca, os sentimentos ternos, os serões joviaes da Philarmonica. Entregou-se todo á estatistica. Mas conservou-se muito leal a Geraldo; continuou mesmo a Jorge aquella amizade vigilante; fôra padrinho do seu casamento, vinha vêl-o todos os domingos, e, no dia de seus annos, mandava-lhe pontualmente, com uma carta de felicitações, uma lampreia d'ovos.
-- Aqui nasci -- repetiu, desdobrando o seu bello lenço de sêda da India -- e aqui conto morrer.
E assoou-se discretamente.
-- Isso ainda vem longe, conselheiro!
Elle disse, com uma melancolia grave:
-- Não me arreceio d'ella, meu Jorge. Até já fiz construir, sem vacillar, no Alto de S. João, a minha ultima morada. Modesta, mas decente. É ao entrar, no arruamento á direita, n'um lugar abrigado, ao pé da choça dos Verissimos amigos.
-- E já compoz o seu epitaphio, snr. conselheiro? -- perguntou Julião, do canto, ironico.
-- Não o quero, snr. Zuzarte. Na minha sepultura não quero elogios. Se os meus amigos, os meus patricios entenderem que eu fiz alguns serviços, teem outros meios para os commemorar; lá teem a imprensa, o communicado, o necrologio, a poesia mesmo! Por minha vontade quero apenas sobre a lapide lisa, em letras negras, o meu nome -- com a minha designação de conselheiro -- a data do meu nascimento e a data do meu obito.
E com um tom demorado, de reflexão:
-- Não me opponho todavia a que inscrevam por baixo, em letras menores: Orai por elle!
Houve um silencio commovido, e á porta uma voz fina, disse:
-- Dão licença?
-- Oh Ernestinho! -- exclamou Jorge.
Com um passo miudinho e rapido, Ernestinho veio abraçal-o pela cintura:
-- Eu soube que tu que partias, primo Jorge... Como está, prima Luiza?
Era primo de Jorge. Pequenino, lymphatico, os seus membros franzinos, ainda quasi tenros, davam-lhe um aspecto debil de collegial; o buço, delgado, empastado em cêra-mostache, arrebitava-se aos cantos em pontas afiadas como agulhas; e na sua cara chupada, os olhos repolhudos amorteciam-se com um quebrado langoroso. Trazia sapatos de verniz com grandes laços de fita; sobre o collete branco, a cadêa do relogio sustentava um medalhão enorme, d'ouro, com fructos e flôres esmaltadas em relevo. Vivia com uma actrizita do Gymnasio, uma magra, côr de melão, com o cabello muito riçado, o ar tisico, -- e escrevia para o theatro. Tinha traducções, dous originaes n'um acto, uma comedia em calembourgs. Ultimamente trazia em ensaios nas Variedades uma obra consideravel, um drama em cinco actos, a Honra e Paixão. Era a sua estreia séria. E desde então, viam-no sempre muito atarefado, os bolsos inchados de manuscriptos, com localistas, com actores, muito prodigo de cafés e de cognacs, o chapéo ao lado, descórado, e dizendo a todos: Esta vida, mata-me! Escrevia todavia por paixão entranhada pela Arte -- porque era empregado na alfandega, com bom vencimento, e tinha quinhentos mil reis de renda das suas inscripções. A Arte mesmo, dizia, obrigava-o a desembolsos: para o acto do baile da Honra e Paixão mandára fazer, á sua custa, botas de verniz para o galan, botas de verniz para o pai-nobre! O seu nome de familia era Ledesma.
Deram-lhe um lugar, e Luiza notou logo, pousando o bordado, que estava abatido! Queixou-se então das suas fadigas: os ensaios arrazavam-no, tinha turras com o empresario: na vespera, vira-se forçado a refazer todo o final d'um acto! todo!
-- E tudo isto -- acrescentou muito exaltado -- porque é um pelintra, um parvo, e quer que se passe n'uma sala, o acto que se passava n'um abysmo!
-- N'um quê? -- perguntou surprehendida D. Felicidade.
O conselheiro, muito cortez, explicou:
-- N'um abysmo, D. Felicidade, n'um despenhadeiro. Tambem se diz, em bom vernaculo, um vortice. -- Citou: N'um espumoso vortice se arroja...
-- N'um abysmo? -- perguntaram. -- Porquê?
O conselheiro quiz conhecer o lance.
Ernestinho, radioso, esboçou largamente o enredo: -- Era uma mulher casada. Em Cintra tinha-se encontrado com um homem fatal, o conde de Monte-Redondo. O marido arruinado, devia cem contos de reis ao jogo! Estava deshonrado, ia ser preso. A mulher, louca, corre a umas ruinas acastelladas, onde habita o conde, deixa cahir o véo, conta-lhe a catastrophe. O conde lança o seu manto aos hombros, parte, chega no momento em que os beleguins vão levar o homem. -- É uma scena muito commovente, dizia, é de noite, ao luar! -- O conde desembuça-se, atira uma bolsa d'ouro aos pés dos beleguins, gritando-lhes: Saciai-vos, abutres!...
-- Bello final! -- murmurou o conselheiro.
-- Emfim -- acrescentou Ernesto, resumindo -- aqui ha um enredo complicado: o conde de Monte-Redondo e a mulher amam-se, o marido descobre, arremessa todo o seu ouro aos pés do conde, e mata a esposa.
-- Como? -- perguntaram.
-- Atira-a ao abysmo. É no quinto acto. O conde vê, corre, atira-se tambem. O marido cruza os braços, e dá uma gargalhada infernal. Foi assim que eu imaginei a cousa!
Calou-se, offegante: e, abanando-se com o lenço, rolava em redor os seus olhos langorosos, prateados como os d'um peixe morto.
-- É uma obra de cunho, embatem-se grandes paixões! -- disse o conselheiro, passando as mãos sobre a calva. -- Os meus parabens, snr. Ledesma!
-- Mas que quer o empresario? -- perguntou Julião, que escutára de pé, attonito -- que quer elle? Quer o abysmo n'um primeiro andar, mobilado pelo Gardé?
Ernestinho voltou-se, muito affectuosamente:
-- Não, snr. Zuzarte, -- a sua voz era quasi meiga -- quer o desfecho n'uma sala. De modo que eu -- e fazia um gesto resignado -- a gente tem de condescender, tive d'escrever outro final. Passei a noite em claro. Tomei tres chavenas de café!...
O conselheiro acudiu, com a mão espalmada:
-- Cuidado, snr. Ledesma, cuidado! Prudencia com esses excitantes! Por quem é, prudencia!
-- A mim não me faz mal, snr. conselheiro -- disse sorrindo. -- Escrevi-o em tres horas! Venho de lh'o mostrar agora. Até o tenho aqui...
-- Leia, snr. Ernesto, leia! -- exclamou logo D. Felicidade.
Que lêsse! que lêsse! porque não lia?
Era uma massada!... Era um rascunho!... Emfim, como queriam!... E radiante desdobrou, no silencio, uma grande folha de papel azul pautado.
-- Eu peço desculpa. Isto é um borrão. A cousa não está ainda com todos os FF e RR. -- Fez então voz theatral: -- Agatha!... É a mulher; isto aqui é a scena com o marido, o marido já sabe tudo...
agatha (cahindo de joelhos nos pés de Julio)
«Mas mata-me! Mata-me, por piedade! Antes a morte, que vêr, com esses desprezos, o coração rasgado fibra a fibra!»
julio
«E não me rasgaste tu tambem o coração? Tiveste tu piedade? Não. Retalhaste-m'o! Meu Deus, eu que a julgava pura, n'essas horas em que arrebatados...»
O reposteiro franziu-se. Sentiu-se um fino tilintar de chavenas. Era Juliana, d'avental branco, com o chá.
-- Que pena! -- exclamou Luiza. -- Depois do chá se lê. Depois do chá.
Ernesto dobrou o papel, e, com um olhar de lado para Juliana, rancoroso:
-- Não vale a pena, prima Luiza!
-- Ora essa! É lindo! -- affirmou D. Felicidade.
Juliana pousava sobre a mesa o prato das fatias, os biscoutos d'Oeiras, os bolos do Cócó.
-- Aqui tem o seu chá fraco, conselheiro -- dizia Luiza. -- Sirva-se, Julião. As torradas ao snr. Julião! Mais assucar! Quem quer? Uma torrada, conselheiro?
-- Estou amplamente servido, minha prezada senhora -- replicou, curvando-se.
E declarou, voltado para Ernestinho, que achava o dialogo opulento.
Mas, perguntaram, o que quer o empresario mais agora? Já tem a sala...
Ernestinho, de pé, excitado, com um bolo d'ovos na ponta dos dedos, explicou:
-- O que o empresario quer é que o marido lhe perdôe...
Foi um espanto:
-- Ora essa! É extraordinario! Porque?
-- Então! -- exclamou Ernestinho, encolhendo os hombros, -- diz que o publico que não gosta! Que não são cousas cá para o nosso paiz.
-- A fallar a verdade -- disse o conselheiro -- a fallar a verdade, snr. Ledesma, o nosso publico não é geralmente affecto a scenas de sangue.
-- Mas não ha sangue, snr. conselheiro! -- protestava Ernestinho, erguendo-se sobre os bicos dos sapatos -- mas não ha sangue! É com um tiro. É com um tiro pelas costas, snr. conselheiro!
Luiza fez a D. Felicidade -- pst! e, n'um áparte, com um sorriso:
-- D'esses bolinhos d'ovos. São muito frescos!
Ella respondeu, com uma voz lamentosa:
-- Ai, filha, não!
E indicou o estomago, compungidamente.
No entanto o conselheiro aconselhava a Ernestinho a clemencia: tinha-lhe posto a mão no hombro paternalmente, e com uma voz persuasiva:
-- Dá mais alegria á peça, snr. Ledesma. O espectador sahe mais alliviado! Deixe sahir o espectador alliviado!
-- Mais um bolinho, conselheiro?
-- Estou repleto, minha prezada senhora.
E, então, invocou a opinião de Jorge. Não lhe parecia que o bom Ernesto devia perdoar?
-- Eu, conselheiro? De modo nenhum. Sou pela morte. Sou inteiramente pela morte! E exijo que a mates, Ernestinho!
D. Felicidade acudiu, toda bondosa:
-- Deixe fallar, snr. Ledesma. Está a brincar. E elle então que é um coração d'anjo!
-- Está enganada, D. Felicidade -- disse Jorge, de pé, diante d'ella. -- Fallo serio e sou uma fera! Se enganou o marido, sou pela morte. No abysmo, na sala, na rua, mas que a mate. Posso lá consentir que, n'um caso d'esses, um primo meu, uma pessoa da minha familia, do meu sangue, se ponha a perdoar como um lamecha! Não! Mata-a! É um principio de familia. Mata-a quanto antes!
-- Aqui tem um lapis, snr. Ledesma -- gritou Julião, estendendo-lhe uma lapiseira.
O conselheiro, então, interveio, grave:
-- Não -- disse -- não creio que o nosso Jorge falle serio. É muito instruido para ter idéas tão...
Hesitou, procurou o adjectivo. Juliana poz-se-lhe diante com uma bandeja, onde um macaco de prata se agachava comicamente, sob um vasto guarda-sol erriçado de palitos. Tomou um, curvou-se, e concluiu:
-- ...Tão anti-civilisadoras.
-- Pois está enganado, conselheiro, tenho-as -- affirmou Jorge. -- São as minhas idéas. E aqui tem, se em lugar de se tratar d'um final d'acto, fosse um caso da vida real, se o Ernesto viesse dizer-me: sabes, encontrei minha mulher...
-- Oh Jorge! -- disseram, reprehensivamente.
-- ...Bem, supponhamos, se elle m'o viesse dizer, eu respondia-lhe o mesmo. Dou a minha palavra d'honra, que lhe respondia o mesmo: mata-a!
Protestaram. Chamaram-lhe tigre, Othello, Barba-Azul. Elle ria, enchendo muito socegadamente o seu cachimbo.
Luiza bordava, calada: a luz do candieiro, abatida pelo abat-jour, dava aos seus cabellos tons de um louro quente, resvalava sobre a sua testa branca como sobre um marfim muito polido.
-- Que dizes tu a isto? -- disse-lhe D. Felicidade.
Ella ergueu o rosto, risonha, encolheu os hombros...
E o conselheiro logo:
-- A snr.a D. Luiza diz com orgulho o que dizem as verdadeiras mães de familia:
Impurezas do mundo não me roçam
Nem a fimbria da tunica sequer.
-- Ora muito boas noites -- disse, á porta, uma voz grossa.
Voltaram-se.
Ó Sebastião! Ó snr. Sebastião! ó Sebastiarrão!
Era elle, Sebastião, o grande Sebastião, o Sebastiarrão, Sebastião tronco d'arvore, -- o intimo, o camarada, o inseparavel de Jorge, desde o latim, na aula de frei Liborio, aos Paulistas.
Era um homem baixo e grosso, todo vestido de preto, com um chapéo molle desabado na mão. Começava a perder um pouco na frente, os seus cabellos castanhos e finos. Tinha a pelle muito branca, a barba alourada e curta.
Veio sentar-se ao pé de Luiza.
-- Então d'onde vem? d'onde vem?
Vinha do Price. Rira muito com os palhaços. Houvera a brincadeira da pipa.
O seu rosto, em plena luz, tinha uma expressão honesta, simples, aberta: os olhos pequenos, azues d'um azul claro, d'uma suavidade séria, adoçavam-se muito quando sorria: e os beiços escarlates, sem pelliculas seccas, os dentes luzidios, revelavam uma vida saudavel e habitos castos. Fallava devagar, baixo, como se tivesse medo de se manifestar ou de fatigar. Juliana trouxera-lhe a sua chavena, e remexendo o assucar com a colhér direita, os olhos ainda a rir, um sorriso bom:
-- A pipa tem muita graça. Muita graça!
Sorveu um gole de chá e depois d'um momento:
-- E tu, maroto, sempre partes ámanhã? Não ha umas tentaçõesinhas d'ir por ahi fóra com elle, minha cara amiga?
Luiza sorriu. Tomára ella! Quem dera! Mas era uma jornada tão incommoda! Depois a casa não podia ficar só, não havia que fiar em criados...
-- Está claro, está claro -- disse elle.
Jorge, então, que abrira a porta do escriptorio, chamou-o:
-- Ó Sebastião! Fazes favor?
Elle foi logo com o seu andar pesado, o largo dorso curvado: as abas do seu casaco mal feito tinham um comprimento ecclesiastico.
Entraram para o escriptorio.
Era uma saleta pequena, com uma estante alta e envidraçada, tendo em cima a estatueta de gesso, empoeirada e velha, d'uma bacchante em delirio. A mesa, com um antigo tinteiro de prata que fôra de seu avô, estava ao pé da janella: uma collecção empilhada de Diarios do Governo, branquejava a um canto: por cima da cadeira de marroquim escuro, pendia, n'um caixilho preto, uma larga photographia de Jorge: e sobre o quadro, duas espadas encruzadas reluziam. Uma porta, no fundo, coberta com um reposteiro de baeta escarlate, abria para o patamar.
-- Sabes quem esteve ahi de tarde? -- disse logo Jorge, accendendo o cachimbo -- Aquella desavergonhada da Leopoldina! Que te parece, hein?
-- E entrou? -- perguntou Sebastião, baixo, correndo por dentro o pesado reposteiro de fazenda listrada.
-- Entrou, sentou-se, esteve, demorou-se! Fez o que quiz! A Leopoldina, a Pão e queijo!
E arremessando o phosphoro violentamente:
-- Quando penso que aquella desavergonhada vem a minha casa! Uma creatura que tem mais amantes que camisas, que anda pelo Dá-fundo em troças, que passeava nos bailes, este anno, de dominó, com um tenor! A mulher do Zagallão, um devasso que falsificou uma letra!
E quasi ao ouvido de Sebastião:
-- Uma mulher que dormiu com o Mendonça dos callos! Aquelle sebento do Mendonça dos callos!
Teve um gesto furioso, exclamou:
-- E vem aqui, senta-se nas minhas cadeiras, abraça minha mulher, respira o meu ar!... Palavra d'honra, Sebastião, se a pilho -- procurou mentalmente, com o olhar acceso, um castigo sufficiente -- dou-lhe açoutes!
Sebastião disse devagar:
-- E o peor é a visinhança.
-- Está claro que é! -- exclamou Jorge. -- Toda essa gente ahi pela rua abaixo sabe quem ella é! Sabem-lhe os amantes, sabem-lhe os sitios. É a Pão e queijo! Todo o mundo conhece a Pão e queijo.
-- Má visinhança -- disse Sebastião.
-- De tremer.
Mas então! estava acostumado á casa, era sua, tinha-a arranjado, era uma economia...
-- Senão! Não parava aqui um dia!
Era um horror de rua! Pequena, estreita, acavallados uns nos outros! Uma visinhança a postos, avida de mexericos! Qualquer bagatella, o trotar d'uma tipoia, e apparecia por traz de cada vidro um par d'olhos repolhudos a cocar! E era logo um badalar de linguas por ahi abaixo, e conciliabulos, e opiniões formadas! fulano é indecente, fulana é bebeda!
-- É o diabo! -- disse Sebastião.
-- A Luiza é um anjo, coitada -- dizia Jorge, passeando pela saleta -- mas tem cousas em que é criança! Não vê o mal. É muito boa, deixa-se ir. Com este caso da Leopoldina, por exemplo; foram creadas de pequenas, eram amigas, não tem coragem agora para a pôr fóra. É acanhamento, é bondade. Elle comprehende-se! Mas emfim as leis da vida tem as suas exigencias!...
E depois d'uma pausa:
-- Por isso, Sebastião, em quanto eu estiver fóra, se te constar que a Leopoldina vem por cá, avisa a Luiza! Porque ella é assim: esquece-se, não reflexiona. É necessario alguem que a advirta, que lhe diga: -- Alto lá, isso não póde ser! Que então cahe logo em si, e é a primeira!... Vens por ahi, fazes-lhe companhia, fazes-lhe musica, e se vires que a Leopoldina apparece ao largo, tu logo: -- Minha rica senhora, cuidado, olhe que isso não! Que ella, sentindo-se apoiada, tem decisão. Senão, acanha-se, deixa-a vir. Soffre com isso, mas não tem coragem de lhe dizer: Não te quero vêr, vai-te! Não tem coragem p'ra nada: começam as mãos a tremer-lhe, a seccar-se-lhe a bocca... É mulher, é muito mulher!... Não te esqueças, hein, Sebastião?
-- Então havia de me esquecer, homem?
Sentiram então o piano na sala, e a voz de Luiza ergueu-se, fresca e clara, cantando a Mandolinata:
Amici, la notte é bella,
La luna va spontari...
-- Fica tão só, coitada!... -- disse Jorge.
Deu alguns passos pelo escriptorio, fumando, com a cabeça baixa:
-- Todo o casal bem organisado, Sebastião, deve ter dous filhos! Deve ter pelo menos um!...
Sebastião coçou a barba em silencio -- e a voz de Luiza, elevando-se com um certo esforço aspero, nos altos da melodia :
Di cà, di là, per la cità
Andiami a transnottari...
Era uma tristeza secreta de Jorge -- não ter um filho! Desejava-o tanto! Ainda em solteiro, nas vesperas do casamento, já sonhava aquella felicidade: o seu filho! Via-o de muitas maneiras: ou gatinhando com as suas perninhas vermelhas, cheias de rôscas, e os cabellos annelados, finos como fios de sêda; ou rapaz forte, entrando da escóla com os livros, alegre e d'olho vivo, vindo mostrar-lhe as boas notas dos mestres: ou, melhor, rapariga crescida, clara e rosada, com um vestido branco, as duas tranças cahidas, vindo pousar as mãos nos seus cabellos já grisalhos...
Vinha-lhe, ás vezes, um medo de morrer sem ter tido aquella felicidade completadora!
Agora, na sala, a voz aguda de Ernestinho perorava, depois, no piano Luiza recomeçou a Mandolinata, com um brio jovial.
A porta do escriptorio abriu-se, Julião entrou:
-- Que estão vossês aqui a conspirar? Vou-me safar, que é tarde! Até á volta, meu velho, hein? Tambem ia comtigo tomar ar, respirar, vêr campos, mas...
E sorriu com amargura. -- Addio! Addio!
Jorge foi alumiar-lhe ao patamar, abraçal-o outra vez. Se quizesse alguma cousa do Alemtejo!...
Julião carregou o chapéo na cabeça:
-- Dá cá outro charuto, por despedida! Dá cá dous!
-- Leva a caixa! Eu em viagem só fumo cachimbo. Leva a caixa, homem!
Embrulhou-lh'a n'um Diario de Noticias; Julião metteu-a debaixo do braço, e descendo os degraus:
-- Cuidado com as sezões, e descobre uma mina d'ouro!
Jorge e Sebastião entraram na sala. Ernestinho, encostado ao piano, torcia as guias do bigodinho, e Luiza começava uma valsa de Strauss -- o Danubio Azul.
Jorge disse, rindo, estendendo os braços:
-- Uma valsa, D. Felicidade?
Ella voltou-se, com um sorriso. E porque não? Em nova era fallada! Citou logo a valsa que dançára com o sr. D. Fernando, no tempo da Regencia, nas Necessidades. Era uma valsa linda, d'essa época: A Perola d'Ophir.
Estava sentada ao pé do conselheiro, no sophá. E como retomando um dialogo mais querido -- continuou, baixo para elle, com uma voz meiga:
-- Pois creia, acho-o com optimas côres.
O conselheiro enrolava vagarosamente o seu lenço de sêda da India.
-- Na estação calmosa passo sempre melhor. E D. Felicidade?
-- Ai! Estou outra, conselheiro! Muito boas digestões, muito livre de gazes... Estou outra!
-- Deus o queira, minha senhora, Deus o queira -- disse o conselheiro, esfregando lentamente as mãos.
Tossiu, ia levantar-se, mas D. Felicidade pôz-se a dizer:
-- Espero que esse interesse seja verdadeiro...
Córou. O corpete flaccido do vestido de sêda preta enchia-se-lhe com o arfar do peito.
O conselheiro recahiu lentamente no sophá, -- e com as mãos nos joelhos:
-- D. Felicidade sabe que tem em mim um amigo sincero...
Ella levantou para elle seus olhos pisados, d'onde sahiam revelações de paixão e supplicas de felicidade:
-- E eu, conselheiro!...
Deu um grande suspiro, pôz o leque sobre o rosto.
O conselheiro ergueu-se seccamente. E com a cabeça alta, as mãos atraz das costas, foi ao piano, perguntou a Luiza curvando-se:
-- É alguma canção do Tyrol, D. Luiza?
-- Uma valsa de Strauss -- murmurou-lhe Ernestinho, em bicos de pés, ao ouvido.
-- Ah! Muita fama! Grande author!
Tirou então o relogio. Eram horas, disse, de ir coordenar alguns apontamentos. Aproximou-se de Jorge, com solemnidade:
-- Jorge, meu bom Jorge, adeus! Cautela com esse Alemtejo! O clima é nocivo, a estação traiçoeira!
E apertou-o nos braços com uma pressão commovida.
D. Felicidade punha a sua manta de renda negra.
-- Já, D. Felicidade? -- disse Luiza.
Ella explicou-lhe, ao ouvido:
-- Já, sim, filha, que tenho estado a abarrotar, comi umas bajes e tenho estado!... E aquelle homem, aquelle gêlo! O snr. Ernesto vem para os meus sitios, hein?
-- Como um fuso, minha senhora!
Tinha vestido o seu paletot d'alpaca clara, fumava chupando, com as faces encovadas, por uma boquilha enorme, onde uma Venus se torcia sobre o dorso d'um leão domado.
-- Adeus, primo Jorge, saudinha e dinheiro, hein? Adeus. Quando fôr a Honra e Paixão cá mando um camarote á prima Luiza. Adeus! Saudinha!
Iam a sahir. Mas o conselheiro, á porta, voltando-se subitamente, com as abas do paletot deitadas para traz, a mão pomposamente apoiada no castão de prata da bengala que representava uma cabeça de mouro, disse, com gravidade:
-- Esquecia-me, Jorge! Tanto em Evora, como em Beja, visite os governadores civis! E eu lhe digo porquê: deve-lh'o como primeiros funccionarios do districto, e podem-lhe ser de muita utilidade nas suas peregrinações scientificas!
E curvando-se profundamente:
-- Al rivedere, como se diz em Italia.
Sebastião tinha ficado. Para arejar do fumo de tabaco Luiza foi abrir as janellas; a noite estava quente e immovel, de luar.
Sebastião pozera-se ao piano, e com a cabeça curvada, corria devagar o teclado.
Tocava admiravelmente, com uma comprehensão muito fina da musica. Outr'ora, compozera mesmo uma Meditação, duas Valsas, uma Ballada: mas eram estudos muito trabalhados, cheios de reminiscencias, sem estylo. -- Da cachimonia não me sahe nada -- costumava elle dizer com bonhomia, batendo na testa, sorrindo -- mas lá com os dedos!...
Pôz-se a tocar um Nocturno de Choppin. Jorge sentára-se no sophá ao pé de Luiza.
-- Já tens prompto o teu farnelzinho! -- disse-lhe ella.
-- Bastam umas bolachas, filha. O que quero é o cantil com cognac.
-- E não te esqueças de mandar um telegramma logo que chegues!
-- Pudera!
-- Tu d'aqui a quinze dias, vens!
-- Talvez...
Ella teve um gesto amuado.
-- Ah, bem! Se não vieres, vou ter comtigo! A culpa é tua.
E olhando em redor:
-- Que só que vou ficar!
Mordeu o beicinho, fitou o tapete. E de repente, com a voz ainda triste:
-- Pst, Sebastião! A malaguenha, faz favor?
Sebastião começou a tocar a malaguenha. Aquella melodia calida, muito arrastada, encantava-a. Parecia-lhe estar em Malaga, ou em Granada, não sabia: era sob as laranjeiras, mil estrellinhas luzem; a noite é quente, o ar cheira bem; por baixo d'um lampeão suspenso a um ramo, um cantador sentado na tripeça mourisca faz gemer a guitarra; em redor as mulheres com os seus corpetes de velludilho encarnado batem as mãos em cadencia: e ao largo dorme uma Andaluzia de romance e de zarzuela, quente e sensual, onde tudo são braços brancos que se abrem para o amor, capas romanticas que roçam as paredes, sombrias viellas onde luz o nicho do santo e se repenica a viola, serenos que invocam a Virgem Santissima cantando as horas...
-- Muito bem, Sebastião! Gracias!
Elle sorriu, ergueu-se, fechou cuidadosamente o piano, e indo buscar o seu chapéo desabado:
-- Então ámanhã ás sete? Cá estou, e vou-te acompanhar até ao Barreiro.
Bom Sebastião!
Foram debruçar-se na varanda para o vêr sahir. A noite fazia um silencio alto, d'uma melancolia placida; o gaz dos candieiros parecia mortiço; a sombra que se recortava na rua, com uma nitidez brusca, tinha um tom quente e dôce; a luz punha nas fachadas brancas claridades vivas, e nas pedras da calçada faiscações vidradas; uma clara-boia reluzia, a distancia, como uma velha lamina de prata; nada se movia; e instinctivamente os olhos erguiam-se para as alturas, procuravam a lua branca, muito séria.
-- Que linda noite!
A porta bateu, e Sebastião de baixo, na sombra:
-- Dá vontade de passear, hein?
-- Linda!
Ficaram á varanda preguiçosamente, olhando, detidos pela tranquillidade, pela luz. Puzeram-se a fallar baixo da jornada. Áquella hora onde estaria elle? Já em Evora, n'um quarto d'estalagem, passeando monotonamente sobre um chão de tijolo. Mas voltaria breve; esperava fazer um bom negocio com o Paco, o hespanhol das minas de Portel, trazer talvez alguns centos de mil reis, e teriam então a doçura do mez de setembro; poderiam fazer uma jornada ao Norte, irem ao Bussaco, trepar aos altos, beber a agua fresca das rochas, sob a espessura humida das folhagens: irem a Espinho, e pelas praias, sentar-se na arêa, no bom ar cheio d'azote, vendo o mar unido, d'um azul metallico e faiscante, o mar do verão, com algum fumo de paquete que passa para o Sul ao longe muito adelgaçado. Faziam outros planos com os hombros muito chegados: uma felicidade abundante enchia-os deliciosamente. E Jorge disse:
-- Se houvesse um pequerrucho, já não ficavas tão só!
Ella suspirou. Tambem o desejava tanto! Chamar-se-hia Carlos Eduardo. E via-o no seu berço dormindo, ou no collo, nú, agarrando com a mãosinha o dedo do pé, mamando a ponta rosada do seu peito... Um estremecimento d'um deleite infinito correu-lhe no corpo. Passou o braço pela cinta de Jorge. Um dia seria, teria um filho de certo! E não comprehendia o seu filho homem nem Jorge velho: via-os ambos do mesmo modo: um sempre amante, novo, forte; o outro sempre dependente do seu peito, da maminha, ou gatinhando e palrando, louro e côr de rosa. E a vida apparecia-lhe infindavel, d'uma doçura igual, atravessada do mesmo enternecimento amoroso, quente, calma e luminosa como a noite que os cobria.
-- A que horas quer a senhora que a venha acordar? -- disse a voz secca de Juliana.
Luiza voltou-se:
-- Ás sete, já lhe disse ha pouco, creatura.
Fecharam a janella. Em torno das velas uma borboleta branca esvoaçava. Era bom agouro!
Jorge prendeu-a nos braços:
-- Vai ficar sem o seu maridinho, hein? -- disse tristemente.
Ela deixou pesar o corpo sobre as mãos d'elle cruzadas, olhou-o com um longo olhar que se ennevoava e escurecia, e envolvendo-lhe o pescoço com o gesto lento, harmonioso e solemne dos braços, pousou-lhe na bocca um beijo grave e profundo. Um vago soluço levantou-lhe o peito.
-- Jorge! Querido! -- murmurou.
III
Havia doze dias que Jorge tinha partido e, apesar do calor e da poeira, Luiza vestia-se para ir a casa de Leopoldina. Se Jorge soubesse, não havia de gostar, não! Mas estava tão farta de estar só! Aborrecia-se tanto! De manhã, ainda tinha os arranjos, a costura, a toilette, algum romance... Mas de tarde!
Á hora em que Jorge costumava voltar do ministerio, a solidão parecia alargar-se em torno d'ella. Fazia-lhe tanta falta o seu toque da campainha, os seus passos no corredor!...
Ao crepusculo, ao vêr cahir o dia, entristecia-se sem razão, cahia n'uma vaga sentimentalidade: sentava-se ao piano, e os fados tristes, as cavatinas apaixonadas gemiam instinctivamente no teclado, sob os seus dedos preguiçosos, no movimento abandonado dos seus braços molles. O que pensava em tolices então! E á noite, só, na larga cama franceza, sem poder dormir com o calor, vinham-lhe de repente terrores, palpites de viuvez.
Não estava acostumada, não podia estar só. Até se lembrára de chamar a tia Patrocinio, uma velha parenta pobre que vivia em Belem: ao menos era alguem: mas receou aborrecer-se mais ao pé da sua longa figura de viuva taciturna, sempre a fazer meia, com enormes oculos de tartaruga sobre um nariz d'aguia.
N'aquella manhã pensára em Leopoldina, toda contente d'ir tagarellar, rir, segredar, passar as horas do calor. Penteava-se em collete e saia branca: a camisinha decotada descobria os ombros alvos d'uma redondeza macia, o collo branco e tenro, azulado de vêasinhas finas; e os seus braços redondinhos, um pouco vermelhos no cotovêlo, descobriam por baixo, quando se erguiam prendendo as tranças, fiosinhos louros, frisando e fazendo ninho.
A sua pelle conservava ainda o rosado humido da agua fria: havia no quarto um cheiro agudo de vinagre de toilette: os transparentes de linho branco descidos davam uma luz baça, com tons de leite.
Ah! positivamente devia escrever a Jorge, que voltasse depressa! Que o que tinha graça era ir surprehendel-o a Evora, cahir-lhe no Tabaquinho, um dia, ás tres horas! E quando elle entrasse empoeirado e encalmado, de lunetas azues, atirar-se-lhe ao pescoço! E á tardinha, pelo braço d'elle, ainda quebrada da jornada, com um vestido fresco, ir vêr a cidade. Pelas ruas estreitas e tristes admiravam-na muito. Os homens vinham ás portas das lojas. Quem seria? É de Lisboa. É a do Engenheiro. -- E diante do toucador, apertando o corpete do vestido, sorria áquellas imaginações, e ao seu rosto, no espelho.
A porta do quarto rangeu devagarinho.
-- Que é?
A voz de Juliana, plangente, disse:
-- A senhora dá licença que eu vá logo ao medico?
-- Vá, mas não se demore. Puxe-me essa saia atraz. Mais. O que é que vossê tem?
-- Enjôos, minha senhora, peso no coração. Passei a noite em claro.
Estava mais amarella, o olhar muito pisado, a face envelhecida. Trazia um vestido de merino preto escoado, e a cuia da semana de cabellos velhos.
-- Pois sim, vá -- disse Luiza. -- Mas arranje tudo antes. E não se demore, hein ?
Juliana subiu logo á cozinha. Era no segundo andar, com duas janellas de sacada para as trazeiras, larga, ladrilhada de tijolo diante do fogão.
-- Diz que sim, snr.a Joanna -- disse á cozinheira -- que podia ir. Vou-me vestir. Ella tambem está quasi prompta. Fica vossemecê com a casa por sua!
A cozinheira fez-se vermelha, poz-se a cantar, foi logo sacudir, estender na varanda um velho tapete esfiado; e os seus olhos não deixavam, defronte, uma casa baixa, pintada d'amarello, com um portal largo, -- a loja de marceneiro do tio João Galho, onde trabalhava o Pedro, o seu amante. A pobre Joanna «babava-se» por ele. Era um rapazola pallido e afadistado; Joanna era minhota, de Avintes, de familia de lavrador, e aquella figura delgada de lisboeta anemico seduzia-a com uma violencia abrazada. Como não podia sahir á semana, mettia-o em casa, pela porta de traz, quando estava só; estendia então na varanda para dar signal o velho tapete desbotado, onde ainda se percebiam os paus de um veado.
Era uma rapariga muito forte, com peitos d'ama, o cabello como azeviche, todo lustroso do oleo de amendoas dôces. Tinha a testa curta de plebêa teimosa. E as sobrancelhas cerradas faziam-lhe parecer o olhar mais negro.
-- Ai! -- suspirou Juliana. -- A snr.a Joanna é que a leva!
A rapariga ficou escarlate.
Mas Juliana acudiu logo:
-- Olha o mal! fosse eu! Boa! faz muito bem!
Juliana lisongeava sempre a cozinheira: dependia d'ella: Joanna dava-lhe caldinhos ás horas de debilidade, ou, quando ella estava mais adoentada, fazia-lhe um bife ás escondidas da senhora. Juliana tinha um grande medo de «cair em fraqueza», e a cada momento precisava tomar a «sustancia». De certo, como feia e solteirona detestava aquelle «escandalo do carpinteiro»; mas protegia-o, porque elle valia muitos regalos aos seus fracos de gulosa.
-- Fosse eu! -- repetiu -- dava-lhe o melhor da panella! Se a gente ia a ter escrupulos por causa dos amos, boa! Olha quem! Vêem uma pessoa a morrer, e é como fosse um cão.
E com um risinho amargo:
-- Diz que me não demorasse no medico. É como quem diz, cura-te depressa ou espicha depressa!
Foi buscar a vassoura a um canto, e com um suspiro agudo:
-- Todas o mesmo, uma récua!
Desceu, começou a varrer o corredor. -- Toda a noite estivera doente: o quarto no sotão, debaixo das telhas, muito abafado, com um cheiro de tijolo cozido, dava-lhe enjôos, faltas d'ar, desde o começo do verão: na vespera até vomitára! E já levantada ás seis horas, não descançára, limpando, engommando, despejando, com a pontada no lado e todo o estomago embrulhado! -- Tinha escancarado a cancella, e com grandes ais, atirava vassouradas furiosas contra as grades do corrimão.
-- A snr.a D. Luiza está em casa?
Voltou-se. Nos ultimos degraus da escada estava um sujeito, que lhe pareceu «estrangeirado». Era trigueiro, alto, tinha um bigode pequeno levantado, um ramo na sobrecasaca azul, e o verniz dos seus sapatos resplandecia.
-- A senhora vai sahir -- disse ela olhando-o muito. -- Faz favor de dizer quem é?
O individuo sorriu.
-- Diga-lhe que é um sujeito para um negocio. Um negocio de minas.
Luiza, diante do toucador, já de chapéo, mettia n'uma casa do corpete dous botões de rosa de chá.
-- Um negocio! -- disse muito surprehendida -- Deve ser algum recado para o snr. Jorge, de certo! Mande entrar. Que especie de homem é?
-- Um janota!
Luiza desceu o véo branco, calçou devagar as luvas de peau de suède claras, deu duas pancadinhas fofas ao espelho na gravata de renda, e abriu a porta da sala. Mas quasi recuou, fez ah! toda escarlate. Tinha-o reconhecido logo. Era o primo Bazilio.
Houve um shake-hands demorado, um pouco tremulo. Estavam ambos calados: -- ella com todo o sangue no rosto, um sorriso vago; elle fitando-a muito, com um olhar admirado. Mas as palavras, as perguntas vieram logo, muito precipitadamente: -- Quando tinha elle chegado? Se sabia que elle estava em Lisboa? Como soubera a morada d'ella?
Chegára na vespera no paquete de Bordeus. Perguntára no ministerio: disseram-lhe que Jorge estava no Alemtejo, deram-lhe a adresse...
-- Como tu estás mudada, Santo Deus!
-- Velha?
-- Bonita!
-- Ora!
E elle, que tinha feito? Demorava-se?
Foi abrir uma janella, dar uma luz larga, mais clara. Sentaram-se. Elle no sophá muito languidamente; ella ao pé, pousada de leve á beira d'uma poltrona, toda nervosa.
Tinha deixado o degredo -- disse elle. -- Viera respirar um pouco á velha Europa. Estivera em Constantinopla, na Terra Santa, em Roma. O ultimo anno passára-o em Paris. Vinha de lá, d'aquella aldeola de Paris! -- Fallava devagar, recostado, com um ar intimo, estendendo sobre o tapete, commodamente, os seus sapatos de verniz.
Luiza olhava-o. Achava-o mais varonil, mais trigueiro. No cabello preto annelado havia agora alguns fios brancos: mas o bigode pequeno tinha o antigo ar moço, orgulhoso e intrepido; os olhos, quando ria, a mesma doçura amollecida, banhada n'um fluido. Reparou na ferradura de perola da sua gravata de setim preto, nas pequeninas estrellas brancas bordadas nas suas meias de sêda. A Bahia não o vulgarisára. Voltava mais interessante!
-- Mas tu, conta-me de ti -- dizia elle com um sorriso, inclinado para ela. -- És feliz, tens um pequerrucho...
-- Não -- exclamou Luiza rindo. -- Não tenho! Quem te disse?
-- Tinham-me dito. E teu marido demora-se?
-- Tres, quatro semanas, creio.
Quatro semanas! Era uma viuvez! Offereceu-se logo para a vir vêr mais vezes, palrar um momento, pela manhã...
-- Pudera não! És o unico parente, que tenho, agora...
Era verdade!... E a conversação tomou uma intimidade melancolica: fallaram da mãi de Luiza, a tia Jójó, como lhe chamava Bazilio. Luiza contou a sua morte, muito dôce, na poltrona, sem um ai...
-- Onde está sepultada? -- perguntou Bazilio com uma voz grave; e acrescentou, puxando o punho da camisa de chita: -- Está no nosso jazigo?
-- Está.
-- Hei-de ir lá. Pobre tia Jójó!
Houve um silencio.
-- Mas tu ias sahir! -- disse Bazilio de repente, querendo erguer-se.
-- Não! -- exclamou -- Não! Estava aborrecida, não tinha nada que fazer. Ia tomar ar. Não saio, já.
Elle ainda disse:
-- Não te prendas...
-- Que tolice! Ia a casa d'uma amiga passar um momento.
Tirou logo o chapéo; n'aquelle movimento os braços erguidos repuxaram o corpete justo, as fórmas do seio accusaram-se suavemente.
Bazilio torcia a ponta do bigode devagar; e vendo-a descalçar as luvas:
-- Era eu antigamente quem te calçava e descalçava as luvas... Lembras-te?... Ainda tenho esse privilegio exclusivo, creio eu...
Ella riu-se.
-- De certo que não...
Bazilio disse então, lentamente, fitando o chão:
-- Ah! Outros tempos!
E poz-se a fallar de Collares: a sua primeira idéa, mal chegára, tinha sido tomar uma tipoia e ir lá: queria vêr a quinta; ainda existiria o balouço debaixo do castanheiro? ainda haveria o caramanchão de rosinhas brancas, ao pé do Cupido de gesso que tinha uma aza quebrada?...
Luiza ouvira dizer que a quinta pertencia agora a um brazileiro: sobre a estrada havia um mirante com um tecto chinez, ornado de bolas de vidro; e a velha casa morgada fôra reconstruida e mobilada pelo Gardé.
-- A nossa pobre sala de bilhar, côr d'oca, com grinaldas de rosas! -- disse Bazilio; e fitando-a: -- Lembras-te das nossas partidas de bilhar?
Luiza, um pouco vermelha, torcia os dedos das luvas; ergueu os olhos para elle, disse, sorrindo:
-- Eramos duas crianças!
Bazilio encolheu tristemente os hombros, fitou as ramagens do tapete: parecia abandonar-se a uma saudade remota, e com uma voz sentida:
-- Foi o bom tempo! Foi o meu bom tempo!
Ella via a sua cabeça bem feita, descahida n'aquella melancolia das felicidades passadas, com uma risca muito fina, e os cabellos brancos -- que lhe dera a separação. Sentia tambem uma vaga saudade encher-lhe o peito: ergueu-se, foi abrir a outra janella, como para dissipar na luz viva e forte aquella perturbação. Perguntou-lhe então pelas viagens, por Paris, por Constantinopla.
Fôra sempre o seu desejo viajar -- dizia -- ir ao Oriente. Quereria andar em caravanas, balouçada no dorso dos camêlos; e não teria medo, nem do deserto, nem das feras...
-- Estás muito valente! -- disse Bazilio. -- Tu eras uma maricas, tinhas medo de tudo... Até da adega, na casa do papá, em Almada!
Ella córou. Lembrava-se bem da adega, com a sua frialdade subterranea que dava arripios! A candêa d'azeite pendurada na parede alumiava com uma luz avermelhada e fumosa as grossas traves cheias de têas d'aranha, e a fileira tenebrosa das pipas bojudas. Havia alli ás vezes, pelos cantos, beijos furtados...
Quiz saber então o que tinha feito em Jerusalém, se era bonito.
Era curioso. Ia pela manhã um bocado ao Santo Sepulchro; depois d'almoço montava a cavallo... Não se estava mal no hotel, inglezas bonitas... Tinha algumas intimidades illustres...
Fallava d'ellas, devagar, traçando a perna: o seu amigo o patriarcha de Jerusalém, a sua velha amiga a princeza de La Tour d'Auvergne! Mas o melhor do dia era de tarde -- dizia -- no Jardim das Oliveiras, vendo defronte as muralhas do templo de Salomão, ao pé a aldêa escura de Bethania onde Martha fiava aos pés de Jesus, e mais longe, faiscando immovel sob o sol, o mar Morto! E alli passava sentado n'um banco, fumando tranquillamente o seu cachimbo!
Se tinha corrido perigos?
De certo. Uma tempestade de arêa no deserto de Petra! Horrivel! Mas que linda viagem, as caravanas, os acampamentos! Descreveu a sua toilette: -- uma manta de pelle de camêlo ás listras vermelhas e pretas, um punhal de Damasco n'uma cinta de Bagdad, e a lança comprida dos Beduinos.
-- Devia-te ficar bem!
-- Muito bem. Tenho photographias.
Prometteu dar-lhe uma, e acrescentou:
-- Sabes que te trago presentes?
-- Trazes? -- E os seus olhos brilhavam.
O melhor era um rosario...
-- Um rosario?
-- Uma reliquia! Foi benzido primeiro pelo patriarcha de Jerusalém sobre o tumulo de Christo, depois pelo papa...
Ah! Porque tinha estado com o papa! Um velhinho muito aceado, já todo branquinho, vestido de branco, muito amavel!
-- Tu d'antes não eras muito devota -- disse.
-- Não, não sou muito caturra n'essas cousas -- respondeu rindo.
-- Lembras-te da capella de nossa casa em Almada?
Tinham passado alli lindas tardes! Ao pé da velha capella morgada havia um adro todo cheio de altas hervas floridas, -- e as papoulas, quando vinha a aragem, agitavam-se como azas vermelhas de borboletas pousadas...
-- E a tilia, lembras-te, onde eu fazia gymnastica?
-- Não fallemos no que lá vai!
Em que queria ella então que elle fallasse? Era a sua mocidade, o melhor que tivera na vida...
Ella sorriu, perguntou:
-- E no Brazil?
Um horror! Até fizera a côrte a uma mulata.
-- E porque te não casaste?...
Estava a mangar! Uma mulata!
-- E de resto -- acrescentou com a voz d'um arrependimento triste -- já que me não casei quando devia, -- encolheu os hombros melancolicamente -- acabou-se... Perdi a vez. Ficarei solteiro.
Luiza fez-se escarlate. Houve um silencio.
-- E qual é o outro presente, então, além do rosario?
-- Ah! Luvas. Luvas de verão, de peau de suède, de oito botões. Luvas decentes. Vossês aqui usam umas luvitas de dous botões, a vêr-se o punho, um horror!
De resto pelo que tinha visto, as mulheres em Lisboa cada dia se vestiam peor! Era atroz! Não dizia por ella; até aquelle vestido tinha chic, era simples, era honesto. Mas em geral, era um horror. Em Paris! Que deliciosas, que frescas as toilettes d'aquelle verão! Oh! mas em Paris!... Tudo é superior! Por exemplo, desde que chegára ainda não pudera comer. Positivamente não podia comer! -- Só em Paris se come -- resumiu.
Luiza voltava entre os dedos o seu medalhão de ouro, preso ao pescoço por uma fita de velludo preto.
-- E estiveste então um anno em Paris?
Um anno divino. Tinha um appartamento lindissimo, que pertencera a lord Falmouth, rue Saint Florentin, tinha tres cavallos...
E recostando-se muito, com as mãos nos bolsos:
-- Emfim, fazer este valle de lagrimas o mais confortavel possivel!... Dize cá, tens algum retrato n'esse medalhão?
-- O retrato de meu marido.
-- Ah! deixa vêr!
Luiza abriu o medalhão. Elle debruçou-se; tinha o rosto quasi sobre o peito d'ella. Luiza sentia o aroma fino que vinha de seus cabellos.
-- Muito bem, muito bem! -- fez Bazilio.
Ficaram calados.
-- Que calor que está! -- disse Luiza. -- Abafa-se, hein!
Levantou-se, foi abrir um pouco uma vidraça. O sol deixára a varanda. Uma aragem suave encheu as pregas grossas das bambinellas.
-- É o calor do Brazil -- disse elle. -- Sabes que estás mais crescida?
Luiza estava de pé. O olhar de Bazilio corria-lhe as linhas do corpo; e com a voz muito intima, os cotovêlos sobre os joelhos, o rosto erguido para ella:
-- Mas, francamente, dize cá, pensaste que eu te viria vêr?
-- Ora essa! Realmente, se não viesses zangava-me. És o meu unico parente... O que tenho pena é que meu marido não esteja...
-- Eu -- acudiu Bazilio -- foi justamente por elle não estar...
Luiza fez-se escarlate. Bazilio emendou logo, um pouco corado tambem:
-- Quero dizer... talvez elle saiba que houve entre nós...
Ella interrompeu:
-- Tolices! Eramos duas crianças. Onde isso vai!
-- Eu tinha vinte e sete annos -- observou elle, curvando-se.
Ficaram calados, um pouco embaraçados. Bazilio cofiava o bigode, olhando vagamente em redor.
-- Estás muito bem installada aqui -- disse.
Não estava mal... A casa era pequena, mas muito commoda. Pertencia-lhes.
-- Ah! estás perfeitamente! Quem é esta senhora, com uma luneta d'ouro?
E indicava o retrato por cima do sophá.
-- A mãi de meu marido.
-- Ah! vive ainda?
-- Morreu.
-- É o que uma sogra póde fazer de mais amavel...
Bocejou ligeiramente, fitou um momento os seus sapatos muito aguçados, e com um movimento brusco, ergueu-se, tomou o chapéo.
-- Já? Onde estás?
-- No Hotel Central. E até quando?
-- Até quando quizeres. Não disseste que vinhas ámanhã com o rosario?
Elle tomou-lhe a mão, curvou-se:
-- Já se não póde dar um beijo na mão d'uma velha prima?
-- Porque não?
Pousou-lhe um beijo na mão, muito longo, com uma pressão dôce.
-- Adeus! -- disse.
E á porta, com o reposteiro meio erguido, voltando-se:
-- Sabes, que eu, ao subir as escadas, vinha a perguntar a mim mesmo, como se vai isto passar?
-- Isto quê? Vêrmo-nos outra vez? Mas, perfeitamente. Que imaginaste tu?
Elle hesitou, sorriu:
-- Imaginei que não eras tão boa rapariga. Adeus. Ámanhã, hein?
No fundo da escada accendeu o charuto, devagar.
-- Que bonita que ella está! -- pensou.
E arremessando o phosphoro, com força:
-- E eu, pedaço d'asno, que estava quasi decidido a não a vir vêr! Está de appetite! Está muito melhor! E sósinha em casa, aborrecidinha talvez!...
Ao pé da Patriarchal fez parar um coupé vazio; e estendido, com o chapéo nos joelhos, em quanto a parelha esfalfada trotava:
-- E tem-me o ar de ser muito aceada, cousa rara na terra! As mãos muito bem tratadas! O pé muito bonito!
Revia a pequenez do pé, poz-se a fazer por elle o desenho mental de outras bellezas, despindo-a, querendo adivinhal-a... A amante que deixára em Paris era muito alta e magra, d'uma elegancia de tisica; quando se decotava viam-se as saliencias das suas primeiras costellas. E as fórmas redondinhas de Luiza decidiram-no:
-- A ella! -- exclamou com appetite: -- A ella, como S. Thiago aos mouros!
Luiza, quando o sentiu em baixo fechar a porta da rua, entrou no quarto, atirou o chapéo para a causeuse, e foi-se logo vêr ao espelho. Que felicidade estar vestida! Se elle a tivesse apanhado em roupão, ou mal penteada!... Achou-se muito afogueada, cobriu-se de pós de arroz. Foi á janella, olhou um momento a rua, o sol que batia ainda nas casas fronteiras. Sentia-se cançada. Áquellas horas, Leopoldina estava a jantar já, de certo... Pensou em escrever a Jorge «para matar o tempo», mas veio-lhe uma preguiça; estava tanto calor! Depois não tinha que lhe dizer! Começou então a despir-se devagar diante do espelho, olhando-se muito, gostando de se vêr branca, acariciando a finura da pelle, com bocejos languidos d'um cansaço feliz. -- Havia sete annos que não via o primo Bazilio! Estava mais trigueiro, mais queimado, mas ia-lhe bem!
E depois de jantar ficou junto á janella, estendida na voltaire, com um livro esquecido no regaço. O vento cahira, e o ar, de um azul forte nas alturas, estava immovel; a poeira grossa pousára, a tarde tinha uma transparencia calma de luz; passaros chilreavam na figueira brava; da serralheria proxima sahia o martellar continuo e sonoro de folhas de ferro. Pouco a pouco o azul desbotou; sobre o poente, laivos de côr de laranja desmaiada esbateram-se como grandes pinceladas desleixadas. Depois tudo se cobriu de uma sombra diffusa, calada e quente, com uma estrellinha muita viva que luzia e tremia. E Luiza deixára-se ficar na voltaire esquecida, absorvida, sem pedir luz.
-- Que vida interessante a do primo Bazilio! -- pensava. -- O que elle tinha visto! Se ella podesse tambem fazer as suas malas, partir, admirar aspectos novos e desconhecidos, a neve nos montes, cascatas reluzentes! Como desejaria visitar os paizes que conhecia dos romances -- a Escocia e os seus lagos taciturnos, Veneza e os seus palacios tragicos; aportar ás bahias, onde um mar luminoso e faiscante morre na arêa fulva; e das cabanas dos pescadores, de tecto chato, onde vivem as Graziellas, vêr azularem-se ao longe as ilhas de nomes sonoros! E ir a Paris! Paris sobretudo! Mas, qual! Nunca viajaria de certo; eram pobres; Jorge era caseiro, tão lisboeta!
Como seria o patriarcha de Jerusalém? Imaginava-o de longas barbas brancas, recamado d'ouro, entre instrumentações solemnes e rolos de incenso! E a princeza de La Tour d'Auvergne? Devia ser bella, de uma estatura real, vivia cercada de pagens, namorára-se de Bazilio. -- A noite escurecia, outras estrellas luziam. -- Mas de que servia viajar, enjoar nos paquetes, bocejar nos wagons, e, n'uma diligencia muita sacudida, cabecear de somno pela serra nas madrugadas frias? Não era melhor viver n'um bom conforto, com um marido terno, uma casinha abrigada, colxões macios, uma noite de theatro ás vezes, e um bom almoço nas manhãs claras quando os canarios chalram? Era o que ella tinha. Era bem feliz! Então veio-lhe uma saudade de Jorge; desejaria abraçal-o, tel-o alli, ou quando descesse ir encontral-o fumando o seu cachimbo no escriptorio, com o seu jaquetão de velludo. Tinha tudo, elle, para fazer uma mulher feliz e orgulhosa: era bello, com uns olhos magnificos, terno, fiel. Não gostaria de um marido com uma vida sedentaria e caturra: mas a profissão de Jorge era interessante; descia aos poços tenebrosos das minas, um dia aperrára as pistolas contra uma malta revoltada; era valente, tinha talento! Involuntariamente, porém, o primo Bazilio fazendo fluctuar o seu burnous branco pelas planicies da Terra Santa; ou em Paris, direito na almofada, governando tranquillamente os seus cavallos inquietos -- davam-lhe a idéa d'uma outra existencia mais poetica, mais propria para os episodios do sentimento.
Do céo estrellado cahia uma luz diffusa: janellas alumiadas sobresahiam ao longe, abertas á noite abafada: vôos de morcegos passavam diante da vidraça.
-- A senhora não quer luz? -- perguntou á porta a voz fatigada de Juliana.
-- Ponha-a no quarto.
Desceu. Bocejava muito, sentia-se quebrada.
-- É trovoada -- pensou.
Foi á sala, sentou-se ao piano, tocou ao acaso bocados da Lucia, da Somnambula, o Fado; e parando, os dedos pousados de leve sobre o teclado, poz-se a pensar que Bazilio devia vir no dia seguinte: vestiria o roupão novo de foulard côr de castanho! Recomeçou o Fado, mas os olhos cerravam-se-lhe.
Foi para o quarto.
Juliana trouxe o rol e a lamparina. Vinha arrastando as chinellas, com um casabeque pelos hombros, encolhida e lugubre. Aquella figura com um ar de enfermaria irritou Luiza:
-- Credo, mulher! Vossê parece a imagem da morte!
Juliana não respondeu. Pousou a lamparina; apanhou, placa a placa, sobre a commoda, o dinheiro das compras; e com os olhos baixos:
-- A senhora não precisa mais nada, não?
-- Vá-se, mulher, vá! [88]
Juliana foi buscar o candieiro de petroleo, subiu ao quarto. Dormia em cima, no sotão, ao pé da cozinheira.
-- Pareço-te a imagem da morte! -- resmungava, furiosa.
O quarto era baixo, muito estreito, com o tecto de madeira inclinado; o sol, aquecendo todo o dia as telhas por cima, fazia-o abafado como um forno; havia sempre á noite um cheiro requentado de tijolo escandecido. Dormia n'um leito de ferro, sobre um colxão de palha molle coberto d'uma colcha de chita; da barra da cabeceira pendiam os seus bentinhos e a rêde enxovalhada que punha na cabeça; ao pé tinha preciosamente a sua grande arca de pau, pintada de azul, com uma grossa fechadura. Sobre a mesa de pinho estava o espelho de gaveta, a escova de cabello ennegrecida e despellada, um pente d'osso, as garrafas de remedio, uma velha pregadeira de setim amarello, e, embrulhada n'um jornal, a cuia de retroz dos domingos. E o unico adorno das paredes sujas, riscadas da cabeça de phosphoros, -- era uma lithographia de Nossa Senhora das Dôres por cima da cama, e um daguerreotypo onde se percebia vagamente, no reflexo espelhado da lamina, os bigodes encerados e as divisas de um sargento.
-- A senhora já se deitou, snr.a Juliana? -- perguntou a cozinheira do quarto pegado, d'onde sahia uma barra de luz viva cortando a escuridão do corredor.
-- Já se deitou, snr.a Joanna, já. Está hoje com os azeites. Falta-lhe o homem!
Joanna, ás voltas, fazia ranger as madeiras velhas da cama. Não podia dormir! Abafava-se! Ouf!
-- Ai! e aqui! -- exclamou Juliana.
Abriu o postigo que dava para os telhados, para deixar arejar; calçou as chinellas de tapete, e foi ao quarto de Joanna. Mas não entrou, ficou á porta; era criada de dentro, evitava familiaridades. Tinha tirado a cuia, e com um lenço preto e amarello amarrado na cabeça, o seu rosto parecia mais chupado, e as orelhas mais despegadas do craneo; a camisa decotada descobria as claviculas descarnadas; a saia curta mostrava as canellas muito brancas, muito seccas. E com o casabeque pelos hombros, coçando devagarinho os cotovêlos agudos:
-- Diga-me cá, snr.a Joanna -- disse com a voz discreta -- aquelle sujeito demorou-se muito? Reparou?
-- Tinha sahido n'aquelle instantinho, quando vossemecê entrou. Ouf!
Encalmada, quasi descoberta, com as pernas muito abertas, Joanna coçava-se furiosamente por baixo da grossa camisa com folhos á minhota que lhe descobria os peitos. Não podia parar com os persevejos! O raio do quarto tinha ninhos! Até sentia o estomago embrulhado.
-- Ai! é um inferno! -- disse com lastima Juliana. -- Eu só adormeço com dia. Mas ainda eu agora reparo... Vossemecê tem S. Pedro á cabeceira. É devoção?
-- É o santo do meu rapaz -- disse a outra. Sentou-se na cama. Ouf! E então tinha estado toda a noite com uma sêde!...
Saltou para o chão, com passadas rijas que faziam tremer o soalho, foi ao jarro, pôl-o á bocca, bebeu uma tarraçada. A camisa justa, feita de pouca fazenda, mostrava as fórmas rijas e valentes.
-- Pois eu fui ao medico -- disse Juliana. E com um grande suspiro: -- Ai! isto só Deus, snr.a Joanna! Isto só Deus!
Mas porque se não resolvia a snr.a Juliana a ir á mulher de virtude? Era a saude certa. Morava ao Poço dos Negros; tinha orações e unguentos para tudo. Levava meia moeda pelo preparo...
-- Que isso são humores, snr.a Juliana. O que vossemecê tem, são humores.
Juliana tinha dado dous passos para dentro do quarto. Quando se tratava de doenças, de remedios, tornava-se mais familiar.
-- Eu já me tenho lembrado... eu já me tenho lembrado de ir á mulher. Mas, meia moeda!
E ficou a olhar, tristemente, reflectindo.
-- É o que eu tenho junto para umas botinas de gaspia!
Eram o seu vicio, as botinas! Arruinava-se com ellas: tinha-as de duraque com ponteiras de verniz, de cordovão com laço, de pellica com pespontos de côr, embrulhadas em papeis de sêda, na arca, fechadas -- guardadas para os domingos!
Joanna censurou-a.
-- Ai! eu, em se tratando do corpo, do interior, que o diabo leve os arrebiques!
Queixou-se tambem da sua miseria. Tinha pedido á senhora um mez adiantado! Estava sem camisas! As duas que tinha eram uns trapos! Pelo gosto da que trazia, a desfazerem-se!
-- Mas, então! -- suspirou -- O meu rapaz precisou um dinheiro...
-- Vossemecê tambem, snr.a Joanna, deixa-se cardar pelo homem!
Joanna sorriu.
-- Ainda que eu tivesse de roer ossos, snr.a Juliana, a ultima migalha havia de ser p'ra elle!
Juliana teve um risinho secco, e com a voz arrastada:
-- Vale lá a pena!
Mas invejava asperamente a cozinheira pela posse d'aquelle amor, pelas suas delicias. Repetiu, contrafeita:
-- Vale lá a pena! Perfeito rapaz -- continuou -- o que veio hoje vêr a senhora! Melhor que o homem!
E depois d'uma pausa:
-- Então esteve mais de duas horas?
-- Tinha sahido quando vossemecê entrou.
Mas o candieiro de petroleo apagava-se, com um cheiro fetido e uma fumarada negra.
-- Boa noite, snr.a Joanna. Ainda vou rezar a minha corôa.
-- Ó snr.a Juliana! -- disse a outra d'entre os lençoes -- Se vossemecê quer rezar tres salvè-rainhas pela saude do meu rapaz que tem estado adoentado, eu cá lhe rezava tres pelas melhoras do peito.
-- Pois sim, snr.a Joanna!
Mas reflectindo:
-- Olhe. Eu do peito vou melhor; dê-m'as antes p'ra allivio das dôres de cabeça. A Santa Engracia!
-- Como vossemecê quizer, snr.a Juliana.
-- Se faz favor. Boa noite! Fica-lhe ahi um cheiro! Credo!
Foi para o quarto. Rezou, apagou a luz. Um calor molle continuo cahia do forro; começou a faltar-lhe o ar: tornou a abrir o postigo, mas o bafo quente que vinha dos telhados enjoava-a; e era assim todas as noites, desde o começo do estio! Depois as madeiras velhas fervilhavam de bicharia! Nunca, nunca, nas casas que servira, tinha tido um quarto peor. Nunca!
A cozinheira começou a resonar ao lado. E acordada, ás voltas, com afflicções no coração, Juliana sentia a vida pesar-lhe, com uma amargura maior!
Nascera em Lisboa. O seu nome era Juliana Couceiro Tavira. Sua mãi fôra engommadeira; e desde pequena tinha conhecido em casa um sujeito, a quem chamavam na visinhança -- o fidalgo, a quem sua mãi chamava -- o snr. D. Augusto. Vinha todos os dias, de tarde no verão, no inverno de manhã, para a saleta onde sua mãi engommava, e alli estava horas sentado no poial da janella que dava para um quintalejo, fumando cachimbo, cofiando em silencio um enorme bigode preto. Como o poial era de pedra, punha-lhe em cima, com muito methodo, uma almofada de vento, que elle mesmo soprava. Era calvo, e trazia ordinariamente uma quinzena de velludo castanho e chapéo alto branco. Ás seis horas levantava-se, esvaziava a almofada, estava um bocado a esticar as calças para cima, e sahia, com a sua grossa bengala de cana da India debaixo do braço, gingando da cinta. Ella e sua mãi iam então jantar na mesinha de pinho da cozinha debaixo d'um postigo, diante do qual se balouçavam, de verão e d'inverno, galhos magros d'uma arvore triste.
Á noite o snr. D. Augusto voltava; trazia sempre um jornal; sua mãi fazia-lhe chá e torradas, servia-o, toda enlevada n'elle. Muitas vezes Juliana a vira chorar de ciumes.
Um dia uma visinha má, a quem ella não quizera ajudar a lavar a roupa, enfureceu-se, e atirando-lhe injurias dos degraus da porta, -- gritou-lhe que sua mãi era uma desavergonhada, e que seu pai estava na Africa por ter morto o Rei de Copas!
Pouco tempo depois foi servir. Sua mãi morreu d'ahi a mezes, com uma doença d'utero. Juliana só uma vez tornou a vêr o snr. D. Augusto, -- uma tarde, com uma opa rôxa, lugubre, na procissão de Passos!
Servia, havia vintes annos. Como ella dizia, mudava de amos, mas não mudava de sorte. Vinte annos a dormir em cacifros, a levantar-se de madrugada, a comer os restos, a vestir trapos velhos, a soffrer os repellões das crianças e as más palavras das senhoras, a fazer despejos, a ir para o hospital quando vinha a doença, a esfalfar-se quando voltava a saude!... Era de mais! Tinha agora dias em que só de vêr o balde das aguas sujas e o ferro d'engommar se lhe embrulhava o estomago. Nunca se acostumára a servir. Desde rapariga a sua ambição fôra ter um negociosito, uma tabacaria, uma loja de capellista ou de quinquilherias, dispôr, governar, ser patrôa: mas, apesar d'economias mesquinhas e de calculos sôfregos, o mais que conseguira juntar foram sete moedas ao fim d'annos: tinha então adoecido; com o horror do hospital fôra tratar-se para casa d'uma parenta; e o dinheiro, ai! derretera-se! No dia em que se trocou a ultima libra, chorou horas com a cabeça debaixo da roupa.
Ficou sempre adoentada desde então, perdeu toda a esperança de se estabelecer. Teria de servir até ser velha, sempre, d'amo em amo! Essa certeza dava-lhe uma desconsolação constante. Começou a azedar-se.
E depois não tinha geito, não sabia tirar partido das casas: via companheiras divertir-se, visinhar, janellar, bisbilhotar, sahir aos domingos ás hortas e aos retiros, levar o dia cantando, e quando as patrôas iam ao theatro, abrir a porta aos derriços -- e patuscar pelos quartos! Ella não. Sempre fôra embezerrada. Fazia a sua obrigação, comia, ia estirar-se sobre a cama; e aos domingos, quando não passeava, encostava-se a uma janella, com o lenço sobre o peitoril para não roçar as mangas, e alli estava immovel, a olhar, com o seu broche de filigrana e a cuia dos dias santos! Outras companheiras eram muito das amas, faziam-se muito humildes, sabujavam, traziam de fóra as historias da rua, e cartinhas levadas e recadinhos e p'ra dentro e p'ra fóra, muito confidentes, -- muito presenteadas tambem! Ella não podia. Era minha senhora isto! minha senhora aquillo! E cada uma no seu lugar! Era genio.
Desde que servia, apenas entrava n'uma casa sentia logo, n'um relance, a hostilidade, a malquerença: a senhora fallava-lhe com seccura, de longe; as crianças tomavam-lhe birra; as outras criadas, se estavam chalrando, calavam-se, mal a sua figura esguia apparecia; punham-lhe alcunhas -- a isca sêcca, a fava torrada, o saca-rolhas; imitavam-lhe os trejeitos nervosos; havia risinhos, cochichos pelos cantos; e só tinha encontrado alguma sympathia nos gallegos taciturnos, cheios d'uma saudade morrinhenta, que veem de manhã quando ainda os quartos estão escuros, com as suas grossas passadas, encher os barris, engraxar o calçado.
Lentamente, começou a tornar-se desconfiada, cortante como um nordeste; tinha respostadas, questões com as companheiras; não se havia de deixar pôr o pé no pescoço!
As antipathias que a cercavam faziam-na assanhada, como um circulo d'espingardas enraivece um lobo. Fez-se má; beliscava crianças até lhe ennodoar a pelle; e se lhe ralhavam, a sua colera rompia em rajadas. Começou a ser despedida. N'um só anno esteve em tres casas. Sahia com escandalo, aos gritos, atirando as portas, deixando as amas todas pallidas, todas nervosas...
A inculcadeira, a sua velha amiga, a tia Victoria, disse-lhe:
-- Tu acabas por não ter onde te arrumar, e falta-te o bocado do pão!
O pão! Aquella palavra que é o terror, o sonho, a difficuldade do pobre assustou-a. Era fina, e dominou-se. Começou a fazer-se «uma pobre mulher», com affectações de zelo, um ar de soffrer tudo, os olhos no chão. Mas roia-se por dentro: veio-lhe a inquietação nervosa dos musculos da face, o tic de franzir o nariz: a pelle esverdeou-se-lhe de bilis.
A necessidade de se constranger trouxe-lhe o habito d'odiar: odiou sobretudo as patrôas, com um odio irracional e pueril. Tivera-as ricas, com palacetes, e pobres, mulheres d'empregados, velhas e raparigas, colericas e pacientes; -- odiava-as a todas, sem differença. É patrôa e basta! Pela mais simples palavra, pelo acto mais trivial! Se as via sentadas: -- Anda, refestela-te, que a moura trabalha! Se as via sahir: -- Vai-te, a negra cá fica no buraco! Cada riso d'ellas era uma offensa á sua tristeza doentia; cada vestido novo uma affronta ao seu velho vestido de merino tingido. Detestava-as na alegria dos filhos e nas prosperidades da casa. Rogava-lhes pragas. Se os amos tinham um dia de contrariedade, ou via as caras tristes, cantarolava todo o dia em voz de falsete a Carta adorada! Com que gosto trazia a conta retardada d'um credor impaciente, quando presentia embaraços na casa! «Este papel! -- gritava com uma voz estridente -- diz que não se vai embora sem uma resposta!» Todos os lutos a deleitavam, -- e sob o chale preto, que lhe tinham comprado, tinha palpitações de regosijo. Tinha visto morrer criancinhas, e nem a afflicção das mães a commovera; encolhia os hombros: «Vai d'alli, vai fazer outro. Cabras!»
As boas palavras mesmo, as condescendencias eram perdidas com ella, como gotas d'agua lançadas no fogo. Resumia as patrôas na mesma palavra -- uma récua! E detestava as boas pelos vexames que soffrera das más. A ama era para ella o Inimigo, o Tyranno. Tinha visto morrer duas, -- e de cada vez sentira, sem saber porquê, um vago allivio, como se uma porção do vasto peso, que a suffocava na vida, se tivesse desprendido e evaporado!
Sempre fôra invejosa; com a idade aquelle sentimento exagerou-se de um modo aspero. Invejava tudo na casa: as sobremesas que os amos comiam, a roupa branca que vestiam. As noites de soirée, de theatro, exasperavam-na. Quando havia passeios projectados, se chovia de repente, que felicidade! O aspecto das senhoras vestidas e de chapéo, olhando por dentro da vidraça com um tedio infeliz, deliciava-a, fazia-a loquaz:
-- Ai minha senhora! É um temporal desfeito! É a cantaros, está para todo o dia! Olha o ferro!
E muito curiosa: era facil encontral-a, de repente, cosida por detraz de uma porta com a vassoura a prumo, o olhar aguçado. Qualquer carta que vinha era revirada, cheirada... Remexia subtilmente em todas as gavetas abertas, vasculhava em todos os papeis atirados. Tinha um modo de andar ligeiro e surprehendedor. Examinava as visitas. Andava á busca de um segredo, de um bom segredo! Se lhe cahia um nas mãos!
Era muito gulosa. Nutria o desejo insatisfeito de comer bem, de petiscos, de sobremesas. Nas casas em que servia ao jantar, o seu olho avermelhado seguia avidamente as porções cortadas á mesa; e qualquer bom appetite que repetia exasperava-a, como uma diminuição da sua parte. De comer sempre os restos ganhára o ar aguado, -- o seu cabello tomára tons seccos, côr de rato. Era lambareira: gostava de vinho; em certos dias comprava uma garrafa de oitenta reis, e bebia-a só, fechada, repimpada, com estalos da lingua, a orla do vestido um pouco erguida, revendo-se no pé.
E nunca tivera um homem, era virgem. Fôra sempre feia, ninguem a tentára: e, por orgulho, por birra, com receio de uma desfeita, não se offerecera, como vira muitas, claramente. O unico homem que a olhára com desejo tinha sido um criado de cavalhariça, atarracado e immundo, de aspecto facinora: a sua magreza, a sua cuia, o seu ar domingueiro tinham excitado o bruto. Fitava-a com um ar de bull-dog. Causára-lhe horror, -- mas vaidade. E o primeiro homem por quem ella sentira, um criado bonito e alourado, rira-se d'ella, pozera-lhe o nome da Isca sêcca! Não contou mais com os homens, por despeito, por desconfiança de si mesma. As rebelliões da natureza, suffocava-as; eram fogachos, flatos. Passavam. Mas faziam-na mais secca; e a falta d'aquella grande consolação aggravava a miseria da sua vida.
Um dia teve, emfim, uma grande esperança. Entrára para o serviço da snr.a D. Virginia Lemos, uma viuva rica, tia de Jorge, muito doente, quasi a morrer com um catarrho de bexiga. A tia Victoria, a inculcadeira, preveniu-a:
-- Tu trata a velha, apaparica-a, que ella o que quer é uma enfermeira que a soffra. É rica, não é nada apegada ao dinheiro, é capaz de te deixar uma independencia!
Durante um anno Juliana, roída de ambição, foi a enfermeira da velha. Que zelos! que mimos!
Virginia era muito rabugenta, a idéa de morrer enfurecia-a; quanto mais ella ralhava com a sua voz guttural, mais Juliana se fazia serviçal. A velha, por fim, estava enternecida: gabava-a ás pessoas que a vinham vêr, chamava-lhe a sua providencia. Tinha-a recommendado muito a Jorge.
-- Não ha outra! não ha outra! -- exclamava.
-- Pois apanhaste! -- dizia-lhe a tia Victoria. -- Pelo menos deixa-te o teu conto de reis.
Um conto de reis! Juliana, de noite, em quanto a velha gemia no seu antigo leito de pau santo, via o conto de reis á claridade morbida que dava a lamparina, reluzir em pilhas de ouro inesgotavel e prodigioso. Que faria com o dinheiro? E, á cabeceira da doente, com um cobertor pelos hombros, os olhos dilatados e fixos, planeava: poria uma loja de capellista! Vinham-lhe logo lampejos vivos de outras felicidades: um conto de reis era um dote, poderia casar, teria um homem!
Estavam acabadas as canceiras. Ia jantar, emfim, o seu jantar! Mandar, emfim, a sua criada! A sua criada! Via-se a chamal-a, a dizer-lhe, de cima para baixo: -- Faça, vá, despeje, sáia! -- Tinha contracções no estomago, de alegria. Havia de ser boa ama. Mas que lhe andassem direitas! Desmazelos, más respostas, não havia de soffrer a criadas! -- E, impellida por aquellas imaginações, arrastava subtilmente as chinellas pelo quarto, fallando só. -- Não, desmazelos, não havia de soffrer! Mantel-as bem, de certo, porque quem trabalha precisa metter p'ra dentro! Mas havia de lh'o tirar do corpo. Ah! lá isso, haviam de lhe andar direitas... -- A velha tinha então um gemido mais afflicto.
-- É agora! -- pensava -- Morre!
E o seu olhar ancioso ia logo para a gaveta da commoda, onde estava de certo o dinheiro, os papeis. Mas não! a velha queria beber, ou voltar-se...
-- Como se sente? -- perguntava Juliana, com uma voz plangente.
-- Melhor, Juliana, melhor -- murmurava.
Suppunha-se sempre melhor.
-- Mas a senhora tem estado desinquieta! -- dizia Juliana, despeitada da melhora.
-- Não -- suspirava -- dormi bem!
-- Isso não tem dormido... Tenho-a ouvido gemer! Tem estado toda a noite a gemer!
Queria argumentar com ella, convencel-a que estava peor! Convencer-se a si mesma que o allivio era ephemero, que ia morrer depressa! E todas as manhãs seguia o dr. Pinto até á porta, com os braços cruzados, a face triste:
-- Então, snr. doutor, não ha esperança?
-- Está por dias!
Queria saber os dias: dous? cinco?
-- Sim, snr.a Juliana -- dizia o velho, calçando as suas luvas pretas -- uns dias, sete, oito.
-- Oito dias!
E como a felicidade se aproximava, já tinha de olho tres pares de botinas que vira na vidraça do Manoel Lourenço!
A velha, emfim, morreu. Nem a mencionava no testamento!
Veio-lhe uma febre. Jorge, agradecido pelos cuidados d'ella com a tia Virginia, pagou-lhe um quarto no hospital, e prometteu tomal-a para criada de dentro. A que tinha, uma Emilia muito bonita, ia casar.
Quando sahiu do hospital para casa de Jorge, começava a queixar-se mais do coração. Vinha desilludida de tudo, tinha ás vezes vontade de morrer. Ouviam-se todo o dia pela casa os seus ais. Luiza achava-a funebre.
Quiz despedil-a ao fim de duas semanas. Jorge não consentiu, estava em divida com ella, dizia. Mas Luiza não podia disfarçar a sua antipathia; -- e Juliana começou a detestal-a: poz-lhe logo um nome: -- a piorrinha! depois, d'ahi a semanas viu vir os estofadores: renovava-se a mobilia da sala! A tia Virginia deixára tres contos de reis a Jorge, -- e ella, ella que durante um anno fôra a enfermeira, humilde como um cão e fixa como uma sombra, aturando o monstrengo, tinha em paga ido para o hospital, com uma febre, das noitadas, das canceiras! Julgava-se vagamente roubada. Começou a odiar a casa.
Tinha para isso muitas razões, dizia: dormia n'um cubiculo abafado; ao jantar não lhe davam vinho, nem sobremesa; o serviço dos engommados era pesado; Jorge e Luiza tomavam banho todos os dias, e era um trabalhão encher, despejar todas as manhãs as largas bacias de folha: achava despropositada aquella mania de se pôrem a chafurdar todos os dias que Deus deitava ao mundo; tinha servido vinte amos, e nunca vira semelhante desproposito! A unica vantagem -- dizia ella á tia Victoria -- era não haver pequenos; tinha horror a crianças! Além d'isso achava que o bairro era saudavel; e como tinha a cozinheira «na mão», não é verdade? havia aquelle regalo dos caldinhos, de algum prato melhor de vez em quando! Por isso ficava; senão, não era ella!
Fazia no entanto o seu serviço, ninguem tinha nada que lhe dizer. O olho aberto sempre e o ouvido á escuta, já se vê! E como perdera a esperança de se estabelecer, não se sujeitava ao rigor de economisar: por isso ia-se consolando com algumas pinguinhas, de vez em quando; e satisfazia o seu vicio, -- trazer o pé catita. O pé era o seu orgulho, a sua mania, a sua despeza. Tinha-o bonito e pequenino.
-- Como poucos -- dizia ella -- não vai outro ao Passeio!
E apertava-o, aperreava-o; trazia os vestidos curtos, lançava-o muito para fóra. A sua alegria era ir aos domingos para o Passeio Publico, e alli, com a orla do vestido erguida, a cara sob o guarda-solinho de sêda, estar a tarde inteira na poeira, no calor, immovel, feliz, -- a mostrar, a expôr o pé!
IV
Pelas tres horas da tarde, Juliana entrou na cozinha e atirou-se para uma cadeira, derreada. Não se tinha nas pernas de debilidade! Desde as duas horas que andava a arrumar a sala! Estava um chiqueiro. O peralta na vespera até deixára cinza de tabaco por cima das mesas! A negra é que as pagava. E que calor! Era de derreter! Ouf!
-- O caldinho ha-de estar prompto, hein! -- disse, adocicando a voz. -- Tira-m'o, snr.a Joanna, faz favor?
-- Vossemecê hoje está com outra cara -- notou a cozinheira.
-- Ai! sinto-me outra, snr.a Joanna! Pois olhe que adormeci com dia. Já luzia o dia!
-- E eu! -- Tinha tido cada sonho! Credo! Uma avantesma côr de fogo a passear-lhe por cima do corpo, e cada pancada na bocca do estomago, como quem pisava uvas n'um lagar!
-- Enfartamento -- disse sentenciosamente Juliana, e repetiu:
-- Pois eu sinto-me outra. Ha mezes que me não sinto tão bem!
Sorria com os seus dentes amarellados. O caldo que Joanna deitava na malga branca, com um vapor cheiroso, cheio de hortaliça, dava-lhe uma alegria gulosa. Estendeu os pés, recostou-se, feliz, na boa sensação da tarde quente e luminosa, entrando largamente pelas duas janellas abertas.
O sol retirára-se da varanda, e sobre a pedra, em vasos de barro, plantas pobres encolhiam a sua folhagem chupada do calor: sobre uma táboa a um canto, n'uma velha panella bojuda, verdejava um pé de salsa muito tratado: o gato dormia sobre um esteirão: esfregões seccavam n'uma corda: e para além alargava-se o azul vivo como um metal candente, as arvores dos quintaes tinham tons ardentes do sol, os telhados pardos com as suas vegetações esguias coziam no calor, e pedaços de paredes caiadas despediam uma rebrilhação dura.
-- Está de appetite, snr.a Joanna, está de appetite! -- dizia Juliana, remexendo o caldo devagarinho, com gula. A cozinheira de pé, com os braços cruzados sobre o seu peito abundante, regosijava-se:
-- O que se quer é que esteja a gosto.
-- Está a preceito.
Sorriam, contentes da intimidade, das boas palavras. -- E a campainha da porta que já tinha tocado, tornou a tilintar discretamente.
Juliana não se mexeu. Bafos de aragem quente entravam: ouvia-se ferver a panella no fogão, e fóra o martellar incessante da forja: ás vezes o arrulhar triste de duas rôlas que viviam na varanda, n'uma gaiola de vime, punha na tarde abrazada uma sensação de suavidade.
A campainha retilintou, sacudida com impaciencia.
-- Com a cabeça, burro! -- disse Juliana.
Riram. Joanna fôra sentar-se á janella, n'uma cadeira baixa; estendia os seus grossos pés, calçados de chinellas de ourêlo; coçava-se devagarinho no sovaco, toda repousada.
A campainha retiniu violentamente.
-- Fóra, besta! -- rosnou Juliana, muito tranquilla.
Mas a voz irritada de Luiza chamou de baixo:
-- Juliana!
-- Que nem uma pessoa póde tomar a sustancia socegada! Raio de casa! Irra!
-- Juliana! -- gritou Luiza.
A cozinheira voltou-se, já assustada:
-- A senhora zanga-se, snr.a Juliana.
-- Que a leve o diabo!
Limpou os beiços gordurosos ao avental, desceu furiosa.
-- Vossê não ouve, mulher? Estão a bater ha uma hora!
Juliana arregalou os olhos espantada: Luiza tinha vestido o roupão novo de foulard côr de castanho, com pintinhas amarellas!
-- Temos novidade! Temol-a grossa! -- pensou Juliana pelo corredor.
A campainha repicava. E no patamar, vestido de claro, com uma rosa ao peito, um embrulho debaixo do braço, estava o sujeito do negocio das minas!
-- Aquelle sujeito de hontem! -- veio dizer, toda pasmada.
-- Mande entrar...
-- Viva! -- pensou.
Galgou a escada da cozinha, disse logo da porta, com a voz aguda de jubilo:
-- Está cá o peralta de hontem! Está cá outra vez! Traz um embrulho! -- Que lhe parece, snr.a Joanna? Que lhe parece?
-- Visitas... -- disse a cozinheira.
Juliana teve um risinho secco. Sentou-se, acabou o seu caldo, á pressa.
Joanna indifferente cantarolava pela cozinha; o arrulhar das rôlas continuava langoroso e debil.
-- Pois, senhores, isto vai rico! -- disse Juliana.
Esteve um momento a limpar os dentes com a lingua, o olhar fixo, reflectindo. Sacudiu o avental, e desceu ao quarto de Luiza: o seu olhar esquadrinhador avistou logo sobre o toucador as chaves esquecidas da dispensa: podia subir, beber um trago de bom vinho, engulir dous ladrilhos de marmelada... Mas possuia-a uma curiosidade urgente, e, em bicos de pés, foi agachar-se á porta que dava para a sala, espreitou. O reposteiro estava corrido por dentro: podia apenas sentir a voz grossa e jovial do sujeito. Foi de volta, pelo corredor, á outra porta, ao pé da escada; poz o olho á fechadura, collou o ouvido á frincha. O reposteiro dentro estava tambem cerrado.
-- Os diabos calafetaram-se! -- pensou.
Pareceu-lhe que se arrastava uma cadeira, depois que se fechava uma vidraça. Os olhos faiscavam-lhe. Uma risada de Luiza sobresahiu, em seguida um silencio; e as vozes recomeçaram n'um tom sereno e continuo. De repente o sujeito ergueu a falla, e entre as palavras que dizia, de pé de certo, passeando, Juliana ouviu claramente: Tu, foste tu!
-- Oh que bebeda!
Um tlim-tlim timido da campainha, ao lado, assustou-a. Foi abrir. Era Sebastião, muito vermelho do sol, com as botas cheias de pó.
-- Está? -- perguntou, limpando a testa suada.
-- Está com uma visita, snr. Sebastião!
E cerrando a porta sobre si, mais baixo:
-- Um rapaz novo que já cá esteve hontem, um janota! Quer que vá dizer?
-- Não, não, obrigado, adeus.
Desceu discretamente. Juliana voltou logo a encostar-se á porta, a orelha contra a madeira, as mãos atraz das costas: mas a conversação, sem saliencia de vozes, tinha um rumor tranquillo e indistincto. Subiu á cozinha.
-- Tratam-se por tu! -- exclamou. -- Tratam-se por tu, snr.a Joanna!
E muita excitada:
-- Isto vai á vela! Caspitè! assim é que eu gosto d'ellas!
O sujeito sahiu ás cinco horas. Juliana, apenas sentiu abrir-se a porta, veio a correr; viu Luiza no patamar, debruçada no corrimão, dizendo para baixo, com muita intimidade:
-- Bem, não falto. Adeus.
Ficou então tomada d'uma curiosidade que a alterava como uma febre. Toda a tarde, na sala de jantar, no quarto, esquadrinhou Luiza com olhares de lado. Mas Luiza, com um roupão de linho mais velho, parecia serena, muito indifferente.
-- Que sonsa!
Aquella naturalidade despertava a sua bisbilhotice.
-- Eu hei-de-t'apanhar, desavergonhada! -- calculava.
Afigurou-se-lhe que Luiza tinha os olhos um pouco pisados! Estudava-lhe as posições, os tons de voz. Viu-a repetir o assado, -- pensou logo:
-- Abriu-lhe o appetite!
E quando Luiza ao fim do jantar se estendeu na voltaire com um ar quebrado:
-- Ficou derreada.
Luiza que nunca tomava café, quiz n'essa tarde «meia chavena, mas forte, muito forte».
-- Quer café! -- veio ella dizer á cozinheira, toda excitada. -- Tudo á grande! E do forte. Quer do forte! Ora o diabo!
Estava furiosa.
-- Todas o mesmo! Uma récua de cabras! [111]
Ao outro dia era domingo. Logo pela manhã cedo, quando Juliana ia para a missa, Luiza chamou-a da porta do quarto, deu-lhe uma carta para levar a D. Felicidade. Ordinariamente mandava um recado; -- e a curiosidade de Juliana accendeu-se logo diante d'aquelle sobrescripto fechado e lacrado com o sinete de Luiza, um L gothico dentro d'uma corôa de rosas.
-- Tem resposta?
-- Tem.
Quando voltou ás dez horas, com um bilhete de D. Felicidade, Luiza quiz saber se havia muito calor, se fazia poeira. Sobre a mesa estava um chapéo de palha escuro, que ella estivera a enfeitar com duas rosas de musgo.
Fazia um bocadinho de vento, mas p'ra a tarde abrandava, de certo. E pensou logo: -- Temos passeata, vai ter com o gajo!
Mas durante todo o dia, Luiza em roupão não sahiu do seu quarto ou da sala, ora estendida na causeuse lendo aos bocados, ora batendo distrahidamente no piano pedaços de valsas. Jantou ás quatro horas. A cozinheira sahiu, e Juliana pôz-se a passar a sua tarde á janella da sala de jantar. Tinha o vestido novo, as salas muito rijas de gomma, a cuia dos dias santos -- e pousava solemnemente os cotovêlos n'um lenço, estendido sobre o peitoril da varanda. Defronte os passaros chilreavam na figueira brava. Dos dous lados do tabique que cercava o terreno vago, agachavam-se os tectos escuros das duas ruasitas parallelas: eram casas pobres onde viviam mulheres, que pela tarde, em chambre ou de garibaldi, os cabellos muito oleosos, faziam meia á janella, fallando aos homens, cantarolando com um tedio triste. Do outro lado do terreno, verduras de quintaes, muros brancos davam áquelle sitio um ar adormecido de villa pacata. Quasi ninguem passava. Havia um silencio fatigado; e só ás vezes o som distante d'um realejo, que tocava a Norma ou a Lucia, punha uma melancolia na tarde. -- E Juliana alli estava immovel, até que os tons quentes da tarde empallideciam, e os morcegos começavam a voar.
Pelas oito horas entrou no quarto de Luiza, -- ficou pasmada de a vêr vestida toda de preto, de chapéo! Tinha accendido as serpentinas na parede, os castiçaes no toucador; e sentada á beira da causeuse calçava as luvas devagar, com a face muito séria, um pouco esbatida de pó d'arroz, o olhar cheio de brilho.
-- O vento abrandou? -- disse.
-- Está a noite muito bonita, minha senhora.
Um pouco antes das nove horas uma carruagem parou á porta. Era D. Felicidade, muito encalmada. Abafára todo o dia! E á noite nem uma aragem! Até tinha mandado buscar uma carruagem descoberta, que n'um coupé, credo, morria-se!
Juliana pelo quarto arrumava, dobrava, toda curiosa. Onde iriam? onde iriam? D. Felicidade, amplamente sentada, de chapéo, tagarellava: uma indigestão que tivera na vespera com umas bajes; a cozinheira que a tinha querido «comer» em quatro vintens; uma visita que lhe fizera a condessa de Arruella...
Emfim, Luiza, disse, baixando o seu véo branco:
-- Vamos, filha. Faz-se tarde.
Juliana foi-lhes alumiar, furiosa. Olha que proposito, irem duas mulheres sós por ahi fóra, n'uma tipoia! E se uma criada então se demorava na rua mais meia hora, credo, que alarido! Que duas bebedas!
Foi á cozinha desabafar com a Joanna. Mas a rapariga estirada n'uma cadeira, dormitava.
Fôra com o seu Pedro ao Alto de S. João. E toda a tarde tinham passeado no cemiterio, muito juntos, admirando os jazigos, soletrando os epitaphios, beijocando-se nos recantos que os chorões escureciam, e regalando-se do ar dos cyprestes e das relvas dos mortos. Voltaram por casa da Serena, entraram a beberricar um quartilho no Espregueira... Tarde cheia! e estava derreada da soalheira, do pó, da admiração de tanto tumulo rico, do homem, e da pinguita de vinho.
O que ia, era refastelar-se para a cama!
-- Credo, snr.a Joanna, vossemecê está-se a fazer uma dorminhôca! Olha que mulher! Com pouco arrêa! Cruzes!
Desceu ao quarto de Luiza, apagou as luzes, abriu as janellas, arrastou a poltrona para a varanda, -- e, repimpada, os braços cruzados, pôz-se a passar a noite.
O estanque ainda não se fechára, e a sua luzita lugubre como a estanqueira, estendia-se tristemente sobre a pedra miuda da rua; as janellas ao pé estavam abertas; por algumas, mal alumiadas, viam-se dentro serões melancolicos; n'outras, onde havia vultos immoveis, luzia ás vezes a ponta d'um cigarro; aqui, além tossia-se; e o moço do padeiro, no silencio quente da noite, harpejava baixinho a guitarra.
Juliana pozera um vestido de chita claro; dous sujeitos que estavam á porta do estanque riam, erguiam de vez em quando os olhos para a janella, para aquelle vulto branco de mulher: Juliana, então, gozou! Tomavam-na de certo pela senhora, pela do Engenheiro; faziam-lhe «olho», diziam brejeirices... Um tinha calça branca e chapéo alto, eram janotas... E com os pés muito estendidos, os braços cruzados, a cabeça de lado, saboreava, longamente, aquella consideração.
Passos fortes que subiam a rua, pararam á porta; a campainha retiniu de leve.
-- Quem é? -- perguntou muito impaciente.
-- Está? -- disse a voz grossa de Sebastião.
-- Sahiu com a D. Felicidade, foram de carruagem.
-- Ah! -- fez elle.
E acrescentou:
-- Muito bonita noite!
-- D'appetite, snr. Sebastião! d'appetite! -- exclamou alto.
E quando o viu descer a rua, gritou, affectadamente:
-- Recados a Joanna! Não se esqueça! -- mostrando-se intima, madama, com olho terno para os homens.
Áquella hora D. Felicidade e Luiza chegavam ao Passeio.
Era beneficio; já de fóra se sentia o brouhaha lento e monotono, e via-se uma nevoa alta de poeira, amarellada e luminosa.
Entraram. Logo ao pé do tanque encontraram Bazilio. Fez-se muito surprehendido, exclamou:
-- Que feliz acaso!
Luiza corou, apresentou-o a D. Felicidade.
A excellente senhora teve muitos sorrisos. Lembrava-se d'elle, mas se não lhe dissessem talvez o não conhecesse! Estava muito mudado!
-- Os trabalhos, minha senhora... -- disse Bazilio curvando-se.
E acrescentou rindo, batendo com a bengala na pedra do tanque:
-- E a velhice! Sobretudo a velhice!
Na agua escura e suja as luzes do gaz torciam-se até uma grande profundidade. As folhagens em redor estavam immoveis, no ar parado, com tons d'um verde livido e artificial. Entre os dous longos renques parallelos d'arvores mesquinhas, entremeadas de candieiros de gaz, apertava-se, n'um empoeiramento de macadam, uma multidão compacta e escura; e através do rumor grosso, as saliencias metallicas da musica faziam passar no ar pesado, compassos vivos de valsa.
Tinham ficado parados, conversando.
Que calor, hein? Mas a noite estava linda! Nem uma aragem! que enchente!
E olhavam a gente que entrava: moços muito frisados, com calças côr de flôr d'alecrim, fumando ceremoniosamente os charutos do dia santo; um aspirante com a cinta espartilhada e o peito enchumaçado; duas meninas de cabello riçado, de movimentos gingados que lhe desenhavam os ossos das omoplatas sob a fazenda do vestido atabalhoado; um ecclesiastico côr de cidra, o ar molle, o cigarro na bocca, e lunetas defumadas; uma hespanhola com dous metros de saia branca muita rija, fazendo ruge-ruge na poeira; o triste Xavier, poeta; um fidalgo de jaquetão e bengalão, de chapéo na nuca, o olho avinhado; e Bazilio ria muito de dous pequenos que o pai conduzia com um ar hilare e compenetrado -- vestidos d'azul claro, a cinta ligada n'uma facha escarlate, barretinas de lanceiro, botas á hungara, cretinos e somnambulos.
