AUTORES CELEBRES

MARIA ONEILL

A Marqueza de Valle Negro

ROMANCE

1914

PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA

LIVRARIA EDITORA

Rua Augusta -- 44 a 54

LISBOA

I

Sentada na vasta cozinha lageada, junto do lume, a tia Engracia fazia meia. De quando em quando olhava para o velho relogio collocado na parede e soltava um suspiro. Parecia-lhe que n'aquella noite os ponteiros não se mexiam do logar. Lá fora a chuva cahia a jorros o o vento uivava furibundo pelas gargantas do valle. O gato, enroscado aos pés da sua dona, ronronava satisfeito, e o cão, atravessado em frente da porta, descansava o focinho nas mãos, de olhos abertos e ouvido attento ao menor ruido. Por fim ergueu-se, agitando a cauda, e começou a ladrar festivamente.

-- Até que emfim! exclamou a senhora Engracia com satisfação. Já não é sem tempo!

E pousou a meia nos joelhos, olhando por cima dos oculos na direcção da porta. Esta abriu-se dando passagem a uma gentil rapariguita de dezoito annos pouco mais ou menos. O cão lançou-lhe as patas aos hombros e prodigalisou-lhe as mais vivas demons-

trações de amizade. Entre grata e impaciente, ella tentava acalma-lo:

-- Então, Valente? então? Basta de festas!

A velha, em tom de ralho, ordenou:

-- Deite-se!

Foi promptamente obedecida. O cão olhou para a chibata, pousada ao canto da casa, e, com o rabo entre as pernas, foi deitar-se na sua posição primitiva.

-- Tão tarde! censurou a tia Engracia.

-- Não foi culpa minha, avó. Venho encharcada!

-- Pudéra não! Com o tempo que está! Vai mudar de roupa primeiro que tudo.

-- Pois sim, mas deixo-me dar-lhe isto para a consolar.

E, aproximando-se da velha, collocou-lha na mão tres mil réis em moedas de cinco tostões.

Os olhinhos da tia Engracia faiscaram de jubilo.

-- Foi quanto te deram ?

-- Este mez, por ser o primeiro; mas, á medida que eu aprenda o serviço, augmentam-me o ordenado.

-- Está bem. Já não é mau. Poucas raparigas do logar ganham o mesmo. Estou a vêr que pelo Natal podes botar uma roupa nova. Vai-tee pôr do enxuto, vai, e anda ceiar.

A rapariga obedeceu. Vamos aproveitar a sua ausencia para dizermos alguma cousa d'ella aos leitores. E' alta, delgada, tom o cabello castanho, a tez pallida e um aspecto aristocraticamente altivo, que contrasta com o seu trajo aldeão.

Quando voltou a entrar na cozinha, vestia uma saia preta, muito pregueada, corpete da mesma côr, um lenço de lã vermelha cruzado sobre o seio e um aventalinho de ramagens. No pé, graciosamente pequeno, calçava meias brancas, feitas á agulha, e umas chinelas do polimento preto.

-- Bravo! Como vens janota! exclamou alegremente a tia Engracia, vendo entrar a neta.

-- E' que a senhora, volveu Margarida, disse-me que mettesse a uso o fato da terra porque, quando fosse para a cidade, queria que eu trajasse de outra maneira.

-- Isso é que me não calha nada. Mas que se lhe hade fazer?

-- Até me dá riso a idéa de trajar taes modas.

-- E não é para menos.

-- Tambem já lhe pedi para não me obrigar, quando voltasse, a vestir taes fatos cá na terra.

-- E ella?

-- E' bôa senhora. Não vai longe d'isso.

-- Põe a ceia na mesa.

-- A Joaninha não ceia?

-- Não. Recolheu com tremuras e febre e foi-se ao leito.

-- Um caldo talvez lhe fizesse bem.

-- Já lhe dei uma pinga de café bem quente.

Emquanto fallava, Margarida pôz as malgas com o caldo sobre a mesa e partiu a brôa, depois de lhe fazer previamente uma cruz com a faca.

-- Ainda não fallam na partida? perguntou a velha Engracia, esmigalhando no caldo um pedaço de brôa.

-- Ainda não. A senhora não está em estado. Tem uma tosse que é mesmo uma dôr d'alma ouvi-la.

-- Coitadinha! E que díz o doutor?

-- Não diz nada. Vai vê-la todos os dias, receita uns remedios, e, quando sái do quarto da doente, abana a cabeça com um modo desanimado que é uma pena vêr.

-- E o senhor?

-- Chora pelos cantos, e ao pé d'ella mostra-se muito satisfeito. Falla-Ihe em ir a Paris... Emfim, faz o que pode para a distrahir da doença, mas ella é muito fina e bem sabe que o seu estado é grave.

-- E' isto; ninguem é feliz na terra. Uma gente com tanto de seu!

-- Isso mesmo dizia hontem o senhor padre capellão.

E conversaram longo tempo, comendo sobre o caldo castanhas cruas que, de manhã, a Engracia apanhara no souto proximo.

Por fim a avó, erguendo-se da mesa, deu em voz alta graças a Deus por lhes não faltar com o pão de cada dia e, abençoando a neta, trancou a porta e recolheu-se ao quarto.

Margarida pegou na candeia e dirigiu-se para o lado opposto, onde dormia com sua irmã. Fechou a porta de communicação para a cozinha e abriu mansamente a janella, depois de verificar que a irmã estava bem coberta e não recebia ar pela fresta que entreabrira.

-- Estás ahi, João?

-- Estou.

-- Com esta noite! Que loucura!

-- Não te enxerguei hoje um só momento. Tinha saudades.

-- E como has de então passar, quando eu partir?

-- Não me falles n'isso, Margarida. Só de o pensar parece que endoidêço. Muito soffrem os pobres!

-- Olha que os ricos tambem soffrem, por modo diverso, mas olha que não é menos.

-- Ora adeus! Com dinheiro tudo se leva bem.

-- Qual leva nem meio leva! Ora põe-te no caso dos meus patrões. Elle quer mais á mulher do que às meninas dos seus olhos e tem-na alli no leito a torcer-se com dôres, n'uma abafação que parece que se pega só de vêr, deitando sangue pela bocca, o com uma tosse que, quem a ouve, julga que se lhe vai partir o peito. Tem gasto rios de dinheiro com medicos e botica, e a pobre vai de mal em peior. O dinheiro não dá folicidade, João. A sorte de cada um é que é bôa ou má, como Deus determina.

-- Pois sim, mas, se eu tivesse dinheiro, casava-me já comtigo e não tinha a magua de te vêr ir para longe entre gente desconhecida.

-- Desconhecida! Essa agora!

-- Pois está visto que para mim são desconhecidos. Nunca os vi... nunca lhes fallei. Passo-lhes pela porta quando vou á lenha; não é o bastante para conhecer as pessoas.

-- Mas é gente bôa.

-- Não digo menos d'isso. Tenho porém uma cousa cá dentro que me diz que não é bem para mim que tu continues n'aquella casa.

-- Não embirres para ahi. Eu estou contento, tratam-me bem o pagam-me melhor. Para o Natal heide botar roupa nova e em muito pouco tempo hei de ter um cordão do oiro.

-- Estás-te a afidalgar e depois has de achar que não sou homem para ti.

-- E's tonto.

-- Serei; mas quem se habitua a viver n'um palacio, em que até os criados parecem senhores, como ha do voltar de gosto a uma casa pequena e pobre?

-- Basta a casa pequena e pobre ser nossa o o paIacio ser alheio, para lá se voltar com gosto.

-- Hum!... hum! Não me pareço.

-- Pelo que vejo, andas a ralar-te com coisas que não valem dois caracoes. Come, bebe, trabalha, anda alegre e não te dê para imaginar tolices. Quando mais tardo tivermos as nossas economias, casaremos e seremos felizes.

-- Tu não me tens amor.

-- Qual não tenho?!

-- Não tens, digo-te eu que m'o não tens. Se me quizesses lá de dentro, podias nem por sonhos pensar em ir para a cidade? Isso sim!

-- Então não percebes que, quanto mais ganharmos, mais cedo casaremos?

-- Sim, sim, mas tu não falias em arrecadar. Pensas n'uma roupa, n'um cordão...

-- E ainda n'umas arrecadas. O que não quer dizer que não penso no futuro.

-- Mas...

-- Não estejas á chuva, homem. Vai-te deitar e tem confiança em mim.

-- Dás-me um beijo?

-- Para que o pedes? Bem sabes que não. Prometti á minha mãe, que Deus haja, não beijar homem que não fosse marido, e não quero faltar.

-- Fazes bem. Adeus, bôa noite.

-- Bôa noite, meu bem..

-- Teu bem! Se eu tivesse a certeza de que o era...

-- És, és. Bôa noite.

-- Até ámanhã.

João affastou-se. Margarida fechou a janella e começou a despir-se, pensando comsigo:

-- O João tem razão no que diz. Eu não gosto d'elle. Se gostasse, não acceitava a partida com tanto gosto. Sempre ha cada pressentimento! Pobre rapaz! E se eu o desenganasse?... Para quê? Em me indo embora, deixando de me vêr, vai-lhe esmorecendo a ideia do casamento e escuso de lhe dar um desgosto.

Depois sorriu e, deitando-se, sonhou com Lisbôa, que nunca vira e lhe apparecia como uma visão feérica que nada egualava em grandeza, com palacios magnificos e carruagens deslumbrantes. Via-se vestida elegantemente, como a criada franceza que sua ama trouxera de Paris, e, longe de se penalisar com essa ideia, como mostrára a sua avó, revia-se, no seu novo trajo, nos bellos crystaes que ornavam o toucador da Marqueza de Valle Negro.

E assim, dando largas á phantasia, cerraram-se-lhe lentamente as palpebras e adormeceu profundamente.

II

No quarto de cama da Marqueza de Valle Negro as janellas estão semi-cerradas. Junto do leito, Margarida, sentada n'uma cadeira baixa, vola o somno da doente que parece penosamente agitado.

No alto espelho, que defronta o leito, contempla Margarida com pesar os estragos que a doença tem feito no rosto da Marqueza, outr'ora tão formoso; depois olha-se a si e fica absorta e contente na sua contemplação. O seu vaidoso orgulho dizia-lhe que não era menos gentil do que D. Mafalda o fôra em nova o que, vestida como ella, o seu ar não seria menos senhoril.

A doente gemeu. Ella aproximou-se cuidadosa, mas, verificando que a sua ama dormia, tornou a sentar-se. Uma ideia, que ainda não tivera, veio sobresalta-la:

-- Se a senhora morre, não verei Lisboa. Não me levarão para lá.