Um sujeito alto então passou rente d'elles, e voltando-se, revirou para Luiza dous grandes olhos langorosos e prateados: tinha uma pera longa e aguçada; trazia o collete decotado mostrando um bello peitilho, e fumava por urna boquilha enorme que representava um zuavo.
Luiza quiz-se sentar.
Um garoto de blusa, sujo como um esfregão, correu a arranjar cadeiras; e acommodaram-se ao pé d'uma familia acabrunhada e taciturna.
-- Que fizeste tu hoje, Bazilio? -- perguntou Luiza.
Tinha ido aos touros.
-- E que tal? Gostaste?
-- Uma semsaboria. Se não fosse pelo trambolhão do Peixinho tinha-se morrido de pasmaceira. Gado fraco, cavalleiros infelizes, nenhuma sorte! Touros em Hespanha! Isso sim!
D. Felicidade protestou. Que horror! Tinha-os visto em Badajoz, quando estivera de visita em Elvas á tia Francisca de Noronha, e ia desmaiando. O sangue, as tripas dos cavallos... Pouh! É muito cruel!
Bazilio disse, com um sorriso:
-- Que faria se visse os combates de gallos, minha senhora!
D. Felicidade tinha ouvido contar, -- mas achava todos esses divertimentos barbaros, contra a religião.
E recordando um gozo que lhe punha um riso na face gorda:
-- P'ra mim não ha nada como uma boa noite de theatro! Nada!
-- Mas aqui representam tão mal! -- replicou Bazilio com uma voz desolada. -- Tão mal, minha rica senhora!
D. Felicidade não respondeu; meio erguida na cadeira, o olhar avivado d'um brilho humido, saudava desesperadamente com a mão:
-- Não me viu -- disse desconsolada.
-- Era o conselheiro? -- perguntou Luiza.
-- Não. Era a condessa d'Alviella. Não me viu! Vai muito á Encarnação, sou muito d'ella. É um anjo! Não me viu. Ia com o sogro.
Bazilio não tirava os olhos de Luiza. Sob o véo branco, á luz falsa do gaz, no ar ennevoado da poeira, o seu rosto tinha uma fórma alva e suave, onde os olhos que a noite escurecia punham uma expressão apaixonada; os cabellinhos louros, frisados, tornando a testa mais pequena, davam-lhe uma graça ameninada e amorosa; e as luvas gris-perle faziam destacar sobre o vestido negro o desenho elegante das mãos, que ella pousára no regaço, sustentando o leque, com uma fofa renda branca em torno dos seus pulsos finos.
-- E tu, que fizeste hoje? -- perguntou-lhe Bazilio.
Tinha-se aborrecido muito. Estivera todo o santo dia a lêr.
Tambem elle passára a manhã deitado no sophá a lêr a Mulher de fogo de Belot. Tinha lido, ella?
-- Não, que é?
-- É um romance, uma novidade.
E acrescentou sorrindo:
-- Talvez um pouco picante; não t'o aconselho!
D. Felicidade andava a lêr o Rocambole. Tanto lh'o tinham apregoado! Mas era uma tal trapalhada! Embrulhava-se, esquecia-se... E ia deixar, porque tinha percebido que a leitura lhe augmentava a indigestão.
-- Soffre? -- perguntou Bazilio, com um interesse bem educado.
D. Felicidade contou logo a sua dyspepsia. Bazilio aconselhou-lhe o uso do gelo. -- De resto felicitava-a, porque as doenças d'estomago, ultimamente, tinham muito chic. Interessou-se pela d'ella, pediu pormenores.
D. Felicidade prodigalisou-os; e, fallando, via-se-lhe crescer no olhar, na voz a sua sympathia por Bazilio. Havia de usar o gelo!
-- Com o vinho, já se sabe?
-- Com o vinho, minha senhora!
-- E olha que talvez! -- exclamou D. Felicidade, batendo com o leque no braço de Luiza, já esperançada.
Luiza sorriu, ia responder -- mas viu o sujeito pallido da pera longa que fitava n'ella os seus olhos langorosos, com obstinação. Voltou o rosto importunada. O sujeito afastou-se, retorcendo a ponta da pera.
Luiza sentia-se molle; o movimento rumoroso e monotono, a noite calida, a accumulação da gente, a sensação de verdura em redor davam ao seu corpo de mulher caseira um torpor agradavel, um bem estar d'inercia, envolviam-na n'uma doçura emolliente de banho morno. Olhava com um vago sorriso, o olhar frouxo; quasi tinha preguiça de mexer as mãos, d'abrir o leque.
Bazilio notou o seu silencio. -- Tinha somno?
D. Felicidade sorriu com finura.
-- Ora, vê-se sem o seu maridinho! Desde que o não tem está esta mona que se vê.
Luiza respondeu, olhando Bazilio instinctivamente:
-- Que tolice! Até estes dias tenho andado bem alegre!
Mas D. Felicidade insistia:
-- Ora, bem sabemos, bem sabemos. Esse coraçãosinho está no Alemtejo!
Luiza disse, com impaciencia:
-- Não has-de querer que me ponha aos pulos e ás gargalhadas no Passeio.
-- Está bem, não te enfureças! -- exclamou D. Felicidade. E para Bazilio: -- Que geniosinho, hein!
Bazilio pôz-se a rir.
-- A prima Luiza antigamente era uma vibora. Agora não sei...
D. Felicidade acudiu:
-- É uma pomba, coitada, é uma pomba! Não, lá isso, é uma pomba.
E envolvia-a n'um olhar maternal.
Mas a familia taciturna ergueu-se, sem ruido, -- e as meninas adiante, os paes atraz, afastaram-se lugubremente, succumbidos.
Bazilio immediatamente apossou-se da cadeira ao pé de Luiza, -- e vendo D. Felicidade a olhar distrahida:
-- Estive para te ir vêr de manhã -- disse baixinho a Luiza.
Ella ergueu a voz, muito naturalmente, com indifferença:
-- E porque não foste? Tinhamos feito musica. Fizeste mal. Devias ter ido...
D. Felicidade quiz então saber as horas. Começava a enfastiar-se. Tinha esperado encontrar o conselheiro: por elle, para lhe parecer bem, fizera o sacrificio de se apertar; Accacio não vinha, os gazes começavam a affrontal-a; e o despeito d'aquella ausencia augmentava-lhe a tortura da digestão. Na sua cadeira, com o corpo molle, ia seguindo a multidão que girava incessantemente, n'uma nevoa empoeirada.
Mas a musica, no coreto, bateu de repente, alto, a grande ruido de cobres, os primeiros compassos impulsivos da marcha do Fausto. Aquillo reanimou-a. Era um pot-pourri da opera, -- e não havia musica de que gostasse mais. Estaria para a abertura de S. Carlos, o snr. Bazilio?
Bazilio disse, com uma intenção, voltando-se para Luiza:
-- Não sei, minha senhora, depende...
Luiza olhava, calada. A multidão crescera. Nas ruas lateraes mais espaçosas, frescas, passeavam apenas, sob a penumbra das arvores, os acanhados, as pessoas de luto, os que tinham o fato coçado. Toda a burguezia domingueira viera amontoar-se na rua do meio, no corredor formado pela filas cerradas das cadeiras do asylo: e alli se movia entalada, com a lentidão espessa d'uma massa mal derretida, arrastando os pés, raspando o macadam, n'um amarfanhamento plebeu, a garganta secca, os braços molles, a palavra rara. Iam, vinham, incessantemente, para cima e para baixo, com um bamboleamento relaxado e um rumor grosso, sem alegria e sem bonhomia, no arrebanhamento passivo que agrada ás raças mandrionas: no meio da abundancia das luzes e das festividades da musica, um tedio morno circulava, penetrava como uma nevoa: a poeirada fina envolvia as figuras, dava-lhes um tom neutro; e nos rostos que passavam sob os candieiros, nas zonas mais directas de luz, viam-se desconsolações de fadiga e aborrecimentos de dia santo.
Defronte as casas da rua Occidental tinham na sua fachada o reflexo claro das luzes do Passeio; algumas janellas estavam abertas; as cortinas de fazenda escura destacavam sobre a claridade interior dos candieiros. Luiza sentia como uma saudade de outras noites de verão, de serões recolhidos. Onde? Não se lembrava. O movimento então retrahia-a; e encontrava em face, fitando-a n'uma attitude lugubre, o sujeito da pera longa. Debaixo do véo sentia a poeira arder-lhe nos olhos: em redor d'ella gente bocejava.
D. Felicidade propoz uma volta. Levantaram-se, foram rompendo devagar; as filas das cadeiras apertavam-se compactamente, e uma infinidade de faces a que a luz do gaz dava o mesmo tom amarellado olhavam de um modo fixo e cançado, n'um abatimento de pasmaceira. Aquelle aspecto irritou Bazilio, e como era difficil andar lembrou -- «que se fossem d'aquella semsaboria».
Sahiram. Em quanto elle ia comprar os bilhetes, D. Felicidade, deixando-se quasi cahir n'um banco sob a folhagem d'um chorão, exclamou afflicta:
-- Ai filha! Estou que arrebento!
Passava a mão no estomago, tinha a face envelhecida.
-- E o conselheiro, que me dizes? Olha que já é pouca sorte! Hoje que eu vim ao Passeio...
Suspirou, abanando-se. E com o seu sorriso bondoso:
-- É muito sympathico, teu primo! E que maneiras! Um verdadeiro fidalgo. Que elles conhecem-se, filha!
Declarou-se muito fatigada, apenas sahiram o portão. Era melhor tomarem um trem.
Bazilio achava preferivel subirem a pé até ao largo do Loreto. A noite estava tão agradavel! E o andar fazia bem á snr.a D. Felicidade!
Depois diante do Martinho, fallou em irem tomar neve; mas D. Felicidade receava a frialdade, Luiza tinha vergonha. Pelas portas do café abertas, viam-se sobre as mesas jornaes enxovalhados; e algum raro individuo, de calça branca, tomava placidamente o seu sorvete de morango.
No Rocio, sob as arvores, passeava-se: pelos bancos, gente immovel parecia dormitar; aqui e além pontas de cigarro reluziam; sujeitos passavam, com o chapéo na mão, abanando-se, o collete desabotoado; a cada canto se apregoava agua fresca «do Arsenal»; em torno do largo, carruagens descobertas rodavam vagarosamente. O céo abafava, -- e na noite escura, a columna da estatua de D. Pedro tinha o tom baço e pallido de uma vela de estearina colossal e apagada.
Bazilio, ao pé de Luiza, ia calado. Que horror de cidade! -- pensava -- Que tristeza! E lembrava-lhe Paris, de verão: subia, á noite, no seu phaeton, os Campos Elyseos devagar: centenares de victorias descem, sobem rapidamente, com um trote discreto e alegre; e as lanternas fazem em toda a avenida um movimento jovial de pontos de luz; vultos brancos e mimosos de mulheres reclinam-se nas almofadas, balançadas nas molas macias; o ar em redor tem uma doçura avelludada, e os castanheiros espalham um aroma subtil. Dos dous lados, d'entre os arvoredos, saltam as claridades violentas dos cafés cantantes, cheios do brouhaha das multidões alegres, dos brios impulsivos das orchestras; os restaurantes flammejam; ha uma intensidade de vida amorosa e feliz; e, para além, sahe das janellas dos palacetes, através dos stores de sêda, a luz sobria e velada das existencias ricas. Ah! se lá estivesse! -- Mas ao passar junto dos candieiros olhava de lado para Luiza: o seu perfil fino sob o véo branco tinha uma grande doçura; o vestido prendia bem a curva do seu peito; e havia no seu andar uma lassidão que lhe quebrava a linha da cinta de um modo languido e promettedor.
Veio-lhe uma certa idéa, começou a dizer: Que pena que não houvesse em toda a Lisboa um restaurante, onde se podesse ir tomar uma aza de perdiz e beber uma garrafa de champagne frappée!
Luiza não respondeu. Devia ser delicioso -- pensava. -- Mas D. Felicidade exclamou:
-- Perdiz, a esta hora!
-- Perdiz ou outra qualquer cousa.
-- Fosse o que fosse, era para estourar! Credo!
Subiam pela rua Nova do Carmo. Os candieiros davam uma luz mortiça: as altas casas dos dous lados, apagadas, entalavam, carregavam a sombra; e a patrulha muito armada, descia passo a passo, sem ruido, sinistra e subtil.
Ao Chiado um garoto de barrete azul perseguiu-os com cautelas de loteria; a sua voz aguda e chorosa promettia a fortuna, muitos contos de reis. D. Felicidade ainda parou, com uma tentação... Mas uma troça de rapazes bebedos que descia de chapéo na nuca, fallando alto, aos tropeções, assustou muito as duas senhoras. Luiza encolheu-se logo contra Bazilio, D. Felicidade enfiada agarrou-lhe anciosamente o braço, quiz-se metter n'uma carruagem; e até ao Loreto foi explicando o seu medo aos borrachos, com a voz atarantada, contando casos, facadas, sem largar o braço de Bazilio. Da fileira de tipoias, ao lado das grades da praça de Camões, um cocheiro lançou logo a sua caleche descoberta, de pé na almofada, apanhando confusamente as rédeas, com grandes chicotadas na parelha, muito excitado, gritando:
-- Prompto, meu amo, prompto!
Demoraram-se um momento ainda conversando. Um homem então passou, rondou, -- e Luiza desesperada reconheceu os olhos acarneirados do sujeito da pera.
Entraram para a caleche. Luiza ainda se voltou para vêr Bazilio immovel no largo, com o seu chapéo na mão: depois accommodou-se, pôz os pésinhos no outro assento e balançada pelo trote largo viu passar, calada, as casas apagadas da rua de S. Roque, as arvores de S. Pedro de Alcantara, as fachadas estreitas do Moinho de Vento, os jardins adormecidos da Patriarchal. A noite estava immovel, de um calor molle: e desejava, sem saber porque, rolar assim sempre, infinitamente, entre ruas, entre grades cheias de folhagem de quintas nobres, sem destino, sem cuidados, para alguma cousa de feliz que não distinguia bem! Um grupo defronte da Escóla ia tocando o Fado do Vimioso; aquelles sons entraram-lhe na alma como um vento dôce, que fazia agitar brandamente muitas sensibilidades passadas: suspirou baixo.
-- Um suspirosinho que vai para o Alemtejo -- disse D. Felicidade, tocando-lhe o braço.
Luiza sentiu todo o sangue abrazar-lhe o rosto. Davam onze horas quando entrou em casa.
Juliana veio alumiar. -- O chá estava prompto, quando a senhora quizesse...
Luiza subiu d'ahi a pouco com um largo roupão branco, muito fatigada, estendeu-se na voltaire; sentia vir-lhe uma somnolencia, a cabeça pendia-lhe, cerrava as palpebras... E Juliana tardava tanto com o chá! Chamou-a. Onde estava? credo!
Tinha descido, pé ante pé, ao quarto de Luiza. E ahi tomando o vestido, as saias engommadas que ella despira e atirára para cima da causeuse, desdobrou-as, revirou-as, examinou-as, e com uma certa idéa, cheirou-as! Havia o vago aroma de um corpo lavado e quente, com uma pontinha de suor e de agua de colonia. Quando a sentiu chamar, impacientar-se em cima, subiu, correndo. -- Fôra abaixo dar uma arrumadella. Era o chá? Estava prompto...
E entrando com as torradas:
-- Veio ahi o snr. Sebastião, haviam de ser nove horas...
-- Que lhe disse?
-- Que a senhora tinha sahido com a snr.a D. Felicidade. Como não sabia, não disse para onde.
E acrescentou:
-- Esteve a conversar commigo, o snr. Sebastião... Esteve a conversar mais de meia hora!...
Luiza recebeu, na manhã seguinte, da parte de Sebastião, um ramo de rosas, magenta-escuro, magnificas. Cultivava-as elle na quinta de Almada, e chamavam-se rosas D. Sebastião. Mandou-as pôr nos vasos da sala, e como o dia estava encoberto, de um calor baixo e suffocante:
-- Olhe -- disse a Juliana -- abra as janellas.
-- Bem -- pensou Juliana -- temos cá o melro.
O melro veio com effeito ás tres horas. Luiza estava na sala, ao piano.
-- Está alli o sujeito do costume -- foi dizer Juliana.
Luiza voltou-se corada, escandalisada da expressão:
-- Ah! meu primo Bazilio? Mande entrar.
E chamando-a:
-- Ouça, se vier o snr. Sebastião, ou alguem, que entre.
Era o primo! O sujeito, as suas visitas perderam de repente para ella todo o interesse picante. A sua malicia cheia, enfunada até ahi, cahiu, engelhou-se como uma vela a que falta o vento. Ora, adeus! Era o primo!
Subiu á cozinha, devagar, -- lograda.
-- Temos grande novidade, snr.a Joanna! O tal peralta é primo. Diz que é o primo Bazilio.
E com um risinho:
-- É o Bazilio! Ora o Bazilio! Sahe-nos primo á ultima hora! O diabo tem graça!
-- Então que havia de o homem ser senão parente? -- observou Joanna.
Juliana não respondeu. Quiz saber se estava o ferro prompto, que tinha uma carga de roupa para passar! E sentou-se á janella, esperando. O céo baixo e pardo pesava, carregado de electricidade; ás vezes uma aragem subita e fina punha nas folhagens dos quintaes um arripio tremulo.
-- É o primo! -- reflectia ella. -- E só vem então quando o marido se vai. Boa! E fica-se toda no ar quando elle sahe, e é roupa branca e mais roupa branca, e roupão novo, e tipoia para o passeio, e suspiros e olheiras! Boa bebeda! Tudo fica na familia!
Os olhos luziam-lhe. Já se não sentia tão lograda. Havia alli muito «para vêr e para escutar». E o ferro, estava prompto?
Mas a campainha, em baixo, tocou.
-- Boa! isto agora é um fadario! Estamos na casa do despacho!
Desceu; e exclamou logo, vendo Julião com um livro debaixo do braço:
-- Faz favor d'entrar, snr. Julião! A senhora está com o primo, mas diz que mandasse entrar!
Abriu a porta da sala bruscamente, de surpreza.
-- Está aqui o snr. Julião -- disse com satisfação.
Luiza apresentou os dous homens.
Bazilio ergueu-se do sophá languidamente, e, n'um relance, percorreu Julião desde a cabelleira desleixada até ás botas mal engraxadas, com um olhar quasi horrorisado.
-- Que pulha! -- pensou.
Luiza, muito fina, percebeu, e córou, envergonhada de Julião.
Aquelle homem de collarinho enxovalhado e com um velho casaco de pano preto mal feito -- que idéa daria a Bazilio das relações, dos amigos da casa! Sentia já o seu chic diminuido. E instinctivamente, a sua physionomia tornou-se muito reservada, -- como se semelhante visita a surprehendesse! semelhante toilette a indignasse!
Julião percebeu o constrangimento d'ella, disse, já embaraçado, ageitando a luneta:
-- Passei por aqui por acaso, entrei a saber se ha algumas noticias de Jorge...
-- Obrigada. Sim, tem escripto. Está bem...
Bazilio, recostado no sophá, como um parente intimo, examinava a sua meia de sêda bordada de estrellinhas escarlates, e cofiava indolentemente o bigode, arrebitando um pouco o dedo minimo, -- onde brilhavam, em dous grossos anneis d'ouro, uma saphira e um rubi.
A affectação da attitude, o reluzir das joias irritaram Julião.
Quiz mostrar tambem a sua intimidade, os seus direitos, disse:
-- Eu não tenho vindo fazer-lhe um bocado de companhia, porque tenho estado muito occupado...
Luiza acudiu para desauthorisar logo aquella familiaridade:
-- Eu tambem não me tenho achado bem. Não tenho recebido ninguem, -- a não ser meu primo, naturalmente!
Julião sentiu-se renegado! E todo vermelho, de surpreza, d'indignação, ficou a balançar a perna, calado, com o livro sobre o joelho; como a calça era curta, via-se o elastico esfiado das botas velhas.
Houve um silencio difficil.
-- Bonitas rosas! -- disse emfim Bazilio, preguiçosamente.
-- Muito bonitas! -- respondeu Luiza.
Estava agora compadecida de Julião, procurava uma palavra; disse-lhe emfim muito precipitadamente:
-- E que calor! É de morrer! Tem havido muitas doenças?
-- Colerinas -- respondeu Julião. -- Por causa das frutas. Doenças de ventre.
Luiza baixou os olhos. Bazilio então começou a fallar da viscondessinha d'Azeias: tinha-a achado acabada; e que era feito da irmã, da grande?
Aquella conversação sobre fidalgas que elle não conhecia isolava mais Julião: sentia o suor humedecer-lhe o pescoço; procurava um dito, uma ironia, uma agudeza; e machinalmente abria e fechava o seu grosso livro de capa amarella.
-- É algum romance? -- perguntou-lhe Luiza.
-- Não. É o tratado do dr. Lee sobre doenças d'utero.
Luiza fez-se escarlate: Julião tambem, furioso da palavra que lhe escapára. E Bazilio, depois de sorrir, perguntou por uma certa D. Raphaela Grijó, que costumava ir á rua da Magdalena, que usava luneta, e tinha um cunhado gago...
-- Morreu-lhe o marido. Casou com o cunhado.
-- Com o gago?
-- Sim. Tem um filhito d'elle, gago tambem.
-- Que conversação, em familia! E a D. Eugenia, a de Braga?
Julião, exasperado, ergueu-se; e com uma voz de garganta secca:
-- Estou com pressa, não me posso demorar. Quando escrever a Jorge, os meus recados, hein?
Abaixou bruscamente a cabeça a Bazilio. Mas não achava o chapéo, tinha rolado para debaixo d'uma cadeira. Embrulhou-se no reposteiro, topou violentamente contra a porta fechada, e sahiu emfim desesperado, desejando vingar-se, odiando Luiza, Jorge, o luxo, a vida, -- transbordando agora d'ironias, de ditos, de réplicas. Devia-os ter achatado, o asno e a tola... E não lhe acudira nada!
Mas apenas elle tinha fechado a cancella, Bazilio pôz-se de pé, e cruzando os braços:
-- Quem é este pulha?
Luiza córou muito, balbuciou:
-- É um rapaz medico...
-- É uma creatura impossivel, é uma especie d'estudante!
-- Coitado, não tem muitos meios...
Mas não era necessario ter meios para escovar o casaco e limpar a caspa! Não devia receber semelhante homem! Envergonha uma casa. Se seu marido gostava d'elle, que o recebesse no escriptorio!...
Passeava pela sala, excitado, com as mãos nos bolsos, fazendo tilintar o dinheiro e as chaves.
-- São frescos os amigos da casa!... -- continuou. -- Que diabo! tu não foste educada assim. Nunca tiveste gente d'este genero na rua da Magdalena.
Não tivera: e pareceu-lhe que as ligações do casamento lhe tinham trazido um pouco o plebeismo das convivencias. Mas um respeito pelas opiniões, pelas sympathias de Jorge fez-lhe dizer:
-- Diz que tem muito talento...
-- Era melhor que tivesse botas.
Luiza, por cobardia, concordou.
-- Tambem o acho exquisito! -- disse.
-- Horrivel, minha filha!
Aquella palavra fez-lhe bater o coração. Era assim que elle lhe chamava, outr'ora! Houve um momento de silencio: -- e a campainha da porta retiniu fortemente.
Luiza ficou assustada. Jesus! Se fosse Sebastião! Bazilio achal-o-hia ainda mais reles! Mas Juliana veio dizer:
-- O snr. conselheiro. Mando entrar?
-- De certo -- exclamou.
E a alta figura d'Accacio adiantou-se, com as bandas do casaco d'alpaca deitadas para traz, a calça branca muito engommada cahindo sobre sapatos de entrada abaixo, de laço.
Apenas Luiza lhe apresentou o primo Bazilio, disse logo, respeitoso:
-- Já sabia que v. exc.a tinha chegado, vi-o nas interessantes noticias do nosso high-life. E do nosso Jorge?
Jorge estava em Beja... Diz que se aborrece muito...
Bazilio, mais amavel, deixou cahir:
-- Eu realmente não tenho a menor idéa do que se possa fazer em Beja. Deve ser horroroso!
O conselheiro, passando sobre o bigode a sua mão branca onde destacava o annel d'armas, observou:
-- É todavia a capital do districto!
Mas se já em Lisboa se não podia fazer nada, e era a capital do reino! -- E Bazilio puxava, todo recostado, o punho da camisa. -- Morria-se positivamente de pasmaceira!
Luiza, muito contente da affabilidade de Bazilio, pôz-se a rir:
-- Não digas isso diante do conselheiro. É um grande admirador de Lisboa.
Accacio curvou-se:
-- Nasci em Lisboa, e aprecio Lisboa, minha rica senhora.
E com muita bonhomia:
-- Conheço porém que não é para comparar aos Parizes, ás Londres, ás Madrids...
-- De certo -- fez Luiza.
E o conselheiro continuou com pompa:
-- Lisboa porém tem bellezas sem igual! A entrada, ao que me dizem (eu nunca entrei a barra), é um panorama grandioso, rival das Constantinoplas e das Napoles. Digno da penna d'um Garrett ou d'um Lamartine! Proprio para inspirar um grande engenho!...
Luiza, receando citações ou apreciações litterarias, interrompeu-o, perguntou-lhe o que tinha feito? Tinham estado domingo no Passeio, ella e D. Felicidade, tinham esperado vêl-o, e nada!
Nunca ia ao Passeio, ao domingo -- declarou. -- Reconhecia que era muito agradavel, mas a multidão entontecia-o. Tinha notado, -- e a sua voz tomou o tom espaçado d'uma revelação, -- tinha notado que muita gente, n'um local, causa vertigens aos homens d'estudo. De resto queixou-se da sua saude e do peso dos seus trabalhos. Andava compilando um livro e usando as aguas de Vichy.
-- Pódes fumar -- disse Luiza de repente, sorrindo, a Bazilio. -- Queres lume?
Ella mesmo lhe foi buscar um phosphoro, toda ligeira, feliz. Tinha um vestido claro, um pouco transparente, muito fresco. Os seus cabellos pareciam mais louros, a sua pelle mais fina.
Bazilio soprou o fumo do charuto, e declarou muito reclinado:
-- O Passeio ao domingo é simplesmente idiota!...
O conselheiro reflectiu e respondeu:
-- Não serei tão severo, snr. Brito! -- Mas parecia-lhe que com effeito antigamente era uma diversão mais agradavel. -- Em primeiro lugar -- exclamou com muita convicção, endireitando-se -- nada, mas nada, absolutamente nada póde substituir a charanga da Armada! -- Além d'isso havia a questão dos preços... Ah! tinha estudado muito o assumpto! Os preços diminutos favoreciam a agglomeração das classes subalternas... Que longe do seu pensamento lançar desdouro n'essa parte da população... As suas idéas liberaes eram bem conhecidas. -- Appéllo para a snr.a D. Luiza! -- disse. -- Mas emfim, sempre era mais agradavel encontrar uma roda escolhida! Em quanto a si nunca ia ao Passeio. Talvez não acreditassem, mas nem mesmo quando havia fogo de vistas! N'esses dias, sim, ia vêr por fóra das grades. Não por economia! De certo não. Não era rico, mas podia fazer face a essa contribuição diminuta. Mas é que receava os accidentes! É que os receava muito! Contou a historia d'um sujeito, cujo nome lhe escapava, a quem uma cana de foguete furára o craneo. -- E além d'isso nada mais facil que cahir uma fagulha accesa na cara, n'um paletot novo... -- É conveniente ter prudencia -- resumiu, compenetrado, limpando os beiços com o lenço de sêda da India muito enrolado.
Fallaram então da estação: muita gente fôra para Cintra: de resto, Lisboa no verão era tão seccante!... E o conselheiro declarou que Lisboa só era imponente, verdadeiramente imponente, quando estavam abertas as camaras e S. Carlos!
-- Que estavas tu a tocar quando eu entrei? -- perguntou Bazilio.
O conselheiro acudiu logo:
-- Se estavam fazendo musica, por quem são... Sou um velho assignante de S. Carlos, ha dezoito annos...
Bazilio interrompeu-o:
-- Toca?
-- Toquei. Não o occulto. Em rapaz fui dado á flauta.
E acrescentou, com um gesto benevolo:
-- Rapaziadas!... Alguma novidade, o que estava tocando, D. Luiza?
-- Não! Uma musica muito conhecida, já antiga: a Filha do Pescador, de Meyerbeer! Tenho a letra traduzida.
Tinha cerrado as vidraças, sentára-se ao piano.
-- O Sebastião é que toca isto bem, não é verdade, conselheiro?
-- O nosso Sebastião -- disse o conselheiro com authoridade -- é um rival dos Thalbergs e dos Litz. Conhece o nosso Sebastião? -- perguntou a Bazilio.
-- Não, não conheço.
-- Uma perola!
Bazilio tinha-se aproximado do piano devagar, frisando o bigode.
-- Tu ainda cantas? -- perguntou-lhe Luiza, sorrindo.
-- Quando estou só.
Mas o conselheiro pediu-lhe logo um «trecho». Bazilio ria. Tinha medo d'escandalisar um velho assignante de S. Carlos...
O conselheiro animou-o; disse mesmo paternalmente:
-- Coragem, snr. Brito, coragem!
Luiza então preludiou.
E Bazilio soltou logo a voz, cheia, bem timbrada, de barytono; as suas notas altas faziam a sala sonora. O conselheiro, direito na poltrona, escutava concentrado; a sua testa, franzida n'um vinco, parecia curvar-se sob uma responsabilidade de juiz; e as lunetas defumadas destacavam, com reflexos escuros, n'aquella physionomia de calvo, que o calor tornava mais pallida.
Bazilio dizia com uma melancolia grave a primeira phrase, tão larga, da canção:
Igual ao mar sombrio
Meu coração profundo...
Um poeta, com uma dedicação obscura, traduzira a letra no Almanach das Senhoras. Luiza pela sua propria mão a tinha copiado nas entrelinhas da musica. E Bazilio debruçado sobre o papel sempre torcendo as pontas do bigode:
Tem tempestades, coleras,
Mas perolas no fundo!
Os olhos largos de Luiza affirmavam-se para a musica -- ou a espaços, com um movimento rapido, erguiam-se para Bazilio. Quando, na nota final, prolongada como a reclamação d'um amor supplicante, Bazilio soltou a voz d'um modo appellativo:
Vem! vem
Pousar, ó dôce amada,
Teu peito contra o meu...
os seus olhos fixaram-se n'ella com uma significação de tanto desejo, que o peito de Luiza arfou, os seus dedos embrulharam-se no teclado.
O conselheiro bateu as palmas.
-- Uma voz admiravel! -- exclamava -- Uma voz admiravel!
Bazilio dizia-se envergonhado.
-- Não, senhor, não, senhor! -- protestou Accacio, levantando-se. -- Um excellente orgão! Direi, o melhor orgão da nossa sociedade!
Bazilio riu. Uma vez que tinha successo, então ia dizer-lhes uma modinha brazileira da Bahia. Sentou-se ao piano, e depois de ter preludiado uma melodia muito balançada, d'um embalado tropical, cantou:
Sou negrinha, mas meu peito
Sente mais que um peito branco.
E interrompendo-se:
-- Isto fazia furor nas reuniões da Bahia quando eu parti.
Era a historia d'uma «negrinha» nascida na roça, e que contava, com lyrismos d'almanach, a sua paixão por um feitor branco.
Bazilio parodiava o tom sentimental d'alguma menina bahiana; e a sua voz tinha uma preciosidade comica, quando dizia o ritornello choroso:
E a negra p'ra os mares
Seus olhos alonga;
No alto coqueiro
Cantava a araponga.
O conselheiro achou «delicioso»; e, de pé na sala, lamentou a proposito da cantiga a condição dos escravos. Que lhe affirmavam amigos do Brazil que os negros eram muito bem tratados. Mas emfim a civilisação era a civilisação! E a escravatura era um estigma! Tinha todavia muita confiança no imperador...
-- Monarcha de rara illustração... -- acrescentou respeitosamente.
Foi buscar o seu chapéo, e collando-lhe as abas ao peito, curvando-se, jurou que -- havia muito tempo não tinha passado uma manhã tão completa. De resto para elle nada havia como a boa conversação e a boa musica...
-- Onde está v. exc.a alojado, snr. Brito?
Pelo amor de Deus! Que não se incommodasse! Estava no Hotel Central.
Não havia considerações que o impedissem de cumprir o seu dever -- declarou. -- Cumpril-o-hia! Elle era uma pessoa inutil, a snr.a D. Luiza bem o sabia. -- Mas se necessitar alguma cousa, uma informação, uma apresentação nas regiões officiaes, licença para visitar algum estabelecimento publico, creia que me tem ás suas ordens!
E conservando na sua mão a mão de Bazilio:
-- Rua do Ferregial de Cima numero tres, terceiro. O modesto tugurio d'um ermita.
Tornou a curvar-se diante de Luiza:
-- E quando escrever ao nosso viajante, que faço sinceros votos pela prosperidade dos seus emprehendimentos. Por quem é! Criado de v. exc.a!
E direito, grave, sahiu.
-- Este ao menos é limpo -- resmungou Bazilio, com o charuto ao canto da bocca.
Sentára-se outra vez ao piano, corria os dedos pelo teclado. Luiza aproximou-se:
-- Canta alguma cousa, Bazilio!
Bazilio pôz-se então a olhar muito para ella.
Luiza córou, sorriu; através da fazenda clara e transparente do vestido, entrevia-se a brancura macia e lactea do collo e dos braços; e nos seus olhos, na côr quente do rosto havia uma animação e como uma vitalidade amorosa.
Bazilio disse-lhe, baixo:
-- Estás hoje nos teus dias felizes, Luiza.
O olhar d'elle, tão avido, perturbava-a; insistiu:
-- Canta alguma cousa.
O seu seio arfava.
-- Canta tu -- murmurou Bazilio.
E devagarinho, tomou-lhe a mão. As duas palmas um pouco humidas, um pouco tremulas, uniram-se.
A campainha, fóra, tocou. Luiza desprendeu a mão bruscamente.
-- É alguem -- disse agitada.
Vozes baixas fallavam á cancella.
Bazilio teve um movimento d'hombros contrariado, foi buscar o chapéo.
-- Vaes-te? -- exclamou ella toda desconsolada.
-- Pudera! Não posso estar só comtigo um momento!
A cancella fechou-se com ruido.
-- Não é ninguem, foi-se -- disse Luiza.
Estavam de pé, no meio da sala.
-- Não te vás! Bazilio!
Os seus olhos profundos tinham uma supplicação dôce. Bazilio pousou o chapéo sobre o piano; mordia o bigode um pouco nervoso.
-- E para que queres tu estar só commigo? -- disse ella. -- Que tem que venha gente? -- E arrependeu-se logo d'aquellas palavras.
Mas Bazilio, com um movimento brusco, passou-lhe o braço sobre os hombros, prendeu-lhe a cabeça, e beijou-a na testa, nos olhos, nos cabellos, vorazmente.
Ella soltou-se a tremer, escarlate.
-- Perdôa-me -- exclamou elle logo, com um impeto apaixonado. -- Perdôa-me. Foi sem pensar. Mas é porque te adoro, Luiza!
Tomou-lhe as mãos com dominio, quasi com direito.
-- Não. Has-de ouvir. Desde o primeiro dia que te tornei a vêr estou doudo por ti, como d'antes, a mesma cousa. Nunca deixei de me morrer por ti. Mas não tinha fortuna, tu bem o sabes, e queria-te vêr rica, feliz. Não te podia levar para o Brazil. Era matar-te, meu amor! Tu imaginas lá o que aquillo é! Foi por isso que te escrevi aquella carta, mas o que eu soffri, as lagrimas que chorei!
Luiza escutava-o immovel, a cabeça baixa, o olhar esquecido; aquella voz quente e forte, de que recebia o bafo amoroso, dominava-a, vencia-a; as mãos de Bazilio penetravam com o seu calor febril a substancia das suas; e, tomada d'uma lassidão, sentia-se como adormecer.
-- Falla, responde! -- disse elle anciosamente, sacudindo-lhe as mãos, procurando o seu olhar avidamente.
-- Que queres que te diga? -- murmurou ella.
A sua voz tinha um tom abstracto, mal acordado.
E desprendendo-se devagar, voltando o rosto:
-- Fallemos n'outras cousas!
Elle balbuciava com os braços estendidos:
-- Luiza! Luiza!
-- Não, Bazilio, não!
E na sua voz havia o arrastado d'uma lamentação, com a molleza d'uma caricia.
Elle então não hesitou, prendeu-a nos braços.
Luiza ficou inerte, os beiços brancos, os olhos cerrados -- e Bazilio, pousando-lhe a mão sobre a testa, inclinou-lhe a cabeça para traz, beijou-lhe as palpebras devagar, a face, os labios depois muito profundamente; os beiços d'ella entreabriram-se, os seus joelhos dobraram-se.
Mas de repente todo o seu corpo se endireitou, com um pudor indignado, afastou o rosto, exclamou afflicta:
-- Deixa-me, deixa-me!
Viera-lhe uma força nervosa; desprendeu-se, empurrou-o; e passando as mãos abertas pela testa, pelos cabellos:
-- Oh meu Deus! É horrivel! -- murmurou. -- Deixa-me! É horrivel!
Elle adiantava-se com os dentes cerrados; mas Luiza recuava, dizia:
-- Vai-te. Que queres tu? Vai-te! Que fazes tu aqui? Deixa-me!
Elle então tranquillisou-a com a voz subitamente serena e humilde. Não percebia. Porque se zangava? Que tinha um beijo? Elle não pedia mais. Que tinha ella imaginado, então? Adorava-a, de certo, mas puramente.
-- Juro-t'o! -- disse com força, batendo no peito.
Fel-a sentar no sophá, sentou-se ao pé d'ella. Fallou-lhe muito sensatamente: -- Via as circumstancias, e resignar-se-hia. Seria como uma amizade d'irmãos, nada mais.
Ella escutava-o, esquecida.
De certo, dizia elle, aquella paixão era uma tortura immensa. Mas era forte, dominar-se-hia. Só queria vir vêl-a, fallar-lhe. Seria um sentimento ideal. -- E os seus olhos devoravam-na.
Voltou-lhe a mão, curvou-se, pôz-lhe um beijo cheio na palma. Ella estremeceu, ergueu-se logo:
-- Não! Vai-te!
-- Bem, adeus.
Levantou-se com um movimento resignado e infeliz. E limpando devagar a sêda do chapéo:
-- Bem, adeus -- repetiu melancolicamente.
-- Adeus.
Bazilio disse então com muita ternura:
-- Estás zangada?
-- Não!
-- Escuta -- murmurou, adiantando-se.
Luiza bateu com o pé.
-- Oh que homem! Deixa-me! Ámanhã. Adeus. Vai-te! Ámanhã!
-- Ámanhã! -- disse elle, baixinho.
E sahiu rapidamente.
Luiza entrou no quarto toda nervosa. E ao passar diante do espelho ficou surprehendida: nunca se vira tão linda! Deu alguns passos calada.
Juliana arrumava roupa branca n'um gavetão do guarda-vestidos.
-- Quem tocou ha bocado? -- perguntou Luiza.
-- Foi o snr. Sebastião. Não quiz entrar; disse que voltava.
Tinha dito, com effeito, «que voltava». Mas começava quasi a envergonhar-se de vir assim todos os dias, e encontral-a sempre «com uma visita»!
Logo no primeiro dia ficára muito surprehendido quando Juliana lhe disse: «Está com um sujeito! Um rapaz novo que já cá esteve hontem!» Quem seria? Conhecia todos os amigos da casa... Seria algum empregado da secretaria ou algum proprietario de minas, o filho do Alonso, talvez, um negocio de Jorge de certo...
Depois no domingo, á noite, trazia-lhe a partitura de Romeu e Julieta, de Gounod, que ella desejava tanto ouvir, e quando Juliana lhe disse da varanda «que tinha sahido com D. Felicidade de carruagem», ficou muito embaraçado com o grosso volume debaixo do braço, coçando devagar a barba. Onde teriam ido? Lembrou-se do enthusiasmo de D. Felicidade pelo theatro de D. Maria. Mas irem sós, n'aquelle calor de julho, ao theatro! Emfim, era possivel. Foi a D. Maria.
O theatro, quasi vazio, estava lugubre; aqui e além, n'algum camarote, uma familia feia perfilava-se, com cabellos negrissimos carregados de postiços, gozando soturnamente a sua noite de domingo: na platéa, á larga nas bancadas vazias, pessoas avelhadas e inexpressivas escutavam com um ar encalmado e farto, limpando a espaços, com lenços de sêda, o suor dos pescoços; na geral, gente de trabalho arregalava olhos negros em faces trigueiras e oleosas; a luz tinha um tom dormente; bocejava-se. E no palco, que representava uma sala de baile amarella, um velhote condecorado fallava a uma magrita de cabellos riçados, sem cessar, com o tom diluido de uma agua gordurosa e morna que escorre.
Sebastião sahiu. Onde estariam? Soube-o na manhã seguinte. -- Descia o Moinho de Vento, e um visinho, o Netto, que subia curvado sob o seu guarda-sol, com o cigarro ao canto do bigode grisalho, deteve-o bruscamente, para lhe dizer:
-- Ó amigo Sebastião, ouça cá. Vi hontem á noite no Passeio a D. Luiza com um rapaz que eu conheço. Mas d'onde conheço eu aquella cara? Quem diabo é?
Sebastião encolheu os hombros.
-- Um rapaz alto, bonito, com um ar estrangeirado. Eu conheço-o. N'outro dia vi-o entrar para lá. Vossê não sabe?
Não sabia.
-- Eu conheço aquella cara. Tenho estado a vêr se me recordo... -- Passava a mão pela testa. -- Eu conheço aquella cara! Elle é de Lisboa. De Lisboa é elle!
E depois d'um silencio, fazendo girar o guarda-sol:
-- E que ha de novo, Sebastião?
Tambem não sabia.
-- Nem eu!
E bocejando muito:
-- Isto está uma pasmaceira, homem!
N'essa tarde, ás quatro horas, Sebastião voltou a casa de Luiza. Estava com «o sujeito!» Ficou então preoccupado. De certo era algum negocio de Jorge; porque não comprehendia que ella fallasse, sentisse, vivesse, que não fosse no interesse da casa e para maior felicidade de Jorge. Mas devia ser grave então -- para reclamar visitas, encontros, tantas relações. Tinham pois interesses importantes que elle não conhecia! E aquillo parecia-lhe uma ingratidão, e como uma diminuição d'amizade.
A tia Joanna tinha-o achado «macambusio».
Foi ao outro dia que soube que o sujeito era o primo Bazilio, o Bazilio de Brito. O seu vago desgosto dissipou-se, mas um receio mais definido veio inquietal-o.
Sebastião não conhecia Bazilio pessoalmente, mas sabia a chronica da sua mocidade. Não havia n'ella certamente, nem escandalo excepcional, nem romance pungente. Bazilio tinha sido apenas um pandigo e, como tal, passára methodicamente por todos os episodios classicos da estroinice lisboeta: -- partidas de monte até de madrugada com ricaços do Alemtejo; uma tipoia despedaçada n'um sabbado de touros; ceias repetidas com alguma velha Lola e uma antiga salada de lagosta; algumas pégas applaudidas em Salvaterra ou na Alhandra; noitadas de bacalhau e Collares nas tabernas fadistas; muita guitarra; sôcos bem jogados á face attonita d'um policia; e uma profusão de gemas d'ovos nas glorias do entrudo. As unicas mulheres mesmo que appareciam na sua historia, além das Lolas e das Carmens usuaes, eram a Pistelli, uma dançarina allemã cujas pernas tinham uma musculatura d'athleta, e a condessinha d'Alvim, uma douda, grande cavalleira, que se separára de seu marido depois de o ter chicotado, e que se vestia d'homem para bater ella mesmo em trem de praça do Rocio ao Dá-fundo. Mas isto bastava para que Sebastião o achasse um debochado, um perdido; ouvira que elle tinha ido para o Brazil para fugir aos credores; que enriquecera por acaso, n'uma especulação, no Paraguay; que mesmo na Bahia, com a corda na garganta, nunca fôra um trabalhador; e suppunha que a posse da fortuna para elle, seria apenas um desenvolvimento dos vicios. E este homem agora vinha vêr a Luizinha todos os dias, estava horas e horas, seguia-a ao Passeio...
Para que?... Era claro, para a desinquietar!
Ia justamente descendo a rua, dobrado sob a pesada desconsolação d'estas idéas, quando uma voz encatarrhoada disse com respeito:
-- Ó snr. Sebastião!
Era o Paula dos moveis.
-- Viva, snr. João.
O Paula atirou para as pedras da rua um jacto escuro de saliva, e com as mãos cruzadas debaixo das abas do comprido casaco de cotim, o tom grave:
-- Ó snr. Sebastião, ha doença cá por casa do snr. Engenheiro?
Sebastião todo surprehendido:
-- Não. Porque?
O Paula fez roncar a garganta, cuspilhou:
-- É que tenho visto entrar para cá todos os dias um sujeito. Imaginei que fosse o medico.
E puxando o escarro:
-- D'esses novos da homœopathia!
Sebastião tinha córado.
-- Nada -- disse. -- É o primo de D. Luiza.
-- Ah! -- fez o Paula. -- Pois pensei... Queira desculpar, snr. Sebastião.
E curvou-se, respeitosamente.
-- Já temos fallatorio! -- foi pensando Sebastião.
E entrou em casa, descontente.
Morava ao fundo da rua, n'um predio seu, de construcção antiga, com quintal.
Sebastião era só. Tinha uma fortuna pequena em inscripções, terras de lavoura para o lado do Seixal, e a quinta em Almada, -- o Rozegal. As duas criadas eram muito antigas na casa. A Vicencia, a cozinheira, era uma preta de S. Thomé já do tempo da mamã. A tia Joanna, a governanta, servia-o havia trinta e cinco annos; chamava ainda a Sebastião o «menino»; tinha já as tontices d'uma criança, e recebia sempre os respeitos d'uma avó. Era do Porto, do Poârto, como ella dizia, porque nunca perdera o seu accento minhôto. Os amigos de Sebastião chamavam-lhe uma velha de comedia. Era baixinha e gorda, com um sorriso muito bondoso; tinha os cabellos alvos como uma estriga, atados no alto n'um rolinho com um antigo pente de tartaruga; trazia sempre um vasto lenço branco muito aceado, traçado sobre o peito. E todo o dia passarinhava pela casa, com o seu passinho arrastado, fazendo tilintar os mólhos de chaves, resmungando proverbios, tomando rapé de uma caixa redonda, em cuja tampa se lascava o desenho abonecado da ponte pensil do Porto.
Em toda a casa havia um tom caturra e dôce: na sala de visitas, quasi sempre fechada, o vasto canapé, as poltronas tinham o ar empertigado do tempo do snr. D. José I, e os estofos de damasco vermelho desbotado lembravam a pompa d'uma côrte decrepita; das paredes da casa de jantar pendiam as primeiras gravuras das batalhas de Napoleão, onde se vê invariavelmente, n'uma eminencia, o cavallo branco, para o qual galopa desenfreadamente do primeiro plano um hussard, brandido um sabre. Sebastião dormia os seus somnos de sete horas, sem sonhos, n'uma velha barra de pau preto torneado; e n'uma saleta escura, sobre uma commoda de fecharias de metal amarello, conservava-se, havia annos, o padroeiro da casa, S. Sebastião -- que se torcia, cravado de settas, nas cordas que o atavam ao tronco, á luz d'uma lampada muito cuidada pela tia Joanna, sob os ruidos subtis dos ratos pelo forro.
A casa condizia com o dono. Sebastião tinha um genio antiquado. Era solitario e acanhado. Já no latim lhe chamavam o pelludo; punham-lhe rabos, roubavam-lhe impudentemente as merendas. Sebastião, que tinha a força d'um gymnasta, offerecia a resignação d'um martyr.
Foi sempre reprovado nos primeiros exames do lyceu. Era intelligente, mas uma pergunta, o reluzir dos oculos d'um professor, a grande lousa negra immobilisavam-o; ficava muito embezerrado, a face inchada e rubra, a coçar os joelhos, o olhar vazio.
Sua mãi, que era da aldêa e que fôra padeira, muito vaidosa agora das suas inscripções, da sua quinta, da sua mobilia de damasco, sempre vestida de sêda, carregada d'anneis, costumava dizer:
-- Ora! tem que comer e beber! Estar a affligir a criança com estudos! Deixa lá, deixa lá!
A inclinação de Sebastião era pela musica. Sua mãi, por conselhos da mãi de Jorge, sua visinha e sua intima, tomou-lhe um mestre de piano; logo desde as primeiras lições, a que ella assistia com enfeites de velludo vermelho e cheia de joias, o velho professor Achilles Bentes, d'oculos redondos e cara de coruja, exclamou excitado com a sua voz nasal:
-- Minha rica senhora! o seu menino é um genio! É um genio! Ha-de ser um Rossini! É puxar por elle! É puxar por elle!
Mas era justamente o que ella não queria, era puxar por elle, coitadinho! Por isso não foi um Rossini. E todavia o velho Bentes continuava a dizer, por habito:
-- Ha-de ser um Rossini! Ha-de ser um Rossini!
Sómente em lugar de o gritar, brandindo papeis de musica, murmurava-o, com bocejos enormes de leão enfastiado.
Já então os dous rapazes visinhos, Jorge e Sebastião, eram intimos. Jorge mais vivo, mais inventivo, dominava-o. No quintal, a brincar, Sebastião era sempre o cavallo nas imitações da diligencia, o vencido nas guerras. Era Sebastião que carregava os pesos, que offerecia o dorso para Jorge trepar; nas merendas comia todo o pão, deixava a Jorge toda a fruta. Cresceram. E aquella amizade sempre igual, sem amúos, tornou-se na vida d'ambos um interesse essencial e permanente.
Quando a mãi de Jorge morreu, pensaram mesmo em viver juntos; habitariam a casa de Sebastião, mais larga e que tinha quintal; Jorge queria comprar um cavallo; mas conheceu Luiza no Passeio, e d'ahi a dous mezes passava quasi todo o seu dia na rua da Magdalena.
Todo aquelle plano jovial da Sociedade Sebastião e Jorge -- chamavam-lhe assim, rindo -- desabou, como um castello de cartas. Sebastião teve um grande pezar.
E era elle, depois, que fornecia os ramos de rosas que Jorge levava a Luiza, sem espinhos, com cuidados devotos embrulhados n'um papel de sêda. Era elle que tratava dos arranjos do «ninho», ia apressar os estofadores, discutir preços de roupas, vigiar o trabalho dos homens que pregavam os tapetes, conferenciar com a inculcadeira, cuidar dos papeis do casamento!
E á noite, fatigado como um procurador zeloso, tinha ainda de escutar com um sorriso as expansões felizes de Jorge, que passeava pelo quarto até ás duas horas da noite em mangas de camisa, namorado, loquaz, brandindo o cachimbo!
Depois do casamento Sebastião sentiu-se muito só. Foi a Portel visitar um tio, um velho exquisito, com um olhar de doudo, que passava a existencia combinando enxertos no pomar, e lendo, relendo o Eurico. Quando voltou, passado um mez, Jorge disse-lhe radioso:
-- E sabes, hein? Isto agora é que é a tua casa! Aqui é que tu vives!
Mas nunca obteve de Sebastião que fosse a sua casa com uma inteira intimidade. Sebastião batia á porta, timidamente. Corava diante de Luiza; o antigo pelludo de latim reapparecia. Jorge luctára para que elle cruzasse sem ceremonia as pernas, fumasse cachimbo diante d'ella, não lhe dissesse a todo o momento: -- V. exc.a, v. exc.a -- meio erguido na cadeira.
Nunca vinha jantar senão arrastado. Quando Jorge não estava, as suas visitas eram curtas, cheias de silencio. Julgava-se gebo, tinha medo de massar!
N'essa tarde, quando elle foi para a sala de jantar, a tia Joanna veio-lhe perguntar pela Luizinha.
Adorava-a, achava-a um anjinho, uma açucena.
-- Como está ella? viu-a?
Sebastião corou, não quiz dizer, como na vespera, «que estava gente, que não tinha entrado»; e abaixando-se, pondo-se a brincar com as orelhas do Trajano, o seu velho perdigueiro:
-- Está boa, tia Joanna, está boa. Então como ha-de d'estar? Está optima!
Áquella hora Luiza recebia uma carta de Jorge. Era de Portel, com muitas queixas sobre o calor, sobre as más estalagens, historias sobre o extraordinario parente de Sebastião, -- saudades e mil beijos...
Não a esperava, e aquella folha de papel cheia d'uma letra miudinha, que lhe fazia reapparecer vivamente Jorge, a sua figura, o seu olhar, a sua ternura, deu-lhe uma sensação quasi dolorosa. Toda a vergonha dos seus desfallecimentos cobardes, sob os beijos de Bazilio, veio abrazar-lhe as faces. Que horror deixar-se abraçar, apertar! No sophá o que elle lhe dissera, com que olhos a devorára!... Recordava tudo, -- a sua attitude, o calor das suas mãos, a tremura da sua voz... E machinalmente, pouco e pouco, ia-se esquecendo n'aquellas recordações, abandonando-se-lhe, até ficar perdida na deliciosa lassidão que ellas lhe davam, com o olhar languido, os braços frouxos. Mas a idéa de Jorge vinha então outra vez fustigal-a como uma chicotada. Erguia-se bruscamente, passeava pelo quarto toda nervosa, com uma vaga vontade de chorar...
-- Ah! não! é horroroso, é horroroso! -- dizia só, fallando alto. -- É necessario acabar!
Resolveu não receber Bazilio, escrever-lhe, pedir-lhe que não voltasse, que partisse! Meditava mesmo as palavras; seria sêcca e fria, não diria meu querido primo, mas simplesmente primo Bazilio.
E que faria elle, quando recebesse a carta? Choraria, coitado!
Imaginava-o só, no seu quarto d'hotel, infeliz e pallido; e d'aqui, pelos declives da sensibilidade, passava á recordação da sua pessoa, da sua voz convincente, das turbações do seu olhar dominante, e a memoria demorava-se n'aquellas lembranças com uma sensação de felicidade, como a mão se esquece acariciando a plumagem dôce d'um passaro raro. Sacudia a cabeça com impaciencia, como se aquellas imaginações fossem os ferrões d'insectos importunos: esforçava-se por pensar só em Jorge; mas as idéas más voltavam, mordiam-na: e achava-se desgraçada, sem saber o que queria, com vontades confusas de estar com Jorge, de consultar Leopoldina, de fugir para longe, ao acaso. Jesus, que infeliz que era! -- E do fundo da sua natureza de preguiçosa vinha-lhe uma indefinida indignação contra Jorge, contra Bazilio, contra os sentimentos, contra os deveres, contra tudo o que a fazia agitar-se e soffrer. Que a não seccassem, Santo Deus!
Depois de jantar, á janella da sala, ficou a relêr a carta de Jorge. Pôz-se a recordar de proposito tudo o que a encantava n'elle, do seu corpo e das suas qualidades. E juntava ao acaso argumentos, uns de honra, outros de sentimento, para o amar, para o respeitar. Tudo era por elle estar fóra, na provincia! Se elle alli estivesse ao pé d'ella! Mas tão longe, e demorar-se tanto! E ao mesmo tempo, contra sua vontade, a certeza d'aquella ausencia dava-lhe uma sensação de liberdade; a idéa de se poder mover á vontade nos desejos, nas curiosidades, enchia-lhe o peito d'um contentamente largo, como uma lufada de independencia.
Mas emfim, vamos, de que lhe servia estar livre, só? -- E de repente tudo o que poderia fazer, sentir, possuir, lhe apparecia n'uma perspectiva longa que fulgurava: aquillo era como uma porta, subitamente aberta e fechada, que deixa entrever, n'um relance, alguma cousa de indefinido, de maravilhoso, que palpita e faisca. -- Oh! estava douda, de certo!
Escureceu. Foi para a sala, abriu a janella; a noite estava quente e espessa, com um ar d'electricidade e de trovoada. Respirava mal, olhava para o céo, desejando alguma cousa fortemente, sem saber o quê.
O moço do padeiro em baixo, como sempre, tocava o fado; aquelles sons banaes entravam-lhe agora na alma, com a brandura d'um bafo quente e a melancolia de um gemido.
Encostou a cabeça á mão com uma lassidão. Mil pensamentosinhos corriam-lhe no cerebro como os pontos de luz que correm n'um papel que se queimou; lembrava-lhe sua mãi, o chapéo novo que lhe mandára madame François, o tempo que faria em Cintra, a doçura das noites quentes sob a escuridão das ramagens...
Fechou a janella, espreguiçou-se; e sentada na causeuse, no seu quarto, ficou alli, n'uma immobilidade, pensando em Jorge, em lhe escrever, em lhe pedir que viesse. Mas bem depressa aquelle scismar começou a quebrar-se a cada momento como uma tela que se esgaça em rasgões largos, e por traz apparecia logo com uma intensidade luminosa e forte a idéa do primo Bazilio.
As viagens, os mares atravessados tinham-no tornado mais trigueiro; a melancolia da separação dera-lhe cabellos brancos. Tinha soffrido por ella! -- dissera. -- E no fim onde estava o mal? Elle jurára-lhe que aquelle amor era casto, passando-se todo na alma. Tinha vindo de Paris, o pobre rapaz, assim lh'o jurára, para a vêr, uma semana, quinze dias. E havia de dizer-lhe: -- Não voltes, vai-te?
-- Quando a senhora quizer o chá... -- disse da porta do quarto Juliana.
Luiza deu um suspiro alto como acordando. Não; que trouxesse a lamparina, mais tarde.
Eram dez horas. Juliana foi tomar o seu chá, á cozinha. O lume ia-se apagando, o candieiro de petroleo estendia nos cobres dos tachos reflexos avermelhados.
-- Hoje houve cousa, snr.a Joanna -- disse Juliana sentando-se. -- Está toda no ar! E é cada suspiro! Alli houve-a e grossa.
Joanna, do outro lado, com os cotovêlos na mesa e a face sobre os punhos, pestanejava de somno.
-- A snr.a Juliana, tambem, deita tudo para o mal -- disse.
-- É que era necessario ser tola, snr.a Joanna!
Calou-se, cheirou o assucar; era um dos seus despeitos; gostava d'elle bem refinado -- e aquelle assucar mascavado e grosso, que punha no chá um gosto de formigas, exasperava-a.
-- Este é peor que o do mez passado! Para uma pobre de Christo tudo é bom! -- rosnou muito amargamente.
E depois d'uma pausa repetiu:
-- É que era necessario ser tola, snr.a Joanna!
A cozinheira disse preguiçosamente:
-- Cada um sabe de si...
-- E Deus de todos -- suspirou Juliana.
E ficaram caladas.
Luiza tocou a campainha em baixo.
-- Que teremos nós agora? Está com as cocegas!
Desceu. Voltou com o regador, muito enfastiada:
-- Quer mais agua! Olha a mania, pôr-se agora a chafurdar á meia noite! Sempre a gente as vê...
Foi encher o regador, e em quanto a agua da torneira cantava no fundo de lata:
-- E diz que lhe faça ámanhã ao almoço um bocado de presunto frito, do salgado. Quer picantes!
E com muito escarneo:
-- Sempre a gente vê cousas! Quer picantes!
Á meia noite a casa estava adormecida e apagada. Fóra, o céo ennegrecera mais; relampejou, e um trovão secco estalou, rolou.
Luiza abriu os olhos estremunhada; começára a cahir uma chuva grossa e sonora; a trovoada arrastava-se, ao longe. Esteve um momento escutando as goteiras que cantavam sobre o lagedo; a alcova abafava, descobriu-se; o somno tinha fugido, e de costas, o olhar fixo na vaga claridade que vinha de fóra da lamparina, seguia o tic-tac do relogio. Espreguiçou-se, e uma certa idéa, uma certa visão foi-se formando no seu cerebro, completando-se, tão nitida, quasi tão visivel, que se revirou na cama devagar, estirou os braços, lançou-os em roda do travesseiro, adiantando os beiços seccos -- para beijar uns cabellos negros onde reluziam fios brancos.
Sebastião tinha dormido mal. Acordou ás seis horas e desceu ao quintal em chinellas. Uma porta envidraçada da sala de jantar abria para um terraçosinho, largo apenas para tres cadeiras de ferro pintado e alguns vasos de cravos; d'alli, quatro degraus de pedra desciam para o quintal; era uma horta ajardinada, muito cheia, com canteirinhos de flôres, saladas muito regadas, pés de roseiras junto dos muros, um poço e um tanque debaixo d'uma parreirita, e arvores; terminava por outro terraço assombreado d'uma tilia, com um parapeito para uma rua baixa e solitaria; defronte corria um muro de quintal muito caiado. Era um sitio recolhido, d'uma paz aldeã. Muitas vezes Sebastião, de madrugada, ia para alli fumar o seu cigarro.
Era uma manhã deliciosa. Havia um ar transparente e fino; o céo arredondava-se a uma grande altura com o azulado de certas porcelanas velhas e, aqui e além, uma nuvemzinha algodoada, mollemente enrolada, côr de leite; a folhagem tinha um verde lavado, a agua do tanque uma crystallinidade fria; passaros chilreavam de leve, com vôos rapidos.
Sebastião estava debruçado para a rua, quando a ponteira d'uma bengala, passos vagarosos cortaram o silencio fresco. Era um visinho de Jorge, o Cunha Rosado, o doente d'intestinos; arrastava-se, curvado, abafado n'um cachenez e n'um paletot côr de pinhão, com a barba grisalha desmazelada, a crescer.
-- Já a pé, visinho! -- disse Sebastião.
O outro parou, ergueu a cabeça lentamente.
-- Oh Sebastião! -- disse com uma voz plangente -- Ando a passear os meus leites, homem!
-- A pé?
-- Ao principio ia na burrita até fóra de portas, mas diz que me fazia bem o passeiosito a pé...
Encolheu os hombros com um gesto triste de duvida, de desconsolação.
-- E como vai isso? -- perguntou Sebastião, muito debruçado para a rua, com affecto.
O Cunha teve um sorriso desolado nos seus beiços brancos:
-- A desfazer-se!
Sebastião tossiu, embaraçado, sem achar uma consolação.
Mas o doente, com as duas mãos apoiadas á bengala, uma subita radiação d'interesse no olhar amortecido:
-- Ó Sebastião, um rapaz alto, que eu tenho visto todos estes dias entrar para casa do Jorge, é o Bazilio de Brito, pois não é? O primo da mulher? o filho do João de Brito?
-- É, sim, porque?
O Cunha fez: Ah! ah! com uma grande satisfação.
-- Bem dizia eu! -- exclamou. -- Bem dizia eu! E aquella teimosa que não! que não!...
E então explicou com uma tagarellice subita, e cansaços de voz:
-- O meu quarto é para a rua, e todos os dias, como eu estou quasi sempre pela janella para espairecer... tenho visto aquelle rapaz, a modo estrangeirado, entrar para lá... todos os dias! Este é o Bazilio de Brito! disse eu. Mas minha mulher que não! que não!... Que diabo, homem! Eu tinha quasi a certeza... Não conheço eu outra cousa!... Até elle esteve para casar com a D. Luiza. Oh! Eu sei essa historia na ponta dos dedos... Morava ella na rua da Magdalena!...
Sebastião disse vagamente:
-- Pois é, é o Brito...
-- Bem dizia eu!
Ficou um momento immovel, fitando o chão, e refazendo uma voz dolente:
-- Pois, vou-me arrastando até casa.
Suspirou. E arregalando os olhos:
-- Quem me dera a sua saude, Sebastião!
E dizendo adeus, com um gesto da mão calçada de luva de casimira escura, afastou-se, curvado, rente do muro, conchegando com o braço ao ventre, o seu largo paletot côr de pinhão.
Sebastião entrou preoccupado. Todo o mundo começava a reparar, hein! Pudera! Um rapaz novo, janota, vir todos os dias de trem, estar duas, tres horas! Uma visinhança tão chegada, tão maligna!...
Ao começo da tarde sahiu. Teve vontade de procurar Luiza; mas sem saber porque, sentia um grande acanhamento; como que receava encontral-a differente ou com outra expressão... E subia a rua devagar, sob o seu guarda-sol, hesitando, quando um coupé que descia a trote largo veio parar á porta de Luiza.
Um sujeito saltou rapidamente, atirou o charuto, entrou. Era alto, com um bigode levantado, trazia uma flôr no peito; devia ser o primo Bazilio, pensou. O cocheiro limpou o suor da testa, e, cruzando as pernas, pôz-se a enrolar o cigarro.
Ao ruido do trem o Paula postou-se logo á porta, de boné carregado, as mãos enterradas no bolso, com olhares de revés: a carvoeira defronte, immunda, disforme de obesidade e de prenhez, veio embasbacar com um pasmo lôrpa na face oleosa; a criada do doutor abriu precipitadamente a vidraça. Então o Paula atravessou rapidamente a rua faiscante de sol, entrou no estanque; d'ahi a um momento appareceu á porta, com a estanqueira, de carão viuvo; e cochichavam, cravavam olhares perfidos nas varandas de Luiza, no coupé! O Paula, d'alli, arrastando as chinellas de tapete, foi segredar com a carvoeira, provocou-lhe uma risada que lhe sacudia a massa do seio; e foi emfim estacar á sua porta entre um retrato de D. João VI e duas velhas cadeiras de couro, assobiando com jubilo. No silencio da rua ouvia-se n'um piano, a compasso de estudo, a Oração d'uma virgem.
Sebastião ao passar olhou machinalmente para as janellas de Luiza.
-- Rico calor, snr. Sebastião! -- observou o Paula curvando-se -- É um regalo estar á fresca!
Luiza e Bazilio estavam muito tranquillos, muito felizes na sala, com as portadas meio cerradas, n'uma penumbra dôce. Luiza tinha apparecido de roupão branco, muito fresca, com um bom cheiro de agua d'alfazema.
-- Eu venho assim mesmo -- disse ella. -- Não faço ceremonias.
Mas assim é que ella estava linda! Assim é que a queria sempre! -- exclamava Bazilio muito contente, como se aquelle roupão de manhã fosse já uma promessa da sua nudez.
Vinha muito tranquillo, affectava um tom de parente. Não a inquietou com palavras vehementes, nem com gestos desejosos: fallou-lhe do calor, d'uma zarzuela que vira na vespera, de velhos amigos que encontrára, e disse-lhe apenas que tinha sonhado com ella.
O que? Que estavam longe, n'uma terra distante, que devia ser a Italia, tantas as estatuas que havia nas praças, tantas as fontes sonoras que cantavam nas bacias de marmore; era n'um jardim antigo, sobre um terraço classico; flôres raras transbordavam de vasos florentinos; pousando sobre as balaustradas esculpidas, pavões abriam as caudas; e ella arrastava devagar sobre as lages quadradas a cauda longa do seu vestido de velludo azul. De resto, dizia, era um terraço como o de S. Donato, a villa do principe Demidoff, -- porque lembrava sempre as suas intimidades illustres, e não se descuidava de fazer reluzir a gloria das suas viagens.
E ella, tinha sonhado?
Luiza córou. -- Não, tinha tido muito medo da trovoada. Tinha ouvido a trovoada, elle?
-- Estava a cear no Gremio, quando trovejou.
-- Costumas cear?
Elle teve um sorriso infeliz. -- Cear! se se podia chamar cear ir ao Gremio rilhar um bife corneo e tragar um Collares peçonhento!
E fitando-a:
-- Por tua causa, ingrata!
Por sua causa?
-- Por quem, então? Porque vim eu a Lisboa? Porque deixei Paris?
-- Por causa dos teus negocios...
Elle encarou-a severamente:
-- Obrigado -- disse, curvando-se até ao chão.
E a grandes passadas pela sala soprava violentamente o fumo do seu charuto.
Veio sentar-se bruscamente ao pé d'ella. -- Não, realmente era injusta. Se estava em Lisboa, era por ella. Só por ella!
Fez uma voz meiga, perguntou-lhe se lhe tinha realmente um bocadinho d'amor muito pequenino, assim... -- Mostrava o comprimento da unha.
Riram.
-- Assim, talvez.
E o peito de Luiza arfava.
Elle então examinou-lhe as unhas; admirou-lh'as e aconselhou-lhe o verniz que usam as cocottes, que lhes dá um lustre polido; ia-se apossando da sua mão, pôz-lhe um beijo na ponta dos dedos; chupou o dedo minimo, jurou que era muito dôce; arranjou-lhe com um contacto muito timido uns fios de cabello que se tinham soltado, -- e, disse, tinha um pedido a fazer-lhe!
Olhava-a com uma supplicação.
-- Que é?
-- É que venhas commigo ao campo. Deve estar lindo no campo!
Ella não respondeu; dava pancadinhas leves nas pregas molles do roupão.
-- É muito simples -- acrescentou elle. -- Tu vaes-me encontrar a qualquer parte, longe d'aqui, está claro. Eu estou á espera de ti com uma carruagem, tu saltas para dentro e fouette, cocher!
Luiza hesitava.
-- Não digas que não.
-- Mas onde?
-- Onde tu quizeres. A Paço d'Arcos, a Loires, a Queluz. Dize que sim.
A sua voz era muito urgente, quasi ajoelhára.
-- Que tem? É um passeio d'amigos, d'irmãos.
-- Não! isso não!
Bazilio zangou-se, chamou-lhe beata. Quiz sahir. Ella veio tirar-lhe o chapéo da mão, muito meiga, quasi vencida.
-- Talvez, veremos -- dizia.
-- Dize que sim! -- insistia. -- Sê boa rapariga!
-- Pois sim, ámanhã veremos, ámanhã fallaremos.
Mas no dia seguinte, muito habilmente, Bazilio não fallou no passeio, nem no campo. Não fallou tambem do seu amor, nem dos seus desejos. Parecia muito alegre, muito superficial; tinha-lhe trazido o romance de Belot, A mulher de fogo. E sentando-se ao piano, disse-lhe canções de café concerto, muito picantes; imitava a rouquidão acre e canalha das cantoras; fel-a rir.
Depois fallou muito de Paris, contou-lhe a moderna chronica amorosa, anecdotas, paixões chics. Tudo se passava com duquezas, princezas, d'um modo dramatico e sensibilisador, ás vezes jovial, sempre cheio de delicias. E, de todas as mulheres de que fallava, dizia recostando-se: Era uma mulher distinctissima, tinha naturalmente o seu amante...
O adulterio apparecia assim um dever aristocratico. De resto a virtude parecia ser, pelo que elle contava, o defeito d'um espirito pequeno, ou a occupação reles d'um temperamento burguez...
E quando sahiu, disse, como recordando-se:
-- Sabes que estou com minhas idéas de partir?...
Ella perguntou, um pouco descorada:
-- Porque?
Bazilio disse, muito indifferente:
-- Que diabo faço eu aqui?...
Esteve um momento a fitar o tapete, deu um suspiro, e como dominando-se:
-- Adeus, meu amor...
E sahiu.
Quando n'essa tarde Luiza entrou na sala de jantar, levava os olhos vermelhos.
Foi ella no dia seguinte que fallou do campo. Queixou-se do contínuo calor, da sécca de Lisboa. Como devia estar lindo em Cintra!
-- És tu que não queres -- acudiu elle. -- Podiamos fazer um passeio adoravel.
Mas tinha medo, podiam vêr...
-- O quê! N'um coupé fechado? Com os stores descidos?
Mas então era peor que estar n'uma sala, era abafar n'uma bocêta!
Mas não! Iam a uma quinta. Podiam ir ás Alegrias, á quinta d'um amigo d'elle que estava em Londres. Só viviam lá os caseiros, era ao pé dos Olivaes, era lindo! Bellas ruas de loureiros, sombras adoraveis. Podiam levar gelo, champagne...
-- Vem! -- disse bruscamente, tomando-lhe as mãos.
Ella córou. -- Talvez. No domingo veria.
Bazilio conservava-lhe as mãos presas. Os seus olhos encontraram-se, humedeceram-se. Ella sentiu-se muito perturbada; desprendeu as mãos; foi abrir as vidraças ambas, dar á sala uma claridade larga como uma publicidade; sentou-se n'uma cadeira ao pé do piano, receando a penumbra, o sophá, todas as cumplicidades; e pediu-lhe que cantasse alguma cousa, porque já temia as palavras, tanto como os silencios! Bazilio cantou a Medjé, a melodia de Gounod, tão sensual e perturbadora. Aquellas notas quentes passavam-lhe na alma como bafos d'uma noite electrica. E quando Bazilio sahiu, ficou sentada, quebrada, como depois d'um excesso.
Sebastião tinha estado nos ultimos tres dias em Almada, na quinta do Rozegal, onde trazia obras. Voltára na segunda-feira cedo, e, pelas dez horas, sentado no poial da janella de jantar que abria para o terraçosinho, esperava o seu almoço, brincando com o Rolim -- o seu gato, amigo e confidente da illustre Vicencia, nedio como um prelado, ingrato como um tyranno.
A manhã começava a aquecer; o quintal estava já cheio de sol; na agua do tanque, sob a parreira, claridades espelhadas e tremulas faiscavam. Nas duas gaiolas os canarios cantavam estridentemente.
A tia Joanna, que andava a arranjar a mesa do almoço muito calada, poz-se então a dizer com a sua vozinha arrastada e minhôta:
-- Ora esteve ahi hontem a Gertrudes, a do doutor, com uns palratorios, com umas tontices!...
-- A respeito de quê, tia Joanna? -- perguntou Sebastião.
-- A respeito d'um rapaz, que diz que vai agora todos os dias a casa da Luizinha.
Sebastião ergueu-se logo:
-- Que disse ella, tia Joanna?
A velha assentava a toalha devagar com a sua mão gorducha espalmada:
-- Esteve ahi a palrar. Quem seria, quem não seria? Diz que é um perfeito rapaz. Vem todos os dias. Vem de trem, vai de trem... No sabbado que estivera até quasi á noitinha. E cantou-se na sala, diz que uma voz que nem no theatro...
Sebastião interrompeu-a, impaciente:
-- É o primo, tia Joanna. Então quem havia de ser? É o primo que chegou do Brazil.
A tia Joanna teve um bom sorriso.
-- Eu logo vi que era cousa de parente. Pois diz que é um perfeito rapaz! E todo janota!
E sahindo para a cozinha, devagar:
-- Eu logo vi que era parente, logo disse!...
Sebastião almoçou inquieto. Positivamente a visinhança já se punha a mexericar, a commentar! Estava-se a armar um escandalo! -- E, assustado, decidiu-se logo a ir consultar Julião.
Descia a rua de S. Roque para casa d'elle, quando o viu, que subia devagar pela sombra, com um rolo de papel debaixo do braço, uma calça branca enxovalhada, o ar suado.
-- Ia a tua casa, homem! -- disse Sebastião logo.
Julião estranhou a excitação desusada da sua voz.
Havia alguma novidade? Que era?
-- Uma do diabo! -- exclamou, baixo, Sebastião.
Estavam parados ao pé da confeitaria. Na vidraça, por traz d'elles, emprateleirava-se uma exposição de garrafas de malvasia com os seus letreiros muito coloridos, transparencias avermelhadas de gelatinas, amarellidões enjoativas de dôces d'ovos, e quéques d'um castanho escuro tendo espetados cravos tristes de papel branco ou côr de rosa. Velhas natas lividas amollentavam-se no ôco dos folhados; ladrilhos grossos de marmelada esbeiçavam-se ao calor; as empadinhas de marisco agglomeravam as suas crôstas resequidas. E no centro, muito proeminente n'uma travessa, enroscava-se uma lampreia d'ovos medonha e bojuda, com o ventre d'um amarello ascoroso, o dorso malhado d'arabescos d'assucar, a bocca escancarada: na sua cabeça grossa esbogalhavam-se dous horriveis olhos de chocolate; os seus dentes d'amendoa ferravam-se n'uma tangerina de chila; e em torno do monstro espapado moscas esvoaçavam.
-- Vamos alli para o café -- disse Julião. -- Aqui na rua arde-se!
-- Tenho estado apoquentado -- ia dizendo Sebastião. -- Muito apoquentado! Quero fallar-te.
No café o papel azul ferrete e as meias portas fechadas abatiam a aspera intensidade da luz, davam uma frescura calada.
Foram-se sentar ao fundo. Do outro lado da rua as fachadas muito caiadas brilhavam com uma radiação faiscante. Por traz do balcão, onde reluziam garrafas de crystal, um criado de jaquetão, estremunhado e esguedelhado, cabeceava de somno. Um passaro chilreava dentro; sentia-se o bater espaçado das bolas do bilhar através d'uma porta de baeta verde; ás vezes o pregão de um cangalheiro na rua sobresahia, e -- todos estes sons, por momentos, se perdiam no ruido forte do descer d'um trem travado.
Defronte d'elles um sujeito de ar debochado lia um jornal; as suas melenas grisalhas collavam-se a um craneo amarellado; o bigode tinha tons queimados do cigarro; e das noitadas ficára-lhe uma vermelhidão inflammada nas palpebras. De vez em quando erguia preguiçosamente a cabeça, atirava para o chão areado um jacto escuro de saliva, dava uma sacudidella triste ao jornal e tornava a fital-o com um olhar infeliz. Quando os dous entraram e pediram carapinhadas, abaixou-lhes gravemente a cabeça.
-- Mas o que é então? -- perguntou logo Julião.
Sebastião chegou-se mais para elle:
-- É por causa lá da nossa gente. Por causa do primo -- disse baixo.
E acrescentou:
-- Tu vistel-o, hein?
A lembrança repentina da sua humilhação na sala de Luiza trouxe um rubor ás faces de Julião. Mas muito orgulhoso, disse seccamente:
-- Vi.
-- E então?
-- Pareceu-me um asno! -- exclamou, não se contendo.
-- E um extravagante -- disse com terror Sebastião -- Não te pareceu, hein?
-- Pareceu-me um asno -- repetiu. -- Umas maneiras, uma affectação, um alambicado, a olhar muito para as meias, umas meias ridiculas de mulher...
E com um certo sorriso azedado:
-- Eu mostrei-lhe francamente as minhas botas. Estas -- disse, apontando para os botins mal engraxados -- tenho muita honra n'ellas, são de quem trabalha...
Porque publicamente costumava gloriar-se d'uma pobreza, que intimamente não cessava de o humilhar.
E remexendo devagar a sua carapinhada:
-- Uma besta! -- resumiu.
-- Tu sabes que elle foi namoro da Luiza? -- disse Sebastião, baixo, como assustado da gravidade da confidencia.
E respondendo logo ao olhar surprehendido de Julião:
-- Sim. Ninguem o sabe. Nem Jorge. Eu soube-o ha pouco, ha mezes. Foi. Estiveram para casar. Depois o pai falliu, elle foi para o Brazil, e de lá escreveu a romper o casamento.
Julião sorriu, e encostando a cabeça á parede:
-- Mas isso é o enredo da Eugenia Grandet, Sebastião! Estás-me a contar o romance de Balzac! Isso é a Eugenia Grandet!
Sebastião fitou-o espantado.
-- Ora! não se póde fallar serio comtigo. Dou-te a minha palavra d'honra -- acrescentou vivamente.
-- Vá, Sebastião, vá, dize.
Houve um silencio. O sujeito calvo, agora, contemplava o estuque do tecto sujo do fumo dos cigarros e do pousar das moscas; e, com a mão sapuda, de tom pegajoso, cofiava amorosamente as rêpas. No bilhar vozes altercavam.
Sebastião então, como tomado d'uma resolução, disse bruscamente:
-- E agora vai lá todos os dias, não sahe de lá!
Julião afastou-se na banqueta e encarou-o:
-- Tu queres-me dar a entender alguma cousa, Sebastião?
E com uma vivacidade quasi jovial:
-- O primo atira-se?
Aquella palavra escandalisou Sebastião.
-- Ó Julião! -- E severamente: -- Com essas cousas não se brinca!
Julião encolheu os hombros.
-- Mas está claro que se atira! -- exclamou. -- És de bom tempo ainda! Está claro que sim! Namorou-a solteira, agora quel-a casada!
-- Falla baixo -- acudiu Sebastião.
Mas o criado dormitava, e o sujeito calvo tinha recahido na sua leitura funebre.
Julião baixou a voz:
-- Mas é sempre assim, Sebastião. O primo Bazilio tem razão; quer o prazer sem a responsabilidade!
E quasi ao ouvido d'elle:
-- É de graça, amigo Sebastião! É de graça! Tu não imaginas que influencia isto tem no sentimento!
Riu-se. Estava radioso; as palavras, as pilherias vinham-lhe com abundancia:
-- Ha um marido que a veste, que a calça, que a alimenta, que a engomma, que a vela se está doente, que a atura se ella está nervosa, que tem todos os encargos, todos os tedios, todos os filhos, todos, todos os que vierem, sabes a lei... Por consequencia o primo não tem mais que chegar, bater ao ferrolho, encontra-a aceada, fresca, appetitosa á custa do marido, e...
Teve um risinho, recostou-se com uma grande satisfação, enrolando deliciosamente o cigarro, regosijando-se no escandalo.
-- É optimo! -- acrescentou. -- Todos os primos raciocinam assim. Bazilio é primo, logo... Sabes o syllogismo, Sebastião! Sabes o syllogismo, menino! -- gritou, dando-lhe uma palmada na perna.
-- É o diabo -- murmurou Sebastião cabisbaixo.
Mas revoltando-se contra a suspeita que o ia dominando:
-- Mas tu suppões que uma rapariga de bem...
-- Eu não supponho nada! -- acudiu Julião.
-- Falla baixo, homem!
-- Eu não supponho nada -- repetiu Julião baixinho. -- Eu affirmo o que elle faz. Agora ella...
E acrescentou com seccura:
-- Como é uma rapariga honesta...
-- Se é! -- exclamou Sebastião, batendo uma punhada na pedra da mesa.
-- Prompto! -- cantou arrastadamente o moço.
O velho calvo ergueu-se logo; mas vendo que o criado se recolhia ao balcão bocejando, e que os dous continuavam a remexer a sua carapinhada, encostou os cotovêlos á mesa, salivou para longe, e puxando o jornal deixou-lhe cahir em cima um olhar desolado.
Sebastião disse, então, com tristeza:
-- A questão não é por ella. A questão é pela visinhança.
Ficaram um momento calados. A altercação de vozes no bilhar crescia.
-- Mas -- disse Julião, como sahindo d'uma reflexão -- a visinhança? Como a visinhança?
-- Sim, homem! Vêem entrar para lá o rapaz. Vem de tipoia, faz um escandalo na rua. Já se falla. Já vieram com mexericos á tia Joanna. Ha dias encontrei o Netto que reparou. O Cunha tambem. O homem dos trastes, em baixo, não se faz nada que elle não dê fé: são umas linguas de tremer. Ha dias ia eu a passar quando o primo se apeou da carruagem para entrar, e foram logo conciliabulos na rua, olhadellas para a janella, o diabo! Vai lá todos os dias. Sabem que o Jorge está no Alemtejo... Está duas e tres horas. É muito serio, é muito serio!
-- Mas ella então é tola!
-- Não vê o mal...
Julião encolheu os hombros, duvidando.
Mas a porta de baeta do bilhar abriu-se; um homem herculeo, de bigode negro, muito escarlate, sahiu bruscamente, e parando, segurando a porta aberta, gritou para dentro:
-- E fique sabendo que havia d'encontrar homem!
Uma voz grossa, do bilhar, respondeu-lhe uma obscenidade.
O sujeito herculeo atirou a porta, furioso; atravessou o café resfolegando, apopletico; um rapaz chupado, de jaquetão de inverno e calça branca, seguia-o, com um ar gingado.
-- O que eu devia fazer -- exclamava o agigantado, brandindo o punho -- era quebrar a cara áquelle pulha!
O rapaz chupado, dizia, com doçura e servilismo, bamboleando-se:
-- Questões não servem para nada, sô Corrêa!
-- É que sou muito prudente -- berrou o herculeo. -- É que me lembro que tenho mulher e filhos! Senão bebia-lhe o sangue!
E sahindo, a sua voz roncante perdeu-se no rumor da rua.
O criado muito pallido, tremia dentro do balcão; e o sujeito calvo, que erguera a cabeça, teve um sorriso de tedio, e retomou tristemente o jornal.
Sebastião, então, disse reflectindo:
-- Não te parece que seria bom avisal-a?
Julião encolheu os hombros, soltou uma baforada de fumo.
-- Dize alguma cousa! -- implorou Sebastião -- Tu não ias fallar-lhe, hein?
-- Eu? -- exclamou Julião com um aspecto que repellia a idéa. -- Eu! Estás doudo!
-- Mas que te parece, emfim?
E a voz de Sebastião tinha quasi uma afflicção.
Julião hesitou:
-- Vai, se queres. Dize-lhe que se tem reparado... Emfim, eu não sei, meu amigo!
E pôz-se a chupar o seu cigarro.
Aquelle mutismo affectou Sebastião. Disse com desconsolação:
-- Homem, vim-te pedir um conselho...
-- Mas que diabo queres tu? -- E a voz de Julião irritava-se. -- A culpa é d'ella. É d'ella! -- insistiu, vendo o olhar de Sebastião. -- É uma mulher de vinte e cinco annos, casada ha quatro, deve saber que se não recebe todos os dias um peralvilho, n'uma rua pequena, com a visinhança a postos! Se o faz, é porque lhe agrada.
-- Ó Julião! -- disse muito severamente Sebastião.
E dominando-se, com a voz commovida:
-- Não tens razão, não tens razão!
Calou-se muito magoado.
Julião levantou-se.
-- Amigo Sebastião, eu digo o que penso, tu fazes o que entendes.
Chamou o criado.
-- Deixa -- disse Sebastião precipitadamente, pagando.
Iam sahir. Mas então o sujeito calvo, atirando o jornal, arremessou-se para a porta, abriu-a, curvou-se, e estendeu a Sebastião um papel enxovalhado.
Sebastião, surprehendido, leu alto, machinalmente:
«O abaixo assignado, antigo empregado da nação, reduzido á miseria...»
-- Fui intimo amigo do nobre duque de Saldanha! -- gemeu chorosamente, com uma rouquidão, o sujeito calvo.
Sebastião córou, comprimentou, metteu-lhe na mão duas placas de cinco tostões, discretamente.
O sujeito dobrou profundamente o espinhaço, e declamou com uma voz cava:
-- Mil agradecimentos a v. exc.a, snr. conde!
V
A manhã estava abrazadora. Um pouco depois do meio dia, Joanna, estirada n'uma velha cadeira de vime da ilha da Madeira que havia na cozinha, dormitava a sésta. Como madrugava muito, áquella hora da calma vinha-lhe sempre uma quebreira.
As janellas estavam cerradas ao sol faiscante; as panellas no lume faziam um ron-ron dormente; e toda a casa, muito silenciosa, parecia amodorroada no amollecimento do calor torrido, quando Juliana entrou como uma rajada, atirou para o chão, furiosa, uma braçada de roupa suja, e gritou:
-- Raios me partam se não ha um escandalo n'esta casa que vai tudo raso!
Joanna deu um salto estremunhada.
-- Quem quer as cousas em ordem olha por ellas! -- berrava a outra com os olhos injectados. -- Não é estar todo o dia na sala a palrar com as visitas!
A cozinheira foi fechar a porta precipitadamente, já assustada.
-- Que foi, snr.a Juliana, que foi?
-- Está com a mosca! Tem o sangue a ferver! Sangrias! sangrias! Tem peguilhado por tudo! Não estou para a aturar, não estou!
E batia o pé com phrenesi.
-- Mas que foi? que foi?
-- Diz que os collarinhos tinham pouca gomma, pôz-se a despropositar! Estou farta de a aturar! Estou farta! Estou até aqui! -- bradava, puxando a pelle engelhada da garganta. -- Pois que me não faça sahir de mim! Que me vou, e pespego-lhe na cara por quê! Desde que aqui temos homem e pouca vergonha, boas noites!... Quem quizer que se metta em alhadas...
-- Ó snr.a Juliana, pelo amor de Deus! Jesus! -- E a Joanna apertava a cabeça nas mãos. -- Ai, se a senhora ouve!
-- Que ouça, digo-lh'o na cara! Estou farta! estou farta!
Mas, de repente, fez-se branca como a cal, cahiu sobre a cadeira de vime com as duas mãos contra o coração, os olhos em alvo.
-- Snr.a Juliana! -- gritou Joanna -- Snr.a Juliana! Falle!
Borrifou-a d'agua; sacudia-a, anciosamente.
-- Nossa Senhora nos valha! Nossa Senhora nos valha! Está melhor? Falle!
Juliana deu um suspiro longo, d'allivio, cerrou as palpebras. E arquejava devagarinho, muito prostrada.
-- Como se sente? Quer um caldinho? É fraqueza, ha-de ser fraqueza...
-- Foi a pontada -- murmurou Juliana.
Ai! aquelles phrenesis matavam-na! -- dizia a cozinheira, remexendo-lhe o caldo, muito pallida tambem. -- A gente tinha d'aturar os amos! Que tomasse a sustancia, que socegasse!...
N'aquelle momento Luiza abriu a porta. Vinha em collete e saia branca.
Que barulho era aquelle?
-- A snr.a Juliana que lhe tinha dado uma cousa, quasi desmaiára...
-- Foi a pontada -- balbuciou Juliana.
E erguendo-se, com um esforço:
-- Se a senhora não precisa nada, vou ao medico...
-- Vá, vá! -- disse Luiza logo. E desceu.
Juliana pôz-se a tomar o seu caldo com um vagar moribundo. Joanna consolava-a baixo: -- Tambem, a snr.a Juliana arrenegava-se por qualquer cousa. E quando a gente tem pouca saude não ha nada peor que emphrenesiar-se...
-- É que não imagina! -- e abafava a voz arregalando os olhos -- Tem estado de não se poder aturar! Está-se a vestir que nem para uma partida! Amarfanhou uns poucos de collares, atirou-os para o chão, que eu engommava que era uma porcaria, que não servia para nada... Ai! Estou farta! -- repetia -- Estou farta!
-- É ter paciencia! Todos tem a sua cruz!
Juliana teve um sorriso livido, ergueu-se com um grande ai!, escabichou os dentes, apanhou a roupa suja, e subiu ao sotão.
D'ahi a pouco, de luvas pretas, muito amarella, sahiu.
Ao dobrar a esquina da rua, defronte do estanque, parou indecisa. Até ao medico era um estirão!... E estava, que lhe tremiam as pernas!... Mas tambem, largar tres tostões para trem!...
-- Pst, pst! -- fez do lado uma voz dôce.
Era a estanqueira, com o seu longo vestido de luto tingido, o seu sorriso desconsolado.
Que era feito da snr.a Juliana? a dar o seu passeio, hein?
Gabou-lhe a sombrinha preta de cabo d'osso. -- De muito gosto -- disse. -- E como ia de saude?
Mal. Dera-lhe a pontada. Ia ao medico...
Mas a estanqueira não tinha fé nos medicos. Era dinheiro deitado á rua... Citou a doença do seu homem, os gastos, um rôr de moedas. E para que? para o vêr penar e morrer como se nada fosse! Era um dinheiro que sempre chorava!
E suspirou. Emfim, fosse feita a vontade de Deus! E lá por casa do snr. Engenheiro?
-- Tudo sem novidade.
-- Ó snr.a Juliana, quem é aquelle rapaz que vai agora por lá todos os dias?
Juliana respondeu logo:
-- É o primo da senhora.
-- Dão-se muito!...
-- Parece.
Tossiu, e com um comprimentosinho:
-- Pois, muito boas tardes, snr.a Helena.
E foi resmungando:
-- Ora, fica-te a chuchar no dedo, lêsma!
Juliana detestava a visinhança; sabia que a escarneciam, que a imitavam, que lhe chamavam a tripa velha!... -- Pois tambem d'ella não haviam de saber nada! Podiam rebentar de curiosidade! Vinham de carrinho! Boa! Tudo o que visse ou que lhe cheirasse havia de ficar guardadinho, lá dentro. -- Para uma occasião! -- pensava com rancor, sacudindo os quadris.
A estanqueira ficou á porta, despeitada. E o Paula dos moveis, que as vira conversar, veio logo, deslisando subtilmente nas suas chinellas de tapete:
-- Então a tripa velha escorregou-se?
-- Ai! não se lhe tira nada!
O Paula enterrou as mãos nos bolsos, com tedio:
-- Aquillo, a do Engenheiro besunta-lhe as mãos... É ella quem leva a cartinha, quem abre a portita de noite...
-- Tanto não direi! Credo!
O Paula fitou-a com superioridade:
-- A snr.a Helena está ahi ao seu balcão... Mas eu é que as conheço, as mulheres da alta sociedade! Conheço-as nas pontas dos dedos. É uma cambada!
Citou logo nomes, alguns illustres; tinham amantes innumeraveis: até trintanarios! Algumas fumavam, outras entortavam-se. E peor! E peor!
-- E passeiam por ahi, muito repimpadas de carrinho, á barba da gente de bem!
-- Falta de religião! -- suspirou a estanqueira.
O Paula encolheu os hombros:
-- A religião é que é, snr.a Helena! C'os padres é que é!
E agitando furioso o punho fechado:
-- C'os padres é uma choldra viva!
-- Credo, snr. Paula, que até lhe fica mal!...
E o carão amarellado da estanqueira tinha uma severidade de devota offendida.
-- Ora, historias, snr.a Helena! -- exclamou o homem com desprezo.
E bruscamente:
-- Porque é que acabaram os conventos? Diga-me! Porque era um desaforo lá dentro!
-- Oh snr. Paula! oh snr. Paula! -- balbuciava a Helena, recuando, encolhendo-se.
Mas o Paula atirava-lhe as impiedades como punhaladas.
-- Um desaforo! De noite as freiras vinham por um subterraneo ter c'os frades. E era vinhaça e mais vinhaça. E batiam o fandango em camisa! Anda isso por ahi em todos os livros.
E erguendo-se nas chinellas:
-- E os jesuitas, se vamos a isso! Sim! diga!
Mas recuou, e levando a mão á pala do boné:
-- Um criado da senhora -- disse com respeito.
Era Luiza que passava, vestida de preto, o véo descido. Ficaram calados, a olhal-a.
-- Que ella é muito bonita! -- murmurou a estanqueira, com admiração.
O Paula franziu a testa.
-- Não é mau bocado... -- disse. E acrescentou, com desdem: -- P'ra quem gosta d'aquillo!...
Houve um silencio. E o Paula rosnou:
-- Não são as saias que me levam o tempo, nem d'isto!...
E bateu no bolso do collete, fazendo tilintar dinheiro.
Tossiu, pigarreou, e ainda aspero:
-- Venha de lá um pataco de Xabregas.
Foi para a porta do estanco enrolar o cigarro, assobiar; mas os seus olhos arregalaram-se indignados; n'uma das janellas de cima na casa do Engenheiro, tinha avistado, por entre as vidraças abertas, a figura enfesada do Pedro, o carpinteiro.
Voltou-se para a estanqueira, e cruzando dramaticamente os braços:
-- E agora que a patrôa vai á vida, lá está o rapazola a entender-se com a criada!
Soltou uma larga baforada de fumo, e com uma voz soturna:
-- Aquella casa vai-se tornando um prostibulo!
-- Um quê, snr. Paula?
-- Um prostibulo, snr.a Helena! É como se dissesse um alcouce!
E, com passos escandalisados, o patriota afastou-se.
Luiza ia emfim ao campo com Bazilio. Consentira na vespera, declarando logo «que era só um passeio de meia hora, de carruagem, sem se apearem». Bazilio ainda insistiu, fallando em «sombras d'alamedas, uma merendinha, relvas...» Mas ella recusou, muito teimosa, rindo, dizendo: -- Nada de relvas!...
E tinham combinado encontrar-se na praça da Alegria. Chegou tarde, já depois das duas e meia, com o guarda-solinho muito carregado sobre o rosto, toda assustada.
Bazilio esperava, fumando, n'um coupé, á esquina, debaixo d'uma arvore. Abriu rapidamente a portinhola, e Luiza entrou fechando atrapalhadamente a sombrinha; o vestido prendeu-se ao estribo, esgaçou-se no rufo de sêda; e achou-se ao lado d'elle, muito nervosa, offegante, com o rosto abrazado, murmurando:
-- Que tolice, que tolice esta!
Mal podia fallar. O coupé partiu logo a trote. O cocheiro era o Pintéos, um batedor.
-- Tão cançada, coitadinha! -- disse-lhe Bazilio muito meigo.
Levantou-lhe o véo; estava suada; os seus largos olhos brilhavam da excitação, da pressa, do medo...
-- Que calor, Bazilio!
Quiz descer um dos vidros do coupé.
Não, isso não! Podiam vêl-os! Quando passassem as portas...
-- Para onde vamos nós?
E espreitava, levantando o store.
-- Vamos para o lado do Lumiar, é o melhor sitio. Não queres?
Encolheu os hombros. Que lhe importava? Ia socegando: tinha tirado o véo e as luvas: sorria, abanando-se com o lenço, d'onde sahia um aroma fresco.
Bazilio prendeu-lhe o pulso, pôz-lhe muitos beijos longos, delicados, na pelle fina, azulada de veiasinhas.
-- Tu prometteste ter juizo! -- fez ella com um sorriso calido, olhando-o de lado.
Ora! mas um beijo, no braço! Que mal havia? Tambem era necessario não ser beata!
E olhava-a avidamente.
Os velhos stores do coupé corridos eram de sêda vermelha, e a luz que os atravessava envolvia-a n'um tom igual, côr de rosa e quente. Os seus beiços tinham um escarlate molhado, a lisura sã d'uma petala de rosa; e ao canto do olho um ponto de luz movia-se n'um fluido dôce.
Não se conteve, passou-lhe os dedos um pouco tremulos nas fontes, nos cabellos, com uma caricia fugitiva e assustada; e com a voz humilde:
-- Nem um beijo na face, um só?
-- Um só?... -- fez ella.
Pousou-lh'o delicadamente ao pé da orelha. Mas aquelle contacto exasperou-lhe o desejo brutalmente; teve um som de voz soluçado; agarrou-a com sofreguidão, e atirava-lhe beijos tontos pelo pescoço, pela face, pelo chapéo...
-- Não! não! -- balbuciava ella, resistindo. -- Quero descer! Dize que pare!
Batia nos vidros; esforçava-se por correr um, desesperada, magoando os dedos na dura corrêa suja.
Bazilio pôz-se a supplicar, que lhe perdoasse! Que doudice, zangar-se por um beijo! Se ella estava tão linda!... Fazia-o doudo. Mas jurava ir quieto, muito quieto...
A carruagem, ao pé das portas, rolava sacudida na calçada miuda; nas terras, aos lados, as oliveiras de um verde empoeirado estavam immoveis na luz branca; e sobre a herva crestada o sol batia duramente n'uma fulguração continua.
Bazilio tinha descido um dos vidros; o store corrido palpitava brandamente; pôz-se então a fallar-lhe ternamente de si, do seu amor, dos seus planos. Estava resolvido a vir estabelecer-se em Lisboa -- dizia. -- Não tencionava casar-se; amava-a e não comprehendia nada melhor do que viver ao pé d'ella, sempre. Dizia-se desilludido, enfastiado. Que mais lhe podia offerecer a vida? Tinha tido as sensações dos amores ephemeros, as aventuras das longas viagens. Ajuntára alguma cousa de seu, -- e sentia-se velho.
Repetia, fitando-a, tomando-lhe as mãos:
-- Não é verdade que estou velho?
-- Não muito -- e os seus olhos humedeciam-se.
Ah! estava! estava! O que lhe appetecia agora era viver para ella, vir descançar nas doçuras da sua intimidade. Ella era a sua unica familia. -- Fazia-se muito parente. -- A familia no fim de tudo é o que ha de melhor ainda. Não te incommoda que eu fume?
E acrescentou, raspando o phosphoro:
-- O que ha de bom na vida é uma affeição profunda como a nossa. Não é verdade? Contento-me com pouco, de resto. Vêr-te todos os dias, conversar muito, saber que me estimas... -- Por dentro do campo, ó Pintéos! -- gritou com força pela portinhola.
O coupé entrou a passo no Campo Grande. Bazilio ergueu os stores; um ar mais vivo penetrou. O sol cahia sobre o arvoredo, traspassando-o d'uma luz faiscante, formando no chão poeirento e branco sombras quentes de ramagens. Tudo tinha em redor um aspecto resequido e exhausto. Na terra gretada, a herva curta, crestada, fazia tons cinzentos. Na estrada, ao lado, arrastava-se uma poeira amarellada. Saloios passavam, amodorroados sobre o albardão, bamboleando as pernas, abrigados sob os vastos guarda-soes escarlates; e a luz que vinha de um céo azul ferrete, acabrunhador, fazia reluzir com uma radiação crua as paredes muito caiadas, as aguas d'algum balde esquecido ás portas, todas as brancuras de pedras.
E Bazilio continuava:
-- Vendo tudo o que tenho lá fóra, alugo aqui uma casinha em Lisboa, em Buenos-Ayres, talvez... Não te agrada? Dize...
Ella calava-se; aquellas palavras, as promessas, a que a voz d'elle metallica e velada dava um vigor mais amoroso, iam-na perturbando como a inebriação d'um licôr forte. O seu seio arfava.
Bazilio baixou a voz, disse:
-- Quando estou ao pé de ti sinto-me tão feliz, parece-me tudo tão bom!...
-- Se isso fosse verdade! -- suspirou ella, encostando-se para o fundo do coupé.
Bazilio prendeu-lhe logo a cintura; jurou-lhe que sim! Ia pôr a sua fortuna em inscripções. Começou a dar-lhe provas: já fallára a um procurador; citou-lhe o nome, um sêcco, de nariz agudo...
E apertando-a contra si, os olhos muito vorazes:
-- E se fosse verdade, dize, que fazias?
-- Nem eu sei -- murmurou ella.
Iam entrando no Lumiar, e por prudencia desceram os stores. Ella afastou um, e, espreitando, via fóra passar rapidamente, ao lado do trem, arvores empoeiradas; um muro de quinta d'uma côr de rosa sujo; fachadas de casas mesquinhas; um omnibus desatrellado; mulheres sentadas ao portal, á sombra, catando os filhos; e um sujeito vestido de branco, de chapéo de palha, que estacou, arregalou os olhos para as cortinas fechadas do coupé. E ia desejando habitar alli n'uma quinta, longe da estrada; teria uma casinha fresca com trepadeiras em roda das janellas, parreiras sobre pilares de pedra, pés de roseiras, ruasinhas amaveis sob arvores entrelaçadas, um tanque debaixo d'uma tilia, onde de manhã as criadas ensaboariam, bateriam a roupa, palrando. E ao escurecer, ella e elle, um pouco quebrados das felicidades da sésta, iriam pelos campos, ouvindo calados, sob o céo que se estrella, o coaxar triste das rãs.
Cerrou os olhos. O movimento muito lançado do coupé, o calor, a presença d'elle, o contacto da sua mão, do seu joelho, amolleciam-na. Sentia um desejo a alargar-se dentro do peito.
-- Em que vaes tu a pensar? -- perguntou-lhe elle baixo, muito terno.
Luiza fez-se vermelha. Não respondeu. Tinha medo de fallar, de lhe dizer...
Bazilio tomou-lhe a mão devagarinbo, com respeito, com cuidado, como uma cousa preciosa e santa; e beijou-lh'a de leve, com a servilidade d'um negro e a unção d'um devoto. Aquella caricia tão humilde, tão tocante, quebrou-a; os seus nervos distenderam-se; deixou-se cahir para o canto do coupé, rompeu a chorar...
Que era? Que tinha? Prendera-a nos braços, beijava-a, dizia-lhe palavras loucas.
-- Queres que fujamos?
As suas lagrimasinhas redondas e luminosas, rolando devagarinho sobre aquella face mimosa, enterneciam-no, e davam aos seus desejos uma vibração quasi dolorosa.
-- Foge commigo, vem, levo-te! Vamos para o fim do mundo!
Ella soluçou, murmurou muito doridamente:
-- Não digas tolices.
Elle calou-se; pôz a mão sobre os olhos com uma attitude melancolica, pensando: -- Estou a dizer tolices, não ha que vêr!
Luiza limpava as lagrimas, assoando-se devagarinho.
-- É nervoso -- disse. -- É nervoso. Voltamos, sim? Não me sinto bem. Dize que volte.
Bazilio mandou «bater» para Lisboa.
Ella queixava-se de um ameaço d'enxaqueca. Elle tinha-lhe tomado a mão, repetia-lhe as mesmas ternuras: chamava-lhe «sua pomba», «seu ideal». E pensava baixo: -- Estás cahida!
Pararam na praça da Alegria. Luiza espreitou, saltou depressa, dizendo:
-- Ámanhã, não faltes, hein?
Abriu o guarda-solinho, carregou-o sobre o rosto, subiu rapidamente para a Patriarchal.
Bazilio então desceu os vidros, e respirou com satisfação. Accendeu outro charuto, estendeu as pernas, gritou:
-- Ao Gremio, ó Pintéos!
Na sala de leitura, o seu amigo o visconde Reynaldo, que havia annos vivia em Londres, e muito em Paris tambem, lia o Times languidamente, enterrado n'uma poltrona. Tinham vindo ambos de Paris, com promessa de voltarem juntos por Madrid. Mas o calor desolava Reynaldo; achava a temperatura de Lisboa reles; trazia lunetas defumadas; e andava saturado de perfumes, por causa «do cheiro ignobil de Portugal». Apenas viu Bazilio deixou escorregar o Times no tapete, e com os braços molles, a voz desfallecida:
-- E então essa questão da prima, vai ou não vai? Isto está horrivel, menino! Eu morro! Preciso o Norte! Preciso a Escocia! Vamos embora! Acaba com essa prima. Viola-a. Se ella te resiste, mata-a!
Bazilio, que se estendera n'uma poltrona, disse, estirando muito os braços:
-- Oh! Está cahidinha!
-- Pois avia-te, menino, avia-te!
Apanhou moribundamente o Times, bocejou, pediu soda -- soda ingleza!
«Não havia», veio dizer o criado. Reynaldo fitou Bazilio com espanto, com terror, e murmurou soturnamente:
-- Que abjecção de paiz!
Quando Luiza entrou, Juliana, ainda vestida, disse-lhe logo á porta:
-- O snr. Sebastião está na sala. Tem estado um rôr de tempo á espera... Já cá estava quando eu cheguei.
Tinha vindo com effeito havia meia hora. Quando a Joanna lhe veio abrir, muito encarnada, com o ar estremunhado, e resmungou «que a senhora estava para fóra», Sebastião ia logo descer, com o allivio delicioso d'uma difficuldade adiada. Mas reagiu, retesou a vontade, entrou, pôz-se a esperar... Na vespera tinha decidido fallar-lhe, avisal-a que aquellas visitas do primo, tão repetidas, com espalhafato, n'uma rua maligna, podiam compromettel-a... Era o diabo, dizer-lh'o!... Mas era um dever! Por ella, pelo marido, pelo respeito da casa! Era forçoso acautelal-a!... E não se sentia acanhado. Perante as reclamações do dever, vinham-lhe as energias da decisão. O coração batia-lhe um pouco, sim, e estava pallido... Mas, que diabo, havia de lh'o dizer!...
E passeando pela sala com as mãos nos bolsos, ia arranjando as suas phrases, procurando-as muito delicadas, bem amigas...
Mas a campainha retiniu, um frou-frou de vestido roçou o corredor, -- e a sua coragem engelhou-se como um balão furado. Foi-se logo sentar ao piano, pôz-se a bater vivamente no teclado. Quando Luiza entrou, sem chapéo, descalçando as luvas, ergueu-se, disse embaraçado:
-- Tenho estado aqui a trautear um bocado... Estava á espera... Então d'onde vem?
Ella sentou-se, cançada. Vinha da modista -- disse. Fazia um calor! Porque não tinha entrado as outras vezes? Não estava com visitas de ceremonia! Era familia, era seu primo que viera de fóra.
-- Está bom, seu primo?
-- Bom. Tem estado aqui, bastante. Aborrece-se muito em Lisboa, coitado! Ora, quem vive lá fóra!
Sebastião repetiu, esfregando devagar os joelhos:
-- Está claro, quem vive lá fóra!
-- E Jorge, tem-lhe escripto? -- perguntou Luiza.
-- Recebi carta hontem.
Tambem ella. Fallaram de Jorge, dos tedios da jornada, do que contava do phantastico parente de Sebastião, da demora provavel...
-- Faz-nos uma falta, aquelle maroto! -- disse Sebastião.
Luiza tossiu. Estava um pouco pallida, agora. Passava ás vezes a mão pela testa, cerrando os olhos.
Sebastião de repente, teve uma decisão:
-- Pois eu vinha, minha rica amiga... -- começou.
Mas viu-a ao canto do sophá, com a cabeça baixa, a mão sobre os olhos.
-- Que tem? Está incommodada?
-- É a enxaqueca que me veio de repente. Já tinha tido ameaços na rua. E com uma força!
Sebastião tomou logo o chapéo:
-- E eu a massal-a! É necessario alguma cousa? Quer que vá chamar o medico?
-- Não! Vou-me deitar um momento, passa logo.
Que não apanhasse ar, ao menos, recommendava elle. Talvez sinapismos ou rodellas de limão nas fontes... E em todo o caso, se não estivesse melhor que o mandasse chamar...
-- Isto passa! E appareça, Sebastião! Não se esconda...
Sebastião desceu, respirou largamente; e pensava: -- Eu não me atrevo, santo Deus!... Mas á porta, ao levantar os olhos, viu no fundo escuro da loja de carvão o vulto enorme da carvoeira, de chambre branco, estendendo o olhar, cocando; por cima, tres das Azevedos, entre as velhas cortinas de cassa, juntavam as suas cabecinhas riçadas n'algum conciliabulo maligno: por traz dos vidros a criada do doutor costurava, com olhares de lado, a cada momento, que lambiam a rua; e ao lado, na loja de moveis, sentiam-se as expectorações do patriota.
-- Não passa um gato que esta gente não dê fé! -- pensou Sebastião. -- E que linguas! Que linguas! Devo fazel-o, ainda que estoure! Se ella ámanhã está melhor, digo-lhe tudo!
Estava com effeito já boa, ás nove horas, no dia seguinte, quando Juliana a foi acordar, com «uma cartinha da snr.a D. Leopoldina».
A criada de Leopoldina, a Justina, uma magrita muito trigueira, de buço e olho vesgo, esperava na sala de jantar. Era amiga de Juliana, beijocavam-se muito, diziam-se sempre finezas. E depois de ter guardado a resposta de Luiza n'um cabazinho que trazia no braço, traçou o chale, e muito risonha:
-- Então que ha por cá de novo, snr.a Juliana?
-- Tudo velho, snr.a Justina.
E mais baixo:
-- O primo da senhora, agora; vem todos os dias. Perfeito rapaz!
Tossiram ambas, baixinho, com malicia.
-- E por lá, snr.a Justina, quem vai por lá?
Justina fez um aceno de desprezo.
-- Um rapazola, um estudante. Fraca cousa!...
-- Sempre pinga! -- disse Juliana com um risinho.
A outra exclamou:
-- Olha quem! o pelintra! Nem cheta!
E erguendo o olhar com saudade:
-- Ai, como o Gama não ha! Quando era do tempo do Gama, isso sim! Nunca ia que me não désse os seus dez tostões, ás vezes meia libra. Ai, devo dizel-o, foi elle que me ajudou para o meu vestido de sêda! Este agora!... é um fedelho. Eu nem sei como a senhora supporta aquillo! E amarellado, enfesado! Aquillo póde prestar para nada!
Juliana disse então:
-- Pois olhe, snr.a Justina, eu agora é que começo a considerar: é onde se está bem, é em casas em que ha pôdres! Encontrei hontem a Agostinha, a que está em casa do commendador, ao Rato... Pois senhor, não se imagina. É tudo o que se póde! Tudo! Annel, vestido de sêda, sombrinha, chapéo! E de roupa branca diz que é um enxoval. E tudo o Couceiro, o que está com a ama. E pelas festas sua moeda. Diz que é um homem rasgado. Ella tambem, verdade seja, tem um trabalhão: fal-o entrar pelo jardim, e para o fazer sahir tem d'esperar...
-- Ah, lá não! -- acudiu a Justina. -- Lá é pela escada.
Riram baixinho, saboreando o escandalo.
-- Genios... -- disse Juliana.
-- Ai, lá isso, o nosso tem estomago -- affirmou Justina. -- Encontra-os na escada, e tanto se lhe dá!...
E muito affectuosamente, arranjando o chale:
-- E adeusinho, que se faz tarde, snr.a Juliana. Ella vem hoje cá jantar, a senhora. Estive toda a manhã a engommar uma saia; desde as sete!
-- Tambem eu por cá -- disse Juliana. -- Ellas é o que tem; quando ha amante sempre ha mais que engommar.
-- Deitam mais roupa branca, deitam -- observou a Justina.
-- As que deitam! -- exclamou Juliana, com desprezo.
Mas Luiza tocou a campainha dentro.
-- Adeus, snr.a Juliana -- disse logo a outra, ageitando o chapéo.
-- Adeus, snr.a Justina.
Foi acompanhal-a ao patamar. Beijocaram-se. Juliana voltou muito apressada ao quarto de Luiza; estava já a pé, vestindo-se, muito alegre, cantarolando.
O bilhete de Leopoldina dizia na sua letra torta:
«Meu marido vai hoje para o campo. Eu vou-te pedir de jantar, mas não posso ir antes das seis. Convem-te?»
Ficou muito contente. Havia semanas que a não via... O que iam rir, palrar! E Bazilio devia vir ás duas. Era um dia divertido, bem preenchido...
Foi logo á cozinha dar as suas ordens para o jantar. Quando descia, o criadito de Sebastião tocava a campainha, com um ramo de rosas, «a saber se a senhora estava melhor».
-- Que sim, que sim! -- gritou logo Luiza. -- E para o tranquillisar, para que elle não viesse: -- Que estava boa, que até talvez sahisse...
As rosas, sim, é que vinham a proposito. Foi ella mesma pôl-as nos vasos, cantarolando sempre, o olhar vivo, satisfeita de si, da sua vida que se tornava interessante, cheia de incidentes...
E ás duas horas, vestida, veio para a sala, pôz-se ao piano a estudar a Medjé de Gounod, que Bazilio trouxera, e que a encantava agora muito, com os seus accentos suspirados e calidos.
Ás duas e meia, porém, começou a estar impaciente; os dedos embrulhavam-se-lhe no teclado. -- Já devia ter vindo, Bazilio! -- pensava.
Foi abrir as janellas, debruçar-se para a rua; mas a criada do doutor, que costurava por dentro dos vidros, ergueu logo olhos tão sofregos que Luiza fechou rapidamente as vidraças. Veio recomeçar a melodia, já nervosa.
Uma carruagem rolou. Ergueu-se agitada, batia-lhe o coração. A carruagem passou...
Tres horas já! O calor parecia-lhe maior, insupportavel; sentia-se afogueada, foi cobrir-se de pó d'arroz. Se Bazilio estivesse doente! E n'um quarto d'hotel! Só, com criados desleixados! Mas não, ter-lhe-hia escripto n'esse caso!... Não viera, não se importára! Que grosseiro, que egoista!
Era bem tola em se affligir. Melhor! Mas, abafava-se, positivamente! Foi buscar um leque, e as suas mãos enraivecidas sacudiram n'um phrenesi a gaveta, que não se abriu logo, um pouca perra. Pois bem, não o tornaria a receber! E acabava tudo!
E o seu grande amor, de repente, como um fumo que uma rajada dissipa, desappareceu! Sentiu um allivio, um grande desejo de tranquillidade. Era absurdo, realmente, com um marido como Jorge, pensar n'outro homem, um leviano, um estroina!...
Deram quatro horas. Veio-lhe uma desesperação, correu ao escriptorio de Jorge, agarrou uma folha de papel, escreveu á pressa:
«Querido Bazilio.
«Porque não vens? Estás doente? Se soubesses os tormentos por que me fazes passar...»
A campainha retiniu. Era elle! Amarrotou o bilhete, metteu-o no bolso do vestido, ficou esperando, palpitante. Passos d'homem pisaram o tapete da sala. Entrou, com o olhar faiscante... Era Sebastião.
Sebastião, um pouco pallido, que lhe apertou muito as mãos. Estava melhor? Tinha dormido bem?
Sim, obrigada, estava melhor. Sentára-se no sophá, muito vermelha. Mal sabia que dizer.
Repetiu com um sorriso vago: -- Estou muito melhor! -- E pensava: -- Não me deixa agora a casa, este massador!
-- Então, não sahiu? -- perguntou Sebastião, sentado na poltrona, com o chapéo desabado nas mãos.
Não, estava um pouco fatigada ainda.
Sebastião passou devagar a mão pelos cabellos, e com uma voz que o embaraço engrossava:
-- Tambem agora tem sempre companhia pela manhã...
-- Sim, meu primo Bazilio tem apparecido. Ha tanto tempo que nos não viamos! Fomos creados de pequenos, quasi... Tenho-o visto quasi todos os dias.
Sebastião fez logo rolar um pouco a poltrona, e curvando-se, baixando a voz:
-- Eu mesmo tinha vindo para lhe fallar a esse respeito...
Luiza abriu um olhar surprehendido.
-- A respeito de quê?
-- É que se repara... A visinhança é a peor cousa que ha, minha rica amiga. Repara em tudo. Já se tem fallado. A criada do lente, o Paula. Até já vieram á tia Joanna. E como o Jorge não está... O Netto tambem reparou. Como não sabem o parentesco... E como vem todos os dias...
Luiza ergueu-se bruscamente, com o rosto alterado:
-- Então eu não posso receber os meus parentes sem ser insultada? -- exclamou.
Sebastião levantou-se tambem. Aquella colera subita n'ella, uma pessoa tão dôce, atarantou-o como um trovão que estala n'um céo claro de verão.
Pôz-se a dizer, quasi anciosamente:
-- Oh minha rica senhora! mas repare, eu não digo... É por causa da visinhança!...
-- Mas que póde dizer a visinhança?
A sua voz tinha uma vibração aguda. E batendo com as mãos, apertando-as, exaltada:
-- Isto é curioso! Tenho um parente unico, com quem fui creada, que não vejo ha uns poucos d'annos, vem-me fazer tres ou quatro visitas, está um momento, e já querem deitar maldade!
Fallava convencida, esquecendo as palavras de Bazilio, os beijos, o coupé...
Sebastião, acabrunhado, enrolava o chapéo nas mãos tremulas. E com uma voz abafada:
-- Eu tinha-me parecido prudente avisar; o Julião tambem...
-- O Julião! -- exclamou ella. -- Mas que tem o Julião com isso? Com que direito se mettem no que se passa em minha casa? O Julião!
A intervenção, as decisões de Julião pareciam-lhe um acrescimo d'affronta. Cahiu n'uma cadeira, com as mãos contra o peito, os olhos no tecto.
-- Oh! Se o Jorge aqui estivesse! Oh! se elle aqui estivesse, Santo Deus!
Sebastião balbuciou aniquilado:
-- Era para seu bem...
-- Mas que mal me póde succeder?
E erguendo-se, indo d'um movel a outro, n'uma excitação:
-- É o meu unico parente. Fomos creados ambos, brincavamos juntos. Em casa da mamã, na rua da Magdalena, estava lá sempre. Ia lá jantar todos os dias. É como se fossemos irmãos. Em pequena trazia-me ao collo...
E amontoava detalhes d'aquella fraternidade, exagerando uns, inventando outros ao acaso, na improvisação da colera.
-- Vem aqui -- acrescentava -- está um bocado, fazemos musica, elle toca admiravelmente, fuma um charuto, vai-se...
Instinctivamente justificava-se.
Sebastião estava sem idéa, sem resolução. Parecia-lhe aquella uma outra Luiza, differente, que o assustava; e quasi curvava os hombros sob a estridencia da sua voz, que nunca conhecera tão forte, vibrando n'uma loquacidade trapalhona.
Erguendo-se emfim, disse com uma dignidade melancolica:
-- Eu entendi que era o meu dever, minha senhora.
Fez-se um silencio grave. Aquelle tom sobrio, quasi severo, obrigou-a a córar um pouco dos seus espalhafatos: baixou os olhos: disse embaraçada:
-- Perdôe, Sebastião! Mas realmente!... Não, acredite, juro-lhe, estou-lhe muito obrigada em me avisar. Fez muito bem, Sebastião!
Elle exclamou logo, vivamente:
-- Para evitar qualquer calumnia d'essas linguas damnadas! Pois não é verdade?
Justificou então a sua intervenção, com muita amizade: ás vezes por uma palavra, arma-se uma intriga, e quando uma pessoa está prevenida...
-- De certo, Sebastião! -- repetiu ella. -- Fez perfeitamente bem em me avisar. De certo!...
Tinha-se sentado; o olhar reluzia-lhe febrilmente; e a cada momento limpava com o lenço os cantos seccos da bocca.
-- Mas que hei-de eu fazer, Sebastião! Diga!
Elle commovia-se agora de a vêr assim ceder, aconselhar-se; quasi lamentava vir, com a gravidade das suas advertencias, perturbar a alegria das suas intimidades. Disse:
-- Está claro que deve vêr seu primo, recebel-o... Mas emfim, sempre é bom uma certa reserva, com esta visinhança! Eu se fosse a si contava-lhe... explicava-lhe...
-- Mas, por fim, que diz essa gente, Sebastião?
-- Repararam. Quem seria? quem não seria? Que vinha, que estava, o diabo!
Luiza ergueu-se impetuosamente:
-- Eu bem tenho dito a Jorge! Tantas vezes lh'o tenho dito! Isto é uma rua impossivel! Não se mexe um dedo que não espreitem, que não cochichem!
-- Não teem que fazer...
Houve um silencio. Luiza passeava pela sala, com a cabeça baixa, a testa franzida; e parando, olhando quasi anciosamente para Sebastião:
-- O Jorge se soubesse é que tinha um desgosto! Santo Deus!
-- Escusa de saber! -- exclamou logo Sebastião. -- Isto fica entre nós!
-- Para o não affligir, não é verdade? -- acudiu ella.
-- Está claro! Isto fica entre nós.
E Sebastião estendendo-lhe a mão, quasi humildemente:
-- Então não está zangada commigo, hein?
-- Eu, Sebastião! Que tolice!
-- Bem, bem. Acredite! -- e espalmou a mão sobre o peito -- eu entendi que era o meu dever. Porque emfim, a minha rica amiga não sabia nada...
-- Estava bem longe!...
-- De certo. Bem, adeus. Não a quero massar mais. -- E com uma voz profunda, commovida: -- Cá estou ás ordens, hein!
-- Adeus, Sebastião... Mas que gente! Por vêr entrar o pobre rapaz tres ou quatro vezes!...
-- Uma canalha, uma canalha! -- disse Sebastião, arregalando os olhos.
E sahiu.
Apenas elle fechou a porta:
-- Que desafôro! -- exclamou Luiza -- Isto só a mim!
Porque a intervenção de Sebastião, no fundo, irritava-a mais que os mexericos da visinhança! A sua vida, as suas visitas, o interior da sua casa era discutido, resolvido por Sebastião, por Julião, por tutti quanti! Aos vinte e cinco annos tinha mentores! Não estava má! E porque, Santo Deus? Porque seu primo, o seu unico parente, vinha vel-a!...
Mas então, de repente, emmudecia interiormente. Lembravam-lhe os olhares de Bazilio, as suas palavras exaltadas, aquelles beijos, o passeio ao Lumiar. A sua alma corava baixo, mas o seu despeito seguia declamando alto: -- de certo, havia um sentimento, mas era honesto, ideal, todo platonico!... Nunca seria outra cousa! Podia ter lá dentro, no fundo, uma fraqueza... Mas seria sempre uma mulher de bem, fiel, só d'um!...
E esta certeza irritava-a então contra os «palratorios» da rua! Que de resto era lá possivel, que só por verem entrar Bazilio, quatro ou cinco vezes, ás duas horas da tarde, começassem logo a murmurar, a cortar na pelle?... Sebastião era um caturra, com terrores d'ermitão! E que idéa, ir consultar Julião! Julião! Era elle, de certo, que o instigára a vir prégar, assustal-a, humilhal-a!... Porque? Azedume, inveja! Porque Bazilio tinha belleza, toilette, maneiras, dinheiro!... Se tinha!
As qualidades de Bazilio appareciam-lhe então magnificas e abundantes como os attributos d'um deus. E estava apaixonado por ella! E queria vir viver junto d'ella! O amor d'aquelle homem, que tinha esgotado tantas sensações, abandonado de certo tantas mulheres, parecia-lhe como a affirmação gloriosa da sua belleza e da irresistibilidade da sua seducção.
A alegria que lhe dava aquelle culto trazia-lhe o receio de o perder. Não o queria vêr diminuido; queria-o sempre presente, crescendo, balouçando sem cessar, diante d'ella, o murmurio languido das ternuras humildes! Podia lá separar-se de Bazilio! Mas se a visinhança, as relações começavam a commentar, a cochichar... Jorge podia saber!... Áquella supposição o coração arrefecia-lhe... -- Sebastião tinha razão, no fundo, era evidente!
N'uma rua pequena, com doze casas, vir todos os dias, aquelle lindo rapaz, tão elegante, agora que seu marido não estava... Era terrivel! -- Que havia de fazer, Santo Deus!...
A campainha retiniu com força; Leopoldina entrou.
Vinha furiosa com o cocheiro: que imaginasse ella, hein! Tinha parado ao Correio, e o homem queria duas corridas. Uma canalha assim!...
-- E que calor, ouf! -- Atirou a sombrinha, as luvas; agitou as mãos no ar para descer o sangue, dar-lhes pallidez; e diante do toucador, compondo ligeiramente os frisados do cabello, com uma côr na pelle, muito espartilhada, admiravel no seu corpete couraçado:
-- Que tens tu, filha? Estás toda no ar!
Nada. Tinha-se zangado com as criadas...
-- Ai! estão insupportaveis! -- Contou as exigencias da Justina, os seus desmazelos. -- E muito agradecida ainda que ella se me não vá! Quando a gente depende d'ellas!... -- E pondo pó d'arroz no rosto, com uma voz lenta: -- Lá o meu senhor foi para o Campo Grande. Eu estive para ir jantar fóra com... -- Suspendeu-se, sorriu, e voltada para Luiza, mais baixo, com um tom alegre, muito sincero: -- Mas olha, a fallar a verdade, nem sabia onde, nem tinha dinheiro... Que elle coitado com a sua mezada mal lhe chega. Disse commigo: nada, vou vêr a Luiza. Tambem os homens sempre, sempre, seccam!... -- Que tens tu para jantar? Não fizeste ceremonia, hein?
E com uma idéa subita:
-- Tens tu bacalhau?
Devia haver, talvez. Que extravagancia! Porque?
-- Ai! -- exclamou -- Manda-me assar um bocadinho de bacalhau! Meu marido detesta o bacalhau! aquelle animal! Eu é a minha paixão. Com azeite e alho! -- Mas calou-se, contrariada. -- Diabo!
-- O que?
-- É que hoje não posso comer alho...
E entrou para a sala a rir. Foi tirar uma rosa do ramo de Sebastião, pôl-a n'uma casa do corpete. Desejava ter uma sala assim, -- pensava, olhando em redor. Queria-a de reps azul, com dous grandes espelhos, um lustre de gaz, e o seu retrato a oleo de corpo inteiro, decotada, ao pé d'um rico vaso de flôres... Sentou-se ao piano, bateu rijamente o teclado, tocou motivos do Barba Azul.
E vendo Luiza entrar:
-- Mandaste arranjar o bacalhau?
-- Mandei.
-- Assado?
-- Sim.
-- Gracias! -- E atirou, com a sua voz mordente, a sua canção querida da Gran-Duqueza:
Ouvi dizer que meu avô de vinho,
Era um tal amador...
Mas Luiza achava aquella musica «espalhafatona»; queria alguma cousa triste, dôce... O fado! que tocasse o fado!...
Leopoldina exclamou logo:
-- Ai, o fado novo! Tu não ouviste? É lindo! Os versos são divinos!
Preludiou, cantando com um balouçar languido da cabeça, o olhar erguido e turvo:
O rapaz que eu hontem vi
Era moreno e bem feito...
-- Tu não sabes isto, Luiza? Oh filha! É o ultimo! É de chorar!
Recomeçou, com o tom muito quebrado. Era a historia rimada d'um amor infeliz. Fallava-se nas «raivas do ciume, nas rochas de Cascaes, nas noites de luar, nos suspiros da saudade», todo o palavriado morbido do sentimentalismo lisboeta. Leopoldina dava tons dolentes á voz, revirava um olhar expirante; uma quadra sobre tudo enternecia-a; repetiu-a com paixão:
Vejo-o nas nuvens do céo,
Nas ondas do mar sem fim,
E por mais longe que esteja
Sinto-o sempre ao pé de mim.
-- Lindo! -- suspirava Luiza.
E Leopoldina terminava com ais! em que a sua voz se arrastava n'uma extensão desafinada.
Luiza, de pé junto do piano, sentia o cheiro do feno que ella usava; o fado, os versos entristeciam-na um pouco; e com o olhar saudoso seguia sobre o teclado os dedos ageis e magros de Leopoldina, onde reluziam as pedras dos anneis que lhe tinha dado o Gama.
Mas Juliana entrou, vestida de passeio, com a sua cuia nova. Estava o jantar na mesa!
Leopoldina declarou que vinha a cahir de fome! E a sala de jantar com as vidraças abertas, as verduras dos terrenos vagos defronte, um azul d'horisonte onde se algodoavam nuvemzinhas muito brancas -- alegrou-a: a sala de jantar d'ella tirava-lhe até o appetite, era uma tristeza, deitava para o saguão!
Pôz-se a depenicar bagos d'uvas, a trincar bocadinhos de conserva -- e reparando no retrato do pai de Jorge, desdobrando o guardanapo:
-- Havia de ser divertido teu sogro! Tem cara de pandigo!...
E ha que tempos que não jantavam juntas! Desde quando?
-- Desde o meu primeiro anno de casada -- lembrou Luiza.
Leopoldina fez-se um pouco vermelha. Viam-se muito n'esse tempo; Jorge deixava-as ir ás lojas ambas, aos confeiteiros, á Graça... A lembrança d'aquella camaradagem levou-a ás recordações mais distantes do collegio. Tinha visto, havia dias, a Rita Pessoa, com o sobrinho. -- Lembras-te d'elle?
-- O Espinafre?
Espinafre ou não era no collegio o homem, o ideal, o heroe; todas lhe escreviam bilhetes, desenhavam-lhe corações d'onde sahia uma fogueira, mettiam-lhe no boné muito sebento ramos de flôres de papel... E quando a Michaela foi apanhada, no cacifro dos bahús, a devoral-o de beijos!...
Luiza disse:
-- Que horror!
-- Não que a Michaela era douda!
Coitada! Tinha casado com um alferes, um homem que a espancava. Estava cheia de filhos...
-- Isto é um valle de lagrimas! -- resumiu Leopoldina, recostando-se.
Estava loquaz. Servia-se muito, com gula; depois picava um bocadinho na ponta do garfo, provava, deixava, punha-se a comer côdeas de pão que barrava de manteiga. E deleitava-se nas recordações do collegio! Que bom tempo!
-- Lembraste quando estivemos de mal?
Luiza não se lembrava...
-- Por tu teres dado um beijo na Thereza, que era o meu sentimento -- disse Leopoldina.
Pozeram-se a fallar dos sentimentos. Leopoldina tivera quatro; a mais bonita era a Joanninha, a Freitas. Que olhos! E que bem feita! Tinha-lhe feito a côrte um mez!...
-- Tolices! -- disse Luiza córando um pouco.
-- Tolices! Porque?
Ai! era sempre com saudade que fallava dos sentimentos. Tinham sido as primeiras sensações, as mais intensas. Que agonia de ciumes! Que delirio de reconciliações! E os beijos furtados! E os olhares! E os bilhetinhos, e todas as palpitações do coração, as primeiras da vida!
-- Nunca -- exclamou -- nunca, depois de mulher, senti por um homem o que senti pela Joanninha!... Pois pódes crêr...
Um olhar de Luiza deteve-a. -- A Juliana!... Diabo! tinha-se esquecido! Constrangia-as muito, com o seu sorrisinho torcido, a figura de peito chato, o tic-tac metallico dos tacões.
-- E que foi feito da Joanninha? -- perguntou Luiza.
Morrêra tisica -- e a voz de Leopoldina fez-se saudosa. Uma doença bem triste, não era? Mas não lhe tinha medo, ella! Batia no seio, bem formado:
-- Isto é rijo, isto é são!
Juliana sahiu, e Luiza observou logo:
-- Vê no que fallas, filha! Tem cuidado!
Leopoldina curvou-se:
-- Ah! a respeitabilidade da casa! Tens razão! -- murmurou.
E como Juliana entrava com o bacalhau assado, fez-lhe uma ovação!
-- Bravo! Está soberbo!
Tocou-lhe com a ponta do dedo, gulosa; vinha louro, um pouco tostado, abrindo em lascas.
-- Tu verás -- dizia ella. -- Não te tentas? Fazes mal!
Teve então um movimento decidido de bravura, disse:
-- Traga-me um alho, snr.a Juliana! Traga-me um bom alho!
E apenas ella sahiu:
-- Eu vou ter logo com o Fernando, mas não me importa!... -- Ah! Obrigada, snr.a Juliana! Não ha nada como o alho!...
Esborrachou-o em roda do prato, regou as lascas do bacalhau d'um fio molle d'azeite, com gravidade. -- Divino! -- exclamou. -- Tornou a encher o copo, achava aquillo «uma pandiga».
-- Mas que tens tu?
Luiza com effeito parecia preoccupada. Tinha suspirado baixo. Duas vezes, endireitando-se na cadeira, dissera a Juliana, inquieta:
-- Parece que tocaram a campainha, vá vêr.
Não era ninguem.
-- Quem havia de ser? Não esperas teu marido, de certo.
-- Ah! não!
E então Leopoldina, com os olhos no prato, partindo devagar, muito attenta, lascasinhas de bacalhau:
-- E teu primo veio vêr-te?
Luiza fez-se vermelha.
-- Sim, tem vindo. Tem vindo varias vezes.
-- Ah!
E depois d'um silencio:
-- Ainda está bonito?
-- Não está feio...
-- Ah!
Luiza apressou-se a perguntar se tinha encommendado o vestido de xadrezinho? Não. E começaram a fallar de toilettes, fazendas, lojas, e preços... Depois, de conhecidas, d'outras senhoras, de boatos -- perdendo-se n'uma conversa de mulheres sós, miudinha e divagada, semelhante ao ramalhar de folhagens.
Viera o assado. Leopoldina já ia tendo uma côr quente nas faces. Pediu a Juliana que lhe fosse buscar o leque; -- e recostada, abanando-se, declarou que se sentia como um principe! E ia beberricando golinhos de vinho. Que boa idéa, jantarem juntas!...
Apenas Juliana dispôz os pratos de fruta, Luiza disse-lhe logo: «que chamaria para o café, que podia ir». Foi ella mesmo fechar a porta da sala, correr o reposteiro de cretone:
-- Estamos á vontade, agora! Faço-me velha só d'olhar para esta creatura! Estou morta pela vêr pelas costas.
-- Mas porque a não pões na rua?
Era Jorge que não queria, senão...
Leopoldina protestou. Boa! os maridos não deviam ter vontade!... Era o que faltava!...
-- E o teu, então? -- disse Luiza, rindo.
-- Obrigada! -- exclamou Leopoldina. -- Um homem que faz quarto á parte!
De resto detestava os homens que se occupam de criadas, de roes, d'azeites e vinagres...
-- Que lá o meu cavalheiro até pesa a carne! -- Sorriu, com odio. -- Tambem é o que vale, senão!... Eu só d'ir á cozinha me dão enjôos...
Quiz deitar vinho, mas a garrafa estava vazia.
Luiza acudiu:
-- Queres tu champagne? -- Tinha-o muito bom, que o mandava a Jorge um hespanhol, um proprietario de minas.
Foi ella mesmo buscar a garrafa, desembrulhou-a do seu papel azul; -- e com risinhos, sustos, fizeram estalar a rolha. A espuma encantou-as: olhavam os copos, caladas, com um bem-estar feliz. Leopoldina gabou-se de saber abrir muito bem o champagne; fallava vagamente de cêas passadas...
-- Em terça-feira gorda, ha dous annos!...
E toda recostada na cadeira, com um sorriso calido, as azas do nariz dilatadas, a pupilla humida, olhava com sensualidade os globulosinhos vivos que subiam, sem cessar, no copo esguio.
-- Se fosse rica, bebia sempre champagne -- disse.
Luiza não: ambicionava um coupé; e queria viajar, ir a Paris, a Sevilha, a Roma... Mas os desejos de Leopoldina eram mais vastos: invejava uma larga vida, com carruagens, camarotes d'assignatura, uma casa em Cintra, cêas, bailes, toilettes, jogo... Porque gostava do monte -- dizia -- fazia-lhe bater o coração. E estava convencida que havia de adorar a roleta.
-- Ah! -- exclamou -- Os homens são bem mais felizes que nós! Eu nasci para homem! O que eu faria!
Levantou-se, foi-se deixar cahir muito languidamente na voltaire, ao pé da janella. A tarde descia serenamente; por traz das casas, para lá dos terrenos vagos, nuvens arredondavam-se, amarelladas, orladas de côres sanguineas ou de tons alaranjados.
E voltando-lhe a mesma idéa d'acção, d'independencia:
-- Um homem póde fazer tudo! Nada lhe fica mal! Póde viajar, correr aventuras... Sabes tu, fumava agora um cigarrito...
O peor é que Juliana podia sentir o cheiro. E parecia tão mal!...
-- É um convento, isto! -- murmurou Leopoldina. -- Não tens má prisão, minha filha!
Luiza não respondeu; tinha encostado a cabeça á mão: e com o olhar vago, como continuando alguma idéa:
-- São tolices, no fim, andar, viajar! A unica cousa n'este mundo é a gente estar na sua casa, com o seu homem, um filho ou dous...
Leopoldina deu um salto na voltaire. Filhos! Credo, que nem fallasse em semelhante cousa! Todos os dias dava graças a Deus em os não ter!
-- Que horror! -- exclamou com convicção. -- O incommodo todo o tempo que se está!... as despezas! os trabalhos, as doenças! Deus me livre! É uma prisão! E depois quando crescem, dão fé de tudo, palram, vão dizer... Uma mulher com filhos está inutil para tudo, está atada de pés e mãos! Não ha prazer na vida. É estar alli a atural-os... Credo! Eu? Que Deus não me castigue, mas se tivesse essa desgraça parece-me que ia ter com a velha da travessa da Palha!
-- Que velha? -- perguntou Luiza.
Leopoldina explicou. Luiza achava uma «infamia». A outra encolheu os hombros, acrescentou:
-- E depois, minha rica, é que uma mulher estraga-se: não ha belleza de corpo que resista. Perde-se o melhor. Quando se é como a tua amiga, a D. Felicidade, emfim!... Mas quando se é direitinha e arranjadinha!... Nada, minha rica! Embaraços não faltam!
Por baixo, na rua, o realejo do bairro, no seu giro da tarde, veio tocar o final da Traviata; ia escurecendo; já as verduras dos quintaes tinham uma igual côr parda; e as casas para além esbatiam-se na sombra.
A Traviata lembrou a Luiza a Dama das Camelias: fallaram do romance: recordaram episodios...
-- Que paixão que eu tive por Armando em rapariga! -- disse Leopoldina.
-- E eu foi por d'Artagnan -- exclamou ingenuamente Luiza.
Riram muito.
-- Começamos cedo -- observou Leopoldina. -- Dá-me uma gotinha mais.
Bebeu, pousou o calix -- e encolhendo os hombros:
-- Oh! Começamos cedo? Começam todas! Aos treze annos já a gente vai na sua quarta paixão. Todas são mulheres, todas sentem o mesmo! -- E batendo o compasso com o pé, cantou, no tom do fado:
O amor é uma doença
Que costuma andar no ar;
Só d'ir á janella, ás vezes
S'apanha a febre d'amar!
Estou hoje com uma telha! -- E espreguiçando-se muito languidamente: -- No fim de contas é o que ha de melhor n'este mundo: o resto é uma semsaboria! Não é verdade? Dize, tu! Não é verdade?
Luiza murmurou:
-- Se é! -- E acrescentou logo: -- Creio eu!
Leopoldina ergueu-se, e escarnecendo-a:
-- Crê ella! Pobre innocentinha! Vejam o anjinho!
Foi-se encostar á janella; ficou a olhar pelos vidros o descer do crepusculo; de repente pôz-se a dizer devagar:
-- Realmente vale bem a pena estar uma pobre de Christo a privar-se, a passar uma vida de coruja, a mortificar-se, para vir um dia uma febre, um ar, uma soalheira, e boas noites, vai-se para o Alto de S. João! Tó rola!
A sala agora estava um pouco escura.
-- Pois não te parece? -- perguntou ella.
Aquella conversa embaraçava Luiza: sentia-se córar; mas o crepusculo, as palavras de Leopoldina davam-lhe como o enfraquecimento d'uma tentação. Declarou todavia immoral semelhante idéa.
-- Immoral, porque?
Luiza fallou vagamente nos deveres, na religião. Mas os deveres irritavam Leopoldina. Se havia uma cousa que a fizesse sahir de si -- dizia -- era ouvir fallar em deveres!...
-- Deveres? Para com quem? Para um maroto como meu marido?
Calou-se, e passeando pela sala excitada:
-- E em quanto a religião, historias! A mim me dizia o padre Estevão, o de luneta, que tem os dentes bonitos, que me dava todas as absolvições, se eu fosse com elle a Carriche!
-- Ah, os padres... -- murmurou Luiza.
-- Os padres quê? São a religião! Nunca vi outra. Deus, esse, minha rica, está longe, não se occupa do que fazem as mulheres.
Luiza achava horrivel «aquelle modo de pensar». A felicidade, a verdadeira, segundo ella, era ser honesta...
-- E a bisca em familia! -- resmungou Leopoldina, com odio.
Luiza disse, animada:
-- Pois olha que com as tuas paixões, umas atraz das outras...
Leopoldina estacou:
-- O que?
-- Não te podem fazer feliz!
-- Está claro que não! -- exclamou a outra. -- Mas... -- procurou a palavra; não a quiz empregar de certo; disse apenas com um tom secco: -- Divertem-me!
Calaram-se. Luiza pediu o café.
Juliana entrou com a bandeja, trouxe luz; d'ahi a pouco foram para a sala.
-- Sabes quem me fallou hontem de ti? -- disse Leopoldina, indo estender-se no divan.
-- Quem?
-- O Castro.
-- Que Castro?
-- O d'oculos, o banqueiro.
-- Ah!
-- Muito apaixonado por ti sempre.
Luiza riu.
-- Doudo, palavra! -- affirmou Leopoldina.
A sala estava ás escuras, com as janellas abertas; a rua esbatia-se n'um crepusculo pardo: um ar languido e dôce amaciava a noite.
Leopoldina esteve um momento calada; mas o champagne, a meia obscuridade deram-lhe bem depressa a necessidade de cochichar confidenciasinhas. Estirou-se mais no divan, n'uma attitude toda abandonada; pôz-se a fallar «d'elle». Era ainda o Fernando, o poeta. Adorava-o.
-- Se tu soubesses! -- murmurava com um ar de extase. -- É um amor de rapaz!
A sua voz velada tinha inflexões d'uma ternura calida. Luiza sentia-lhe o halito e o calor do corpo, quasi deitada tambem, enervada; a sua respiração alta tinha por vezes um tom suspirado: e a certos detalhes mais picantes de Leopoldina soltava um risinho quente e curto, como de cocegas... Mas passos fortes de botas de taxas subiram a rua, e no candieiro defronte o gaz saltou com um jacto vivo. Uma branda claridade pallida penetrou na sala.
Leopoldina ergueu-se logo. -- Tinha d'ir já, já, ao accender do gaz. Estava á espera, o pobre rapaz! Entrou no quarto, mesmo ás escuras, a pôr o chapéo, buscar a sombrinha. -- Tinha-lhe promettido, coitado, não podia faltar. Mas realmente embirrava d'ir só. Era tão longe! Se a Juliana podesse vir acompanhal-a...
-- Vai, sim, filha! -- disse Luiza.
Ergueu-se preguiçosamente com um grande ai! foi abrir a porta, e deu de cara com Juliana, na sombra do corredor.
-- Credo, mulher, que susto!
-- Vinha saber se queriam luz...
-- Não. Vá pôr um chale para acompanhar a snr.a D. Leopoldina! Depressa!
Juliana foi correndo.
-- E quando appareces tu, Leopoldina? -- perguntou Luiza.
Logo que podesse. Para a semana estava com idéas d'ir ao Porto vêr a tia Figueiredo, passar quinze dias na Foz...
A porta abriu-se.
-- Quando a senhora quizer... -- disse Juliana.
Fizeram grandes adeuses, beijaram-se muito. Luiza disse rindo ao ouvido de Leopoldina: -- Sê feliz!
Ficou só. Fechou as janellas, accendeu as velas, começou a passear pela sala, esfregando devagar as mãos. E, sem querer, não podia desprender a idéa de Leopoldina que ia vêr o seu amante! O seu amante!...
Seguia-a mentalmente: -- caminhava depressa de certo fallando com Juliana; chegava; subia a escada, nervosa; atirava com a porta -- e que delicioso, que avido, que profundo o primeiro beijo! Suspirou. Tambem ella amava -- e um mais bello, mais fascinante. Porque não tinha vindo?
Sentou-se ao piano preguiçosamente; pôz-se a cantar baixo, triste, o fado de Leopoldina:
E por mais longe que esteja
Vejo-o sempre ao pé de mim!...
Mas um sentimento de solidão, d'abandono, veio impaciental-a. Que sécca, estar alli tão sósinha! Aquella noite calida, bella e dôce, attrahia-a, chamava-a para fóra, para passeios sentimentaes, ou para contemplações do céo, n'um banco de jardim, com as mãos entrelaçadas. Que vida estupida, a d'ella! Oh! aquelle Jorge! Que idéa ir para o Alemtejo!
As conversas de Leopoldina e a lembrança das suas felicidades voltavam-lhe a cada momento; uma pontinha de champagne agitava-se-lhe no sangue. O relogio do quarto começou lentamente a dar nove horas -- e de repente a campainha retiniu.
Teve um sobresalto: não podia ser ainda Juliana! Poz-se a escutar, assustada. Vozes fallavam á cancella.
-- Minha senhora -- veio dizer Joanna baixo -- é o primo da senhora que diz que se vem despedir...
Abafou um grito, balbuciou:
-- Que entre!
Os seus olhos dilatados cravavam-se febrilmente na porta. O reposteiro franziu-se, Bazilio entrou, pallido, com um sorriso fixo.
-- Tu partes! -- exclamou ella surdamente, precipitando-se para elle.
-- Não! -- E prendeu-a nos braços. -- Não! Imaginei que me não recebias a esta hora, e tomei este pretexto.
Apertou-a contra si, beijou-a; ella deixava, toda abandonada; os seus labios prendiam-se aos d'elle. Bazilio deitou um olhar rapido, em redor, pela sala, e foi-a levando abraçada, murmurando: Meu amor! minha filha! Mesmo tropeçou na pelle de tigre, estendida ao pé do divan.
-- Adoro-te!
-- Que susto que tive! -- suspirou Luiza.
-- Tiveste?
Ella não respondeu; ia perdendo a percepção nitida das cousas; sentia-se como adormecer; balbuciou: Jesus! não! não! Os seus olhos cerraram-se.
Quando a campainha retiniu fortemente ás dez horas, Luiza, havia momentos, sentára-se á beira do divan. Mal teve força de dizer a Bazilio:
-- Ha-de ser a Juliana, tinha ido fóra...
Bazilio cofiou o bigode, deu duas voltas na sala, foi accender um charuto. Para quebrar o silencio sentou-se ao piano, tocou alguns compassos ao acaso, e, erguendo um pouco a voz, começou a cantarolar a aria do 3.º acto do Fausto:
Al pallido chiarore
Del astri d'oro...
Luiza, através das ultimas vibrações dos seus nervos, ia entrando na realidade; os seus joelhos tremiam. E então, ouvindo aquella melodia, uma recordação foi-se formando no seu espirito, ainda estremunhado: -- era uma noite, havia annos, em S. Carlos, n'um camarote com Jorge; uma luz electrica dava ao jardim, no palco, um tom livido de luar legendario; e n'uma altitude extatica e suspirante o tenor invocava as estrellas; Jorge tinha-se voltado, dissera-lhe: Que lindo! E o seu olhar devorava-a. Era no segundo mez do seu casamento. Ella estava com um vestido azul-escuro. E á volta, na carruagem, Jorge, passando-lhe a mão pela cinta, repetia:
Al pallido chiarore
Del astri d'oro...
E apertava-a contra si...
Ficára immovel á beira do divan, quasi a escorregar, os braços frouxos, o olhar fixo, a face envelhecida, o cabello desmanchado. Bazilio então veio sentar-se devagarinho junto d'ella. -- Em que estava a pensar?
-- Nada.
Elle passou-lhe o braço pela cinta, começou a dizer que havia de procurar uma casinha para se verem melhor, estarem mais á vontade; não era mesmo prudente alli em casa d'ella...
E fallando, voltava a cada momento o rosto, soprava para o lado o fumo do charuto.
-- Não te parece que vir eu aqui, todos os dias, póde ser reparado?
Luiza ergueu-se bruscamente, lembrára-lhe Sebastião!... E com uma voz um pouco desvairada:
-- Já é tão tarde! -- disse.
-- Tens razão.
Foi buscar o chapéo em bicos de pés, veio beijal-a muito, sahiu.
-- Luiza sentiu-o accender um phosphoro, fechar devagarinho a cancella.
Estava só; pôz-se a olhar em roda, como idiota. O silencio da sala parecia-lhe enorme. As velas tinham uma chamma avermelhada. Piscava os olhos, tinha a bocca sêcca. Uma das almofadas do divan estava cahida, apanhou-a.
E com um ar somnambulo entrou no quarto. Juliana veio trazer o rol. E já vinha com a lamparina, estava a arranjal-a...
Tinha tirado a cuia; subiu á cozinha quasi a correr. A Joanna, que estivera dormitando, espreguiçava-se com bocejos enormes.
Juliana pôz-se a arranjar a torcida da lamparina; os dedos tremiam-lhe; tinha no olhar um brilho agudo; e depois de tossir, devagarinho, com um sorriso para Joanna:
-- E então a que horas veio o primo da senhora?
-- Veio logo que vossemecê sahiu, estavam a dar as nove.
-- Ah!
Desceu com a lamparina; e sentindo Luiza na alcova despir-se:
-- A senhora não quer chá? -- perguntou, com muito interesse.
-- Não.
Foi á sala, fechou o piano. Havia um forte cheiro de charuto. Pôz-se a olhar em redor, devagar, andando com um passo subtil... De repente agachou-se, anciosamente: ao pé do divan uma cousa reluzia. Era uma travessa de Luiza, de tartaruga, com o aro dourado. Tornou a entrar no quarto em pontas de pés, pousou-a no toucador, entre os rôlos de cabello.
-- Quem anda ahi? -- perguntou da alcova a voz somnolenta de Luiza.
-- Sou eu, minha senhora, sou eu, estive a fechar a sala. Muito boas noites, minha senhora!
Áquella hora Bazilio entrava no Gremio. Procurou pelas salas. Estavam quasi desertas. Dous sujeitos, com os rostos entre os punhos, curvados em attitudes lugubres, ruminavam os jornaes: aqui, além, junto a mesinhas redondas, pessoas de calça branca mastigavam torradas com uma satisfação placida; as janellas estavam fechadas, a noite quente, e o calor molle do gaz abafava. Ia descer quando de uma saleta de jogo, de repente, sahiu o ruido irritado de uma altercação; trocavam-se injurias, gritava-se: -- Mente! O asno é vossê!
Bazilio estacou, escutando. Mas, subitamente, fez-se um grande silencio; uma das vozes disse com brandura:
-- Paus!
A outra respondeu com benevolencia:
-- É o que devia ter feito ha pouco.
E immediatamente a questão rebentou de novo, estridente. Praguejavam, diziam obscenidades.
Bazilio foi ao bilhar. O visconde Reynaldo, de pé, apoiado ao taco, seguia com uma immobilidade grave o jogo do seu parceiro; mas apenas viu Bazilio, veio para elle rapidamente, e muito interessado:
-- Então?
-- Agora mesmo -- disse Bazilio mordendo o charuto.
-- Emfim, hein? -- exclamou Reynaldo, arregalando os olhos, com uma grande alegria.
-- Emfim!
-- Ainda bem, menino! Ainda bem!
Batia-lhe no hombro, commovido.
Mas chamaram-no para jogar; e todo estirado sobre o bilhar, com uma perna no ar, para dar com mais segurança o effeito, dizia com a voz constrangida pela attitude:
-- Estimo, estimo, porque essa cousa começava a arrastar...
Tac! Falhou a carambola.
-- Não dou meia! -- murmurou com rancor.
E chegando-se a Bazilio, a dar giz no taco:
-- Ouve cá...
Fallou-lhe ao ouvido.
-- Como um anjo, menino! -- suspirou Bazilio.
VI
Foi Juliana que na manhã seguinte veio acordar Luiza, dizendo á porta da alcova com a voz abafada, em confidencia:
-- Minha senhora! Minha senhora! É um criado com esta carta, diz que vem do hótel.
Foi abrir uma das janellas, em bicos de pés; e voltando á alcova com uma cautela mysteriosa:
-- E está á espera da resposta, está á porta.
Luiza, estremunhada, abriu o largo enveloppe azul com um monogramma -- dous BB, um purpura, outro ouro, sob uma corôa de conde.
-- Bem, não tem resposta.
Não tem resposta -- foi dizer Juliana ao criado, que esperava encostado ao corrimão, fumando um grande charuto, e cofiando as suiças pretas.
-- Não tem resposta? Bem, muito bom dia. -- Levou o dedo seccamente á aba do «côco», e desceu, gingando.
Perfeito homem! foi pensando Juliana, pela escada da cozinha.
-- Quem bateu, snr.a Juliana? -- perguntou-lhe logo a cozinheira.
Juliana resmungou:
-- Ninguem, um recado da modista.
Desde pela manhã a Joanna achava-lhe o «ar exquisito». Sentira-a desde as sete horas varrer, espanejar, sacudir, lavar as vidraças da sala de jantar, arrumar as louças no aparador. E com uma azafama! Ouvira-a cantar a Carta adorada, ao mesmo tempo que os canarios, nas varandas abertas, chilreavam estridentemente ao sol. Quando veio tomar o seu café á cozinha não palestrou como de costume; parecia preoccupada e ausente.
Joanna até lhe perguntou:
-- Sente-se peor, snr.a Juliana?
-- Eu? Graças a Deus, nunca me senti tão bem.
-- Como a vejo tão calada...
-- A malucar cá por dentro... A gente nem sempre está para grulhar.
Apesar de serem nove horas não quizera acordar a senhora. Deixal-a descançar, coitada -- disse. Foi em pontas de pés encher devagarinho a bacia grande do banho, no quarto; para não fazer ruido, sacudiu no corredor as saias, o vestido da vespera: e os seus olhos brilharam avidamente quando sentiu na algibeirinha um papel amarrotado! Era o bilhete que Luiza escrevera a Bazilio: «Porque não vens?... Se soubesses o que me fazes soffrer!...» Teve-o um momento na mão, mordendo o beiço, o olhar fixo n'um calculo agudo; por fim tornou a mettel-o na algibeira de Luiza, dobrou o vestido, foi estendel-o com muito cuidado na causeuse.
Enfim, mais tarde, sentindo o cuco dar horas, decidiu-se a ir dizer a Luiza, com uma voz meiga:
-- São dez e meia, minha senhora!
Luiza, na cama, tinha lido, relido o bilhete de Bazilio: «Não pudera -- escrevia ele -- estar mais tempo sem lhe dizer que a adorava. Mal dormira! Erguera-se de manhã muito cêdo para lhe jurar que estava louco, e que punha a sua vida aos pés d'ella.» Compozera aquella prosa na vespera, no Gremio, ás tres horas, depois de alguns robbers d'whist, um bife, dous copos de cerveja e uma leitura preguiçosa da Illustração. E terminava, exclamando: -- «Que outros desejem a fortuna, a gloria, as honras, eu desejo-te a ti! Só a ti, minha pomba, porque tu és o unico laço que me prende á vida, e se ámanhã perdesse o teu amor, juro-te que punha um termo, com uma boa bala, a esta existencia inutil!» -- Pedira mais cerveja, e levára a carta para a fechar em casa, n'um enveloppe com o seu monogramma, «porque sempre fazia mais effeito».
E Luiza tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquellas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que sahia d'ellas, como um corpo resequido que se estira n'um banho tepido: sentia um acrescimo de estima par si mesma, e parecia-lhe que entrava emfim n'uma existencia superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto differente, cada passo conduzia a um extase, e a alma se cobria d'um luxo radioso de sensações!
Ergueu-se d'um salto, passou rapidamente um roupão, veio levantar os transparentes da janella... Que linda manhã! Era um d'aquelles dias do fim d'agosto em que o estio faz uma pausa; ha prematuramente, no calor e na luz, uma certa tranquillidade outonal; o sol cahe largo, resplandecente, mas pousa de leve; o ar não tem o embaciado canicular, e o azul muito alto reluz com uma nitidez lavada; respira-se mais livremente; e já se não vê na gente que passa o abatimento molle da calma enfraquecedora. Veio-lhe uma alegria: sentia-se ligeira, tinha dormido a noite d'um somno são, continuo, e todas as agitações, as impaciencias dos dias passados pareciam ter-se dissipado n'aquelle repouso. Foi-se vêr ao espelho; achou a pelle mais clara, mais fresca, e um enternecimento humido no olhar; -- seria verdade então o que dizia Leopoldina, que «não havia como uma maldadesinha para fazer a gente bonita?» Tinha um amante, ella!
E immovel no meio do quarto, os braços cruzados, o olhar fixo, repetia: Tenho um amante! Recordava a sala na vespera, a chamma aguçada das velas, e certos silencios extraordinarios em que lhe parecia que a vida parára, em quanto os olhos do retrato da mãi de Jorge, negros na face amarella, lhe estendiam da parede o seu olhar fixo de pintura. Mas Juliana entrou com um taboleiro de roupa passada. Eram horas de se vestir...
Que requintes teve n'essa manhã! Perfumou a agua com um cheiro de Lubin, escolheu a camisinha que tinha melhores rendas. E suspirava por ser rica! Queria as bretanhas e as hollandas mais caras, as mobilias mais apparatosas, grossas joias inglezas, um coupé forrado de setim... Porque nos temperamentos sensiveis as alegrias do coração tendem a completar-se com as sensualidades do luxo: o primeiro erro que se installa n'uma alma até ahi defendida, facilita logo aos outros entradas tortuosas; -- assim, um ladrão que se introduz n'uma casa vai abrindo subtilmente as portas á sua quadrilha esfomeada.
Subiu para o almoço, muito fresca, com o cabello em duas tranças, um roupão branco. Juliana precipitou-se logo a fechar as janellas, «porque apesar de não estar calor, as portadas cerradas sempre davam mais frescura!» E, vendo que lhe esquecera o lenço, correu a buscar-lhe um, que perfumou com agua de colonia. Servia-a com ternura. Viu-a comer muitos figos:
-- Não lhe vão fazer mal, minha senhora! -- exclamou quasi lacrimosamente.
Andava em redor d'ella com um sorriso servil, sem ruido: ou defronte da mesa, com os braços cruzados, parecia admiral-a com orgulho, como um sêr precioso e querido, todo seu, a sua ama! O seu olhar esbugalhado apossava-se d'ella.
E dizia consigo:
-- Grande cabra! Grande bebeda!
Luiza, depois de almoço, veio para o quarto estender-se na causeuse, com o seu Diario de Noticias. Mas não podia lêr. As recordações da vespera redemoinhavam-lhe n'alma a cada momento, como as folhas que um vento d'outono levanta a espaços d'um chão tranquillo: certas palavras d'elle, certos impetos, toda a sua maneira d'amar... E ficava immovel, o olhar afogado n'um fluido, sentindo aquellas reminiscencias vibrarem-lhe muito tempo, dôcemente, nos nervos da memoria. Todavia a lembrança de Jorge não a deixava; tivera-a sempre no espirito, desde a vespera; não a assustava, nem a torturava; estava alli, immovel mas presente, sem lhe fazer medo, nem lhe trazer remorso; era como se elle tivesse morrido, ou estivesse tão longe que não podesse voltar, ou a tivesse abandonado! Ela mesmo se espantava de se sentir tão tranquilla. E todavia impacientava-a ter constantemente aquella idéa no espirito, impassivel, com uma obstinação espectral; punha-se instinctivamente a accumular as justificações: Não fôra culpa sua. Não abrira os braços a Bazilio voluntariamente!... Tinha sido uma fatalidade: fôra o calor da hora, o crepusculo, uma pontinha de vinho talvez... Estava douda, de certo. E repetia comsigo as attenuações tradicionaes: não era a primeira que enganára seu marido; e muitas era apenas por vicio, ella fôra por paixão... Quantas mulheres viviam n'um amor illegitimo e eram illustres, admiradas! Rainhas mesmo tinham amantes. E elle amava-a tanto!... Seria tão fiel, tão discreto! As suas palavras eram tão captivantes, os seus beijos tão estonteadores!... E emfim que lhe havia de fazer agora? Já agora!...
E resolveu ir responder-lhe. Foi ao escriptorio. Logo ao entrar o seu olhar deu com a photographia de Jorge -- a cabeça de tamanho natural, -- no seu caixilho envernizado de preto. Uma commoção comprimiu-lhe o coração; ficou como tolhida -- como uma pessoa encalmada de ter corrido, que entra na frieza d'um subterraneo; e examinava o seu cabello frisado, a barba negra, a gravata de pontas, as duas espadas encruzadas que reluziam por cima. Se elle soubesse matava-a!... Fez-se muito pallida. Olhava vagamente em redor o casaco de velludo de trabalho dependurado n'um prego, a manta em que elle embrulhava os pés dobrada a um lado, as grandes folhas de papel de desenho na outra mesa ao fundo, e o pótesinho do tabaco, e a caixa das pistolas!... Matava-a de certo!
Aquelle quarto estava tão penetrado da personalidade de Jorge, que lhe parecia que elle ia voltar, entrar d'ahi a bocado... Se elle viesse de repente!... Havia tres dias que não recebia carta -- e quando ella estivesse alli a escrever ao seu amante, n'um momento o outro podia apparecer e apanhal-a!... Mas eram tolices, pensou. O vapor do Barreiro só chegava ás cinco horas; e depois elle dizia na ultima carta que ainda se demorava um mez, talvez mais...
Sentou-se, escolheu uma folha de papel, começou a escrever, na sua letra um pouco gorda:
«Meu adorado Bazilio .
Mas um terror importuno tolhia-a; sentia como um palpite de que elle vinha, ia entrar... Era melhor não se pôr a escrever, talvez!... Ergueu-se, foi á sala devagar, sentou-se no divan; e, como se o contacto d'aquelle largo sophá e o ardor das recordações que elle lhe trazia da vespera lhe tivesse dado a coragem das acções amorosas e culpadas, voltou muito decidida ao escriptorio, escreveu rapidamente:
«Não imaginas com que alegria recebi esta manhã a tua carta...»
A penna velha escrevia mal; molhou-a mais, e ao sacudil-a, como lhe tremia um pouco a mão, um borrão negro cahiu no papel. Ficou toda contrariada, pareceu-lhe aquillo um mau agouro. Hesitou um momento, -- e coçando a cabeça, com os cotovêlos sobre a mesa, sentia Juliana varrer fóra o patamar, cantarolando a Carta adorada. Emfim, impaciente, rasgou a folha muitas vezes em pedacinhos miudos -- e atirou-os para um caixão de pau envernizado com duas argolas de metal, que estava ao canto junto á mesa, onde Jorge deitava os rascunhos velhos e os papeis inuteis: chamavam-lhe o sarcophago; Juliana, de certo, descuidára-se de o esvaziar no lixo, porque transbordava de papelada.
Escolheu outra folha, recomeçou:
«Meu adorado Bazilio .
«Não imaginas como fiquei quando recebi a tua carta, esta manhã, ao acordar. Cobri-a de beijos...»
Mas o reposteiro franziu-se n'uma prega molle, a voz de Juliana disse discretamente:
-- Está alli a costureira, minha senhora.
Luiza, sobresaltada, tinha tapado a folha de papel com a mão.
-- Que espere.
E continuou:
«...Que tristeza que fosse a carta e que não fosses tu que alli estivesses! Estou pasmada de mim mesma, como em tão pouco tempo te apossaste do meu coração, mas a verdade é que nunca deixei de te amar. Não me julgues por isto leviana, nem penses mal de mim, porque eu desejo a tua estima, mas é que nunca deixei de te amar e ao tornar a vêr-te, depois d'aquella estupida viagem para tão longe, não fui superior ao sentimento que me impellia para ti, meu adorado Bazilio. Era mais forte que eu, meu Bazilio. Hontem, quando aquella maldita criada me veio dizer que tu te vinhas despedir, Bazilio, fiquei como morta; mas quando vi que não, nem eu sei, adorei-te! E se tu me tivesses pedido a vida dava-t'a, porque te amo, que eu mesma, me estranho... Mas para que foi aquella mentira, e para que vieste tu? Mau! tinha vontade de te dizer adeus para sempre, mas não posso, meu adorado Bazilio! É superior a mim. Sempre te amei, e agora que sou tua, que te pertenço corpo e alma, parece-me que te amo mais, se é possivel...»
-- Onde está ella? Onde está ella? -- disse uma voz na sala.
Luiza ergueu-se, com um salto, livida. Era Jorge! Amarrotou convulsivamente a carta, quiz escondel-a no bolso, -- o roupão não tinha bolso! E desvairada, sem reflexão, arremessou-a para o sarcophago. Ficou de pé, esperando, as duas mãos apoiadas á mesa, a vida suspensa.
O reposteiro ergueu-se, -- e reconheceu logo o chapéo de velludo azul de D. Felicidade.
-- Aqui mettida, sua brejeira! Que estavas tu aqui a fazer? Que tens tu, filha, estás como a cal...
Luiza deixou-se cahir no fauteuil, branca e fria, disse com um sorriso cançado:
-- Estava a escrever, deu-me uma tontura...
-- Ai! Tonturas, eu! -- acudiu logo D. Felicidade -- É uma desgraça, a cada momento a agarrar-me aos moveis, até tenho medo d'andar só. Falta de purgas!
-- Vamos para o quarto! -- disse logo Luiza. -- Estamos melhor no quarto.
Ao erguer-se, as pernas tremiam-lhe.
Atravessaram a sala: Juliana começava a arrumar. Luiza, ao passar, viu na pedra da console, debaixo do espelho oval, uma pouca de cinza: era da vespera, do charuto d'elle! Sacudiu-a -- e ao erguer os olhos, ficou pasmada de se vêr tão pallida.
A costureira vestida de preto, com um chapéo de fitas rôxas, esperava sentada á beira da causeuse, com um olhar infeliz e o seu embrulho nos joelhos; vinha provar o corpete d'um vestido composto; assentou, pregou, alinhavou, fallando baixo, com uma humildade triste e uma tossinha sêcca ; e apenas ella sahiu, de leve, com o seu andar de sombra, o chale tinto muito cingido ás omoplatas magras, -- D. Felicidade começou logo a fallar d'elle, do Conselheiro. Tinha-o encontrado no Moinho de Vento. Pois, senhores, nem lhe viera fallar! Fizera-lhe uma cortezia muito sêcca, por demais, e tic-tic por alli fóra, que se diria que ia fugido! Que te parece? Ai! aquellas indifferenças matavam-na. E não as comprehendia, não, realmente não as comprehendia...
-- Porque emfim -- exclamava -- eu bem me conheço, não sou nenhuma criança, mas tambem não sou nenhum caco! Pois não é verdade?
-- Certamente -- disse Luiza distrahida. Lembrava-lhe a carta.
-- Olha que aqui onde me vês com os meus quarenta, decotada, ainda valho! O que são hombros e collo é do melhor!
Luiza ia erguer-se. Mas D. Felicidade repetiu:
-- Do melhor! Tomaram-no muitas novas!
-- Creio bem -- concordou Luiza, sorrindo vagamente.
-- E elle tambem não é nenhum rapazinho novo...
-- Não...
-- Mas muito bem conservado! -- E os olhos luziam-lhe -- Para fazer ainda uma mulher muito feliz!
-- Muito...
-- Um homem d'appetecer! -- suspirou D. Felicidade.
E Luiza, então:
-- Tu esperas um instantinho! Vou lá dentro e volto já.
-- Vai, filha, vai.
Luiza correu ao escriptorio, direita ao sarcophago. Estava vazio! E a carta d'ella, Santo Deus!
Chamou logo Juliana, aterrada.
-- Vossê despejou o caixão dos papeis?
-- Despejei, sim, minha senhora -- respondeu muito tranquillamente.
E com interesse:
-- Porquê, perdeu-se algum papel?
Luiza fazia-se pallida.
-- Foi um papel que eu atirei para o caixão. Onde o despejou vossê?
-- No barril do lixo, como é costume, minha senhora; imaginei que nada servia...
-- Ah! deixe vêr!
Subiu rapidamente á cozinha.
Juliana, atraz, ia dizendo:
-- Ora esta! Pois ainda não ha cinco minutos! O caixão estava mais cheio... Andei a dar uma arrumadella no escriptorio... Valha-me Deus, se a senhora tem dito...
Mas o barril do lixo estava vazio. Joanna tinha-o ido despejar abaixo n'aquelle instantinho; e vendo a inquietação de Luiza:
-- Porquê, perdeu-se alguma cousa?
-- Um papel -- disse Luiza, que olhava em redor, pelo chão, muito branca.
-- Elle iam uns poucos de papeis, minha senhora -- disse a rapariga -- eu deitei tudo ao despejo.
-- Podia ter ficado algum cahido por fóra, snr.a Joanna -- lembrou timidamente Juliana.
-- Vá vêr, vá vêr, Joanna -- acudiu Luiza com uma esperança.
Juliana parecia afflicta:
-- Jesus, Senhor! Eu podia lá adivinhar! Mas para que não disse a senhora...?
-- Bem, bem, a culpa não é sua, mulher...
-- Credo, que até se me está a embrulhar o estomago... E é cousa de importancia, minha senhora?
-- Não, é uma conta...
-- Valha-me Deus!...
Joanna voltou, sacudindo um papel enxovalhado. Luiza agarrou-o, leu: -- «... o diametro do primeiro poço de exploração...»
-- Não, não é isto! -- exclamou toda contrariada.
-- Então foi p'ra baixo p'ra o cano, minha senhora, não está mais nada.
-- Viu bem?
-- Esquadrinhei tudo...
E Juliana continuava, desolada:
-- Antes queria perder dez tostões! Uma assim! Eu, minha senhora, podia lá adivinhar...
-- Bem, bem! -- murmurou Luiza descendo.
Mas estava assustada, sentia mesmo uma suspeita indefinida... Lembrou-lhe o bilhete que escrevera na vespera a Bazilio, e que mettera, todo amarrotado, no bolso do vestido... Entrou no quarto, agitada.
D. Felicidade tirára o chapéo, acommodára-se na causeuse.
-- Tu desculpas, hein? -- fez Luiza.
-- Anda, filha, anda! Que é?
-- Perdi uma conta -- respondeu.
Foi ao guarda-vestidos, achou logo o bilhete na algibeira... Aquillo serenou-a. A carta tinha ido para o lixo de certo. Mas que imprudencia!
-- Bem, acabou-se! -- disse, sentando-se resignada.
E D. Felicidade immediatamente, baixando a voz muito confidencialmente:
-- Ora eu vinha-te fallar n'uma cousa. Mas vê lá! Olha que é segredo.
Luiza ficou logo sobresaltada.
-- Tu sabes -- continuou D. Felicidade, devagar, com pausas -- que a minha criada, a Josepha, está para casar com o gallego... O homem é de ao pé de Tuy, e diz que na terra d'elle ha uma mulher que tem uma virtude para fazer casamentos que é uma cousa milagrosa... Diz que é o mais que ha... Em deitando a sorte a um homem, -- o homem entra-lhe uma tal paixão que se arranja logo o casamento, e é a maior felicidade.
Luiza tranquillisada, sorriu.
-- Escuta -- acudiu D. Felicidade -- não te ponhas já com as tuas cousas...
No seu tom grave havia um respeito supersticioso.
-- Diz que tem feito milagres. Homens que tinham desamparado raparigas, outros que não faziam caso d'ellas, maridos que tinham amigas, emfim toda a sorte de ingratidão... Em a mulher deitando o encanto, os homens começam a esmorecer, a arrepender-se, a apaixonar-se, e estão pelo beiço... A rapariga contou-me isto. Eu lembrei-me logo...
-- De deitar uma sorte ao Conselheiro! -- exclamou Luiza.
-- Que te parece?
Luiza deu uma risada sonora. Mas D. Felicidade quasi se escandalisou. Contou outros casos: um fidalgo que deshonrára uma lavadeira; um homem que abandonou a mulher e os filhos, fugira com uma bebeda... Em todos a sorte operára d'um modo fulminante produzindo um amor subito e fogoso pela pessoa desprezada. Appareciam logo rendidos, se estavam perto; se estavam longe, voltavam, avidos, a pé, a cavallo, na mala-posta, apressando-se, ardendo... E entregavam-se, mansos e humildes como escravos acorrentados...
-- Mas o gallego -- continuava ella muito excitada -- diz que para ir á terra, fallar á mulher, levar o retrato do Conselheiro, é necessario o retrato d'elle, o meu, é necessario o meu, ir fallar, voltar -- quer sete moedas!...
-- Oh D. Felicidade! -- fez Luiza reprehensivamente.
-- Não me digas, não venhas com as tuas! Olha que eu sei de casos...
E erguendo-se:
-- Mas são sete moedas! Sete moedas! -- exclamou, arregalando os olhos.
Juliana appareceu á porta, e muito baixinho, com um sorriso:
-- A senhora faz favor?
Chamou-a para o corredor, em segredo:
-- Esta carta. Que vem do hótel.
Luiza fez-se escarlate.
-- Credo, mulher! não é necessario fazer mysterios!
Mas não entrou no quarto, abriu-a logo no corredor; era a lapis, escripta á pressa:
«Meu amor -- dizia Bazilio -- por um feliz acaso descobri o que precisavamos, um ninho discreto para nos vêrmos...» E indicava a rua, o numero, os signaes, o caminho mais perto. «... Quando vens, meu amor? Vem ámanhã. Baptisei a casa com o nome de Paraiso: para mim, minha adorada, é com effeito o paraiso. Eu espero-te lá desde o meio dia: logo que te aviste, desço.»
Aquella precipitação amorosa em arranjar o ninho -- provando uma paixão impaciente, toda occupada d'ella -- produziu-lhe uma dilatação dôce do orgulho; ao mesmo tempo que aquelle Paraiso secreto, como n'um romance, lhe dava a esperança de felicidades excepcionaes; e todas as suas inquietações, os sustos da carta perdida se dissiparam de repente sob uma sensação calida, como flocos de nevoa sob o sol que se levanta.
Voltou ao quarto, com o olhar risonho.
-- Que te parece, hein? -- perguntou logo D. Felicidade, a quem a sua idéa occupava tyrannicamente.
-- O que?
-- Achas que mande o homem a Tuy?
Luiza encolheu os hombros; veio-lhe um tedio de taes enredos de bruxaria, misturados a amores caturras. Na vaidade da sua intriga romantica achava repugnante aquelle sentimentalismo senil.
-- Tolices! -- disse com muito desdem.
-- Oh filha! não me digas, não me digas! -- acudiu desolada D. Felicidade.
-- Bem, então manda, manda! -- fez Luiza, já impaciente.
-- Mas são sete moedas! -- exclamou D. Felicidade, quasi chorosa.
Luiza poz-se a rir.
-- Por um marido? Acho barato...
-- E se a sorte falha?
-- Então é caro!
D. Felicidade deu um grande ai! Estava muito infeliz, n'aquella hesitação entre os impulsos da concupiscencia e as prudencias da economia. Luiza teve pena d'ella, e, tirando um vestido do guarda-roupa:
-- Deixa lá, filha! Não hão-de ser necessarias bruxarias!...
D. Felicidade ergueu os olhos ao céo.
-- Vaes sahir? -- perguntou melancolicamente.
-- Não.
D. Felicidade propoz-lhe então que viesse com ella á Encarnação. Visitavam a Silveira, coitada, que tinha um furunculo! E viam a armação da igreja para a festa, estreava-se o frontal novo, um primor!
-- E estou tambem com vontade de ir rezar uma estaçãosinha, para alliviar cá por dentro -- ajuntou, suspirando.
Luiza aceitou. Appetecia-lhe ir vêr altares alumiados, ouvir o ciciar de rezas no côro, como se os requintes devotos dissessem bem com as suas disposições sentimentaes. Começou a vestir-se depressa.
-- Como tu estás gorda, filha! -- exclamou D. Felicidade admirada, vendo-lhe os hombros, o collo.
Luiza diante do espelho olhava-se, sorria com o seu sorriso quente, contente das suas linhas, acariciando devagarinho, voluptuosamente, a pelle branca e fina.
-- Redondinha -- disse, namorando-se.
-- Redondinha? Vaes-te a fazer uma bola!
E acrescentou, tristemente:
-- Tambem com a tua vida, um marido como o teu, regaladinha, sem filhos, sem cuidados...
-- Vamos lá, minha rica -- disse Luiza -- que as tristezas não te tem feito emmagrecer...
-- Pois sim, pois sim! Mas... -- e parecia desolada, como curvada sob as suas proprias ruinas -- cá por dentro é uma desgraça, estomago, figado...
-- Se a mulher de Tuy faz o milagre, põe tudo isso como novo!
D. Felicidade sorriu, com uma duvida desconsolada.
-- Sabes que tenho um chapéo lindo? -- exclamou de repente Luiza -- Não viste? Lindo!
Foi logo buscal-o ao guarda-vestidos. Era de palha fina, guarnecido de myosotis.
-- Que te parece?
-- É um primor!
Luiza mirava-o dando pancadinhas com as pontas dos dedos nas florzinhas azues.
-- Dá frescura -- fez D. Felicidade.
-- Não é verdade?
Pôl-o com muito cuidado, toda séria. Ficava-lhe bem! Bazilio se a visse havia de gostar, pensou. Era bem possivel que o encontrassem...
Veio-lhe, sem motivo, uma felicidade exuberante: achava tão delicioso viver, sahir, ir á Encarnação, pensar no seu amante!... E toda no ar, procurava pelo quarto as chavinhas do toucador.
Onde tinha deixado as chaves? Na sala de jantar, talvez! Ia vêr! Sahiu correndo, tontinha, cantarolando:
Amici, la notte è bella...
La ra la la...
Quasi topou com Juliana, que varria o corredor.
-- Não deixe de engommar a saia bordada para ámanhã, Juliana!
-- Sim, minha senhora. Está em gomma!
E seguindo-a com um olhar feroz:
-- Canta, piorrinha, canta, cabrasinha, canta, bebedasinha!...
E ella mesma, tomada subitamente d'um jubilo agudo, atirou vassouradas rapidas, soltando na sua voz rachada:
Além d'ámanhã termina a campanha,
P-o-o-or aqui se diz...
Se tal fôr verdade, se não fôr patranha...
E com um espremido emphatico:
Se-e-rei bem feliz!
Ao outro dia, pelas duas horas da tarde, Sebastião e Julião passeavam em S. Pedro de Alcantara.
Sebastião estivera contando a sua «scena» com Luiza, e como desde então a sua estima por ella crescera. Ao principio escabreára-se, sim...
-- Mas teve razão! Assim de surpreza, ouvir uma d'aquellas! E eu levei a cousa mal, fui muito á bruta...
Depois, coitadinha, concordára logo, mostrára-se muito desgostosa, toda zelosa do seu pudor, pedira-lhe conselhos... Até tinha as lagrimas nos olhos.
-- Eu disse-lhe logo que o melhor era fallar ao primo, dizer o que se passava... Que te parece?
-- Sim -- disse vagamente Julião.
Tinha-o escutado distrahido, chupando a ponta do cigarro. O seu rosto terreo cavava-se, com uma côr mais biliosa.
-- Então achas que fiz bem, hein?
E depois d'uma pausa:
-- Que ella é uma senhora de bem ás direitas! Ás direitas, Julião!
Continuaram calados. O dia estava encoberto e abafado, com um ar de trovoada: grossas nuvens pesadas e pardas iam-se accumulando, ennegrecendo para o lado da Graça por traz das collinas: um vento rasteiro passava por vezes, pondo um arripio nas folhas das arvores.
-- De maneira que agora estou descançado -- resumiu Sebastião. -- Não te parece?
Julião encolheu os hombros com um sorriso triste:
-- Quem me dera os teus cuidados, homem! -- disse.
E fallou então com amargura nas suas preoccupações. -- Havia uma semana que se abrira concurso para uma cadeira de substituto na Escóla, e preparava-se para elle. Era a sua taboa de salvação, dizia: se apanhasse a cadeira, ganhava logo nome, a clientella podia vir, e a fortuna... E, que diabo, sempre era estar de dentro!... Mas a certeza da sua superioridade não o tranquillisava -- porque emfim em Portugal, não é verdade? n'estas questões a sciencia, o estudo, o talento são uma historia, o principal são os padrinhos! Elle não os tinha -- e o seu concorrente, um semsaborão, era sobrinho d'um director geral, tinha parentes na camara, era um colosso! Por isso elle trabalhava a valer, mas parecia-lhe indispensavel metter tambem as suas cunhas! Mas quem?
-- Tu não conheces ninguem, Sebastião?...
Sebastião lembrava-se d'um primo seu, deputado pelo Alemtejo, um gordo, da maioria, um pouco fanhoso. Se Julião queria, fallava-lhe... Mas sempre ouvira dizer que a Escóla não era gente de empenhos e de intriga... De resto tinham o conselheiro Accacio...
-- Uma besta! -- fez Julião -- Um parlapatão! Quem faz lá caso d'aquillo? O teu primo, hein! O teu primo parece-me bom! É necessario alguem que falle, que trabalhe... -- Porque acreditava muito nas influencias dos empenhos, no dominio dos «personagens», nas docilidades da fortuna quando dirigida pelas habilidades da intriga. E com um orgulho raiado d'ameaça: -- Que eu hei-de-lhes mostrar o que é saber as cousas, Sebastião!
Ia explicar-lhe o assumpto da these, mas Sebastião interrompeu-o:
-- Ella ahi vem.
-- Quem?
-- A Luiza.
Passava com effeito, por fóra do Passeio, toda vestida de preto, só. -- Respondeu á cortezia dos dous homens com um sorriso, adeusinhos da mão, um pouco corada.
E Sebastião immovel, seguindo-a devotamente com os olhos:
-- Se aquillo não respira mesmo honestidade! Vai ás lojas... Santa rapariga!
Ia encontrar Bazilio no Paraiso pela primeira vez. E estava muito nervosa: não pudera dominar, desde pela manhã, um medo indefinido que lhe fizera pôr um véo muito espêsso, e bater o coração ao encontrar Sebastião. Mas ao mesmo tempo uma curiosidade intensa, multipla, impellia-a, com um estremecimentosinho de prazer. -- Ia, emfim, ter ella propria aquella aventura que lêra tantas vezes nos romances amorosos! Era uma fórma nova do amor que ia experimentar, sensações excepcionaes! Havia tudo -- a casinha mysteriosa, o segredo illegitimo, todas as palpitações do perigo! Porque o apparato impressionava-a mais que o sentimento; e a casa em si interessava-a, attrahia-a mais que Bazilio! Como seria? Era para os lados d'Arroios, adiante do largo de Santa Barbara: lembrava-se vagamente que havia alli uma correnteza de casas velhas... Desejaria antes que fosse no campo, n'uma quinta, com arvoredos murmurosos e relvas fôfas; passeariam então, com as mãos enlaçadas, n'um silencio poetico; e depois o som d'agua que cahe nas bacias de pedra daria um rhythmo languido aos somnos amorosos... Mas era n'um terceiro andar, -- quem sabe como seria dentro? Lembrava-lhe um romance de Paulo Féval em que o heroe, poeta e duque, fórra de setins e tapeçarias o interior d'uma choça; encontra alli a sua amante; os que passam, vendo aquelle casebre arruinado, dão um pensamento compassivo á miseria que de certo o habita -- em quanto dentro, muito secretamente, as flôres se esfolham nos vasos de Sèvres e os pés nús pisam Gobelins veneraveis! Conhecia o gosto de Bazilio, -- e o Paraiso de certo era como no romance de Paulo Féval.
Mas no largo de Camões reparou que o sujeito de pera comprida, o do Passeio, a vinha seguindo, com uma obstinação de gallo; tomou logo um coupé. E ao descer o Chiado, sentia uma sensação deliciosa em ser assim levada rapidamente para o seu amante, e mesmo olhava com certo desdem os que passavam, no movimento da vida trivial -- em quanto ella ia para uma hora tão romanesca da vida amorosa! Todavia á maneira que se aproximava vinha-lhe uma timidez, uma contracção d'acanhamento, como um plebeu que tem de subir, entre alarbadeiros solemnes, a escadaria d'um palacio. Imaginava Bazilio esperando-a estendido n'um divan de sêda: e quasi receava que a sua simplicidade burgueza, pouco experiente, não achasse palavras bastante finas ou caricias bastante exaltadas. Elle devia ter conhecido mulheres tão bellas, tão ricas, tão educadas no amor! Desejava chegar n'um coupé seu, com rendas de centos de mil reis, e ditos tão espirituosos como um livro...
A carruagem parou ao pé d'uma casa amarellada, com uma portinha pequena. Logo á entrada um cheiro molle e salobre enojou-a. A escada, de degraus gastos, subia ingrememente, apertada entre paredes onde a cal cahia, e a humidade fizera nodoas. No patamar da sobre-loja, uma janella com um gradeadosinho d'arame, parda do pó accumulado, coberta de teias d'aranha, coava a luz suja do saguão. E por traz d'uma portinha, ao lado, sentia-se o ranger d'um berço, o chorar doloroso d'uma criança.
Mas Bazilio desceu logo, com o charuto na bocca, dizendo baixo:
-- Tão tarde! sóbe! Pensei que não vinhas. O que foi?
A escada era tão esguia, que não podiam subir juntos. E Bazilio, caminhando adiante, d'esguelha:
-- Estou aqui desde a uma hora, filha! imaginei que te tinhas esquecido da rua...
Empurrou uma cancella, fêl-a entrar n'um quarto pequeno, forrado de papel ás listras azues e brancas.
Luiza viu logo, ao fundo, uma cama de ferro com uma colcha amarellada, feita de remendos juntos de chitas differentes: e os lençoes grossos, d'um branco encardido e mal lavado, estavam impudicamente entreabertos...
Fez-se escarlate, sentou-se, calada, embaraçada. E os seus olhos, muito abertos, iam-se fixando -- nos riscos ignobeis da cabeça dos phosphoros, ao pé da cama; na esteira esfiada, comida, com uma nodoa de tinta entornada; nas bambinellas da janella, d'uma fazenda vermelha, onde se viam passagens; n'uma lithographia, onde uma figura, coberta d'uma tunica azul fluctuante, espalhava flôres voando... Sobre tudo uma larga photographia, por cima do velho canapé de palhinha, fascinava-a: era um individuo atarracado, d'aspecto hilare e alvar, com a barba em collar, o feitio d'um piloto ao domingo: sentado, de calças brancas, com as pernas muito afastadas, pousava uma das mãos sobre um joelho, e a outra muito estendida assentava sobre uma columna truncada: e por baixo do caixilho, como sobre a pedra d'um tumulo, pendia d'um prego de cabeça amarella, uma corôa de perpetuas!
-- Foi o que se pôde arranjar -- disse-lhe Bazilio. -- E foi um acaso: é muito retirado, é muito discreto... Não é muito luxuoso...
-- Não -- fez ella, baixo. -- Levantou-se, foi á janella, ergueu uma ponta da cortininha de cassa fixada á vidraça: defronte eram casas pobres: um sapateiro grisalho, batia a sola a uma porta; á entrada d'uma lojita balouçava-se um ramo de carqueja ao pé d'um maço de cigarros pendente d'um barbante; e, a uma janella, uma rapariga esguedelhada embalava tristemente no collo uma criança doente que tinha crostas grossas de chagas na sua cabecinha côr de melão.
Luiza mordia os beiços, sentia-se entristecer. Então nós de dedos bateram discretamente á porta. Ella assustou-se, desceu rapidamente o véo. Bazilio foi abrir. Uma voz adocicada, cheia de ss mellifluos, ciciou baixo. Luiza ouviu vagamente: Socegadinhos, suas chavesinhas...