E o seu cuidado e dedicação pela Marqueza foi

augmentado com o receio de perder a realisação do seu sonho: -- vêr Lisboa.

A criada franceza, exhausta de cansaço por noites consecutivas de vigilia, adoeceu tambem, de fórma que Margarida passou a dormir no palacio e a revezar-se com o marquez no serviço de enfermagem. Tão intelligente cuidado punha no desempenho da sua missão, que o medico não se fartava de a elogiar o a doente habituou-se a ella por tal modo, que não queria que outra possôa lhe ageitasse os travesseiros ou compuzesse a cama.

Isto deu a Margarida uma subita consideração entre a criadagem, que commentava o caso, censurando que deixassem uma rapariga tão nova velar doença tão contagiosa, A criada dos engommados dizia:

-- Se exigissem tal cousa de mim,-- e não tenho a idade d'ella -- ia-me immediatamente embora. Não, que vida ha só uma!

-- A culpada é a avó. Quer ganhar com a neta, e não se importa com o perigo que ella pode correr.

Então, o criado de mesa, dando-se uns ares muito importantes, sentenciou:

-- Todos vocês faliam som saber o que dizem. A tia Engracia é doida pela neta; mas, ignorante, como quasi toda esta pobre gente da aldeia, não acredita nos perigos do contagio.

-- Eu não sou da aldeia e tambem não creio que as molestias se peguem. Morre quem tem de morrer.

-- Oh! Isso agora é uma verdadeira tolice, tornou

ainda o criado de mesa, anediando as longas suissas negras.

-- Tolice é a mania de que tudo se pega.

-- Não comecem vocês á questão. O que não offerece duvida é que a Margarida é uma boa rapariga, porque, apesar de prevenida pelo medico, não se poupa a cuidados.

-- Lá isso é verdade.

-- Aquillo é na ideia de apanhar uma boa gratificação.

-- Calla-te ahi, interesseiro! Julgas os outros por ti.

-- Quem não anda contente é João da Levada. Não apanha nem um instante em que converse com a cachopa.

Esta observação era do caseiro, que acabava de entrar e ouvira as ultimas palavras.

-- Ai! ella já tem namoro! Começa cedo.

-- Cá na terra nunca se guardam para tarde, e olhe que, no que toca a juizo, as mulheres d'aqui podem dar lições ás da cidade.

Isto dizia o caseiro n'um tom de insinuação que fez corar a palavresa criada e volver-lhe com falsa convicção:

-- Acredito, acredito. Cada terra cem seu use...

-- E este não é dos peiores, concorde, disse gaiatamente o caseiro.

De repente fez-se silencio. O marquez acabava de entrar na cozinha e, afflicto, fóra de si, gritava:

-- O Victor que monte a cavallo e vá a toda a brida chamar o doutor. A senhora está peior.

E, voltando cosias, desappareceu deixando os criados constornados pela noticia. O marquez era um homem de trinta e cinco annos, pouco mais ou menos, muito trigueiro, com o cabello negro e os olhos castanhos, vivos e profundos, cheios de mobilidade. De estatura superior á vulgar, e muito naturalmente elegante, era o enlevo das salas lisboetas, onde em vão as vaidosas casquilhas procuravam captar lhe as graças, Era um espirito são, um caracter recto, e tinha ácerca do casamento e da moral ideias muito suas e inteiramente diversas das dos outros homens.

Casára por amor, e amor verdadeiro, e tinha na sua conducta o escrupulo que desejara na da mulher.

N'estas condições, e dadas as singulares qualidades que distinguiam a marqueza de Valle Negro, não admira que o seu lar, apontado como um modêlo de felicidade, realmente o fôsse. A confiança mutua, em que se baseava a forte affeição d'estes dois entes, não foi nunca levemente abalada. Mas, como está escripto que ninguem seja completamente feliz, veio a doença de Mafalda empanar esta felicidade sem nuvens.

A marqueza era muito bôa criatura e tinha um unico irmão, que sinceramente estimava. Duarte era para ella quasi um filho, apesar de haver entre elles apenas a differença de tres annos. Muito extravagante e fraco, compromentteu por tal forma a saude que, quando lhe dou attenção, já era tarde: estava irremediavelmente perdido. A irmã quiz trata-lo, ape-

sar da opposição do marido, e contrahiu o mesmo mal.

Muito debil, mas intelligente, conheceu logo que estava perdida, o desde esse dia, soffreu cruelmente. A doença era o menos: o que a affligia cruelmente era a ideia de deixar Estavam só. Que vida seria a d'elle? Assaltavam-na as mais crueis visões. Via-o envelhecer, triste e só, rodeiado dos cuidados interessados dos herdeiros, e supportando a vida dolorosamente, vergado ao peso da sua immensa desventura. Ao contrario do que é vulgar, nunca se illudiu com o seu estado, mas procurava quanto possivel enganar o marido e incutir-lhe as esperanças que não tinha.

Estevam, por seu lado, fechava os olhos para não vêr. E, quando o medico o ia dispondo para o inevitavel golpe, dizia comsigo.

Porque não ha de elle enganar-se? A Deus nada é impossivel.

E, sinceramente crente, orava com fervor. Era este o estado moral dos dois esposos quando, na manhã em que Margarida velava o somno da marqueza, notou um fio de sangue que lentamente lhe corria pelo canto esquerdo da bôca. Alarmada, correu a chamar o marquez que, tendo observado o facto, fez, como vimos, chamar o medico a toda a pressa, voltando em seguida ao quarto de sua mulher.