-- Bem, bem! -- disse Bazilio apressado, batendo com a porta.
-- Quem é?
-- É a patrôa.
O céo pozera-se a ennegrecer; já a espaços grossas gôtas de chuva se esmagavam nas pedras da rua; e um tom crepuscular fazia o quarto mais melancolico.
-- Como descobriste tu isto? -- perguntou Luiza, triste.
-- Inculcaram-m'o.
Outra gente, então, tinha vindo alli, «amado» alli? pensou ella. E a cama pareceu-lhe repugnante.
-- Tira o chapéo -- disse Bazilio, quasi impaciente -- estás-me a fazer afflicção com esse chapéo na cabeça.
Ella soltou devagar o elastico que o prendia, foi pôl-o no canapé de palhinha, desconsoladamente.
Bazilio tomou-lhe as mãos, e attrahindo-a, sentando-se na cama:
-- Estás tão linda! -- Beijou-lhe o pescoço, encostou a cabeça ao peito d'ella. E com a vista muito quebrada:
-- O que eu sonhei comtigo esta noite!
Mas, de repente, uma forte pancada de chuva fustigou os vidros. E immediatamente bateram á porta, com pressa.
-- Que é? -- bradou Bazilio furioso.
A voz cheia de ss explicou que esquecera um cobertor na varanda que estava a seccar. Se se encharcasse, que perdição!...
-- Eu lhe pagarei o cobertor, deixe-me! -- berrou Bazilio.
-- Dá-lhe o cobertor...
-- Que a leve o diabo!
E Luiza, sentindo um arripio de frio nos seus hombros nús, abandonava-se com uma vaga resignação, entre os joelhos de Bazilio -- vendo constantemente voltada para si a face alvar do piloto.
Assim um yacht que apparelhou nobremente para uma viagem romanesca vai encalhar, ao partir, nos lodaçaes do rio baixo; e o mestre aventureiro que sonhava com os incensos e os almiscares das florestas aromaticas, immovel sobre o seu tombadilho, tapa o nariz aos cheiros dos esgotos.
Apenas Luiza começou a sahir todos os dias, Juliana pensou logo: Bem, vai ter com o gajo!
E a sua attitude tornou-se ainda mais servil. Era com um sorriso de baixeza que corria a abrir a porta, alvoroçada, quando Luiza voltava ás cinco horas. E que zelo! Que exactidões! Um botão que faltasse, uma fita que se extraviava, e eram «mil perdões, minha senhora», «desculpe por esta vez», muitas lamentações humildes. Interessava-se com devoção pela saude d'ella, pela sua roupa, pelo que tinha para jantar...
Todavia, desde as idas ao Paraiso, o seu trabalho augmentára: todos os dias agora tinha d'engommar; muitas vezes era preciso ensaboar á noite collares, rendinhas, punhos, n'uma bacia de latão, até ás onze horas. Ás seis da manhã, mais cedo, já estava com o «ferro ás voltas». E não se queixava, até dizia a Joanna:
-- Ai! é um regalo vêr assim uma senhora aceada!... Que as ha! credo! Não, não é por dizer, mas até me dá gosto. Depois, graças a Deus, agora tenho saude, o trabalho não me assusta!
Não tornára a resmungar da «patrôa». Affirmava mesmo á Joanna repetidamente:
-- A senhora! ai, é uma santa! Muito boa d'aturar... Não a ha melhor!
O seu rosto perdera alguma cousa do tom bilioso, da contracção amarga. Ás vezes, ao jantar ou á noite, costurando calada ao pé de Joanna, á luz do petroleo, vinham-lhe sorrisos subitos, o olhar clareava-se-lhe n'uma dilatação jovial.
-- A snr.a Juliana tem o ar de quem está a pensar em cousas boas...
-- A malucar cá por dentro, snr.a Joanna! -- respondia com satisfação.
Parecia perder a inveja; ouviu mesmo fallar com tranquillidade do vestido de sêda que estreou n'um dia de festa, em setembro, a Gertrudes do doutor. Disse apenas:
-- Tambem um dia hei-de estrear vestidos, e dos bons! Dos da modista!
Já outras vezes revelára por palavras vagas a idéa d'uma abundancia proxima. Joanna até lhe dissera:
-- A snr.a Juliana espera alguma herança?
-- Talvez! -- respondeu seccamente.
E cada dia detestava mais Luiza. Quando pela manhã a via arrebicar-se, perfumar-se com agua de colonia, mirar-se ao toucador cantarolando, sahia do quarto porque lhe vinham venetas d'odio, tinha medo d'estourar! Odiava-a pelas toilettes, pelo ar alegre, pela roupa branca, pelo homem que ia vêr, por todos os seus regalos de senhora. «A cabra!» Quando ella sahia ia espreitar, vêl-a subir a rua, e fechando a vidraça com um risinho rancoroso:
-- Diverte-te, piorrinha, diverte-te, que o meu dia ha-de chegar! Oh se ha-de!
Luiza com effeito divertia-se. Sahia todos os dias ás duas horas. Na rua já se dizia que «a do Engenheiro tinha agora o seu S. Miguel».
Apenas ella dobrava a esquina o conciliabulo juntava-se logo a cochichar. Tinham a certeza que se ia encontrar com o «peralta». Onde seria? -- era a grande curiosidade da carvoeira.
-- No hótel -- murmurava o Paula. -- Que nos hóteis é escandalo bravio. Ou talvez -- acrescentava com tedio -- n'alguma d'essas possilgas da baixa!
A estanqueira lamentava-a: uma senhora que era tão apropositada!
-- Vacca solta lambe-se toda, snr.a Helena! -- rosnava o Paula. -- São todas o mesmo!
-- Menos isso! -- protestava a estanqueira -- Que eu sempre fui uma mulher honesta!
E ella? -- reclamava a carvoeira -- ninguem tinha que lhe dizer!
-- Fallo da alta sociedade, das fidalgas, das que arrastam sêdas! É uma cambada. Eu é que o sei! -- E acrescentava gravemente: -- No povo ha mais moralidade. O povo é outra raça! -- E com as mãos enterradas nos bolsos, as pernas muito abertas, ficava absorto, com a cabeça baixa, o olhar cravado no chão. -- Se é! -- murmurava -- Se é! -- Como se estivesse positivamente achando as pedrinhas da calçada menos numerosas que as virtudes do povo!
Sebastião, que tinha estado na quinta d'Almada quasi duas semanas, ficou aterrado quando, ao voltar, a Joanna lhe deu as grandes «novidades»: que a Luizinha agora sahia todos os dias ás duas horas, que o primo não voltára; a Gertrudes é que lh'o dissera; não se fallava na rua n'outra cousa...
-- Então a pobre senhora nem sequer póde ir ás lojas, aos seus arranjos! -- exclamou Sebastião. -- A Gertrudes é uma desavergonhada, e nem sei como a tia Joanna consente que ella ponha aqui os pés. Vir com esses mexericos!...
-- Cruzes! Olha o destempero! -- replicou muito escandalisada a tia Joanna. -- Oh menino, realmente... A pobre mulher disse o que ouviu na rua! Que ella até a defende, até ella é que a defende! Até se esteve a queixar que se falla! que se falla! Boa! -- E a tia Joanna sahiu, resmungando: -- Olha o destempero, credo!
Sebastião chamou-a, aplacou-a:
-- Mas quem falla, tia Joanna?
-- Quem? -- E muito emphaticamente: -- Toda a rua! Toda a rua! Toda a rua!
Sebastião ficou aniquilado. Toda a rua! Pudera! Se ella agora se punha a sahir todos os dias, uma senhora, que quando estava Jorge não sahia do buraco! A visinhança que murmurára das visitas do outro, naturalmente começava a commentar as sahidas d'ella! Estava-se a desacreditar! E elle não podia fazer nada! Ir advertil-a? Ter outra «scena»? Não podia.
Procurou-a. Não lhe queria de certo tocar em nada, ia só vêl-a. Não estava. Voltou d'ahi a dous dias. Juliana veio-lhe dizer á cancella, com o seu sorriso amarellado: «Foi-se agora mesmo, ha um instantinho. Ainda a apanha á Patriarchal». Emfim, um dia encontrou-a ao principio da rua de S. Roque. Luiza pareceu muito contente em o vêr: -- Porque se tinha demorado tanto em Almada? Que deserção!
Trazia carpinteiros, era necessario vigiar as obras. E ella?
-- Bem. Um bocado aborrecida. O Jorge diz que ainda se demora. Tenho estado muito só. Nem Julião, nem Conselheiro, ninguem. A D. Felicidade é que tem apparecido ás vezes de fugida. Está agora sempre mettida na Encarnação... Isto gente devota! -- E riu.
Então aonde ia?
A umas comprasitas, á modista depois... -- E appareça agora, Sebastião, hein?
-- Hei-d'apparecer.
-- Á noite. Estou tão só! Tenho tocado muito, é o que me vale é o piano!
N'essa mesma tarde Sebastião recebeu uma carta de Jorge. «Tens visto a Luiza? Estive quasi com cuidado, porque estive mais de cinco dias sem carta d'ella. De resto está preguiçosa como uma freira; quando escreve são quatro linhas porque está o correio a partir. Vai dizer ao correio que espere, que diabo! Queixa-se de se aborrecer, de estar só, que todos a abandonaram, que tem vivido como n'um deserto. Vê se lhe vaes fazer companhia, coitada, etc.»
No dia seguinte ao anoitecer foi a casa d'ella. Appareceu-lhe muito vermelha, com os olhos estremunhados, de roupão branco. Tinha chegado muito cançada de fóra, tinha-lhe dado o somno depois de jantar, adormecera sobre a causeuse... Que havia de novo? E bocejava.
Fallaram das obras d'Almada, do Conselheiro, de Julião; e ficaram calados. Havia um constrangimento.
Luiza então accendeu as velas no piano, mostrou-lhe a nova musica que estudava, a Medjé de Gounod; mas havia uma passagem em que se embrulhava sempre; pediu a Sebastião que a tocasse, e junto do piano, batendo o compasso com o pé, acompanhava baixo a melodia, a que a execução de Sebastião dava um encanto penetrante. Quiz tentar depois, mas enganou-se, zangou-se, atirou a musica para o lado, veio sentar-se no sophá, dizendo:
-- Quasi nunca tóco! Estão-se-me a enferrujar os dedos!...
Sebastião não se atrevia a perguntar pelo primo Bazilio. Luiza não lhe pronunciou sequer o nome. E Sebastião, vendo n'aquella reserva uma diminuição de confiança ou um resto persistente de despeito, disse que tinha d'ir á Associação Geral d'Agricultura, e sahiu muito desconsolado.
Cada dia que se seguiu trouxe-lhe a sua inquietação differente. Ás vezes era a tia Joanna que lhe dizia á tarde: «A Luizinha lá sahiu hoje outra vez! Por este calor, até póde apanhar alguma! Credo!» Outras era o conciliabulo dos visinhos, que avistava de longe, e que de certo «estavam a cortar na pelle da pobre senhora»!
Parecia-lhe tudo aquillo exactamente a aria da Calumnia no Barbeiro de Sevilha: a calumnia ao principio leve como o fremito das azas d'um passaro, subindo n'um crescendo aterrador até estalar como um trovão!
Dava agora voltas para não passar na rua, diante do Paula e da estanqueira: tinha vergonha d'elles! Encontrára o Teixeira Azevedo, que lhe perguntára:
-- Então o Jorge quando vem? Que diabo! o rapaz fica por lá!
E aquella observação trivial aterrou-o.
Emfim, um dia, mais apoquentado, foi procurar Julião. Encontrou-o no seu quarto andar, em mangas de camisa e em chinellas, enxovalhado e esguedelhado, rodeado de papelada, com uma chocolateirinha de café ao pé, trabalhando. O soalho negro estava cheio de pontas de cigarro; ao canto estava embrulhada roupa suja; sobre a cama desfeita havia livros abertos; -- e um cheiro relentado sahia do desmazêlo das cousas. A janella de peitoril dava para o saguão, d'onde vinha o cantar estridente d'uma criada, e o ruido areado do esfregar de tachos.
Julião, apenas elle entrou, ergueu-se, espreguiçou-se, enrolou um cigarro, e declarou que estava a trabalhar desde as sete!... Hein? Era bonito! Para que soubesse o snr. Sebastião!
-- De resto chegaste a proposito. Estava para mandar a tua casa... Devia receber ahi um dinheiro e não veio. Dá cá uma libra.
E immediatamente começou a fallar da these. A cousa sahia!
Leu-lhe paragraphos do prologo com uma deleitação paternal, e, muito satisfeito, na abundancia de confiança que dá a excitação do trabalho, com grandes passadas pelo quarto:
-- Hei-de-lhes mostrar que ainda ha portuguezes em Portugal, Sebastião! Hei-de-os deixar de bocca aberta! Tu verás!
Sentou-se, pôz-se a numerar as folhas escriptas, assobiando. Sebastião, então, com timidez, quasi vexado de perturbar com as suas preoccupações domesticas aquelles interesses scientificos, disse baixo:
-- Pois eu vim-te fallar por causa lá da nossa gente...
Mas a porta abriu-se com força, e um rapaz de barba desleixada, e olhar um pouco doudo, entrou; era um estudante da Escóla, amigo de Julião; e quasi immediatamente os dous recomeçaram uma discussão que tinham travado de manhã, e que fôra interrompida ás onze horas, quando o rapaz d'olhar doudo descêra a almoçar á Aurea.
-- Não, menino! -- exclamava o estudante exaltado. -- Estou na minha! A medicina é uma meia sciencia, a physiologia é outra meia sciencia! São sciencias conjecturaes, porque nos escapa a base, conhecer o principio da vida!
E cruzando os braços diante de Sebastião, bradou-lhe:
-- Que sabemos nós do principio da vida?
Sebastião, humilhado, baixou os olhos.
Mas Julião indignava-se:
-- Estás desmoralisado pela doutrina vitalista, miseravel! Trovejou contra o Vitalismo, que declarou «contrario ao espirito scientifico». Uma theoria que pretende que as leis que governam os corpos brutos não são as mesmas que governam os corpos vivos -- é uma heresia grotesca! -- exclamava. -- E Bichat que a proclama é uma besta!
O estudante, fóra de si, bradou -- que chamar a Bichat uma besta era simplesmente d'um alarve.
Mas Julião desprezou a injuria, e continuou, exaltado nas suas idéas:
-- Que nos importa a nós o principio da vida? Importa-me tanto como a primeira camisa que vesti! O principio da vida é como outro qualquer principio: um segredo! Havemos d'ignoral-o eternamente! Não podemos saber nenhum principio. A vida, a morte, as origens, os fins, mysterios! São causas primarias com que não temos nada a fazer, nada! Podemos batalhar seculos, que não avançamos uma pollegada. O physiologista, o chimico, não tem nada com os principios das cousas; o que lhes importa são os phenomenos! Ora os phenomenos e as suas causas immediatas, meu caro amigo, podem ser determinadas com tanto rigor nos corpos brutos, como nos corpos vivos -- n'uma pedra, como n'um desembargador! E a physiologia e a medicina são sciencias tão exactas como a chimica! Isto já vem de Descartes!
Travaram então um berreiro sobre Descartes. E immediatamente, sem que Sebastião attonito tivesse descoberto a transição, encarniçaram-se sobre a idéa de Deus.
O estudante parecia necessitar Deus para explicar o universo. Mas Julião atacava Deus com cólera: chamava-lhe «uma hypothese safada», «uma velha caturrice do partido miguelista»! E começaram a assaltar-se sobre a questão social, como dous gallos inimigos.
O estudante, com os olhos esgazeados, sustentava, dando punhadas sobre a mesa, o principio da authoridade! Julião berrava pela «anarchia individual»! E depois de citarem com furia Proudhon, Bastiat, Jouffroy romperam em personalidades. Julião, que dominava pela estridencia da voz, censurou violentamente ao estudante -- as suas inscripções a seis por cento, o ridiculo de ser filho d'um corretor de fundos, e o bife de proprietario que vinha de comer na Aurea!
Olharam-se, então, com rancor.
Mas d'ahi a momentos o estudante deixou cahir com desdem algumas palavras sobre Claude Bernard, e a questão recomeçou, furiosa.
Sebastião tomou o chapéo.
-- Adeus -- disse baixo.
-- Adeus, Sebastião, adeus -- disse promptamente Julião.
Acompanhou-o ao patamar.
-- E quando quizeres que eu falle a meu primo... -- murmurou Sebastião.
-- Pois sim, veremos, eu pensarei -- disse Julião com indifferença, como se o orgulho do trabalho lhe tivesse dissipado o terror da injustiça.
Sebastião foi descendo as escadas, pensando: Não se lhe póde fallar em nada, agora!
De repente veio-lhe uma idéa: se fosse ter com D. Felicidade, abrir-se com ella! D. Felicidade era espalhafatona, um pouco tonta, mas era uma mulher d'idade, intima de Luiza; tinha mais authoridade, mais habilidade mesmo...
Decidiu-se logo, tomou um trem, foi á rua de S. Bento.
A criada de D. Felicidade appareceu-lhe, desolada, e lacrimosa:
-- Pois não sabe?
-- Não.
-- Ai! até admira!
-- Mas o que?
-- A senhora! Uma desgraça assim! Torceu um pé na Encarnação, deu uma quéda. Tem estado muito mal, muito mal.
-- Aqui?
-- Na Encarnação. Nem pôde sahir. Está com a snr.a D. Anna Silveira. Uma desgraça assim! E está n'um phrenesi!
-- Mas quando foi?
-- Antes d'hontem á noite.
Sebastião saltou para o trem, mandou «bater» para casa de Luiza.
A D. Felicidade, doente, na Encarnação! Mas então Luiza podia bem sahir todos os dias! Ia vêl-a, fazer-lhe companhia, tratar d'ella!...
A visinhança não tinha que rosnar! Ia vêr a pobre doente!...
Eram duas horas quando a parelha estacou á porta de Luiza. Encontrou-a, que descia a escada, vestida de preto, de luva gris perle, com um véo negro.
-- Ah! suba, Sebastião, suba! Quer subir?
Parára, nos degraus, com uma côrzinha no rosto, um pouco embaraçada.
-- Não, obrigado. Vinha dizer-lhe... Não sabe? A D. Felicidade...
-- O quê?
-- Torceu um pé. Está mal.
-- Que me diz?
Sebastião deu os pormenores.
-- Vou já lá.
-- Deve ir. Eu não posso ir, não entram homens. Coitada! Diz que está mal. -- Acompanhou-a até á esquina da rua, offereceu-lhe mesmo a tipoia: -- E muitos recados, que tenho pena de a não vêr!... Pobre senhora! E diz que está n'um phrenesi!
Viu-a afastar-se para a Patriarchal, e, admirando a graça da sua figura, esfregava as mãos satisfeito.
Estavam justificadas, santificadas mesmo aquellas passeatas todos os dias! Ia ser a enfermeira da pobre D. Felicidade! Era necessario que todos soubessem, o Paula, a estanqueira, a Gertrudes, as Azevedos, todos, de modo que quando a vissem de manhã, subir a rua, dissessem: -- Lá vai fazer companhia á doente! Santa senhora!
O Paula estava á porta da loja -- e Sebastião com uma idéa subita, entrou. Estava-se estimando de se sentir tão fecundo em expedientes, tão habil!
Deitou um pouco o chapéo para a nuca, e mostrando com o guarda-sol o painel que representava D. João VI:
-- Quanto quer vossemecê por isto, ó snr. Paula?
O Paula ficou surprehendido:
-- O snr. Sebastião está a brincar?
Sebastião exclamou:
-- A brincar? -- Fallava muito sério! queria uns quadros para a sala d'entrada, em Almada: mas velhos, sem caixilho, para dizerem bem sobre um papel escuro. -- Como isto! Estou a brincar! Ora essa, homem!
-- Desculpe, snr. Sebastião... Pois n'esse caso ha por ahi alguns paineis a calhar.
-- Este D. João VI agrada-me. Quanto custa isto?
O Paula disse, sem hesitar:
-- Sete mil e duzentos. Mas é obra de mestre.
Era uma téla desbotada de tom defumado, onde uns restos de face avermelhada, com uma cabelleira em cachos, sobresahiam vagamente sobre um fundo sombrio. Um vermelhão baço indicava o velludo de uma casaca de côrte: a pança saliente e ostentosa enchia um collete esverdeado. E a parte mais conservada da téla era, ao lado sobre um coxim, a corôa real -- que o artista trabalhára com uma minuciosidade enthusiasta, ou por preoccupação d'idiota, ou por adulação de cortezão.
Sebastião achava caro; mas o Paula mostrou-lhe o preço escripto por traz, n'uma tirinha de papel; espanejou a téla com amor; indicou as bellezas, fallou na sua honestidade; deprimiu outros vendedores de moveis, «que tinham a consciencia nas palmilhas»; jurou que o retrato pertencera ao paço de Queluz, e ia atacar as questões publicas -- quando Sebastião disse resumindo:
-- Bem, pois mande-m'o logo, fico com elle. E mande a conta.
-- Leva uma rica obra!
Sebastião agora olhava em redor. Queria fallar do «pé torcido de D. Felicidade», e procurava uma transição. Examinou umas jarras da India, um tremó; e avistando uma poltrona de doente:
-- Aquillo é que era bom para a D. Felicidade! -- exclamou logo -- aquella cadeira! Boa cadeira!
O Paula arregalou os olhos.
-- Para a D. Felicidade Noronha -- repetiu Sebastião. -- Para estar deitada... Pois não sabia, homem? Partiu um pé, tem estado muito mal.
-- A D. Felicidade, a amiga de cá? -- e indicou com o pollegar a casa do Engenheiro.
-- Sim, homem! Quebrou um pé na Encarnação. Até lá ficou. A D. Luiza vai para lá fazer-lhe companhia todos os dias. Agora ia ella para lá...
-- Ah! -- fez o Paula lentamente. E depois de uma pausa: -- Mas eu ainda a vi entrar para cá ha-de haver oito dias.
-- Foi antes d'hontem. -- Tossiu e acrescentou, voltando o rosto, olhando muito umas gravuras: -- De resto a D. Luiza já ia todos os dias á Encarnação, mas era para vêr a Silveira, a D. Anna Silveira, que esteve mal. Coitada, ha tres semanas que tem passado uma vida d'enfermeira. Não sahe da Encarnação! E agora é a D. Felicidade. Não é má massada!
-- Pois não sabia, não sabia -- murmurava o Paula, com as mãos enterradas nos bolsos.
-- Mande-me o D. João VI, hein?
-- Ás ordens, snr. Sebastião.
Sebastião foi para casa. Subiu á sala; e atirando o chapéo para o sophá: Bem, pensou, agora ao menos estão salvas as apparencias! -- Passeou algum tempo com a cabeça baixa; sentia-se triste; porque o ter conseguido, por um acaso, justificar aquelles passeios para com a visinhança, fazia-lhe parecer mais cruel a idéa de que os não podia justificar para comsigo. Os commentarios dos visinhos iam findar por algum tempo, mas os seus?... Queria achal-os falsos, pueris, injustos: e, contra sua vontade, o seu bom senso e a sua rectidão estavam sempre a revolvel-os baixo. Emfim, tinha feito o que devia! E com um gesto triste, fallando só, no silencio da sala:
-- O resto é com a sua consciencia!
N'essa tarde, na rua, sabia-se já que a D. Felicidade de Noronha torcera um pé na Encarnação, (outros diziam quebrára uma perna), e que a D. Luiza não lhe sahia da cabeceira... O Paula declarára com authoridade:
-- É de boa rapariga, é de muito boa rapariga!
A Gertrudes do doutor foi logo, á noitinha, perguntar á tia Joanna, «se era verdade da perna quebrada». A tia Joanna corrigiu: era o pé, torcera o pé! E a Gertrudes veio dizer ao doutor, ao chá, que a D. Felicidade déra uma queda que ficára em pedaços. -- Foi na Encarnação, acrescentou. Diz que anda tudo lá n'uma roda viva. A Luizinha até lá tem dormido...
-- Pieguices de beatas! -- rosnou com tedio o doutor.
Mas na rua todos a elogiavam. Mesmo, d'ahi a dias, o Teixeira Azevedo (que apenas comprimentava Luiza), tendo-a encontrado na rua de S. Roque, parou, e com uma cortezia profunda:
-- Desculpe vossencia. Como vai a sua doente?
-- Melhor, agradecida.
-- Pois, minha senhora, tem sido de muita caridade, ir todos os dias por este calor á Encarnação...
Luiza corou.
-- Coitada! Não lhe falta companhia, mas...
-- É de muita caridade, minha senhora -- exclamou com emphase -- Tenho-o dito por toda a parte. É de muita caridade. Um criado de vossencia!
E afastou-se commovido.
Luiza fôra logo, com effeito, vêr D. Felicidade. Tinha uma luxação simples; e deitada nos quartos da Silveira, com o pé em compressas d'arnica, cheia de terror de «perder a perna», passava o dia rodeada d'amigas, chorando-se, saboreando os mexericos do Recolhimento, e debicando petiscos.
Apenas alguem entrava para a vêr, redobrava d'exclamações e de queixas; vinha logo a historia miuda, incidentada, prolixa da «desgraça»: ia a descer, a pôr o pé no degrau; escorregára; sentiu que ia a cahir; ainda se sustentou, e pôde dizer: Ai Nossa Senhora da Saude! Ao principio a dôr não foi grande; mas podia ter morrido; tinha sido um milagre!
Todas as senhoras concordavam «que era realmente um milagre». Olhavam-na compungidas, e iam ao côro alternadamente prostrar-se, e pedir aos santos especiaes o allivio da Noronha!
A primeira visita de Luiza foi para D. Felicidade uma consolação, «deu-lhe melhoras»; porque se ralava de estar alli de cama, sem saber noticias d'elle, sem poder fallar d'elle!
E nos dias seguintes, apenas ficava só no quarto com Luiza, chamava-a logo para a cabeceira, e n'um murmurio mysterioso: Tinha-o visto? Sabia d'elle? -- A sua afflicção era que o Conselheiro não soubesse que ella estava doente, e não lhe podesse dar aquelles pensamentos compassivos -- a que o seu pé tinha direito, e que seriam um conforto para o seu coração! Mas Luiza não o vira -- e D. Felicidade, remexendo a chásada, exhalava suspiros agudos.
Ás duas horas Luiza sahia da Encarnação -- e ia tomar um trem ao Rocio: para não parar á porta do Paraiso com espalhafato de tipoia, apeava-se ao largo de Santa Barbara; e fazendo-se pequenina, cosida com a sombra das casas, apressava-se com os olhos baixos, e um vago sorriso de prazer.
Bazilio esperava-a deitado na cama, em mangas de camisa: para não se enfastiar, só, tinha trazido para o Paraiso uma garrafa de cognac, assucar, limões -- e com a porta entreaberta fumava, fazendo grogs frios. O tempo arrastava-se, via a todo o momento as horas, e sem querer ia escutando, notando todos os ruidos intimos da familia da proprietaria que vivia nos quartos interiores: a rabuje d'uma criança, uma voz acatarrhoada que ralhava, e de repente uma cadellinha que começava a ladrar furiosa. Bazilio achava aquillo burguez e reles, impacientava-se. Mas um frou-frou de vestido roçava a escada -- e os tedios d'elle, bem como os receios d'ella, dissipavam-se logo no calor dos primeiros beijos. Luiza vinha sempre com pressa; queria estar em casa ás cinco horas, «e era um estirão depois!» Entrava um pouco suada, e Bazilio gostava da transpiraçãosinha tepida que havia nos seus hombros nús.
-- E teu marido? -- perguntava elle. -- Quando vem?
-- Não falla em nada. -- Ou então: -- Não recebi carta, não sei nada.
Parecia ser aquella a preoccupação de Bazilio, na alegria egoista da posse recente. Tinha então caricias muito extaticas; ajoelhava-se aos pés d'ella; fazia voz de criança:
-- Lili não ama Bibi...
Ella ria, meio despida, com um riso cantado e libertino.
-- Lili adora Bibi!... É douda por Bibi!
E queria saber se pensava n'ella, o que tinha feito na vespera. Fôra ao Gremio, jogára uns robbers, viera para casa cedo, sonhára com ella...
-- Vivo para ti, meu amor, acredita!
E deixava-lhe cahir a cabeça no regaço, como sob uma felicidade excessiva.
Outras vezes, mais serio, dava-lhe certos conselhos de gôsto, de toilette: pedira-lhe que não trouxesse postiços no cabello, que não usasse botinhas de elastico.
Luiza admirava muito a sua experiencia do luxo; obedecia-lhe, amoldava-se ás suas idéas: -- até affectar, sem o sentir, um desdem pela gente virtuosa, para imitar as suas opiniões libertinas.
E lentamente, vendo aquella docilidade, Bazilio não se dava ao incommodo de se constranger; usava d'ella, como se a pagasse! Acontecera uma manhã escrever-lhe duas palavras a lapis que «não podia ir ao Paraiso», sem outras explicações! Uma occasião mesmo não foi, sem a avisar -- e Luiza achou a porta fechada. Bateu timidamente, olhou pela fechadura, esperou palpitante -- e voltou muito desconsolada, quebrada do calor, com a poeirada nos olhos, e vontade de chorar.
Não aceitava o menor incommodo, nem para lhe causar um contentamento. Luiza tinha-lhe pedido que fosse de vez em quando aos domingos a sua casa, passar a noite: viria Sebastião, o Conselheiro, D. Felicidade quando estivesse melhor: era uma alegria para ella, e depois dava ás suas relações um ar mais parente, mais legitimo.
Mas Bazilio pulou:
-- O quê! ir cabecear de somno com quatro caturras... Ah! não!...
-- Mas conversa-se, faz-se musica...
-- Merci! Conheço-a, a musica das soirées de Lisboa! A valsa do Beijo e o Trovador. Safa!
Depois duas ou tres vezes fallára de Jorge com desdem. Aquillo offendera-a.
Ultimamente mesmo, quando ella entrava no Paraiso, já não tinha a delicadeza amorosa de se levantar alvoroçado: sentava-se apenas na cama, e tirando preguiçosamente o charuto da bocca:
-- Ora viva a minha flôr! -- dizia.
E um ar de superioridade quando lhe fallava! Um modo de encolher os hombros, de exclamar: -- Tu não percebes nada d'isso! Chegava a ter palavras cruas, gestos brutaes. E Luiza começou a desconfiar que Bazilio não a estimava, -- apenas a desejava!
Ao principio chorou. Resolveu explicar-se com elle, romper se fosse necessario. Mas adiou, não se atrevia: a figura de Bazilio, a sua voz, o seu olhar dominavam-na; e accendendo-lhe a paixão tiravam-lhe a coragem de a perturbar com queixas. Porque estava convencida então que o adorava: o que lhe dava tanta exaltação no desejo, se não era a grandeza do sentimento?... Gozava tanto, é porque o amava muito!... E a sua honestidade natural, os seus pudores refugiavam-se n'este raciocinio subtil.
Elle tinha ás vezes uma seccura aspera de maneiras, era verdade; certos tons de indifferença, era certo... Mas n'outros momentos, quantas denguices, que tremuras na voz, que phrenesi nas caricias!... Amava-a tambem, não havia duvida. Aquella certeza era a sua justificação. E como era o Amor que os produzia, não se envergonhava dos alvoroços voluptuosos com que ia todas as manhãs ao Paraiso!
Duas ou tres vezes, ao voltar, tinha encontrado Juliana que subia tambem apressada o Moinho de Vento.
-- D'onde vinha vossê? -- perguntára-lhe em casa.
-- Do medico, minha senhora, fui ao medico.
Queixava-se de pontadas, palpitações, faltas d'ar.
-- Flatos! flatos!
Com effeito, Juliana agora fazia todos os arranjos pela manhã; depois apenas Luiza, pela uma hora, dobrava a esquina, ia-se vestir, e muito espartilhada no seu vestido de merino, de chapéo e sombrinha, vinha dizer a Joanna:
-- Até logo, vou ao medico.
-- Até logo, snr.a Juliana -- dizia a cozinheira radiante.
E ia logo fazer signal ao carpinteiro.
Juliana descia por S. Pedro de Alcantara, e tomando para o largo do Carmo ia á ruasita, defronte do quartel. Alli morava n'um terceiro andar a sua intima amiga, a tia Victoria.
Era uma velha que fôra inculcadeira. Ainda tinha mesmo na cancella, n'uma placa de metal, com letras negras: «Victoria Soares, inculcadeira.» Mas nos ultimos annos a sua industria tornou-se mais complicada, muito tortuosa.
Exercia-a n'uma saleta esteirada, com mosquiteiros de papel pendentes do tecto encardido, alumiada por duas tristes janellas de peito. Um vasto sophá occupava quasi a parede do fundo: fôra de certo de reps verde, mas o estofo coçado, comido, remendado, tinha agora, sob largas nodoas, uma vaga côr parda; as molas partidas, rangiam com estalidos melancolicos; a um dos cantos, n'uma cova que o uso cavára, dormia todo o dia um gato; e um dos lados da madeira queimada revelava que fôra salvo d'um incendio. Sobre o sophá pendia a lithographia do senhor D. Pedro IV. Entre as duas janellas havia uma commoda alta; e em cima, entre um Santo Antonio e um cofre feito de buzios, um macaquinho empalhado, com olhos de vidro, equilibrava-se sobre um galho d'arvore. Ao entrar via-se logo, junto da janella fronteira á porta, a uma mesa coberta de oleado, um dorso magro e curvado, e um barretinho de sêda com uma borla arrebitada. Era o snr. Gouvêa, o escripturario!
O ar abafado tinha um cheiro complexo, indefinido -- em que se sentia a cavalhariça, a graxa e o refogado. Havia sempre gente: grossas matronas de capote e lenço, face gordalhufa e buço; cocheiros com o cabello acamado, muito lustroso de oleo, e blusa de riscadinho: pesados gallegos côr de greda, de passadas retumbantes e fórmas lôrpas: criadinhas de dentro, amarelladas, de olheiras, sombrinha de cabo d'osso, e as luvas de pellica com passagens nas pontas dos dedos.
Defronte da sala abria-se um quarto que deitava para o saguão, -- por cuja portinha verde se viam ás vezes desapparecer dorsos respeitaveis de proprietarios, ou caudas espalhafatosas de vestidos suspeitos.
Em certas occasiões, aos sabbados, juntavam-se cinco, seis pessoas: velhas fallavam baixo, com gestos mysteriosos: uma altercação mal abafada roncava no patamar: rapariguitas de repente desatavam a chorar; e, impassivel, o snr. Gouvêa escrevinhava os seus registos, arremessando para o lado jactos melancolicos de saliva.
A tia Victoria, no entanto, com a sua touca de renda negra, um vestido rôxo, -- ia, vinha, cochichava, gesticulava, fazia tilintar dinheiro, tirando a cada momento da algibeira rebuçados de avenca para o catarrho.
A tia Victoria era uma grande utilidade, tornára-se um centro! A criadagem reles, mesmo a criadagem fina, tinha alli para tudo o seu despacho. Emprestava dinheiro aos desempregados; guardava as economias dos poupados; fazia escrever pelo snr. Gouvêa as correspondencias amorosas ou domesticas dos que não tinham ido á escóla; vendia vestidos em segunda mão; alugava casacas; aconselhava collocações, recebia confidencias, dirigia intrigas, entendia de partos. Nenhum criado era inculcado por ella; mas, arranjados ou despedidos, nunca deixavam de subir, descer as escadas da tia Victoria. Tinha além d'isso muitas relações, infinitas condescendencias: celibatarios maduros iam entender-se com ella, para o confortosinho d'uma sopeira gordita e nova: era ella quem inculcava as serventes ás mulheres policiadas; sabia de certos agiotas discretos. E dizia-se: a tia Victoria tem mais manhas que cabellos!
Mas, ultimamente, apesar dos seus «afazeres», apenas Juliana entrava -- levava-a para o quarto nas trazeiras, fechava a porta, e «havia para meia hora»!
E Juliana sahia sempre vermelha, os olhos accesos, feliz! Voltava depressa para casa; e mal entrava:
-- A senhora ainda não voltou, snr.a Joanna?
-- Ainda não.
-- Está na Encarnação. Coitada! não tem má cruz, ir aturar a velha! E depois naturalmente vai dar o seu passeio! Faz ella muito bem! Espairecer!
Joanna era de certo espessa e obtusa; além d'isso a paixão animal pelo rapazola emparvecia-a. Todavia, percebera que a snr.a Juliana andava «muito derretida pela senhora»: disse-lh'o mesmo um dia:
-- Vossemecê agora, snr.a Juliana, parece mais na bola da senhora!
-- Na bola?
-- Sim, quero dizer, mais aquella, mais...
-- Mais apegada á senhora?
-- Mais apegada.
-- Sempre o estive. Mas então! ás vezes a gente tem os seus repentes... Que olhe, snr.a Joanna, não se acha melhor que aqui. Senhora de muito bom genio, nada de exquisitices, nenhumas prisões... Ai, é dar louvores ao céo de estarmos n'este descanço.
-- E é!
A casa com effeito tinha um aspecto jovial de felicidade tranquilla: Luiza sahia todos os dias e achava tudo bom; nunca se impacientava; a sua antipathia por Juliana parecia dissipada, considerava-a uma pobre de Christo! Juliana tomava os seus caldinhos, dava os seus passeios, ruminava. Joanna, muito livre, muito só em casa, regalava-se com o carpinteiro. Não vinham visitas. D. Felicidade, na Encarnação, inundava-se d'arnica. Sebastião fôra para Almada vigiar as obras. O Conselheiro partira para Cintra, «dar umas ferias ao espirito, tinha elle dito a Luiza, e deliciar-se nas maravilhas d'aquelle Eden». O snr. Julião, «o doutor», como dizia a Joanna, trabalhava a sua these. As horas eram muito regulares, havia sempre um silencio pacato. Juliana, um dia, na cozinha, impressionada por aquelle recolhimento satisfeito de toda a casa, exclamou para Joanna:
-- Não se póde estar melhor! A barca vai n'um mar de rosas!
E acrescentou, com uma risadinha:
-- E eu ao leme!
VII
Por esse tempo, uma manhã que Luiza ia para o Paraiso, viu de repente sahir d'um portal, um pouco adiante do largo de Santa Barbara, a figura azafamada d'Ernestinho.
-- Por aqui, prima Luiza! -- exclamou elle logo muito surprehendido. -- Por estes bairros! Que faz por aqui? Grande milagre!
Vinha vermelho, trazia as bandas do casaco d'alpaca todas deitadas para traz, e agitava com excitação um rolo grosso de papeis.
Luiza ficou um pouco embaraçada; disse que viera fazer uma visita a uma amiga. -- Oh! elle não conhecia, tinha chegado do Porto...
-- Ah, bem! bem! E que é feito, como tem passado? Quando vem o Jorge? -- Desculpou-se logo de a não ter ido vêr; mas é que não tinha uma migalha livre! De manhã a alfandega, á noite os ensaios...
-- Então sempre vai? -- perguntou Luiza.
-- Vai.
E enthusiasmado:
-- E como vai! Um primor! Mas que trabalhão, que trabalhão! -- Agora vinha elle de casa do actor Pinto, que fazia o papel de amante, de conde de Monte Redondo; tinha-o ouvido dizer as palavras finaes do terceiro acto: Maldição, a sorte funesta esmaga-me! Pois bem, arcarei braço a braço com a sorte. Á lucta! Era uma maravilha! Vinha tambem de lhe dar parte que alterára o monologo do segundo acto. O empresario achava-o longo...
-- Então continúa a implicar, o empresario?
Ernestinho fez uma visagem d'hesitação.
-- Implica um bocado... -- E com um rosto radioso: -- Mas está delirante! Estão todos delirantes! Hontem me dizia elle: «Lesminha»... É o nome que me dão por pandiga. Tem graça, não é verdade? Dizia-me elle: «Lesminha, na primeira representação cahe ahi Lisboa em peso! Vossê enterra-os a todos!» É bom homem! E agora vou-me a casa do Bastos, o folhetinista da Verdade. Não conhece?
Luiza não se lembrava bem.
-- O Bastos, o da Verdade! -- insistia elle.
E vendo que Luiza parecia alheia ao nome, ao individuo:
-- Ora não conhece outra cousa! -- Ia descrever-lhe as feições, citar-lhes as obras...
Mas Luiza, impaciente, para findar:
-- Ah! sim, lembro-me agora. Perfeitamente... Bem sei!
-- Pois é verdade, vou a casa d'elle. -- Tomou um tom compenetrado: -- Somos muito amigos, é muito bom rapaz, e tem um pequerrucho lindo!... -- E apertando-lhe muito a mão: -- Adeusinho, prima Luiza, que não posso perder um momento. Quer que a vá acompanhar?
-- Não, é aqui perto.
-- Adeus, recados ao Jorge!
Ia a afastar-se, atarefado, mas voltando-se rapidamente, correu atraz d'ella.
-- Ah! esquecia-me dizer-lhe, sabe que lhe perdoei?
Luiza abriu muito os olhos.
-- Á condessa, á heroina! -- exclamou Ernestinho.
-- Ah!
-- Sim, o marido perdôa-lhe, obtem uma embaixada, e vão viver no estrangeiro. É mais natural...
-- De certo! -- disse vagamente Luiza.
-- E a peça acaba, dizendo o amante, o conde de Monte Redondo: E eu irei para a solidão morrer d'esta paixão funesta! É de muito effeito! -- Esteve um momento a olhal-a, e bruscamente: -- Adeus, prima Luiza, recadinhos ao Jorge!
E abalou.
Luiza entrou no Paraiso muito contrariada. Contou o encontro a Bazilio. Ernestinho era tão tolo! Podia mais tarde fallar n'aquillo, citar a hora, perguntarem-lhe quem era a amiga do Porto...
E tirando o véo, o chapéo:
-- Não, realmente é imprudente vir assim tantas vezes. Era melhor não vir tanto. Póde-se saber...
Bazilio encolheu os hombros, contrariado:
-- Se queres não venhas.
Luiza olhou-o um momento, e curvando-se profundamente:
-- Obrigada!
Ia a pôr o chapéo, mas elle veio prender-lhe as mãos, abraçou-a, murmurando:
-- Pois tu fallas em não vir! E eu, então? Eu que estou em Lisboa por tua causa...
-- Não, realmente dizes ás vezes cousas... tens certos modos...
Bazilio abafou-lhe as palavras com beijos.
-- Ta, ta, ta! Nada de questões! Perdôa. Estás tão linda...
Luiza, ao voltar para casa, veio a reflectir n'aquella «scena». Não -- pensava -- já não era a primeira vez que elle mostrava um desprendimento muito secco por ella, pela sua reputação, pela sua saude! Queria-a alli todos os dias, egoistamente. Que as más linguas fallassem, que as soalheiras a matassem, que lhe importava? E para que?... Porque emfim, saltava aos olhos, elle amava-a menos... As suas palavras, os seus beijos arrefeciam cada dia, mais e mais!... Já não tinha aquelles arrebatamentos do desejo em que a envolvia toda n'uma caricia palpitante, nem aquella abundancia de sensação que o fazia cahir de joelhos com as mãos tremulas como as d'um velho!... Já se não arremessava para ella, mal ella apparecia á porta, como sobre uma presa estremecida!... Já não havia aquellas conversas pueris, cheias de risos, divagadas e tontas, em que se abandonavam, se esqueciam, depois da hora ardente e physica, quando ella ficava n'uma lassitude dôce, com o sangue fresco, a cabeça deitada sobre os braços nús! -- Agora! trocado o ultimo beijo, accendia o charuto, como n'um restaurante ao fim do jantar! E ia logo a um espelho pequeno que havia sobre o lavatorio dar uma penteadella no cabello com um pentesinho d'algibeira! (O que ella odiava o pentesinho!) Ás vezes até olhava o relogio!... E em quanto ella se arranjava não vinha, como nos primeiros tempos, ajudal-a, pôr-lhe o collarinho, picar-se nos seus alfinetes, rir em volta d'ella, despedir-se com beijos apressados da nudez dos seus hombros antes que o vestido se apertasse. Ia rufar nos vidros, -- ou sentado, com um ar macambuzio, bamboleava a perna!
E depois positivamente não a respeitava, não a considerava... Tratava-a por cima do hombro, como uma burguezinha, pouco educada e estreita, que apenas conhece o seu bairro. E um modo de passear, fumando, com a cabeça alta, fallando no «espirito de madame de tal», nas toilettes da «condessa de tal»! Como se ella fosse estupida, e os seus vestidos fossem trapos! Ah, era seccante! E parecia, Deus me perdôe, parecia que lhe fazia uma honra, uma grande honra em a possuir... Immediatamente lembrava-lhe Jorge, Jorge que a amava com tanto respeito! Jorge, para quem ella era de certo a mais linda, a mais elegante, a mais intelligente, a mais captivante!... E já pensava um pouco que sacrificára a sua tranquillidade tão feliz a um amor bem incerto!
Emfim, um dia que o viu mais distrahido, mais frio, explicou-se abertamente com elle. Direita, sentada no canapé de palhinha, fallou com bom senso, devagar, com um ar digno e preparado: «Que percebia bem que elle se aborrecia, que o seu grande amor tinha passado, que era por tanto humilhante para ella verem-se n'essas condições, e que julgava mais digno acabarem...»
Bazilio olhava-a, surprehendido da sua solemnidade; sentia um estudo, uma affectação n'aquellas phrases; disse muito tranquillamente, sorrindo:
-- Trazias isso decorado!
Luiza ergueu-se bruscamente, encarou-o, teve um movimento desdenhoso dos labios.
-- Tu estás douda, Luiza?
-- Estou farta! Faço todos os sacrificios por ti, venho aqui todos os dias, comprometto-me, e para que? Para te vêr muito indifferente, muito seccado...
-- Mas, meu amor...
Ella teve um sorriso d'escarneo.
-- Meu amor! Oh! são ridiculos esses fingimentos!
Bazilio impacientou-se.
-- Já isso cá me faltava, essa scena! -- exclamou impetuosamente. E cruzando os braços diante d'ella: -- Mas que queres tu? Queres que te ame como no theatro, em S. Carlos? Todas sois assim! Quando um pobre diabo ama naturalmente, como todo o mundo, com o seu coração, mas não tem gestos de tenor, aqui d'el-rei que é frio, que se aborrece, é ingrato... Mas que queres tu? Queres que me atire de joelhos, que declame, que revire os olhos, que faça juras, outras tolices?...
-- São tolices que tu fazias...
-- Ao principio! -- respondeu elle brutalmente. -- Já nos conhecemos muito para isso, minha rica.
E havia apenas cinco semanas!
-- Adeus! -- disse Luiza.
-- Bem. Vaes zangada?
Ella respondeu, com os olhos baixos, calçando nervosamente as luvas:
-- Não.
Bazilio pôz-se diante da porta, e estendendo os braços:
-- Mas sê razoavel, minha querida. Uma ligação como a nossa não é o duetto do Fausto. Eu amo-te; tu, creio, gostas de mim; fazemos os sacrificios necessarios, encontramo-nos, somos felizes... Que diabo queres tu mais? Porque te queixas?
Ella respondeu com um sorriso ironico e triste:
-- Não me queixo. Tens razão.
-- Mas não vás zangada, então.
-- Não...
-- Palavrinha?
-- Sim...
Bazilio tomou-lhe as mãos.
-- Dê então um beijinho em Bibi...
Luiza beijou-o de leve na face.
-- Na boquinha, na boquinha! -- E ameaçando-a com o dedo, fitando-a muito: -- Ah geniosinho! Tens bem o sangue do snr. Antonio de Brito, nosso extremoso tio, que arrepellava as criadas pelos cabellos! -- E sacudindo-lhe o queixo: -- E vens ámanhã?
Luiza hesitou um momento:
-- Venho.
Entrou em casa exasperada, humilhada. Eram seis horas. Juliana veio logo dizer-lhe, muito quisilada: que a Joanna tinha sahido ás quatro horas, não tinha voltado, o jantar estava por acabar...
-- Onde foi?
Juliana encolheu os hombros com um sorrisinho.
Luiza percebeu. Tinha ido a algum amante, a algum amor... Teve um gesto de piedade desdenhosa.
-- Ha-de lucrar muito com isso. Boa tôla! -- disse.
Juliana olhou-a espantada.
-- Está bebeda! -- pensou.
-- Bem, que se lhe ha-de fazer? -- exclamou Luiza. -- Esperarei...
E passeando pelo quarto, excitada, revolvendo o seu despeito:
-- Que egoista, que grosseiro, que infame! E é por um homem assim que uma mulher se perde! É estupido!
Como elle supplicava, se fazia pequenino, humilde ao principio! O que são os amores dos homens! Como teem a fadiga facil!
E immediatamente lhe veio a idéa de Jorge! Esse não! Vivia com ella havia tres annos -- e o seu amor era sempre o mesmo, vivo, meigo, dedicado. Mas o outro! Que indigno! Já a conhecia muito! Ah! estava bem certa agora, nunca a amára, elle! Quizera-a por vaidade, por capricho, por distracção, para ter uma mulher em Lisboa! É o que era! Mas amor? Qual!
E ella mesmo, por fim? Amava-o, ella? Concentrou-se, interrogou-se... Imaginou casos, circumstancias: se elle a quizesse levar para longe, para França, iria? Não! Se por um acaso, por uma desgraça enviuvasse, antevia alguma felicidade casando com elle? Não!
Mas então!... E como uma pessoa que destapa um frasco muito guardado, e se admira vendo o perfume evaporado, ficou toda pasmada de encontrar o seu coração vazio. O que a levára então para elle?... Nem ella sabia; não ter nada que fazer, a curiosidade romanesca e morbida de ter um amante, mil vaidadesinhas inflammadas, um certo desejo physico... E sentira-a por ventura, essa felicidade, que dão os amores illegitimos, de que tanto se falla nos romances e nas operas, que faz esquecer tudo na vida, affrontar a morte, quasi fazel-a amar? Nunca! Todo o prazer que sentira ao principio, que lhe parecera ser o amor -- vinha da novidade, do saborzinho delicioso de comer a maçã prohibida, das condições do mysterio do Paraiso, d'outras circumstancias talvez, que nem queria confessar a si mesma, que a faziam corar por dentro!
Mas que sentia d'extraordinario agora? Bom Deus, começava a estar menos commovida ao pé do seu amante, do que ao pé de seu marido! Um beijo de Jorge perturbava-a mais, e viviam juntos havia tres annos! Nunca se seccára ao pé de Jorge, nunca! E seccava-se positivamente ao pé de Bazilio! Bazilio, no fim, o que se tornára para ella? era como um marido pouco amado, que ia amar fóra de casa! Mas então, valia a pena?...
Onde estava o defeito? No amor mesmo talvez! Porque emfim, ella e Bazilio estavam nas condições melhores para obterem uma felicidade excepcional: eram novos, cercava-os o mysterio, excitava-os a difficuldade... Porque era então que quasi bocejavam? É que o amor é essencialmente perecivel, e na hora em que nasce começa a morrer. Só os começos são bons. Ha então um delirio, um enthusiasmo, um bocadinho do céo. Mas depois!... Seria pois necessario estar sempre a começar, para poder sempre sentir?... Era o que fazia Leopoldina. E apparecia-lhe então nitidamente a explicação d'aquella existencia de Leopoldina, inconstante, tomando um amante, conservando-o uma semana, abandonando-o como um limão espremido, e renovando assim constantemente a flôr da sensação! -- E, pela logica tortuosa dos amores illegitimos, o seu primeiro amante fazia-a vagamente pensar no segundo!
Logo no dia seguinte pôz-se a dizer comsigo que era bem longe o Paraiso! Que massada, por aquelle calor, vestir-se, sahir! Mandou saber de D. Felicidade por Juliana, e ficou em casa, de roupão branco, preguiçosa, saboreando a sua preguiça.
N'essa tarde recebeu uma carta de Jorge: «que ainda se demorava, mas que a sua viuvez começava a pezar-lhe. Quando se veria emfim na sua casinha, na sua alcovinha?...»
Ficou muito commovida. Um sentimento de vergonha, de remorso, uma compaixão terna por Jorge, tão bom, coitado! um indefinido desejo de o vêr e de o beijar, a recordação de felicidades passadas perturbaram-na até ás profundidades do seu sêr. Foi logo responder-lhe, jurando-lhe «que tambem já estava farta de estar só, que viesse, que era estupida semelhante separação...» E era sincera n'aquelle momento.
Tinha fechado o enveloppe, quando Juliana lhe veio trazer «uma carta do hotel». Bazilio mostrava-se desesperado: «...Como não vieste, vejo que estás zangada; mas é de certo o teu orgulho, não o teu amor que te domina: não imaginas o que senti quando vi que não vinhas hoje. Esperei até ás cinco horas; que supplicio! Fui talvez secco, mas tu tambem estavas implicativa. Devemos perdoar-nos ambos, ajoelharmos um diante do outro, e esquecer todo o despeito no mesmo amor... Vem ámanhã. Adoro-te tanto! Que outra prova queres, que esta que te dou d'abandonar os meus interesses, as minhas relações, os meus gostos, e enterrar-me aqui em Lisboa, etc.»
Ficou muito nervosa, sem saber o que havia de fazer, o que havia de querer. Aquillo era verdade. Porque estava elle em Lisboa? Por ella. Mas se reconhecia agora, -- que o não amava, ou tão pouco! E depois era vil trahir assim Jorge, tão bom, tão amoroso, vivendo todo para ella. Mas se Bazilio realmente estivesse tão apaixonado!... As suas idéas redemoinhavam, como folhas d'outono, violentadas por ventos contradictorios. Desejava estar tranquilla, «que a não perseguissem». Para que voltára aquelle homem? Jesus! que havia de fazer? Tinha os seus pensamentos, os seus sentimentos n'uma dolorosa trapalhada.
E na manhã seguinte estava na mesma hesitação. Iria, não iria? O calor fóra, a poeirada da rua faziam-lhe appetecer mais a casa! Mas que desapontamento, o do pobre rapaz tambem! Atirou ao ar uma moeda de cinco tostões. Era cunho, devia ir. Vestiu-se, sem vontade, seccada, -- tendo todavia um certo desejo dos refinamentos de prazer que dão as expansões da reconciliação...
Mas que surpreza! esperava encontral-o humilde e de joelhos, achou-o com a testa franzida e muito aspero.
-- Luiza, parece incrivel, porque não vieste hontem?
Na vespera, Bazilio, quando viu que ella faltava, teve um grande despeito e um medo maior; a sua concupiscencia receou perder aquelle lindo corpo de rapariga, e o seu orgulho escandalisou-se de vêr libertar-se aquella escravasinha docil. Resolveu portanto, a todo o custo, «chamal-a ao rego». Escreveu-lhe; e mostrando-se submisso para a attrahir, decidiu ser severo para a castigar. -- E acrescentou:
-- É uma criancice ridicula. Porque não vieste?
Aquelle modo enraiveceu-a:
-- Porque não quiz.
Mas emendou logo:
-- Não pude.
-- Ah! é essa a maneira por que respondes á minha carta, Luiza?
-- E tu, é esse o modo com que me recebes?
Olharam-se um momento, detestando-se.
-- Bem, queres uma questão? És como as outras.
-- Que outras?
E toda escandalisada:
-- Ah! é de mais! Adeus!
Ia sahir.
-- Vaes-te, Luiza?
-- Vou. É melhor acabarmos por uma vez...
Elle segurou o fecho da porta rapidamente.
-- Fallas serio, Luiza?
-- De certo. Estou farta!
-- Bem. Adeus.
Abriu a porta para a deixar passar, curvou-se silenciosamente.
Ella deu um passo, e Bazilio com a voz um pouco tremula:
-- Então, é para sempre? Nunca mais?
Luiza parou, branca. Aquella triste palavra nunca mais deu-lhe uma saudade, uma commoção. Rompeu a chorar.
As lagrimas tornavam-na sempre mais linda. Parecia tão dolorida, tão fragil, tão desamparada!...
Bazilio cahiu-lhe aos pés: tinha tambem os olhos humidos.
-- Se tu me deixares, morro!
Os seus labios uniram-se n'um beijo profundo, longo, penetrante. A excitação dos nervos deu-lhes momentaneamente a sinceridade da paixão; e foi uma manhã deliciosa.
Ella prendia-o nos braços nús, pallida como cêra, balbuciava:
-- Não me deixas nunca, não?
-- Juro-t'o! Nunca, meu amor!
Mas fazia-se tarde, era necessario ir-se! E a mesma idéa de certo acudiu-lhes -- porque se olharam avidamente, e Bazilio murmurou:
-- Se podesses aqui passar a noite!
Ella disse aterrada, quasi supplicante:
-- Oh! não me tentes, não me tentes...
Bazilio suspirou, disse:
-- Não, é uma tolice. Vai.
Luiza começou a arranjar-se, á pressa. E de repente, parando, com um sorriso:
-- Sabes tu uma cousa?
-- O que, meu amor?
-- Estou a cahir com fome! Não almocei nada, estou a cahir!
Elle ficou desolado:
-- Coitadinha, minha pobre filha! Se eu soubesse...
-- Que horas são, filho?
Bazilio viu o relogio, disse quasi envergonhado:
-- Sete!
-- Ai, Santo Deus!
Punha o chapéo, o véo, atrapalhadamente:
-- Que tarde! Jesus! Que tarde!
-- E ámanhã, quando?
-- Á uma.
-- Com certeza?
-- Com certeza.
Ao outro dia foi muito pontual. Bazilio veio esperal-a ao fundo da escada; e apenas entraram no quarto, devorando-a de beijos:
-- Que me fizeste tu? Desde hontem que estou doudo!
Mas Luiza estava muito intrigada com um cesto que via em cima da cama.
-- Que é aquillo?
Elle sorriu, levou-a pela mão junto da barra de ferro, e destampando o cesto, com uma cortezia grave:
-- Provisões, festins, bacchanaes! Não dirás depois que tens fome!
Era um lunch. Havia sandwichs, um pâté de foie gras, fruta, uma garrafa de champagne, e, envolto em flanella, gelo.
-- É brilhante! -- disse ella, com um sorriso quente, rubra de prazer.
-- Foi o que se pôde arranjar, minha querida prima! Já vê que pensei em si!
Pôz o cesto no chão, e vindo para ella com os braços abertos:
-- E tu pensaste em mim, meu amor?
Os olhos d'ella responderam -- e a pressão apaixonada dos seus braços.
Ás tres horas lancharam. Foi delicioso; tinham estendido um guardanapo sobre a cama; a louça tinha a marca do Hotel Central; aquillo parecia a Luiza muito estroina, adoravel -- e ria de sensualidade, fazendo tilintar os pedacinhos de gelo contra o vidro do copo, cheio de champagne. Sentia uma felicidade exuberante que transbordava em gritinhos, em beijos, em toda a sorte de gestos buliçosos. Comia com gula; e eram adoraveis os seus braços nús movendo-se por cima dos pratos.
Nunca achára Bazilio tão bonito; o quarto mesmo parecia-lhe muito conchegado para aquellas intimidades da paixão; quasi julgava possivel viver alli, n'aquelle cacifro, annos, feliz com elle, n'um amor permanente, e lunchs ás tres horas... Tinham as pieguices classicas: mettiam-se bocadinhos na bocca; ella ria com os seus dentinhos brancos; bebiam pelo mesmo copo, devoravam-se de beijos, -- e elle quiz-lhe ensinar então a verdadeira maneira de beber champagne. Talvez ella não soubesse!
-- Como é? -- perguntou Luiza erguendo o copo.
-- Não é com o copo! Horror! Ninguem que se preza bebe champagne por um copo. O copo é bom para o Collares...
Tomou um gole de champagne, e n'um beijo passou-o para a bocca d'ella. Luiza riu muito, achou «divino», quiz beber mais assim. Ia-se fazendo vermelha, o olhar luzia-lhe.
Tinham tirado os pratos da cama; e sentada á beira do leito, os seus pésinhos calçados n'uma meia côr de rosa pendiam, agitavam-se, em quanto um pouco dobrada sobre si, os cotovêlos sobre o regaço, a cabecinha de lado, tinha em toda a sua pessoa a graça languida d'uma pomba fatigada.
Bazilio achava-a irresistivel: quem diria que uma burguezinha podia ter tanto chic, tanta queda? Ajoelhou-se, tomou-lhe os pésinhos entre as mãos, beijou-lh'os; depois, dizendo muito mal das ligas «tão feias, com fechos de metal», beijou-lhe respeitosamente os joelhos; e então fez-lhe baixinho um pedido. Ella córou, sorriu, dizia: não! não! -- E quando sahiu do seu delirio tapou o rosto com as mãos, toda escarlate, murmurou reprehensivamente:
-- Oh Bazilio!
Elle torcia o bigode, muito satisfeito. Ensinára-lhe uma sensação nova: tinha-a na mão!
Só ás seis horas se desprendeu dos seus braços. Luiza fez-lhe jurar que havia de pensar n'ella toda a noite: -- não queria que elle sahisse; tinha ciumes do Gremio, do ar, de tudo! E já no patamar voltava, beijava-o, louca, repetia:
-- E ámanhã mais cedo, sim? para estarmos todo o dia.
-- Não vaes vêr a D. Felicidade?
-- Que me importa a D. Felicidade! Não me importa ninguem! Quero-te a ti! só a ti!
-- Ao meio dia?
-- Ao meio dia!
Quanto lhe pezou á noite a solidão do seu quarto! Tinha uma impaciencia que a impellia a prolongar a excitação da tarde, agitar-se. Ainda quiz lêr, mas bem depressa arremessou o livro: as duas velas accesas sobre o toucador pareciam-lhe lugubres; foi vêr a noite, -- estava tepida e serena. Chamou Juliana:
-- Vá pôr um chale, vamos a casa da snr.a D. Leopoldina.
Quando chegaram foi a Justina que veio abrir, depois d'uma grande demora, esguedelhada, em chambre branco. Pareceu muito espantada:
-- A senhora foi p'ra o Porto!
-- P'ra o Porto!
Sim. Demorava-se quinze dias.
Luiza ficou muito desconsolada. Mas não queria voltar, o seu quarto solitario aterrava-a.
-- Vamos um bocado até alli abaixo, Juliana. A noite está tão bonita!
-- Rica, minha senhora!
Foram pela rua de S. Roque. E como guiados pelas duas linhas de pontos de gaz, que desciam a rua do Alecrim, o seu pensamento, o seu desejo foram logo para o Hotel Central.
Estaria em casa? Pensaria n'ella? Se podesse ir surprehendel-o de repente, atirar-se-lhe aos braços, vêr as suas malas... Aquella idéa fazia-a arfar. Entraram na praça de Camões. Gente passeava devagar; sob a sombra mais escura que faziam as arvores cochichava-se pelos bancos; bebia-se agua fresca; claridades cruas de vidraças, de portas de lojas destacavam em redor no tom escuro da noite: e no rumor lento das ruas em redor, sobresahiam as vozes agudas dos vendedores de jornaes.
Então um sujeito com um chapéo de palha passou tão rente d'ella, tão intencionalmente que Luiza teve medo. -- Era melhor voltarem -- disse.
Mas ao meio da rua de S. Roque o chapéo de palha reappareceu, roçou quasi o hombro de Luiza; dous olhos repolhudos dardejaram sobre ella.
Luiza ia desesperada: o tic-tac das suas botinas batia vivamente a lage do passeio; de repente, ao pé de S. Pedro d'Alcantara, de sob o chapéo de palha sahiu uma voz adocicada e brazileira, dizendo-lhe junto ao pescoço:
-- Aonde mora, ó menina?
Agarrou aterrada o braço de Juliana.
A voz repetiu:
-- Não se agaste, menina, aonde mora?
-- Seu malcriado! -- rugiu Juliana.
O chapéo de palha immediatamente desappareceu entre as arvores.
Chegaram a casa a arquejar. Luiza tinha vontade de chorar; deixou-se cahir na causeuse, esfalfada, infeliz. Que imprudencia, pôr-se a passear pelas ruas de noite, com uma criada! Estava douda, desconhecia-se. Que dia aquelle! E recordava-o desde pela manhã: o lunch, o champagne bebido pelos beijos de Bazilio, os seus delirios libertinos, que vergonha! e ir a casa de Leopoldina, de noite, e ser tomada na rua por uma mulher do Bairro Alto!... De repente lembrou-lhe Jorge no Alemtejo trabalhando por ella, pensando n'ella... Escondeu o rosto entre as mãos, detestou-se, os seus olhos humedeceram-se.
Mas na manhã seguinte acordou muito alegre. Sentia, sim, uma vaga vergonha de todas as suas «tolices» da vespera, e como a sensação indefinida, palpite ou presentimento, de que não devia ir ao Paraiso. O seu desejo, porém, que a impellia para lá vivamente, forneceu-lhe logo razões: era desapontar Bazilio, a não ir hoje não devia voltar, e então romper... Além d'isso a manhã muito linda attrahia para a rua: chovera de noite, o calor cedera; havia nos tons da luz e do azul uma frescura lavada e dôce.
E ás onze e meia descia o Moinho de Vento, quando viu a figura digna do conselheiro Accacio que subia da rua da Rosa, devagar, com o guarda-sol fechado, a cabeça alta.
Apenas a avistou apressou-se, curvou-se profundamente:
-- Que encontro verdadeiramente feliz!...
-- Como está, Conselheiro? Ditosos olhos que o vêem!
-- E v. exc.a, minha senhora? Vejo-a com excellente aspecto!
Passou-lhe á esquerda com um movimento solemne, pôz-se a caminhar ao lado d'ella.
-- Permitte-me de certo que a acompanhe na sua excursão?
-- De certo, com o maior prazer. Mas que tem feito? Tenho muito que lhe ralhar...
-- Estive em Cintra, minha querida senhora. -- E parando: -- Não sabia? O Diario de Noticias especificou-o!
-- Mas depois de vir de Cintra?
Elle acudiu:
-- Ah! tenho estado occupadissimo! Occupadissimo! Inteiramente absorvido na compilação de certos documentos que me eram indispensaveis para o meu livro... -- E depois d'uma pausa: -- Cujo nome não ignora, creio.
Luiza não se recordava inteiramente. O Conselheiro então expôz o titulo, os fins, alguns nomes de capitulos, a utilidade da obra: era a Descripção pitoresca das principaes cidades de portugal e seus mais famosos estabelecimentos.
-- É um guia, mas um guia scientifico. Illustrarei com um exemplo: V. exc.a quer ir a Bragança: sem o meu livro é muito natural (direi, é certo) que volta sem ter gozado das curiosidades locaes; com o meu livro percorre os edificios mais notaveis, recolhe um fundo muito solido d'instrucção, e tem ao mesmo tempo o prazer.
Luiza mal o escutava, sorrindo vagamente sob o seu véo branco.
-- Está hoje muito agradavel! -- disse ella.
-- Agradabilissimo! Um dia creador!
-- Que bom fresco aqui!
Tinham entrado em S. Pedro d'Alcantara; um ar dôce circulava entre as arvores mais verdes; o chão compacto, sem pó, tinha ainda uma ligeira humidade; e, apesar do sol vivo, o céo azul parecia leve e muito remoto.
O Conselheiro então fallou do estio; tinha sido torrido! na sua sala de jantar tinha havido 48 graus á sombra! 48 graus! -- E com bonhomia, querendo logo desculpar a sala d'aquella exageração canicular: -- Mas é que está exposta ao sul! façamos essa justiça! Está muito exposta ao sul. Hoje porém está verdadeiramente restaurador.
Convidou-a mesmo a dar uma volta em baixo no jardim. Luiza hesitava. E o Conselheiro puxando o relogio, fitando-o de longe, declarou logo que ainda não era meio dia. Estava certo pelo Arsenal, era um relogio inglez. -- Muito preferiveis aos suissos! -- acrescentou com ar profundo.
Cobardemente, por inercia, enervada pela voz pomposa do Conselheiro, Luiza foi descendo, contrariada, as escadinhas para o jardim. De resto -- pensava -- tinha tempo, tomaria um trem...
Foram encostar-se ás grades. Através dos varões viam, descendo n'um declive, telhados escuros, intervallos de pateos, cantos de muro com uma ou outra magra verdura de quintal resequido; depois, no fundo do valle, o Passeio estendia a sua massa de folhagem prolongada e oblonga, onde a espaços branquejavam pedaços da rua areada. Do lado de lá erguiam-se logo as fachadas inexpressivas da rua Oriental, recebendo uma luz forte que fazia faiscar as vidraças: por traz iam-se elevando no mesmo plano terrenos d'um verde crestado fechados por fortes muros sombrios, a cantaria da Encarnação de um amarello triste, outras construcções separadas, até ao alto da Graça coberta d'edificios ecclesiasticos, com renques de janellinhas conventuaes e torres d'igrejas, muito brancas sobre o azul: e a Penha de França, mais para além, punha em relevo o vivo do muro caiado, d'onde sobresahia uma tira verde-negra d'arvoredo. Á direita, sobre o monte pellado, o castello assentava, atarracado, ignobilmente sujo: e a linha muito quebrada de telhados, d'esquinas de casas da Mouraria e d'Alfama descia com angulos bruscos até ás duas pesadas torres da Sé, d'um aspecto abbacial e secular. Depois viam um pedaço do rio, batido da luz: duas velas brancas passavam devagar: e na outra banda, á base de uma collina baixa que o ar distante azulava, estendia-se a correnteza de casarias d'uma povoaçãosinha d'um branco de cré luzidio. Da cidade um rumor grosso e lento subia, onde se misturavam o rolar dos trens, o pesado rodar dos carros de bois, a vibração metallica das carretas que levam ferraria, e algum grito agudo de pregão.
-- Grande panorama! -- disse o Conselheiro com emphase. -- E encetou logo o elogio da cidade. Era uma das mais bellas da Europa, de certo, e como entrada, só Constantinopla! Os estrangeiros invejavam-na immenso. Fôra outr'ora um grande emporio, e era uma pena que a canalisação fosse tão má, e a edilidade tão negligente!
-- Isto devia estar na mão dos inglezes, minha rica senhora! -- exclamou.
Mas arrependeu-se logo d'aquella phrase impatriotica. Jurou que «era uma maneira de dizer». Queria a independencia do seu paiz; morreria por ella, se fosse necessario; nem inglezes nem castelhanos!... Só nós, minha senhora! -- E acrescentou com uma voz respeitosa: -- E Deus!
-- Que bonito está o rio! -- disse Luiza.
Accacio affirmou-se, e murmurou em tom cavo:
-- O Tejo!
Quiz então dar uma volta pelo jardim. Sobre os canteiros borboletas brancas, amarellas, esvoaçavam; um gotejar d'agua fazia no tanque um rhythmosinho de jardim burguez; um aroma de baunilha predominava; sobre a cabeça dos bustos de marmore, que se elevam d'entre os maciços e as moitas de dhalias, passaros pousavam.
Luiza gostava d'aquelle jardimzinho, mas embirrava com as grades tão altas...
-- Por causa dos suicidios! -- acudiu logo o Conselheiro. -- E todavia, segundo a sua opinião, os suicidios em Lisboa diminuiam consideravelmente; attribuia isso á maneira severa e muito louvavel como a imprensa os condemnava...
-- Porque em Portugal, creia isto, minha senhora, a imprensa é uma força!
-- Se fossemos andando...? -- lembrou Luiza.
O Conselheiro curvou-se, mas vendo-a a ir colher uma flôr, reteve-lhe vivamente o braço:
-- Ah, minha rica senhora, por quem é! os regulamentos são muito explicitos! Não os infrinjamos, não os infrinjamos! -- E acrescentou: -- O exemplo deve vir de cima.
Foram subindo, e Luiza pensava: -- Vai para casa, larga-me ao Loreto.
Na rua de S. Roque espreitou o relogio d'uma confeitaria: era meia hora depois do meio dia! Já Bazilio esperava!
Apressou o passo, ao Loreto parou. O Conselheiro olhou-a, sorrindo, esperando.
-- Ah! pensei que ia para casa, Conselheiro!
-- Já agora quero acompanhal-a, se v. exc.a m'o permitte. De certo não sou indiscreto?
-- Ora essa! De modo nenhum.
Uma carruagem da Companhia passava, seguida d'um correio a trote.
O Conselheiro, com um movimento ancioso, tirou profundamente o chapéo.
-- É o presidente do conselho. Não viu? Fez-me um signal de dentro. -- Começou logo o seu elogio: Era o nosso primeiro parlamentar; vastissimo talento, uma linguagem muito castigada! -- E ia de certo fallar das cousas publicas, mas Luiza atravessou para os Martyres, erguendo um pouco o vestido por causa d'uns restos de lama. Parou á porta da igreja, e sorrindo:
-- Vou aqui fazer uma devoçãosinha. Não o quero fazer esperar. Adeus, Conselheiro, appareça. -- Fechou a sombrinha, estendeu-lhe a mão.
-- Ora essa, minha rica senhora! Esperarei, se vir que não se demora muito. Esperarei, não tenho pressa. -- E com respeito: -- Muito louvavel esse zelo!
Luiza entrou na igreja desesperada. Ficou de pé debaixo do côro, calculando: -- Demoro-me aqui, elle cança-se d'esperar e vai-se! Por cima reluziam vagamente os pingentes de crystal dos lustres. Havia uma luz velada, igual, um pouco fôsca. E as architecturas caiadas, a madeira muito lavada do soalho, as balaustradas lateraes de pedra davam uma tonalidade clara e alvadia, onde destacavam os dourados da capella, os frontaes rôxos dos pulpitos, ao fundo dous reposteiros d'um rôxo mais escuro, e sob o docel côr de violeta os ouros do Throno. Um silencio fresco e alto repousava. Diante do Baptisterio um rapaz de joelhos, com um balde de zinco ao pé, esfregava o chão com uma rodilha, discretamente: dorsos de beatas, encapotados ou cobertos de chales tingidos, curvavam-se, aqui e além, diante d'um altar: e um velho, de jaqueta de saragoça, prostrado no meio da igreja, rosnava rezas n'uma molopéa lugubre; via-se a sua cabeça calva, as tachas enormes dos sapatos, e a cada momento, dobrando-se, batia no peito com desespero.
Luiza subiu ao altar-mór. Bazilio impacientava-se, de certo, pobre rapaz! Perguntou então, timidamente, as horas a um sacristão que passava. O homem ergueu a sua face côr de cidra para uma janela na cupula, e olhando Luiza de lado:
-- Vai indo p'ra as duas.
Para as duas! Era capaz de não esperar, Bazilio! Veio-lhe um receio de perder a sua manhã amorosa, um desejo aspero de se achar no Paraiso nos braços d'elle! E olhava vagamente os santos, as virgens trespassadas d'espadas, os Christos chagados, -- cheia de impaciencias voluptuosas, revendo o quarto, a caminha de ferro, o pequeno bigode de Bazilio!... Mas demorou-se, queria «fatigar o Conselheiro, deixal-o ir». Quando pensou que elle teria partido, sahiu devagarinho. -- Viu-o logo á porta, direito, com as mãos atraz das costas, lendo a pauta dos jurados.
Começou immediatamente a louvar a sua devoção. Não entrára porque não quizera perturbar o seu recolhimento. Mas approvava-a muito! A falta de religião era a causa de toda a immoralidade que grassava...
-- E além d'isso é de boa educação. V. exc.a ha-de reparar que toda a nobreza cumpre...
Calou-se; aprumava a estatura, todo satisfeito de descer o Chiado com aquella linda senhora, tão olhada. Mesmo, ao passar por um grupo, curvou-se para ella mysteriosamente, disse-lhe ao ouvido, sorrindo:
-- Está um dia apreciavel!
E offereceu-lhe bolos á porta do Baltreschi. Luiza recusou.
-- Sinto. Todavia acho muito sensata a regularidade nas comidas.
A sua voz vinha agora a Luiza com a impertinencia d'um zumbido; apesar de não fazer calor, abafava, picava-lhe o sangue no corpo; tinha vontade de deitar a correr, de repente; e todavia caminhava devagar, infeliz, como somnambula, cheia da necessidade de chorar.
Sem razão, ao acaso, entrou no Valente. Era hora e meia! Depois d'hesitar pediu gravatas de foulard a um caixeiro louro e jovial.
-- Brancas? de côr? de riscas? com pintinhas?
-- Sim, verei, sortidas.
Não lhe agradavam. Desdobrava-as, sacudia-as, punha-as de lado; e olhava em roda vagamente, pallida... O caixeiro perguntou-lhe se estava incommodada: offereceu-lhe agua, qualquer cousa...
Não era nada; o ar é que lhe fazia bem; voltaria. Sahiu. O Conselheiro, muito solicito, promptificou-se a acompanhal-a a uma boa pharmacia tomar agua de flôr de laranja... Desciam então a rua Nova do Carmo, e o Conselheiro ia affirmando que o caixeiro fôra muito polido: não se admirava, porque no commercio havia filhos de boas familias: citou exemplos.
Mas vendo-a calada:
-- Ainda soffre?
-- Não, estou bem.
-- Temos dado um delicioso passeio!
Foram ao comprido do Rocio, até ao fim. Voltaram, atravessaram-no em diagonal. E pelo lado do Arco do Bandeira, aproximaram-se para a rua do Ouro. Luiza olhava em redor, afflicta, procurava uma idéa, uma occasião, um acontecimento -- e o Conselheiro, grave a seu lado, dissertava. A vista do theatro de D. Maria levára-o para as questões da arte dramatica: tinha achado que a peça do Ernestinho era talvez demasiado forte. De resto só gostava de comedias. Não que se não enthusiasmasse com as bellezas d'um Frei Luiz de Sousa! mas a sua saude não lhe permittia as agitações fortes. Assim por exemplo...
Mas Luiza tivera uma idéa, e immediatamente:
-- Ah! esquecia-me! Tenho d'ir ao Vitry. Vou fazer chumbar um dente.
O Conselheiro, interrompido, fitou-a. E Luiza, estendendo-lhe a mão, com a voz rapida:
-- Adeus, appareça, hein? -- E precipitou-se para o portal do Vitry.
Subiu até ao primeiro andar, correndo, com os vestidos apanhados: parou, arquejando: esperou: desceu devagar, espreitou á porta... A figura do Conselheiro afastava-se direita, digna, para os lados das secretarias.
Chamou um trem.
-- A quanto puder! -- exclamou.
A carruagem entrou quasi a galope na ruasinha do Paraiso. Figuras pasmadas appareceram á janella. Subiu, palpitante. A porta estava fechada -- e logo a cancella do lado abriu-se, e a voz dôce da patrôa segredou:
-- Já sahiu. Ha-de haver meia hora.
Desceu. Deu a sua morada ao cocheiro, e atirando-se para o fundo do coupé, rompeu n'um chôro hysterico. Correu os stores para se esconder; arrancou o véo, rasgou uma luva, sentindo em si violencias inesperadas, Então veio-lhe um desejo phrenetico de vêr Bazilio! Bateu nos vidros desesperadamente, gritou:
-- Ao Hotel Central!
Porque estava n'um d'aquelles momentos em que os temperamentos sensiveis teem impulsos indomaveis; ha uma delicia colerica em espedaçar os deveres e as conveniencias; e a alma procura sofregamente o mal com estremecimentos de sensualidade!
A parelha estacou, resvalando á porta do hotel. «O snr. Bazilio de Brito não estava, o snr. visconde Reynaldo, sim».
-- Bem, para casa, para onde eu disse!
O cocheiro bateu. E Luiza, sacudida por uma irritabilidade febril, insultava o Conselheiro, o estafermo, o imbecil! maldizia a vida que lh'os fizera conhecer, a elle e a todos os amigos da casa! vinha-lhe uma vontade acre de mandar o casamento ao diabo, de fazer o que lhe viesse á cabeça!...
Á porta não tinha troco para o cocheiro. Espere! -- disse, subindo furiosa -- Eu lhe mandarei pagar!
-- Que bicha! -- pensou o cocheiro.
Foi Joanna que veio abrir; e quasi recuou, vendo-a tão vermelha, tão excitada.
Luiza foi direita ao quarto: o cuco cantava tres horas. Estava tudo desarrumado; vasos de plantas no chão, o toucador coberto com um lençol velho, roupa suja pelas cadeiras. E Juliana, com um lenço amarrado na cabeça, varria tranquillamente, cantarolando.
-- Então vossê ainda não arrumou o quarto! -- gritou Luiza.
Juliana estremeceu áquella colera inesperada.
-- Estava agora, minha senhora!
-- Que estava agora vejo eu! -- rompeu Luiza.
-- São tres horas da tarde e ainda o quarto n'este estado!
Tinha atirado o chapéo, a sombrinha.
-- Como a senhora costuma vir sempre mais tarde... -- disse Juliana.
E seus beiços faziam-se brancos.
-- Que lhe importa a que horas eu venho? Que tem vossê com isso? A sua obrigação é arrumar logo que eu me levante. E não querendo, rua, fazem-se-lhe as contas!
Juliana fez-se escarlate e cravando em Luiza os olhos injectados:
-- Olhe, sabe que mais? não estou para a aturar!
E arremessou violentamente a vassoura.
-- Sáia! -- berrou Luiza -- Sáia immediatamente! Nem mais um momento em casa!
Juliana poz-se diante d'ella, e com palmadas convulsivas no peito, a voz rouca:
-- Hei-de sahir se eu quizer! Se eu quizer!
-- Joanna! -- bradou Luiza.
Queria chamar a cozinheira, um homem, um policia, alguem! Mas Juliana descomposta, com o punho no ar, toda a tremer:
-- A senhora não me faça sahir de mim! A senhora não me faça perder a cabeça! -- E com a voz estrangulada através dos dentes cerrados: -- Olhe que nem todos os papeis foram p'ra o lixo!
Luiza recuou, gritou:
-- Que diz vossê?
-- Que as cartas que a senhora escreve aos seus amantes, tenho-as eu aqui! -- E bateu na algibeira, ferozmente.
Luiza fitou-a um momento com os olhos desvairados, e cahiu no chão, junto á causeuse, desmaiada.
VIII
A primeira impressão, mal acordada, de Luiza foi que duas figuras, que não conhecia, estavam debruçadas sobre ella. Uma, a mais forte, afastou-se; o som frio d'um frasco de vidro, pousado sobre o marmore do toucador, despertou-a. Sentiu então uma voz dizer abafadamente:
-- Está muito melhor. Mas deu-lhe de repente, snr.a Juliana?
-- De repente.
-- Eu vi-a entrar tão afogueada...
Passos subtis pisaram o tapete, a voz de Joanna perguntou-lhe junto do rosto:
-- Está melhor, minha senhora?
Abriu os olhos, a percepção nitida das cousas foi-lhe voltando; estava estendida na causeuse, tinham-lhe desapertado o vestido, e havia no quarto um forte cheiro de vinagre. Ergueu-se sobre o cotovêlo, devagar, com um olhar errante, vago:
-- E a outra?...
-- A snr.a Juliana? Foi-se deitar. Tambem se não achava bem. Foi de vêr a senhora, coitada... Está melhorzinha?
Sentou-se. Sentia uma fadiga em todo o corpo; tudo no quarto lhe parecia oscillar brandamente:
-- Póde ir, Joanna, póde ir -- disse.
-- A senhora não precisa mais nada? Talvez um caldinho lhe fizesse bem...
Luiza, só, pôz-se a olhar em roda, espantada. Estava já tudo arrumado, as janellas cerradas. Uma luva ficára cahida no chão: ergueu-se, ainda tropega, foi apanhal-a, esteve a esticar-lhe os dedos machinalmente, como somnambula, pôl-a na gaveta do toucador. Alisou o cabello; achava-se mudada, com outra expressão como se fosse outra; e o silencio do quarto impressionava-a, como extraordinario.
-- Minha senhora -- disse a voz timida de Joanna.
-- Que é?
-- É o cocheiro.
Luiza voltou-se, sem comprehender:
-- Que cocheiro?
-- Um cocheiro; diz que a senhora que não tinha troco, que o mandou esperar...
-- Ah!
E como a uma luz de gaz que salta subitamente e alumia uma decoração, viu, n'um relance, toda a «sua desgraça»!
Ficou tão tremula que mal podia abrir a gavetinha da commoda:
-- Tinha-me esquecido, tinha-me esquecido... -- balbuciava.
Deu o dinheiro a Joanna; e vindo cahir sobre a causeuse:
-- Estou perdida! -- murmurou, apertando as mãos na cabeça.
Tudo descoberto! E representaram-se-lhe logo no espirito, com a intensidade de desenhos negros sobre um muro branco, o furor de Jorge, o espanto dos seus amigos, a indignação d'uns, o escarneo dos outros; e estas imagens cahindo com ruido na sua alma, como combustiveis n'uma fogueira, ateavam-lhe desesperadamente o terror.
Que lhe restava? -- Fugir com Bazilio!
Aquella idéa, a primeira, a unica, apossou-se d'ella impetuosamente, trespassou-a -- como a agua d'uma inundação que subitamente alaga um campo.
Elle tinha-lhe tantas vezes jurado que seriam tão felizes em Paris, no seu appartamento da rua Saint Florentin! Pois bem, iria! Não levaria malas, poria no seu pequeno sacco de marroquim alguma roupa branca, as joias da mamã... E os criados? a casa? Deixaria uma carta a Sebastião para que viesse, fechasse tudo!... Levaria na viagem o vestido de riscadinho azul -- ou o preto! Mais nada. O resto compral-o-hia longe, n'outras cidades...
-- Se a senhora quer vir jantar... -- disse Joanna á porta do quarto.
Tinha posto um avental branco, e acrescentou:
-- A snr.a Juliana está deitada, diz que está com a dôr, não póde servir á mesa.
-- Já vou.
Tomou apenas uma colhér de sopa, bebeu um grande gole d'agua; e erguendo-se:
-- Que tem ella?
-- Diz que é uma dôr muito forte no coração.
Se morresse! Estava salva, ella! Podia ficar, então! E com uma esperança perversa:
-- Vá vêr, Joanna, vá vêr como está!
Tinha ouvido de tantas pessoas que morrem de uma dôr! Iria logo ao quarto d'ella rebuscar-lhe a arca, apossar-se da carta! E não teria medo do silencio da morte, nem da lividez do cadaver...
-- Está mais descançada, minha senhora -- veio dizer a Joanna -- diz que logo que se levanta. Então a senhora não come mais nada? Credo!
-- Não.
E entrou para o quarto, pensando: -- de que serve estar a imaginar cousas? Só me resta fugir.
Decidiu-se logo a escrever a Sebastião; mas não pôde acertar com outras palavras além do começo, no alto, n'uma letra muito trémula: Meu amigo!
Para que havia de escrever? Quando ao outro dia ella não voltasse, nem á tarde, nem á noite -- as criadas, a outra, a infame! iriam logo a Sebastião. Era o intimo da casa. Que espanto o d'elle! Imaginaria algum accidente, correria á Encarnação, depois á policia, esperaria n'uma angustia até de madrugada! Todo o dia seguinte seriam outras esperanças de a vêr chegar, decepções aterradas, -- até que telegrapharia a Jorge! E a essa hora de certo, ella, encolhida no canto do wagon, rolaria, ao ruido offegante da machina, para um destino novo!...
Mas porque se affligia, por fim? Quantas invejariam a sua desgraça! O que havia de infeliz em abandonar a sua vida estreita entre quatro paredes, passada a examinar roes de cozinha e a fazer crochet, e partir com um homem novo e amado, ir para Paris! para Paris! viver nas consolações do luxo, em alcovas de sêda, com um camarote na Opera!... Era bem tola em se affligir! Quasi fôra uma felicidade aquelle «desastre»! Sem elle nunca teria tido a coragem de se desembaraçar da sua vida burgueza; mesmo quando um alto desejo a impellisse, haveria sempre uma timidez maior para a reter!
E depois, fugindo, o seu amor tornava-se digno! Seria só d'um homem; não teria de amar em casa e amar fóra de casa!
Veio-lhe mesmo a idéa de ir ter immediatamente com Bazilio, «acabar com aquillo por uma vez». Mas era tarde para ir ao hotel; temia as ruas escuras, a noite, e os bebedos...
Foi logo arranjar o sacco de marroquim. Metteu lenços, alguma roupa branca, o estojo das unhas, o rosario que lhe dera Bazilio, pós d'arroz, algumas joias que tinham pertencido á mamã... Quiz levar as cartas de Bazilio tambem... Tinha-as guardadas n'um cofre de sandalo, no gavetão do guarda-vestidos. Espalhou-as no regaço; abriu uma, d'onde cahiu uma florzinha sêcca; outra que tinha, na dobra, a photographia de Bazilio. De repente, pareceu-lhe que não estavam completas! Tinha sete: cinco bilhetes curtos, e duas cartas -- a primeira que elle lhe escrevêra, tão terna! e a ultima no dia do arrufo! Contou-as... Faltava, com effeito, a primeira, e dous bilhetes! Tinha-lh'as roubado, tambem!... Ergueu-se livida. Ah que infame! veio-lhe uma raiva de subir ao sotão, luctar com ella, arrancar-lh'as, esganal-a!... Que lhe importava, por fim! -- E deixou-se cahir na causeuse, aniquilada -- Que ella tivesse uma, duas, todas -- era a mesma desgraça!
E muito excitada, foi preparar o vestido preto que devia levar, o chapéo, um chale-manta...
O cuco cantou dez horas. Entrou então na alcova; pôz o castiçal sobre a mesinha, ficou a olhar o largo leito com o seu cortinado de fustão branco. Era a ultima vez que alli dormia! Fôra ella que bordára aquella coberta de crochet no primeiro anno de casada: não havia uma malha que não correspondesse a uma alegria. Jorge ás vezes vinha vêl-a trabalhar, e, calado, considerava-a com um sorriso, ou fallava-lhe baixo enrolando devagar nos dedos o fio de algodão grosso! Alli dormira com elle tres annos: o seu lugar era de lá, do lado da parede... Fôra n'aquella cama que ella estivera doente, com a pneumonia. Durante semanas elle não se deitára -- a velal-a, a conchegar-lhe a roupa, a dar-lhe os caldos, os remedios, com toda a sorte de palavras dôces que lhe faziam tão bem!... Fallava-lhe como a criancinha pequena: dizia-lhe: «isso vai passar, ámanhã estás boa, vamos passear». Mas o seu olhar ancioso estava marejado de lagrimas! Ou então pedia-lhe: «Melhora, sim? Faze-me a vontade, minha querida, melhora!...» E ella queria tanto melhorar, que sentia como uma ligeira onda de vida que voltava, lhe refrescava o sangue!
Nos primeiros dias da convalescença era elle que a vestia; ajoelhava-se para lhe calçar os sapatos, embrulhava-a no roupão, vinha estendel-a na causeuse, sentava-se ao pé d'ella a lêr-lhe romances, desenhar-lhe paizagens, recortar-lhe soldados de papel. E dependia toda d'elle, não tinha mais ninguem no mundo para a tratar, para soffrer, chorar por ella -- senão elle! Adormecia sempre com as mãos nas suas, porque a doença deixára-lhe um vago medo dos pesadêlos da febre; e o pobre Jorge, para a não acordar, alli ficava com a mão presa, horas, sem se mover. Deitava-se vestido n'um colxãosito ao pé d'ella. Muitas vezes, acordando de noite, o tinha visto a limpar as lagrimas; d'alegria, de certo, porque ella então estava salva! o medico, o bom dr. Caminha, tinha-o dito: «Está livre de perigo, agora é refazer esse corpinho». E Jorge, o pobre Jorge, coitado, sem dizer nada, tinha tomado as mãos do velho, -- tinha-as coberto de beijos!
E agora, quando elle soubesse, quando elle voltasse! Quando ao entrar alli na alcova -- visse os dous travesseirinhos, ainda! Ella iria longe, com outro, por caminhos estranhos, ouvindo outra lingua. Que horror! E elle alli estaria, n'aquella casa só, chorando, abraçado a Sebastião. Quantas memorias d'ella para o torturar! Os seus vestidos, as suas chinellinhas, os seus pentes, toda a casa! Que vida triste, a d'elle! Dormiria alli só! Já não teria ninguem para o acordar de manhã com um beijinho, passar-lhe o braço pelo pescoço, dizer-lhe: é tarde, Jorge! Tudo acabára para ambos. Nunca mais! -- Rompeu a chorar, de bruços sobre a cama...
Mas a voz de Juliana fallou alto no corredor com Joanna. Ergueu-se aterrada. Viria ter com ella, aquella infame? Os passos achinellados afastaram-se devagar, e Joanna entrou com o rol e com a lamparina.
-- A snr.a Juliana -- disse -- levantou-se um momento, mas diz que ainda está mal, coitada. Foi-se deitar. A senhora não precisa mais nada?
-- Não -- disse da alcova.
Despiu-se; e, prostrada, adormeceu profundamente.
Juliana em cima não dormia. A dôr passára-lhe -- e agitava-se sobre o enxergão, «com o diabo da espertina»! como tantas outras noites, nas ultimas semanas. Porque desde que apanhára a carta no sarcophago vivia n'uma febre; mas a alegria era tão aguda, a esperança tão larga que a sustentavam, lhe davam saude! Deus emfim tinha-se lembrado d'ella! Desde que Bazilio começára a vir a casa, tivera logo um palpite, uma cousa que lhe dizia que tinha chegado emfim a sua vez! A primeira satisfação fôra n'aquella noite em que achára, depois de Bazilio sahir ás dez horas, a travéssinha de Luiza cahida ao pé do sophá. Mas que explosão de felicidade, quando, depois de tanta espionagem, de tanta canceira, apanhou emfim a carta no sarcophago! Correu ao sotão, leu-a avidamente, e quando viu a importancia da «cousa» arrasaram-se-lhe os olhos de lagrimas, arremessou a sua alma perversa para as alturas, bradando em si, n'um triumpho:
-- Bemdito seja Deus! Bemdito seja Deus!
E que havia de fazer áquillo? -- foi então a sua inquietação. Ora pensava em a vender a Luiza por uma forte somma... mas onde tinha ella o dinheiro? Não; o melhor era esperar a volta de Jorge, e com ameaças de a publicar, extorquir-lhe um rôr de libras por meio d'outra pessoa, já se vê, e ella á capa! E em certos dias em que a figura, as toilettes, as passeatas de Luiza a irritavam mais, vinham-lhe venetas de sahir p'ra a rua, chamar os visinhos, lêr o papel, pôl-a mais rasa que a lama, vingar-se da «cabra»!
Foi a tia Victoria que a calmou, e a dirigiu. Disse-lhe logo «que para a armadilha ser completa era necessario uma carta do janota». Começára então o lento trabalho de lh'a apanhar! Fôra preciso muita finura, muita chave experimentada, duas feitas por moldes de cêra, paciencia de gato, habilidades de ratoneiro! Mas pilhou-a, e que carta! Tinha-a lido com a tia Victoria -- que rira, rira!... Sobre tudo o bilhete em que Bazilio lhe dizia: «Hoje não posso ir, mas espero-te ámanhã ás duas; mando-te essa rosinha, e peço-te que faças o que fizeste á outra, trazel-a no seio, porque é tão bom quando vens assim, sentir-te o peitinho perfumado!...» A tia Victoria, suffocada, quil-a mostrar á sua velha amiga, a Pêdra, a Pêdra gorda, que estava na saleta.
A Pêdra torceu-se! Os seus enormes seios, pendentes como odres mal cheios, tinham sacudidellas furiosas de hilaridade. E com as mãos nas ilhargas, rubra, roncando, com o seu vozeirão de trombone:
-- Essa é das boas, tia Victoria! Essa é de mestre. Não, isso merece ir para os papeis! Ai os bebedos! Raios do diabo!
A tia Victoria, então, disse muito seriamente a Juliana:
-- Bem; agora tens a faca e o queijo! Com isso já pódes fallar d'alto. É esperar a occasião. Muito bons modos, cara prazenteira, sorrisos a fartar para ella não desconfiar, e o olho álerta. Tens o rato seguro, deixa-o dar ao rabo!
E desde esse dia Juliana saboreava com delicias, com gula, muito comsigo -- aquelle gozo de a ter «na mão», a Luizinha, a senhora, a patroa, a piorrinha! Via-a aperaltar-se, ir ao homem, cantarolar, comer bem -- e pensava com uma voluptuosidade felina: Anda, folga, folga, que eu cá t'a tenho armada! Aquillo dava-lhe um orgulho perverso. Sentia-se vagamente senhora da casa. Tinha alli fechada na mão a felicidade, o bom nome, a honra, a paz dos patrões! Que desforra!
E o futuro estava certo! Aquillo era dinheiro, o pão da velhice. Ah! tinha-lhe chegado o seu dia! Todos os dias rezava uma Salvè-rainha de graças a Nossa Senhora, mãi dos homens!
Mas agora, depois d'aquella scena com Luiza -- não podia ficar de braços cruzados, com as cartas na algibeira. Devia sahir de casa, pôr-se em campo, fazer alguma cousa. O que? A tia Victoria é que havia de dizer...
Logo pela manhã ás sete horas, sem tomar o seu café, sem fallar a Joanna, desceu devagar, sahiu.
A tia Victoria não estava em casa. Gente na saleta esperava. O snr. Gouvêa, com a borla do barretinho muito arrebitada, escrevinhava, dobrado, cuspilhando o seu catarrho. Juliana deu os bons dias em redor, e sentou-se a um canto, direita, com a sua sombrinha nos joelhos.
Conversava-se: e uma mulher de trinta annos, picada das bexigas, que estava sentada no canapé, depois de ter dado um sorriso a Juliana, continuou, voltada para uma gordita com um chale de quadrados vermelhos:
-- Pois não imagina, snr.a Anna, não faz idéa! É uma desgraça! É todas as noites como um carro. Ás vezes até acordo com o barulho que elle faz a fallar só, a tropeçar na escada... Eu, do que tenho mais medo, é que o demonio adormeça com a luz e haja um fogo. Ah! é de todo!
-- Quem? -- perguntou um rapazola bonito, com uma blusa de trintanario, que fallava de pé a um criado alto, de suiças e gravata branca enxovalhada.
-- O Cunha, o filho do meu patrão. É uma desgraça!
-- Piteireiro, hein? -- disse o rapazola, enrolando o cigarro.
-- Um horror! Eu pela manhã nem posso entrar no quarto, que é um cheiro... A mãi, coitadinha, chora, rala-se; o rapaz já esteve para ser posto fóra do emprego. Ai! não estou nada contente, nada contente!
-- Pois olhe que por lá tambem ha desgosto grande -- disse, baixando a voz, a do chale de quadrados.
Os dous homens aproximaram-se.
-- O senhor -- continuou ella com gestos aterrados -- é um desafôro com a cunhada!... A senhora sabe, e aquillo são questões de dia e de noite! As duas irmãs andam n'uma bulha pegada. O homem toma as dôres da rapariga, a mulher põe-se aos gritos... Ai! aquillo vem a acabar mal!
-- E então se a gente tem lá o seu descuido -- disse o da gravata branca com indignação -- é aqui d'el-rei, e d'aqui e d'alli!
-- Lá a sua gente é socegada, snr. João -- observou a picada das bexigas.
-- É boa gente. As raparigas namoradeiras... Proveito das criadas, apanham o seu vestidito, a sua placa... Mas os velhotes é uma santa gente, a verdade é a verdade! E come-se bem!
E voltando-se para o trintanario, batendo-lhe no hombro, com uma voz que o admirava e que o invejava:
-- Mas isto sim! Isto é que é leval-a!
O rapazola sorriu com satisfação:
-- Ora! são mais as vozes do que as nozes!
-- Vá lá, mostra lá -- disse o da gravata branca tocando-lhe com o cotovêlo -- mostra lá!
O rapaz fez-se rogado, e depois de gingar da cintura, arregaçando a blusa, tirou do bolso do collete de riscadinho um relogio d'ouro.
-- Muito bonito! Rica prenda! -- disseram as duas mulheres.
-- Suor do meu rosto -- fez elle, acariciando o queixo.
O da gravata branca indignou-se:
-- Ora seu marôto! -- E baixo para as raparigas: -- Suor do seu rosto, hein! -- É o seraphim da patrôa, uma senhora da alta que aquillo são tudo sêdas, muitissimo boa mulher, um bocado entradota, mas muitissimo boa mulher, recebe d'estas lembranças, um relogio d'um par de moedas -- e ainda falla!
O rapazola disse então, enterrando as mãos na algibeira:
-- E se quizer agora, ha-de largar a corrente!
-- Ha-de-lhe custar muito! -- exclamou o da gravata branca. -- Uma gente que tem ahi pela baixa correntezas de casas! Metade da rua dos Retrozeiros é d'ella!
-- Mas muito agarrada! -- disse o rapazola. E bamboleando o corpo, com o cigarro ao canto da bocca: -- Estou com ella ha dous mezes, e ainda se não desabotoou senão com o relogio e tres libras em ouro!... Que eu, como quem diz, um dia passo-lhe o pé! -- E cofiando o cabello para a testa: -- Não faltam mulheres! e das que tem Dom!
Mas a tia Victoria entrou, muito azafamada, com o chale no braço; e vendo Juliana:
-- Olá! por cá! Tive que dar umas voltas, estou na rua desde as seis. Bons dias, snr.a Theodosia; bons dias, Anna. Viva, temos por cá o alfenim! Entra cá p'ra dentro, Juliana! Eu já venho, meus pombinhos, é um instante!
Levou-a para o outro quarto, para o lado do saguão:
-- E então, que ha de novo?
Juliana pôz-se a contar longamente a scena da vespera, o desmaio...
-- Pois minha rica -- disse a tia Victoria -- o que está feito, está feito; não ha tempo a perder; é mãos á obra! Tu vaes ao Brito, ao hótel, e entendes-te com elle.
Juliana recusou-se logo: não se atrevia, tinha medo...
A tia Victoria reflectiu, coçando o ouvido; foi dentro, cochichou com o tio Gouvêa, e voltando, fechando a porta do quarto:
-- Arranja-se quem vá. Tens tu as cartas?
Juliana tirou da algibeira uma velha carteirinha de marroquim escarlate. Mas hesitou um momento, olhou a tia Victoria com desconfiança.
-- Tens medo de largar os papeis, creatura? -- exclamou offendida a velha. -- Arranja-te tu, então arranja-te tu...
Juliana deu-lh'as logo. Mas que as guardasse, que tivesse cautela!...
-- A pessoa -- disse a tia Victoria -- vai ámanhã á noite fallar com o Brito, e pede-lhe um conto de reis!
Juliana teve um deslumbramento. Um conto de reis! A tia Victoria estava a brincar!
-- Ora essa! Que pensas tu? Por uma carta, que quasi não tinha mal nenhum, pagou uma pessoa que bate ahi o Chiado de carruagem -- ainda hontem a vi com uma pequerrucha que tem -- pagou trezentos mil reis. E em bellas notas. Pagou-os o janota, já se sabe, foi o janota que pagou. Se fosse outro, não digo, mas o Brito! É rico, é um man-rôtas, cahe logo...
Juliana, muito branca, agarrou-lhe o braço, tremula:
-- Oh tia Victoria, dava-lhe um córte de sêda.
-- Azul! até já te digo a côr!
-- Mas o Brito é homem muito teso, tia Victoria, se lhe tira as cartas, se lhe faz alguma!
A tia Victoria fitou-a, com desdem:
-- Sahes-me uma simploria! Imaginas que eu mando lá algum tolo? Nem as cartas vão, o que vai é uma copia! Olha quem! O melro que lá ha-de ir!
E depois de reflectir um momento:
-- Tu vai-te para casa...
-- Não, lá isso não volto...
-- Tambem tens razão. Até vêr em que param as modas, vem cá dormir. Jantas cá hoje; tenho uma rica pescada...
-- Mas não haverá perigo, tia Victoria, se o Brito vai á policia...
A tia Victoria encolheu os hombros, e impacientada:
-- Olha, vai-te, que me estás a emphrenesiar! Policia! Qual policia! Essas cousas levam-se lá á policia... Deixa a cousa commigo! Adeus -- e ás quatro para jantar, hein!
Juliana sahiu como levada pelo ar! Um conto de reis! Era o conto de reis que voltava, o que já um dia entrevira, que lhe fugira, que lhe vinha agora cahir na mão, com um tlin-tlin de libras e um frou-frou de notas! E o cerebro enchia-se-lhe confusamente de perspectivas differentes, todas maravilhosas: um mostrador de capellista onda ella venderia! um marido ao seu lado, ás horas da cêa! pares de botinas das boas, das chics. Onde poria o dinheiro? No Banco? Não; no fundo da arca -- para estar mais seguro, mais á mão!
Para passar a sua manhã, comprou uma quarta de rebuçados, e foi-se sentar no Passeio, com a sombrinha aberta, deliciando-se, ruminando já a sua vida rica, julgando-se já senhora; mesmo fez olho a um proprietario pacifico e rubicundo -- que se afastou escandalisado!
Áquella hora Luiza acordava. E sentando-se bruscamente na cama: -- É hoje! -- foi o seu primeiro pensamento. Um susto, uma tristeza horrivel contrahiram-lhe o coração. Começou depois a vestir-se, muito nervosa com a idéa de vêr Juliana! Estava mesmo imaginando fechar-se, não almoçar, sahir pé ante pé ás onze horas, ir procurar Bazilio ao hotel, quando a voz de Joanna disse á porta do quarto:
-- A senhora faz favor?
Começou logo a contar, muito espantada, que a snr.a Juliana tinha sahido de manhã, ainda não voltára, estava tudo por arrumar...
-- Bem, arranje-me o almoço, eu já vou... -- Que allivio para ella!
Calculou logo que Juliana deixára a casa. Para que? Para lhe armar alguma, de certo! O melhor era sahir immediatamente... Podia esperar Bazilio no Paraiso.
Foi á sala de jantar, bebeu um gole de chá, de pé, á pressa.
-- A snr.a Juliana ter-lhe-ha dado alguma cousa? -- veio dizer Joanna assombrada.
Luiza encolheu os hombros, respondeu vagamente:
-- Depois se saberá...
Era hora e meia, foi pôr o chapéo. O coração batia-lhe alto, e apesar do terror de vêr entrar Juliana, não se decidia a sahir; sentou-se mesmo, com o sacco de marroquim nos joelhos. Vamos! pensou emfim. -- Ergueu-se; mas parecia que alguma cousa de subtil e de forte a prendia, a enleava... Entrou na alcova devagar: o seu roupão estava cahido aos pés da cama, as suas chinellinhas sobre o tapete felpudo... -- Que desgraça! disse alto. Veio ao toucador, mexeu nos pentes, abriu as gavetas; de repente entrou na sala, foi ao album, tirou a photographia de Jorge, metteu-a toda tremula no sacco de marroquim, olhou ainda em roda como desvairada, sahiu, atirou com a porta, desceu a escada correndo.
Á Patriarchal passava um coupé de praça. Tomou-o, mandou-o ir ao Hotel Central.
O snr. Brito sahira logo de manhã cedo, disse o porteiro muito azafamado. De certo algum paquete chegára, porque entravam bagagens, fortes malas cobertas d'oleado, caixas de madeira debruadas de ferro; passageiros com ar espantado da chegada, ainda entontecidos do balouço do mar, fallavam, chamavam. Aquelle movimento animou-a: veio-lhe um desejo de viagens, do ruido nocturno das gares á claridade do gaz, da agitação alegre das partidas nas manhãs frescas, sobre o tombadilho dos paquetes!
Deu ao cocheiro a adresse do Paraiso. E á maneira que o trem trotava parecia-lhe que toda a sua vida passada, Juliana, a casa, se esbatiam, se dissipavam n'um horisonte abandonado. Á porta d'um livreiro julgou entrevêr Julião; debruçou-se pela portinhola, precipitadamente; não o avistou, teve pena: ia-se sem vêr um amigo da casa! Todos agora, Julião, Ernestinho, o Conselheiro, D. Felicidade lhe pareciam adoraveis, com qualidades nobres, que nunca percebera, que repentinamente tomavam um grande encanto. E o pobre Sebastião, tão bom! Nunca mais lhe ouviria tocar a sua Malaguenha!
Ao fim da rua do Ouro o coupé parou n'um embaraço de carroças, e Luiza viu no passeio ao lado o Castro, o Castro dos oculos, o banqueiro, o que Leopoldina lhe dizia que «tinha uma paixão por ella»: um rapazito rôto offerecia-lhe cautelas; e o Castro nedio, com os dous pollegares nas algibeiras do collete branco, dizia graças ao rapaz, com um desdem ricaço, dardejando olhadellas sobre Luiza, através dos seus oculos d'ouro. Ella, pelo canto do olho, observava-o: tinha uma paixão por ella, aquelle homem, que horror! Achava-o medonho, com o seu ventre pançudo, a perninha curta. A lembrança de Bazilio atravessou-a, a sua linda figura!... -- e bateu nos vidros impaciente, com pressa de o vêr.
O trem partiu emfim. O Rocio reluzia ao sol; do Americano, parado á esquina, gente descia apressada, de calças brancas, vestidos leves, vinda de Belem, de Pedrouços; pregões cantavam. -- Todos alli ficavam nas suas familias, nas suas felicidades, só ella partia!
Na rua Occidental, viu vir a D. Camilla -- uma senhora casada com um velho, illustre pelos seus amantes. Parecia gravida; e adiantava-se devagar, com a face branca satisfeita, uma lassitude do corpo arredondado, passeando um marmanjosinho de jaqueta côr de pinhão, uma pequerrucha de sainhas tufadas, e adiante uma ama, vestida de lavradeira, empurrava um carrinho de mão onde um bébé se babava. E a Camilla, feliz, vinha tranquillamente pela rua expondo as suas fecundidades adulteras! Era muito festejada, ninguem dizia mal d'ella; era rica, dava soirées... -- O que é o mundo! -- pensava Luiza.
O trem parou á porta do Paraiso, era meio dia. A portinha em cima estava fechada: e a patrôa appareceu logo, ciciando que «sentia muitissimo, mas só o senhor é que tinha a chavesinha, se a senhora quizesse descançar...» N'este momento outra carruagem chegou, e Bazilio appareceu galgando os degraus.
-- Até que emfim! -- exclamou abrindo a porta. -- Porque não vieste hontem?...
-- Ah! se tu soubesses...
E, agarrando-lhe os braços, cravando os olhos n'elle:
-- Bazilio, sabes, estou perdida!
-- Que ha?
Luiza atirára o sacco de marroquim para o canapé, e, d'um folego, contou-lhe a historia da carta apanhada nos papeis, as d'elle roubadas, a scena no quarto... -- O que me resta é fugir. Aqui estou. Leva-me. Tu disseste que podias, tens-l'o dito muitas vezes. Estou prompta. Trouxe aquelle sacco, com o necessario, lenços, luvas... hein?
Bazilio com as mãos nos bolsos, fazendo tilintar o dinheiro e as chaves, seguia attonito os seus gestos, as suas palavras.
-- Isso só a ti! -- exclamou. -- Que douda! Que mulher! -- E muito excitado: -- Isso é lá questão de fugir? Que estás tu a fallar em fugir? É uma questão de dinheiro. O que ella quer é dinheiro. É vêr quanto quer, e pagar-se-lhe!
-- Não, não! -- fez Luiza -- Não posso ficar! -- Tinha uma afflicção na voz. A mulher venderia a carta, mas conservava o segredo: a todo o tempo podia fallar, Jorge saber: estava perdida, não tinha coragem de voltar para casa! -- Não sinto um momento de descanço, em quanto estiver em Lisboa. Partimos hoje, sim? Se não pódes, ámanhã. Eu vou para algum hotel, aonde ninguem saiba, escondo-me esta noite. Mas, ámanhã vamos. Se elle sabe, mata-me, Bazilio! Sim, dize que sim! -- Agarrára-se a elle, procurava avidamente com os seus olhos o consentimento dos d'elle.
Bazilio desprendeu-se brandamente:
-- Estás douda, Luiza, tu não estás em ti! Póde lá pensar-se em fugir! Era um escandalo atroz, eramos apanhados de certo, com a policia, com os telegraphos! É impossivel! Fugir é bom nos romances! E depois, minha filha, não é um caso para isso! É uma simples questão de dinheiro...
Luiza fazia-se branca, ouvindo-o.
-- E além d'isso -- continuou Bazilio, muito agitado, pelo quarto -- eu não estou preparado, nem tu! Não se foge assim. Ficas desacreditada para toda a vida, sem remedio, Luiza. Uma mulher que foge, deixa de ser a snr.a D. Fulana, é a Fulana, a que fugiu, a desavergonhada, uma concubina! Eu tenho de certo de ir ao Brazil, onde has-de tu ficar? Queres ir tambem, um mez n'um beliche, arriscar-te á febre amarella? E se teu marido nos persegue se formos detidos na fronteira? Achas bonito voltar entre dous policias, e ir passar um anno ao Limoeiro? O teu caso é simplicissimo. Entendes-te com essa creatura, dá-se-lhe um par de libras, que é o que ella quer, e ficas em tua casa, socegada, respeitada como d'antes -- sómente mais acautelada! Aqui está!
Aquellas palavras cahiam sobre os planos de Luiza, como machadadas que derrubam arvores. Ás vezes a verdade que ellas continham atravessava-a irresistivelmente, viva como um relampago, desagradavel como um gume frio. Mas via n'aquella recusa uma ingratidão, um abandono. Depois de se ter installado, pela imaginação, n'uma segurança feliz, longe, em Paris -- parecia-lhe intoleravel ter de voltar para casa, de cabeça baixa, soffrer Juliana, esperar a morte; e os contentamentos que entrevira n'aquelle outro destino, agora que lhe fugiam d'entre as mãos, pareciam-lhe maravilhosos, quasi indispensaveis! E depois de que servia resgatar a carta a dinheiro? A creatura saberia o seu segredo! E a vida seria amarga, tendo sempre em volta de si aquelle perigo a rondar!
Ficára calada, como perdida n'uma reflexão vaga; e de repente erguendo a cabeça, com um olhar brilhante:
-- Então, dize!...
-- Mas estou-te a dizer, filha...
-- Não queres?
-- Não! -- exclamou Bazilio com força. -- Se tu estás douda, não estou eu!
-- Oh! pobre de mim, pobre de mim!
Deixou-se cahir no sophá, tapou o rosto com as mãos. Soluços baixos sacudiam-lhe o peito.
Bazilio sentou-se ao pé d'ella. Aquellas lagrimas mortificavam-no, e impacientavam-no.
-- Mas, santo nome de Deus, escuta-me!
Ella voltou para elle os olhos que reluziam sob o pranto:
-- Para que dizias então, tantas vezes, que seriamos tão felizes, que se eu quizesse...
Bazilio ergueu-se bruscamente:
-- Pois tu pensaste em fugir, em te metter commigo n'um wagon, vir para Paris, viver commigo, ser a minha amante?
-- Sahi de casa p'ra sempre, ahi está o que eu fiz!
-- Mas vaes voltar p'ra casa! -- exclamou elle, quasi com colera. -- Por que havias de tu fugir? por amor? então deviamos ter partido ha um mez, não ha razão agora para irmos. Para que, então? Para evitar um escandalo? com um escandalo maior, não é verdade? um escandalo irreparavel, medonho! Estou-te a fallar como um amigo, Luiza! -- Tomou-lhe as mãos, com muita ternura: -- Tu imaginas que eu não seria feliz em ir viver comtigo para Paris? Mas vejo os resultados, tenho outra experiencia. O escandalo todo evita-se com umas poucas de libras. Tu imaginas que a mulher vai-se pôr a fallar? O seu interesse é safar-se, desapparecer; sabe perfeitamente o que fez, que te roubou, que usou de chaves falsas. A questão é pagar-lhe.
Ella disse, com uma voz lenta:
-- E o dinheiro, onde o tenho eu?
-- Está claro que o dinheiro tenho-o eu! -- E depois de uma pausa: -- Não muito, estou mesmo um pouco atrapalhado, mas emfim... -- Hesitou, disse: -- se a creatura quizer duzentos mil reis, dão-se-lhe!
-- E se não quizer?
-- Que ha-de ella querer, então? Se roubou a carta é para a vender! Não é para guardar um autographo teu!
Vinham-lhe palavras duras, passeava pelo quarto exasperado. Que pretensão querer vir com elle para Paris, embaraçar-lhe para sempre a sua vida! E que despeza tão tola, dar um 'rôr de libras a uma ladra! Depois aquelle incidente, a carta de namoro roubada nos papeis sujos, a criada, a chave falsa do gavetão dos vestidos -- parecia-lhe soberanamente burguez, um pouco pulha. E parando, para acabar:
-- Emfim oferece-lhe trezentos mil reis, se quizeres. Mas pelo amor de Deus, não faças outra; não estou para pagar as tuas distracções a trezentos mil reis cada uma!
Luiza fez-se livida, como se elle lhe tivesse cuspido no rosto.
-- Se é uma questão de dinheiro, eu o pagarei, Bazilio!
Não sabia como. Que lhe importava! Pediria, trabalharia, empenharia... Não o aceitaria d'elle!
Bazilio encolheu os hombros:
-- Estás-te a dar ares, onde o tens tu?
-- Que te importa? -- exclamou.
Bazilio coçou a cabeça, desesperado. E tomando-lhe as mãos, com uma impaciencia reprimida:
-- Estamos a dizer tolices, filha, estamos a irritar-nos... Tu não tens dinheiro.
Ella interrompeu-o, agarrou-lhe violentamente o braço:
-- Pois sim, mas falla tu a essa mulher, falla-lhe tu, arranja tudo. Eu não a quero tornar a vêr. Se a vejo, morro, acredita. Falla-lhe tu!
Bazilio recuou vivamente, e batendo com o pé:
-- Estás douda, mulher! Se eu lhe fallo, então pede tudo, então pede-me a pelle! Isso é comtigo. Eu dou-te o dinheiro, tu arranja-te!
-- Nem isso me fazes?
Bazilio não se conteve:
-- Não! c'os diabos, não!
-- Adeus!
-- Tu estás fóra de ti, Luiza!
-- Não. A culpa é minha -- dizia, descendo o véo com as mãos tremulas -- eu é que devo arranjar tudo!
E abriu a porta. Bazilio correu a ella, prendeu-a por um braço.
-- Luiza, Luiza! o que queres tu fazer? não podemos romper assim! Escuta...
-- Fujamos então, salva-me de todo! -- gritou ella, abraçando-o anciosamente.
-- Caramba! Se te estou a dizer que não é possivel!
Ella atirou com a porta, desceu as escadas correndo. O coupé esperava-a.
-- Para o Rocio -- disse.
E deitando-se para o canto da carruagem, rompeu a chorar convulsivamente.
Bazilio sahiu do Paraiso muito agitado. As pretensões de Luiza, os seus terrores burgueses, a trivialidade reles do caso, irritavam-no tanto, que tinha quasi vontade de não voltar ao Paraiso, calar-se, e deixar correr o marfim! Mas tinha pena d'ella, coitada! E depois, sem a amar appetecia-a: era tão bem feita, tão amorosa, as revelações do vicio davam-lhe um delirio tão adoravel! Um conchegosinho tão picante em quanto estivesse em Lisboa... Maldita complicação! Ao entrar no hotel, disse ao seu criado:
-- Quando vier o snr. visconde Reynaldo, que vá ao meu quarto.
Estava alojado no segundo andar, com janellas para o rio. Bebeu um calix de cognac, e estirou-se no sophá. Ao pé, na jardineira, tinha o seu buvard com um largo monogramma em prata sob a corôa de conde, caixas de charutos, os seus livros -- Mademoiselle Giraud ma femme, La vierge de Mabille, Ces Frippones! Memoires secrètes d'une femme de chambre, Le chien d'arrêt, Manuel du chasseur, numeros do Figaro, a photographia de Luiza, e a photographia d'um cavallo.
E soprando o fumo do charuto, começou a considerar, com horror, a «situação»! Não lhe faltava mais nada senão partir para Paris, com aquelle trambolhosinho! Trazer uma pessoa, havia sete annos, a sua vida tão arranjadinha, e patatrás! embrulhar tudo, porque á menina lhe apanharam a carta de namoro e tem medo do esposo! Ora o descaro! No fim, toda aquella aventura desde o começo fôra um erro! Tinha sido uma idéa de burguez inflammado ir desinquietar a prima da Patriarchal. Viera a Lisboa para os seus negocios, era tratal-os, aturar o calor e o bœuf à la mode do Hotel Central, tomar o paquete, e mandar a patria ao inferno!... Mas não idiota! Os seus negocios tinham-se concluido, -- e elle, burro, ficára alli a torrar em Lisboa, a gastar uma fortuna em tipoias para o largo de Santa Barbara, para quê? Para uma d'aquellas! Antes ter trazido a Alphonsine!
Que, verdade, verdade, em quanto estivesse em Lisboa o romance era agradavel, muito excitante; porque era muito completo! Havia o adulteriosinho, o incestosinho. Mas aquelle episodio agora estragava tudo! Não, realmente, o mais razoavel era safar-se!
A sua fortuna tinha sido feita com negocio de borracha, no alto Paraguay; a grandeza da especulação trouxera a formação d'uma companhia, com capitaes brazileiros; mas Bazilio e alguns engenheiros francezes queriam resgatar as acções brazileiras, «que eram um empecilho», formar em Paris uma outra companhia, e dar ao negocio um movimento mais ousado. Bazilio partira para Lisboa entender-se com alguns brazileiros, e comprára as acções habilmente. A prolongação d'aquelle incidente amoroso tornava-se uma perturbação na sua vida pratica... E, agora que a aventura tomava um aspecto seccante, convinha passar o pé!
A porta abriu-se e o visconde Reynaldo entrou -- afogueado, de lunetas azues, furioso.
Vinha de Bemfica! Morto, absolutamente morto com aquelle calor, d'um paiz de negros. Tivera a estupida idéa de ir visitar uma tia -- que o fizera logo membro d'uma associação para não sei que diabo de que creche, e que lhe prégára moral! Tambem que idéa de collegial -- ir visitar a tia! Porque realmente, se havia uma cousa que lhe causasse repugnancia, eram as ternuras de familia!
-- E tu, que queres tu? Eu vou-me metter n'um banho até ao jantar!
-- Sabes o que me succede? -- disse Bazilio, erguendo-se.
-- O quê?
-- Imagina. O caso mais estupido.
-- O marido apanhou-te?
-- Não, a criada!
-- Shocking! -- exclamou Reynaldo com nôjo.
Bazilio contou miudamente «o caso». E cruzando os braços diante d'elle:
-- E agora?
-- Agora é safar-te!
E levantou-se.
-- Onde vaes tu?
-- Vou ao banho.
Que esperasse, que diabo, queria fallar com elle...
-- Não posso! -- exclamou Reynaldo com um egoismo phrenetico. -- Vem tu cá abaixo! Posso perfeitamente conversar na agua!
Sahiu, berrando por William, o seu criado inglez.
Quando Bazilio desceu aos banhos, Reynaldo estirado com voluptuosidade na tina, d'onde sahia um forte cheiro d'agua de Lubin, exclamou, deleitando-se no seu conforto:
-- Então cartinha apanhada nos papeis sujos!
-- Não, Reynaldo, mas francamente estou embaraçado; que achas tu que eu faça?
-- As malas, menino!
E sentado na tina, ensaboando devagar o seu corpo magro:
-- Ahi está o que é fazer amor ás primas da Patriarchal Queimada!
-- Oh! -- fez Bazilio, impaciente.
-- Oh quê? -- E, coberto de flocos d'espuma, com as mãos apoiadas ao rebordo de marmore da tina: -- Pois tu achas isso decente, uma mulher que toma a cozinheira por confidente, que lhe está na mão, que perde a carta nos papeis sujos, que chora, que pede duzentos mil reis, que se quer safar -- isso é lá amante, isso é lá nada! Uma mulher que, como tu mesmo disseste, usa meias de tear!
-- Meu rico, é uma mulher deliciosa!
O outro encolheu os hombros, descrente.
Bazilio deu logo provas: descreveu bellezas do corpo de Luiza; citou episodios lascivos.
O tecto e os tabiques envernizados de branco reflectiam a luz, com tons macios de leite; a exhalação da agua tepida augmentava o calor morno; e um cheiro fresco de sabão e agua de Lubin adoçava o ar.
-- Bem! estás pelo beiço -- resumiu Reynaldo com tedio, estirando-se.
Bazilio teve um movimento d'hombros, que repellia aquella supposição grotesca.
-- Mas dize, então, queres ficar-lhe agarrado ás saias ou queres desembaraçar-te d'ella? Mas a verdade, venha a verdade!
-- Eu -- disse logo Bazilio, chegando-se á tina, baixo -- se me podesse desembaraçar decentemente...
-- Oh desgraçado! tens uma occasião divina! Ella sahiu como uma bicha, dizes tu. Bem; escreve-lhe uma carta, «que vendo que ella deseja romper, não a queres importunar, e partes». Os teus negocios estão concluidos, não é verdade? Escusas de negar, o Lapierre disse-me que sim. Bem, então sê decente: manda fazer as malas, e livra-te da sarna!
E tomando a esponja, deixava cahir grandes golpes d'agua pela cabeça, pelos hombros, soprando, regalado na frescura aromatica.
-- Mas tambem -- disse Bazilio -- deixal-a agora n'aquella atrapalhação com a criada! No fim é minha prima...
Reynaldo agitou os braços, com hilaridade.
-- Esse espirito de familia é optimo! Vai lá, idiota, dize-lhe que és obrigado a partir, os teus negocios, etc., e mette-lhe umas poucas de notas na mão.
-- É brutal...
-- É caro!
Bazilio disse então:
-- Olha que tambem é uma dos diabos, a pobre rapariga apanhada pela criada...
Reynaldo estirou-se mais, e disse com jubilo:
-- Estão a estas horas a esgadanharem-se uma á outra!
Recostou-se, n'uma beatitude: quiz saber as horas; declarou que estava confortavel, que se sentia feliz! Com tanto que o John se não tivesse esquecido de frapper o champagne!
Bazilio torcia o bigode, calado. Revia a sala de Luiza de reps verde, a figura horrivel de Juliana com a sua enorme cuia... Estariam com effeito a ralhar, a descompôr-se? Que pulhice que era tudo aquillo! Positivamente devia partir.
-- Mas que pretexto lhe hei-de eu dar para sahir de Lisboa?
-- Um telegramma! Não ha nada como um telegramma! Telegrapha já ao teu homem em Paris, ao Labachardie, ou Labachardette, ou o que é, que te mande logo este despacho: «Parta, negocios maus, etc.» É o melhor!
-- Vou fazel-o -- disse Bazilio erguendo-se, muito decidido.
-- E partimos ámanhã? -- gritou Reynaldo.
-- Ámanhã.
-- Por Madrid?
-- Por Madrid.
-- Salero! -- Pôz-se de pé, na tina, enthusiasmado, a escorrer, e com movimentos aduncos de magricella saltou para fóra, embrulhou-se no roupão turco. O seu criado William entrou logo, subtilmente, ajoelhou-se, tomou-lhe um pé entre as mãos, seccou-lh'o com precauções, pôz-se respeitosamente a calçar-lhe a meia de sêda preta com ferradurinhas bordadas.
Na manhã seguinte, um pouco antes do meio dia, Joanna veio bater discretamente á porta do quarto de Luiza, e com a voz baixa -- desde o desmaio fallava-lhe sempre baixo, como a uma convalescente:
-- Está alli o primo da senhora.
Luiza ficou surprehendida. Estava ainda de robe de chambre, e tinha os olhos vermelhos de chorar; pôz n'um instante um pouco de pó d'arroz, alisou o cabello, entrou na sala.
Bazilio, vestido de claro, sentára-se melancolicamente no môcho do piano. Trazia um ar grave, e, sem transição, começou a dizer: -- que apesar d'ella se ter zangado na vespera, elle considerava ainda tudo «como d'antes». Viera porque n'aquelle momento não se podiam separar sem algumas explicações, sobretudo sem resolver definitivamente o caso da carta... E com um gesto triste, como contendo lagrimas:
-- Porque eu vejo-me forçado a sahir de Lisboa, minha querida!
Luiza, sem olhar para elle, fez um sorriso mudo, muito desdenhoso. Bazilio acrescentou logo:
-- Por pouco tempo, naturalmente, tres semanas ou um mez... Mas enfim tenho de partir... Se fossem só os meus interesses! -- Encolheu os hombros com desdem. -- Mas são interesses d'outros... E aqui está o que eu recebi esta manhã.
Estendeu-lhe um telegramma. Ella conservou-o um momento, sem o abrir; a sua mão fazia tremer o papel.
-- Lê, peço-te que leias!
-- Para que? -- fez ella.
Mas leu baixo: «Venha, graves complicações. Presença absolutamente necessaria. Parta já.»
Dobrou o papel, entregou-lh'o.
-- E partes, hein?
-- É forçoso.
-- Quando?
-- Esta noite.
Luiza ergueu-se bruscamente, e estendendo-lhe a mão:
-- Bem, adeus.
Bazilio murmurou:
-- És cruel, Luiza!... Não importa! Em todo o caso ha um negocio que é necessario terminar. Fallaste á mulher?
-- Está tudo arranjado -- respondeu ella, franzindo a testa.
Bazilio tomou-lhe a mão, e quasi com solemnidade:
-- Minha filha, eu sei que és muito orgulhosa, mas peço-te que digas a verdade. Eu não te quero deixar em difficuldades. Fallaste-lhe?
Ella retirou a mão, e com uma impaciencia crescente:
-- Arranjou-se tudo, arranjou-se tudo!...
Bazilio parecia muito embaraçado, estava mesmo um pouco pallido: emfim, tirando uma carteira da algibeira, começou:
-- Em todo o caso é possivel, é natural (nós não sabemos com quem lidamos), é natural que haja outras exigencias... -- Abriu a carteira, tomou um sobrescripto pequenino e cheio.
Luiza seguia, fazendo-se vermelha, os movimentos de Bazilio.
-- Por isso, para te poderes entender melhor com ella, sempre me parece bom deixar-te algum dinheiro.
-- Tu estás doudo? -- exclamou ella.
-- Mas...
-- Tu queres-me dar dinheiro? -- A sua voz tremia.
-- Mas emfim...
-- Adeus! -- E ia sahir da sala, indignada.
-- Luiza, pelo amor de Deus! Tu não me comprehendeste...
Ella parou, disse precipitadamente, como impaciente por acabar:
-- Comprehendi, Bazilio, obrigada. Mas não, não é necessario. Estou nervosa, é o que é... Não prolonguemos mais isto... Adeus...
-- Mas sabes que volto, dentro de tres semanas...
-- Bem, então nos veremos...
Elle attrahiu-a, deu-lhe um beijo na bocca, encontrou os seus labios passivos e inertes.
Aquella frieza irritou-lhe a vaidade. Apertou-a contra o peito; disse-lhe baixo, pondo muita paixão na voz:
-- Nem um beijo me queres dar?
Nos olhos de Luiza passou um ligeiro clarão; beijou-o rapidamente, e recuando:
-- Adeus.
Bazilio esteve um momento a olhal-a, teve como um leve suspiro:
-- Adeus! -- E da porta, voltando-se, com melancolia: -- Escreve-me ao menos. Sabes a minha morada. Rue Saint Florentin, 22.
Luiza chegou-se á janella. Viu-o accender o charuto na rua, fallar ao cocheiro, saltar para o coupé, fechar com força a portinhola, sem um olhar para as janellas!
O trem rolou. Era o n.º 10... Nunca mais o veria! Tinham palpitado no mesmo amor, tinham commettido a mesma culpa. -- Elle partia alegre, levando as recordações romanescas da aventura: ella ficava, nas amarguras permanentes do erro. E assim era o mundo!
Veio-lhe um sentimento pungente de solidão e de abandono. Estava só, e a vida apparecia-lhe como uma vasta planicie desconhecida, coberta da densa noite, erriçada de perigos!
Entrou no quarto devagar, foi-se deixar cahir no sophá: viu ao pé o sacco de marroquim, que preparára na vespera para fugir: abriu-o, pôz-se a tirar lentamente os lenços, uma camisinha bordada, -- encontrou a photographia de Jorge! Ficou com ella na mão, contemplando o seu olhar leal, o seu sorriso bom. -- Não, não estava no mundo só! Tinha-o a elle! Amava-a aquelle, nunca a trahiria, nunca a abandonaria! -- E collando os beiços ao retrato, humedecendo-o de beijos convulsivos, atirou-se de bruços, lavada em lagrimas, dizendo: -- Perdôa-me, Jorge, meu Jorge, meu querido Jorge, Jorge da minha alma!
Depois de jantar Joanna veio dizer-lhe timidamente:
-- A senhora não lhe parece que seria bom ir saber da snr.a Juliana?
-- Mas onde quer vossê ir saber? -- perguntou Luiza.
-- Ella ás vezes vai a casa d'uma amiga, uma inculcadeira, para os lados do Carmo. Talvez lhe tivesse dado alguma, esteja mal. Mas tambem não mandar recado desde hontem pela manhã... Cousa assim! Eu podia ir saber...
-- Pois bem, vá, vá.
Aquella desapparição brusca inquietava tambem Luiza. Onde estava, que fazia? Parecia-lhe que alguma cousa se tramava em segredo, longe d'ella, que viria de repente estalar-lhe sobre a cabeça, terrivelmente...
Anoiteceu. Accendeu as velas. Tinha um certo medo de estar assim só em casa: e, passeando pelo quarto, pensava que áquella hora Bazilio em Santa Apolonia comprava alegremente o seu bilhete, installava-se no wagon, accendia o charuto, e d'ahi a pouco, a machina arquejando leval-o-hia para sempre! Porque não acreditava «na demora de tres semanas, um mez»! Ia para sempre, safava-se! E apesar de o detestar sentia que alguma cousa dentro em si se partia com aquella separação, e sangrava dolorosamente!
Eram quasi nove horas quando a campainha retiniu com pressa. Julgou que seria Joanna de volta, foi abrir com um castiçal, -- e recuou vendo Juliana, amarella, muita alterada.
-- A senhora faz favor de me dar uma palavra?
Entrou no quarto atraz de Luiza, e immediatamente rompeu, gritando, furiosa:
-- Então a senhora imagina que isto ha-de ficar assim? A senhora imagina que por seu amante se safar, isto ha-de ficar assim?
-- Que é, mulher? -- fez Luiza, petrificada.
-- Se a senhora pensa, que por o seu amante se safar, isto ha-de ficar em nada? -- berrou.
-- Oh mulher, pelo amor de Deus!...
A sua voz tinha tanta angustia que Juliana calou-se.
Mas depois de um momento, mais baixo:
-- A senhora bem sabe que se eu guardei as cartas, para alguma cousa era! Queria pedir ao primo da senhora que me ajudasse! Estou cançada de trabalhar, e quero o meu descanço. Não ia fazer escandalo, o que desejava é que elle me ajudasse... Mandei ao hótel esta tarde... O primo da senhora tinha desarvorado! Tinha ido para o lado dos Olivaes, para o inferno! E o criado ia á noite com as malas. Mas a senhora pensa que me logram? -- E retomada pela sua colera, batendo com o punho furiosamente na mesa: -- Raios me partam, se não houver uma desgraça n'esta casa, que ha-de ser fallada em Portugal!
-- Quanto quer vossê pelas cartas, sua ladra? -- disse Luiza, erguendo-se direita, diante d'ella.
Juliana ficou um momento interdicta.
-- A senhora ou me dá seiscentos mil reis, ou eu não largo os papeis! -- respondeu, empertigando-se.
-- Seiscentos mil reis! Onde quer vossê que eu vá buscar seiscentos mil reis?
-- Ao inferno! -- gritou Juliana. -- Ou me dá seiscentos mil reis, ou tão certo como eu estar aqui, o seu marido ha-de lêr as cartas!
Luiza deixou-se cahir n'uma cadeira, aniquilada.
-- Que fiz eu para isto, meu Deus, que fiz para isto?
Juliana plantou-se-lhe diante, muito insolente.
-- A senhora diz bem, sou uma ladra, é verdade, apanhei a carta no cisco, tirei as outras do gavetão. É verdade! E foi para isto, para m'as pagarem! -- E traçando, destraçando o chale, n'uma excitação phrenetica: -- Não que a minha vez havia de chegar! Tenho soffrido muito, estou farta! Vá buscar o dinheiro onde quizer. Nem cinco reis de menos! Tenho passado annos e annos a ralar-me! P'ra ganhar meia moeda por mez, estafo-me a trabalhar, de madrugada até á noite, em quanto a senhora está de panria! É que eu levanto-me ás seis horas da manhã -- e é logo engraxar, varrer, arrumar, labutar, e a senhora está muito regalada em valle de lençoes, sem cuidados, nem canceiras. Ha um mez que me ergo com o dia, p'ra metter em gomma, passar, engommar! A senhora suja, suja, quer ir vêr quem lhe parece, apparecer-lhe com tafularias por baixo, e cá está a negra, com a pontada no coração, a matar-se, com o ferro na mão! E a senhora, são passeios, tipoias, boas sêdas, tudo o que lhe appetece -- e a negra? A negra a esfalfar-se!
Luiza, quebrada, sem força de responder, encolhia-se sob aquella colera como um passaro sob um chuveiro. Juliana ia-se exaltando com a mesma violencia da sua voz. E as lembranças das fadigas, das humilhações, vinham atear-lhe a raiva, como achas n'uma fogueira.
-- Pois que lhe parece? -- exclamava. -- Não que eu cômo os restos e a senhora os bons bocados! Depois de trabalhar todo o dia, se quero uma gota de vinho, quem m'o dá? Tenho de o comprar! A senhora já foi ao meu quarto? É uma enxovia! A persevejada é tanta que tenho de dormir quasi vestida! E a senhora se sente uma mordedura, tem a negra de desaparafusar a cama, e de a catar frincha por frincha. Uma criada! A criada é o animal. Trabalha se pódes, senão rua, para o hospital. Mas chegou-me a minha vez -- e dava palmadas no peito, fulgurante de vingança. -- Quem manda agora, sou eu!
Luiza soluçava baixo.
-- A senhora chora! tambem eu tenho chorado muita lagrima! Ai! eu não lhe quero mal, minha senhora, certamente que não! Que se divirta, que goze, que goze! O que eu quero é o meu dinheiro. O que eu quero é o meu dinheiro aqui escarrado, ou o papel ha-de ser fallado! Ainda este tecto me rache, se eu não fôr mostrar a carta ao seu homem, aos seus amigos, á visinhança toda, que ha-de andar arrastada pelas ruas da amargura!
Calou-se, exhausta; e com a voz entrecortada de cansaços:
-- Mas dê-me a senhora o meu dinheiro, o meu rico dinheiro, e aqui tem os papeis, e o que lá vai, lá vai, e até lhe levo outras. Mas o meu dinheiro p'ra aqui! E tambem lhe digo, que morta seja eu n'este instante com um raio, se depois de eu receber o meu dinheiro esta bocca se torna a abrir! -- E deu uma palmada na bocca.
Luiza erguera-se devagar, muito branca:
-- Pois bem -- disse, quasi n'um murmurio -- eu lhe arranjarei o dinheiro. Espere uns dias.
Fez-se um silencio -- que depois do ruido parecia muito profundo, e tudo no quarto como que se tornára mais immovel. Apenas o relogio batia o seu tic-tac, e duas velas sobre o toucador consumindo-se davam uma luz avermelhada, e direita.
Juliana tomou a sombrinha, traçou o chale, e depois de fitar Luiza um momento:
-- Bem, minha senhora -- disse, muito secca.
Voltou as costas, sahiu.
Luiza sentiu-a bater a cancella com força.
-- Que expiação, Santo Deus! -- exclamou, cahindo n'uma cadeira, banhada de novo em lagrimas.
Eram quasi dez horas quando Joanna voltou.
-- Não pude saber nada, minha senhora, na inculcadeira ninguem sabe d'ella.
-- Bem, traga a lamparina.
E Joanna ao despir-se no seu quarto, rosnava comsigo:
-- A mulher tem arranjo, está mettida por ahi com algum sucio!
Que noite para Luiza! A cada momento acordava n'um sobresalto, abria os olhos na penumbra do quarto, e cahia-lhe logo na alma, como uma punhalada, aquelle cuidado pungente: Que havia de fazer? Como havia d'arranjar dinheiro? Seiscentos mil reis! As suas joias valiam talvez duzentos mil reis. Mas depois, que diria Jorge? Tinha as pratas... Mas era o mesmo!
A noite estava quente, e na sua inquietação a roupa escorregára, apenas lhe restava o lençol sobre o corpo. Ás vezes a fadiga readormecia-a d'um somno superficial, cortado de sonhos muitos vivos. Via montões de libras reluzirem vagamente, maços de notas agitarem-se brandamente no ar. Erguia-se, saltava para as agarrar, mas as libras começavam a rolar, a rolar como infinitas rodinhas sobre um chão liso, e as notas desappareciam, voando muito leves com um fremito de azas ironicas. Ou então era alguem que entrava na sala, curvava-se respeitosamente, e começava a tirar do chapéo, a deixar-lhe cahir no regaço libras, moedas de cinco mil reis, peças, muitas, muitas, profusamente: não conhecia o homem: tinha um chinó vermelho e uma pera impudente. Seria o diabo? Que lhe importava? Estava rica, estava salva! Punha-se a chamar, a gritar por Juliana, a correr atraz d'ella, por um corredor que não findava, e que começava a estreitar-se, a estreitar-se, até que era como uma fenda por onde ella se arrastava de esguelha, respirando mal, e apertando sempre contra si o montão de libras que lhe punha frialdades de metal sobre a pelle núa do peito. Acordava assustada: e o contraste da sua miseria real com aquellas riquezas do sonho era como um acrescimo de amargura. Quem lhe poderia valer? -- Sebastião! Sebastião era rico, era bom. Mas mandal-o chamar, e dizer-lhe ella, ella Luiza, mulher de Jorge: -- Empreste-me seiscentos mil reis. -- Para quê, minha senhora? E podia lá responder: para resgatar umas cartas que escrevi ao meu amante. Era lá possivel! Não, estava perdida. Restava-lhe ir para um convento.
A cada momento voltava o travesseirinho que lhe escaldava o rosto: atirou a touca, os seus longos cabellos soltaram-se, prendeu-os ao acaso com um gancho; e de costas, com a cabeça sobre os braços nús, pensava amargamente no romance de todo aquelle verão, -- a chegada de Bazilio, o passeio ao Campo Grande, a primeira visita ao Paraiso...
Onde iria elle, aquelle infame? Dormindo tranquillamente nas almofadas do wagon!
E ella alli, na agonia!
Atirou o lençol, abafava. E descoberta, mal se distinguindo da alvura da roupa, adormeceu quando a madrugada rompia.
Acordou tarde, succumbida. Mas logo na sala de jantar a belleza da manhã gloriosa reanimou-a. O sol entrava abundante e radioso pela janella aberta; os canarios faziam um concerto; da forja ao pé sahia um martellar jovial; e o largo azul vigoroso levantava as almas. -- Aquella alegria das cousas deu-lhe como uma coragem inesperada. Não se havia de abandonar a uma desesperança inerte... Que diabo! Devia luctar!
Vieram-lhe esperanças, então. Sebastião era bom, Leopoldina tinha expedientes, havia outras possibilidades, o acaso mesmo: e tudo isto podia, em definitiva, formar seiscentos mil reis, salval-a! Juliana desappareceria, Jorge voltaria! -- E, alvoraçada, via perspectivas de felicidades possiveis reluzirem, no futuro, deliciosamente.
Ao meio dia veio o criadito de Sebastião: o senhor tinha chegado d'Almada, desejava saber como a senhora estava.
Correu ella mesma á porta; que pedia ao snr. Sebastião, que viesse logo que podesse!
Acabou-se! Sentia-se resoluta, ia fallar a Sebastião... No fim era o que lhe restava: contar ella tudo a Sebastião, ou que a outra contasse tudo a seu marido. Impossivel hesitar! E depois podia attenuar, dizer que fôra só uma correspondencia platonica... A partida de Bazilio, além d'isso, fazia d'aquelle erro um facto passado, quasi antigo... E Sebastião era tão amigo d'ella!
Veio, era uma hora. Luiza que estava no quarto sentiu-o entrar, e só o som dos seus passos grossos no tapete da sala deu-lhe uma timidez, quasi um terror. Parecia-lhe agora muito difficil, terrivel de dizer... Preparára phrases, explicações, uma historia de galanteio, de cartas trocadas; e estava com a mão no fecho da porta, a tremer. Tinha medo d'elle! Ouvia-o passear pela sala; e receando que a impaciencia lhe désse mau humor, entrou.
Afigurou-se-lhe mais alto, mais digno: nunca o seu olhar lhe parecera tão recto, e a sua barba tão séria!
-- Então que é? precisa alguma cousa? -- perguntou-lhe elle depois das primeiras palavras sobre Almada, sobre o tempo.
Luiza teve uma cobardia indominavel, respondeu logo:
-- É por causa de Jorge!
-- Aposto que não lhe tem escripto?
-- Não.
-- Esteve muito tempo sem me escrever tambem. -- E rindo: -- Mas hoje recebi duas cartas por atacado.
Procurou-as entre outros papeis que tirou da algibeira. Luiza fôra sentar-se no sophá; olhava-o com o coração aos pulos, e as suas unhas impacientes raspavam devagarinho o estôfo.
-- É verdade -- dizia Sebastião, revolvendo o maço de papeis. -- Recebi duas, falla em voltar, diz que está muito seccado... -- E estendendo uma carta a Luiza: -- Póde vêr.
Luiza desdobrára-a, e começava a lêr; mas Sebastião, estendendo a mão precipitadamente:
-- Perdão, não é essa!
-- Não, deixe vêr...
-- Não diz nada, são negocios...
-- Não, quero vêr!
Sebastião, sentado á beira da cadeira, coçava a barba, olhando-a, muito contrariado. E Luiza de repente, franzindo a testa:
-- O quê? -- A leitura espalhava-lhe no rosto uma surpreza irritada. -- Realmente!...
-- São tolices, são tolices! -- murmurava Sebastião, muito vermelho.
Luiza pôz-se então a lêr alto, devagar:
«Saberás, amigo Sebastião, que fiz aqui uma conquista. Não é o que se póde chamar uma princeza, porque é nem mais nem menos que a mulher do estanqueiro. Parece estar abrazada no mais impuro fogo, por este seu criado. Deus me perdôe, mas desconfio até que me leva apenas um vintem pelos charutos de pataco, fazendo assim ao esposo, o digno Carlos, a dupla partida de lhe arruinar a felicidade e a tenda!» -- Que graça! -- murmurou Luiza, furiosa. -- «Receio muito que se repita commigo o caso biblico da mulher de Putiphar. Acredita que ha um certo merito em lhe resistir, porque a mulher, estanqueira como é, é lindissima. E tenho medo que succeda algum fracasso á minha pobre virtude...»
Luiza interrompeu-se, e olhou Sebastião com um olhar terrivel.
-- São brincadeiras! -- balbuciou elle.
Ella seguiu, lendo: «Olha se a Luiza soubesse d'esta aventura! De resto, o meu successo não pára aqui: a mulher do delegado faz-me um olho dos diabos! É de Lisboa, d'uma gente Gamacho, que parece que mora para Belem, conheces? e dá-se ares de morrer de tedio, na tristeza provinciana da localidade. Deu uma soirée em minha honra, e em minha honra, creio tambem, decotou-se. Muito bonito collo» -- Luiza fez-se escarlate -- «e uma queda do diabo...»
-- Está doudo! -- exclamou ella. -- «E aqui tens o teu amigo feito um D. Juan do Alemtejo, e deixando um rasto de chammas sentimentaes por essa provincia fóra! O Pimentel recommenda-se...»
Luiza ainda leu baixo algumas linhas, e erguendo-se bruscamente, dando a carta a Sebastião:
-- Muito bem, diverte-se! -- disse com uma voz sibilante.
-- São lá cousas que se tomem a serio! Não deve tomar a serio...
-- Eu! -- exclamou ella. -- Acho muito natural até!
Sentou-se, começou, com volubilidade, a fallar d'outras cousas, de D. Felicidade, de Julião...
-- Trabalha muito agora para o concurso -- disse Sebastião. -- Quem não tenho visto é o Conselheiro.
-- Mas, quem é essa gente Gamacho, de Belem?
Sebastião encolheu os hombros -- e com um ar quasi reprehensivo:
-- Ora realmente tomou a serio...
Luiza interrompeu-o:
-- Ah! sabe? Meu primo Bazilio partiu.
Sebastião teve um alvoroço d'alegria.
-- Sim?
-- Foi para Paris, não creio que volte. -- E depois d'uma pausa, parecendo ter esquecido Jorge, e a carta: -- Só em Paris está bem... Estava no ar p'ra partir. -- Acrescentou com pancadinhas leves nas pregas do vestido: -- Precisava casar, aquelle rapaz.
-- P'ra assentar -- disse Sebastião.
Mas Luiza não acreditava que um homem que gostava tanto de viagens, de cavallos, d'aventuras, podesse dar um bom marido.
Sebastião era d'opinião que ás vezes socegavam, e eram homens de familia...
-- Teem mais experiencia -- disse.
-- Mas um fundo leviano -- observou ella.
E depois d'estas palavras vagas calaram-se com embaraço.
-- Eu a fallar a verdade -- disse então Luiza -- estimei que meu primo partisse... Como tinha havido essas tolices na visinhança... Ultimamente mesmo quasi que o não vi. Esteve ahi hontem, veio despedir-se, fiquei surprehendida...
Estava tornando impossivel a historia d'um galanteio platonico, cartas trocadas -- mas um sentimento mais forte que ella impellia-a a attenuar, distanciar as suas relações com Bazilio. Acrescentou mesmo:
-- Eu sou amiga d'elle, mas somos muito differentes... Bazilio é egoista, pouco affeiçoado... De resto a nossa intimidade nunca foi grande...
Calou-se bruscamente, sentiu que «se enterrava».
Sebastião lembráva-se ouvir-lhe dizer «que tinham sido creados ambos de pequenos»; mas emfim aquella maneira de fallar do primo, parecia-lhe a prova maior de que «não houvera nada». Quasi se queria mal pelas duvidas, que tivera, tão injustas!...
-- E volta? -- perguntou.
-- Não me disse, mas não creio. Em se pilhando em Paris!
E com a idéa da carta, de repente:
-- Então o Sebastião é confidente de Jorge?
Elle riu:
-- Oh minha senhora! pois acredita...
-- E a mim quando me escreve, que se aborrece, que está só, que não supporta o Alemtejo... -- Mas vendo Sebastião olhar o relogio: -- O que, já? É cedo.
Tinha d'estar na baixa antes das tres, disse elle.
Luiza quiz retel-o. Não sabia para quê -- porque a cada momento sentia a sua resolução diminuir, desapparecer como a agua d'um rio que se absorve no seu leito. Pôz-se a fallar-lhe das obras d'Almada.
Sebastião começára-as pensando que duzentos ou trezentos mil reis fariam as restaurações necessarias: mas depois umas cousas tinham trazido outras -- e, dizia, está-se-me tornando um sorvedouro!
Luiza riu, forçadamente.
-- Ora, quando se é proprietario e rico!...
-- Isso sim! Parece que não é nada: mas uma pintura n'uma porta, uma janella nova, uma sala forrada de papel, um soalho, e isto e aquillo, e lá se vão oitocentos mil reis... Emfim!...
Levantou-se, e despedindo-se:
-- Eu espero que aquelle vadio se não demore muito...
-- Se a estanqueira der licença...
Ficou a passear na sala, nervosa, com aquella idéa. Deixar-se namorar pela estanqueira, e a mulher do delegado, e as outras!... De certo, tinha confiança n'elle, mas os homens!... De repente representou-se-lhe a estanqueira prendendo-o nos braços detraz do balcão, ou Jorge beijando, n'alguma entrevista, de noite, o collo bonito da mulher do delegado!... E tumultuosamente appareceram-lhe todas as razões que provavam irrecusavelmente a traição de Jorge: estava ha dous mezes fóra! sentia-se cançado da sua viuvez! encontrava uma mulher bonita! tomava aquillo como um prazer passageiro, sem importancia!... Que infame! Resolveu escrever-lhe uma carta digna e offendida, «que viesse immediatamente, ou que partia ella!» -- Entrou no quarto, muito excitada. A photographia de Jorge, que ella tirára na vespera do sacco de marroquim, ficára no toucador. Pôz-se a olhal-a: não admirava que o namorassem, era bonito, era amavel... Veio-lhe uma onda de ciume, que lhe obscureceu o olhar: se elle a enganasse, se tivesse a certeza da «mais pequena cousa» -- separava-se, recolhia-se a um convento, morria de certo, matava-o!...
-- Minha senhora -- veio dizer Joanna -- é um gallego com esta carta. Está á espera da resposta.
Que espanto! Era de Juliana!
Escripta em papel pautado, n'uma letra medonha, erriçada de erros d'orthographia, dizia:
«Minha senhora.
«Bem sei que fui imprudente, o que a senhora deve attribuir tanto á minha desgraça como á falta de saude, o que ás vezes faz que se tenham genios repentinos. Mas se a senhora quer que eu volte e faça o serviço como d'antes -- ao qual creio que a senhora não póde oppôr-se, terei muito gosto em ser agradavel na certeza que nunca mais se fallará em tal até que a senhora queira, e cumpra o que prometteu. Prometto fazer o meu serviço, e desejo que a senhora esteja por isto pois que é para bem de todos. Pois que foi genio e naturalmente todos teem os seus repentes, e com isto não canço mais e sou
«Serva muito obediente
«a criada
«Juliana Couceiro Tavira.»
Ficou com a carta na mão, sem resolução. A sua primeira vontade foi dizer -- não! Tornar a recebel-a, vêl-a, com a sua face horrivel, a cuia enorme! Saber que ella tinha no bolso a sua carta, a sua deshonra, e chamal-a, pedir-lhe agua, a lamparina, ser servida por ella! Não! Mas veio-lhe um terror; se recusasse irritava a creatura, Deus sabe o que faria! Estava nas mãos d'ella, devia passar por tudo. Era o seu castigo... Hesitou ainda um momento:
-- Que sim, que venha, é a resposta.
Juliana veio com effeito ás oito horas. Subiu pé ante pé para o sotão, poz o fato de casa e as chinellas, e desceu para o quarto dos engommados, onde Joanna sentada n'um tapete costurava, á luz do petroleo.
Joanna, muito curiosa, acabrunhou-a logo de perguntas: Onde estivera? o que tinha acontecido? porque não déra noticias? -- Juliana contou que fôra a uma visita a uma amiga, á calçada do Marquez d'Abrantes, e que de repente lhe dera um flato, e a dôr... Não quiz mandar dizer, porque imaginára que poderia vir. Mas qual! estivera dia e meio de cama...
Quiz saber então o que tinha feito a senhora, se sahira, quem estivera...
-- A senhora tem andado a modo incommodada -- disse Joanna.
-- É do tempo -- observou Juliana. -- Tinha trazido a sua costura, e ambas caladas continuaram o serão.
Ás dez horas Luiza ouviu bater devagarinho á porta do quarto. Era ella, de certo!
-- Entre...
A voz de Juliana disse muito naturalmente:
-- Está o chá na mesa.
Mas Luiza não se decidia a ir á sala, com medo, horror de a vêr! Deu voltas no quarto, demorou-se; foi emfim, toda tremula. Juliana vinha justamente no corredor; encolheu-se contra a parede, com respeito, disse:
-- Quer que vá pôr a lamparina, minha senhora?
Luiza fez que sim com a cabeça, sem a olhar.
Quando voltou ao quarto Juliana enchia o jarro; e depois de ter aberto a cama, cerrado as portas, quasi em pontas de pés:
-- A senhora não precisa mais nada? -- perguntou.
-- Não.
-- Muito boa noite, minha senhora.
E não houve outra palavra mais.
-- Parece um sonho! -- pensava Luiza, ao despir-se melancolicamente. -- Esta creatura, com as minhas cartas, installada em minha casa para me torturar, para me roubar! -- Como se achava ella, Luiza, n'aquella situação? Nem sabia. As cousas tinham vindo tão bruscamente, com a precipitação furiosa d'uma borrasca, que estala! Não tivera tempo de raciocinar, de se defender: fôra embrulhada: e alli estava, quasi sem «dar fé», na sua casa sob a dominação da sua criada! Ah! se tivesse fallado a Sebastião! Tinha agora o dinheiro, de certo, notas, ouro... Com que phrenesi lh'o arremessaria, a expulsaria, e a arca, e os trapos, e a cuia!... -- Jurou a si propria fallar a Sebastião, dizer tudo! Iria mesmo a casa d'elle, para o impressionar mais!
D'ahi a pouco, quebrada da agitação do dia, adormecera -- e sonhava que um estranho passaro negro lhe entrára no quarto, fazendo uma ventania, com as suas azas pretas de morcego: era Juliana! Corria aterrada ao escriptorio, gritando: Jorge! Mas não via nem livros, nem estante, nem mesa: -- havia uma armação reles de loja de tabaco, e por traz do balcão, Jorge acariciava sobre os joelhos uma bella mulher de fórmas robustas, em camisa d'estopa, que perguntava com uma voz desfallecida de voluptuosidade e os olhos afogados em paixão: -- Brejeiros ou de Xabregas? -- Fugia então de casa indignada, e, através de successos confusos, via-se ao lado de Bazilio, n'uma rua sem fim, onde os palacios tinham fachadas de cathedraes, e as carruagens rolavam ricamente com uma pompa de cortejo. Contava soluçando a Bazilio a traição de Jorge. E Bazilio, saltitando em volta d'ella com requebros de palhaço, repenicava uma viola, e cantava:
Escrevi uma carta a Cupido
A mandar-lhe perguntar
Se um coração offendido
Tem obrigação de amar!
-- Não tem! -- gania a voz d'Ernestinho, brandindo triumphante um rolo de papel. -- E tudo se obscurecia de repente nos largos vôos circulares que fazia Juliana com as suas azas de morcego.
IX
Juliana voltára para casa de Luiza por conselhos da tia Victoria.
-- Olha, minha rica, tinha-lhe ella dito, não ha que vêr, o passaro fugiu-nos! Suspira, bem pódes suspirar que o dinheiro grosso foi-se! Quem podia lá adivinhar que o homem desarvorava! Não, lá isso pódes tirar d'ahi o sentido! Que d'ella escusas d'esperar nem cheta...
-- Tambem me regalo de mandar as cartas ao marido, tia Victoria!
A velha encolheu os hombros:
-- Não lucras nada com isso. Ou que elles se desquitem, ou que elle lhe parta os ossos, ou que a mande para um convento -- tu não ganhas nada. E se se acommodarem, mais ficas a chuchar no dedo, porque nem tens a consolação de fazeres a sizania. E isto é se as cousas correrem pelo melhor, porque pódes muito bem ficar mas é em lençoes de vinagre com alguma carga de pau que elles te mandem dar. -- E vendo um gesto espantado de Juliana: -- Já não era o primeiro caso, minha rica, já não era o primeiro. Olha que em Lisboa, passa-se muita cousa, e nem tudo vem nos jornaes!
Positivamente o que ella tinha a fazer era voltar para a casa. Porque emfim o que restava de tudo aquillo? O medo de D. Luiza: esse é que lá estava sempre a dar-lhe por dentro a colica: d'esse é que era necessario tirar partido...
-- Tu voltas para lá -- dizia -- á espera que ella cumpra o que prometteu. Se te dá o dinheiro, bem... Senão tem-l'a em todo o caso na mão, estás de dentro da praça, sabes o que se passa, pódes-lhe apanhar muita cousa...
Mas Juliana hesitava. -- Era difficil viverem debaixo das mesmas telhas sem haver uma questão por dá cá aquella palha.
-- Não te diz uma palavra, tu verás...
-- Mas tenho medo...
-- De que? -- exclamava a tia Victoria. Ella não era mulher para a envenenar, não é verdade? Então? Quem a nada se arriscava nada ganhava. -- Isto é se queres -- acrescentou -- senão trata de te arranjar n'outra parte, e deita as cartas para o fundo da arca. Que diabo! Tu vaes vêr, se não te convém, safas-te...
Juliana decidiu ir, «a vêr».
E reconheceu logo, que «aquella finoria da tia Victoria tinha carradas de razão».
Luiza, com effeito, parecia resignada. Sebastião tinha ido para Almada, outra vez. Mas como estava decidida, apenas elle voltasse, a ir a casa d'elle uma manhã, atirar-se-lhe ao pés, contar-lhe tudo, tudo, supportava Juliana, reflectindo: -- É apenas por dias! -- Por isso não lhe disse uma palavra. Para que? O que tinha a fazer era pagar-lhe e pôl-a fóra, não é verdade? Em quanto o não podesse fazer, era aguentar e calar. Até que Sebastião voltasse...
No entretanto evitava vêl-a. Nunca a chamava. Não sahia da alcova de manhã, sem a ter sentido fóra no quarto encher o banho, sacudir os vestidos. Ia para a sala de jantar com um livro, e nos intervallos não levantava os olhos das paginas. E durante todo o dia conservava-se no quarto com a porta fechada, lendo, costurando, pensando em Jorge -- ás vezes tambem em Bazilio com odio, desejando a volta de Sebastião, e preparando a sua historia.
Juliana, uma manhã, encontrou Luiza no corredor trazendo para o quarto o regador cheio d'agua.
-- Oh minha senhora! porque não chamou? -- exclamou, quasi escandalisada.
-- Não tem duvida -- disse Luiza.
Mas Juliana seguiu-a ao quarto, e cerrando a porta:
-- Oh minha senhora! -- disse muito offendida -- isto assim não póde continuar. A senhora parece que tem medo de me vêr, credo! Eu voltei para fazer o meu serviço como d'antes... Verdade, verdade, naturalmente, sempre espero que a senhora faça o que prometteu... E lá largar as cartas não largo, sem ter seguro o pão da velhice. Mas o que se passou foi um repente de genio, e já pedi perdão á senhora. Quero fazer o meu serviço... Agora se a senhora não quer, então saio, e -- acrescentou com uma voz secca -- talvez seja peor para todos!...
Luiza, muito perturbada, balbuciou:
-- Mas...
-- Não, minha senhora -- cortou Juliana severamente -- aqui a criada sou eu.
E sahiu, empertigada.
Tanta audacia aterrou Luiza. Aquella ladra era capaz de tudo!
Então, para a não irritar começou, d'ahi por diante, a chamal-a, a dizer: -- Traga isto, traga aquillo, -- sem a olhar.
Mas Juliana fazia-se tão serviçal, era tão calada, que Luiza pouco a pouco, dia a dia, com o seu caracter mobil, inconsistente, cheio de deixar-se ir, principiou a perder o sentimento pungente d'aquella difficuldade. E no fim de tres semanas «as cousas tinham entrado nos seus eixos» -- dizia Juliana.
Luiza já gritava por ella do quarto, já a mandava a recados fóra: Juliana chegava a ter ás vezes migalhas de conversação: -- Está um calor de morrer... A lavadeira tarda... -- Um dia arriscou esta phrase mais intima: -- Encontrei a criada da snr.a D. Leopoldina.
Luiza perguntou:
-- Ainda está para o Porto?
-- Ainda se demora um mez, minha senhora...
De resto havia na casa um aspecto muito tranquillo, e Luiza, depois de tantas agitações, abandonava-se com gozo á satisfação d'aquelle descanço. Ia ás vezes vêr D. Felicidade á Encarnação, que já se levantava. E esperava sempre Sebastião, mas sem impaciencia, quasi contente por vêr adiado o momento terrivel de lhe dizer: escrevi a um homem, Sebastião!
Assim iam passando os dias; estava-se no fim de setembro.
Uma tarde Luiza ficára mais tempo á janella da sala de jantar; deixára cahir o livro no regaço, e olhava, sorrindo, um bando de pombas que d'algum quintal visinho viera pousar sobre o tabique do terreno vago. Pensava vagamente em Bazilio, no Paraiso... Sentiu passos, era Juliana.
-- Que é?
A mulher cerrára a porta, e vindo junto d'ella, baixo:
-- Então a senhora ainda não decidiu nada?
Luiza sentiu como uma pancada no estomago.
-- Ainda não pude arranjar nada...
Juliana esteve um momento a olhar para o chão:
-- Bem -- murmurou, por fim.
E Luiza ouviu-a, no corredor, dizer alto:
-- Isto quando o senhor voltar é que são os ajustes de contas!
Quando Jorge voltasse! Immediatamente no seu espirito, que se tinha pouco a pouco serenado, todos os sustos, as angustias estremeceram de novo áquella ameaça -- assim uma rajada subita põe em convulsão um arvoredo. Devia, pois, fazer alguma cousa antes que elle chegasse! Justamente Jorge escrevera-lhe, que «não se demoraria, que a avisaria pelo telegrapho...» Desejava, agora, que do ministerio o mandassem fazer uma viagem mais longe, pela Hespanha ou pela Africa; que alguma catastrophe, sem lhe fazer mal, o retardasse mezes!...
Que faria elle, se soubesse! Matal-a-hia? Lembravam-lhe as suas palavras muito sérias, n'aquella noite, quando Ernestinho contára o final do seu drama... Mettel-a-hia n'uma carruagem, leval-a-hia a um convento? E via a grossa portaria fechar-se com um ruido funerario de ferrolhos, olhos lugubres estudal-a curiosamente...
O seu terror irraciocinado fizera-lhe mesmo perder a idéa nitida do seu marido; imaginava um outro Jorge sanguinario e vingativo, esquecendo o seu caracter bom, tão pouco melodramatico. Um dia foi ao escriptorio, tomou a caixa das pistolas, fechou-a n'um bahú de roupa velha, e escondeu a chave!...
Uma idéa amparava-a: era que apenas Sebastião viesse d'Almada, estava salva; e apesar d'aquella agonia miuda de todos os momentos, quasi receava saber que elle tivesse chegado, -- tanto a confissão da verdade lhe parecia uma agonia maior! Foi por esse tempo, então, que lhe veio uma lembrança -- escrever a Bazilio. O terror permanente amollecera-lhe o orgulho, como a lenta infiltração da agua faz a uma parede; e todos os dias começou a achar uma razão, mais uma, para se dirigir «áquelle infame»: fôra seu amante, já sabia todo o caso das cartas, era o seu unico parente... E não teria de «dizer» a Sebastião! Já ás vezes pensára que não aceitar dinheiro de Bazilio fôra uma «fanfarronada bem tola»! Um dia emfim escreveu-lhe. Era uma carta longa, um pouco confusa, pedia-lhe seiscentos mil reis. Foi ella mesmo leval-a ao correio, sobrecarregando-a de estampilhas.
N'essa tarde, por acaso, Sebastião, que chegára d'Almada, veio vêl-a. Recebeu-o com alegria, feliz por não ter de lhe contar... Fallou da volta de Jorge; alludiu mesmo ao primo Bazilio, á «pouca vergonha da visinhança...»
-- Não -- disse -- é a primeira cousa que hei-de contar ao Jorge.
Porque se considerava salva, agora! E todos os dias seguia a carta, no seu caminho para França, como se a sua mesma vida fosse dentro d'aquelle sobrescripto entregue ao acaso dos trens e á confusão das viagens! Chegára a Madrid, depois a Bayonna, depois a Paris! Um carteiro corria a entregal-a na rua Saint Florentin. Bazilio abria-a tremendo, enchia um sobrescripto de notas, muitas, que cobria de beijos, e o enveloppe, trazendo a sua salvação e o seu descanço, começava a rolar para baixo, pela França e pela Navarra, soprando como um monstro e apressando-se como um proprio.
No dia em que a resposta devia chegar, levantou-se mais cedo, agitada, com o ouvido pregado na porta, esperando o toque do carteiro. Via-se já a expulsar Juliana, a soluçar de alegria!... Mas ás dez e meia começou a estar nervosa: ás onze chamou Joanna, «que fosse saber se o carteiro passára».
-- Diz que sim, minha senhora, que já passou.
-- Canalha! -- murmurou, pensando em Bazilio.
Talvez, todavia, não tivesse respondido no mesmo dia! Esperou ainda, mas desconsolada, já sem fé. Nada! Nem na outra manhã, nem nas seguintes! O infame!
Veio-lhe então a idéa da loteria -- porque insensivelmente a esperança tornára-se-lhe necessaria. A primeira vez que sahiu comprou umas poucas de cautelas. Apesar de não ser religiosa nem supersticiosa, metteu-as debaixo da peanha d'um S. Vicente de Paula que tinha sobre a commoda, na alcova. Não se perdia nada! Examinava-as todos os dias, sommava os algarismos a vêr se davam nove, noves fóra, nada, ou um numero par -- que é de bom agouro! E aquelle contacto diario com a imagem do santo levando-a a pensar de certo na protecção inesperada do céo, fez uma promessa de cincoenta missas se as cautelas fossem premiadas!...
Sahiram brancas -- e então desesperou de tudo; abandonou-se a uma inacção em que sentia quasi uma voluptuosidade, passando dias sem se importar, quasi sem se vestir, desejando morrer, devorando nos jornaes todos os casos de suicidios, de fallencias, de desgraças -- consolando-se com a idéa de que nem só ella soffria, e que a vida em redor, na cidade, fervilhava de afflicções.
Ás vezes, de repente, vinha-lhe uma pontada de medo. Decidia-se então de novo a «abrir-se» com Sebastião; depois pensava que seria melhor escrever-lhe; mas não achava as palavras, não conseguia arranjar uma historia racional; vinha-lhe uma cobardia; e recahia na sua inercia, pensando: «ámanhã, ámanhã...»
Quando, só, no seu quarto, se chegava por acaso á janella, punha-se a imaginar o que «diria a visinhança, quando se soubesse»! Condemnal-a-hiam? Lamental-a-hiam? Diriam -- «Que desavergonhada»? Diriam -- «Coitadinha»? E por dentro da vidraça seguia, com um olhar quasi aterrado, as passeatas do Paula pela rua, o embasbacamento obeso da carvoeira, as Azevedos por traz das bambinellas de cassa! Como elles todos gritariam: -- «Bem diziamos nós! Bem diziamos nós!» Que desgraça! Ou então via de repente Jorge, terrivel, fóra de si, com as cartas na mão; e encolhia-se como se já estivesse sob a colera dos seus punhos fechados.
Mas o que a torturava mais era a tranquillidade de Juliana -- espanejando, cantarolando, servindo-a ao jantar d'avental branco. Que tencionava ella? Que preparava ella? Ás vezes vinha-lhe uma onda de raiva; se fosse forte ou corajosa, de certo atirar-se-lhe-hia ao pescoço, para a esganar, arrancar-lhe a carta! Mas pobre d'ella, era «uma mosquinha»!
Justamente, n'uma d'essas manhãs, Juliana entrou no quarto -- com o vestido de sêda preto no braço. Estendeu-o na causeuse, e mostrou a Luiza, na saia, ao pé do ultimo folho, um rasgão largo que parecia feito com um prego; vinha saber se a senhora queria que o mandasse á costureira.
Luiza lembrava-se bem, rasgára-o uma manhã no Paraiso a brincar com Bazilio!
-- Isto é facil d'arranjar -- dizia Juliana, passando de leve a mão espalmada sobre a sêda, com a lentidão d'uma caricia.
Luiza examinava-o, hesitando:
-- Elle tambem já não está novo... Olhe, guarde-o p'ra vossê!
Juliana estremeceu, fez-se vermelha:
-- Oh minha senhora! -- exclamou -- Muito agradecida! É um rico presente. Muito agradecida, minha senhora! Realmente... -- E a voz perturbava-se-lhe.
Tomou-o nos braços, com cuidado, correu logo á cozinha. E Luiza, que a seguira pé ante pé, ouviu-a dizer toda excitada:
-- É um rico presente, é o que ha de melhor. E novo! Uma rica sêda! -- Fazia arrastar a cauda pelo chão, com um frou-frou. Sempre o invejára: e tinha-o agora, era o seu vestido de sêda! -- É de muito boa senhora, snr.a Joanna, é d'um anjo!
Luiza voltou ao quarto, toda alvoroçada; era como uma pessoa perdida de noite, n'um descampado -- que de repente, ao longe, vê reluzir um clarão de vidraça! Estava salva! Era presenteal-a, era fartal-a! Começou logo a pensar no que lhe podia dar mais, pouco a pouco: o vestido rôxo, roupas brancas, o roupão velho, uma pulseira!
D'ahi a dous dias -- era um domingo -- recebeu um telegramma de Jorge: «Parto ámanhã do Carregado. Chego pelo comboio do Porto ás 6.» Que sobresalto! Voltava, emfim!
Era nova, era amorosa -- e no primeiro momento todos os sustos, as inquietações desappareceram sob uma sensação d'amor e de desejo, que a inundou. Viria de madrugada, encontral-a-hia deitada, -- e já pensava na delicia do seu primeiro beijo!...
Foi-se vêr ao espelho: estava um pouco magra, talvez, com a physionomia um pouco fatigada... E a imagem de Jorge apparecia-lhe então muito nitidamente, mais queimado do sol, com os seus olhos ternos, o cabello tão annelado! Que estranha cousa! Nunca lhe appetecêra tanto vêl-o. Foi logo occupar-se d'elle: o escriptorio estaria bem arranjado? Quereria um banho morno, seria necessario aquecer a agua na tina grande!... E ia e vinha, cantarolando, com um brilho exaltado nos olhos.
Mas a voz de Juliana, de repente no corredor, fêl-a estremecer. Que faria ella, a mulher? Ao menos que a deixasse n'aquelles primeiros dias gozar a volta de Jorge, tranquillamente!... Veio-lhe uma audacia, chamou-a.
Juliana entrou, com o vestido de sêda novo, movendo-se cuidadosamente:
-- Quer alguma cousa, minha senhora?
-- O snr. Jorge volta amanhã... -- disse Luiza.
E suspendeu-se; o coração batia-lhe fortemente.
-- Ah! -- fez Juliana. -- Bem, minha senhora.
E ia sahir.
-- Juliana! -- fez Luiza, com a voz alterada.
A outra voltou-se, surprehendida.
E Luiza batendo com as mãos, n'um movimento supplicante:
-- Mas vossê ao menos n'estes primeiros dias... Eu hei-de arranjar, esteja certa!...
Juliana acudiu logo:
-- Oh minha senhora! Eu não quero dar desgostos a ninguem. O que eu quero é um bocadinho de pão para a velhice. Da minha bocca não ha-de vir mal a ninguem. O que peço á senhora é que se fôr da sua vontade e me quizer ir ajudando...
-- Lá isso, sim... O que vossê quizer...
-- Pois póde estar certa que esta bocca... -- E fechou os labios com os dedos.
Que alegria para Luiza! Tinha uns dias, umas semanas, emfim, sem tormentos, com o seu Jorge! Abandonou-se então toda á deliciosa impaciencia de o vêr. Era singular -- mas parecia-lhe que o amava mais!... -- E depois pensaria, veria, daria outros presentes a Juliana, poderia pouco a pouco preparar Sebastião... Quasi se sentia feliz.
De tarde Juliana veio dizer-lhe, muito risonha;
-- A snr.a Joanna sahiu, que era hoje o seu dia, mas eu tinha tanta precisão de sahir, tambem! se a senhora lhe não custasse ficar só...
-- Não! Fico, que tem? Vá, vá!
E, d'ahi a pouco, sentiu-a bater os tacões no corredor, fechar com ruido a cancella.
Então de repente uma idéa deslumbrou-a, como a fulguração d'um relampago: -- ir ao quarto d'ella, rebuscar-lhe a arca, roubar-lhe as cartas!
Viu-a da janella dobrar a esquina. Subiu logo ao sotão, devagar, escutando, com o coração aos saltos. A porta do quarto de Juliana estava aberta; vinha de lá um cheiro de mofo, de rato e de roupa enxovalhada que a enjoou; pelo postigo entrava uma luz triste, de tarde escura; e por baixo, encostada á parede, ficava a arca! Mas estava fechada! De certo! Desceu correndo, veio buscar o seu mólho de chaves... Sentia uma vergonha, -- mas se achasse as cartas! Aquella esperança dava-lhe todos os atrevimentos, como um vinho alcoolico. Começou a experimentar as chaves; a mão tremia-lhe; de repente a lingueta, com um estalinho secco, cedeu! Ergueu a tampa, estavam alli, talvez! E então, com cautela, muito femininamente, poz-se a tirar as cousas uma por uma, pondo-as em cima do colxão: -- o vestido de merino; um leque com figuras douradas, embrulhado em papel de sêda; velhas fitas rôxas e azues, passadas a ferro; uma pregadeira de setim côr de rosa, com um coração bordado a matiz: dous frasquinhos de cheiro, intactos, tendo collados ao vidro raminhos de rosas de papel recortado; tres pares de botinas embrulhadas em jornaes; a roupa branca, d'onde se exhalava um cheiro de madeira e de folhas de maçã camoeza. Entre duas camisas estava um maço de cartas atadas com um nastro... Nenhuma era d'ella! Nem de Bazilio! Eram d'uma letra d'aldêa, inintelligivel e amarellada! Que raiva! E ficou a olhar para a arca vazia, de pé, com os braços tristemente cahidos.
Uma sombra de repente passou diante do postigo. Estremeceu, aterrada. Era um gato, que com passos leves, vadiava pelo telhado. -- Tornou a repôr tudo com as mesmas dobras, fechou a arca, ia a sahir, -- mas lembrou-se de procurar na gaveta da mesa e debaixo do travesseiro. Nada! Impacientou-se então; não se queria ir sem ter gasto toda a esperança; desmanchou a roupa da cama, remexeu a palha amollentada do enxergão, sacudiu as velhas botinas, esgaravatou os cantos... Nada! Nada!
Subitamente, a campainha tocou. Desceu a correr. Que surpreza! Era D. Felicidade.
-- És tu! Como estás tu? Entra.
Estava melhor, veio logo contando pelo corredor. Sahira na vespera da Encarnação: o pé ás vezes ainda lhe fazia mal: mas graças a Deus estava escapa! E que lhe agradecesse, era a sua primeira visita!
Entraram no quarto. Escurecia, Luiza accendeu as velas.
-- E como me achas tu, hein? -- perguntou D. Felicidade, pondo-se diante d'ella.
-- Um bocadito mais pallida.
Ai! tinha soffrido muito! Ergueu a saia, mostrou o pé calçado n'um sapato largo, obrigou Luiza a apalpal-o... Que uma consolação lhe restava: é que toda a Lisboa a fôra vêr! Graças a Deus! Toda a Lisboa, o que ha de melhor em Lisboa!
-- E tu esta semana -- acrescentou -- nem appareceste! Pois olha que te cortaram na pelle...
-- Não pude, filha. O Jorge chega ámanhã, sabias?
-- Ah sua brejeira! Viva! Está esse coraçãosinho aos pulos! -- E disse-lhe um segredinho.
Riram muito.
-- Pois eu -- continuou D. Felicidade sentando-se -- arranjei-te hoje a partida. Encontrei esta manhã o Conselheiro, que me disse que vinha. Encontrei-o aos Martyres! Olha que foi sorte, logo no primeiro dia que sahi! E um bocado adiante dou com o Julião: diz que tambem vinha!... -- E com uma voz desfallecida:
-- Sabes? tomava uma colherinha de dôce...
Foi Luiza que abriu a porta ao Conselheiro e a Julião, que se tinham encontrado na escada, dizendo-lhes a rir:
-- Hoje sou eu o guarda-portão!
D. Felicidade, na sala, para disfarçar a perturbação que lhe deu o espectaculo amado da pessoa d'Accacio, começou, fallando muito, a censural-a «por deixar assim sahir no mesmo dia as duas criadas...»
-- E se te achares incommodada, filha, se te dér alguma cousa?
Luiza riu. Não era affecta a fanicos...
Todavia achavam-na abatida. E o Conselheiro, com interesse:
-- Tem continuado a soffrer dos dentes, D. Luiza?
Dos dentes? Era a primeira vez que tal ouvia! -- exclamou logo D. Felicidade. Julião declarou que raras vezes vira uma dentição tão perfeita.
O Conselheiro apressou-se a citar:
Em labios de coral, perolas finas...
E acrescentou:
-- É verdade, mas a ultima vez que tive a honra d'estar com D. Luiza, viu-se tão repentinamente afflicta com um dente, que teve d'ir a correr chumbal-o ao Vitry!
Luiza fez-se muito vermelha. Felizmente a campainha tocou. Devia ser a Joanna, ia abrir...
-- É verdade -- continuou o Conselheiro -- tinhamos feito um delicioso passeio, quando de repente D. Luiza empallidece, e parece que a dôr era tão urgente, que se precipitou para a escada do dentista, como louca...
A proposito de dôres, D. Felicidade, que estava anciosa por interessar, commover o Conselheiro, começou a historia do seu pé: disse a queda, o milagre de não ter morrido, as visitas assiduas de condessas e viscondessas, o susto em toda a Encarnação, os cuidados do bom dr. Caminha...
-- Ai! soffri muito! -- suspirou, com os olhos no Conselheiro, para provocar uma palavra sympathica.
Accacio, então, disse com authoridade:
-- É sempre um erro, ao descer uma escada ingreme, não procurar o apoio do corrimão.
-- Mas podia ter morrido! -- exclamou ella. E voltando-se para Julião: -- Pois não é verdade?
-- N'este mundo morre-se por qualquer cousa -- disse elle enterrado n'uma poltrona, fumando voluptuosamente. Elle mesmo estivera n'aquella tarde para ser atropellado por um trem: destinára o domingo para se dar um feriado, e fizera um grande passeio pela circumvallação... -- Ha mais d'um mez vivo no meu cubiculo, como um frade benedictino na livraria do seu convento! -- acrescentou, rindo, quebrando complacentemente a cinza do cigarro sobre o tapete.
O Conselheiro quiz saber então o assumpto da these: de certo muito momentoso!... E apenas Julião lhe disse: «Sobre physiologia, snr. Conselheiro», Accacio observou logo, com uma voz profunda:
-- Ah! physiologia! Deve ser então de grande magnitude! E presta-se mais ao estylo ameno.
Queixou-se, tambem, de «vergar ao peso dos seus trabalhos litterarios...»
-- Esperemos todavia, snr. Zuzarte, que não sejam infructiferas as nossas vigilias!
-- As suas, snr. Conselheiro, as suas! -- E com interesse: -- Quando nos dá o seu novo trabalho? Ha sofreguidão em o vêr!
-- Ha alguma sofreguidão -- concordou o Conselheiro com seriedade. -- Ha dias me dizia o snr. ministro da justiça (esse robustissimo talento), ha dias me dizia, me fazia a honra de me dizer: Dê-nos depressa o seu livro, Accacio, estamos precisados de luz, de muita luz! Foi assim que elle disse. Eu inclinei-me, naturalmente, e respondi: Snr. ministro, não serei eu que a negue ao meu paiz, quando o meu paiz a necessitar!
-- Muito bem, muito bem, Conselheiro!
-- E -- acrescentou -- dir-lhes-hei, aqui em familia, que o nosso ministro do reino me deixou entrevêr n'um futuro não remoto, a commenda de S. Thiago!
-- Já lh'a deviam ter dado, Conselheiro! -- exclamou Julião, divertindo-se. -- Mas n'este desgraçado paiz... Já a devia ter ao peito, Conselheiro!
-- Ha que tempos! -- exclamou com força D. Felicidade.
-- Obrigado, obrigado! -- balbuciou o Conselheiro, rubro. E na expansão do seu jubilo offereceu com uma familiaridade agradecida, a sua caixa de rapé a Julião.
-- Tomarei para espirrar -- disse elle.
Sentia-se n'aquella tarde n'uma disposição benevola: o trabalho e as altas esperanças que elle lhe dava tinham de certo dissipado o seu azedume: parecia até ter esquecido a sua humilhação, quando encontrára alli, n'aquella sala, o primo Bazilio, porque apenas Luiza entrou, perguntou-lhe por elle.
-- Partiu para Paris, não sabiam? ha que tempos!
D. Felicidade e o Conselheiro fizeram logo o elogio de Bazilio. Tinha ido deixar bilhetes de visita a ambos -- o que encantára D. Felicidade, e ensoberbecera o Conselheiro. Era um verdadeiro fidalgo! -- exclamava ella. E Accacio affirmou com authoridade:
-- E uma voz de barytono, digna de S. Carlos.
-- E muito elegante! -- disse D. Felicidade.
-- Um gentleman! -- resumiu o Conselheiro.
Julião, calado, bambaleava a perna. Agora, áquelles elogios, o seu despeito renascia; lembrava a seccura cortante de Luiza, n'aquella manhã, as poses do outro. Não resistiu a dizer:
-- Um pouco sobrecarregado nas joias e nos bordados das meias. De resto é moda no Brazil, creio...
Luiza córou; teve-lhe odio. E, vagamente, veio-lhe uma saudade de Bazilio.
D. Felicidade então, perguntou por Sebastião: não o via havia um seculo; e lamentava, porque era uma pessoa que lhe dava saude, só vêl-a.
-- É uma grande alma -- disse com emphase o Conselheiro. -- Todavia censurava-o um pouco por não se occupar, não se tornar util ao seu paiz. -- Porque emfim -- declarou -- o piano é uma bonita habilidade, mas não dá uma posição na sociedade. -- Citou então Ernestinho, que, posto que dando-se á arte dramatica, era todavia (e a sua voz tornou-se grave), segundo todas as informações, um excellente empregado aduaneiro...
Que fazia elle, Ernestinho? -- perguntaram.
Julião tinha-o encontrado. Dissera-lhe que a Honra e Paixão ia d'ahi a duas semanas, já se estavam a imprimir os cartazes, e na rua dos Condes já lhe não chamavam senão o Dumas filho portuguez! E o pobre rapaz crê-se realmente um Dumas filho!
-- Não conheço esse author -- disse com gravidade o Conselheiro -- posto que me pareça, pelo nome, ser filho do escriptor que se tornou famoso pelos Tres Mosqueteiros e outras obras de imaginação!... Mas, de resto, o nosso Ledesma é um esmerado cultor da arte dos Corneilles! Não lhe parece, D. Luiza?
-- Sim -- disse ella com um sorriso vago.
Parecia preoccupada. Fôra já duas vezes ao relogio do quarto vêr as horas: quasi dez, e Juliana sem voltar! Quem havia de servir o chá? Ella mesmo foi pôr as chavenas no taboleiro, armar o paliteiro. Quando voltou á sala notou um silencio enfastiado... -- Queriam que fosse tocar? -- perguntou.
Mas D. Felicidade que olhava, ao pé de Julião, as gravuras do Dante, illustrado por G. Doré, que elle folheava, com o volume sobre os joelhos, exclamou, de repente:
-- Ai que bonito! que é? Muito bonito! Viste, Luiza?
Luiza aproximou-se.
-- É um caso d'amor infeliz, snr.a D. Felicidade -- disse Julião. -- É a historia triste de Paulo e Francesca de Rimini. -- E explicando o desenho: -- Aquella senhora sentada é Francesca: este moço de guedelha, ajoelhado aos pés d'ella, e que a abraça, é seu cunhado, e, lamento ter de o dizer, seu amante. E aquelle barbaças, que lá ao fundo levanta o reposteiro e saca da espada, é o marido que vem, e zás! -- E fez o gesto de enterrar o ferro.
-- Safa! -- fez D. Felicidade, arripiada -- E aquelle livro cahido o que é? Estavam a lêr?...
Julião disse discretamente:
-- Sim... Tinham começado por lêr, mas depois...
Quel giorno più no vi leggiomi avante,
o que quer dizer: -- E nós não lemos mais em todo o dia!
-- Pozeram-se a derriçar -- disse D. Felicidade com um sorriso.
-- Peor, minha rica senhora, peor! Porque segundo a mesma confissão de Francesca, este moço, o da guedelha, o cunhado,
La bocca me bacciò tutto tremante,
o que significa: -- A bocca me beijou tremendo todo...
-- Ah! -- fez D. Felicidade, com um olhar rapido para o Conselheiro. -- É uma novella?
-- É o Dante, D. Felicidade -- acudiu com severidade o Conselheiro -- um poema epico classificado entre os melhores. Inferior, porém, ao nosso Camões! Mas rival do famoso Milton!
-- Que n'essas historias estrangeiras os maridos matam sempre as mulheres! -- exclamou ella. E voltando-se para o Conselheiro: -- Pois não é verdade?
-- Sim. D. Felicidade, repetem-se lá fóra com frequencia essas tragedias domesticas. O desenfreamento das paixões é maior. Mas entre nós, digamol-o com orgulho, o lar é muito respeitado. Assim eu, por exemplo, em todas as minhas relações em Lisboa, que são numerosas, graças a Deus, não conheço senão esposas modêlos. -- E com um sorriso cortezão: -- De que é de certo a flôr a dona da casa!
D. Felicidade revirou os olhos para Luiza que estava encostada á cadeira d'ella, e batendo-lhe no braço:
-- Isto é uma joia! -- disse com amor.
-- E de resto -- acudiu o Conselheiro -- o nosso Jorge merece-o. Porque, como diz o poeta:
Seu coração é nobre, e a fronte altiva
Revela-lhe da alma a pura essencia.
Aquella conversação impacientava Luiza. Ia sentar-se ao piano, quando D. Felicidade exclamou: -- Dize cá, então não se toma hoje chá n'esta casa?