Uma scena desoladora o esperava alli. Margarida, sentada na borda do leito, segurava nos braços robustos o debil corpo da marqueza, agitado pela ultima convulsão da agonia. Um fundo suspiro fechou para sempre os labios da pobre criatura e Margarida conheceu horrorisada que tinha nos braços um cadaver.

Vendo entrar Estevam, bradou augustiada:

-- Ai! senhor marquez, parece-me que o medico já não vem cá fazer nada.

-- Um espelho! onde está um espelho? perguntava febrilmente o marquez, revolvendo tudo que estava por cima das mesas e sem achar o que queria.

-- Na gaveta do cima do toucador... á direita.

-- Cá está.

E pegando no pequeno crystal, encaixilhado em prata e com o cabo primorosamente cinzelado, quo havia sido um prosento de noivado, correu para junto do leito e aproximou-o dos labios da esposa. Então, adquirindo a fatal certeza, cahiu soluçando aos pés da cama onde Margarida continuava na mesma posição, aterrada, sem se atrever a fazer um movimento, aniquilada ante aquella morte, a primeira a que assistia, o que era a perda de todos os seus sonhos. O medico poz termo áquelle estado doloroso. Tirou o corpo da marqueza dos braços da criada, deitou-o no leito o cobriu-lhe o rosto com o lençol. Depois sacudiu a rapariga por um braço, chamando-a pelo seu nome. Ella não respondeu. Continuava com o olhar perdido, desvairada e, apparentemente, n'uma completa insensibilidade.

Então o medico molhou as pontas d'uma toalha em agua e fustigou-lhe o rosto sem obter melhor re-

sultado. Fê-la sair do quarto e entrar na casa dos engomados. A' vista do pranto das suas companheiras, Margarida desatou tambem a chorar. O doutor chamou de parte a governante, fez-Ihe em voz baixa algumas recommendações ácerca da rapariga, o voltou a ter com o marquez, que soluçava entregue á sua dôr, n'uma verdadeira desesperação.

-- Então, meu caro amigo?... Seja homem. Esse chôro não é proprio de quem tem o seu nome. Foi preferivel assim. No estado em que estava a senhora marqueza, a vida era-lhe um verdadeiro martyrio. Não seja egoista, meu amigo. Enterremos os mortos e cuidemos dos vivos.

Assim se fez.

III

E' bonita a casa de Valle Negro. De uma architectura perfeitamente moderna, é copia d'um dos mais recontes e gentis castellos que o gosto francez inventou não se poupando a despezas. Depois do enterro da marqueza, quizeram os amigos e parentes que o viuvo fôsse viajar, mas elle recusou-se a isso. Nem mesmo quiz voltar para a capital, e permaneceu, mau grado a opinião de todos, no theatro da sua grande dôr. Nenhum dos criados ou criadas foi despedido. Margarida teve ordem de não trabalhar e era tractada com cuidado da doença nervosa que o subito espectaculo da morte da marqueza lhe causara.

O marquez passava a vida caçando, andando a monte. Não o viam senão ás horas de comer, ou na missa do domingo, na egreja parochial. Furtava-se á convivencia de todos o era notorio o seu visivel acabrunhamento. Uma tarde em que a aspereza do tempo o obrigara a não sahir, dirigiu-se ao quarto da marqueza e começou a abrir as gavetas. Encontrou

tudo n'uma perfeita ordem. Lembrando-se de que, no ultimo tempo de vida da mulher, era immenso o desalinho em todas as coisas, chamou a governante e perguntou-lhe quem puzera ordem em tudo. EIla respondeu-lhe que Margarida, estando prohibida de fazer trabalhos violentos, lhe pedira para arranjar tudo alli. Accedera por ser necessario, e não fallára n'isso a seu amo para o não impressionar.

-- Está bem. Diga-lhe que venha cá.

Margarida era uma natureza extremamente impressionavel. Desde o enterro de Mafalda fugia do marquez, como se receiasse. vendo-o, evocar a impressionante scena da morte, que lhe havia alterado a saude. A ordem do lhe ir fallar, e alli, no quarto da marqueza, incommodou de tal forma a pobre rapariga, que pensou em recusar-se a cumpri-la. A governante dissuadiu-a d'isso e convenceu-a a ir vêr o que o marquez desejava.

Toda de preto, com o vestido feito á moda da cidade, segundo as intenções que em vida D. Mafalda mostrara e que a governante entendeu cumprir, tractando-se do lucto de sua ama, Margarida, mais pallida que de costume, entrou no quarto da marqueza, de olhos baixos e sem se atrever a fallar, tão grande era a sua commoção.

O marquez contemplou-a com sympathia e disse-lhe:

-- Mandei-a chamar, Margarida, porque lhe quiz agradecer pessoalmente o carinhoso cuidado com que tractou a marqueza, cuidado que subsistiu alêm

da morte em tudo que lhe pertencia e ella estimava.

Margarida desatou a chorar, dizendo por entre soluços:

-- Não tem nada que me agradecer, senhor marquez. Cumpri o meu dever: V. Ex.ª não deseja mais nada?

-- Quero dar-lhe uma lembrança da marqueza.

E abrindo uma gaveta, onde estavam as joias que Mafalda não gostava de pôr, tirou d'ella um longo cordão de ouro com uma medalha. Foi depois á secretaria da mulher, e d'um maço separou um dos ultimos retratos de Mafalda e estendeu-o a Margarida, dizendo:

-- Ponha-o nessa medalha, Margarida, e use-o como uma lembrança da minha gratidão.

Confusa, sem saber como agradecer-lhe, Margarida murmurou um obrigada tão sumido que não chegou aos ouvidos do marquez, e retirou-se tão satisfeita quanto possivel.

Ficando só, o marquez disse comsigo:

-- Que bonita que é esta pequena! É graciosa, dintincta. Ninguem dirá que é uma aldeã.

N'essa tarde, pareceu mais animado que de costume. Leu, o que depois da morte da mulher ainda não fizera, e, no deitar-se, deu ordem ao criado para o chamar cêdo na manhã seguinte, se o dia estivesse bom.

O presente do marquez a Margarida descontentara a governante.

As outras criadas tambem o não viram com bons olho se foi elle, por assim dizer, o rastilho que pegou fogo á mina que devia explodir contra a pobre rapariga.

-- Ah! Elle dá-lhe um cordão de ouro! E não quer que ella trabalhe!... Já comprehendo!...

-- Mas a quem você o diz! exclamou a governante, ouvindo a perfida insinuação da criada franceza. Já no tempo da senhora, que Deus haja, eu notei varias cousas que não me agradaram... Emfim, calla-te, bôcca. E' preciso não esquecer que é por ella que morre o peixe.

-- E' bem verdade. Mas então já em vida da senhora?...

-- É o que lhe digo. Elle não queria ninguem no quarto senão ella.

-- Mas isso era a senhora marqueza...

-- O' filha, sempre és d'uma innocencia!

Começou, pois, Margarida a sentir-se n'uma atmosphera hostil e, como não era tola, rapidamente percebeu o motivo e até as calumnias que procuravam assacar-lhe.

Pesarosa, contou tudo a sua avó que lhe disse ser melhor despedir-se e voltar para sua casa.

Esta solução não agradava á neta. Habituára-se à bôa mosa de Valle Negro e a morar n'aquella esplendida casa. Despedir-se para não tornar alli, parecia-lhe uma resolução despedaçadora. Comtudo,

adiando razão aos conselhos de sua avó, decidiu-se a segui-los. Foi ter com a governante e disse-lhe sem preambulos:

-- Quero-me ir embora, senhora Thomazia. Faça o favor de me fazer as contas.

-- Queres-te ir embora! E porquê?

-- Por nada. Não desejo servir mais.

Ferida d'uma perversa e subita ideia, a governante chasqueou:

-- Estás então muito fidalga!... Vaes viver dos tens rendimentos? E tens a certeza de não ter vergonha de confessar d'onde elles te vêem?

-- Não percebo o que quer dizer. Decidi ir-me embora, porque minha avó anda adoentada e a Joanna, com as canceiras do campo, não lhe chega o tempo para cuidar da casa.

-- Se é isso, fazes bem. Não serei eu que te dissuada.

E fez-lhe as contas, contente de a vêr ir.

Como depois de mostrar as cousas que levava, a rapariga se dirigisse para a porta, a sr.ª Thomazia perguntou-lhe em tom de mofa:

-- Então não te despedes do senhor marquez?

-- Acha que devo?

-- Decerto. Não tens estado a comer-lhe o pão?

Margarida, profundamente contrariada, dirigiu-se para a casa do jantar, na varanda da qual Estevam, sentado n'uma cadeira de vorga, lia os jornaes de Lisboa.

-- Venho dizer-lhe adeus, senhor marquez.

-- Dizer-me adeus? Então onde é que vai?

--Vou-me embora.

-- Quem a despediu? perguntou elle com visiveis mostras de desagrado.

-- Ninguem, graças a Deus. Eu é que resolvi retirar-me.

-- Então não estava bom aqui?

-- Estava sim, senhor; mas minha avó anda doente... a canceira da casa é muita e...

-- Isso não é razão para se retirar. Dou-lhe licença para ir tractar a sua avó, vencendo o seu ordenado e, quando ella estiver bem, volta para o seu logar.

Margarida, muito vermelha e com a voz balbuciante, respondeu:

-- Eu não posso acceitar o seu favôr, senhor marquez, porque a minha intenção é não voltar.

Estevam ficou um instante silencioso, o depois respondeu-lhe:

-- Eu procurarei saber a causa de tão estranha decisão, Margarida, e se na minha casa alguem lhe faltou ao respeito que se deve a toda a mulher honesta, despedi-Io-hei, seja quem fôr.

-- Adeus, senhor marquez.

-- Adeus, Margarida. Estimo que seja feliz.

IV

E' formosissimo o rio que corro em Valle Negro, serpentoando por entre fraguas e vinhedos, e reflectindo os mansos pinheiraes que se erguem nos montes de que elle aflora as faldas. No seu curso varias lages, cuidadosamente collocadas, attestam que as raparigas do logar visinho costumam vir lavar alli, ajoelhando na alfombra da margem, sob a ospessa ramaria dos salgueiros e dos platanos. Estava uma manhã formosa. O sol acabava de surgir por detraz d'um cómoro e Margarida, com uma trouxa á cabeça, encaminhava-se lentamente para a margem. Contra o costume não estava ninguem lavando.

Ella desfez a trouxa, ajoelhou-se sobre a relva humida, e, depois de arregaçar e torcer a saia para a não molhar, começou lavando.