Luiza foi outra vez á cozinha. Disse a Joanna que viesse ella mesma com o chá. -- E d'ahi a pouco Joanna, d'avental branco, vermelha, muito atarantada, entrou com o taboleiro.
-- E a Juliana? -- perguntou logo D. Felicidade.
-- Sahiu, coitada -- explicou Luiza -- tem andado doente...
-- E anda-te então por fóra até estas horas?... Boa! Até desacredita uma casa...
O Conselheiro tambem achava imprudente:
-- Porque emfim as tentações são grandes n'uma capital, minha senhora!
Julião exclamou, rindo:
-- Não, se aquella é tentada, descreio para sempre e totalmente, dos meus contemporaneos.
-- Oh snr. Zuzarte! -- acudiu o Conselheiro, quasi severamente -- referia-me a outras tentações: entrar, por exemplo, n'uma loja de bebidas, appetecer-lhe ir ao Circo e desleixar os seus deveres...
Mas D. Felicidade não podia soffrer a Juliana: achava-lhe cara de Judas, tinha ar de ser capaz de tudo...
Luiza defendeu-a: era muito serviçal, muito boa engommadeira, muito honesta...
-- E anda-te pela rua até ás onze da noite!... Credo! Fosse commigo!
-- E creio -- observou o Conselheiro -- que tem uma doença mortal. Não é verdade, snr. Zuzarte?
-- Mortal. Um aneurisma -- respondeu Julião, sem levantar os olhos do Dante.
-- Ainda para mais! -- exclamou D. Felicidade. E abaixando a voz: -- Tu o que deves fazer é descartar-te d'ella! Uma criada com uma doença d'essas! Que até lhe póde arrebentar a vir dar um copo d'agua á gente. Cruzes!
O Conselheiro apoiava:
-- E ás vezes, que embaraços com a authoridade!
Julião fechou o Dante, e disse:
-- Eu tem-me esquecido d'avisar o Jorge; mas um dia a creatura cahe-lhes redonda no chão. -- E sorveu um gole de chá.
Luiza estava afflicta. Parecia-lhe que uma nova complicação se formava para a torturar... Pôz-se a dizer que era tão difficil arranjar criadas...
Lá isso era, concordaram.
Fallaram de criados, das suas exigencias. Estavam cada vez mais atrevidos! E em se lhes dando confiança! E que immoralidade!...
-- Muitas vezes é culpa das amas -- disse D. Felicidade. -- Fazem das criadas confidentes, e isto, em ellas apanhando um segredo, tornam-se as donas da casa...
As mãos tremulas de Luiza faziam-lhe tilintar a chavena. Disse, com uma voz affectadamente risonha:
-- E o Conselheiro, que tal de criados?
Accacio tossiu:
-- Bem. Tenho uma pessoa respeitavel, com bom paladar, muito escrupulosa em contas...
-- E que não é feia -- acudiu Julião. -- Assim me pareceu uma vez que fui á rua do Ferregial...
Uma vermelhidão espalhára-se pela calva do Conselheiro. D. Felicidade fitava-o anciosamente, com a pupilla chammejante. Accacio, então, disse com severidade:
-- Nunca reparo para a physionomia dos subalternos, snr. Zuzarte.
Julião ergueu-se e enterrando as mãos nos bolsos, jovialmente:
-- Foi um grande erro abolir a escravatura!...
-- E o principio da liberdade? -- acudiu logo o Conselheiro -- E o principio da liberdade? Que os pretos eram grandes cozinheiros, concordo... Mas a liberdade é um bem maior.
Alargou-se então em considerações; fulminou os horrores do trafico, lançou suspeitas sobre a philantropia dos inglezes, foi severo com os plantadores da Nova-Orleans, contou o caso da Charles et Georges: dirigia-se exclusivamente a Julião, que fumava, cabisbaixo.
D. Felicidade fôra-se sentar ao pé de Luiza, e muito inquieta, fallando-lhe ao ouvido:
-- Tu conheces a criada do Conselheiro?
-- Não.
Será bonita?
Luiza encolheu os hombros.
-- Não sei que me diz o coração, Luiza! Estou a abafar!
E em quanto Accacio, de pé, perorava para Julião, D. Felicidade ia murmurando a Luiza as queixas da sua paixão.
Que allivio para Luiza quando elles sahiram! O que ella soffrera, lá por dentro, toda aquella noite! Que massadores, que idiotas! -- E a outra sem vir! Oh que vida a sua!
Foi á cozinha dizer a Joanna:
-- Espere pela Juliana, tenha paciencia. Que ella não póde tardar; aquillo a mulher achou-se peor!
Mas já passava de meia noite, já Luiza estava deitada, quando a campainha tocou de leve; depois mais forte; emfim, com impaciencia.
A rapariga adormeceu, pensou Luiza. Saltou da cama, subiu descalça á cozinha. Joanna, estirada para cima da mesa, resonava ao pé do candieiro de petroleo, que fumegava fetidamente. Sacudiu-a, fêl-a pôr de pé, estremunhada; voltou, correndo, deitar-se; e sentiu d'ahi a pouco, no corredor, a voz de Juliana dizer com satisfação:
-- Já está tudo acommodado, hein? Pois eu estive no theatro. Muito bonito! Do melhor, snr.a Joanna, do melhor!
Luiza adormeceu tarde, e durante toda a noite um sonho inquieto agitou-a. -- Estava n'um theatro immenso, dourado como uma igreja. Era uma gala: joias faiscavam sobre seios mimosos, condecorações reluziam sobre fardas palacianas. Na tribuna, um rei triste e moço, immovel n'uma attitude rigida e hieratica, sustentava na mão a esphera armillar, e o seu manto de velludo escuro, constellado de pedrarias como um firmamento, espalhava-se em redor em pregas d'esculptura, fazendo tropeçar a multidão dos cortezãos vestidos como valetes de paus.
Ella estava no palco; era actriz; debutava no drama d'Ernestinho: e toda nervosa via diante de si na vasta platéa susurrante, fileiras de olhos negros e accesos, cravados n'ella com furor: no meio a calva do Conselheiro, d'uma redondeza nevada e nobre, sobresahia, rodeada como uma flôr d'um vôo amoroso d'abelhas. No palco oscillava a vasta decoração d'uma floresta; ella notava sobretudo, á esquerda, um carvalho secular, d'uma arrogancia heroica -- cujo tronco tinha a vaga configuração d'uma physionomia, e se parecia com Sebastião.
Mas o contra-regra bateu as palmas: era esguio, parecia-se com D. Quixote, trazia oculos redondos com aros de lata, brandia o Jornal do Commercio torcido em saca-rolhas, e gania: salta a scenasinha de amor! salta-me essa maravilha! Então a orchestra, onde os olhos dos musicos reluziam como granadas e as suas cabelleiras se erriçavam como montões d'estopa, tocou com uma lentidão melancolica o fado de Leopoldina; e uma voz aspera e canalha cantava em falsete:
Vejo-o nas nuvens da tarde,
Nas ondas do mar sem fim,
E por mais longe que esteja
Sinto-o sempre ao pé de mim.
Luiza achava-se nos braços de Bazilio que a enlaçavam, a queimavam: toda desfallecida, sentia-se perder, fundir-se n'um elemento quente como o sol e dôce como o mel: gozava prodigiosamente: mas, por entre os seus soluços, sentia-se envergonhada, porque Bazilio repetia no palco, sem pudor, os delirios libertinos do Paraiso! Como consentia ella?
O theatro n'uma acclamação immensa bradava: Bravo! Bis! bis! Lenços aos milhares esvoaçavam como borboletas brancas n'um campo de trevo: os braços nús das mulheres lançavam com um gesto ondeado ramos de violetas dobradas: o rei erguera-se espectralmente, e, triste, arremessou como um bouquet a sua esphera armillar: e o Conselheiro logo, n'um phrenesi, para seguir os exemplos de Sua Magestade, desaparafusando rapidamente a calva, atirou-lh'a, com um berro de dôr e de gloria! O contraregra gania: -- Agradeçam! Agradeçam! Ella curvava-se, os seus cabellos de Magdalena rojavam pelo tablado: e Bazilio, a seu lado, seguia com olhos vivos os charutos que lhe atiravam, apanhando-os com a graça d'um toureiro e a destreza d'um clown!
Subitamente, porém, todo o theatro teve um ah! d'espanto. Fez-se um silencio ancioso e tragico; e todos os olhos, milhares d'olhos attonitos se fitavam no pano de fundo, onde um caramanchão arqueava a sua estructura toda estrellada de rosinhas brancas. Ella voltou-se tambem como magnetisada, e viu Jorge, Jorge que se adiantava, vestido de luto, de luvas pretas, com um punhal na mão; e a lamina reluzia -- menos que os olhos d'elle! Aproximou-se da rampa e curvando-se, disse com uma voz graciosa:
-- Real magestade, senhor infante, snr. governador civil, minhas senhoras, e meus senhores -- agora é commigo! Reparem n'este trabalhinho!
Caminhou então para ella com passos marmoreos que faziam oscillar o tablado; agarrou-lhe os cabellos, como um mólho d'herva que se quer arrancar; curvou-lhe a cabeça para traz; ergueu d'um modo classico o punhal; fez a pontaria ao seio esquerdo: e balançando o corpo, piscando o olho, cravou-lhe o ferro!
-- Muito bonito! -- disse uma voz -- Rico trabalho!
Era Bazilio que fizera entrar nobremente na platéa o seu phaeton! Direito na almofada, com o chapéo ao lado, uma rosa na sobrecasaca, continha com a mão negligente a inquietação soberba dos seus cavallos inglezes; e ao seu lado, sentado como um trintanario coberto das suas vestes sacerdotaes, vinha o patriarcha de Jerusalém! -- Mas Jorge arrancára o punhal todo escarlate; as gotas de sangue corriam até á ponta, coalhavam; cahiam depois com um som crystallino, punham-se a rolar pelo tablado como continhas de vidro vermelho. Ella deitára-se, expirante, sob o carvalho que se parecia com Sebastião: então, como a terra era dura, a arvore estendeu por baixo d'ella as suas raizes, macias como coxins de pennas; como o sol a mordia, a arvore desdobrou sobre ella as suas ramagens, como os panos d'uma tenda: e das folhas deixava-lhe escorrer sobre os labios gotas de vinho da Madeira! Ella via no entanto com terror o seu sangue sahir da ferida, vermelho e forte, correr, alastrar-se, fazendo poças aqui, ribeirinhos tortuosos além. E ouvia a platéa berrar:
-- O author! Fóra o author!
Ernestinho, muito frisado, pallido, appareceu; agradecia soluçando; e, ás cortezias, saltava aqui, acolá -- para não sujar no sangue da prima Luiza os seus sapatinhos de verniz...
Sentiu que ia morrer! Uma voz disse vagamente: -- Ólá, como vai isso? -- Parecia-lhe de Jorge. D'onde vinha? Do céo? da platéa? do corredor? Um ruido forte, como d'uma mala que se deixa cahir, acordou-a. Sentou-se na cama.
-- Bem, deixe ahi -- disse a voz de Jorge.
Saltou em camisa. Elle entrava. E ficaram enlaçados, n'um longo abraço, os beiços collados, sem uma palavra. O relogio do quarto dava sete horas.
X
N'esse dia pela uma hora Jorge e Luiza acabavam d'almoçar, como na vespera da partida d'elle. Mas agora não pesava a faiscante inclemencia da calma, as janellas estavam abertas ao sol amavel d'outubro; já passavam no ar certas frescuras outonaes; havia uma pallidez meiga na luz; á tardinha já «sabiam bem» os paletots; e tons amarellados começavam a envelhecer as verduras.
-- Que bom achar-se a gente outra vez no seu ninho! -- disse Jorge, estirando-se na voltaire.
Estivera contando a Luiza a sua viagem. Tinha trabalhado como um mouro, e tinha ganho dinheiro! Trazia os elementos d'um bello relatorio; creára amigos n'aquella boa gente do Alemtejo; estavam acabadas as soalheiras, as cavalgadas pelos montados, os quartos d'hospedaria; e alli estava emfim na sua casinha. E como na vespera da sua partida, soprava o fumo do cigarro, cofiando com delicias o bigode, -- porque tinha cortado a barba! Fôra a grande admiração de Luiza, quando o viu. Elle explicára, com humilhação e melancolia, que tivera um furunculo no queixo, com o calor...
-- Mas que bem te fica! -- tinha ella dito -- que bem que te fica!
Jorge trouxera-lhe como presente seis pratos de louça da China, muito antigos, com mandarins bojudos, de tunicas esmaltadas, suspensos magestosamente no ar azulado; uma preciosidade que descobrira em casa d'umas velhas miguelistas, em Mertola. Luiza dispunha-os muito decorativamente nas prateleiras do guarda-louça: e em bicos de pés, com a larga cauda do seu roupão estendida por traz, a massa loura do cabello pesado, um pouco desmanchado sobre as costas -- parecia a Jorge mais esbelta, mais irresistivel, e nunca a sua cinta fina lhe attrahira tanto os braços.
-- A ultima vez que aqui almocei, antes de partir, foi um domingo, lembras-te?
-- Lembro -- disse Luiza sem se voltar, collocando muito delicadamente um prato.
-- E é verdade -- perguntou Jorge de repente -- teu primo? Vistel-o? Veio vêr-te?
O prato escorregou, houve um tlin-tlin de copos.
-- Sim, veio -- disse Luiza, depois d'um silencio -- esteve ahi umas poucas de vezes. Demorou-se pouco...
Abaixou-se, abriu o gavetão do guarda-louça, esteve a remexer nas colheres de prata: ergueu-se, emfim, voltou-se com um sorriso, vermelha, sacudindo as mãos:
-- Prompto!
E foi sentar-se nos joelhos de Jorge.
-- Como te fica bem! -- dizia, torcendo-lhe o bigode. Admirava-o, d'um modo ardente. Quando se atirára aos seus braços n'aquella madrugada, sentira como abrir-se-lhe o coração, e um amor repentino revolver-lh'o deliciosamente; viera-lhe um desejo de o adorar perpetuamente, de o servir, de o apertar nos braços até lhe fazer mal, de lhe obedecer com humildade; era uma sensação multipla, de uma doçura infinita, que a traspassára até ás profundidades do seu sêr. E passando-lhe um braço pelo pescoço, murmurava com um movimento d'uma adulação quasi lasciva:
-- Estás contente? Sentes-te bom? Dize!
Nunca lhe parecera tão bonito, tão bom; a sua pessoa depois d'aquella separação dava-lhe as admirações, os enlevos d'uma paixão nova.
-- É o snr. Sebastião -- veio dizer Juliana toda risonha para Jorge.
Jorge deu um pulo, afastou Luiza bruscamente, atirou-se pelo corredor gritando:
-- Aos meus braços! aos meus braços, scelerado!
D'ahi a dias, uma manhã que Jorge sahira para o ministerio, Juliana entrou no quarto de Luiza, e fechando a porta devagarinho, com uma voz muito amavel:
-- Eu desejava fallar á senhora n'uma cousa.
E começou a dizer, -- que o seu quarto em cima no sotão era peor que uma enxovia; que não podia lá continuar; o calor, o mau cheiro, os persevejos, a falta d'ar, e no inverno a humidade, matavam-na! Emfim, desejava mudar p'ra baixo, p'ra o quarto dos bahus.
O quarto dos bahus tinha uma janella nas trazeiras; era alto e espaçoso; guardavam-se alli os oleados de Jorge, as suas malas, os paletots velhos, e veneraveis bahus do tempo da avó, de couro vermelho com pregos amarellos.
-- Ficava alli como no céo, minha senhora!
E... aonde se haviam de pôr os bahus?
-- No meu quarto, em cima. -- E com um risinho: -- Os bahus não são gente, não soffrem...
Luiza disse um pouco embaraçada:
-- Bem, eu verei, eu fallarei ao snr. Jorge.
-- Conto com a senhora.
Mas apenas n'essa tarde Luiza explicou a Jorge «a ambição da pobre de Christo», elle deu um salto:
-- O quê? Mudar os bahus? Está douda!
Luiza então insistiu: era o sonho da pobre creatura desde que viera para a casa! Enterneceu-o. Não, elle não imaginava, ninguem imaginava o que era o quarto da pobre mulher! O cheiro empestava, os ratos passeavam-lhe pelo corpo, o forro estava roto, chovia dentro; fôra lá ha dias, e ia tombando para o lado...
-- Santo Deus! Mas isso é o que minha avó contava das enxovias d'Almeida! Muda-a, muda-a depressa, filha!... Porei os meus ricos bahus no sotão.
Quando Juliana soube o favor:
-- Ai, minha senhora, é a vida que me dá! Deus lh'o pague! Que eu não tinha saude para viver n'um cacifro d'aquelles.
Ultimamente queixava-se mais: andava amarella, trazia os beiços um pouco arroxeados; tinha dias d'uma tristeza negra, ou d'uma irritabilidade morbida: os pés nunca lhe aqueciam. Ah! Precisava muitos cuidados, muitos cuidados!...
Foi por isso que d'ahi a dous dias veio pedir a Luiza, «se fazia o favor d'ir ao quarto dos bahus». E lá, mostrando-lhe o soalho velho e carunchoso:
-- Isto não póde ficar assim, minha senhora, isto precisa uma esteira senão, não vale a pena mudar. Eu se tivesse dinheiro não importunava a senhora, mas...
-- Bem, bem, eu arranjarei -- disse Luiza com uma voz paciente.
E pagou a esteira, sem dizer nada a Jorge. Mas na manhã em que os esteireiros a pregavam Jorge veio perguntar attonito a Luiza o que era aquillo, «rolos d'esteira no corredor»?
Ella pôz-se a rir, pousou-lhe as mãos sobre os hombros:
-- Foi a pobre Juliana que pediu como uma esmola a esteira, que o soalho estava podre. Até a queria pagar, e que eu lh'a descontasse nas soldadas. Ora por uma ridicularia... -- E com um gesto compassivo: -- Tambem são creaturas de Deus, não são escravas, filho!
-- Magnifico! E que não tardem os espelhos e os bronzes! Mas que mudança foi essa, tu que a não podias vêr?
-- Coitada! -- fez Luiza -- reconheci que era boa mulher. E como estive tão só, dei-me mais com ella. Não tinha com quem fallar, fez-me muita companhia. Até quando estive doente...
-- Estiveste doente? -- exclamou Jorge espantado.
-- Oh! tres dias, só -- acudiu ella -- uma constipação. Pois olha que dia e noite não se tirou d'ao pé de mim.
Luiza ficou logo com receio que Jorge fallasse na doença, e Juliana desprevenida negasse; por isso, n'essa tarde, ao escurecer, chamou-a ao quarto:
-- Eu disse ao snr. Jorge que vossê me tinha feito muito boa companhia n'uma doença... -- E o seu rosto abrazava-se de vergonha.
Juliana logo, risonha, contente da cumplicidade:
-- Fico entendida, minha senhora! Póde estar socegada!
Com effeito Jorge, ao outro dia, depois do café, voltou-se para Juliana, e com bondade:
-- Parece que vossê fez boa companhia á snr.a D. Luiza.
-- Fiz o meu dever -- exclamou, curvando-se com a mão no peito.
-- Bem, bem -- fez Jorge, remexendo no bolso. E ao sahir da sala meteu-lhe na mão meia libra.
-- Palerma! -- rosnou ella.
Foi n'essa semana que começou a queixar-se a Luiza, «que a roupa e os vestidos, na arca, se lhe amarfanhavam...» Estava-se-lhe a estragar tudo! Se ella tivesse dinheiro, não vinha com aquelles pedidos á senhora, mas... Emfim uma manhã declarou terminantemente que precisava uma commoda.
Luiza sentiu uma raiva accender-lhe o sangue, e sem levantar os olhos do bordado:
-- Uma meia commoda?
-- Se a senhora quer fazer o favor, então uma commoda inteira...
-- Mas vossê tem pouca roupa -- disse Luiza. Começava a installar-se na humilhação e já regateava as condescendencias.
-- Tenho, sim, minha senhora -- replicou Juliana -- mas vou agora completar-me!
A commoda foi comprada em segredo, e introduzida occultamente. Que dia de felicidade para Juliana! Não se fartava de lhe saborear o cheiro da madeira nova! Passava a mão, com a tremura d'uma caricia, sobre o polimento luzidio!... Forrou-lhe as gavetas de papel de sêda, e começou a completar-se!
Foram semanas d'amargura para Luiza.
Juliana entrava no quarto todas as manhãs, muito comprimenteira, começava a arrumar, e de repente com uma voz lamentosa:
-- Ai! estou tão falta de camisas! se a senhora me podesse ajudar...
Luiza ia ás suas gavetas cheias, cheirosas, e começava melancolicamente a pôr á parte as peças mais usadas. Adorava a sua roupa branca: tinha tudo ás duzias, com lindas marcas, sachets para perfumar; e aquellas dadivas dilaceravam-n'a como mutilações! Juliana por fim já pedia com seccura, com direito:
-- Que bonita que é esta camisinha! -- dizia simplesmente. -- A senhora não a quer; não?
-- Leve, leve! -- dizia Luiza sorrindo, por orgulho, para não se mostrar violentada.
E todas as noites Juliana fechada no seu quarto, encruzada na esteira, inchada d'alegria, com o candieiro sobre uma cadeira, desmarcava roupa, desfazendo as duas letras de Luiza, marcando regaladamente as suas, a linha vermelha, enormes -- J. C. T., -- Juliana Couceiro Tavira!
Mas emfim cessou, porque, como ella dizia, «de roupa branca estava como um ovo».
-- Agora, se a senhora me quizer ajudar com alguma cousa para sahir...
E Luiza começou a vestil-a.
Deu-lhe um vestido roxo de sêda, um casaco de casimira preta, com bordados a soutache. E receando que Jorge estranhasse as generosidades, transformava-as para elle as não reconhecer: mandou tingir de castanho o vestido, ella mesmo por sua mão pôz uma guarnição de velludo no casaco. Trabalhava para ella, agora! -- Como acabaria tudo aquillo, Santo Deus?
Todavia Jorge um domingo disse ao jantar, rindo:
-- Esta Juliana anda uma janota! Prospera a olhos vistos.
D. Felicidade, á noite, tambem notou:
-- Que chic! Nem uma criada do paço!
-- Coitada! cousas que ella aproveita...
Prosperava, com effeito! Não punha na cama senão lençoes de linho. Reclamára colxões novos, um tapete para os pés da cama, felpudo! Os sachets que perfumavam a roupa de Luiza iam passando para a dobra das suas calcinhas. Tinha cortinas de cassa na janella, apanhadas com velhas fitas de sêda azul; e sobre a commoda dous vasos da Vista Alegre dourados! Emfim um dia santo, em lugar da cuia de retroz, appareceu com um chignon de cabello!
Joanna pasmava d'aquellas tafularias. Attribuia-as á bondade da senhora, e resentia-se de ser «esquecida». Um dia mesmo, que Juliana estreára uma sombrinha, disse diante de Luiza, com uma voz de despeito:
-- Para umas tudo, para outras nada!...
Luiza riu, acudiu:
-- Tolices! Eu sou a mesma p'ra todas.
Mas reflectiu: Joanna podia ter desconfianças tambem, ter ouvido alguma cousa a Juliana... E logo ao outro dia, para a conservar contente e amiga, deu-lhe dous lenços de sêda, depois dous mil reis para um vestido; e d'ahi por diante nunca lhe recusou licença para sahir á noitinha a casa d'uma tia...
A Joanna ia por toda a parte fallando da «senhora, que era um anjo». Na rua, de resto, tinha-se notado o luxo de Juliana. Sabia-se do «quarto novo», dizia-se baixo que tinha alcatifa! O Paula decidira, com indignação, «que alli positivamente havia marosca». Mas Juliana uma tarde, diante do Paula e da estanqueira, explicou, acalmou as suspeitas.
-- Ora! dizem que tenho isto e aquillo. Não é tanto! Tenho as minhas commodidades. Mas tambem a maneira como eu lhes tratei a tia, de dia e de noite, sem arredar pé... Por mais que façam não me pagam, que arruinei a minha saude!
Assim se justificou a prosperidade de Juliana. Era a familia agradecida, dizia-se; tratavam-na como parenta!
E, pouco a pouco, a casa do «Engenheiro» teve para os criados da visinhança a vaga seducção d'um paraiso: dizia-se que as soldadas eram enormes, havia vinho á discrição, recebiam-se presentes todas as semanas, ceava-se todas as noites caldo do gallinha! Cada um invejava aquella «pechincha». Pela inculcadeira, a fama da «casa do Engenheiro» alargou-se. Creou-se uma legenda.
Jorge, attonito, recebia todos os dias cartas de pessoas offerecendo-se para criados de quarto, criadas de dentro, cozinheiros, escudeiros, governantas, cocheiros, guarda-portões, ajudantes de cozinha... Citavam as casas titulares de que tinham sahido; pediam audiencia; suspeitando certas cousas uma bonita criada de quarto juntou a sua photographia; um cozinheiro trouxe uma carta d'empenho do director geral do ministerio.
-- Estranho caso! -- dizia Jorge, pasmado -- disputam-se a honra de me servir! Imaginarão que me sahiu a sorte grande?
Mas não dava muita attenção áquella singularidade. Vivia então muito occupado: andava escrevendo o seu relatorio; e todos os dias sahia ao meio dia, voltava ás seis, com rolos de papeis, mappas, brochuras, fatigado, berrando pelo jantar, radiante.
Contou o caso, todavia, rindo, um domingo á noite. O Conselheiro observou logo:
-- Com o bom genio da D. Luiza, com o seu, Jorge, n'este bairro saudavel, n'uma casa sem escandalos, sem questões de familia, toda virtude, é natural que a criadagem menos favorecida aspire a uma posição tão agradavel.
-- Somos os amos ideaes! -- disse Jorge, batendo muito alegre no hombro de Luiza.
A casa, com effeito, tornava-se «agradavel». Juliana exigira que o jantar fosse mais largo (para ter uma parte sua, sem sobejos), e como era boa cozinheira vigiava os fogões, provava, ensinava pratos á Joanna.
-- Esta Joanna é uma revelação -- dizia Jorge -- vê-se-lhe crescer o talento!...
Juliana, bem alojada, bem alimentada, com roupa fina sobre a pelle, colxões macios, saboreava a vida: o seu temperamento adoçára-se n'aquellas abundancias; depois, bem aconselhada pela tia Victoria, fazia o seu serviço com um zelo minucioso e habil. Os vestidos de Luiza andavam cuidados como reliquias. Nunca os peitilhos de Jorge tinham resplandecido tanto! O sol d'outubro alegrava a casa, muito aceada, d'uma pacatez d'abbadia. Até o gato engordava.
E no meio d'aquella prosperidade -- Luiza definhava-se. Até onde iria a tyrannia de Juliana? era agora o seu terror. E como a odiava! Seguia-a por vezes com um olhar tão intensamente rancoroso, que receava que ella se voltasse subitamente, como ferida pelas costas. E via-a satisfeita, cantarolando a Carta adorada, dormindo em colxões tão bons como os seus, pavoneando-se na sua roupa, reinando na sua casa! Era justo, justos céos?
Ás vezes vinha-lhe uma revolta, torcia os braços, blasphemava, debatia-se na sua desgraça, como nas malhas d'uma rêde; mas, não encontrando nenhuma solução, recahia n'uma melancolia aspera -- em que o seu genio se pervertia. Seguia com satisfação a amarellidão crescente das feições de Juliana; tinha esperanças no aneurisma: não rebentaria um dia, o demonio?
E diante de Jorge tinha de a elogiar!
A vida pesava-lhe. Apenas elle pela manhã sahia e fechava a cancella, logo as suas tristezas, os seus receios lhe desciam sobre a alma, devagar, como grandes véos espessos que se abatem lugubremente; não se vestia então até ás quatro, cinco horas, e com o roupão solto, em chinellas, despenteada, arrastava o seu aborrecimento pelo quarto. Vinham-lhe, por momentos, de repente, desejos de fugir, ir metter-se n'um convento! A sua sensibilidade muito exaltada impellil-a-hia de certo a alguma resolução melodramatica, -- se a não retivesse, com a força d'uma seducção permanente, o seu amor por Jorge. Porque o amava agora, immensamente! Amava-o com cuidados de mãi, com impetos de concubina... Tinha ciumes de tudo, até do ministerio, até do relatorio! Ia interrompêl-o a cada momento, tirar-lhe a penna da mão, reclamar o seu olhar, a sua voz; e os passos d'elle no corredor davam-lhe o alvoroço dos amores illegitimos...
De resto ella mesma se esforçava por desenvolver aquella paixão, achando n'ella a compensação ineffavel das suas humilhações. Como lhe viera aquillo? Porque sempre o amára, de certo, reconhecia-o agora, -- mas não tanto, não tão exclusivamente! Nem ella sabia. Envergonhava-se mesmo, sentindo vagamente n'aquella violencia amorosa pouca dignidade conjugal: suspeitava que o que tinha era apenas um capricho. Um capricho por seu marido! Não lhe parecia rigorosamente casto... Que lhe importava, de resto? Aquillo fazia-a feliz, prodigiosamente. Fosse o que fosse era delicioso!
Ao principio a idéa do outro pairava constantemente sobre este amor, pondo um gosto infeliz em cada beijo, um remorso em cada noite. Mas pouco a pouco esquecêra-o tanto, o outro -- que a sua recordação, quando por acaso voltava, não dava mais amargor á nova paixão, que um torrão de sal póde dar ás aguas d'uma torrente. Que feliz que seria -- se não fosse a infame!
Era a infame que se sentia feliz! Ás vezes só no seu quarto, punha-se a olhar em redor com um riso d'avaro: desdobrava, batia os vestidos de sêda: punha as botinas em fileira, contemplando-as de longe, extatica; e debruçada sobre as gavetas abertas da commoda contava, recontava a roupa branca, acariciando-a com o olhar de posse satisfeita. Como a da Piorrinha! -- murmurava, afogada em jubilo.
-- Ai! estou muito bem! -- dizia ella á tia Victoria.
-- Que duvida que estás! A carta não te rendeu um conto de reis, mas olha que te trouxe um par de regalos. E é que ha-de ser uma pingadeira: ha-de ser a boa peça de linho, o bom adereço, boas moedas... E ainda muito obrigada por cima. Carda-a, filha, carda-a!
Mas já havia pouco que cardar. E lentamente Juliana começou a pensar, que agora o que devia era gozar. Se tinha bons colxões -- para que se havia de levantar cêdo? Se tinha bons vestidos -- porque não havia d'ir espairecer para a rua? Toca a tirar partido!
Uma manhã que estava mais frio deixou-se ficar na cama até ás nove horas, com as janellas entreabertas, um bom raio de sol na esteira. Depois explicou seccamente, que tinha estado com a dôr. D'ahi a dous dias Joanna, ás dez horas, veio dizer baixo a Luiza:
-- A snr.a Juliana ainda está na cama, está tudo por arrumar.
Luiza ficou aterrada. O quê? Teria de soffrer os seus desmazelos, como soffrera as suas exigencias?
Foi ao quarto d'ella:
-- Então vossê levanta-se a estas horas?
-- Foi o que me recommendou o medico -- replicou muito insolente.
E d'ahi por diante Juliana poucas vezes se erguia antes da hora de servir ao almoço. Luiza pediu logo a Joanna que fizesse «o serviço por ella»: era por pouco tempo, a pobre creatura andava tão adoentada! E para acommodar a cozinheira deu-lhe meia moeda, para a ajuda d'um vestido.
Juliana depois, sem pedir licença, começou a sahir. Quando voltava tarde, para o jantar, não se desculpava!
Um dia Luiza não se conteve, disse-lhe, vendo-a passar no corredor a calçar as luvas pretas:
-- Vossê vai sahir?
Ella respondeu, muito atrevidamente:
-- É como vê. Fica tudo arrumado, tudo o que é minha obrigação. -- E abalou, batendo os tacões.
Ora, não lhe faltava mais senão estar a constranger-se por causa da Piorrinha!
Joanna começava a resmungar: «passa a sua vida na rua a snr.a Juliana, e eu é que aguento...»
-- Se vossê estivesse doente, tambem ninguem lhe ia á mão -- acudia Luiza, afflicta, quando percebia estas revoltas. E presenteava-a. Dava-lhe mesmo vinho e sobremesa.
Havia agora um desperdicio na casa. Os roes cresciam. Luiza andava succumbida. -- Como acabaria tudo aquillo?
Os desleixos de Juliana iam-se tornando graves.
Para sahir mais cedo fazia apenas o «essencial». Era Luiza que acabava d'encher os jarros, que levantava muitas vezes a mesa do almoço, que levava para o sotão roupa suja que ficava pelos cantos...
Um dia Jorge que entrára ás quatro horas, viu por acaso a cama por fazer. Luiza apressou-se a dizer que «Juliana sahira, mandára-a ella á modista».
D'ahi a dias, eram seis horas, ainda não tinha voltado para servir ao jantar. «Tinha ido á modista...» explicou Luiza.
-- Mas se a Juliana é unicamente para ir á modista, então toma-se outra criada para fazer o serviço da casa -- disse elle.
Áquellas palavras seccas Luiza fez-se pallida, duas lagrimas rolaram-lhe pela face.
Jorge ficou pasmado. Que era? Que tinha? Luiza não se dominou, rompeu n'um choro nervoso, hysterico.
-- Mas que é, minha filha, que tens? Zangaste-te?...
Ella não podia responder, suffocada. Jorge fez-lhe respirar vinagre de toillette, beijou-a muito.
Só quando o choro acalmou é que ella pôde dizer, com uma voz soluçada:
-- Fallaste-me tão seccamente, e eu estou tão nervosa...
Elle riu, chamou-lhe tontinha, limpou-lhe as lagrimas -- mas ficou inquieto.
Já então lhe notára certas tristezas, abatimentos inexplicaveis, uma irritabilidade nervosa... Que seria?
Para que Jorge não tornasse a surprehender os desleixos, Luiza começou a completar todas as manhãs os arranjos. Juliana percebeu logo; e muito tranquillamente decidiu-se a «deixar-lhe de cada vez mais com que se entreter». Ora não varria, depois não fazia a cama; emfim uma manhã não vasou as aguas sujas. Luiza foi espreitar no corredor que Joanna não descesse, não a visse, e fez ella mesma os despejos! Quando veio ensaboar as mãos, as lagrimas corriam-lhe pelo rosto. Desejava morrer!... A que tinha chegado!...
D. Felicidade, um dia, tendo entrado de repente, surprehendera-a a varrer a sala.
-- Que eu o faça -- exclamou -- que tenho só uma criada, mas tu!...
A Juliana tinha tanto que engommar...
-- Ai! não lhe tires serviço do corpo, que não t'o agradece. E ainda se ri por cima! Se a pões em maus costumes!... Que aguente, que aguente!
Luiza sorriu, disse:
-- Ora, por uma vez na vida!
A sua tristeza augmentava cada dia.
Refugiava-se então no amor de Jorge como na sua unica consolação. A noite trazia-lhe a sua desforra: Juliana a essa hora dormia; não via a sua cara medonha; não a receava; não tinha de a elogiar; não trabalhava por ella! Era ella mesma, era Luiza, como d'antes! Estava na sua alcova com o seu marido, fechada por dentro, livre! Podia viver, rir, conversar, ter até appetite! E trazia com effeito ás vezes marmelada e pão para o quarto -- para fazer uma cêasinha!
Jorge estranhava-a. «Tu de noite és outra», dizia. Chamava-lhe ave nocturna. Ella ria em saia branca pelo quarto, com os braços nús, o collo nú, o cabello n'um rolo; e passarinhava, cantarolava, chalrava -- até que Jorge lhe dizia:
-- Passa da uma hora, filha!
Despia-se então rapidamente, cahia-lhe nos braços.
Mas que acordar! Por mais clara que estivesse a manhã, tudo lhe parecia vagamente pardo. A vida sabia-lhe mal. Vestia-se devagar, com repugnancia -- entrando no seu dia como n'uma prisão.
Perdêra agora toda a esperança de se libertar! Ás vezes ainda lhe vinha, como um relampago, a vontade «de contar tudo a Sebastião, tudo». Mas quando o via, com o seu olhar honesto, abraçar Jorge, rirem ambos, e irem fumar o seu cachimbo, e elle tão cheio sempre d'admiração por ella, parecia-lhe mais facil sahir p'ra a rua, pedir dinheiro ao primeiro homem que encontrasse -- que ir a Sebastião, ao intimo de Jorge, ao melhor amigo da casa, dizer-lhe: escrevi uma carta a um homem, a criada roubou-m'a! Não, antes morrer n'aquella agonia de todos os dias, e ter ella mesma, de rastos, de lavar as escadas! Ás vezes reflectia, pensava: -- Mas com que conto eu? -- Não sabia. Com o acaso, com a morte de Juliana... E deixava-se viver, gozando como um favor cada dia que vinha, sentindo vagamente, a distancia, alguma cousa de indefinido e de tenebroso onde se afundaria!
Por esse tempo Jorge começou a queixar-se que as suas camisas andavam mal engommadas. A Juliana positivamente «perdia a mão». Um dia mesmo zangou-se: chamou-a, e atirando-lhe uma camisa toda amarrotada:
-- Isto não se póde vestir, está indecente!
Juliana fez-se amarella, cravou em Luiza um olhar chammejante; mas, com os beiços tremulos, desculpou-se: «a gomma era má, fôra já trocal-a», etc.
Apenas, porém, Jorge sahiu, veio com uma rajada ao quarto, fechou a porta e poz-se a gritar -- que a senhora sujava um rôr de roupa, o senhor um rôr de camisas, que se não tivesse alguem que a ajudasse não podia dar aviamento!... Quem queria negras trazia-as do Brazil!
-- E não estou para aturar o genio de seu marido, percebe a senhora? Se quer é arranjar quem me ajude.
Luiza disse simplesmente:
-- Eu a ajudarei.
Tinha agora uma resignação muda, sombria, aceitava tudo!
Logo no fim da semana houve uma grande trouxa de roupa: e Juliana veio dizer -- que se a senhora passasse, ella engommava. Senão, não!
Estava um dia adoravel, Luiza tencionava sahir... Pôz um roupão, e, sem uma palavra, foi buscar o ferro.
Joanna ficou attonita.
-- Então a senhora vai engommar?
-- Ha uma carga, e a Juliana só não póde aviar tudo, coitada!
Installou-se no quarto dos engommados, -- e estava laboriosamente passando a roupa branca de Jorge, quando Juliana appareceu, de chapéo.
-- Vossê vai sahir? -- exclamou Luiza.
-- É o que eu vinha dizer á senhora. Não posso deixar de sahir. -- E abotoava as luvas pretas.
-- Mas as camisas, quem as engomma?
-- Eu vou sahir -- disse a outra seccamente.
-- Mas, com os diabos, quem engomma as camisas?
-- Engomme-as a senhora! Olha a sarna!
-- Infame! -- gritou Luiza. Atirou o ferro para o chão, sahiu impetuosamente.
Juliana sentiu-a ir pelo corredor aos soluços. Pôz-se logo a tirar o chapéo e as luvas, assustada. D'ahi a um momento ouviu a cancella da rua bater com força. Veio ao quarto, viu o roupão de Luiza arremessado, a chapelleira tombada. Onde teria ido? Queixar-se á policia? Procurar o marido? C'os diabos! Fôra estupida, com o genio! Arrumou depressa o quarto, foi-se pôr a engommar, com o ouvido á escuta, muito arrependida. Onde diabo teria ido? Devia ter cuidado! Se a impellisse a fazer algum desproposito, quem perdia? Ella, que teria de sahir da casa, deixar o seu quarto, os seus regalos, a sua posição! Safa!
Luiza sahira, como louca. Na rua da Escóla um coupé passava, vazio: atirou-se para dentro, deu ao cocheiro a morada de Leopoldina. Leopoldina devia ter voltado do Porto, queria vêl-a, precisava d'ella, sem saber para que... Para desabafar! Pedir-lhe uma idéa, um meio de se vingar! Porque a vontade de se libertar d'aquella tyrannia -- era agora menor que o desejo de se vingar d'aquellas humilhações. Vinham-lhe idéas insensatas! Se a envenenasse! Parecia-lhe que sentiria um prazer delicioso em a vêr torcer-se com vomitos dilacerantes, uivando d'agonia, largando a alma!
Galgou as escadas de Leopoldina; a campainha ficou a retinir muito tempo do puxão da sua mão febril.
A Justina apenas a viu foi a gritar pelo corredor:
-- É a snr.a D. Luiza, minha senhora, é a snr.a D. Luiza!
E Leopoldina despenteada, com um roupão escarlate de grande cauda, correu estendendo os braços:
-- És tu! Que milagre é este? Eu levantei-me agora! Entra cá p'ra o quarto. Está tudo desarranjado, mas não importa. Mas que é isto, que é isto?
Abriu as janellas que estavam ainda cerradas. Havia um forte cheiro de vinagre de toilette; a Justina tirava á pressa uma bacia de latão, com agua ensaboada; toalhas sujas arrastavam; sobre uma jardineira tinham ficado da vespera os rolos de cabello, o collete, uma chavena com um fundo de chá cheio de pontas de cigarros. E Leopoldina corria o transparente, dizendo:
-- Ora graças a Deus que honras esta casa, minha fidalga!...
Mas vendo o rosto perturbado de Luiza, os seus olhos vermelhos de lagrimas:
-- Que é? Que tens tu? Que succedeu?
-- Um horror, Leopoldina! -- exclamou, apertando as mãos.
A outra foi fechar a porta, rapidamente.
-- Então?
Mas Luiza chorava sem responder. Leopoldina olhava-a, petrificada.
-- A Juliana apanhou-me umas cartas! -- disse emfim por entre soluços. -- Quer seiscentos mil reis! Estou perdida... Tem-me martyrisado... Quero que me digas, vê se te lembras... Estou como douda. Sou eu que faço tudo em casa... Morro, não posso! -- E as lagrimas redobravam.
-- E as tuas joias?
-- Valem duzentos mil reis. E Jorge, que lhe havia eu de dizer?
Leopoldina ficou um momento calada, e olhando em roda de si, abrindo os braços:
-- Tudo o que eu tenho, no prego, minha filha, dá vinte libras!...
Luiza murmurava, limpando os olhos:
-- Que expiação esta, Santo Deus, que expiação!
-- Que diz a carta?
-- Horrores! Estava douda... É uma minha, duas d'elle.
-- De teu primo?
Luiza disse «sim», com a cabeça, lentamente.
-- E elle?
-- Não sei! Está em França, nunca me respondeu.
-- Pulha! Como t'as apanhou, a mulher?
Luiza contou rapidamente a historia do sarcophago, e do cofre.
-- Mas tu tambem, Luiza, atirar uma carta d'essas! Oh mulher, isso é medonho!
E Leopoldina pôz-se a passear pelo quarto, arrastando a longa cauda do roupão escarlate: os seus grandes olhos negros, excitados, pareciam procurar um meio, um expediente... Murmurava:
-- A questão é de dinheiro...
Luiza, prostrada no sophá, repetia:
-- A questão é de dinheiro!
Então Leopoldina, parando bruscamente diante d'ella:
-- Eu sei quem te dava o dinheiro!...
-- Quem?
-- Um homem.
Luiza ergueu-se, espantada:
-- Quem?
-- O Castro.
-- O d'oculos?
-- O d'oculos.
Luiza fez-se muito córada:
-- Oh Leopoldina! -- murmurou. E depois d'um silencio, rapidamente:
-- Quem t'o disse?
-- Sei-o eu. Disse-o elle ao Mendonça. Sabes que eram unha e carne. Que te dava tudo o que tu lhe pedisses! Disse-lh'o mais d'uma vez.
-- Que horror! -- exclamou Luiza subitamente indignada. -- E tu propões-me semelhante cousa? -- O seu olhar, sob as sobrancelhas franzidas, dardejava de colera. Ir com um homem por dinheiro! -- Tirou o chapéo, violentamente, com as mãos tremulas, arremessou-o para a jardineira, e com passos rapidos pelo quarto: -- Antes fugir, ir para um convento, ser criada, apanhar a lama das ruas!
-- Não te exaltes, creatura! Quem te diz isso? Talvez o homem te emprestasse o dinheiro, desinteressadamente...
-- Acreditas tu?
Leopoldina não respondeu: com a cabeça baixa,
fazia girar os anneis nos dedos.
-- E quando fosse outra cousa? -- exclamou de
repente -- Era um conto de reis, eram dous, estavas
salva, estavas feliz!
Luiza sacudia os hombros, indignada d'aquellas
fazia girar os anneis nos dedos.
-- E quando fosse outra cousa? -- exclamou de repente -- Era um conto de reis, eram dous, estavas salva, estavas feliz!
Luiza sacudia os hombros, indignada d'aquellas palavras -- dos seus proprios pensamentos, talvez!
-- É indecente! É horrivel! -- dizia.
Ficaram caladas.
-- Ah! fosse eu!... -- disse Leopoldina.
-- Que fazias?
-- Escrevia ao Castro, que viesse e com dinheiro!
-- Isso és tu! -- exclamou Luiza, arrebatadamente.
Leopoldina fez-se escarlate sob a camada de pó d'arroz.
Mas Luiza atirou-lhe os braços ao pescoço:
-- Perdôa-me, perdôa-me! estou douda, não sei o que digo!...
Começaram ambas a chorar, muito nervosas.
-- Tu zangaste-te! -- dizia Leopoldina cortada de soluços. -- Mas é p'ra teu bem. É o que me parece melhor. Se eu podesse dava-te o dinheiro... Fazia tudo. Acredita!
E abrindo os braços, indicando o seu corpo com um impudor sublime:
-- Seiscentos mil reis! Se eu valesse tanto dinheiro, tinhal-o ámanhã!
Nós de dedos bateram á porta.
-- Quem é?
-- Eu -- disse uma voz rouca.
-- É meu marido. O animal ainda hoje não despegou de casa... Não posso abrir. Logo.
Luiza limpava os olhos, á pressa, punha o chapéo.
-- Quando voltas? -- perguntou Leopoldina.
-- Quando puder, senão escrevo-te.
-- Bem. Eu vou pensar, vou esquadrinhar...
Luiza agarrou-lhe o braço:
-- E d'isto, nem palavra.
-- Douda!
Sahiu. Foi subindo devagar até ao largo de S. Roque. A porta da igreja da Misericordia estava aberta, com o seu largo reposteiro vermelho d'armas bordadas que o vento agitava brandamente. Veio-lhe um desejo d'entrar. Não sabia para quê; mas parecia-lhe que depois da excitação apaixonada em que vibrára, o fresco silencio da igreja a calmaria. E depois sentia-se tão infeliz que se lembrou de Deus! necessitava alguma cousa de superior, de forte a que se amparar. Foi-se ajoelhar ao pé d'um altar, persignou-se, rezou o Padre-Nosso, depois a Salve Rainha. Mas aquellas orações, que ella recitava em pequena, não a consolavam; sentia que eram sons inertes que não iam mais alto no caminho do céo que a sua mesma respiração; não as comprehendia bem, nem se applicavam ao seu caso: Deus por ellas, nunca poderia saber o que ella pedia, alli, prostrada na afflicção. Quereria fallar a Deus, abrir-se toda a elle: mas com que linguagem? Com as palavras triviaes, como se fallasse a Leopoldina? Iriam as suas confidencias tão longe, que o alcançassem? Estaria elle tão perto, que a ouvisse? E ficou ajoelhada, os braços molles, as mãos cruzadas no regaço, olhando as velas de cera tristes, os bordados desbotados do frontal, a carinha rosada e redonda d'um menino Jesus!
Lentamente perdeu-se n'um scismar que ella não dirigia, que se formava e se movia no seu cerebro, como a fluctuação d'um fumo que se eleva. Pensava no tempo tão distante, em que, por melancolia e por sentimentalidade, frequentava mais as igrejas. Ainda a mamã vivia então; e ella, com o coração quebrado -- quando o outro, Bazilio, lhe escrevera, rompendo -- procurava dissipar a sua tristeza nas consolações da devoção. Uma amiga sua, a Joanna Silveira, fôra por esse tempo professar a França: e ella ás vezes lembrava-se de partir tambem, ser irmã de caridade, levantar os feridos nos campos de batalha, ou viver na paz d'uma cella mystica! Que differente a sua vida teria sido -- d'esta agora tão alvoroçada de cólera, e tão carregada de peccado!... Onde estaria? Longe, n'algum mosteiro antigo, entre arvoredos escuros, n'um valle solitario e contemplativo: na Escocia, talvez, paiz que ella sempre amára desde as suas leituras de Walter Scott. Podia ser nas verde-negras terras de Lamermoor ou de Glencoe, n'alguma velha abbadia saxonia. Em redor os montes cobertos d'abetos, esbatidos nas nevoas, isolam aquelles retiros n'uma paz funeraria: n'um céo saudoso, as nuvens passam devagar, com recolhimento: nenhum som festivo quebra a meiga taciturnidade das cousas: revoadas de corvos cortam á tarde o ar n'um vôo triangular. Alli viveria entre as monjas d'alta estatura e olhar celtico, filhas de duques normandos, ou de lords de clans convertidos a Roma: leria livros dôces e cheios das cousas do céo: sentada na estreita janella da sua cella, veria passar nas mattas baixas os altos paus dos veados, ou pelas tardes vaporosas escutaria o som distante da bagpipe, que vai tristemente tocando o pastor que vem dos valles de Callendar: e todo o ar estaria cheio do murmurio choroso e gottejante dos fios d'agua, que por entre as relvas escuras cahem de rocha em rocha!
Ou então seria outra existencia mais regalada, no convento pacato d'uma boa provincia portugueza. Alli os tectos são baixos; as paredes caiadas faiscam ao sol, com as suas gradesinhas devotas; os sinos repicam no vivo ar azul; em roda, nos campos d'oliveiras que dão azeite para o convento, raparigas varejam a azeitona cantando; no pateo lageado d'uma pedra miudinha as mulas do almocreve, sacudindo a mosca, batem com a ferradura: matronas cochicham ao pé da roda; um carro chia na estrada empoeirada e branca; gallos cacarejam, brilhando ao sol; e freiras gordinhas, d'olho negro, chalram nos frescos corredores.
Alli viveria, engordando, com uma quebrasinha de somno á hora do côro, bebendo copinhos de licôr de rosa no quarto da madre-escrivã, copiando receitas de dôces com uma letra garrafal; morreria velha, ouvindo as andorinhas cantar á beira da sua grade; e o senhor bispo na sua visita, com a pitada nos seus dedos brancos, ouviria sorrindo da bocca da madre abbadessa a historia edificante da sua santa morte...
Um sacristão, que passava, escarrou fortemente; e, como um bando de passaros que se cala a um ruido brusco, todos os seus sonhos fugiram. Suspirou, ergueu-se devagar, foi indo para casa, triste.
Foi Juliana quem veio abrir, e logo no corredor, com a voz supplicante e baixa:
-- A senhora por quem é perdôe, que depois estava douda! Estava com a cabeça perdida, não tinha dormido nada toda a noite. Fiquei mais afflicta...
Luiza não respondeu, entrou na sala. Sebastião que vinha jantar, tocava a serenata de D. Juan -- e apenas ella appareceu:
-- D'onde vem, tão pallida?
-- Debilidade, Sebastião, venho da igreja...
Jorge entrava do escriptorio com uns papeis na mão:
-- Da igreja! -- exclamou -- Que horror!
XII
Foi por esse tempo que, n'um sabbado, o Diario do Governo publicou a nomeação do conselheiro Accacio ao grau de cavalleiro da ordem de S. Thiago, attendendo aos seus grandes merecimentos litterarios, ás obras publicadas de reconhecida utilidade, e mais partes...
Na noite seguinte, ao entrar em casa de Jorge, todos o cercaram, felicitando-o com alarido; o Conselheiro, depois de os abraçar um por um, n'uma pressão nervosa e commovida, cahiu no sophá, exhausto, e murmurou:
-- Não o esperava tão cedo da real munificencia! Não o esperava tão cedo! -- E acrescentou, pondo a mão espalmada sobre o peito: -- Direi como o philosopho: Esta condecoração é o melhor dia da minha vida!
E convidou logo Jorge, Sebastião e Julião para um jantar na quinta-feira, «um modesto jantar de rapazes, no seu humilde tugurio, para festejarem a regia graça».
-- Ás cinco e meia, meus bons amigos!
Na quinta-feira, os tres, que se tinham encontrado na Casa Havaneza, eram introduzidos por uma rapariguita vesga, suja como um esfregão, na sala do Conselheiro. Um vasto canapé de damasco amarello occupava a parede do fundo, tendo aos pés um tapete onde um chileno roxo caçava ao laço um bufalo côr de chocolate; por cima uma pintura tratada a tons côr de carne, e cheia de corpos nús cobertos de capacetes, representava o valente Achilles arrastando Heitor em torno dos muros de Troya. Um piano de cauda, mudo e triste sob a sua capa de baeta verde, enchia o intervallo das duas janellas. Sobre uma mesa de jogo, entre dous castiçaes de prata, uma galguinha de vidro transparente galopava; e o objecto em que se sentia mais o calor do uso era uma caixa de musica de 18 peças!
O Conselheiro recebeu-os, com o habito de S. Thiago sobre a lapella do frac preto. Havia outro sujeito na sala, o snr. Alves Coutinho. Era picado das bexigas, tinha a cabeça muito enterrada nos hombros; quando o seu olhar parvo se fixava nas pessoas, com pasmo, o seu bigode pellado arreganhava-se logo por habito, n'um sorriso alvar que mostrava uma bocca medonha cheia de dentes pôdres; fallava pouco, esfregava sempre as mãos, concordava em tudo; havia n'elle o ar d'um deboche banal, e d'um embrutecimento antigo. Era um empregado do ministerio do reino, illustre pela sua boa letra.
D'ahi a pouco entrou a figura conhecida do Savedra, redactor do Seculo. A sua face branca parecia mais balofa; o bigode muito preto reluzia de brilhantina; as lunetas d'ouro accentuavam o seu tom official: trazia ainda no queixo o pó d'arroz, que lhe pozera momentos antes o barbeiro; e a mão, que escrevia tanta banalidade e tanta mentira, vinha aperreada n'uma luva nova, côr de gema d'ovo!
-- Estamos todos! -- disse com jubilo o Conselheiro. E curvando-se: -- Bemvindos, meus amigos! Estamos talvez mais á vontade no meu quarto de estudo! Por aqui. Ha um degrau, cuidado! Eis o meu Sanctus Sanctorum!
N'uma saleta muito espanejada a que as cortinas de cassa, a luz de duas janellas de peitoril, e o papel claro davam um aspecto alvadio, estava a larga escrivaninha de trabalho, com um tinteiro de prata, os lapis muito aparados, as regoas bem dispostas. Via-se o sinete d'armas do Conselheiro, pousado sobre a Carta Constitucional ricamente encadernada. Encaixilhada, na parede, pendia a carta regia que o nomeára Conselheiro; defronte uma lithographia d'El-Rei; e sobre uma mesa, era eminente o busto em gesso de Rodrigo da Fonseca Magalhães, tendo no alto da cabeça uma corôa de perpetuas -- que ao mesmo tempo o glorificava e o chorava.
Julião pozera-se logo a examinar a livraria.
-- Prezo-me de ter os authores mais illustres, amigo Zuzarte! -- disse com orgulho o Conselheiro.
Mostrou-lhe a Historia do consulado e do imperio, as obras de Delille, o Diccionario da conversação, a ediçãosinha bojuda da Encyclopedia Roret, o Parnaso lusitano. Fallou dos seus trabalhos; e acrescentou que, vendo alli reunidas pessoas de tão subida illustração, desejaria muito lêr-lhes algumas das provas que estava revendo do seu novo livro -- Descripção das principaes cidades do reino e seus estabelecimentos, para ouvir a opinião d'elles, desassombrada e severa!
-- Se não acham massada...
-- Prazer, Conselheiro! prazer!
Escolheu então «como mais propria para dar idéa da importancia do trabalho» a pagina relativa a Coimbra. Assoou-se, collocou-se no meio da saleta, de pé, com as folhas na mão, e, com uma voz cheia, gestos pausados, leu:
« -- ...Reclinada mollemente na sua verdejante collina, como odalisca em seus aposentos, está a sabia Coimbra, a Lusa Athenas. Beija-lhe os pés, segredando-lhe d'amor, o saudoso Mondego. E em seus bosques, no bem conhecido salgueiral, o rouxinol e outras aves canoras soltam seus melancolicos trilos. Quando vos aproximaes pela estrada de Lisboa, onde outr'ora uma bem organisada mala-posta fazia o serviço que o progresso hoje encarregou á fumegante locomotiva, vêdel-a branquejando, coroada do edificio imponente da Universidade, asylo da sabedoria. Lá campêa a torre com o sino, que em sua folgazã linguagem a mocidade estudiosa chama a cabra. Para além logo uma copada arvore vos attrahe as vistas: é a celebrada arvore dos Dorias, que dilata seus seculares ramos no jardim d'um dos membros d'esta respeitavel familia. E avistaes logo, sentados nos parapeitos da antiga ponte, em seus innocentes recreios, os briosos moços, esperança da patria, ou requebrando galanteios com as ternas camponezas que passam reflorindo de mocidade e frescura, ou revolvendo em suas mentes os problemas mais arduos de seus bem elaborados compendios...»
-- Está a sôpa na mesa -- veio dizer uma criada, de avental branco, muito nutrida.
-- Muito bem, Conselheiro, muito bem! -- disse logo o Savedra do Seculo, erguendo-se. -- É admiravel!
Declarou para os lados com authoridade: «que o estylo era digno d'um Rebello ou d'um Latino, e que realmente estava-se precisando muito em Portugal d'uma obra daquelle quilate...» E pensava baixo: «Grandissima cavalgadura!...» O que era a sua apreciação generica de todas as obras contemporaneas -- exceptuando os seus artigos no Seculo.
-- Que lhe pareceu, meu bom amigo? -- perguntou baixo o Conselheiro a Julião, passando-lhe a mão sobre o hombro. -- Mas uma opinião desaffrontada, meu Zuzarte!
-- Snr. Conselheiro -- disse Julião com uma voz profunda -- tenho-lhe inveja! -- E as suas lunetas escuras fixavam-se com uma preoccupação crescente n'um chale-manta pardo, que a um canto cobria cuidadosamente, a julgar pelas saliencias, altas pilhas de livros. Que seria? -- Tenho-lhe inveja! -- repetiu -- E outra cousa, Conselheiro, não se me dava de lavar as mãos.
Accacio levou-o logo ao seu quarto, e retirou-se discretamente. Julião, sempre curioso, observou, surprehendido, duas grandes lithographias aos lados da cama -- um Ecce Homo! e a Virgem das sete Dôres. O quarto era esteirado, o leito baixo e largo. Abriu então a gavetinha da mesa de cabeceira, e viu, espantado, uma touca e o volume brochado das poesias obscenas de Bocage! Entreabriu os cortinados fechados; e teve a consolação de verificar, -- que havia sobre o travesseiro duas fronhasinhas chegadas d'um modo conjugal e terno!
Apenas elle sahiu do quarto, limpando as unhas com o lenço, o Conselheiro conduziu-os á sala de jantar, dizendo, jovialmente:
-- Não esperem o festim de Lucullo: é apenas o modesto passadio d'um humilde philosopho!
Mas o Alves Coutinho extasiou-se sobre a abundancia das travessas de dôce; havia creme crestado a ferro d'engomar, um prato d'ovos queimados, aletria com as iniciaes do Conselheiro desenhadas a canella.
-- É um grande dia para Sebastião! -- disse Jorge.
O Alves Coutinho voltou-se logo para Sebastião, esfregando as mãos, com um riso na face amarella:
-- É cá dos meus, hein? Gosta do bello dôce! Tambem me péllo, tambem me péllo!...
Houve então um silencio. As colheres de prata, remexendo devagar a sopa muito quente, agitavam os longos canudos brancos e molles do macarrão.
O Conselheiro disse:
-- Não sei se gostarão da sopa. Eu adoro o macarrão!
-- Gosta do macarrão? -- acudiu o Alves.
-- Muito, meu Alves. Lembra-me a Italia! -- E acrescentou: -- Paiz que sempre desejei vêr. Dizem-me que as suas ruinas são de primeira ordem. Póde ir trazendo o cozido, snr.a Philomena... -- Mas detendo-a, com um gesto grave: -- Perdão, com franqueza, preferem o cozido ou o peixe? É um pargo.
Houve uma hesitação, Jorge disse:
-- O cozido talvez.
E o Conselheiro com affecto:
-- O nosso Jorge opina pelo cozido.
-- Tambem estou pela sua! -- exclamou o Alves Coutinho, voltado para Jorge, com o olho afogado em reconhecimento: -- O cozidinho!
E o Conselheiro que julgava do seu dever dar á conversação nobreza e interesse, disse, limpando devagar o bigode da gordura da sopa:
-- Dizem-me que é muito liberal a constituição da Italia!
Liberal! Segundo Julião, se a Italia fosse liberal, devia ter ha muito expulso a coronhadas o papa, o sacro collegio, e a sociedade de Jesus!
O Conselheiro pediu, com bondade, a benevolencia do amigo Zuzarte para o «chefe da Igreja».
-- Não -- explicou -- que eu seja um sectario do Syllabus. Não que eu queira vêr os jesuitas enthronisados no seio da familia! Mas -- e a sua voz tornou-se profunda -- o respeitavel prisioneiro do Vaticano é o vigario de Christo! Meu Sebastião, sirva o arroz!
Não havia que estranhar aquellas opiniões catholicas do Conselheiro, ia observando Julião, porque tinha duas imagens de santos pendentes á cabeceira da cama...
A calva d'Accacio fez-se rubra. O Savedra do Seculo exclamou com a bocca cheia:
-- Não o sabia carola, Conselheiro!
Accacio, afflicto, suspendeu o trinchador sobre o paio escarlate, e acudiu:
-- Eu peço ao meu Savedra que não tire d'esse facto illações erradas. Os meus principios são bem conhecidos. Não sou ultramontano, nem faço votos pelo restabelecimento da perseguição religiosa. Sou liberal. Creio em Deus. Mas reconheço que a religião é um freio...
-- Para os que o precisam -- interrompeu Julião.
Riram; o Alves Coutinho torcia-se. O Conselheiro interdicto respondeu, devagar, dispondo na travessa as rodelas do paio:
-- Não o precisamos nós de certo, que somos as classes illustradas. Mas precisa-o a massa do povo, snr. Zuzarte. Senão veriamos augmentar a estatistica dos crimes.
E o Savedra do Seculo, erguendo as sobrancelhas, com a physionomia muito séria:
-- Pois olhe que diz uma grandissima verdade. -- Repetiu a maxima, modificando-a: -- A religião é um bridão! -- Fazia com o gesto o esforço de conter uma mula. E pediu mais arroz. Devorava.
O Conselheiro continuava, explicando:
-- Como dizia, sou liberal, mas entendo que algumas lithographias ou gravuras, allusivas ao mysterio da Paixão, tem o seu lugar n'um quarto de cama, e inspiram de certo modo sentimentos christãos. Não é verdade, meu Jorge?
Mas o Savedra interrompeu ruidosamente, com a face accesa n'uma jovialidade libertina:
-- Eu, n'um quarto de dormir, as unicas pinturas que admitto são uma bella nympha núa, ou uma bacchante desenfreada!
-- Isso, isso! -- bradou o Alves Coutinho. A bocca dilatava-se-lhe n'uma admiração sensual. -- Este Savedra! Este Savedra! -- E baixo para Sebastião: -- Tem um talento! Tem um talento!
O Conselheiro voltou-se para Julião, e puxando o guardanapo para o estomago:
-- Espero que não sejam esses os paineis immoraes, que se vêem no seu gabinete d'estudo.
Julião emendou:
-- No meu cubiculo. Ah! não, Conselheiro! Tenho apenas duas lithographias -- uma é um homem sem pelle para representar o systema arterial, o outro é o mesmo individuo igualmente sem pelle para se vêr o systema nervoso.
O Conselheiro teve com a sua mão branca um vago gesto enojado, e exprimiu a opinião -- que na medicina, aliás uma grande sciencia! havia cousas bastante asquerosas. Assim, ouvira dizer que nos theatros anatomicos, os estudantes d'idéas mais avançadas levavam o seu desprezo pela moral até atirarem uns aos outros, brincando, pedaços de membros humanos, pés, coxas, narizes...
-- Mas é como quem mexe em terra, Conselheiro! -- disse Julião, enchendo o copo -- é materia inerte!
-- E a alma, snr. Zuzarte?... -- exclamou o Conselheiro. Fez um gesto de vaga reticencia; e julgando tel-o aniquilado com aquella palavra suprema, abriu para Sebastião um sorriso cortez e protector:
-- E que diz o nosso bondoso Sebastião?
-- Estou a ouvir, snr. Conselheiro.
-- Não dê ouvidos a estas doutrinas! -- Com o garfo mostrava a figura biliosa de Julião. -- Mantenha a sua alma pura. São perniciosas. Que o nosso Jorge (o que é de lamentar n'um homem estabelecido e empregado do Estado) tambem vai um pouco para estas exagerações materialistas!
Jorge riu; affirmou que sim, que tinha essa honra...
-- Então o Conselheiro quer que eu, um engenheiro, um estudante de mathematica, acredite que ha almas que vivem no céo, com azinhas brancas, tunicas azues, e tocando instrumentos?
O Conselheiro acudiu:
-- Não, instrumentos não! -- E como appellando para todos: -- Não creio que tivesse fallado em instrumentos. Os instrumentos são uma exageração. São, podemos dizel-o, tacticas do partido reaccionario...
Ia fulminar a doutrina ultramontana -- mas a snr.a Philomena collocou-lhe diante a travessa com a perna de vitella assada. Compenetrou-se logo do seu dever, afiou o trinchador com solemnidade, foi cortando fatias finas, com a testa muito franzida como na applicação d'uma funcção grave. Então Julião, pousando os cotovêlos sobre a mesa, e escabichando os dentes com a unha, perguntou:
-- E o ministerio, cahe ou não cahe?
Sebastião ouvira dizer no vapor d'Almada, de tarde, que «a situação estava firme».
Mas o Savedra esvaziou o copo, limpou os beiços e declarou que em duas semanas «estavam em terra». Nem aquelle escandalo podia continuar! Não tinham a mais pequena idéa de governo. Nem a mais leve! Assim, por exemplo, elle... -- E metteu as mãos nos bolsos, firmando-se nas costas da cadeira -- Elle tinha-os apoiado, não é verdade? E com lealdade. Porque era leal! Sempre o fôra em politica! Pois bem, não lhe tinham despachado o primo recebedor d'Aljustrel, tendo-lh'o promettido! e nem lhe tinham dado uma satisfação. Assim não era possivel fazer politica! Era uma collecção de idiotas!
Jorge alegrava-se que viessem outros; talvez lhe dessem de novo a sua commissão no ministerio; e elle o que queria era estar quieto ao seu cantinho...
O Alves Coutinho calava-se, com prudencia, engulindo buchas de pão.
-- Eu que caiam, ou que fiquem -- disse Julião -- que venham estes, ou que venham aquelles... Obrigado, Conselheiro -- e recebeu o seu prato de vitella -- ...é-me inteiramente indifferente. É tudo a mesma podridão! O paiz inspirava-lhe nojo; de cima a baixo era uma choldra: e esperava breve que, pela logica das cousas, uma revolução varresse a porcaria...
-- Uma revolução! -- fez o Alves Coutinho, assustado, com olhares inquietos para os lados, coçando nervosamente o queixo.
O Conselheiro sentára-se, e disse, então:
-- Eu não quero entrar em discussões politicas, só servem para dividir as familias mais unidas, mas só lhe lembrarei, snr. Zuzarte, uma cousa, os excessos da Communa...
Julião recostou-se, e com uma voz muito tranquilla:
-- Mas onde está o mal, snr. Conselheiro, se fuzilarmos alguns banqueiros, alguns padres, alguns proprietarios obesos, e alguns marquezes cacheticos! Era uma limpezasinha!... -- E fazia o gesto d'afiar a faca.
O Conselheiro sorriu, cortezmente; tomava como um gracejo aquella sahida sanguinaria.
O Savedra porém interpoz-se, com authoridade:
-- Eu no fundo sou republicano...
-- E eu -- disse Jorge.
-- E eu -- fez o Alves Coutinho, já inquieto. -- Contem-me a mim tambem!
-- Mas -- continuou o Savedra -- sou-o em principio. Porque o principio é bello, o principio é ideal! Mas a pratica? Sim, a pratica? -- E voltava para todos os lados a sua face balofa.
-- Sim, na pratica! -- exclamava o Alves Coutinho, em echo admirativo.
-- A pratica é impossivel! -- declarou o Savedra. E encheu a bocca de vitella.
O Conselheiro então resumiu:
-- A verdade é esta: o paiz está sinceramente abraçado á familia real... Não acha, meu bom Sebastião? -- Dirigia-se a elle, como proprietario e possuidor d'inscripções.
Sebastião, interpellado, córou, declarou que não entendia nada de politica; havia todavia factos que o affligiam; parecia-lhe que os operarios eram mal pagos; a miseria crescia; os cigarreiros, por exemplo, tinham apenas de nove a onze vintens por dia, e, com familia, era triste...
-- É uma infamia -- disse Julião, encolhendo os hombros.
-- E ha poucas escólas... -- observou timidamente Sebastião.
-- É uma torpeza! -- insistiu Julião.
O Savedra calava-se, occupado com o alimento; tinha desabotoado a fivela do collete; espalhava-se-lhe no rosto gordo uma côr d'enfartação, e sorria vagamente, inchado.
-- E os idiotas de S. Bento?... -- exclamou Julião.
Mas o Conselheiro interrompeu-o:
-- Meus bons amigos, fallemos d'outra cousa. É mais digno de portuguezes e de subditos fieis.
E voltando-se logo para Jorge, quiz saber como ficára a interessante D. Luiza?
Estava um pouco adoentada havia dias -- disse Jorge. -- Mas não era nada, mudança d'estação, um bocadito d'anemia...
O Savedra pousando o copo, e comprimentando:
-- Tive o prazer de a vêr passar este verão quasi todas as manhãs por minha casa -- disse. -- Ia para os lados d'Arroios. Ás vezes de trem, ás vezes a pé...
Jorge pareceu um pouco surprehendido; mas o Conselheiro ia dizendo quanto lhe pezava não ter o prazer de a vêr partilhar d'aquelle modesto repasto; como celibatario porém... não tendo uma esposa para fazer as honras...
-- E é o que eu admiro, Conselheiro -- observou Julião -- é que tendo uma casa tão confortavel, não se tenha casado, não se tenha dado o conchego d'uma senhora...
Todos apoiaram. Era verdade! O Conselheiro devia-se ter casado.
-- São graves, perante Deus e perante a sociedade, as responsabilidades d'um chefe de familia -- considerou elle.
Mas emfim -- disseram -- é o estado mais natural. E depois, que diabo, ás vezes havia de se sentir só! E n'uma doença! Sem contar a alegria que dão os filhos!...
O Conselheiro objectou: «os annos, as neves da fronte...»
Tambem ninguem lhe dizia que fosse casar com uma rapariga de quinze annos! Não, era arriscado. Mas com uma pessoa de certa idade que tivesse attractivos, cuidados de interior... Era mesmo moral.
-- Porque emfim, Conselheiro, a natureza, é a natureza! -- disse Julião com malicia.
-- Ha muito, meu amigo, que se apagou dentro em mim o fogo das paixões.
Ora qual! era um fogo que nunca se extinguia! Que diabo! era impossivel que o Conselheiro, apesar dos seus cincoenta e cinco, fosse indifferente a uns bellos olhos pretos, a umas fórmasinhas redondas!...
O Conselheiro córava. E o Savedra declarou, com um circumloquio pudico -- que nenhuma idade se eximia á influencia de Venus. Toda a questão é nos gostos -- disse: -- aos quinze annos gosta-se d'uma matrona cheia, aos cincoenta d'um fructosinho tenro... Pois não é verdade, amigo Alves?
O Alves arregalou os olhos concupiscentes, e fez estalar a lingua.
E o Savedra continuou:
-- Eu, a minha primeira paixão foi uma visinha, mulher d'um capitão de navios, mãi de seis filhos, e que não cabia por aquella porta. Pois senhores, fiz-lhe versos, e a excellente creatura ensinou-me um par de cousas agradaveis... Deve-se começar cedo, não é verdade? -- E voltou-se para Sebastião.
Quizeram então saber as opiniões de Sebastião -- que se fez escarlate.
Por fim, muito solicitado, disse com timidez:
-- Eu acho que se deve casar com uma rapariga de bem, e estimal-a toda a vida...
Aquellas palavras simples produziram um curto silencio. Mas o Savedra, reclinando-se, classificou uma tal opinião de «burgueza»; o casamento era um fardo; não havia nada como a variedade...
E Julião expôz dogmaticamente:
-- O casamento é uma formula administrativa, que ha-de um dia acabar... -- De resto, segundo elle, a femea era um ente subalterno; o homem deveria aproximar-se d'ella em certas épocas do anno (como fazem os animaes, que comprehendem estas cousas melhor que nós), fecundal-a, e afastar-se com tedio.
Aquella opinião escandalisou a todos, sobretudo o Conselheiro que a achou «d'um materialismo repugnante».
-- Essas femeas para quem é tão severo, snr. Zuzarte -- exclamava elle -- essas femeas são nossas mães, nossas carinhosas irmãs, a esposa do Chefe do Estado, as damas illustres da nobreza...
-- São o melhor bocadinho d'este valle de lagrimas -- interrompeu com fatuidade o Savedra, dando palmadinhas sobre o estomago. Dissertou então sobre as mulheres. O que sobretudo lhes exigia era um bonito pé; não havia nada como um pésinho catita! E a todas preferia a mulher hespanhola!
O Alves votava pelas francezas: citava algumas do Café Concerto, creaturas de fazer perder a cabeça!... -- E injectavam-se-lhe os olhos.
O Savedra disse com um trejeito hostil:
-- Sim, para um bocado de can-can... Para o can-can não ha como as francezas... Mas muito chupistas!
O Conselheiro affirmou ageitando as lunetas:
-- Viajantes instruidos teem-me afiançado que as inglezas são notaveis mães de familia...
-- Mas frias como esta madeira -- disse o Savedra, batendo no mesa. -- Mulheres de gêlo! -- E reclamava hespanholas! Queria fogo! Queria salero! Tinha o olho brilhante do vinho; a comida accendia-lhe o sentimento!
-- Uma bella gaditana, hein, amigo Alves?
Mas em presença dos dôces que a snr.a Philomena dispôz sobre a mesa, o Alves Coutinho esquecera as mulheres, e, voltado para Sebastião, discutia gulodices. Indicava as especialidades: Para os folhados, o Cócó! Para as natas, o Baltresqui! Para as gelatinas, o largo de S. Domingos! Dava receitas; contava proezas de lambarice, revirando os olhos:
-- Porque -- dizia -- o docinho e a mulherzinha é o que me toca cá por dentro a alma.
Era: todo o tempo que não dedicava ao serviço do Estado, dividia-o, com solicitude, entre as confeitarias e os lupanares.
Savedra e Julião discutiam a imprensa. O redactor do Seculo gabava a profissão de jornalista -- quando a gente, já sabe, tem alguma cousa de seu; mais tarde ou mais cedo apanha-se um nicho, não é verdade? Depois as entradas nos theatros, a influencia nas cantoras. Sempre se é um bocado temido...
E o Conselheiro, cortando os ovos queimados, saboreando as alegrias da convivencia, dizia a Jorge:
-- Que maior prazer, meu Jorge, que passar assim as horas entre amigos, todos de reconhecida illustração, discutir as questões mais importantes, e vêr travada uma conversação erudita?... Parecem excellentes os ovos.
A snr.a Philomena, então, com solemnidade, veio collocar-lhe ao pé uma garrafa de champagne.
O Savedra pediu logo para a abrir, porque o fazia com muito chic. E apenas a rolha saltou, e, no silencio que creou a ceremonia, se encheram os copos, o Savedra, que ficára de pé, disse:
-- Conselheiro!
Accacio curvou-se, pallido.
-- Conselheiro, é com o maior prazer que bebo, que todos bebemos, á saude d'um homem, que -- e arremessando o braço, deu um puxão ao punho da camisa com eloquencia -- pela sua respeitabilidade, a sua posição, os seus vastos conhecimentos, é um dos vultos d'este paiz. Á sua saude, Conselheiro!
-- Conselheiro! Conselheiro! Amigo Conselheiro!
Beberam com ruido. Accacio, depois de limpar os beiços, passou a mão tremula pela calva, levantou-se commovido, e começou:
-- Meus bons amigos! Eu não me preparei para esta circumstancia. Se o soubesse d'antemão, teria tomado algumas notas. Não tenho a verbosidade dos Rodrigos ou dos Garretts. E sinto que as lagrimas me vão embargar a voz...
Fallou então de si, com modestia: reconhecia, quando via na capital tão illustres parlamentares, oradores tão sublimes, tão consummados estylistas, reconhecia que era um Zero! -- E com a mão erguida formava no ar, pela junção do pollegar e do indicador, um 0: um zero! Proclamou o seu amor á patria: que ámanhã as instituições ou a familia real precisassem d'elle -- e o seu corpo, a sua penna, o seu modesto peculio, tudo offerecia de bom grado! Quereria derramar todo o seu sangue pelo throno! -- E, prolixo, citou o Eurico, as instituições da Belgica, Bocage e passagens dos seus prologos. Honrou-se de pretencer á Sociedade Primeiro de Dezembro... -- N'esse dia memoravel -- exclamou -- eu mesmo illumino as minhas janellas, sem o luxo dos grandes estabelecimentos do Chiado, mas com uma alma sincera!
E terminou dizendo: -- Não esqueçamos, meus amigos, como portuguezes, de fazer votos pelo illustrado monarcha, que deu ás neves da minha fronte, antes de descerem ao tumulo, a consolação de se poderem revestir com o honroso habito de S. Thiago! Meus amigos, á familia real! -- e ergueu o copo -- á familia modêlo, que sentada ao leme do Estado, dirige, cercada dos grandes vultos da nossa politica, dirige... -- Procurou o fecho; havia um silencio ancioso -- dirige... -- Através das lunetas negras, os seus olhos cravavam-se, á busca da inspiração, na travessa d'aletria -- dirige... -- Coçou a calva, afflicto; mas um sorriso clareou-lhe o aspecto, encontrára a phrase; e estendendo o braço: -- ...dirige a barca da governação publica com inveja das nações visinhas! Á familia real!
-- Á familia real! -- disseram com respeito.
O café foi servido na sala. As velas d'estearina punham uma luz triste n'aquella habitação fria; o Conselheiro foi dar corda á caixa de musica; e, ao som do côro nupcial da Lucia, offereceu em redor charutos.
-- E a snr.a Adelaide póde trazer os licôres -- disse á Philomena.
Viram então apparecer uma bella mulher de trinta annos, muito branca, de olhos negros, e fórmas ricas, com um vestido de merino azul, trazendo n'uma bandeja de prata, onde tremelicavam copinhos, a garrafa de cognac e o frasco de curaçáo.
-- Boa moça! -- rosnou com o rosto acceso o Alves Coutinho.
Julião quasi lhe tapou a bocca com a mão. E fallando-lhe ao ouvido, olhando o Conselheiro, recitou:
Não ouses, temerario, erguer teus olhos
Para a mulher de Cesar!
E em quanto se bebia o curaçáo, Julião pé ante pé dirigiu-se ao escriptorio, e foi erguer a ponta do chale-manta pardo que tanto o preoccupava; eram rumas de livros brochados, atadas com guitas, -- as obras do Conselheiro, intactas!
Quando Jorge entrou, ás onze horas, Luiza já deitada lia, esperando-o.
Quiz saber do jantar do Conselheiro.
Excellente, contou Jorge, começando a despir-se. Gabou muito os vinhos. Tinha havido speechs... E de repente:
-- É verdade, onde ias tu a Arroios?
Luiza passou devagar as mãos sobre o rosto para lhe cobrir a alteração. Disse bocejando ligeiramente:
-- A Arroios?
-- Sim. O Savedra, um sujeito que estava em casa do Conselheiro, diz que te via passar todos os dias para lá, de trem e a pé.
-- Ah! -- fez Luiza, depois de tossir -- ia vêr a Guedes, uma rapariga que andou commigo no collegio, que tinha chegado do Porto. A Silva Guedes!
-- Silva Guedes!... -- disse Jorge reflectindo -- Imaginei que estava secretario geral em Cabo-Verde!
-- Não sei. Estiveram ahi um mez no verão. Moravam a Arroios. Ella estava doente, coitada: eu ia lá ás vezes. Mandava-me pedir para ir lá. Põe essa luz fóra, está-me a fazer impressão.
Queixou-se então que toda a tarde estivera exquisita. Sentia-se fraca, e com uma pontinha de febre...
E nos dias seguintes não se achou melhor. Queixava-se ainda vagamente de peso na cabeça, mal estar... Uma manhã mesmo ficou de cama. Jorge não sahiu, inquieto, querendo já mandar chamar Julião. Mas Luiza insistiu que «não era nada, um bocadito de fraqueza, talvez...»
Foi tambem a opinião de Juliana, em cima na cozinha.
-- Que aquella senhora é fraca; alli ha cousa do peito -- disse com importancia.
Joanna que estava debruçada sobre o fogão, acudiu logo:
-- O que ella é, é uma santa!...
Juliana cravou-lhe nas costas um olhar rancoroso. E com um risinho:
-- A snr.a Joanna diz isso como se as outras fossem uma peste.
-- Que outras?
-- Eu, vossemecê, a mais gente...
Joanna sempre remexendo nas panellas sem se voltar:
-- Olhe, outra não encontra vossemessê, snr.a Juliana! Uma senhora que lhe deixa fazer tudo o que quer, e faz ella mesma o serviço! N'outra dia andava a despejar as aguas. É uma santa!
Aquelle tom hostil de Joanna exasperou-a; mas conteve-se; apesar da sua posição na casa, dependia d'ella para os caldinhos, os bifes, os petiscos; tinha diante d'ella a vaga timidez respeitosa das constituições franzinas pelos corpos possantes; pôz-se a dizer com uma voz tortuosa, ambigua:
-- Ora! -- são genios! Gosta d'arrumar. Ah, lá isso deve-se dizer, é senhora de muita ordem. Mas gosta, gosta de trabalhar. Ás vezes basta-lhe vêr um bocadinho de pó, agarra logo no espanador... É genio. Tenho visto outras assim... -- E punha a cabeça de lado, franzindo os beiços.
-- O que ella é, é uma santa -- repetiu a Joanna.
-- É genio! Está sempre n'uma labutação. Eu nunca sáio sem deixar tudo n'um brinco. Pois senhores, nunca está satisfeita. Até n'outro dia, lá em baixo a passar a roupa... Eu ia a sahir, pois tirei logo o chapéo, e não consenti... Olhe, quer que lhe diga? falta de cuidados, não ter filhos... Que ella não lhe falta nada...
Calou-se, remirou o pé, e com satisfação:
-- Nem a mim -- disse reclinando-se na cadeira.
A Joanna pôz-se a cantarolar. Não queria «questões». Mas ultimamente achava «tudo aquillo muito fóra dos eixos», a Juliana sempre na rua, ou mettida no quarto a trabalhar para si, sem se importar, deixando tudo ao Deus dará, e a pobre senhora a varrer, a passar, a emmagrecer! Não, alli havia cousa! Mas o seu Pedro que ella consultára, disse-lhe com finura, retorcendo o buço: -- Ellas lá se entendem! Trata tu de gozar, e não te importes com a vida dos outros. A casa é boa, toca a tirar partido!
Mas Joanna sentia «lá por dentro» a crescer-lhe uma embirração pela snr.a Juliana. Tinha-lhe asca pelas tafularias, pelos luxos do quarto, pelas passeatas todo o dia, pelos modos de madama; não se recusava a fazer-lhe o serviço, porque isso lhe rendia presentinhos da senhora; mas, quê, tinha-lhe birra! O que a consolava era a idéa de que um piparote desfazia aquella magricella! e ia tirando partido da casa, tambem. O Pedro tinha razão...
Juliana com effeito, agora, não se constrangia. Depois da «scena da roupa», assustára-se, porque, emfim, o escandalo podia-lhe fazer perder a posição; durante alguns dias não sahiu, foi cuidadosa: mas quando viu Luiza resignar-se, abandonou-se logo, quasi com fervor, ás satisfações da preguiça e ás alegriasinhas da vingança. Passeava, costurava fechada no seu quarto, e a Piorrinha que se arranjasse! Diante de Jorge ainda se continha: temia-o. Mas apenas elle sahia! Que desforra! Ás vezes estava varrendo ou arrumando -- e, mal o sentia fechar a cancella, atirava o ferro, a vassoura, punha-se a «panriar». Lá estava a Piorrinha, para acabar!
Luiza, no entanto, passava peor: tinha de repente, sem razão, febres ephemeras; emmagrecia, e as suas melancolias torturavam Jorge.
Ella explicava tudo pelo nervoso.
-- Que será, Sebastião? -- era a pergunta incessante de Jorge. E lembrava-se com terror que a mãi de Luiza morrera d'uma doença de coração!
Na rua, pela cozinheira, pela tia Joanna, sabia-se que a do Engenheiro «ia mal». A tia Joanna jurava que era a solitaria. Porque emfim, uma pessoa a quem não faltava nada, com um marido que era um anjo, uma boa casa, todos os seus commodos -- e a esmorecer, a esmorecer... Era a bicha! Não podia ser senão a bicha! E todos os dias lembrava a Sebastião que se devia mandar chamar o homem de Villa Nova de Famalicão, que tinha o remedio «para a bicha».
O Paula explicava d'outro modo.
-- Alli anda cousa de cabeça -- dizia, franzindo a testa, com o ar profundo. -- Sabe o que ella tem, snr.a Helena? É muita dóse de novellas n'aquella cachimonia. Eu vejo-o de pela manhã até á noite de livro na mão. Põe-se a lêr romances e mais romances... Ahi teem o resultado: arrazada!
Um dia Luiza de repente, sem razão, desmaiou; e quando voltou a si ficou muito fraca, com o pulso sumido, os olhos cavados. Jorge foi logo buscar Julião: encontrou-o muito agitado, porque o concurso era para o dia seguinte, e «sentia cólicas».
Durante todo o caminho não deixou de fallar excitadamente da sua these, do escandalo dos patrocinatos, do barulho que faria se fossem injustos, -- arrependido agora de não ter «mettido mais cunhas»!
Depois de ter examinado Luiza veio dizer, furioso, a Jorge:
-- Não tem nada! E vaes-me buscar p'ra isto! Tem anemia, o que todos temos. Que passeie, que se distráia. Distracções e ferro, muito ferro... E agua fria, agua fria p'ra cima d'aquella espinha!
Como eram cinco horas, convidou-se para jantar, deblaterando toda a tarde contra o paiz, amaldiçoando a carreira medica, injuriando o seu concorrente, e fumando com desespero os charutos de Jorge.
Luiza tomava o ferro, mas recusava as distracções; fatigava-a vestir-se, aborrecia-lhe ir ao theatro... Depois, logo que viu Jorge preoccupar-se do seu estado, quiz affectar força, alegria, bom humor; e aquelle esforço abatia-a, extraordinariamente.
-- Vamos para o campo, queres tu? -- dizia-lhe Jorge desolado, vendo-a esmorecida.
Ella, receando complicações possiveis, não aceitava; não se sentia bastante forte, dizia: onde estava mais confortavel que em casa? Depois as despezas, os incommodos...
Uma manhã, que Jorge voltára a casa inesperadamente, encontrou-a em robe-de-chambre, com um lenço amarrado na cabeça, varrendo, lugubremente.
Ficou á porta attonito:
-- Que andas tu a fazer? andas a varrer?
Ella córou muito, atirou logo a vassoura, veio abraçal-o.
-- Não tinha que fazer... Deu-me a mania da limpeza... Estava aborrecida, além d'isso faz-me bem, é um exercicio.
Jorge, á noite, contou a Sebastião aquella «tolice, de se andar a esfalfar...»
-- Uma pessoa que está tão fraca, minha senhora... -- observou reprehensivamente Sebastião.
Mas não! dizia ella, achava-se bem melhor! Até agora andava muito melhor...
Todavia, quasi não fallou n'essa noite, curvada sobre o seu crochet, um pouco pallida: e os seus olhos ás vezes erguiam-se com uma fadiga triste, sorrindo silenciosamente, d'um modo desconsolado.
Pediu a Sebastião que tocasse algum cousa do Requiem de Mozart. Achava tão lindo! Gostava que lh'o cantassem na igreja quando ella morresse...
Jorge zangou-se. Que mania de fallar em cousas ridiculas!
-- Mas então, não é possivel que eu morra?...
-- Pois bem, morre e deixa-nos em paz! -- exclamou elle furioso.
-- Que bom marido! -- dizia ella sorrindo a Sebastião. -- Deixou cahir o crochet no regaço, pediu-lhe então os Dezeseis compassos da Africana. Escutava, com a cabeça apoiada á mão: aquelles sons entravam-lhe na alma com a doçura de vozes mysticas que a chamavam; parecia-lhe que ia levada por ellas, se desprendia de tudo o que era terrestre e agitado, se achava n'uma praia deserta, junto ao mar triste, sob um frio luar -- e alli, puro espirito, livre das miserias carnaes, rolava nas ondulações do ar, tremia nos raios luminosos, passava sobre as urzes nos sopros salgados...
A melancolica attitude do seu corpo abatido enfureceu Jorge:
-- Ó Sebastião, fazes-me favor de tocar o fandango, o Barba Azul, o Pirolito, o diabo? Senão, se querem melancolia, eu começo com o canto-chão!
E cantou, com um tom funebre:
Dies iræ, dies illa
Solvunt sæcula in favilla!...
Luiza riu-se:
-- Que doudo! Nem póde a gente estar triste...
-- Póde! -- exclamou Jorge. -- Mas então venha a bella tristeza, venha a tristeza completa. -- E com uma voz medonha entoou o Bemdito!
-- Os visinhos hão-de dizer que estamos doudos, Jorge -- acudiu ella.
-- É justamente o que nós estamos! -- E entrou no escriptorio, atirando com a porta.
Sebastião bateu alguns compassos, e voltando-se para ella, baixo:
-- Então que idéas são essas? Que melancolia é essa?
Luiza ergueu os olhos para elle; viu a sua face boa e amiga, cheia de sympathia; ia talvez dizer-lhe tudo n'uma explosão de dôr, mas Jorge sahia do escriptorio. Sorriu, encolheu os hombros, retomou devagar o seu crochet.
No domingo seguinte, á noite, conversava-se na sala. Julião contára o seu concurso. Em resumo, estava contente: tinha fallado duas horas bem, com precisão, com lucidez.
O dr. Figueiredo dissera-lhe que «devia ter amenisado um bocado mais...»
-- Litteratos! -- fazia Julião, encolhendo os hombros, com desprezo. -- Não podem fallar cinco minutos sobre o osso do tornozelo, sem trazerem as «flôres da primavera» e «o facho da civilisação»!
-- O portuguez tem a mania da rhetorica... -- disse Jorge.
N'este momento Juliana entrou na sala, com uma carta.
-- Oh! é do Conselheiro!
Ficaram inquietos. Mas Accacio apenas se desculpava de «não poder vir, como promettera na vespera, partilhar do excellente chá de D. Luiza. Um trabalho urgente retinha-o á banca do dever. Pedia lembranças aos nossos Sebastião e Julião, e affectuosos respeitos á interessante D. Felicidade».
Uma onda de sangue abrazou o rosto da excellente senhora. Ficou a arfar, toda alterada; mudou duas vezes de cadeira, foi tocar no teclado com um dedo a Perola d'Ophir; e emfim, não se dominando, pediu baixo a Luiza «que fossem para o quarto, tinha um segredo...»
Apenas entraram, fechando a porta da sala:
-- Que me dizes á carta d'elle?
-- Os meus parabens -- disse Luiza, rindo.
-- É o milagre! -- exclamou D. Felicidade -- já é o milagre a fazer-se! -- E mais baixo: -- Mandei o homem! O que eu te disse, o gallego!
Luiza não comprehendia.
-- O homem a Tuy, á mulher de virtude! Levou o meu retrato e o d'elle. Partiu ha uma semana: a mulher naturalmente já começou a enterrar-lhe as agulhas no coração...
-- Que agulhas? -- perguntou Luiza attonita.
Estavam de pé, junto ao toucador. E D. Felicidade com uma voz mysteriosa:
-- A mulher faz um coração de cera, colla-o ao retrato do Conselheiro, e durante uma semana á meia noite crava-lhe uma agulha benta com o preparo que ella tem, e faz as orações...
-- E déste o dinheiro ao homem?
-- Oito moedas.
-- Oh D. Felicidade!
-- Ai! não me digas. Que já vês! Que mudança! D'aqui a uns dias, baba-se! Ai! Nossa Senhora da Alegria o permitta. Nossa Senhora o permitta! Que aquelle homem traz-me douda. De noite, é cada sonho! Até ando em peccado mortal! e são suores! Mudo de camisa tres e quatro vezes!
E ia-se olhando ao espelho: queria convencer-se que as bellezas da sua pessoa ajudariam as agulhas da bruxa: alisou o cabello.
-- Não me achas mais magra?
-- Não.
-- Ai estou, filha, estou! -- E mostrou o corpete lasso.
Já fazia planos. Iria passar a lua de mel a Cintra... Os olhos afogavam-se-lhe n'um fluido lubrico.
-- Nossa Senhora da Alegria o permitta. Tenho-lhe duas velas accesas, de dia e de noite...
Mas de repente a voz afflicta de Joanna bradou da escada da cozinha:
-- Minha senhora! Minha senhora, acuda!
Luiza correu, Jorge tambem, que ouvira na sala o grito. Juliana estava estendida no soalho da cozinha, desmaiada!
-- Deu-lhe de repente, deu-lhe de repente! -- exclamava Joanna, muito branca, a tremer. -- Tombou p'ra o lado de repente...
Julião tranquillisou-os logo: era uma syncope, simples. Transportaram-na para a cama. Julião fez-lhe esfregar violentamente com uma flanella quente as extremidades, -- e, mesmo antes que Joanna atarantada, em cabello, corresse á botica por um antispasmodico, Juliana voltava a si, muito fraca. Quando desceram á sala, Julião disse, enrolando o cigarro:
-- Não vale nada. São muito frequentes, estas syncopes, nas doenças de coração. Esta é simples. Mas é o diabo, ás vezes tem um caracter apopletico, e vem a paralysia; pouco duradoura, sim, porque a effusão de sangue no cerebro é muito pequena, mas emfim, sempre desagradavel. -- E accendendo o cigarro: -- Esta mulher um dia morre-lhes em casa.