O João da Levada, que a seguira a distancia, sem que ella desse por isso, contemplou-a muito tempo em silencio e com tristeza. Por fim, aproximando-se, perguntou:

-- Tu não cantas, Margarida?

A rapariga sobresaltou-se e respondeu:

-- Estavas ahi, João? não te vi.

-- Segui-te desde o casal. Tu não pareces a mesma! Foi-se-te a alegria, o riso, e até o canto. Antigamente, quando vinhas para o rio, botavas as cantigas com tal vigor que todo o povo se alegrava de te ouvir: «Lá vai a Margarida para o rio... Aquella é que se não calla... E' mesmo um rouxinol!» E eras; mas hoje!...

E, desconsolado, abanava a cabeça, fitando-a nos olhos com tristeza.

Ella desviou o olhar, tentando desculpar-se:

-- Que queres?... A morte da senhora... a perda das esperanças que eu tinha posto na sua generosidade...

-- Não mintas, Margarida, não mintas. Ainda não és minha mulher, não precisas mentir-me.

E João, lançando fóra o cajado, ajoelhou-se na relva, e tomando-lhe febrilmente as mãos, perguntou-lhe anciando:

-- Sê franca. E' verdade o que dizem? Tu gostas do marquez ?

-- Dizem?! Pois dizem semelhante cousa? perguntou ella no auge do espanto.

-- E' verdade? instava o João fremente: é?

Margarida baixou a cabeça silenciosamente.

Então elle com voz torturada por mil desencontradas commoções, pediu:

-- Conta-me tudo... tudo. Prometto-te que serei digno da tua confiança e que não abusarei d'ella. Ama-lo?

-- Amo, murmurou Margarida muito baixo.

Duas lagrimas rolaram pelas faces do camponez. Mas, sustendo a sua dôr, perguntou:

-- E elle?

-- Não sabe nada do que se passa em mim.

-- Mas dizem que vocês, ainda em vida da sr.ª marqueza...

-- Mentira! lnfamia! Eu não sou gente para elle, João. Nunca me viu, a não sêr como uma criada dedicada da mulher. Nada mais. E eu, assim Deus me salve como é verdade, eu não o amei emquanto a minha senhora viveu. Mas depois, quando o vi só, entregue á sua dôr sem ter ninguem que o entendesse, que o confortasse, tive uma grande compaixão d'elle. Notei então como era bello e superior em tudo aos homens que eu vira até então e, sem bem perceber porquê, affastei-me do seu caminho, vigiando tudo para que nada lhe faltasse e criando-lhe em torno mil cuidados por tudo que lhe era agradavel. Não devia contar-te isto, João, porque te faço soffrer, mas é a verdade. A mãe, que prepara a cama para o filho recem-nascido, não põe maior disvelo em a fazer do que eu ao preparar o leito do marquez. Rodeei-o de affecto sem que elle o pressentissde. Quiz elle, como reconhecimento dos serviços que eu prestara á mulher, dar-me uma lembrança d'ella. Foi a minha desgraça. As minhas companheiras, invejosas do presente, e até a governante, começaram a calumniar-me e a fazer-me insinuações. Não sei se chegaram a adivinhar os meus sentimentos. Eu não lh'os disse, mas senti em volta de mim tão grande má vontade, que resolvi contar tudo á avó. O resto sabes tu, Já t'o disse. Ahi tens a verdade toda, e deixa-me em paz. Bem vês que, amando outro, embora sem esperança, não posso ser tua mulher.

João não respondeu e ficou immovel junto d'ella.

Margarida começou a lavar, olhando a espaços, ás furtadelas, o seu antigo namorado. Mas, vendo que elle não se mexia, disse-lhe brandamente:

-- Fiz-te muito mal?

-- Não, respondeu elle. O caso não é tão mau como eu cheguei a receiar. Pensando bem, não tem mesmo importancia nenhuma.

-- Ora essa! exclamou Margarida pasmada.

-- Não tem. Já te digo porquê. Tu és uma rapariga muito honesta, incapaz de uma acção má. Sei-o melhor do que ninguem, porque, no tempo em que julgavas amar-me, bem quiz comer adiantado e nada consegui. Tambem juro-te que não era com má tenção. Era a pressa natural em querer o que muito desejamos, nada mais. Ora bem; tu não pensas em que elle faça de ti marqueza, creio eu, e... outra cousa não serás. Lembra-te da promessa que fizeste á tua mãe...

-- Tens razão, João.

-- Já vês. Isso é a modos uma doença que te ha de passar com o tempo. E, quando passar, é natural que te lembres de mim que tanto te quiz e quero. Não é verdade?

-- Talvez...

-- Ora bem. Vou-me ao trabalho com mais socego de espirito do que quando vim para aqui. Até logo, Margarida.

-- Atè logo, João.

E o rapaz affastou-se a passos largos, emquanto Margarida, com os olhos enevoados de lagrimas, batia a roupa na lage da levada, seguindo com o pensamento a figura gentil de Estevam nas varias attitudes que tomára no seu ultimo e curto dialogo.

Lavada a roupa, foi estendê-la pelas sebes que orlavam a margem e, tirando a meia do cabazito que trouxera, começou aproveitando o tempo, emquanto a roupa seccava ao sol.

N'isto, chamou-lhe a attenção um vulto elegante que, saltando de fraga em fraga, parecia dirigir-se para alli, seguido por dois grandes pordigueiros. A côr subiu ao rosto de Margarida que levou involuntariamente a mão ao seio, como se quizesse comprimir as pulsações do coração.

Os cães, assim que a avistaram, precipitaram-se a festeja-la. O marquez seguiu-os de perto.

-- Então, Margarida, como está sua avó?

-- Vai indo, senhor Marquez.

-- Quando volta para Valle Negro?

-- Não desejo voltar, senhor. A casa, desde que a senhora morreu, faz-me tristeza.

-- Não digo que isso não seja exacto. Mas não foi o motivo da sua sahida. Eu já sei tudo.

-- Tudo?! perguntou Margarida entre receiosa e incredula.

-- Tudo, sim. Não ha como o dinheiro para soltar certas linguas. Espalhei-o e soube sem difficuldade que foi a inveja da lembrança que lhe dei que levou aquellas abençoadas criaturas a calumnia-la. Despedi-as, Margarida. Em Valle Negro está vago o logar da governante e é preciso que vá desempenha-lo porque os criados não podem estar á solta.

Margarida, festejando a cabeça d'um dos perdigueiros, respondeu:

-- Fez mal em despedir a senhora Thomazia. Ella era boa mulher e não lhe será facil substitui-la, porque eu não posso voltar a Valle Negro. Se o senhor marquez sabe tudo, sabe tambem o que por ahi se diz. Hoje, o meu noivo veio sobresaltado com as noticias que ouviu, pedir-me explicações. Dei-lh'as e elle acreditou em mim. Mas, por muito innocente que eu estivesse, o que diria quem me visse voltar a Valle Negro para o logar da governante, e irem-se embora os criados que me calumniaram?

-- Diriam o que quizessem, isso não tem importancia.

-- Para o senhor marquez que é um homem, mas tem para mim que sou mulher. Sei que muitas, mesmo aqui na aldeia, se não importam com o seu nome, mas a mim não me succede o mesmo. Minha mãe, á hora da morte, fez-me prometter, assim como

a minha irmã, que não beijaria homem que não fosse meu marido, Todo o povo soube isto e alguns levaram de chacota, (de tudo se ri!) esto pedido de minha mãe. Não quero que, com uma apparencia de verdade, se possa dizer que eu faltei á promessa que lhe fiz.

-- E' justo. Mas diga-me uma cousa, Margarida: quem é o seu noivo?

-- Um pobre rapaz que o senhor marquez não conhece.

-- Chama-se ?...

-- O João da Levada.

-- E quer-lho muito?

-- Não para que lhe hei de mentir? E-me indifferente.

-- E casa com elle sem amor!

-- Não é o destino das mulheres casarem-se e ter filhos?

-- Sem amor?! Não me parece que o casamento seja uma necessidade urgente.

-- Nem eu tenho pressa.

-- Então para que arranjou noivo?

-- Eu não o arranjei. Ha dois annos, pela festa do logar, elle dansou comigo e disse-me se eu queria casar com elle. Respondi-Ihe que sim. Nunca tinha tido um namoro e isso dava-me ares de mulher aos meus proprios olhos. Nunca gostei d'elle, mas n'essa occasião foi tal a minha alegria por poder dizer ás amigas que tinha um conversado, que me chegou a parecer que gostava muito d'elle.

-- Então, verdade, verdade, nunca amou?

Margarida ficou silenciosa.

O marquez volveu:

-- Não ouviu a minha pergunta?

-- Perfeitamente.

-- Então porque me não respondeu?

-- Porque não é preciso. Quem casa com uma pessoa que lhe é indifferente, prova bom que...

-- Sabe tudo que se diz por ahi a seu respeito?

Margarida corou.

-- Não sei se sei. A pessôa de quem se falla mal é quasi sempre a ultima a sabê-lo.

-- Dizem que a Margarida gosta de mim. E' verdade?

Margarida apoiou-se ao tronco d‘um salgueiro para não cahir e, depois d'uma breve lucta intima, ergueu a cabeça altivamente e, fitando com severidade o marquez, perguntou-lhe;

-- E quando assim fôsse? Julgava-se por essa razão no direito do me offender? Fazia mal. Eu não tenho feitio para supportar insultos de ninguem.

E dirigindo-se para a sebe, com passo firme, começou a recolher a roupa.

O marquez volveu-lhe promptamente:

-- Em que torra é offensa fazer uma pergunta?

Margarida não respondeu.

-- Ama-me? tornou Estevam com voz não isenta de commoção.

Com a mesma rude altivez com que dissera as ultimas palavras, Margarida confessou:

-- Amo, mas é o mesmo que não amasse, porque nunca lhe pertencerei.

-- Isso é ir muito longe. O destino pertence a Deus. Boa tarde, Margarida, até breve.

-- Adeus, senhor marquez.

V

Passados tres dias, a tia Engracia, em cima d'uma pequena escada, concertava as cannas da parreira que guarnecia a porta do casal, quando o marquez, entrando pela porta do quinteiro, lhe gritou de longe:

-- Eh! tia Engracia! Pode chegar aqui?

-- Lá vou, meu senhor! é um ai emquanto desço.

E, com um vagar que contrastava com as suas palavras, a velhita desceu lentamente do escadote, e com a pressa, que as cansadas pernas lhe permittiam, foi ao encontro de Estevam.

-- V. Ex.ª não quer entrar? A casa é pobrinha, mas limpa, graças ao Senhor.