Jorge, preoccupado, passeava pela sala com as mãos nos bolsos.
-- Sempre o tenho dito -- acudiu D. Felicidade, baixando a voz, assustada. -- Sempre o tenho dito. É desfazerem-se d'ella.
-- Além d'isso o tratamento é incompativel com o serviço -- disse Julião. -- Emfim, mesmo a engommar roupa se póde tomar digitalis ou quinino; mas é que o verdadeiro tratamento é o repouso, é a absoluta exclusão da fadiga. Que ella um dia se zangue ou que tenha uma manhã de canceira, e póde ir-se!
-- E vai adiantada a doença? -- perguntou Jorge.
-- Pelo que ella diz já tem a difficuldade asthmatica, oppressões, uma dôr aguda na região cardiaca, flatulencia, humidade nas extremidades -- o diabo!
-- Olha que espiga! -- murmurou Jorge, olhando em roda.
-- É pôl-a na rua! -- resumiu D. Felicidade.
Quando ficaram sós, ás onze horas, Jorge disse logo a Luiza:
-- Que te parece esta, hein? É necessario descartarmo-nos da creatura. Não quero que me morra em casa!
Ella, sem se voltar, diante do toucador, tirando os brincos, começou a dizer, que não se podia mandar tambem a pobre creatura morrer p'ra a rua... Lembrou vagamente o que ella tinha feito pela tia Virginia... Ia collocando devagar as suas palavras com a cautela com que se pousa o pé n'um terreno traiçoeiro. -- Podia-se talvez dar-lhe algum dinheiro, que ella fosse viver algures...
Jorge, depois d'um silencio, respondeu:
-- Não tenho duvida em lhe dar dez ou doze libras, e que se vá, que se arranje!
Dez ou doze libras! -- pensou Luiza com um sorriso infeliz. -- E á beira do toucador olhava para o seu rosto, ao espelho, com uma indefinida saudade, como se as suas faces devessem dentro em pouco estar cavadas pela afflicção, e os seus olhos fatigados pelas lagrimas...
Porque, emfim, a crise tinha chegado. Se Jorge insistisse em despedir a creatura, ella não podia, sem provocar um espanto e uma explicação, dizer a Jorge: não quero que ella sáia, quero que ella aqui morra! E Juliana vendo-se expulsa, desesperada, doente, percebendo que Luiza não a defendia, não a reclamava, -- vingar-se-hia! Que havia de fazer?
Ergueu-se ao outro dia n'uma grande agitação. Juliana muito fatigada, ainda estava na cama. E em quanto Joanna punha a mesa, Luiza sentada na voltaire, á janella da sala de jantar, lia machinalmente o Diario de Noticias, quasi sem comprehender, quando uma noticia, no alto da pagina, lhe deu um sobresalto: «Parte além d'ámanhã para França o nosso amigo e conhecido banqueiro Castro, da firma Castro Miranda & C.a S. exc.a retira-se dos negocios da praça, e vai estabelecer-se definitivamente em França, perto de Bordeus, onde comprou ultimamente uma valiosa propriedade.»
O Castro! O homem que lhe dava dinheiro, o que ella quizesse! dizia Leopoldina. Partia!... E apesar de ter achado, desde o primeiro momento, aquelle recurso infame, vinha-lhe a seu pezar como uma desconsolação de o vêr desapparecer! Porque nunca mais voltaria a Portugal, o Castro!... E de repente uma idéa atravessou-a, que a fez vibrar toda, erguer-se direita, muito pallida. -- Se na vespera da partida d'elle, Santo Deus! se na vespera ella consentisse!... Oh! era horrivel! Nem pensar em tal!...
Mas pensou -- e sentia-se toda fraca contra uma tentação crescente, que se lhe enroscava na alma com caricias persuasivas. É que então estava salva! Dava seiscentos mil reis a Juliana! E o demonio iria morrer para longe!
E elle, o homem, tomaria o paquete! Não teria de córar diante d'elle; o seu segredo ia para o estrangeiro, tão perdido como se fosse para o tumulo! -- E, além d'isso, se o Castro tinha uma paixão por ella, era bem possivel que lhe emprestasse, sem condições!...
Bom Deus! No dia seguinte podia ter alli na algibeira do seu roupão as notas, o ouro... Porque não? -- Porque não? E vinha-lhe um desejo ancioso de se libertar, de viver feliz, sem agonias, sem martyrios...
Voltou ao quarto. Pôz-se a remexer no toucador, olhando de lado Jorge que se vestia... A presença d'elle deu-lhe logo um remorso; ir pedir a um homem dinheiro, consentir nos seus olhares lascivos, nas suas palavras intencionaes!... Que horror! -- Mas já subtilisava. Era por Jorge, era por elle! Era para lhe poupar o desgosto de saber! Era para o poder amar livremente, toda a vida, sem receios, sem reservas...
Durante todo o almoço esteve calada. O rosto sympathico de Jorge enternecia-a; o outro parecia-lhe medonho, odiava-o já!...
Quando Jorge sahiu ficou muito nervosa. Ia á janella; o sol parecia-lhe adoravel, a rua attrahia-a. -- Porque não? Porque não?
A voz de Juliana, muito aspera, fallou então nas escadas da cozinha; e aquelle cantado odioso decidiu-a bruscamente.
Vestiu-se com cuidado: era mulher, quiz parecer bonita. -- E chegou toda esbaforida a casa de Leopoldina, quando dava meio dia a S. Roque.
Encontrou-a vestida, esperando o almoço. E tirando immediamente o chapéo, installando-se no sophá, explicou muito claramente a Leopoldina a sua resolução. Queria o dinheiro do Castro. Emprestado ou dado, queria o dinheiro!... Estava n'uma afflicção, devia valer-se de tudo!... Jorge queria despedir a mulher... Tinha medo d'uma vingança d'ella... Queria dinheiro, alli estava!
-- Mas assim de repente, filha! -- disse Leopoldina, pasmada do seu olhar decidido.
-- O Castro vai-se ámanhã. Vai para Bordeus, para o inferno! É necessario fazer alguma cousa, já!
Leopoldina lembrou escrever-lhe.
-- O que quizeres... Eu aqui estou!
A outra sentou-se devagar á mesa, escolheu uma folha de papel, e, com o dedinho no ar, a cabeça de lado, começou a escrevinhar.
Luiza passeava pelo quarto, nervosa. Tinha agora uma resolução teimosa, que a presença de Leopoldina fortificava! Divertia-se, aquella, dançava, ia ao campo, gozava, vivia, sem ter como ella uma tortura a minar-lhe, a estragar-lhe a vida! Ah! não voltaria para casa sem levar na algibeira em boas libras o resgate, a salvação! Ainda que tivesse de ser vil como as do Bairro Alto! Estava farta das humilhações, dos sustos, das noites cortadas de pesadêlos!... Queria saborear a vida, que diabo! o seu amor, o seu jantar, sem cuidados, com o coração contente!
-- Vê lá -- disse Leopoldina, lendo:
«Meu caro amigo.
«Desejo absolutamente fallar-lhe. É um negocio grave. Venha logo que possa. Talvez me agradeça. Espero-o até ás tres horas, o mais tardar.
«Com toda a estima
Sua amiga
Leopoldina».
-- Que te parece?
-- Horrivel! Mas está bem... Está muito bem! Risca-lhe o talvez me agradeça. É melhor.
Leopoldina copiou o bilhete, mandou-o pela Justina, n'um trem.
-- E agora vou almoçar, que me não tenho nas pernas.
A sala de jantar dava para um saguão estreito. As paredes estavam cobertas d'uma pintura medonha, em que grandes manchas verdes semelhavam collinas, e linhas azues ferretes representavam lagos. Um armario, no angulo da parede, servia de guarda-louça. As cadeiras de palhinha tinham almofadinhas de paninho vermelho; e na toalha havia nodoas do café da vespera.
-- D'uma cousa pódes tu ter a certeza -- dizia Leopoldina, bebendo grandes goles de chá -- é que o Castro é um homem p'ra um segredo!... Se te emprestar o dinheiro, que empresta, d'aquella bocca não sahe uma palavra. Lá n'isso é perfeito... Olha que foi o amante da Videira annos! e nem ao Mendonça, que é o seu intimo, disse uma palavra. Nem uma allusão! É um poço.
-- Que Videira? -- perguntou Luiza.
-- Uma alta, de nariz grande, que tem um landau.
-- Mas passa por uma mulher tão séria...
-- Já tu vês! -- E com um risinho: -- Ai ellas passam, passam. Lá passar, passam. A questão é conhecer-lhes os pôdres, minha fidalga!
E barrando de manteiga grandes fatias de pão, pôz-se a fallar complacentemente dos escandalos de Lisboa, a desdobrar o sudario: citava nomes, especialidades, as que depois de terem «feito o diabo», gastam, n'uma devoção tardia, o resto d'uma velha sensibilidade; que é por onde ellas acabam, algumas é pelas sacristias! As que, cançadas de certo d'uma virtude monotona, preparam habilmente o seu «fracasso» n'uma estação em Cintra ou em Cascaes. E as meninas solteiras! Muito pequerrucho por essas amas, dos arredores tem o direito de lhes chamar mamã! Outras mais prudentes, receando os resultados do amor, refugiam-se nas precauções da libertinagem... Sem contar as senhoras que em vista dos pequenos ordenados, completam o marido com um sujeito supplementar! -- Exagerava muito; mas odiava-as tanto! Porque todas tinham, mais ou menos, sabido conservar a exterioridade decente que ella perdera, e manobravam com habilidade, onde ella, a tola, tivera só a sinceridade! E em quanto ellas conservavam as suas relações, convites para soirées, a estima da côrte, -- ella perdera tudo, era apenas a Quebraes!...
Aquella conversação enervava Luiza; n'uma tal generalidade do vicio parecia-lhe que o seu caso, como um edificio n'um nevoeiro, perdia o seu relevo cruel, se esbatia; e sentindo-o tão pouco visivel quasi o julgava já justificado.
Ficaram caladas, vagamente entorpecidas por aquelle sentimento d'uma forte immoralidade geral, onde as resistencias, os orgulhos se amollecem, se enlanguecem, -- como os musculos n'uma estufa fortemente saturada de exhalações mornas.
-- Este mundo é uma historia -- disse Leopoldina erguendo-se e espreguiçando-se.
-- E teu marido onde está? -- perguntou Luiza no corredor.
Fôra p'ra o Porto. Estavam á vontade, podiam commetter crimes!
E Leopoldina, no quarto, estirando-se no canapé, com o cigarrinho laferme na bocca, começou tambem a queixar-se.
Andava aborrecida ha tempos; enfastiava-se, achava tudo seccante; queria alguma cousa de novo, de desusado! Sentia-se bocejar por todos os poros do seu corpo...
-- E o Fernando, então? -- disse distrahidamente Luiza, que a cada momento se aproximava da janella.
-- Um idiota! -- respondeu Leopoldina com um movimento d'hombros, cheio de saciedade e de desprezo.
Não, realmente tinha vontade d'outra cousa, não sabia bem de quê! Ás vezes lembrava-se fazer-se freira! (E estirava os braços com um tedio molle). Eram tão semsaborões todos os homens que conhecia! tão corriqueiros todos os prazeres que encontrára! Queria uma outra vida, forte, aventurosa, perigosa, que a fizesse palpitar -- ser mulher d'um salteador, andar no mar, n'um navio pirata... Em quanto ao Fernando, o amado Fernando dava-lhe nauseas! E outro que viesse seria o mesmo. Sentia-se farta dos homens! Estava capaz de tentar Deus!
E, depois d'escancarar a bocca, n'um bocejo de fera engaiolada:
-- Aborreço-me! Aborreço-me!... Oh céos!
Ficaram um momento caladas.
-- Mas, que se lhe ha-de dizer, a esse homem? -- perguntou de repente Luiza.
Leopoldina, soprando o fumo do cigarro, com a voz muito preguiçosa:
-- Diz-se-lhe que se precisa um conto de reis, ou seiscentos mil reis... Que se lhe ha-de então dizer? Que se lhe paga.
-- Como?
Leopoldina disse, deitada, com os olhos no tecto:
-- Em affecto.
-- Oh! és horrivel! -- exclamou Luiza, exasperada. -- Vês-me aqui desgraçada, meia douda, dizes que és minha amiga, e estás a rir, a escarnecer... -- A sua voz tremia, quasi chorava.
-- Mas tambem que pergunta tão tola! Como se lhe ha-de pagar?... Tu não sabes?
Olharam-se um momento.
-- Não, eu vou-me embora, Leopoldina! -- exclamou Luiza.
-- Não sejas criança!
Um trem parou na rua. A Justina appareceu. Não encontrára o snr. Castro em casa, estava no escriptorio. Fôra lá, disse que vinha immediatamente.
Mas Luiza, muito pallida, tinha o chapéo na mão.
-- Não -- disse Leopoldina, quasi escandalisada -- tu agora não me deixas aqui com o homem! Que lhe hei-de eu dizer?
-- É horrivel! -- murmurou Luiza com uma lagrima nas palpebras, deixando cahir os braços, solicitada pelo interesse, enleada pela vergonha, muito infeliz!
-- É como quem toma oleo de ricino -- disse a outra com um gesto cynico. E acrescentou, vendo o horror de Luiza: -- Que diabo! onde é que está a deshonra, em pedir dinheiro emprestado? Todo o mundo pede...
N'aquelle momento outra carruagem, a largo trote, parou.
-- Entra tu primeiro! falla-lhe tu primeiro! -- supplicou Luiza, erguendo as mãos para ella.
A campainha retiniu. Luiza muito tremula, muito branca, olhava para todos os lados com um olhar muito aberto, de susto, d'ancia, como procurando uma idéa, uma resolução ou um recanto para se esconder! Botas d'homem rangeram na esteira da sala ao lado. Leopoldina então disse-lhe baixo, devagar, como para lhe cravar as palavras na alma, uma a uma:
-- Lembra-te que d'aqui a uma hora pódes estar salva, com as tuas cartas na algibeira, feliz, livre!
Luiza pôz-se de pé com uma decisão brusca. Foi pôr pós d'arroz, alisou o cabello, -- e entraram na sala.
Ao vêr Luiza, o Castro teve um movimento surprehendido. Curvou-se, com os pés pequeninos muito juntos, inclinando a cabeça grossa, onde os cabellos muito finos alourados já rareavam.
Sobre o seu ventresinho redondo, que a perna curta fazia parecer quasi pansudo, o medalhão do relogio pousava com opulencia. Trazia na mão um chicote, cujo cabo de prata representava uma Venus retorcendo os braços. A pelle tinha um rubor prospero; o bigode farto, terminava em pontas agudas, empastadas em cera mostacha, d'um aspecto napoleonico. E os seus oculos de ouro tinham um ar authoritario, bancario, amigo da Ordem. Parecia contente da vida como um pardal muito farto.
Com que! Era necessario mandal-o chamar, para que se lhe pozesse a vista em cima, -- começou logo Leopoldina. E depois de o apresentar a Luiza «sua intima, sua amiga de collegio»:
-- Que tem feito, porque não tem apparecido?
O Castro repoltreou-se n'uma cadeira de braços, e batendo com o chicote nas botas, desculpou-se com os preparativos da partida...
-- Sempre é verdade? Deixa-nos?
O Castro curvou-se:
-- Além d'amanhã. No Orenoque.
-- Então d'esta vez os jornaes não mentiram. E com demora?
-- Per omnia sæcula sæculorum.
Leopoldina pasmava. Deixar Lisboa! Um homem tão estimado, que se podia divertir tanto! -- Pois não é verdade? -- disse voltando-se para Luiza, para a tirar do seu silencio embaraçado.
-- Com certeza -- murmurou ella.
Estava sentada á beira da cadeira, como assustada, prompta a fugir. E os olhares do Castro, insistentes por traz dos reflexos dos oculos, incommodavam-na.
Leopoldina reclinára-se no sophá e ameaçando-o com o dedo erguido:
-- Ah! Ahi n'essa ida p'ra França anda historia de saias!
Elle negou frouxamente, com um sorriso fatuo.
Mas Leopoldina não achava as francezas bonitas -- o que era é que tinham muito chic, muita animação...
O Castro declarou-as adoraveis. Sobretudo para a estroinice! Ah! conhecia-as bem! Emfim, lá como mães de familia não dizia. Mas para uma cêa, para um bocado de can-can não havia outras... -- Affirmava-o com convicção, pois, como os burguezes «da sua roda», avaliava doze milhões de francezas por seis prostitutas de Café Concerto, -- que tinha pago caro e enfastiado immenso!
Leopoldina, para o lisonjear, chamou-lhe estroina!
Elle sorria, deliciando-se, afiando as pontas do bigode:
-- Calumnias, calumnias... -- murmurava.
E Leopoldina voltando-se para Luiza:
-- Comprou uma quinta magnifica em Bordeus, um palacio!...
-- Uma choupana, uma choupana...
-- E naturalmente vai dar festas magnificas!...
-- Modestos chás, modestos chás... -- dizia, repoltreando-se.
E riam ambos d'um modo muito affectado.
O Castro curvou-se então para Luiza:
-- Tive o gosto de vêr v. exc.a ha tempos, na rua do Ouro...
-- Creio que tambem me lembro -- respondeu ella.
E ficaram calados. Leopoldina tossiu, sentou-se mais á beira do sophá, e depois de sorrir:
-- Pois eu mandei-o chamar porque temos uma cousa a dizer-lhe.
Castro inclinou-se. O seu olhar não deixava Luiza, percorria-a com atrevimento, palpava-a.
-- Aqui está o que é. Eu vou direita ás cousas, sem preambulos. -- E teve outro risinho. -- Aqui a minha amiga está n'um grande apuro, e precisa um conto de reis.
Luiza acudiu com a voz quasi sumida:
-- Seiscentos mil reis...
-- Isso não importa -- disse Leopoldina com uma indifferença opulenta -- estamos a fallar com um millionario! A questão é esta: quer o meu amigo fazer o favor?
O Castro endireitou-se na cadeira, devagar, e com uma voz arrastada, ambigua:
-- Certamente, certamente...
Leopoldina ergueu-se logo:
-- Bem. Eu tenho alli no quarto a costureira á espera. Deixo-os fallar do negocio.
E á porta do quarto, voltando-se para o Castro, ameaçando-o com o dedo, a voz muito alegre:
-- Que o juro seja pequeno, hein?
E sahiu, rindo.
O Castro disse logo a Luiza, curvando-se:
-- Pois minha senhora, eu...
-- A Leopoldina contou-lhe a verdade, estou n'uma grande afflicção de dinheiro. E dirijo-me a si... São seiscentos mil reis... Procurarei pagar, o mais depressa...
-- Oh minha senhora! -- fez o Castro com um gesto generoso. Começou então a dizer, que comprehendia perfeitamente, todo o mundo tinha os seus embaraços... Lamentava que a não tivesse conhecido ha mais tempo... Sempre tivera uma grande sympathia por ella... Uma grande sympathia!...
Luiza calava-se, com os olhos baixos. Elle foi pousar o chicote na jardineira, veio sentar-se no sophá junto d'ella. Vendo o seu ar embaraçado, pediu-lhe que não se affligisse. Valia lá a pena por questões de dinheiro! Tinha o maior prazer em servir uma senhora nova, tão interessante... Fizera perfeitamente em se dirigir a elle. Conhecia casos em que senhoras se dirigiam a agiotas que as exploravam, eram indiscretos... -- E fallando tinha-lhe tomado a mão; o contacto d'aquella pelle appetecida, exaltando-lhe o desejo brutalmente, fazia-o respirar alto; Luiza, toda constrangida, nem retirára a mão; e Castro abrazado -- com uma verbosidade um pouco rouca, promettia tudo, tudo o que ella quizesse!... Os seus olhinhos arregalados devoravam-lhe o pescoço muito branco.
-- Seiscentos mil reis..., o que quizer!...
-- E quando? -- disse Luiza muito perturbada.
Elle via-lhe o seio arfar -- e sob a irrupção d'um desejo brutal:
-- Já!
Agarrou-a pela cinta, atirou-lhe um beijo voraz, quasi lhe mordeu a face.
Luiza ergueu-se com o salto d'uma mola d'aço.
Mas o Castro escorregára sobre o tapete, de joelhos; e, prendendo-lhe sofregamente os vestidos:
-- Dou-lhe o que quizer, mas sente-se! Ha annos que tenho uma paixão por si. Escute! -- Os seus braços tremulos subiam; envolviam-na, e o que sentia das suas fórmas inflammava-o.
Luiza, sem ruido, repellia-lhe as mãos, recusava-se.
-- O que quizer! Mas ouça! -- balbuciava elle puxando-a violentamente para si. A concupiscencia brutal dava-lhe uma respiração de touro.
Então, com um puxão desesperado ás saias, ella soltou-se, e recuando afflicta:
-- Deixe-me! Deixe-me!
O Castro ergueu-se, a bufar, e com os dentes cerrados, os braços abertos, rompeu para ella.
Diante d'aquella luxuria bestial, Luiza, indignada, agarrou instinctivamente de sobre a jardineira o chicote e deu-lhe uma forte chicotada na mão.
A dôr, a raiva, o desejo enfureceram-no.
-- Seu diabo! -- rosnou, rangendo os dentes.
Ia-se arremessar. Mas Luiza então, erguendo o braço, revolvida por uma cólera phrenetica, atirou-lhe chicotadas rapidamente pelos braços, pelos hombros -- muito pallida, muito séria, com uma crueldade a reluzir-lhe nos olhos, gozando uma alegria de desforra em fustigar aquella carne gorda.
O Castro, assombrado, defendia-se vagamente, com os braços diante da cara, recuando; de repente, topou contra a jardineira; o candieiro de porcelana oscillou, desequilibrou-se, rolou no chão, com estilhaços de louça, e uma nodoa escura d'azeite alastrou-se na esteira.
-- Ahi está! Vê? -- disse Luiza toda a tremer, apertando ainda convulsivamente o chicote.
Leopoldina ao barulho correu, do quarto.
-- Que foi? Que foi?
-- Nada, estavamos a brincar -- disse Luiza.
Atirou o chicote para o chão, sahiu da sala.
O Castro, livido de raiva, tinha agarrado o chapéo; e fixando terrivelmente Leopoldina:
-- Agradecido! Conte commigo quando quizer!
-- Mas que foi? Que foi?
-- Até á vista! -- rugiu o Castro. -- E indo apanhar o chicote, sacudindo-o ameaçadoramente para o quarto, onde Luiza entrára:
-- Grande bebeda! -- murmurou com rancor.
E sahiu, atirando com as portas.
Leopoldina, attonita, veio encontrar Luiza no quarto a pôr o chapéo, com as mãos ainda tremulas, os olhos muito brilhantes, satisfeita.
-- Chegou-me cá uma cousa, e enchi-lhe a cara de chicotadas -- disse ella.
Leopoldina esteve um momento a olhal-a petrificada.
-- Bateste-lhe?... -- E de repente desatou a rir, convulsivamente. -- O Castro d'oculos, o Castro coberto de chicotadas! O Castro a levar uma coça! -- Atirou-se para cima da chaise-longue, rolou-se; suffocava. -- Até já tinha uma pontada, Jesus! O Castro!... Vir a uma casa amiga, levar o tiro de seiscentos mil reis e ser corrido a chicote!... Com o seu proprio chicote!... Oh! era para estourar!...
-- O peor foi o candieiro -- disse Luiza.
Leopoldina ergueu-se, de salto.
-- E o azeite! Ai que agouro! -- Correu á sala. Luiza veio encontral-a diante da nodoa escura, com os braços cruzados, como se visse, toda pallida, catastrophes avisinharem-se. -- Que agouro, Santo Deus!
-- Deita-lhe sal depressa.
-- Faz bem?
-- Quebra o agouro.
Leopoldina correu a buscar sal; e de joelhos, salgando a nodoa:
-- Ai! Nossa Senhora permitta que não haja nada mau! Mas que caso este, que caso este! E agora, filha?
Luiza encolheu os hombros.
-- Eu sei cá! Soffrer!...
XIII
N'essa semana, uma manhã, Jorge, que se não recordava que era dia de gala, encontrou a secretaria fechada, e voltou para casa ao meio dia. Joanna á porta conversava com a velha que comprava os ossos; a cancella em cima estava aberta; e Jorge, chegando despercebido ao quarto, surprehendeu Juliana commodamente deitada na chaise-longue, lendo tranquillamente o jornal.
Ergueu-se, muita vermelha, mal o viu, balbuciou:
-- Peço desculpa, tinha-me dado uma palpitação tão forte...
-- Que se pôz a lêr o jornal, hein?... -- disse Jorge, apertando instinctivamente o castão da bengala. -- Onde está a senhora?
-- Deve estar p'ra a sala de jantar -- disse Juliana, que se pôz logo a varrer, muito apressada.
Jorge não encontrou Luiza na sala de jantar; foi dar com ella no quarto dos engommados, despenteada, em roupão de manhã, passando roupa, muito applicada e muito desconsolada.
-- Tu estás a engommar? -- exclamou.
Luiza córou um pouco, pousou o ferro. -- A Juliana estava adoentada, juntára-se uma carga de roupa...
-- Dize-me cá, quem é aqui a criada e quem é aqui a senhora?
A sua voz era tão aspera, que Luiza fez-se pallida, murmurou:
-- Que queres tu dizer?
-- Quero dizer que te venho encontrar a ti a engommar, e que a encontrei a ella lá em baixo muito repimpada na tua cadeira, a lêr o jornal.
Luiza, atarantada, abaixou-se sobre o cesto da roupa lavada, começou a remexer, a desdobrar, a sacudir com a mão tremula...
-- Tu não pódes fazer idéa do que aqui vai por fazer -- ia dizendo. -- É a limpeza, são os engommados, é um servição. A pobre de Christo tem estado doente...
-- Pois se está doente que vá p'ra o hospital!
-- Não, tambem não tens razão!
Aquella insistencia em defender a outra, que se repoltreava em baixo na sua chaise-longue, exasperou-o:
-- Dize cá, tu dependes d'ella? Havia de dizer que tens medo d'ella!
-- Ah! se estás com esse genio! -- fez Luiza com os beiços tremulos, uma lagrima já nas palpebras.
Mas Jorge continuava, muito zangado:
-- Não, essas condescendencias hão-de acabar por uma vez! Vêr aquelle estafermo, com os pés p'ra cova, a prosperar em minha casa, a deitar-se nas minhas cadeiras, a passear, e tu a defendel-a, a fazer-lhe o serviço, ah! não! É necessario acabar com isso. Sempre desculpas! sempre desculpas! Se não póde que arreie. Que vá p'ra o hospital, que vá p'ra o inferno!
Luiza lavada em lagrimas assoava-se, soluçando.
-- Bem! Agora choras. Que tens tu? Por que choras?
Ella não respondia, n'um grande pranto.
-- Porque choras, filha? -- perguntou elle, com uma impaciencia commovida, chegando-se a ella.
-- Para que me fallas tu assim? -- dizia, toda soluçante, limpando os olhos. -- Sabes que estou doente, nervosa, e tens mau genio p'ra mim! O que me sabes dizer são cousas desagradaveis.
-- Cousas desagradaveis! Minha filha, eu disse-te lá nada desagradavel! -- E abraçou-a, ternamente.
Mas ella desprendeu-se, e com a voz cortada de soluços:
-- Então é algum crime estar a engommar? Por que trabalho, por que trato das minhas cousas, zangas-te? Querias que eu fosse uma desarranjada? A mulher tem estado doente! Em quanto se não arranja outra, é necessario fazer as cousas... Mas tu fallas, fallas! P'ra me affligir!...
-- Estás a dizer tolices, filha. Não estás em ti. Eu o que não quero é que te cances!
-- P'ra que dizes então que tenho medo d'ella? -- E as lagrimas recomeçavam. -- Medo de quê? Porque hei-de eu ter medo d'ella? Que desproposito!
-- Pois bem, não digo. Não se falla mais na creatura. Mas não chores... Vá, acabou-se! -- Beijou-a. E tomando-a pela cinta, levando-a dôcemente: -- Vá, deixa o ferro agora. Vem! Que criança que tu és!
Por bondade, por consideração com os nervos de Luiza, Jorge durante alguns dias não fallou «na creatura». Mas pensava n'ella; e aquelle estafermo, com os pés para a cova, em sua casa, exasperava-o. Depois as madracices que lhe percebera, os confortos do quarto que vira na noite em que ella desmaiára, aquella bondade ridicula de Luiza!... Achava aquillo estranho, irritante!... Como estava fóra de casa todo o dia, e diante d'ella Juliana só tinha sorrisos para Luiza, muitas attitudes de affecto, imaginava que ella se soubera insinuar, e, pelas pequenas intimidades de ama a criada, se tornára necessaria e estimada. Isso augmentava a sua antipathia. E não a disfarçava.
Luiza vendo-o ás vezes seguir Juliana com um olhar rancoroso, tremia! Mas o que a torturava era a maneira que Jorge adoptára de fallar d'ella com uma veneração ironica; chamava-lhe a illustre D. Juliana, a minha ama e senhora! Se faltava um guardanapo ou um copo, fingia-se espantado: «Como! a D. Juliana esqueceu-se! Uma pessoa tão perfeita!» Tinha gracejos que gelavam Luiza.
-- A que sabia o filtro que ella te deu? Era bom?
Luiza agora, diante d'elle, já nem se atrevia a fallar a Juliana com um modo natural; temia os sorrisos malignos, os ápartes: -- «Anda, atira-lhe um beijo, conhece-se na cara que estás com a vontade de lh'o atirar!» E, receando as suspeitas d'elle, querendo mostrar-se independente, começou na sua presença, a fallar a Juliana com uma dureza brusca, muito affectada. A pedir-lhe agua, uma faca, dava á voz inflexões d'um rancor postiço.
Juliana, muito fina, tinha percebido tudo, e supportava, calada.
Queria evitar toda a questão que a perturbasse no seu conchego. Sentia-se agora muito mal, e nas noites em que não podia dormir com afflicções asthmaticas, punha-se a pensar com terror -- se fosse expulsa d'aquella casa, para onde iria? Para o hospital!
Tinha por isso medo de Jorge.
-- Elle está morto por me pilhar em desleixo grosso, e descartar-se de mim -- dizia ella á tia Victoria -- mas não lhe hei-de dar esse gosto, ao boi manso!
E Luiza, pasmada, vira-a pouco a pouco recomeçar a fazer todo o serviço, com zelo, apparentemente; e todavia ás vezes não podia, vencida pela doença; tinha «flatos» que a faziam cahir n'uma cadeira, arquejando, com as mãos no coração. Mas reagia. Uma occasião mesmo vendo Luiza a passar um espanejador pelos consoles da sala, zangou-se:
-- A senhora faz favor de se não metter no meu serviço? Eu ainda posso! Ainda não estou na cova!
Consolava-se então com regalos de gulodice. Durante todo o dia debicava sopinhas, croquettes, pudinzinhos de batata. Tinha no quarto gelatina e vinho do Porto. Em certos dias mesmo queria caldos de gallinha á noite.
-- Com o meu corpo o pago -- dizia ella a Joanna -- que trabalho como uma negra! Arrazo-me!
Um dia, porém, que Jorge se irritára mais com a figura amarellada de Juliana, e que estava nervoso, ao achar á noite o jarro vazio e o lavatorio sem toalha, enfureceu-se desproporcionadamente:
-- Não estou para aturar estes desleixos! Irra! -- gritou.
Luiza veio logo, inquieta, desculpar Juliana.
Jorge mordeu o beiço, curvou-se profundamente, e com a voz um pouco tremula:
-- Perdão! esquecia-me que a pessoa de Juliana é sagrada! eu mesmo vou buscar agua!
Luiza então zangou-se: se havia de estar sempre com aquelles remoques, era mandar a criada embora por uma vez! Imaginava talvez que ella amava de paixão a Juliana? Se a conservava é porque era uma boa criada. Mas se ella se tornava a causa de maus humores, de questões, se elle lhe ganhára tamanho odio, bem, então que se fosse! Era uma sécca aquella ironia constante...
Jorge não respondeu.
E durante a noite Luiza, sem dormir, pensava que aquillo não podia durar! Estava farta! Aturar a mulher, a sua tyranna, e ouvir a todo o momento ditinhos, allusões, ah, não! era de mais! Bastava! Elle começava a desconfiar, a bomba ia estalar! Pois bem, ella mesma chegaria o lume ao rastilho! Ia mandar a Juliana embora! E que mostrasse as cartas, acabou-se! Se elle a mettesse n'um convento, se separasse d'ella, bem! Soffreria, morreria! Tudo, menos aquelle martyrio reles, ás picadinhas, medonho e grotesco!
-- Que tens tu? -- perguntou Jorge, meio a dormir, sentindo-a inquieta.
-- Espertina.
-- Coitada! Conta cento e cincoenta p'ra traz! -- E voltou-se, enrolando-se commodamente na roupa.
Ao outro dia Jorge levantára-se cedo. Devia encontrar-se com o Alonso, o hespanhol das minas, e jantar com elle no Gibraltar. Depois de vestido foi á >sala de jantar -- eram dez horas -- e voltou a dizer a Luiza, com uma cortezia profunda, espaçando as palavras: -- que não estava a mesa posta! que as chavenas do chá da vespera estavam ainda por lavar! e que a snr.a D. Juliana, a illustre snr.a D. Juliana, tinha sahido, a seu passeio!
-- Eu disse-lhe hontem á noite que me fosse ao sapateiro... -- começou Luiza, que vestia o seu roupão.
-- Ah, perdão! -- interrompeu Jorge muito ceremoniosamente. -- Esquecia-me outra vez que se trata de Juliana, tua ama e senhora! Perdão!
Luiza acudiu logo:
-- Não. Tens razão. Tu verás! É preciso pôr um côbro...
Subiu logo á cozinha, desesperada:
-- Vossê porque não pôz a mesa, Joanna, se a outra sahiu?
Mas a rapariga não ouvira sahir a snr.a Juliana! Imaginára que estava p'ra baixo, p'ra a sala! Como ella agora é que queria fazer tudo!...
Quando Joanna trouxe o almoço d'ahi a pouco Jorge veio sentar-se á mesa, torcendo muito nervosamente o bigode. Levantou-se duas vezes com um sorriso mudo para ir buscar uma colhér, o assucareiro. Luiza via-lhe os musculos da face contrahidos: mal podia comer, atarantada; a chavena, quando a erguia, tremia-lhe na mão; com os olhos baixos espreitava Jorge ás furtadellas, e o seu silencio torturava-a.
-- Tu fallaste hontem que ias jantar fóra hoje...
-- Vou -- disse seccamente. E acrescentou: -- Graças a Deus!
-- Estás de bom humor!... -- murmurou ella.
-- Como vês!
Luiza fez-se pallida, pousou o talher: tomou o jornal para disfarçar uma lagrimasinha que lhe tremia na palpebra; mas as letras confundiam-se, sentia pular o coração. De repente a campainha tocou. Era a outra, de certo!
Jorge, que se ia erguer, disse logo:
-- Ha-de ser essa senhora. Ora, vou-lhe dizer duas palavras...
E ficou de pé, junto á mesa, aguçando devagar um palito.
Luiza, a tremer, levantou-se tambem:
-- Eu vou-lhe fallar...
Jorge reteve-a pelo braço, e tranquillamente:
-- Não, deixa-a vir. Deixa-me gozar!...
Luiza recahiu na cadeira, muito pallida.
Os tacões de Juliana soaram no corredor. Jorge aguçava tranquillamente o seu palito.
Luiza então voltou-se para elle, e batendo as mãos, afflicta:
-- Não lhe digas nada!...
Elle fixou-a, assombrado:
-- Porque?
Juliana n'este momento abriu o reposteiro.
-- Então que desaforo é este, sahir e deixar tudo por arrumar? -- disse-lhe Luiza logo, erguendo-se.
Juliana, que vinha sorrindo, estacou á porta, petrificada: apesar da sua amarellidão, uma vaga côr de sangue espalhou-se-lhe nas feições.
-- Não lhe torne a acontecer semelhante cousa, ouviu? A sua obrigação é estar em casa pela manhã... -- Mas o olhar de Juliana, que se cravava n'ella terrivelmente, emmudeceu-a. Agarrou no bule com as mãos tremulas. -- Deite agua n'este bule, vá.
Juliana não se mexeu.
-- Vossê não ouviu? -- berrou de repente Jorge. E atirou uma punhada á mesa, que fez saltar a louça.
-- Jorge! -- gritou Luiza, agarrando-lhe no braço.
Mas Juliana fugira da sala, correndo.
-- E logo, na rua! -- exclamou Jorge. -- Faze-lhe as contas, e que se vá. Ah! estou farto! Nem mais um dia! Se a torno a vêr, desfaço-a! Até que emfim! Chegou-me a minha vez!
Foi buscar o paletot, muito excitado, e antes de sahir, voltando á sala:
-- E que se vá hoje mesmo, ouviste? Nem uma hora mais! Ha quinze dias que a trago aqui atravessada. P'ra a rua!
Luiza veio para o quarto quasi sem se poder suster. Estava perdida! estava perdida! Uma multidão d'idéas, todas extremas e insensatas, redemoinhava no seu cerebro como um montão de folhas seccas n'uma ventania: queria fugir, atirar-se ao rio, de noite; arrependia-se de não ter cedido ao Castro... De repente imaginou Jorge abrindo as cartas que Juliana lhe entregava, lendo: Meu adorado Bazilio! Então uma cobardia immensa amolleceu-lhe a alma. Correu ao quarto de Juliana. Ia supplicar-lhe que lhe perdoasse, que ficasse, que a martyrisasse!... E Jorge depois? Diria que a Juliana chorára, se atirára de joelhos! Mentiria, cobril-o-hia de beijos... Era nova, era bonita, era ardente -- convencel-o-hia!
Juliana não estava no quarto. Subiu á cozinha; estava lá, sentada, com os olhos chammejantes, os braços nervosamente cruzados, n'uma raiva muda. Apenas viu Luiza, deu um salto sobre os calcanhares, e mostrando-lhe o punho, berrou:
-- Olhe que a primeira vez que vossê me torna a fallar como hoje, vai aqui tudo raso n'esta casa!
-- Cale-se, sua infame! -- gritou Luiza.
-- Vossê manda-me calar, sua p...! -- E Juliana disse a palavra.
Mas a Joanna correu, atirou-lhe pelo queixo uma bofetada que a fez cahir, com um gemido, sobre os joelhos.
-- Mulher! -- bradou Luiza, arremessando-se sobre a Joanna, agarrando-a pelos braços.
Juliana, assombrada, fugiu.
-- Ó Joanna! ó mulher! que desgraça, que escandalo! -- exclamava Luiza com as mãos apertadas na cabeça.
-- Racho-a! -- dizia a rapariga com os dentes cerrados, os olhos como brazas -- racho-a!
Luiza andava em volta da mesa da cozinha, automaticamente, pallida como a cal, repetindo, toda a tremer:
-- O que vossê foi fazer, mulher! o que vossê foi fazer!
A Joanna ainda toda revolvida de sua colera, com o rosto manchado de vermelho, remexia furiosamente as panellas.
-- E se ella me diz uma palavra, acabo-a, aquella bebeda! Acabo-a!
Luiza desceu ao quarto. No corredor sahiu-lhe Juliana, com a cuia á banda, as dedadas escarlates na face, medonha.
-- Ou aquella desavergonhada vai já p'ra a rua -- gritou ella -- ou eu vou-me pôr lá em baixo na escada, e quando o seu homem vier, mostro-lhe tudo!...
-- Pois mostre, faça o que quizer! -- disse Luiza, passando, sem a olhar.
Fôra uma desesperação, um odio que a tinham decidido. Mais valia acabar por uma vez!...
Sentia então como um allivio doloroso, em vêr o fim do seu longo martyrio! Havia mezes que elle durava. E pensando em tudo o que tinha feito e que tinha soffrido, as infamias em que chafurdára e as humilhações a que descera, vinha-lhe um tedio de si mesma, um nojo immenso da vida. Parecia-lhe que a tinham sujado e espesinhado; que n'ella nem havia orgulho intacto, nem sentimento limpo; que tudo em si, no seu corpo e na sua alma, estava enxovalhado, como um trapo que foi pisado por uma multidão, sobre a lama. Não valia a pena luctar por uma vida tão vil. O convento seria já uma purificação, a morte uma purificação maior... -- E onde estava elle, o homem que a desgraçára? Em Paris, retorcendo a guia dos bigodes, chalaceando, governando os seus cavallos, dormindo com outras! E ella morria alli, estupidamente! E quando lhe escrevera a pedir-lhe que a salvasse, nem uma palavra de resposta; nem a julgára digna do meio tostão da estampilha! O que elle lhe dizia pelas terras da Polvora acima, n'aquelle coupé: -- Dar-lhe-hia toda a sua vida, viveria á sombra das suas saias! O infame! Já tinha talvez no bolso o bilhete da passagem! Em quanto ella fôra a mulher alegre, que vem, despe o corpete, mostra um lindo collo -- então bem, prompto! Mas teve uma difficuldade, chorou, soffreu -- ah! não, isso não! És um bello animal que me dás um grande prazer -- perfeitamente, tudo o que quizeres: mas tornas-te uma creatura dolorida que precisa consolações, talvez uns poucos de centos de mil reis -- então boas noites, cá vou no paquete! Oh que estupida que é a vida! Ainda bem que a deixava!
Foi-se encostar á janella. Estava um dia muito azul, muito dôce. O sol punha grandes claridades de um dourado ligeiro sobre as paredes brancas, sobre a calçada. E havia no ar uma suavidade avelludada. O Paula, em chinellas de tapete, aquecia-se á porta do estanque. Então, diante do lindo ar d'inverno, enterneceu-se. Todos eram felizes n'aquella manhã de rosas, só ella soffria, pobre d'ella! E ficou a olhar, como esquecida n'uma vaga saudade, com uma lagrima na palpebra... De repente viu Juliana atravessar a rua, dobrar a esquina, -- e d'ahi a pouco voltar com um gallego, velho e pesado, que trazia o seu sacco ao hombro.
Ia-se embora! -- pensou Luiza. -- Mandava pôr fóra os bahus! E depois? Remettia as cartas a Jorge, ou entregava-lh'as ella mesma, no portal! Santo Deus! -- E parecia-lhe vêr Jorge apparecer no quarto, livido, com as cartas na mão!...
Veio-lhe um terror allucinado: não queria perder o seu marido, o seu Jorge, o seu amor, a sua casa, o seu homem! Apossou-se d'ella a revolta da femea contra a viuvez: aos vinte e cinco annos ir murchar para um convento! Não, c'os diabos!
Foi direita ao quarto de Juliana.
-- Vem vêr se lhe levo alguma cousa? -- gritou logo a outra furiosa.
Sobre a cama estava roupa branca espalhada, pelo chão botinas embrulhadas em jornaes velhos.
-- E ainda cá me ficam quatro camisas, dous pares de calcinhas, tres pares de meias, seis punhos na lavadeira. Fica ahi o rol. E quero as minhas contas!...
-- Escute, Juliana, não se vá. -- Mas a voz desappareceu-lhe, as lagrimas saltaram-lhe dos olhos.
Juliana poz-se a olhar para ella d'alto, triumphando, com uma botina de duraque em cada mão.
-- É mandar aquella desavergonhada embora, e está tudo acabado! -- E com uma voz aguda, batendo as solas das botinas: -- Fica tudo como d'antes, na paz do Senhor!
Uma alegria extraordinaria accendia-lhe o olhar. Vingava-se! fazia-a chorar! expulsava a outra! e não perdia os seus commodos!
-- É pôr a bebeda na rua! É pôl-a na rua!
Luiza curvou os hombros, foi á cozinha devagar; os degraus da escada pareciam-lhe immensos, infindaveis. Deixou-se cahir n'um banco, e limpando os olhos:
-- Joanna, venha cá, escute, vossê não póde continuar na casa...
A rapariga ficou a olhar para ella, espantada.
-- O que a Juliana disse foi n'um repente... Tem estado a chorar, a arrepender-se. É a criada mais antiga. O senhor estima-a muito...
-- Então a senhora manda-me embora? Então a senhora manda-me embora?
Luiza insistiu, baixo, envergonhada:
-- Foi um repente, tem estado a pedir perdão...
-- Eu foi para defender a senhora! -- exclamou a rapariga, abrindo os braços, afflicta.
Luiza sentiu-se indigna; e impaciente, para acabar:
-- Bem, Joanna, não estejamos com mais. Eu é que sou a dona da casa... Vou-lhe fazer as contas.
-- Olha que pago este! -- gritou Joanna, então, desesperada. E com uma resolução, batendo o pé: -- Pois o senhor é que ha-de dizer! Eu vou dizer tudo ao senhor! Hei-de-lhe contar tudo o que se passou! A senhora não tem razão!...
Luiza olhava-a, estupida. Agora era aquella! Era d'aquella rapariga, teimosa na sua justiça, que vinha o desastre! Era de mais! Veio-lhe um terror sobrenatural, como um espanto da consciencia, e apertando as fontes nas mãos abertas:
-- Que expiação! Que expiação, Santo Deus!
De repente, como desvairada, agarrou Joanna pelos braços, e fallando-lhe junto do rosto:
-- Joanna, vá-se pelo amor de Deus, vá-se! Não diga nada. Despeça-se vossê! -- E perdendo inteiramente todo o respeito proprio, cahiu de joelhos, diante da cozinheira, soluçando: -- Pelas cinco chagas de Christo, vá, Joanna, minha rica Joanna, vá. Peço-lhe eu, Joanna! Pelo amor de Deus!
A rapariga, assombrada, rompeu n'um choro estridente.
-- Vou, sim, minha senhora!... vou, sim, minha rica senhora!
-- Sim, Joanna, sim. Eu dou-lhe alguma cousa. Vossê bem vê... Não chore... Espere...
Desceu ao quarto correndo, tirou da gaveta duas libras das suas economias, voltou, galgando os degraus, metteu-lh'as na mão, dizendo-lhe baixo:
-- Faça uma trouxa, eu ámanhã lhe mandarei o bahu.
-- Sim, minha senhora -- soluçava a rapariga, babada de dôr -- sim, minha rica senhora!
Luiza veio deixar-se cahir de bruços sobre a sua chaise-longue, n'um choro convulsivo tambem, desejando a morte, pedindo, n'um terror, piedade a Deus!
Mas a voz aspera de Juliana disse bruscamente á porta:
-- Então em que ficamos?
-- A Joanna vai-se. Que quer mais?
-- Que sáia já! -- disse a outra imperiosamente. -- Que o jantar o faço eu. Por hoje, já se vê!
As lagrimas de Luiza seccavam-se, de raiva.
-- E a senhora agora ouça!
O tom de Juliana era tão insultante, que Luiza ergueu-se, como ferida.
E Juliana, ameaçando-a, d'alto, com o dedo erguido:
-- E a senhora agora é andar-me direita, senão eu lh'as cantarei!...
E voltou as costas, batendo os tacões.
Luiza olhou em roda, como se um raio tivesse atravessado o quarto; mas tudo estava immovel e correcto; nem uma prega das cortinas se movera, e os dous pastorinhos de porcelana sobre o toucador sorriam pretenciosamente.
Então tirou o roupão violentamente, passou um vestido sem apertar o corpete, vestiu por cima um casaco largo d'inverno, atirou o chapéo para a cabeça despenteada, sahiu, desceu a rua tropeçando nas saias, quasi a correr.
O Paula saltou para o meio da rua para a seguir: viu-a parar á porta de Sebastião, e veio dizer á estanqueira:
-- Em casa do Engenheiro ha novidade!
E ficou plantado á porta com os olhos cravados para as janellas abertas, onde as bambinellas de reps verde cahiam com as suas pregas immoveis.
-- O snr. Sebastião? -- perguntava Luiza á rapariguita sardenta, que correra a abrir a porta.
E ia entrando pelo corredor.
-- Na sala -- disse a pequena.
Luiza subiu; sentia sons de piano; abriu violentamente a porta, e correndo para elle, apertando as mãos contra o peito, n'uma voz angustiosa e sumida:
-- Sebastião, escrevi uma carta a um homem, a Juliana apanhou-m'a. Estou perdida!
Elle ergueu-se devagar, assombrado, muito branco; viu-lhe o rosto manchado, o chapéo mal posto, a afflicção do olhar:
-- Que é? Que é?
-- Escrevi a meu primo -- repetiu, com os olhos cravados n'elle, anciosamente -- a mulher apanhou-me a carta... Estou perdida!
Fez-se muito pallida, os olhos cerraram-se-lhe.
Sebastião amparou-a, levou-a meio desmaiada para o sophá de damasco amarello. E ficou de pé, mais descórado que ella, com as mãos nos bolsos do seu jaquetão azul, immovel, estupido.
De repente correu fóra, trouxe um copo d'agua, borrifou-lhe o rosto ao acaso. Ella abriu os olhos, as suas mãos errantes apalparam em redor, fitou-o espantada, e deixando-se cahir sobre o braço do canapé, com o rosto escondido nas mãos, rompeu n'um choro hysterico.
O seu chapéo cahira. Sebastião apanhou-o, sacudiu-lhe delicadamente as flôres, pôl-o sobre a jardineira com cuidado; e vindo nas pontas dos pés debruçar-se junto d'ella:
-- Então! então! -- murmurava. E as suas mãos tocando-lhe de leve o braço, tremiam como folhas.
Quiz dar-lhe agua para a socegar: ella recusou com a mão, endireitou-se devagar no sophá, limpando os olhos, assoando-se com grandes soluços.
-- Desculpe, Sebastião, desculpe -- dizia. -- Bebeu então um gole d'agua, ficou com as mãos no regaço, quebrada; e, uma a uma, as suas lagrimas silenciosas cahiam sem cessar.
Sebastião foi fechar a porta -- e vindo ao pé d'ella, com muita doçura:
-- Mas então? Que foi?
Ella ergueu para elle a sua face chorosa, onde os olhos brilhavam febrilmente; olhou-o um momento, e deixando pender a cabeça, toda humilhada:
-- Uma desgraça, Sebastião, uma vergonha! -- murmurou.
-- Não se afflija! Não se afflija!
Sentou-se ao pé d'ella, e baixo, com solemnidade:
-- Tudo o que eu puder, tudo o que fôr necessario, aqui me tem!
-- Oh Sebastião!... -- exclamou n'um impulso de reconhecimento humilde; e acrescentou: -- Acredite, tenho sido bem castigada! O que eu tenho soffrido, Sebastião!
Esteve um momento com os olhos cravados no chão; e agarrando-lhe o braço de repente, com força, as palavras romperam abundantes e precipitadas, como os borbulhões d'uma agua comprimida que rebenta.
-- Apanhou-me a carta, não sei como, por um descuido meu! Ao principio pediu-me seiscentos mil reis. Depois começou a martyrisar-me... Tive de lhe dar vestidos, roupa, tudo! Mudou de quarto, servia-se dos meus lençoes, dos finos. Era a dona da casa. O serviço quem o faz sou eu!... Ameaça-me todos os dias, é um monstro. Tudo tem sido baldado, boas palavras, bons modos... E onde tenho eu dinheiro? Pois não é verdade? Ella bem via... O que eu tenho soffrido! Dizem que estou mais magra, até o Sebastião reparou. A minha vida é um inferno. Se Jorge soubesse!... Aquella infame queria hoje dizer-lhe tudo!... E trabalho como uma negra. Logo pela manhã a limpar e varrer. Ás vezes tenho de lavar as chicaras do almoço. Tenha piedade de mim, Sebastião, por quem é, Sebastião! coitada de mim, não tenho ninguem n'este mundo.
E chorava, com as mãos sobre o rosto.
Sebastião, calado, mordia o beiço; duas lagrimas rolavam-lhe tambem pela face, sobre a barba. E levantando-se, devagar:
-- Mas Santo nome de Deus, minha senhora! porque me não disse ha mais tempo?
-- Ó Sebastião, podia lá! Uma vez estive para lh'o dizer... Mas não pude, não pude!
-- Fez mal!...
-- Esta manhã o Jorge quiz pôl-a fóra. Embirra com ella, percebe os desmazelos. Mas não desconfia de nada, Sebastião!... -- E desviou os olhos, muito escarlate. -- Escarnecia-me ás vezes por eu parecer tão apaixonada por ella... Mas esta manhã zangou-se, mandou-a embora. Apenas elle sahiu, veio como uma furia, insultou-me...
-- Santo Deus! -- murmurava Sebastião assombrado, com a mão sobre a testa.
-- Talvez não acredite, Sebastião, sou eu que faço os despejos!...
-- Mas merece a morte, essa infame! -- exclamou batendo com o pé no chão.
Deu alguns passos pesados pela sala, devagar, as mãos nos bolsos, os seus largos hombros curvados. Voltou sentar-se ao pé d'ella, e tocando-lhe timidamente no braço, muito baixo:
-- É necessario tirar-lhe as cartas...
-- Mas como?
Sebastião coçava a barba, a testa.
-- Ha-de-se arranjar -- disse, por fim.
Ella agarrou-lhe a mão:
-- Oh Sebastião, se fizesse isso!
-- Ha-de-se arranjar.
Esteve um momento calculando -- e com o seu tom grave:
-- Eu vou-me entender com ella... É necessario que ella esteja só em casa... Podiam ir ao theatro, esta noite.
Levantou-se lentamente, foi buscar o Jornal do Commercio, sobre a mesa, olhou os annuncios:
-- Podiam ir a S. Carlos, que acaba mais tarde... É o Fausto... Podiam ir vêr o Fausto...
-- Podiamos ir vêr o Fausto -- repetiu Luiza, suspirando.
E então, muito chegados, ao canto do sophá, Sebastião foi-lhe dizendo um plano, em palavras baixas, que ella devorava, anciosa.
Devia escrever a D. Felicidade, para a acompanhar ao theatro... Mandar um recado a Jorge, prevenindo-o que o iriam buscar ao Hotel Gibraltar... E a Joanna? A Joanna deixára a casa. Bem. Ás nove horas, então, Juliana estaria só.
-- Vê como tudo se arranja? -- disse elle, sorrindo.
Era verdade... Mas daria a mulher as cartas?
Sebastião tornou a coçar a barba, a testa:
-- Ha-de dar -- disse.
Luiza olhava-o quasi com ternura: parecia-lhe vêr na sua face honesta, uma alta belleza moral. E de pé diante d'elle, com uma melancolia na voz:
-- E vai fazer isso por mim, Sebastião, por mim, que fui tão má mulher...
Sebastião córou, respondeu encolhendo os hombros:
-- Não ha más mulheres, minha rica senhora, ha maus homens, é o que ha!
E acrescentou logo:
-- Eu vou buscar o camarote. Uma boa frisa, hein?... Uma frisasinha ao pé do palco...
Sorria, para a tranquillisar. Ella punha o chapéo, descia o véo com pequeninos soluços tristes, que voltavam a espaços.
No corredor encontraram a tia Joanna com os braços abertos; beijou muito Luiza; aquella visita era um milagre! E que bonita que estava! era a flôr do bairro!
-- Está bom, tia Joanna, está bom -- disse Sebastião, afastando-a brandamente.
Ora que não fosse mettediço! Já lá a tinha tido mais de meia hora, tambem ella agora a queria um bocadinho! Assim é que elle devia ter uma mulherzinha! Uma rapariga de bem! Uma açucena!
Luiza corava, embaraçada.
E o snr. Jorge? que era feito d'elle? Ninguem o via. E a D. Felicidade?
-- Está bom, basta, tia Joanna! -- fez Sebastião impaciente.
-- Olha o sofrego!... Ninguem lhe come a menina!... Cruzes!...
Luiza sorriu; lembrou-se então de repente que não tinha por quem mandar os bilhetes a D. Felicidade e a Jorge, ao hotel.
Sebastião fel-a entrar logo em baixo no escriptorio: que escrevesse, elle os mandaria: escolheu-lhe o papel, molhando-lhe a penna -- mais prompto, mais delicado desde que a sabia infeliz. Luiza fez o bilhete para Jorge; e, como apesar das suas afflicções, se lembrou com terror de certo vestido verde decotado de D. Felicidade, acrescentou n'um P. S., no bilhete para ella: «o melhor é vires de preto, e não fazeres grande toilette. Nada de decotes nem de côres claras.»
Quando entrou em casa, viu um gallego sahindo com a trouxasita de Joanna. E logo no corredor sentiu a voz grossa da rapariga, que das escadas da cozinha dizia para cima, ameaçadoramente:
-- Torne eu a apanhal-a, que não me sahe viva das mãos, sua bebeda!
-- Bufa! bufa! -- gritou de cima Juliana -- mas vai-te indo para o olho da rua!
Luiza escutava mordendo os beiços. Em que se convertera a sua casa! Uma praça! Uma taberna!
-- Se eu t'apanho! -- rosnava a Joanna descendo.
-- Rua! rua, sua porca! -- gania a Juliana.
Luiza então chamou a rapariga:
-- Joanna, não procure casa, venha por aqui além d'amanhã -- disse-lhe baixo.
Juliana em cima cantava a Carta adorada, com um jubilo estridente.
E d'ahi a pouco desceu, veio dizer, muito seccamente, «que estava o jantar na mesa».
Luiza não respondeu. Esperou que ella subisse á cozinha, correu á sala de jantar, trouxe pão, um prato de marmelada, uma faca, veio fechar-se no quarto; -- e alli jantou, a um canto da jardineira.
Ás seis horas um trem parou á porta. Devia ser Sebastião! Foi ella mesma abrir, em bicos de pés. Era elle, animado, vermelho, com o chapéo na mão: trazia-lhe a chave da frisa numero dezoito...
-- E isto...
Era um ramo de camelias vermelhas, rodeadas de violetas dobradas.
-- Oh Sebastião! -- murmurou ella, com um reconhecimento commovido.
-- E carruagem, tem?
-- Não
-- Eu cá mando. Ás oito, hein?
E desceu, todo feliz de a servir. Ella seguiu-o com o olhar que se humedecia. Foi á janella do quarto vêl-o sahir. -- Que homem! pensava. E cheirava as violetas, voltava o ramo na mão, sentia tambem um prazer dôce na protecção d'elle, nos seus cuidados.
Nós de dedos bateram á porta do quarto:
-- Então a senhora não quer jantar? -- disse a voz impaciente de Juliana, de fóra.
-- Não.
-- Mais fica!
D. Felicidade veio um pouco antes das oito. Luiza ficou tranquilla, vendo-a com vestido preto afogado, e o seu adereço d'esmeraldas.
-- Então que é isto? Que estroinice é esta, vamos a saber? -- disse logo, muito alegre, a excellente senhora.
Um capricho! -- O Jorge tinha jantado fóra, ella sentira-se tão só!... Dera-lhe o appetite d'ir ao theatro. Não pudera resistir... Tinham de o ir buscar pelo Hotel Gibraltar.
-- Eu tinha acabado de jantar quando recebi o teu bilhete. Fiquei!... E estive p'ra não vir -- disse, sentando-se, com pancadinhas muito satisfeitas nas pregas do vestido. -- Apertar-me depois de jantar! Felizmente, não tinha comido quasi nada!
Quiz então saber o que ia. O Fausto? Ainda bem! De que lado era a frisa? dezoito. Perdiam a vista da familia real, era pena!... Pois estava mais longe d'aquella noitada de theatro!... -- E erguendo-se passeava diante do toucador com olhares de lado, alisando os bandós, ageitando as pulseiras, entalada nos espartilhos, a pupilla luzidia.
Uma carruagem parou á porta.
-- O trem! -- disse, toda risonha.
Luiza calçando as luvas, já com a capa, olhava em redor: o coração batia-lhe alto; nos seus olhos havia uma febre. Não lhe faltava nada? perguntou D. Felicidade. A chave da frisa? o lenço?
-- Ai! o meu ramo! -- exclamou Luiza.
Juliana ficou espantada quando a viu vestida p'ra theatro. Foi alumiar, calada; e atirando a cancella com uma pancada insolente:
-- Não tem mesmo vergonha n'aquella cara! -- rosnou.
O trem já rodava, quando D. Felicidade rompeu a gritar, batendo nos vidros:
-- Espere, pare! Que ferro, esqueceu-me o leque! Não posso ir sem leque! Pare, cocheiro!
-- Faz-se tarde, filha, dou-te o meu. Toma! -- fez Luiza impaciente.
Aquellas agitações abalavam a digestão comprimida de D. Felicidade; felizmente, como ella dizia, arrotava! Graças a Deus, louvada seja Nossa Senhora, que podia arrotar!
Mas a descida do Chiado alegrou-a muito. Grupos escuros, onde se gesticulava, destacavam ás portas vivamente alumiadas da Casa Havaneza; os trens passavam para o lado do Picadeiro, com um rapido reluzir de lanternas ricas, que alumiavam as bandas brancas dos capotes dos criados. D. Felicidade com a sua face jubilosa á portinhola, gozava a claridade do gaz nas vitrines, o ar d'inverno; e foi com uma satisfação que viu o guarda-portão do Gibraltar, de calções vermelhos, vir com o boné na mão, á portinhola.
Perguntaram por Jorge.
E, caladas, olhavam a escada de lance decorativo onde globos foscos derramavam uma luz dôce. D. Felicidade, muito curiosa da «vida d'hotel», reparou na engommadeira que entrou com um cesto de roupa; depois n'uma senhora que lhe pareceu «estabanada», e que descia, vestida de soirée, mostrando o pé calçado n'um sapato redondo de setim branco: e sorria de vêr sujeitos roçarem-se pelo trem, lançando para dentro olhares gulosos.
-- Estão a arder por saber quem somos.
Luiza calada apertava nas mãos o seu ramo. Emfim Jorge appareceu no alto da escada, conversando muito interessadamente com um sujeito magrissimo, de chapéo ao lado, as mãos nos bolsos d'umas calças muito estreitas, e um enorme charuto enristado ao canto da bocca. Paravam, gesticulavam, cochichavam. Por fim o sujeito apertou a mão de Jorge, fallou-lhe ao ouvido, riu baixo, torcendo-se, bateu-lhe no hombro, obrigou-o muito sériamente a aceitar outro charuto, -- e pondo o chapéo mais ao lado foi conversar com o guarda-portão.
Jorge correu á portinhola do trem, rindo:
-- Então que extravagancia é esta? Theatro, tipoias!... Eu reclamo o divorcio!
Parecia muito jovial. Sómente tinha pena de não estar vestido... Ficaria atraz no camarote. -- E para as não amarrotar subiu para a almofada.
XV
Passava das oito horas quando o trem parou em S. Carlos. Um gaiato, que tossia muito, com o casaco pregado sobre o peito por um alfinete, precipitou-se a abrir a portinhola; e D. Felicidade sorria de contentamento, sentindo a cauda do vestido de sêda arrastar sobre o tapete esfiado do corredor das frisas.
O pano já estava levantado. Era á luz diminuida da rampa, a decoração classica d'uma cella d'alchimista; embrulhado n'um roupão monastico, com uma abundancia hirsuta de barbas grisalhas, tremuras senis, Fausto cantava, desilludido das sciencias, pousando sobre o coração a mão onde reluzia um brilhante. Um cheiro vago de gaz extravasado errava subtilmente. Aqui e além tosses expectoravam. Havia ainda pouca gente. Entrava-se.
Na frisa, para se collocarem, D. Felicidade e Luiza cochichavam, com gestosinhos de recusa, olhares supplicantes:
-- Oh D. Felicidade, por quem é!
-- Se estou aqui muito bem...
-- Não consinto...
Emfim D. Felicidade sentou-se no lugar superior alteando o peito. Luiza ficára atraz calçando as luvas; em quanto Jorge arrumava os agasalhos, furioso com o chapéo que já duas vezes rolára.
-- Tem banquinho, D. Felicidade?
-- Obrigada, cá o sinto. -- E remexeu os pés. -- Que pena não se vêr a familia real!
Nos camarotes d'assignantes iam apparecendo os altos penteados medonhos, enchumaçados de postiços; peitilhos de camisas branquejavam. Sujeitos entravam para as cadeiras devagar, com um ar gasto e intimo, compondo o cabello. Conversava-se baixo. Ao fundo da platéa havia um rumor desinquieto entre moços de jaquetão; e á entrada, sob a tribuna, viam-se, n'um apparato militar, correames polidos de municipaes, bonés carregados de policias; e reluzindo á luz, punhos de sabres.
Mas na orchestra correram fortes estremecimentos metallicos, dando um pavor sobrenatural; Fausto tremia como um arbusto ao vento; um ruido de folhas de lata, fortemente sacudidas, estalou; e Mephistopheles ergueu-se ao fundo, escarlate, lançando a perna com um ar charlatão, as duas sobrancelhas arrebitadas, uma barbilha insolente, un bel cavalier; e em quanto a sua voz poderosa saudava o Doutor, as duas plumas vermelhas do gorro oscillavam sem cessar d'um modo fanfarrão.
Luiza chegára-se para a frente; ao ruido da cadeira, cabeças na platéa voltaram-se, languidamente; pareceu de certo bonita, examinaram-na; ella, embaraçada, pôz-se a olhar para o palco muito séria: -- por traz de véos sobrepostos que se levantavam, n'uma affectação de visão, Margarida appareceu fiando o linho, toda vestida de branco; a luz electrica, envolvendo-a n'um tom crú, fazia-a parecer de gesso muito caiado; e D. Felicidade achou-a tão linda que a comparou a uma santa!
A visão desappareceu n'um tremulo de rebecas. E depois d'uma aria, Fausto, que ficára immovel ao fundo do palco, debateu-se um momento dentro da tunica e das barbas, e emergiu joven, gordinho, vestido de côr de lilaz, coberto de pôs d'arroz, compondo o frisado do cabello. As luzes da rampa subiram: uma instrumentação alegre e expansiva resoou: Mephistopheles, apossando-se d'elle, arrastou-o sofrego através da decoração. E o pano desceu rapidamente.
As platéas ergueram-se com um rumor grosso e lento. D. Felicidade um pouco affrontada abanava-se. Examinaram então as familias, algumas toilettes; e sorrindo concordaram que estava «do mais fino».
Nos camarotes conversava-se sobriamente; ás vezes uma joia brilhava, ou a luz punha tons lustrosos d'aza de corvo nos cabellos pretos onde alvejavam camelias ou reluzia o aro de metal d'um pente; os vidros redondos dos binoculos moviam-se devagar, picados de pontos luminosos.
Na platéa, nas bancadas clareadas, sujeitos quasi deitados namoravam com languidez; ou de pé, taciturnos, acariciavam as luvas; velhos dilettanti, de lenço de sêda, tomavam rapé, caturravam; e D. Felicidade interessava-se por duas hespanholas de verde, que na superior immobilisavam, n'uma affectação casta, os seus corpos de lupanar.
Um collega de Jorge magrinho e janota entrou então no camarote: parecia animado, e perguntou logo se não sabiam o grande escandalo? Não. E o engenheiro, com gestos vivos das suas mãosinhas calçadas n'umas luvas esverdeadas, contou que a mulher do Palma, o deputado, sabiam, tinha fugido!...
-- P'ra o estrangeiro?
-- Qual! -- E a voz do engenheiro tinha agudos triumphantes. -- Ahi é que estava o bonito. P'ra casa d'um hespanhol que morava defronte!... Era divino! De resto -- e a sua voz tornou-se grave -- estava enthusiasmado com o baixo!
E depois de ter sorrido, olhado pelo binoculo, ficou calado, extenuado do que dissera, batendo apenas de vez em quando no joelho de Jorge, com um Sim, senhor! familiar, ou um Então que é feito? amigavel.
Mas a campainha retinia finamente. O engenheiro sahiu, em bicos de pés. E o pano ergueu-se devagar na alegria da kermesse, cheia de uma luz branca e dura. Casas acastelladas branquejavam no pano de fundo, n'alguma collina do Rheno amiga das vinhas. Escarranchado sobre uma pipa, o barrigudo e folgazão rei Cambrinus ria enormemente, erguendo, na sua attitude de taboleta gothica, a vasta caneca emblematica da cerveja germanica. E estudantes, judeus, reitres e donzellas, nas suas côres vivas de paninho, moviam-se d'um modo automatico e somnambulo, aos compassos largos da instrumentação festiva.
A walsa então desenrolou-se languidamente, como um fio de melodia, em espiraes suaves que ondeavam e fugiam: Luiza seguia os pésinhos das dançarinas, as pernas musculosas volteando no tablado; e as saias tufadas e curtas faziam como o girar multiplicado e reproduzido de vagos discos de cambraia.
-- Que bonito! -- murmurava ella, com uma felicidade no rosto.
-- D'appetite -- affirmava D. Felicidade, revirando os olhos.
Certas agudezas delicadas dos flautins enterneciam Luiza; e a casa, Juliana, as suas miserias, tudo lhe parecia recuado, no fundo d'uma noite esquecida.
Mas o jovial Diabo adiantava-se por entre os grupos, e logo, com gestos aduncos e rapaces, cantou o Dio del oro. A sua voz arremessada affirmava, n'um tom brutal, o poder do dinheiro; nas massas da instrumentação passavam sonoridades claras e tilintantes d'um remexer sofrego de thesouros; e as notas altas finaes cahiam, d'um modo curto e secco, como martelladas triumphantes cunhando o divino ouro!
Luiza então viu D. Felicidade perturbar-se; e seguindo o seu olhar negro, subitamente avivado, descobriu na geral a calva polida do conselheiro Accacio, -- que comprimentava, promettendo generosamente, com a mão espalmada, a sua visita proxima.
Veio, apenas o pano desceu, e felicitou-as immediatamente por terem escolhido aquella noite: a opera era das melhores e estava gente muito fina. Lamentou ter perdido o primeiro acto; -- ainda que não gostasse extremamente da musica, apreciava-o por ser muito philosophico. E, tomando da mão de Luiza o binoculo, explicou os camarotes, disse os titulos, citou as herdeiras ricas, nomeou os deputados, apontou os litteratos. -- Ah! conhecia bem S. Carlos! Havia dezoito annos!
D. Felicidade, rubra, admirava-o. O Conselheiro sentia que não podessem vêr o camarote real: a rainha, como sempre, estava adoravel.
Sim? Como estava?
-- De velludo. Não sabia se rôxo, se azul escuro. Affirmar-se-hia, e viria dizer...
Mas quando o pano subiu, ficou sentado por traz de Luiza começando logo a explicar -- que aquella (Siebel, colhendo flôres no jardim de Margarida) posto que segunda dama, ganhava quinhentos mil reis por mez...
-- Mas apesar d'estes ordenadões morrem quasi sempre na miseria -- disse com reprovação. -- Vicios, cêas, orgias, cavalgadas...
A portinha verde do jardim abriu-se, e Margarida entrou devagar, desfolhando o malmequer da legenda, caracterisada de virgem, com as duas longas tranças louras. Scismava, fallava só, amava: a dôce creatura sente em volta de si o ar pesado, e quereria bem que sua mãi voltasse!
Os olhos de Luiza encheram-se então de melancolia, com a saudosa ballada do rei de Thule; aquella melodia dava-lhe a vaga sensação d'um pallido paiz d'amores espirituaes, banhado de luares frios, longe, no Norte, junto a um mar gemente -- ou de tristezas aristocraticas, scismadas n'um terraço, sob a sombra d'um parque...
Mas o Conselheiro preveniu-as, dizendo:
-- Agora é que é! Reparem. Agora é o ponto capital.
De joelhos, diante do cofre das joias, a dama requebrava-se, garganteando; apertava nas mãos o collar, extasiada; punha os brincos com denguices delirantes; e da sua bocca muito aberta sahia um canto trinado, d'uma crystallinidade aguda -- entre o vago susurro da admiração burgueza.
O Conselheiro disse discretamente:
-- Bravo! Bravo!
E, excitado, dissertou: aquillo era o melhor da opera! Era alli que se via a força das cantoras...
D. Felicidade quasi tinha medo que lhe estalasse alguma cousa na garganta. Preoccupava-se tambem com as joias. Seriam falsas? Seriam d'ella?
-- É p'ra a tentar, não é verdade?
-- É um drama allemão -- disse-lhe baixo o Conselheiro.
Mas Mephistopheles ia arrastando a boa Martha; Fausto e Margarida perdiam-se nas sombras cumplices do jardim aphrodisiaco, -- e o Conselheiro observou que todo aquelle acto era um pouco fresco.
D. Felicidade murmurou-lhe -- entre reprehensiva e extatica:
-- Quantas scenas não terá tido assim, maganão!
O Conselheiro fitou-a, indignado:
-- O quê, minha senhora! levar a deshonra ao seio d'uma familia!
Luiza fez-lhe chut, sorrindo. Interessava-se agora. Tinha escurecido; uma facha de luz electrica enchia o jardim d'um vago luar azulado, onde os maciços arredondados se recortavam em pastas escuras; e Fausto e Margarida enlaçados, quasi desfallecidos, soltavam d'um modo expirante o seu duetto: uma sensualidade delicada e moderna, com elances d'um requinte devoto, arrastava-se na orchestra gemente; o tenor esforçava-se, agarrando o peito, com um geito morbido dos quadris, o olhar anuviado: e desprendendo-se da languida arcada dos violoncellos, o canto subia para as estrellas...
Al pallido chiarore
Dei astri d'oro.
Mas o coração de Luiza batia precipitadamente; vira-se de repente sentada no divan, na sua sala, ainda tomada dos soluços do adulterio, e Bazilio, com o charuto ao canto da bocca, batia distrahido no piano aquella aria -- Al pallido chiarore dei astri d'oro. D'essa noite tinha vindo toda a sua miseria! -- e subitamente, como longos véos funebres que descem e abafam, as recordações de Juliana, da casa, de Sebastião, vieram escurecer-lhe a alma.
Olhou o relogio. Eram dez horas. Que se passaria?
-- Estás incommodada? -- perguntou-lhe Jorge.
-- Um pouco.
Margarida apoiava-se, expirante de voluptuosidade, ao rebordo da sua janellinha. Fausto corre. Enlaçam-se. E entre as gargalhadas do Diabo e o roncar dos rebecões -- o pano desceu, pondo uma reticencia pudica...
D. Felicidade, abrazada, quiz agua. Jorge apressou-se: queria bolos? neve? A excellente senhora hesitou; o chic da neve attrahia-a, mas cohibiu-se com terror da colica. Veio sentar-se ao fundo ao pé de Luiza, e ficou a olhar, vagamente cançada; havia um susurro lento; bocejava-se discretamente; e o fumo dos cigarros, entrando, de fóra, fazia uma nevoa apenas perceptivel que enchia a sala, ia prender-se ao lustre, embaciando ligeiramente as luzes. Quando Jorge sahiu o Conselheiro acompanhou-o: ia acima tomar o seu copo de gelatina...
-- É a minha cêa em dia de S. Carlos -- disse.
Voltou d'ahi a pouco, limpando os beiços ao lenço de sêda, ter com Jorge que fumava no pequeno patamar junto á entrada das cadeiras:
-- Veja isto, Conselheiro -- disse-lhe logo Jorge, indignado, mostrando a parede -- que escandalo!
Tinham desenhado, com o charuto apagado sobre a parede caiada, enormes figuras obscenas: e alguem, prudente e amigo da clareza, ajuntára por baixo as designações sexuaes com uma boa letra cursiva.
E Jorge, revoltado:
-- E passam por aqui senhoras! Vêem, lêem! Isto só em Portugal!...
O Conselheiro disse:
-- A autoridade devia intervir de certo... -- Acrescentou com bonhomia: -- São rapazes, com o charuto. Apreciam muito esta distracção... -- E sorrindo, recordando-se: -- Uma occasião mesmo, o conde de Villa Rica, que tem graça, muita graça, insistiu commigo, dando-me o charuto, para que eu fizesse um desenho... -- E mais baixo: -- Eu dei-lhe uma lição severa. Tomei o charuto...
-- E fumou-o?
-- Escrevi.
-- Uma obscenidade?
O Conselheiro, recuando, exclamou com severidade:
-- Jorge, conhece o meu caracter! Pois suppõe...? -- E acalmando-se: -- Não, tomei o charuto e escrevi com mão firme: honra ao merito!
Mas a campainha retiniu, entraram no camarote. Luiza incommodada não quiz sentar-se á frente. E o Conselheiro, grave, tomou o seu lugar -- defronte de D. Felicidade. Foi para a nutrida senhora um momento feliz, de um gozo requintado. Estavam ambos, alli, como noivos! O seu peito abundante arfava: via-se a sahirem, mais tarde, de braço dado, entrarem n'um coupé estreito, pararem á porta da casa conjugal, pisarem o tapete da alcova... Tinha um suor á raiz dos cabellos -- e vendo o Conselheiro sorrir-lhe, amavel, com a sua calva toda luzidia ao gaz, sentia um reconhecimento apaixonado pela mulher de virtude que, áquella hora, no fundo da Galliza, estava cravando agulhas n'um coração de cera!...
Mas de repente o Conselheiro bateu na testa, arremessou-se sobre o chapéo, sahiu impetuosamente. Olharam-se inquietos. D. Felicidade empallideceu: seria alguma dôr? Santo Deus! Já murmurava baixo uma reza.
Mas viram-no entrar logo, e dizer com uma voz triumphante:
-- D'azul escuro!
Abriram grandes olhos, sem comprehender.
-- Sua magestade a rainha! Tinha promettido verifical-o, cumpri-o!
E sentou-se com solemnidade, dizendo a Luiza:
-- Lamento que se esconda n'esse recanto, D. Luiza! Na sua idade! Na flôr dos annos! Quando tudo na vida é côr de rosa!
Ella sorriu. Estava agora muito sobresaltada. A cada momento olhava o relogio. Sentia-se doente: os pés arrefeciam-lhe, uma vaga febre fazia-lhe a cabeça pesada. O seu pensamento estava na casa, em Juliana, em Sebastião, cortado de palpites, de esperanças, de terrores... E via, sem comprehender, a multidão de soldados vestidos de côres mipartidas, com armas obsoletas, que marchavam, paravam n'uma cadencia affectada, erguendo uma poeira subtil no tablado mal regado. Um côro vigoroso resoava: era a marcha arrogante e festiva dos reitres allemães, celebrando a alegria das excursões victoriosas pelos paizes do vinho, e a posse das bolsas mercenarias cheias de sonoros rixdales! E os seus olhos seguiam um barbaças corpulento, que, por cima dos gorros quadrados dos bésteiros, balançava monotonamente um largo quadrado de paninho -- a bandeira do Santo Imperio, negra, vermelha e d'ouro!
Mas então ergueu-se um rumor no fundo da platéa. Vozes duras altercavam. Ordem! ordem! dizia-se. Localistas na superior pozeram-se rapidamente em bicos de pés na palhinha das cadeiras. Quatro policias e dous municipaes appareceram á porta do fundo; e depois d'uma troça, de risadas, foram levando um moço livido, que cambaleava, -- e o lado esquerdo do seu jaquetão de pellucia estava todo vomitado!
Mas fez-se logo silencio: o pano de fundo oscillava um pouco, acotovellado pela sahida festiva dos reitres e dos populares; e no palco deserto, tendo á direita um portico oscillante de cathedral e á esquerda a portinha triste d'uma casa burgueza, Valentim, com uma longa pera, á beira da rampa, beijava sofregamente uma medalha: -- mas Luiza não o escutava. Pensava com o coração confrangido: que fará a esta hora Sebastião?
Sebastião, ás nove horas, por um nordeste agudo que torcia as luzes do gaz dentro dos candieiros, dirigia-se devagar a casa d'um commissario de policia, seu primo afastado, o Vicente Azurara. Uma velha servente, engelhada como uma maçã raineta, levou-o ao quarto escolastico, «onde o snr. commissario estava a cozer uma grande constipação»: encontrou-o com um gabão pelos hombros, os pés embrulhados n'um cobertor, tomando grogs quentes, e lendo o Homem dos tres calções. Apenas Sebastião entrou tirou do nariz adunco as grandes lunetas, e erguendo para elle os olhos pequeninos, chorosos do defluxo, exclamou:
-- Estou com um diabo d'uma constipação ha tres dias, que me não quer largar... -- E rosnou algumas pragas, passando a mão magra e nodosa sobre uma face trigueira, de linhas duras, a que um espesso bigode grisalho dava ferocidade.
Sebastião lamentou-o muito: não admirava com a estação que ia!... Aconselhou-lhe agua sulfurica com leite fervido.
-- Eu, se isto não despega -- disse o commissario rancorosamente -- atiro-lhe ámanhã p'ra dentro com meia garrafa de genebra; e se não fôr por bem, ha-de ir á força... E que ha de novo?
Sebastião tossiu, queixou-se d'andar tambem adoentado, e chegando a cadeira para ao pé do primo Vicente, pondo-lhe a mão sobre o joelho:
-- Ó Vicente, tu, se eu te pedisse um policia p'ra me acompanhar cá p'ra uma cousa, só p'ra metter medo, só p'ra fazer que uma pessoa restitua o que tirou, tu davas ordem, hein?
-- Ordem p'ra quê? -- perguntou lentamente o Vicente com a cabeça baixa, os olhinhos avermelhados em Sebastião.
-- Ordem p'ra me acompanhar, p'ra se mostrar. É só p'ra se mostrar. É um caso exquisito... P'ra metter medo... Tu sabes que eu não sou capaz... É p'ra que uma pessoa restitua o que tirou. Sem fazer escandalo...
-- Roupas? Dinheiro?
E o commissario cofiava reflectidamente o bigode com os seus longos dedos magros, muito queimados do cigarro.
Sebastião hesitou:
-- Sim. Roupas, cousas... É p'ra não haver escandalo... Tu percebes...
O Vicente murmurou com um ar profundo, fixando-o:
-- Um policia p'ra se mostrar...
Escarrou ruidosamente. E franzindo a testa:
-- Não é cousa de politica?
-- Não! -- fez Sebastião.
O commissario embrulhou mais os pés no cobertor, rolou em redor os olhos, ferozmente:
-- Nem toca com gente grauda?
-- Qual!
-- Um policia p'ra se mostrar... -- ruminava o Vicente. -- Tu és um homem de bem... Dá cá aquella pasta de cima da commoda.
Tirou um papel pautado, examinou-o, acavallando a luneta no nariz, meditou com a mão em garra sobre a testa:
-- O Mendes... Serve-te o Mendes?
Sebastião, que não conhecia o Mendes, acudiu logo:
-- Sim, quem quizeres. É só p'ra se mostrar...
-- O Mendes. É um homemzarrão. É serio, foi da Guarda.
Fez-lhe aproximar o tinteiro; escreveu devagar a ordem; releu-a duas vezes; cortou os tt, seccou-a á chaminé do candieiro; e dobrando-a com solemnidade:
-- Á segunda divisão!
-- Obrigado, Vicente. É um grande favor... Obrigado. E agasalha-te, homem! E não te esqueça: agua sulfurica da pharmacia Azevedo na rua de S. Roque: meia chavena de leite fervido... E obrigado. Não queres nada, hein?
-- Não. Dá uma placa ao Mendes. É serio, foi da Guarda!
E acavallando as lunetas retomou o Homem dos tres calções.
Sebastião d'ahi a meia hora, seguido do robusto Mendes, que marchava militarmente, com os braços um pouco arqueados, encaminhava-se para casa de Jorge. Não tinha ainda um plano definido. Calculava naturalmente que Juliana vendo, áquella hora da noite, o policia com o seu terçado, se aterraria, imaginaria logo a Boa Hora, o Limoeiro, a costa d'Africa, entregaria as cartas, pediria misericordia! E depois? Pensava vagamente em lhe pagar a passagem para o Brazil, ou dar-lhe quinhentos mil reis para ella se estabelecer longe, na provincia... Veria. O essencial era aterral-a!
Juliana, com effeito, depois d'abrir a porta, apenas viu subir, atraz de Sebastião, o policia, fez-se muito amarella, exclamou:
-- Credo! Que temos nós?
Estava embrulhada n'um chale preto, e o candieiro de petroleo, que ella erguia, prolongava na parede a sombra disforme da cuia.
-- Ó snr.a Juliana, faça favor d'accender luz na sala -- disse Sebastião, tranquillamente.
Ella fixava no policia um olhar faiscante e inquieto.
-- Ó senhor, que aconteceu? Credo! Os senhores não estão em casa. Eu se soubesse nem tinha aberto... Ha alguma novidade? Olha o proposito!
-- Não é nada -- disse Sebastião, abrindo a porta da sala -- tudo em paz!
Elle mesmo accendeu com um phosphoro uma vela na serpentina -- que fez sahir vagamente da sombra os dourados dos caixilhos das gravuras, a pallida face do retrato da mãi de Jorge, um reflexo de espelho.
-- Ó snr. Mendes, sente-se, sente-se!
O Mendes collocou-se á beira da cadeira com a mão na cinta, o terçado entre os joelhos, muito soturno.
-- Esta é que é a pessoa -- disse Sebastião, indicando Juliana, que ficára á porta da sala, attonita.
A mulher recuou, livida:
-- Ó snr. Sebastião, que brincadeira é esta?
-- Não é nada, não é nada...
Tomou-lhe o candieiro da mão, e tocando-lhe no braço:
-- Vamos lá dentro á sala de jantar.
-- Mas que é? É alguma cousa commigo? Credo! E esta! Olha que desconchavo!
Sebastião fechou a porta da sala de jantar, pousou o candieiro sobre a mesa, onde havia ainda um prato com codeas de queijo, e um fundo de vinho n'um copo, deu alguns passos, fazendo estalar nervosamente os dedos, e parando bruscamente diante de Juliana:
-- Dê cá umas cartas que roubou á senhora...
Juliana teve um movimento para correr á janella, gritar.
Sebastião agarrou-lhe o braço, e fazendo-a sentar com força sobre uma cadeira:
-- Escusa d'ir á janella gritar, a policia já está dentro de casa. Dê cá as cartas, ou p'ra a enxovia!
Juliana entreviu n'um relance um quarto tenebroso no Limoeiro, o caldo do rancho, a enxerga nas lages frias...
-- Mas que fiz eu? -- balbuciava -- que fiz eu?
-- Roubou as cartas. Dê-as p'ra cá, avie-se.
Juliana sentada á beira da cadeira, apertando desesperadamente as mãos, rosnava por entre os dentes cerrados:
-- A bebeda! A bebeda!
Sebastião, impaciente, pôz a mão no fecho da porta.
-- Espere, seu diabo! -- gritou ella, erguendo-se com um salto. Fixou-o rancorosamente, desabotoou o corpete, enterrou a mão no peito, tirou uma carteirinha. Mas de repente batendo com o pé, n'um phrenesi:
-- Não! não! não!
-- Diabos me levem se vossê não fôr dormir á enxovia! -- Entre-abriu a porta. -- Ó snr. Mendes!
-- Ahi tem! -- gritou ella atirando-lhe a carteira. E brandindo para elle os punhos: -- Raios te partam, malvado!
Sebastião apanhou a carteira. Havia tres cartas: uma muito dobrada era de Luiza; leu a primeira linha: Meu adorado Bazilio; e muito pallido guardou logo tudo na algibeira interior do casaco. Abriu então a porta: a possante figura do Mendes estava na sombra.
-- Está tudo arranjado, snr. Mendes, -- a voz tremia-lhe um pouco -- não lhe quero tomar mais tempo.
O homem fez uma continencia, calado: quando Sebastião, no patamar, lhe resvalou na mão uma libra, o Mendes curvou-se respeitosamente e disse, com uma voz pegajosa:
-- E para o que quizer, o sessenta e quatro, o Mendes, que foi da Guarda. Não se incommode v. s.a Ás ordens de v. s.a Minha mulher e filhos agradecem. Não se incommode v. s.a O sessenta e quatro, o Mendes, que foi da Guarda!
Sebastião fechou a cancella, voltou á sala de jantar. Juliana ficára n'uma cadeira, aniquilada; mas apenas o viu, erguendo-se furiosamente:
-- A bebeda foi-lhe contar tudo! Foi vossê que arranjou a armadilha! Tambem vossê dormiu com ella!...
Sebastião, muito branco, dominava-se.
-- Vá pôr o chapéo, mulher. O snr. Jorge despediu-a. Ámanhã mandará buscar os bahus...
-- Mas o homem ha-de saber tudo! -- berrou ella. -- Este tecto me rache se eu não lhe disser tudo tim-tim por tim-tim. Tudo! As cartas que recebia, onde ia vêr o homem. Deitava-se com ella na sala, até os pentes lhe cahiam na balburdia. Até a cozinheira lhes sentia o alarido!
-- Cale-se! -- bradou Sebastião com uma punhada na mesa, que fez tremer toda a louça no aparador, e esvoaçar os canarios. E com a voz toda tremula, os beiços brancos: -- A policia tem o seu nome, sua ladra! Á menor palavra que vossê diga vai para o Limoeiro, e pela barra fóra. Vossê não roubou só as cartas; roubou roupas, camisas, lençoes, vestidos... -- Juliana ia fallar, gritar. -- Bem sei -- continuou elle violentamente -- deu-lh'os ella, mas á força, porque vossê a ameaçava. Vossê arrancou-lhe tudo. É roubo. É d'Africa! -- E o que é dizer ao snr. Jorge, póde ir dizer. Vá. Veja se elle a acredita. Diga! São algumas bengaladas que leva por esses hombros, ladra!
Ella rangia os dentes. Estava apanhada! Elles tinham tudo por si, a policia, a Boa-Hora, a cadêa, a Africa!... E ella -- nada!
Todo o seu odio contra a Piorrinha fez explosão. Chamou-lhe os nomes mais obscenos. Inventou infamias.
-- É que nem as do Bairro-Alto! E eu -- gritava -- sou uma mulher de bem, nunca um homem se pôde gabar de tocar n'este corpo. Nunca houve raio nenhum que me visse a côr da pelle. E a bebeda!... -- Tinha arremessado o chale, alargou anciosamente o collar do vestido. -- Era um desaforo por essa casa! E o que eu passei com a bruxa da tia! É o pago que me dão! Os diabos me levem se eu não fôr para os jornaes. Vi-a eu abraçada ao janota, como uma cabra!
Sebastião a seu pezar escutava-a, com uma curiosidade dolorosa por aquelles pormenores; sentia desejos agudos de a esganar, e os seus olhos devoravam-lhe as palavras. Quando ella se calou arquejante:
-- Vá, ponha o chapéo, e p'ra a rua!
Juliana então allucinada de raiva, com os olhos sahidos das orbitas, veio para elle, e cuspiu-lhe na cara!
Mas de repente a bocca abriu-se-lhe desmedidamente, arqueou-se para traz, levou com ancia as mãos ambas ao coração, e cahiu para o lado, com um som molle, como um fardo de roupa.
Sebastião abaixou-se, sacudiu-a; estava hirta, uma escuma rôxa apparecia-lhe aos cantos da bocca.
Agarrou no chapéo, desceu as escadas, correu até á Patriarchal. Um coupé vazio passava; atirou-se para dentro, mandou a «todo o que dér», para casa de Julião; e obrigou-o a vir immediatamente, mesmo em chinellas, sem collarinho.
-- É caso de morte, é a Juliana -- balbuciava muito pallido.
E pelo caminho, entre o ruido das rodas e o tilintar dos caixilhos, contava confusamente que entrára em casa de Luiza, que achára Juliana muito despeitada por ter sido despedida, e que a fallar, a esbracejar, de repente, tombára p'ra o lado!
-- Foi o coração. Estava p'ra dias -- disse Julião, chupando a ponta do cigarro.
Pararam. Mas Sebastião desorientado, ao sahir, fechára a porta! E dentro só a morta! O cocheiro offereceu a sua gazua, que serviu.
-- Então nem se vai a uma passeadinha ao Dáfundo, meus fidalgos? -- disse o homem, mettendo a gorgeta na algibeira.
Mas vendo-os atirar com a porta:
-- Tambem não é gente d'isso -- rosnou com desprezo, batendo a parelha.
Entraram.
No pequeno pateo o silencio da casa pareceu a Sebastião pavoroso. Subia, aterrado, os degraus, que se afiguravam infindaveis; e, com fortes pancadas do coração, esperava ainda que ella estivesse apenas adormecida n'um desmaio simples, ou já de pé, pallida e respirando!
Não. Lá estava como a deixára, estendida na esteira, com os braços abertos, os dedos retorcidos como garras. A convulsão das pernas arregaçára-lhe as saias, viam-se as suas canellas magras com meias de riscadinho côr de rosa e as chinellas de tapete; o candieiro de petroleo, que Sebastião esquecera ao pé sobre uma cadeira, punha tons lividos na testa, nas faces rigidas; a bocca torcida fazia um sombra; e os olhos medonhamente abertos, immobilisados na agonia repentina, tinham uma vaga nevoa, como cobertos d'uma têa d'aranha diaphana. Em redor tudo parecia mais immovel, d'um hirto morto. Vagos reflexos de prata reluziam no aparador; e o tic-tac do cuco palpitava sem descontinuar.
-- Julião apalpou-a, ergueu-se sacudindo as mãos, disse:
-- Está morta com todas as regras. É necessario tiral-a d'aqui. Onde é o quarto?
Sebastião, pallido, fez signal com o dedo que era por cima.
-- Bem. Arrasta-a tu, que eu levo o candieiro. -- E como Sebastião não se movia: -- Tens medo? -- perguntou rindo.
Escarneceu-o: que diabo, era materia inerte, era como quem agarrava uma boneca! Sebastião, com um suor á raiz dos cabellos, levantou o cadaver por debaixo dos braços, começou a arrastal-o, devagar. Julião adiante erguia o candieiro; e por fanfarronada cantou os primeiros compassos da marcha do Fausto. Mas Sebastião escandalisou-se, e com uma voz que tremia:
-- Largo tudo, e vou-me...
-- Respeitarei os nervos da menina! -- disse Julião curvando-se.
Continuaram calados. Aquelle corpo magro parecia a Sebastião d'um peso de chumbo. Arquejava. Nas escadas uma das chinellas do cadaver soltou-se, rolou. E Sebastião sentia aterrado alguma cousa que lhe batia contra os joelhos; era a cuia cahida, suspensa por um atilho.
Estenderam-na na cama; Julião, dizendo que se deviam seguir as tradições, -- pôz-lhe os braços em cruz e fechou-lhe os olhos.
Esteve um momento a olhal-a:
-- Feia besta! -- murmurou, estendendo-lhe sobre o rosto uma toalha enxovalhada.
Ao sahir examinou, admirado, o quarto:
-- Estava mais bem alojada que eu, o estafermo!
Fechou a porta, deu volta á chave:
-- Requiescat in pace -- disse.
E desceram, calados.
Ao entrar na sala, Sebastião, muito pallido, pôz a mão no hombro de Julião:
-- Então achas que foi o aneurisma?
-- Foi. Enfureceu-se, estourou. É dos livros...
-- Se não se tivesse zangado hoje...
-- Estourava ámanhã. Estava nas ultimas... Deixa em paz a creatura. Está começando a esta hora a apodrecer, não a perturbemos.
Declarou então, esfregando as mãos com frio, que «comia alguma cousa». Achou no armario um pedaço de vitella fria, uma garrafa meia de Collares. Installou-se e, com a bocca cheia, deitando o vinho d'alto:
-- Então sabes a novidade, Sebastião?
-- Não.
-- O meu concorrente foi despachado!
Sebastião murmurou:
-- Que ferro!
-- Era previsto -- disse Julião com um grande gesto. -- Eu ia fazer um escandalo, mas... -- e teve um risinho -- amansaram-me! Estou n'um posto medico, deram-me um posto medico! Atiraram-me um osso!
-- Sim? -- fez Sebastião. -- Homem, ainda bem, parabens. E agora?
-- Agora, roel-o!
De resto, tinham-lhe promettido a primeira vagatura. O posto medico não era mau... Em definitiva, a situação melhorára...
-- Mas mesquinha, mesquinha! Não sáio do atoleiro...
Estava farto de medicina, disse depois d'um silencio. Era um bêco sem sahida. Devia-se ter feito advogado, politico, intrigante. Tinha nascido p'ra isso!
Ergueu-se, e com grandes passadas pela sala, o cigarro na mão, a voz cortante, expoz um plano de ambição: -- O paiz está a preceito para um intrigante com vontade! Esta gente toda está velha, cheia de doenças, de catarrhos de bexiga, de antigas syphilis! tudo isto está pôdre por dentro e por fóra! o velho mundo constitucional vai a cahir aos pedaços... Necessitam-se homens!
E plantando-se diante de Sebastião:
-- Este paiz, meu caro amigo, tem-se governado até aqui com expedientes. Quando vier a revolução contra os expedientes, o paiz ha-de procurar quem tenha os principios. Mas quem tem ahi principios? Quem tem ahi quatro principios? Ninguem; teem dividas, vicios secretos, dentes postiços; mas principios, nem meio! Por consequencia se houver tres patuscos que se dêem ao trabalho de estabelecer meia duzia de principios sérios, racionaes, modernos, positivos, o paiz tem se atirar de joelhos, e supplicar-lhes: Senhores, fazei-me a honra insigne de me pôr o freio nos dentes! Ora eu devia ser um d'estes. Nasci p'ra isso! E secca-me a idéa de que em quanto outros idiotas, mais astutos e mais previdentes, hão-de estar no poleiro a reluzir ao sol, al hermoso sol português, como se diz nas zarzuelas, eu hei-de estar a receitar cataplasmas a velhas devotas, ou a ligar as rupturas d'algum desembargador caduco.
Sebastião calado pensava na outra, morta em cima.
-- Estupido paiz, estupida vida! -- rosnou Julião.
Mas uma carruagem entrou na rua, parou á porta.
-- Chegam os principes! -- disse Julião. Desceram logo.
Jorge ajudava Luiza a sahir do trem, quando Sebastião, abrindo a porta, bruscamente:
-- Houve cá grande novidade!
-- Fogo? -- gritou Jorge voltando-se aterrado.
-- A Juliana, que lhe rebentou o aneurisma -- disse a voz de Julião da sombra da porta.
-- Oh c'os diabos! -- E Jorge atarantado procurava á pressa na algibeira troco para o cocheiro.
-- Ai, eu já não entro! -- exclamou logo D. Felicidade, mostrando á portinhola a sua larga face envolvida n'uma manta branca. -- Eu já não entro!
-- Nem eu! -- fez Luiza, toda tremula.
-- Mas para onde queres que vamos, filha? -- exclamou Jorge.
Sebastião lembrou que podiam ir para casa d'elle. Tinha o quarto da mamã, era só pôr lençoes na cama.
-- Vamos, sim! Vamos, Jorge! É o melhor! -- supplicou Luiza.
Jorge hesitava. A patrulha que ia passando ao alto da rua, ao vêr aquelle grupo junto á lanterna do trem, parou. E Jorge emfim, instado, muito contrariado, consentiu.
-- Diabo da mulher, morrer a semelhante hora! A carruagem vai-a levar, D. Felicidade...
-- E a mim, que estou em chinellas! -- acudiu Julião.
D. Felicidade lembrou então, como christã, que era necessario alguem, para velar a morta...
-- Ora, pelo amor de Deus, D. Felicidade! -- exclamou Julião, entrando logo para a carruagem, batendo com a portinhola.
Mas D. Felicidade insistia: era uma falta de religião! ao menos pôr duas velas, mandar chamar um padre!...
-- Largue, cocheiro! -- berrou Julião, impaciente.
A carruagem deu a volta. E D. Felicidade á portinhola, apesar de Julião que a puxava pelos vestidos, gritava:
-- É um peccado mortal! É uma irreverencia! Ao menos duas velas!
O trem partiu a trote.
Luiza agora tinha escrupulos: realmente podia-se mandar chamar alguem...
Mas Jorge enfureceu-se. Chamar quem, áquella hora? Que beatice! Estava morta, acabou-se! Enterrava-se... Velar o estafermo! Fazer-lhe talvez camara ardente tambem? Queria ella ir velal-a?...
-- Então, Jorge, então!... -- murmurava Sebastião.
-- Não, é de mais! É vontade de crear embaraços, que diabo!
Luiza baixava a cabeça: e, em quanto Jorge, praguejando, ficou atraz a fechar a porta da casa, ella foi descendo a rua pelo braço de Sebastião.
-- Estourou de raiva -- disse-lhe elle baixinho.
Toda a rua Jorge resmungou. Que idéa, irem dormir agora fóra de casa! Realmente era levar muito longe as mariquices...!
Até que Luiza lhe disse, quasi chorando:
-- Vê se me queres torturar mais, e fazer-me mais doente, Jorge!
Elle calou-se, mordendo furioso o charuto. E Sebastião, para a socegar, propoz que viesse a tia Vicencia, a preta, velar a Juliana.
-- Era talvez melhor -- murmurou Luiza.
Chegaram á porta de Sebastião. O frou-frou do vestido de sêda de Luiza, áquella hora, na sua casa, dava uma commoção a Sebastião: a mão tremia-lhe ao accender as velas da sala. Foi acordar a tia Vicencia para fazer chá; tirou elle mesmo os lençoes dos bahús, apressado, feliz d'aquella hospitalidade. Quando voltou á sala, Luiza estava só, muito pallida, ao canto do sophá.
-- Jorge? -- perguntou elle.
-- Foi ao seu escriptorio, Sebastião, escrever ao parocho para o enterro... -- E com os olhos brilhantes, n'uma voz sumida e assustada: -- Então?
Sebastião tirou da algibeira a carteirinha de Juliana. Ella agarrou-a sofregamente -- e com um movimento brusco, tomou-lhe a mão, e beijou-lh'a.
Mas Jorge entrava, sorrindo.
-- Então agora está mais descançada, a menina?
-- Inteiramente -- disse ella, com um suspiro de allivio.
Foram tomar chá. Sebastião contou a Jorge, corando um pouco, a maneira como entrára em casa, a Juliana lhe estivera a dizer que fôra despedida, e fallando, exaltando-se, zás, de repente, cahira para o lado morta...
E acrescentou:
-- Coitada!
Luiza via-o mentir, olhando-o com adoração.
-- E a Joanna? -- perguntou Jorge, de repente.
Luiza, sem se perturbar, respondeu:
-- Ah, esqueci-me dizer-te... Tinha pedido licença p'ra ir vêr uma tia que está muito mal, p'ra os lados de Bellas... Diz que volta ámanhã... Mais uma gota de chá, Sebastião...
Esqueceram-se depois de mandar a Vicencia -- e ninguem velou a morta.
XVI
Luiza passou a noite ás voltas, com febre. Jorge de madrugada ficou assustado da frequencia do seu pulso e do calor secco da pelle.
Elle mesmo, muito nervoso, não pudera dormir.
O quarto, onde se não accendera luz havia muito, tinha uma frialdade deshabitada: na parede, junto ao tecto, havia manchas de humidade: e a cama antiga de columnas torneadas sem cortinados, o velho tremó do seculo passado com o seu espelho embaciado davam, á luz bruxuleante da lamparina, um sentimento triste de convivencias extinctas. O achar-se alli com sua mulher, n'uma cama alheia, trazia-lhe, sem saber porque, uma vaga saudade; parecia-lhe que se dera na sua vida uma alteração brusca -- e que, semelhante a um rio a que se muda o leito, a sua existencia, desde essa noite, começaria a correr entre aspectos differentes. O nordeste fazia bater os caixilhos da vidraça, e uivava encanado na rua.
Pela manhã, Luiza não se pôde levantar.
Julião, chamado á pressa, tranquillisou-os:
-- É uma febresita nervosa. Quer socego, não vale nada. Foi o medosinho d'hontem, hein?
-- Sonhei toda a noite com ella -- disse Luiza. -- Que tinha resuscitado... Que horror!
-- Ah! póde estar socegada... E já a aviaram, a mulher?
-- O Sebastião lá anda com a massada -- disse Jorge. -- E eu vou dar uma vista d'olhos.
Na rua já se sabia a morte da tripa-velha.
A mulher que a veio amortalhar, uma matrona muito picada das bexigas, com os olhos avermelhados da paixão da aguardente, era conhecida da snr.a Helena. Estiveram um momento a palrar ao sol, á porta do estanque:
-- Muito que fazer agora, snr.a Margarida, hein?
-- Bastante, bastante, snr.a Helena -- disse a amortalhadeira com a voz um pouco rouca. -- No inverno sempre ha mais obra. Mas tudo gente velha, com os frios. Nem um corpinho bonito p'ra vestir...
A snr.a Margarida tinha predilecções artisticas. Gostava d'um bonito corpo de dezoito annos, uma mocinha fresca para lavar, escarolar, enfeitar... Entrouxava á má cara a gente velha. Mas com as raparigas novas esmerava-se: acatitava as pregas da mortalha; calculava o chic d'uma flôr, d'um laço; trabalhava com os requintes ajanotados d'uma modista do sepulchro.
A estanqueira contou-lhe muitas particularidades sobre a Juliana, os favores dos patrões, as tafularias d'ella, os luxos do quarto tapetado... A snr.a Margarida dizia-se «banzada». E para quem iria agora tudo aquillo? -- perguntavam. -- A tripa-velha não tinha parentes...
-- Era uma riqueza p'ra a minha Antoninha! -- disse a amortalhadeira, traçando o chale com tristeza.
-- Como vai ella, a pequena?...
-- Aquillo vai mal, snr.a Helena. Aquella cabeça douda! -- E exhalando a sua dôr com loquacidade: -- Deixar o brazileiro que a trazia nas palminhas... E por quem? Por aquelle desalmado, que lhe come tudo, que já lhe arranjou um filho, e que a derrêa com pau... Mas então, as raparigas são assim... Vão atraz do palmo de cara... Que elle é bonito rapaz! Mas um bebedo!... Coitada!... Pois vou vestir a boneca, snr.a Helena. -- E entrou na casa compungidamente.
O padre já chegára tambem. Estava na sala com Sebastião, que conhecia d'Almada, e fallava de lavoura, d'enxertos, das regas, n'uma voz grossa -- passando, com um gesto lento da sua mão cabelluda, o lenço enrolado por debaixo do nariz. As janellas em toda a casa estavam abertas ao sol muito dôce. Os canarios chilreavam.
-- E estava ha muito tempo na casa, a defunta? -- perguntou o padre, a Jorge que passeava pela sala, fumando.
-- Ha quasi um anno.
O padre desdobrou lentamente o lenço, e sacudindo-o, antes de se assoar:
-- A sua senhora ha-de sentir muito... É um tributo universal!...
E assoou-se, com estrondo.
A Joanna, então, de chale e lenço, appareceu, em bicos de pés. Soubera pelos visinhos que a Juliana «arrebentára», que os senhores estavam em casa do snr. Sebastião. Vinha de lá. Luiz mandára-a entrar no quarto. Quando a viu doente, a sua rica senhora, lagrimejou muito. Luiza disse-lhe -- «que agora estava tudo como d'antes, podia voltar...»
-- E ouça, Joanna, se o snr. Jorge lhe perguntar... que esteve em Bellas, com a tia...
A rapariga fôra logo buscar a trouxa e vinha installar-se -- um pouco assustada da morte em casa.
D'ahi a pouco o Paula bateu discretamente á porta.
Alli vinha offerecer-se para o que fosse necessario n'aquelle transe! E tirando e pondo rapidamente o boné, raspando o pé, dizia com a sua voz catarrhosa:
-- Lamento a desgraça, lamento a desgraça! Todos somos mortaes...
-- Bem, bem, snr. Paula, não é necessario nada -- disse Jorge. -- Obrigado!
E fechou bruscamente a cancella.
Estava impaciente por se desembaraçar «d'aquella estopada»: e mesmo como o enfastiavam as martelladas espaçadas dos homens pregando o caixão, em cima, chamou a Joanna:
-- Diga a essa gente que se avie. Não vamos ficar aqui toda a vida!
A Joanna foi logo dizer que o senhor estava n'um phrenesi! Tinha-se feito já intima da snr.a Margarida. A amortalhadeira fôra mesmo com ella á cozinha para tomar uma «sustanciasinha». Como o lume estava apagado, contentou-se com sopas de pão em vinho.
-- Sopinha de burro -- dizia, fazendo estalar a lingua.
Mas estava enojada com a defunta! Nunca vira bicho mais feio. Um corpo de sardinha secca! E pondo um olhar complacente nas bellas fórmas de Joanna: -- A menina, não. A menina tem-me o ar de ter muito bom corpo... -- E parecia calcular como talharia a mortalha para aquellas linhas robustas.
Joanna disse escandalisada:
-- Longe vá o agouro, cruzes!
A outra sorriu; faltavam-lhe dous dentes: e aflautando a voz:
-- Tem-me passado pela mão muita gente fina, minha menina. Mais uma gotinha de vinho, faz favor? É do Cartaxo, não? é muito avelludado! rica gota!
Emfim, com grande satisfação de Jorge, ás quatro horas os homens desceram o caixão. A visinhança estava pelas portas. O Paula mesmo, por fanfarronada, disse com dous dedos adeus ao esquife, murmurando:
-- Boa viagem!
Jorge em cima, ao sahir, perguntou a Joanna:
-- E vossê não tem medo de ficar aqui só?
-- Eu não, meu senhor. Quem vai não volta!
Tinha medo, com effeito; mas preparava-se a passar a noite com o Pedro, e batia-lhe o coração de alegria de «terem a casa por sua» até de manhã, e de se poderem rolar amorosamente, como fidalgos, por cima do divan da sala.
Jorge voltou com Sebastião para casa, e apenas entrou no quarto, onde Luiza estava deitada:
-- Tudo prompto -- disse, esfregando as mãos. -- Lá vai para o Alto de S. João, devidamente acondicionada. Per omnia sæcula sæculorum!
A tia Joanna, que estava á cabeceira de Luiza, acudiu:
-- Ai, quem lá vai, lá vai... Mas boa mulher, não era ella!
-- Era um bom estafermo -- disse Jorge. -- Esperemos que a esta hora esteja a ferver na caldeira de Pero Botelho. Não é verdade, tia Joanna?
-- Jorge! -- fez Luiza reprehensivamente. E julgou dever rezar-lhe baixo dous padre-nossos por alma.
Foi tudo o que a terra deu na sua morte áquella que ia rolando a essa hora, ao trote de duas velhas eguas, para a valla dos pobres, e que fôra na vida Juliana Couceiro Tavira!
No dia seguinte Luiza estava melhor: fallaram mesmo, com grande desconsolação da tia Joanna, em voltar para casa. Sebastião não dizia nada, mas quasi desejava secretamente que uma convalescença a retivesse alli semanas indefinidas. Ella parecia tão agradecida! Tinha olhares tão reconhecidos, que só elle comprehendia! E era tão feliz tendo-a alli e a Jorge na sua casa! Conferenciava com a tia Vicencia sobre o jantar; andava pelos corredores e pela sala, com respeito, quasi em bicos de pés, como se a presença d'ella santificasse a casa; enchia os vasos de camelias e de violetas; sorria beatamente ao vêr Jorge, á sobremesa, saborear e gabar o seu velho cognac; sentia alguma cousa de bom acalental-o como um manto acolchoado e macio; e já pensava que quando ella partisse tudo lhe pareceria mais frio, e com uma tristeza de ruina!
Mas d'ahi a dous dias voltaram para casa.
Luiza ficou muito agradada com a criada nova. Fôra Sebastião que a arranjára. Era uma rapariguita aceadinha e branca, com grandes olhos bonitos e pasmados, um ar amoravel: chamava-se Marianna; e foi logo correndo dizer a Joanna «que morria pela senhora! tinha uma carinha d'anjo! que linda que era!»
Jorge logo n'essa manhã mandou os dous bahus de Juliana á tia Victoria.
Luiza, quando elle sahiu á tardinha, fechou-se no quarto, com a carteirinha de Juliana, correu os transparentes por precaução, accendeu uma vela, e queimou as cartas. As mãos tremiam-lhe; e via, com os olhos marejados de lagrimas, a sua vergonha, a sua escravidão irem-se, dissiparem-se n'um fumo alvadio! Respirou completamente! Emfim! E fôra Sebastião, aquelle querido Sebastião!
Foi então á sala, á cozinha, vêr a casa: tudo lhe pareceu novo, a sua vida cheia de doçura: abriu todas as janellas; experimentou o piano; rasgou mesmo em pedaços, por superstição, a musica da Médjé, que lhe dera Bazilio; conversou muito com a Marianna; e saboreando o seu caldo de gallinha de convalescente, com a face alumiada da felicidade:
-- Que bem que vou passar agora! -- pensava.
Quando sentiu no corredor os passos de Jorge que entrava, correu, deitou-lhe os braços ao pescoço, e com a cabeça no hombro d'elle:
-- Estou tão contente hoje! E se tu soubesses, é tão boa rapariga a Marianna!
Mas n'essa noite a febre voltou. Julião, de manhã, achou-a peor.
-- Crescimentos... -- disse descontente.
Estava receitando, quando D. Felicidade entrou, muito excitada. Ficou toda surprehendida de vêr Luiza doente; e debruçando-se sobre ella, disse-lhe logo ao ouvido:
-- Tenho que te contar!
Apenas Jorge e Julião sahiram, desabafou, sentada aos pés da cama, -- com uma voz ora baixa pela gravidade da confidencia, ora aguda pelo impeto da indignação:
Tinha sido roubada! Indignamente roubada! O homem que mandára a Tuy, o grande ladrão, tinha escripto á Gertrudes, á criada, que não estava resolvido a voltar a Lisboa; que a mulher de virtude mudára de povoação; que elle não queria saber mais d'esse negocio e que até o achava exquisito; que offerecia o seu prestimo em Tuy, -- tudo isto n'uma boa letra d'escrevente publico, n'um portuguez horrivel, -- e do dinheiro nem palavra!
-- Que te parece o mariola? Oito moedas! Eu se não fosse pela vergonha, ia direita á policia... Ai! os gallegos p'ra mim acabaram! Por isso o Conselheiro não se chegava ao rego! Pudera! A mulher nunca lançou a sorte!... -- Porque se já não acreditava na honestidade dos gallegos, não perdera a fé no poder das bruxas.
Que ella não era pelas oito moedas! Era pelo ferro! E depois, quem sabe onde estaria agora a mulher! Ai, era d'endoudecer!... Que te parece, hein?
Luiza encolheu os hombros: muito abafada na roupa, as faces escarlates, cerravam-se-lhe os olhos n'uma somnolencia pesada: D. Felicidade aconselhou-lhe vagamente um «suadouro», suspirando; e como Luiza não lhe podia dar consolações, sahiu para ir á Encarnação desabafar com a Silveira.
N'essa madrugada Luiza peorou. A febre recrudecera. Jorge, inquieto, vestiu-se á pressa, ás nove horas da manhã, foi buscar Julião. Descia a escada rapidamente, abotoando ainda o paletot, quando o carteiro subia, tossindo o seu catarrho.
-- Cartas? -- perguntou Jorge.
-- Uma p'ra a senhora -- disse o homem. -- Ha-de ser p'ra a senhora...
Jorge olhou o enveloppe: tinha o nome de Luiza, vinha de França.
-- De quem diabo é isto? -- pensou. Metteu-a no bolso do paletot, e sahiu.
D'ahi a meia hora voltava com Julião, n'um trem.
Luiza dormitava, amodorrada.
-- É preciso cautela... Vamos a vêr... -- murmurou Julião, coçando devagar a cabeça, em quanto do outro lado do leito Jorge o olhava anciosamente.
Receitou e ficou para almoçar com Jorge. Estava um dia frio e pardo. A Marianna, abafada n'um casabeque, servia, com os dedos vermelhos, inchados de frieiras. E Jorge sentia-se entristecer, como se toda a nevoa do ar se lhe fosse lentamente depositando e condensando n'alma.
A que se podia attribuir semelhante febre? dizia, muito desconsolado. Tão extraordinario! Havia seis dias, ora melhor, ora peor...
-- Estas febres veem por tudo -- replicou Julião, partindo tranquillamente uma torrada. -- Ás vezes por uma corrente d'ar ás vezes por um desgosto. Tenho eu, por exemplo, um caso curioso: um sujeito, um Alves, que esteve p'ra fallir, e que viveu, coitado, durante dous mezes em torturas. Ha duas semanas, por um golpe de fortuna, -- a velhaca ás vezes tem d'estes caprichos, -- arranjou todos os seus negocios, viu-se livre. Pois senhor, desde então tem uma febre assim, tortuosa, complexa, com symptomas disparatados... O que é? É que a excitação nervosa abateu, e a felicidade trouxe-lhe uma revolução no sangue. Póde muito bem dar á casca. Faz então a fallencia geral, a grande, aquella em que o crédor é implacavel, saca á vista, e... per omnia sæcula!
Ergueu-se, e accendendo o cigarro:
-- Em todo o caso um repouso absoluto. É necessario ter-lhe o espirito em algodão em rama. Nada de palestra, nada de phrases, e se tiver sêde, limonada. Até logo!
E sahiu, calçando as luvas pretas que usava agora desde que pertencia ao Posto Medico.
Jorge voltou á alcova: Luiza ainda dormitava. Marianna sentada ao pé n'uma cadeirinha baixa, com o rostinho muito triste, não tirava de Luiza os seus grandes olhos vagamente espantados.
-- Tem estado muito inquieta -- murmurou.
Jorge apalpou a mão de Luiza que ardia, conchegou-lhe a roupa. Beijou-a devagarinho na testa, foi cerrar as portas da janella, defronte da alcova. -- E passeando no escriptorio, voltavam-lhe as palavras de Julião: são febres que veem por um desgosto! Pensava na historia do negociante, recordava aquelle estado de abatimento e de fraqueza de Luiza que o preoccupára tanto, ultimamente, tão inexplicavel! Ora, tolices! Desgosto de quê? Em casa de Sebastião estivera tão animada! Nem a morte da outra lhe fizera abalo! -- De resto acreditava pouco nas febres de desgosto! Julião tinha uma medicina litteraria. Pensou mesmo que seria mais prudente chamar o velho dr. Caminha...
Ao metter a mão no bolso, então, os seus dedos encontraram uma carta; era a que o carteiro lhe dera, de manhã, para Luiza. Tornou a examinal-a com curiosidade; o sobrescripto era banal, como os que ha nos cafés ou nos restaurantes; não conhecia a letra; era d'homem, vinha de França... Atravessou-o um desejo rapido de a abrir. Mas conteve-se, atirou-a para cima da mesa, embrulhou devagar um cigarro.
Voltou á alcova. Luiza permanecia na sua modorra: a manga do chambre arregaçada descobria o braço mimoso, com a sua pennugem loura; a face escarlate reluzia; as pestanas longas pousavam pesadamente, no adormecimento das palpebras finas; um annel do cabello cahira-lhe sobre a testa, e pareceu a Jorge adoravel e tocante com aquella côr, a expressão da febre. Pensou, sem saber porque, que outros a deveriam achar linda, desejal-a, dizer-lh'o, se podessem... Para que lhe escreviam de França, quem?
Voltou ao escriptorio, mas aquella carta sobre a mesa irritava-o: quiz lêr um livro, atirou-o logo impaciente; e poz-se a passear, torcendo muito nervoso o forro das algibeiras.
Agarrou então a carta, quiz vêr, através do papel delgado do enveloppe; os seus dedos, mesmo irresistivelmente, começaram a rasgar um angulo do sobrescripto. Ah! Não era delicado aquillo!... Mas a curiosidade, que governava o seu cerebro, suggeriu-lhe toda a sorte de raciocinios, com uma tentação persuasiva: -- Ella estava doente, e podia ter alguma cousa urgente; se fosse uma herança? depois ella não tinha segredos, e então em França! Os seus escrupulos eram pueris! Dir-lhe-hia que a abrira por engano. E se a carta contivesse o segredo d'aquelle desgosto, do desgosto das theorias de Julião!... Devia abril-a então para a curar melhor!
Sem querer achou-se com a carta desdobrada na mão. N'um relanço avido devorou-a. Mas não comprehendeu bem; as letras embrulhavam-se; chegou-se á janella, releu devagar:
«Minha querida Luiza.
«Seria longo explicar-te, como só antes d'hontem em Nice -- d'onde cheguei esta madrugada a Paris -- recebi a tua carta, que pelos carimbos vejo que percorreu toda a Europa atraz de mim. Como já lá vão dous mezes e meio que a escreveste, imagino que te arranjaste com a mulher, e que não precisas do dinheiro. De resto se por acaso o queres, manda um telegramma e tens-l'o ahi em dous dias. Vejo pela tua carta que não acreditaste nunca que a minha partida fosse motivada por negocios. És bem injusta. A minha partida não te devia ter tirado, como tu dizes, todas as illusões sobre o amor, porque foi realmente quando sahi de Lisboa que percebi quanto te amava, e não ha dia, acredita, em que me não lembre do Paraiso. Que boas manhãs! Passaste por lá por acaso alguma outra vez? Lembras-te do nosso lunch? Não tenho tempo para mais. Talvez em breve volte a Lisboa. Espero vêr-te, porque sem ti Lisboa é para mim um desterro.
«Um longo beijo do
«Teu do C.
«Bazilio».
Jorge dobrou o papel, lentamente, em duas, em quatro dobras, atirou-o para cima da mesa, disse alto:
-- Sim, senhor! bonito!
Encheu o cachimbo de tabaco machinalmente, com os olhos vagos, os beiços a tremer: deu alguns passos incertos pelo escriptorio: -- de repente arremessou o cachimbo que despedaçou um vidro da janella, bateu com as mãos desvairado, e atirando-se de bruços para cima da mesa, rompeu a chorar, rolando a cabeça entre os braços, mordendo as mangas, batendo com os pés, louco!
Ergueu-se subitamente, agarrou a carta, ia com ella á alcova de Luiza. Mas a lembrança das palavras de Julião immobilisou-o: que esteja socegada, nada de phrases, nenhuma excitação! Fechou a carta n'uma gaveta, metteu a chave na algibeira. E de pé, a tremer, com os olhos raiados de sangue, sentia idéas insensatas alumiarem-lhe bruscamente o cerebro, como relampagos n'uma tormenta -- matal-a, sahir de casa, abandonal-a, fazer saltar os miolos...
A Marianna bateu ligeiramente á porta, disse-lhe que a senhora o chamava.
Uma onda de sangue subiu-lhe á cabeça; fitava Marianna, estupido, batendo as palpebras:
-- Já vou -- disse com a voz rouca.
Ao passar na sala, diante do espelho oval, ficou pasmado do seu rosto manchado, envelhecido. Foi correr uma toalha molhada pela face, alisou o cabello: e ao entrar na alcova, ao vêl-a, com os seus grandes olhos dilatados onde a febre reluzia, teve de se agarrar á barra do leito, porque sentiu, em redor, as paredes oscillarem como lonas ao vento.
Mas sorriu-lhe:
-- Como estás?
-- Mal -- murmurou ella debilmente.
Chamou-o para ao pé de si com um gesto muito fatigado.
Elle veio, sentou-se sem a olhar.
-- Que tens? -- disse ella chegando o rosto para elle. -- Não te afflijas. -- E tomou a mão que elle pousára á beira do leito.
Jorge, com um repellão secco, sacudiu a mão d'ella, ergueu-se bruscamente com os dentes cerrados; sentia uma colera brutal; ia-se, com medo de si, de um crime, quando ouviu a voz de Luiza, arrastando-se, n'uma lamentação:
-- Porque, Jorge? Que tens?...
Voltou-se; viu-a meia erguida com os olhos abertos para elle, uma angustia no rosto; e duas lagrimas cahiam-lhe, silenciosamente.
Atirou-se de joelhos, agarrou-lhe as mãos, aos soluços.
-- Que é isto? -- exclamou a voz de Julião á porta da alcova.
Jorge, muito pallido, ergueu-se devagar.
Julião levou-o para a sala, e cruzando terrivelmente os braços diante d'elle:
-- Tu estás doudo? Pois tu sabes que ella está n'um estado d'aquelles, e vaes-te pôr a fazer-lhe scenas de lagrimas?
-- Não me pude conter...
-- Estoura. Eu estou a cortar-lhe a febre por um lado, e tu a dar-lh'a por outro? Estás doudo!
Estava realmente indignado. Interessava-se por Luiza como doente. Desejava muito cural-a; e sentia uma satisfação em exercer o dominio de pessoa necessaria n'aquella casa, onde as suas visitas tinham tido sempre uma attitude dependente; mesmo agora ao sahir, não se esquecia de offerecer negligentemente um charuto a Jorge.
Jorge foi heroico durante toda essa tarde. Não podia estar muito tempo na alcova de Luiza, a desesperação trazia-o n'um movimento contradictorio; mas ia lá a cada momento, sorria-lhe, conchegava-lhe a roupa com as mãos tremulas; e como ella dormitava, ficava immovel a olhal-a feição por feição, com uma curiosidade dolorosa e immoral, com para lhe surprehender no rosto vestigios de beijos alheios, esperando ouvir-lhe n'algum sonho da febre murmurar um nome ou uma data; e amava-a mais desde que a suppunha infiel, mas d'um outro amor, carnal e perverso. Depois ia-se fechar no escriptorio, e movia-se alli entre as paredes estreitas, como um animal n'uma jaula. Releu a carta infinitas vezes, e a mesma curiosidade roedora, baixa, vil, torturava-o sem cessar: Como tinha sido? Onde era o Paraiso? Havia uma cama? Que vestido levava ella? O que lhe dizia? Que beijos lhe dava?
Foi relêr todas as cartas que ella lhe escrevêra para o Alemtejo, procurando descobrir nas palavras symptomas de frieza, a data da traição! Tinha-lhe odio então, voltavam-lhe ao cerebro idéas homicidas -- esganal-a, dar-lhe chloroformio, fazer-lhe beber laudano! E depois immovel, encostado á janella, ficava esquecido n'um scismar espesso, revendo o passado, o dia do seu casamento, certos passeios que déra com ella, palavras que ella dissera...
Ás vezes pensava -- seria a carta uma mistificação? Algum inimigo d'elle podia tel-a escripto, remettido para França. Ou talvez Bazilio tivesse outra Luiza em Lisboa, e por engano ao sobrescriptar o enveloppe tivesse escripto o nome da prima; e a alegria momentanea que lhe davam aquellas phantasias fazia-lhe parecer a realidade mais cruel. Mas como fôra? como fôra? Se podesse saber a verdade! Tinha a certeza que socegaria, então! Arrancaria de certo do seu peito aquelle amor como um parasita immundo; apenas ella melhorasse, leval-a-hia a um convento, e elle iria morrer longe, n'Africa, ou algures... Mas quem saberia?... Juliana!
Era ella que sabia! De certo! E todas as condescendencias d'ella por Juliana, os moveis, o quarto, as roupas, comprehendeu tudo! Era a pagar a cumplicidade! Era a sua confidente! Levava as cartas, sabia tudo. E estava na valla, morta, sem poder fallar, a maldita!
Sebastião, como costumava, veio á noitinha. Não havia ainda luzes, e, apenas elle entrou, Jorge chamou-o ao escriptorio, calado, accendeu uma vela, tirou a carta da gaveta.
-- Lê isto.
Sebastião ficára assombrado ao vêr o rosto de Jorge. Olhava a carta fechada, e tremia. Apenas viu a assignatura, uma pallidez d'agonia cobriu-lhe o rosto. Parecia-lhe que o soalho tinha uma vibração onde elle se firmava mal. Mas dominou-se, leu devagar, pousou a carta sobre a mesa, sem uma palavra.
Jorge disse então:
-- Sebastião, isto p'ra mim é a morte. Sebastião, tu sabes alguma cousa. Tu vinhas aqui. Tu sabes. Dize-me a verdade!
Sebastião abriu devagar os braços e respondeu:
-- Que te hei-de eu dizer? Não sei nada!
Jorge agarrou-lhe as mãos, sacudiu-lh'as, e procurando o seu olhar anciosamente:
-- Sebastião, pela nossa amizade, pela alma de tua mãi, por tantos annos que temos passado juntos, Sebastião, dize-me a verdade!...
-- Não sei nada. Que hei-de eu saber?
-- Mentes!
Sebastião disse apenas:
-- Podem-te ouvir, homem!
Houve um silencio: Jorge apertava as fontes nas mãos, com passadas pelo escriptorio, que faziam vibrar o soalho; e de repente pondo-se diante de Sebastião, quasi supplicante:
-- Mas dize-me ao menos o que fazia ella! Sahia? Vinha aqui alguem?
Sebastião respondeu devagar, os olhos fixos na luz:
-- Vinha o primo ás vezes, ao principio. Quando a D. Felicidade esteve doente, ella ia vêl-a... O primo depois partiu... Não sei mais nada.
Jorge esteve um momento a olhar Sebastião, com uma fixidez abstracta.
-- Mas que lhe fiz eu, Sebastião? Que lhe fiz eu? Adorava-a! Que lhe fiz eu p'ra isto? Eu, que a adorava, áquella mulher!
Rompeu a chorar.
Sebastião ficára de pé junto á mesa, estupido, aniquilado.
-- Foi talvez uma brincadeira, apenas... -- murmurou.
-- E o que diz a carta? -- gritou Jorge, voltando-se n'uma colera, sacudindo o papel. -- Este Paraiso! As boas manhãs lá passadas! É uma infame!...
-- Está doente, Jorge -- disse apenas Sebastião.
Jorge não respondeu. Passeou calado algum tempo. Sebastião, immovel, fatigava a vista contra a chamma da luz. Jorge então fechou a carta na gaveta, e tomando o castiçal com um tom de lassidão lugubre e resignado:
-- Queres vir tomar chá, Sebastião?
E não tornaram mais a fallar na carta.
N'essa noite Jorge dormiu profundamente. Ao outro dia o seu rosto estava impassivel, d'uma serenidade livida.
Foi d'ahi por diante o enfermeiro de Luiza.
A doença, depois d'uma marcha incerta durante tres dias, definiu-se: eram crescimentos; enfraquecia muito, mas Julião estava tranquillo.
Jorge passava os seus dias ao pé d'ella. D. Felicidade vinha ordinariamente pelas manhãs: sentava-se aos pés da cama, e ficava calada, com uma face envelhecida; aquella esperança na mulher de Tuy tão subitamente destruida abalára-a como um velho edificio a que se tira subitamente um pilar; ia-se tornando ruina; e só se animava quando o Conselheiro apparecia pelas tres horas a saber da «nossa formosa enferma». Trazia sempre alguma palavra grave que dizia com um tom profundo, conservando o chapéo na mão, sem querer entrar na alcova, por pudor:
-- A saude é um bem que só apreciamos quando nos foge!
Ou:
-- A doença serve para aquilatarmos os amigos.
E terminava sempre:
-- Meu Jorge, as rosas da saude bem cedo reflorirão nas faces de sua virtuosa esposa!...
De noite Jorge dormia vestido, n'um enxergão sobre o chão; mas apenas cerrava os olhos uma ou duas horas. O resto da noite procurava lêr: começava um romance, mas nunca ia além das primeiras linhas; esquecia o livro, e com a cabeça entre as mãos punha-se a pensar: era sempre a mesma idéa -- como tinha sido? Conseguira reconstruir aproximadamente, com logica, certos factos; via bem Bazilio chegando, vindo visital-a, desejando-a, mandando-lhe ramos, perseguindo-a, indo-a vêr aqui e além, escrevendo-lhe; mas depois? Viera já a comprehender que o dinheiro era para Juliana. A creatura tivera alguma exigencia: tinha-os surprehendido? possuia cartas?... E encontrava, n'aquella reconstrucção dolorosa, falhas, vazios, como buracos escuros, onde a sua alma se arremessava sofregamente. Então começava a recordar os ultimos mezes desde a sua volta do Alemtejo, e como ella se mostrára amante, e que ardor punha nas suas caricias... Para que o enganára então?
Uma noite, com precauções de ladrão, rebuscou todas as gavetas d'ella, esquadrinhou os vestidos, até as dobras da roupa branca, as caixas de collares, de rendas; viu bem o cofre de sandalo; estava vazio; nem o pó d'uma flôr secca! Ás vezes punha-se a fitar os moveis no quarto, na sala, a sondal-os como se quizesse descobrir n'elles os vestigios do adulterio. Ter-se-hiam sentado alli? Elle teria ajoelhado aos pés d'ella, acolá, sobre o tapete? Sobretudo o divan tão largo, tão commodo, desesperava-o; tomou-lhe odio. Veio a detestar mesmo a casa, como se os tectos que os tinham coberto, os soalhos que os tinham sustentado tivessem uma cumplicidade consciente. Mas o que o torturava sobretudo eram aquellas palavras -- o Paraiso, as boas manhãs...
Luiza então já dormia tranquillamente. Ao fim de uma semana os crescimentos desappareceram. Mas estava muito fraca: no dia em que pela primeira vez se levantou, desmaiou duas vezes: era necessario vestil-a, trazel-a amparada para a chaise-longue: e não dispensava Jorge, queria-o alli, ao pé, com exigencias de criança! Parecia receber a vida dos seus olhos, a saude do contacto das suas mãos. Fazia-lhe lêr o jornal pela manhã, e vir escrever para ao pé d'ella. Elle obedecia, e mesmo aquellas instancias eram para a sua dôr como caricias consoladoras. É porque o amava de certo!
Sentia então, machinalmente, abertas de felicidade. Surprehendia-se a dizer-lhe ternuras, a rir com ella, esquecido, como d'antes! E, estendida na chaise-longue, Luiza, contente, percorria antigos volumes da Illustração franceza, que lhe mandára o Conselheiro, -- «onde», segundo elle lhe dissera, «podia, ao mesmo tempo que se divertia com os desenhos, adquirir noções uteis sobre importantes acontecimentos historicos»; ou, com a cabeça reclinada, saboreava a felicidade de melhorar, de estar livre das tyrannias da outra, das amarguras do passado.
Uma das suas alegrias era vêr entrar a Marianna com o seu jantarzinho disposto n'um guardanapo sobre o taboleiro; tinha appetite, saboreava muito o calix de vinho do Porto, que Julião recommendára; quando Jorge não estava, fazia longas conversações com Marianna, palrando baixo, consolada, e lambendo colherinhas de gelatina.
Ás vezes, calada, com os olhos no tecto, fazia planos. Dizia-os depois a Jorge: iria estar duas semanas no campo, para ganhar forças; á volta começaria a bordar tiras de casimira para cobrir as cadeiras da sala; porque queria occupar-se muito da casa, viver recolhida; elle não voltaria ao Alemtejo, não sahiria de Lisboa, não é verdade? E a sua vida seria d'ahi por diante d'uma doçura continua e facil.
Mas Luiza ás vezes achava-o «macambusio». Que tinha? Elle explicava pela fadiga, pelas noites mal dormidas... Se adoecesse, ao menos, dizia ella, que fosse quando ella estivesse forte para o tratar, para o velar!... Mas não adoeceria, não? E fazia-o sentar ao pé de si, passava-lhe a mão pelos cabellos, com o olhar quebrado, porque com as forças que renasciam vinham os impulsos do seu temperamento amoroso. Jorge sentia que a adorava, e era mais desgraçado!
Luiza, só comsigo, tinha outras resoluções. Não tornaria a vêr Leopoldina, e frequentaria as igrejas. Sahia da doença com uma vaga sentimentalidade devota. Durante a febre, em certos pesadêlos de que lhe ficára uma indistincta idéa aterrada, vira-se ás vezes n'um lugar pavoroso, onde corpos se erguiam, torcendo os braços, do meio de chammas escarlates: fórmas negras giravam com espetos em braza, um rugido d'agonia subia para a mudez do céo: e já lhe tocavam o peito linguas de fogueiras, quando alguma cousa de dôce e d'ineffavel de repente a refrescava; eram as azas d'um anjo luminoso e sereno, que a tomava nos braços; e ella sentia-se elevar, apoiando a cabeça contra o seio divino, que a penetrava d'uma felicidade sobrenatural; via as estrellas de perto, ouvia fremitos d'azas. Aquella sensação deixára-lhe como uma recordação saudosa do céo. E aspirava a ella, nas debilidades da convalescença, esperando ganhal-a pela pontualidade á missa, e pela repetição de corôas á Virgem.
Emfim uma manhã veio á sala, e abriu pela primeira vez o piano; Jorge, á janella, olhava para a rua -- quando ella o chamou, e sorrindo:
-- Estou a detestar, ha tempos, aquelle divan -- disse. -- Podia-se tirar, não te parece?
Jorge sentiu uma pancada no coração: não pôde responder logo; disse, emfim, com esforço:
-- Sim, parece...
-- Estou com vontade de o tirar -- disse ella sahindo da sala, arrastando tranquillamente a longa cauda do seu roupão.
Jorge não pôde destacar os olhos do divan. Veio mesmo sentar-se n'elle; passava a mão sobre o estofo ás listras; e sentia um prazer doloroso em verificar que fôra alli!
Principiára a vir-lhe agora uma especie de resignação sombria; quando a ouvia gozar tanto as melhoras, fallar com felicidade de futuros tranquillos, decidia-se a aniquilar a carta, esquecer tudo. Ella tinha-se arrependido de certo, amava-o: para que havia de crear a sangue frio uma infelicidade perpetua? Mas quando a via com os seus movimentos languidos estender-se na chaise-longue, ou ao despir-se mostrar a brancura do seu collo -- e pensava que aquelles braços tinham enlaçado outro homem, aquella bocca gemido de amor n'uma cama alheia -- vinha-lhe uma onda de cólera bruta, precisava sahir para a não esganar!
Para explicar os seus maus humores, os seus silencios, começou a queixar-se, a dizer-se doente. E as solicitudes d'ella, então, as interrogações mudas do seu olhar inquieto faziam-o mais infeliz -- por se sentir amado, agora que se sabia trahido!
Um domingo emfim Julião deu licença a Luiza para se deitar mais tarde, e fazer á noite as honras da casa. Foi uma alegria para todos vel-a na sala, ainda um pouco pallida e fraca, -- mas, como disse o Conselheiro, restituida aos deveres domesticos e aos prazeres da sociedade!
Julião que veio ás nove horas achou-a como nova. E abrindo os braços, no meio da sala:
-- E que me dizem á novidade? -- exclamou -- A peça do Ernesto teve um triumpho!...
Assim tinham lido nos jornaes. O Diario de Noticias dizia mesmo que o «author chamado ao proscenio, no meio do mais vivo enthusiasmo, recebera uma formosa corôa de louros». Luiza declarou logo que queria ir vêr!
-- Mais tarde, D. Luiza, mais tarde -- acudiu com prudencia o Conselheiro. -- Por ora é conveniente evitar toda a commoção forte. As lagrimas que não deixaria de derramar, conheço o seu bom coração, podiam produzir uma recahida. Não é verdade, amigo Julião?
-- De certo, Conselheiro, de certo. Eu tambem quero ir. Quero convencer-me por meus olhos...
Mas o ruido d'uma carruagem, lançada a trote largo, que parou á porta, interrompeu-o. A campainha retiniu fortemente.
-- Aposto que é o author! -- exclamou elle.
E quasi immediatamente a figura radiante de Ernestinho, de casaca, precipitou-se na sala: ergueram-se com ruido, abraçaram-no: mil parabens! mil parabens! E a voz do Conselheiro, dominando as outras:
-- Bem vindo o festejado author! Bem vindo!
Ernesto suffocava de jubilo. Tinha um sorriso immobilisado; as azas do nariz dilatavam-se-lhe, como para respirar os incensos; trazia o peito alto, enfunado d'orgulho; e movia a cabeça, sem cessar, como n'um agradecimento instinctivo a multidões applaudidoras.
-- Aqui estou! aqui estou! -- disse.
Sentou-se offegante; e, com um modo amavel de Deus-bom-rapaz, declarou que os ultimos ensaios de apuro não lhe tinham deixado um momento para vir vêr a prima Luiza. Tinha tido n'aquella noite um instante de seu, mas devia voltar ás dez horas para o theatro: até nem mandára a tipoia embora...
Contou então largamente o triumpho. Ao principio tivera «grandes colicas». Todos as tinham, os mais acostumados, os mais illustres! Mas apenas o Campos disse o monologo do primeiro acto -- e como o disse! haviam de vêr, uma cousa sublime! -- os applausos romperam. Tinha agradado tudo. No fim era um barulho, gritos pelo author, salvas de palmas... Elle viera ao palco, arrastado; não queria, mas obrigaram-no, a Jesuina por um lado, a Maria Adelaide por outro! Um delirio! O Savedra do Seculo tinha-lhe dito: o amigo é o nosso Shakspeare! O Bastos da Verdade tinha affirmado: és o nosso Scribe! Houve uma cêa. E tinham-lhe dado uma corôa.
-- E serve-lhe? -- acudiu Julião.
-- Perfeitamente; um bocadinho larga...
O Conselheiro disse com authoridade:
-- Os grandes authores, o famigerado Tasso, o nosso Camões são sempre representados com as suas respectivas corôas.
-- É o que eu lhe aconselho, snr. Ledesma -- acudiu Julião, erguendo-se e batendo-lhe no hombro -- é que se faça retratar de corôa!...
Riram.
E Ernestinho, um pouco despeitado, desdobrando o seu lenço perfumado:
-- O snr. Zuzarte não dispensa o seu epigrammasinho...
-- É a prova da gloria, meu amigo. Nos triumphos dos generaes victoriosos, em Roma, havia um bobo no prestito!
-- Eu não sei! -- disse Luiza muito risonha -- É uma honra p'ra a familia!...
Jorge concordou. Passeava pela sala fumando; e disse que gozava tanto a corôa, como se tivesse direito a usal-a...
E Ernestinho voltando-se logo para elle:
-- Sabes que lhe perdoei, primo Jorge? Perdoei á esposa...
-- Como Christo...
-- Como Christo -- confirmou Ernestinho, com satisfação.
D. Felicidade approvou logo:
-- Fez muito bem! Até é mais moral!
-- O Jorge é que queria que eu désse cabo d'ella -- disse Ernestinho, rindo tolamente. -- Não se lembra, n'aquella noite...
-- Sim, sim -- fez Jorge, rindo tambem, nervosamente.
-- O nosso Jorge -- disse com solemnidade o Conselheiro -- não podia conservar idéas tão extremas. E de certo a reflexão, a experiencia da vida...
-- Mudei, Conselheiro, mudei -- interrompeu Jorge.
E entrou bruscamente no escriptorio.
Sebastião, inquieto, foi devagar ter com elle. Estava ás escuras.
-- Aquelles idiotas não se calarão? Não se irão? -- disse elle abafadamente, agarrando o braço de Sebastião.
-- Socega!
-- Oh Sebastião! Sebastião! -- E sua voz tremia, com lagrimas.
Mas Luiza, da sala, gritou:
-- Que conspiração é essa ahi dentro ás escuras?
Sebastião appareceu logo, dizendo:
-- Nada, nada. Estavamos lá dentro... -- E acrescentou baixo: -- O Jorge está fatigado. Está adoentado, coitado!
Notaram, quando elle voltou -- que tinha com effeito o ar exquisito.
-- Não, realmente não me sinto bom, estou incommodado!
-- E a debil D. Luiza precisa o repouso do seu leito -- disse o Conselheiro erguendo-se.
Ernestinho que não se podia demorar, offereceu logo ao Conselheiro e a Julião -- «a sua carruagem, que era um caleche, se iam para a baixa...»
-- Que honra -- exclamou Julião olhando Accacio -- irmos na tipoia do Grande Homem!
E em quanto D. Felicidade se agasalhava, os tres desceram.
No meio da escada Julião parou, e cruzando os braços:
-- Ora aqui vou eu entre os representantes dos dous grandes movimentos de Portugal desde 1820. A Litteratura -- e comprimentou Ernestinho -- e o Constitucionalismo! -- e curvou-se para o Conselheiro.
Os dous riram, lisongeados.
-- E o amigo Zuzarte?
-- Eu? -- E baixando a voz: -- Até ha dias um revolucionario terrivel. Mas agora...
-- O quê?
-- Um amigo da ordem -- gritou com jubilo.
E desceram, contentes de si e do seu paiz, para se metterem na tipoia do Grande Homem!
XVII
Ao outro dia Jorge foi ao ministerio, onde não tinha apparecido nos ultimos tempos. Mas demorou-se pouco. A rua, a presença dos conhecidos ou dos estranhos torturava-o; parecia-lhe que todo o mundo sabia; nos olhares mais naturaes via uma intenção maligna, e nos apertos de mão mais sinceros uma ironica pressão de pezames; as carruagens mesmo que passavam davam-lhe a suspeita de a terem conduzido ao rendez-vous, e todas as casas lhe pareciam a fachada infame do Paraiso. Voltou mais sombrio, infeliz, sentindo a vida estragada. E logo do corredor ao entrar ouviu Luiza cantarolando, como outr'ora, a Mandolinata!
Estava-se a vestir.
-- Como estás tu? -- perguntou, pondo a um canto a sua bengala.
-- Estou boa. Hoje estou muito melhor. Um bocado fraca ainda...
Jorge deu alguns passos pelo quarto, taciturno.
-- E tu? -- perguntou-lhe ella.
-- P'ra aqui ando -- disse tão desconsoladamente que Luiza pousou o pente, e com os cabellos soltos veio pôr-lhe as mãos nos hombros, muito carinhosa:
-- Que tens tu? Tu tens alguma cousa. Estranho-te tanto ha dias! Não és o mesmo! Ás vezes estás com uma cara de réo... Que é? Dize.
E os seus olhos procuravam os d'elle, que se desviavam perturbados.
Abraçou-o. Insistia, queria que dissesse tudo á «sua mulherzinha».
-- Dize. Que tens?
Elle olhou-a muito, e de repente, com uma resolução violenta:
-- Pois bem, digo-te. Tu agora estás boa, pódes ouvir... Luiza! vivo n'um inferno ha duas semanas. Não posso mais... Tu estás boa, não é verdade? Pois bem, que quer dizer isto? Dize a verdade!
E estendeu-lhe a carta de Bazilio.
-- O que é? -- fez ella muito branca. E o papel dobrado tremia-lhe na mão.
Abriu-a devagar, viu a letra de Bazilio, n'um relance adivinhou-a. Fixou Jorge um momento d'um modo desvairado, estendeu os braços sem poder fallar, levou as mãos á cabeça com um gesto ancioso como se se sentisse ferida, e oscillando, com um grito rouco, cahiu sobre os joelhos, ficou estirada no tapete.
Jorge gritou. As criadas acudiram. Estenderam-na na cama. Elle quiz que Joanna corresse a chamar Sebastião; e ficou, como petrificado, junto ao leito, olhando-a, em quanto Marianna toda tremula desatacava os espartilhos da senhora.
Sebastião veio logo. Felizmente havia ether, fizeram-lh'o respirar; apenas abriu lentamente os olhos, Jorge precipitou-se sobre ella:
-- Luiza, ouve, falla! Não, não tem duvida. Mas falla. Dize, que tens?
Ao ouvir a voz d'elle desmaiou outra vez. Movimentos convulsivos sacudiam-lhe o corpo. Sebastião correu a buscar Julião.
Luiza parecia adormecida agora, immovel, branca como cera, as mãos pousadas sobre a colcha; e duas lagrimas corriam-lhe devagar pelas faces.
Um trem parou. Julião appareceu esbaforido.
-- Achou-se mal de repente... Vê, Julião. Está muito mal! -- disse Jorge.
Fizeram-lhe respirar mais ether; despertou outra vez. Julião fallou-lhe, tomando-lhe o pulso.
-- Não, não, ninguem! -- murmurou ella, retirando a mão. Repetiu com impaciencia: -- Não, vão-se, não quero... -- As suas lagrimas redobravam. E como elles sahiam da alcova para a não excitar contrariando-a, ouviram-na chamar: -- Jorge!
Elle ajoelhou-se ao pé da cama, e fallando-lhe junto do rosto:
-- Que tens tu? Não se falla mais em tal. Acabou-se. Não estejas doente. Juro-te, amo-te... Fosse o que fosse, não me importa. Não quero saber, não.
E como ella ia fallar, elle pousou-lhe a mão na bocca:
-- Não, não quero ouvir. Quero que estejas boa, que não soffras! Dize que estás boa! Que tens? Vamos ámanhã para o campo, e esquece-se tudo. Foi uma cousa que passou...
Ella disse apenas com a voz sumida:
-- Oh! Jorge! Jorge!
-- Bem sei... Mas agora vaes ser feliz outra vez... Dize, que sentes?
-- Aqui -- disse ella, e levava as mãos á cabeça. -- Dóe-me!
Elle ergueu-se para chamar Julião, mas ella reteve-o, attrahiu-o; e devorando-o com olhos onde a febre se accendia, adiantando o rosto, estendia-lhe os labios. Elle deu-lhe um beijo inteiro, sincero, cheio de perdão.
-- Oh! minha pobre cabeça! -- gritou ella.
As fontes latejavam-lhe, e uma côr ardente, sêcca, esbrazeava-lhe o rosto.
Como era habituada a enxaquecas, Julião traquillisou-os; recommendou um socego immovel e sinapismos de mostarda aos pés, -- até que elle voltasse.
Jorge ficou junto do leito, taciturno, cortado de presentimentos, de sustos, suspirando ás vezes.
Eram então quatro horas; cahia uma chuva miudinha, ennevoada; a alcova tinha uma luz lugubre.
-- Não ha-de ser nada... -- dizia Sebastião.
Luiza agitava-se no leito, apertando as mãos na cabeça, torturada pela dôr crescente, cheia de sêde.
Marianna acabava d'arrumar em pontas de pés, vagamente assombrada d'aquella casa, onde só vira desgosto e doença: mas só o pousar subtil dos seus passos fazia soffrer Luiza, como se fossem martelladas sobre o craneo.
Julião não tardou; logo da porta do quarto, o aspecto d'ella inquietou-o. Accendeu um phosphoro, aproximou-lh'o do rosto; e aquella luz fez-lhe dar um grito como se um ferro frio lhe trespassasse a cabeça.
Os olhos dilatados tinham um reluzir metallico. Conservava-se muito quieta, porque o gesto mais lento lhe dava na nuca dôres penetrantes que a dilaceravam. Só de vez em quando sorria para Jorge com uma expressão d'afflicção serena e muda.
Julião fez logo pôr tres travesseiros, para lhe conservar a cabeça alta. Fóra cahia o crepusculo humido. Andavam em bicos de pés, com cuidado; e mesmo tiraram o relogio da parede para afastar o tic-tac monotono. Ella começava agora a murmurar sons cançados, e a voltar-se com movimentos bruscos que lhe arrancavam gritos; ou immovel gemia d'um modo continuo e angustioso. Tinham-lhe envolvido as pernas n'um longo sinapismo; mas não o sentia. Pelas nove horas começou a delirar; a lingua tornára-se-lhe branca e dura, como de gesso sujo.
Julião fez logo applicar na cabeça compressas d'agua fria. Mas o delirio exacerbava-se.
Ora tinha um murmurio espesso, um vago rosnar modorrento -- onde os nomes de Leopoldina, de Jorge, de Bazilio voltavam incessantemente: depois debatia-se, esgaçava a camisa com as mãos; e, arqueando-se, os seus olhos rolavam, como largos bugalhos prateados onde a pupilla se sumia.
Socegava mais; dava risadinhas d'uma doçura idiota; tinha gestos lentos sobre o lençol, que aconchegavam e acariciavam, como n'um gozo tepido: depois começava a respirar anciosamente, vinham-lhe expressões torturadas de terror, queria enterrar-se nos travesseiros e nos colxões, fugindo a aspectos pavorosos: punha-se então a apertar a cabeça phreneticamente, pedia que lh'a abrissem, que a tinha cheia de pedras, que tivessem piedade d'ella! -- e fios de lagrimas corriam-lhe pelo rosto. Não sentia os sinapismos; expunham-lhe agora os pés nús ao vapor d'agua a ferver, carregada de mostarda; um cheiro acre adstringia o ar do quarto. Jorge fallava-lhe com toda a sorte de palavras consoladoras e supplicantes: pedia-lhe que socegasse, que o conhecesse; mas de repente ella desesperava-se, gritava pela carta, maldizia Juliana -- ou então dizia palavras d'amor, enumerava sommas de dinheiro... Jorge temia que aquelle delirio revelasse tudo a Julião, ás criadas: tinha um suor á raiz dos cabellos -- e quando ella, um momento, julgando-se no Paraiso e nas exaltações do adulterio, chamou Bazilio, pediu champagne, teve palavras libertinas, Jorge fugiu da alcova allucinado, foi para a sala ás escuras, atirou-se para o divan a soluçar, arrepellou-se, blasphemou.
-- Está em perigo? -- perguntou Sebastião.
-- Está -- disse Julião. -- Se sentisse os sinapismos, ao menos! Mas estas malditas febres cerebraes...
Calaram-se vendo Jorge entrar na alcova, com o rosto manchado, esguedelhado.
E Julião tomando-o pelo braço, levando-o para fóra:
-- Ouve lá, é necessario cortar-lhe o cabello, e rapar-lhe a cabeça.
Jorge olhou-o com um ar estupido:
-- O cabello? -- E agarrando-lhe os braços: -- Não, Julião, não, hein? Póde-se fazer outra cousa. Tu deves saber. O cabello não! Não! Isso não, pelo amor de Deus! Ella não está em perigo. P'ra quê?
Mas aquella massa de cabello era o diabo, impedia a acção da agua!
-- Ámanhã, se fôr necessario. Ámanhã! Espera até ámanhã... Obrigado, Julião, obrigado!
Julião consentiu, contrariado. Fazia então humedecer constantemente as compressas da cabeça, e como Marianna tremula, desgeitosa, molhava muito o travesseiro, foi Sebastião que se collocou á cabeceira da cama, toda a noite, espremendo sem cessar uma esponja, d'onde a agua gotejava lentamente; tinham jarros fóra da varanda, na sala, para dar á agua uma frialdade gelada. O delirio alta noite acalmára um pouco. Mas o seu olhar injectado tinha um aspecto selvagem: as pupillas pareciam apenas um ponto negro.
Jorge, sentado aos pés da cama, com a cabeça entre as mãos, olhava para ella: lembravam-lhe vagamente outras noites de doença assim, quando ella tivera a pneumonia: e melhorára! Até ficára mais linda, com tons de pallidez que lhe adoçavam a expressão! Iriam para o campo quando ella convalescesse: alugaria uma casinha: voltaria á noite no omnibus, e vêl-a-hia de longe na estrada vindo ao seu encontro, com um vestido claro, na tarde suave!... Mas ella gemia, elle erguia os olhos sobresaltado: e não lhe parecia a mesma: afigurava-se-lhe que se ia dissipando, desapparecendo n'aquelle ar de febre que enchia a alcova, no silencio morbido da noite, e no cheiro da mostarda. Um soluço sacudia-o, e recahia na sua immobilidade.
Joanna, em cima, rezava. As velas, com uma chamma alta e direita, extinguiam-se.
Emfim uma vaga claridade desenhou nos transparentes brancos os caixilhos da vidraça. Amanhecia. Jorge ergueu-se, foi olhar para a rua. Não chovia; a calçada seccava. O ar tinha uma vaga côr d'aço. Tudo dormia: e uma toalha, esquecida á janella das Azevedos, agitava-se ao vento frio, silenciosamente.
Quando entrou na alcova Luiza fallava com uma voz extincta: sentia muito vagamente os sinapismos, mas a dôr de cabeça não cessava. Começou a agitar-se -- e o delirio d'ahi a pouco voltou. Julião, então, determinou que se lhe rapasse o cabello.
Sebastião foi acordar um barbeiro na rua da Escóla -- que veio logo, com um ar transido, a gola do casaco levantada; e batendo o queixo começou a tirar immediatamente d'um sacco de couro as navalhas, as tesouras, devagar, com as mãos molles da gordura das pomadas.
Jorge foi refugiar-se na sala: parecia-lhe que grandes pedaços mutilados da sua felicidade cahiam com aquellas lindas tranças, destruidas ás tesouradas; e com a cabeça nas mãos recordava certos penteados que ella usava, noites em que os seus cabellos se tinham desmanchado nas alegrias da paixão, tons com que brilhavam á luz... Voltou ao quarto, attrahido irresistivelmente; sentiu na alcova o ruido secco e metallico das tesouras; sobre a mesa, n'uma caixa de sabão, estava um velho pincel de barba, entre flocos d'espuma... Chamou Sebastião baixo:
-- Dize-lhe que se avie! Estão-me a matar a fogo lento! É de mais. Que ande depressa!
Foi á sala de jantar, errou pela casa: a manhã fria clareava; erguera-se vento, que ia levando, aos pedaços, nuvens d'um tom alvadio.
Quando tornou a entrar no quarto, o barbeiro guardava as navalhas com a mesma lentidão molle; e tomando o seu chapéo desabado, sahiu em bicos de pés, murmurando n'um tom funerario:
-- Estimo as melhoras. Deus ha-de permittir que não seja nada...
O delirio com effeito d'ahi a uma hora acalmou: -- e Luiza cahiu n'uma somnolencia prostrada com gemidos fracos, que sahiam de seus labios como a lamentação interior da vida vencida.
Jorge tinha então dito a Sebastião que desejava chamar o doutor Caminha. Era um medico velho que tratára sua mãi, e que curára Luiza da pneumonia, no segundo anno de casada. Jorge conservára uma admiração agradecida por aquella reputação antiquada; e agora a sua esperança voltava-se sofregamente para elle, anciando pela sua presença como pela apparição d'um santo.
Julião condescendeu logo. Até estimava! E Sebastião desceu correndo, para ir a casa do dr. Caminha.
Luiza, que sahira um momento do seu torpôr, sentiu-os fallar baixo. A sua voz extincta chamou Jorge:
-- Cortaram-me o cabello... -- murmurou tristemente.
-- É para te fazer bem -- disse-lhe Jorge, quasi tão agonisante como ella. -- Cresce logo. Até te vem melhor...
Ella não respondeu; duas lagrimas silenciosas correram-lhe pelos cantos dos olhos.
Devia ser a sua ultima sensação: a prostração comatosa ia-a immobilisando, apenas a sua cabeça rolava n'um movimento dôce e vagaroso sobre o travesseiro, gemendo sempre com um cansaço triste; a pelle empallidecia como um vidro de janella, por traz do qual lentamente uma luz se apaga; e mesmo os ruidos da rua que começavam não a impressionavam, como se fossem muito distantes e abafados em algodão.
Ao meio dia D. Felicidade appareceu. Ficou petrificada quando a viu tão mal: e ella que a vinha buscar para irem á Encarnação, talvez ás lojas! Tirou logo o chapéo, installou-se; fez arranjar a alcova, tirar as bacias, os velhos sinapismos que arrastavam, compôr a cama -- «porque não havia peor p'ra um doente que desarranjo no quarto»: e muito corajosamente animava Jorge.
Uma carruagem parou á porta. Era o doutor Caminha, emfim!... Entrou atabafado no seu cachenez de quadrados verdes e pretos, queixando-se muito do frio; -- e tirando devagar as grossas luvas de casimira, que pôz dentro do chapéo methodicamente, adiantou-se para a alcova com um passo cadenciado, acamando com a mão as suas repas grisalhas já muito colladas ao craneo pela escova.
Julião e elle ficaram sós na alcova.
No quarto os outros esperavam calados, ao pé de Jorge, pallido como cêra, com os olhos vermelhos como carvões.
-- Vai-se-lhe pôr um caustico na nuca -- veio dizer Julião.
Jorge devorava com o olhar ancioso o doutor Caminha, que se pozera a calçar tranquillamente as suas luvas de casimira, dizendo:
-- Vamos a vêr com o caustico. Não está bem... Mas ha ainda peor. E eu volto, meu amigo, eu volto.
O caustico foi inutil. Não o sentia, immovel e branca, com as feições crispadas; e tremuras passaram-lhe de repente nos nervos da face como vibrações fugitivas.
-- Está perdida -- disse Julião baixo a Sebastião.
D. Felicidade ficou muito aterrada, fallou logo nos sacramentos.
-- P'ra quê? -- resmungou Julião impaciente.
Mas D. Felicidade declarou que tinha escrupulos, que era um peccado mortal; e chamando Jorge para o vão da janella, toda tremula:
-- Jorge, não se assuste, mas seria bom pensar nos sacramentos...
Elle murmurava como assombrado:
-- Os sacramentos!
Julião chegou-se bruscamente, e quasi zangado:
-- Nada de tolices! Qual sacramentos! P'ra quê? Ella nem ouve, nem comprehende, nem sente. É necessario deitar-lhe outro caustico, talvez ventosas, e é o que é! Isso é que são os sacramentos!
Mas D. Felicidade escandalisada, muito abalada, começou a chorar. Esqueciam Deus, e em Deus é que está o remedio! -- dizia, assoando-se com estrondo.
-- Pelo que Deus faz por mim... -- exclamou Jorge, sahindo do seu torpôr. E batendo as mãos, como revoltado por uma injustiça: -- Porque realmente, que fiz eu p'ra isto? Que fiz eu!...
Julião ordenára outro caustico. Havia agora na casa um movimento allucinado. Joanna entrava de repente com um caldo inutil que ninguem pedira, os olhos muito vermelhos de chorar. Marianna soluçava pelos cantos. D. Felicidade ia, vinha pelo quarto, refugiando-se na sala para rezar, fazendo promessas, lembrando que se chamasse o doutor Barbosa, o doutor Barral.
E Luiza no entanto estava immovel; uma côr macilenta ia-lhe dando ás faces tons cavados e rigidos.
Julião extenuado pediu um calix de vinho, uma fatia de pão. Lembraram-se então que desde a vespera não tinham comido, e foram á sala de jantar onde Joanna, sempre lavada em lagrimas, serviu uma sopa, e ovos. Mas não achava os colheres, nem os guardanapos; murmurava rezas, pedia desculpa; em quanto Jorge, com os olhos inchados, fitos na borda da mesa, a face contrahida, fazia dobras na toalha.
Depois d'um momento pousou devagarinho a colhér, desceu ao quarto. Marianna estava sentada aos pés do leito: Jorge disse-lhe que fosse servir os senhores: e apenas ella sahiu, deixou-se cahir de joelhos, tomou uma das mãos de Luiza, chamou-a baixo; depois mais forte:
-- Escuta-me. Ouve, pelo amor de Deus. Não estejas assim, faze por melhorar. Não me deixes n'este mundo, não tenho mais ninguem! Perdôa-me. Dize que sim. Faze signal que sim ao menos. Não me ouve, meu Deus!
E olhava-a anciosamente. Ella não se movia.
Ergueu então os braços ao ar n'uma desesperação allucinada.
-- Sabes que creio em ti, meu Deus. Salva-a! Salva-a! -- E arremessava a sua alma para as alturas: -- Ouve, meu Deus! Escuta-me! Sê bom!
Olhava em roda, esperando um movimento, uma voz, um acaso, um milagre! Mas tudo lhe pareceu mais immovel. A face livida cavava-se; o lenço que lhe envolvia a cabeça desarranjára-se, via-se o craneo rapado, d'uma côr ligeiramente amarellada. Pôz-lhe então a mão na testa, hesitando, com medo; pareceu-lhe que estava fria! Abafou um grito, correu para fóra do quarto, e deu com o doutor Caminha que entrava, tirando pausadamente as luvas.
-- Doutor! Está morta! Veja. Não falla, está fria...
-- Então! Então! -- disse elle -- Nada de barulho, nada de barulho!
Tomou o pulso de Luiza, sentiu-o fugir sob os dedos, como a vibração expirante d'uma corda.
Julião veio logo. E concordou com o doutor Caminha que as ventosas eram inuteis.
-- Já as não sente -- disse o doutor, sacudindo o tabaco dos dedos.
-- Se se lhe désse um copo de cognac?... -- lembrou de repente Julião. E vendo o olhar espantado do doutor: -- Ás vezes estes symptomas de coma não querem dizer que o cerebro esteja desorganisado: podem ser apenas a inacção da força nervosa exhausta. Se a morte é irremediavel não se perde nada; se é apenas uma depressão do systema nervoso, póde-se salvar...
O doutor Caminha, com o beiço descahido, oscillava incredulamente a cabeça:
-- Theorias! -- murmurou.
-- Nos hospitaes inglezes... -- começou Julião.
O doutor Caminha encolheu os hombros com desprezo.
-- Mas se o doutor lêsse... -- insistiu Julião.
-- Não leio nada! -- disse o doutor Caminha com força -- tenho lido de mais! Os livros são os doentes... -- E curvando-se, com ironia: -- Mas se o meu talentoso collega quer fazer a experiencia...
-- Um copo de cognac ou d'aguardente! -- pediu Julião á porta.
E o doutor Caminha sentou-se commodamente «para gozar o fracasso do talentoso collega».
Levantaram Luiza; Julião fez-lhe engulir o cognac; quando a deitaram ficou na mesma immobilidade comatosa: o doutor Caminha tirou o relogio, viu as horas, esperou: havia um silencio ancioso: emfim o doutor ergueu-se, tomou-lhe o pulso, apalpou a frialdade crescente das extremidades; e indo buscar silenciosamente o chapéo começou a calçar as luvas.
Jorge foi com elle até á porta:
-- Então, doutor? -- disse, agarrando com uma força desvairada o braço.
-- Fez-se o que se pôde -- disse o velho, encolhendo os hombros.
Jorge ficou estupido no patamar, vendo-o descer. As suas passadas vagarosas nos degraus cahiam-lhe com uma percussão medonha no coração. Debruçou-se no corrimão, chamou-o baixo. O doutor parou, levantou os olhos; Jorge pôz as mãos para elle, com uma anciedade humilde:
-- Então não é possivel mais nada?
O doutor fez um gesto vago, indicou o céo.
Jorge voltou para o quarto, encostando-se ás paredes. Entrou na alcova, atirou-se de joelhos aos pés da cama, e alli ficou com a cabeça entre as mãos n'um soluçar baixo e continuo.
Luiza morria: os seus braços tão bonitos, que ella costumava acariciar diante do espelho, estavam já paralysados; os seus olhos, a que a paixão dera chammas e a voluptuosidade lagrimas, embaciavam-se como sob a camada ligeira d'uma pulverisação muito fina.
D. Felicidade e Marianna tinham accendido uma lamparina a uma gravura de Nossa Senhora das Dôres, e de joelhos rezavam.
O crepusculo triste descia, parecia trazer um silencio funerario.
A campainha, então, tocou discretamente; e d'ahi a momentos appareceu a figura do Conselheiro Accacio. D. Felicidade ergueu-se logo; e vendo as suas lagrimas, o Conselheiro disse lugubremente:
-- Venho cumprir o meu dever, ajudar-lhes a passar este transe!
Explicou «que encontrára por acaso o bom doutor Caminha, que lhe contára a fatal occorrencia»! Mas muito discretamente não quiz entrar na alcova. Sentou-se n'uma cadeira, collocou melancolicamente o cotovêlo sobre o joelho, a testa sobre a mão, dizendo baixo a D. Felicidade:
-- Continue as suas orações. Deus é imperscrutavel em seus decretos.
Na alcova, Julião estivera tomando o pulso de Luiza; olhou então Sebastião, fez-lhe o gesto d'alguma cousa que vôa e desapparece... Aproximaram-se de Jorge, que não se movia, de joelhos, com a face enterrada no leito:
-- Jorge -- disse baixinho Sebastião.
Elle levantou o rosto desfigurado, envelhecido, os cabellos nos olhos, as olheiras escuras.
-- Vá, vem -- disse Julião. E vendo o espanto do seu olhar: -- Não, não está morta, está n'aquella somnolencia... Mas vem.
Elle ergueu-se, dizendo com mansidão:
-- Pois sim, eu vou. Estou bem... Obrigado.
Sahiu da alcova.
O Conselheiro levantou-se, foi abraçal-o com solemnidade:
-- Aqui estou, meu Jorge!
-- Obrigado, Conselheiro, obrigado.
Deu alguns passos pelo quarto; os seus olhos pareciam preoccupar-se com um embrulho que estava sobre a mesa; foi apalpal-o; desapertou as pontas, e viu os cabellos de Luiza. Ficou a olhal-os, erguendo-os, passando-os d'uma das mãos para outra, e disse com os beiços a tremer:
-- Fazia tanto gosto n'elles, coitadinha!
Tornou a entrar na alcova. Mas Julião tomou-lhe o braço, queria-o afastar do leito. Elle debatia-se dôcemente; e, como uma vela ardia sobre a mesinha ao pé da cabeceira, disse, mostrando-a:
-- Talvez a incommode a luz...
Julião respondeu commovido:
-- Já não a vê, Jorge!
Elle soltou-se da mão de Julião, foi debruçar-se sobre ella; tomou-lhe a cabeça entre as mãos com cuidado para a não magoar, esteve a olhal-a um momento; depois pousou-lhe sobre os labios frios um beijo, outro, outro, e murmurava:
-- Adeus! Adeus!
Endireitou-se, abriu os braços, cahiu no chão.
Todos correram. Levaram-no para a chaise-longue.
E em quanto D. Felicidade n'um pranto afflicto fechava os olhos de Luiza, o Conselheiro, com o chapéo sempre na mão, cruzava os braços, e oscillando a sua calva respeitavel, dizia a Sebastião:
-- Que profundo desgosto de familia!
XVIII
Depois do enterro de Luiza, Jorge despediu as criadas, foi para casa de Sebastião.
N'essa noite pelas nove horas o Conselheiro Accacio, muito abafado, descia o Moinho de Vento, quando encontrou Julião, que vinha de vêr um doente na rua da Rosa. Foram andando juntos, conversando de Luiza, do enterro, da afflicção de Jorge.
-- Pobre rapaz! Aquillo é que é soffrer! -- disse Julião compadecido.
-- Era uma esposa modêlo!... -- murmurou o Conselheiro.
De resto, disse, vinha justamente de casa do bom Sebastião, mas não podéra vêr o seu Jorge; tinha-se estirado sobre a cama, e dormia profundamente.
E acrescentou:
-- Ultimamente lia eu que aos grandes golpes succedem sempre somnos prolongados. Assim, por exemplo, Napoleão depois de Waterloo, depois do grande desastre de Waterloo!
E passado um momento, continuou:
-- É verdade. Fui vêr o nosso Sebastião... Fui mostrar-lhe... -- E interrompendo-se, parando: -- Porque eu entendi que era o meu dever dedicar um tributo á memoria da infeliz senhora. Era o meu dever, e não me eximi a elle! E estimo tel-o encontrado, porque quero saber a sua opinião conscienciosa e desassombrada.
Julião tossiu, e perguntou:
-- É um necrologio?
-- É um necrologio.
E o Conselheiro, apesar de «não achar proprio, na sua posição, o entrar em cafés publicos», lembrou a Julião que poderiam descançar um momento no Tavares, se não estivesse muita gente, e elle poderia lêr-lhe «a producção».
Espreitaram.
Estavam apenas, a uma mesa, dous velhos calados defronte dos seus cafés, com os chapéos na cabeça, apoiados a bengalas de cana da India. O moço dormitava ao fundo. Uma luz crua e intensa enchia a sala estreita.
-- Ha um silencio propicio -- disse o Conselheiro.
Offereceu um café a Julião; e tirando então do bolso uma folha de papel pautado, murmurou: -- Infeliz senhora! -- Inclinou-se para Julião, e leu:
NECROLOGIO
Á MEMORIA DA SNR.a D. LUIZA MENDONÇA DE BRITO CARVALHO
Rosa d'amor, rosa purpurea e bella,
Quem entre os goivos te esfolhou na campa?
-- É do immortal Garrett! -- E continuou com uma voz lenta e lugubre:
«... Mais um anjo que subiu ao céo! Mais uma flôr pendida na tenra haste que o vendaval da morte, em sua inclemente furia, arremessou mal desabrochada para as trevas do tumulo...»
Olhou Julião para solicitar a sua admiração, e vendo-o curvado a remexer o seu café, proseguiu com entonações mais funerarias:
-- «Detende-vos, e olhai a terra fria! Alli jaz a casta esposa tão cedo arrancada ás caricias do seu talentoso conjuge. Alli sossobrou, como baixel no escarcéo da costa, a virtuosa senhora, que em sua folgazã natureza era o encanto de quantos tinham a honra de se aproximar do seu lar! Por que soluçaes?»
-- Um café, ó Antonio! -- bradou a voz rouca de um sujeito grosso, de jaquetão, que se sentou ao pé, pondo com ruido a bengala sobre a mesa e deitando o chapéo para o cachaço.
O Conselheiro olhou-o de lado, com rancor. E baixando a voz:
-- «...Não soluceis! Que o anjo se não pertence á terra pertence ao céo!...»
-- O sô Guedes esteve já por ahi? -- perguntou a voz rouca.
O criado disse de traz do balcão, limpando com uma rodilha as travessas de metal:
-- Ainda não, snr. D. José!
-- «...Alli -- continuou o Conselheiro -- seu espirito, librando-se nas candidas azas, entôa louvores ao Eterno! E não cessa de pedir ao Omnipotente mercês e favores para derramar sobre a cabeça do dilecto esposo, que um dia, não duvideis, a encontrará nas regiões celestes, patria das almas de tão subido quilate...» -- E a voz do Conselheiro aflautava-se para indicar aquella ascensão paradisiaca.
-- E hontem á noite esteve cá, o sô Guedes? -- insistiu o sujeito de jaquetão com os cotovêlos sobre a mesa, fumando como uma chaminé.
-- Esteve tarde. Lá pelas duas horas.
O Conselheiro sacudiu o papel com um desespero mudo: por traz dos vidros da luneta escura fusilavam-lhe nos olhos os despeitos homicidas de author interrompido. Mas proseguiu:
-- «...E vós, ó almas sensiveis, vertei as lagrimas, mas vertendo-as, não percaes de vista que o homem deve curvar-se aos decretos da Providencia...»
E interrompendo-se:
-- Isto é para dar coragem ao nosso pobre Jorge! -- Continuou: -- «...da Providencia. Deus conta mais um anjo, e a sua alma brilha pura...»
-- Esteve com a pequena, o sô Guedes? -- fez o sujeito, quebrando no marmore da mesa a cinza do charuto.
O Conselheiro suspendeu-se pallido de raiva:
-- Deve ser pessoa da mais baixa extracção -- rosnou com odio.
E o criado erguendo a vozinha fina detraz do balcão:
-- Nada, não; tem vindo agora com uma hespanhola d'ahi de cima da rua. Uma magrinha, com o cabello riçado, uma capa vermelha...
-- A Lola! -- acudiu o outro com satisfação. E espreguiçou-se com voluptuosidade á recordação da Lola.
O Conselheiro agora apressava-se:
«... E de resto, o que é a vida? Uma rapida passagem sobre o orbe, e um vão sonho de que acordamos no seio do Deus dos Exercitos, de que todos somos indignos vassallos».
E com esta phrase monarchica o Conselheiro terminou.
-- Que lhe parece, com franqueza?
Julião sorveu o fundo da chavena, e collocando-a devagar no pires, lambendo os beiços:
-- É para imprimir?
-- Na Voz Popular, com tarjeta preta.
Julião coçou convulsivamente a caspa, e erguendo-se:
-- Está muito bom. Muito bom, Conselheiro!
E Accacio procurando o troco para o moço:
-- Creio que está digno d'ella, e de mim!
E sahiram calados.
A noite estava muito escura: erguera-se um nordeste frio: gotas de chuva tinham cahido. Ao Loreto, Julião parou subitamente; e exclamou:
-- Ai esquecia-me! Sabe a novidade, Conselheiro? A D. Felicidade recolhe-se á Encarnação.
-- Ah!
-- Disse-m'o agora. Eu fui justamente vêl-a antes de ir vêr um doente á rua da Rosa. Estava com uma febresita. Cousa de nada... A commoção; o susto! E deu-me parte: recolhe-se ámanhã á Encarnação.
O Conselheiro disse:
-- Sempre conheci n'aquella senhora idéas retrogradas. É o resultado das manobras jesuiticas, meu amigo! -- E ajuntou com a melancolia do liberal descontente: -- A reacção levanta a cabeça!
Julião tomou familiarmente o braço do Conselheiro, e sorrindo:
-- Qual reacção! É por sua causa, ingrato...
O Conselheiro estacou:
-- Que quer o meu nobre amigo insinuar?
-- Sim, homem! Não sei como diabo descobriu uma cousa grave...
-- O que? Acredite...
-- O que eu tambem descobri, seu maganão! Que o Conselheiro tem duas travesseirinhas na cama, tendo só uma cabeça... Disse-m'o ella! -- E rindo muito, dizendo-lhe adeus! adeus! desceu rapidamente a rua do Alecrim. O Conselheiro ficou immovel, no largo, de braços cruzados, como petrificado. -- Que infeliz senhora! Que funesta paixão! -- murmurou emfim. E acariciou o bigode, com satisfação.
Como tinha de passar a limpo o Necrologio apressou-se a entrar em casa. Abancou com uma manta sobre os joelhos; bem depressa as responsabilidades de prosador distrahiram-no das preoccupações d'homem; e até às onze horas a sua bella letra cursiva e burocratica desenrolou-se nobremente sobre uma larga folha de papel inglez, no silencio do seu Sanctus Sanctorum. Terminava quando a porta rangeu, e a Adelaide, com um chale forte pelos hombros, veio dizer, n'uma voz constipada:
-- Então hoje não se faz néné?
-- Não tardo, minha Adelaide, não tardo!
E releu baixo, enlevado. Pareceu-lhe então que o final não era commovente: queria terminar por uma exclamação dolorosa, prolongada como um ai! Meditou, com os cotovêlos sobre a mesa, a cabeça entre os dedos muito abertos: Adelaide então, chegando-se devagar, passou-lhe a mão pela calva: aquelle dôce roçar amoroso fez de certo saltar a idéa como uma faisca, porque tomou rapidamente a penna, e acrescentou:
-- «Chorai! Chorai! Em quanto a mim, a dôr suffoca-me!»
Esfregou as mãos com orgulho. Repetiu alto n'um tom plangente:
-- «Chorai, Chorai, em quanto a mim, a dôr suffoca-me!» -- E passando o braço concupiscente pela cinta da Adelaide, exclamou:
-- Está de fazer sensação, minha Adelaide!
Ergueu-se. Tinha terminado o seu dia. Fôra bem preenchido e digno: da manhã certificára-se com regosijo no Diario do Governo, que a familia real «passava sem novidade»; cumprira o dever d'amigo, acompanhando Luiza aos Prazeres n'uma carruagem da Companhia; a alta das inscripções assegurava-lhe a paz da sua patria; compozera uma prosa notavel; a sua Adelaide amava-o! E de certo se deliciou na certeza d'estas felicidades, que contrastavam tanto com as imagens sepulchraes que a sua penna revolvera, porque Adelaide ouviu-o murmurar:
-- A vida é um bem inestimavel! -- E acrescentar como bom cidadão: -- Sobretudo n'esta era de grande prosperidade publica!
E entrou no quarto com a cabeça erecta, o peito cheio, os passos firmes, erguendo alto o castiçal.
A sua Adelaide seguia-o, bocejando; estava cançada da constipação e -- de uma hora de ternuras, que tivera á tardinha, com o louro e meigo Arnaldo, caixeiro da Loja da America.
Áquella hora dous homens desciam d'uma carruagem á porta do Hotel Central: um trazia uma ulster de xadrez, o outro uma longa pelliça. Um omnibus quasi ao mesmo tempo parou, carregado de bagagens.
Um criado allemão, que conversava em baixo com o porteiro, reconheceu-os logo, e tirando o côco:
-- Oh snr. D. Bazilio! Oh snr. visconde!
O visconde Reynaldo, que batia os pés nas lages, rosnou de dentro da sua pelliça:
-- É verdade, aqui estamos outra vez na possilga!
Mas áquella hora?
-- A que horas queria vossê que chegassemos? Ás horas da tabella, talvez! Doze horas d'atrazo, essa bagatella! Em Portugal é quasi nada...
-- Houve algum transtorno? -- perguntava o criado com solicitude, seguindo-os pela escada.
E Reynaldo, pisando com um pé nervoso o esparto do corredor:
-- O transtorno nacional! Descarrilou tudo! Estamos aqui por milagre! Abjecto paiz!... -- E desabafava a sua cólera com o criado: tel-a-hia desabafado com as pedras da rua, tanto era o excesso da bilis: -- Ha um anno que a minha oração é esta: Meu Deus, manda-lhe outra vez o terromoto! Pois todos os dias leio os telegrammas a vêr se o terromoto chegou... e nada! Algum ministro que cahe, ou algum barão que surge. E de terremoto nada! O Omnipotente faz ouvidos de mercador ás minhas preces... Protege o paiz! Tão bom é um como outro! -- E sorria, vagamente reconhecido a uma nação, cujos defeitos lhe forneciam tantas pilherias.
Mas quando o criado, muito consternado, lhe declarou -- que não havia senão um salão e uma alcova com duas camas, no terceiro andar -- a cólera de Reynaldo não conheceu restricções:
-- Então havemos de dormir no mesmo quarto? Vossê pensa que o snr. D. Bazilio é meu amante, seu devasso? Está tudo cheio? Mas quem diabo se lembra de vir a Portugal? Estrangeiros? É justamente o que me espanta! -- E encolhendo os hombros com rancôr. -- É o clima, é o clima que os attrahe! O clima, este prodigioso engodo nacional! Um clima pestifero. Não ha nada mais reles de que um bom clima!...
E não cessou d'invectivar o seu paiz, em quanto o criado á pressa, sorrindo servilmente, punha sobre a jardineira pratos, fiambre, um frango frio e Bourgogne.
Reynaldo vinha vender a ultima propriedade, e acompanhára Bazilio que voltava a terminar «o seccante negocio da borracha». E não cessava de rosnar soturnamente de dentro da pelliça:
-- Aqui estamos! Aqui estamos no chiqueiro!
Bazilio não respondia. Desde que chegára a Santa Apolonia, recordações do Paraiso, da casa de Luiza, de todo aquelle romance do verão passado, começavam a voltar, a attrahil-o, com um encanto picante. Fôra encostar-se á vidraça. Uma lua fria, livida, corria agora entre grossas nuvens côr de chumbo: ás vezes uma grande malha luminosa cahia sobre a agua, faiscava: depois tudo escurecia: vagas mastreações desenhavam-se na obscuridade diffusa: e algum fanal de navio tremeluzia friamente.
-- Que fará ella a esta hora? -- pensava Bazilio. -- Naturalmente, deitava-se... Mal sabia que elle estava alli, n'um quarto do Hotel Central...
Cearam.
Bazilio levou a garrafinha de cognac para a cabeceira da cama: e com a cara coberta de pó d'arroz, os folhos da sua camisa de dormir abertos sobre o peito, muito estendido, soprando o fumo do charuto, gozava uma lassidão confortavel.
-- E ámanhã estou-te d'aqui a vêr -- disse Reynaldo. -- Vaes-te logo metter com a prima!
Bazilio sorriu, o seu olhar errou um pouco pelo tecto; certas recordações das bellezas d'ella, do seu temperamento amoroso, trouxeram-lhe uma vaga voluptuosidade: espreguiçou-se. -- Que diabo! -- disse -- é uma linda rapariga! Vale immenso a pena! -- Bebeu mais um calice de cognac, e d'ahi a pouco dormia profundamente. Era meia noite.
Áquella hora Jorge acordava, e sentado n'uma cadeira, immovel, com soluços cançados que ainda o sacudiam, pensava n'ella. Sebastião, no seu quarto, chorava baixo. Julião, no Posto Medico, estendido n'um sophá, lia a Revista dos Dous Mundos. Leopoldina dançava n'uma soirée da Cunha. Os outros dormiam. E o vento frio que varria as nuvens e agitava o gaz dos candieiros ia fazer ramalhar tristemente uma arvore sobre a sepultura de Luiza.
D'ahi a dous dias pela manhã Bazilio, no Rocio, procurava, com o olhar em redor, um coupé decente. Mas o Pintéos, avistando-o de longe, lançou logo a parelha. Cá está o Pintéos, meu amo! Parecia encantado de tornar a vêr o snr. D. Bazilinho, e apenas elle lhe disse:
-- Lá acima, á Patriarchal, ó Pintéos!
-- A casa da senhora? Prompto, meu amo. -- E endireitando-se na almofada, bateu.
Quando a tipoia parou á porta de Jorge -- o Paula sahiu para a rua, a estanqueira correu de dentro do balcão, a criada do doutor debruçou-se logo na janella. E immoveis arregalavam os olhos.
Bazilio tocára a campainha, um pouco nervoso: esperou, arremessou o charuto, tornou a puxar o cordão com força.
-- As janellas estão trancadas, meu amo -- disse o Pintéos.
Bazilio recuou ao meio da rua: as portadas verdes estavam fechadas, a casa tinha um aspecto mudo.
Bazilio dirigiu-se ao Paula:
-- Os senhores que alli moram, estão p'ra fóra?
-- Já não moram -- disse o Paula soturnamente, passando a mão sobre o bigode.
Bazilio fixou-o, surprehendido d'aquella entonação funebre.
-- Onde vivem agora então?
O Paula escarrou, e cravando em Bazilio um olhar desolado:
-- V. s.a é o parente?
Bazilio disse sorrindo:
-- Sou o parente, sou.
-- Então não sabe?
-- O quê, homem de Deus?
O Paula esfregou o queixo, e bamboleando a cabeça:
-- Pois sinto dizer-lh'o. A senhora morreu.
-- Que senhora? -- perguntou Bazilio. E fez-se muito branco.
-- A senhora! A senhora D. Luiza, a mulher do snr. Carvalho, o Engenheiro... E o snr. Jorge está em casa do snr. Sebastião. Alli ao fim da rua. Se v. s.a lá quer ir...
-- Não! -- fez Bazilio com um gesto rapido da mão. Os beiços tremiam-lhe um pouco. -- Mas que foi?
-- Uma febre! Rapou-a em dous dias!
Bazilio dirigiu-se ao coupé devagar, com a cabeça baixa. Olhou mais uma vez para a casa; fechou com força a portinhola. O Pintéos bateu p'ra a Baixa.
O Paula então aproximou-se do estanque:
-- Não lhe fez muita móssa! Fidalgos! Canalha! -- murmurou.
A estanqueira disse lamentosamente:
-- Pois eu não sou parenta, e todas as noites lhe rezo dous padre-nossos por alma...
-- E eu! -- suspirou a carvoeira.
-- Ha-de-lhe isso servir de muito! -- rosnou o Paula, afastando-se.
Estava ultimamente mais amargo. Vendia pouco. Aquellas mortes na rua traziam-no desconfiado da vida. Cada dia detestava mais os padres! e todas as noites lia a Nação que lhe emprestava o Azevedo, repastando-se com rancor d'artigos devotos, que o exasperavam, o impelliam para o atheismo; e o descontentamento das cousas publicas inclinava-o para a communa. Como elle dizia, achava tudo uma porcaria.
Foi de certo sob este sentimento que, voltando á porta do estanque, disse ás visinhas com um ar lugubre:
-- Sabem o que isto é? Sabem o que tudo isto é? -- Fazia um gesto que abrangia o universo. Fitou-as d'um modo irado, e rosnou esta palavra suprema:
-- Um monte d'estrume!
Ao descer a rua do Alecrim, Bazilio viu o visconde Reynaldo á porta do hotel Street. Mandou parar o Pintéos, e saltando do coupé:
-- Sabes?
-- O quê?
-- Minha prima morreu.
O visconde Reynaldo murmurou polidamente:
-- Coitada!...
E foram descendo a rua, de braço dado, até ao Aterro. O dia estava glorioso; um friosinho subtil errava; no ar luminoso, leve, trespassado de sol, as casas, os galhos das arvores, os mastros das faluas, as mastreações dos navios tinham uma nitidez muito desenhada; os sons sobresahiam com uma tonalidade cantada e alegre; o rio reluzia como um metal azul; o vapor de Cacilhas ia soltando rolos de fumo que tomavam a côr do leite; e ao fundo as collinas faziam na pulverisação da luz uma sombra azulada, onde as casarias caiadas rebrilhavam.
E os dous passeando devagar, iam fallando de Luiza.
O visconde Reynaldo, delicado, lamentava a pobre senhora, coitada, que se tinha deixado morrer por um tempo tão lindo! -- Mas em resumo, sempre achára aquella ligação absurda...
Porque emfim fossem francos: que tinha ella? Não queria dizer mal «da pobre senhora que estava n'aquelle horror dos Prazeres», mas a verdade é que não era uma amante chic; andava em tipoias de praça; usava meias de tear; casára com um reles individuo de secretaria; vivia numa casinhola, não possuia relações decentes; jogava naturalmente o quino, e andava por casa de sepatos d'ourello; não tinha espirito, não tinha toilette... que diabo! Era um trambolho!
-- Para um ou dous meses que eu estivesse em Lisboa... -- resmungou Bazilio com a cabeça baixa.
-- Sim, p'ra isso talvez. Como hygiene! -- disse Reynaldo com desdem.
E continuaram calados, devagar. Riram-se muito d'um sujeito que passava governando atarantadamente dous cavallos pretos: -- Que phaeton! Que arreios! Que estylo! Só em Lisboa!...
Ao fundo do Aterro voltaram; e o visconde Reynaldo passando os dedos pelas suiças:
-- De modo que estás sem mulher...
Bazilio teve um sorriso resignado. E, depois d'um silencio, dando um forte raspão no chão com a bengala:
-- Que ferro! Podia ter trazido a Alphonsine!
E foram tomar Xerez á Taverna Ingleza.
Setembro 1876 -- Setembro 1877.
FIM
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