-- Eu desejo fallar-lhe, mas não queria que as suas netas ouvissem a nossa conversa. Como ha de ser?

-- Isso é muito facil, senhor. Mando-as sahir logo que cheguem.

-- Mas eu não desejo que me vejam aqui.

-- Então o melhor será eu ir a casa de V. Ex.ª

-- Tambem me parece. Vá hoje, porque tenho urgencia de conversar comsigo.

-- Está-me assustando, senhor marquez.

-- Pois vá-se preparando para uma grande alegria...

A tia Engracia volveu apressada ao lar, arranjou o lume, preparou o jantar e, emquanto se vestia com o seu melhor fato, monologava:

-- Que diabo me quererá elle? Cousa ruim não parece que seja. Mas o que é certo é que se me pôz um tal nó na garganta, que não sou eu que posso comer cousa alguma sem saber de que se trata.

Joanna, entrando com uma cantara á cabeça, fitou admirada sua avó.

-- Crédo! Parece um maio! Onde vai com taes luxos?

-- Foi a fidalga do Adro que me mandou um recado para lhe ir fallar. Diz que tem lá uma nova que me hade dar grande prazer.

-- Então vá, vá depressa...

-- Não sem que a tua irmã chegue. Quero fazer-lhe uma pergunta.

Joanna poisou a cantara e veio sentar-se na soleira da porta. Não era menos formosa do que a irmã, mas tinha um typo inteiramente differente. Trigueira, de cabellos bastos e ondeados, possuia uma physionomia tão cheia de vivacidade que se não comprehendia n'ella a tristeza.

-- O' avó, que diz vomecê da Margarida? Não a acha assim a modos aparvalhada?

-- Não. Acho-a tristo. Mas é natural. Olha que a primeira vez que se vê morrer alguem, sente-se um grande abalo. Ella é muito mocinha. Aquella vista chocou-a.

-- Não digo menos d'isso, mas já era tempo de lhe passar.

-- Ainda lá não vão seis mezes e já tu querias que ella esquecesse um passo d'aquelles!

-- Olhe que nem dá conversa ao rapaz, que anda mesmo que parece uma alma penada. Isso é mal feito. E elle, coitado! com aquella grande habilidade que Deus lhe deu, acabou hontem uma linda guitarra, com bellos enfeites de osso, que tem andado a fazer ás migalhas, para lhe offerecer pelo Natal. Tem uns sons que a avó não faz ideial E' mesmo uma musica do ceu. E agora vai começar a cama do noivado. Já lá tem os desenhos, todos tracojados por elle. Vai ser tambem lindamente enfeitada a osso. Na madeira escura fica lindamente.

-- A Margarida demora-se!

-- Não, ainda não é tarde. A avó é que, como está com pressa...

-- Tu sabes se o Pedro levou os meus alqueires de milho para o moinho?

-- Levou, mas o tio Zé disse que os da quinta da Fimeira tinham de ir á fronte porque chegaram primeiro.

-- Cantigas! Como elles são mais endinheirados, são os primeiros a ser servidos, é o que é.

-- Lá vem a Margarida.

Margarida, entrando, deu as bôas tardes e fez, como a irmã, reparo no vestuario da avó.

Ella deu-lhe a mesma resposta que já dera á irmã:

-- Se fôr para me offerecerem algum logar para ti, que queres que responda?

-- Que eu, depois de ter servido a Marqueza de Valle Negro, não sirvo mais ninguem.

Joanna deu uma gargalhada.

-- De que te ris? perguntou-lhe a avó.

-- D'ella, respondeu Joanna apontando para a irmã. Desde que esteve no palacio não sei o que se imagina. Parece alguem que veio d'algures.

-- Sempre estás uma trocista! observou-lhe Margarida, não sem despeito. Tudo te serve de pretexto para rir.

-- Antes assim.

-- Então a avó não janta? disse Margarida, vendo que a velhita se apressava a sahir.

-- Não, filhas, não. Com vontade de saber nunca a comida prestou.

-- Está continuamente a ralhar-nos por sermos curiosas, e afinal ainda é peior do que as netas! disse Joanna soltando uma gargalhada.

-- Até logo, raparigas. Deus vos abençôe.

-- Até logo.

-- Não se demore, pediu Margarida.

-- Farei por isso.

-- Bem, vamos nós jantando, que o estomago está-me a dar horas.

-- Come tu. Eu não tenho vontade.

-- E' isto. A comida da tem já não presta; precisas de cosinheiro francez. Quem te dera com um arrocho n'esse costado! Olha que sem comer nimguem vive.

-- Bem sei. Guarda as sentenças para ti e deixa-me em paz.

E, Margarida, sentando-se no degrau da porta, deixou pender a cabeça nas mãos. Joaninha começou a comer uma sardinha assada, com brôa, e, sem dizer cousa alguma, olhava de soslaio para a irmã. Por fim exclamou:

-- Acabou-se-me o conducto, senão ainda ia mais brôa.

-- Come o meu.

-- E tu?

-- Não me faz mingua.

Joanninha foi-se á sardinha da irmã e comeu-a com o mesmo appetite que mostrara na primeira; depois, pegou da malga e bebeu o caldo vêrde com summa satisfação, sem deixar de observar Margarida. Limpou as migalhas, lavou a malga e as mãos, e veio sentar-se em frente da irmã.

Margarida, immovel, não lhe dava attenção.

Finalmente Joanninha, n'um tom sério que lhe não era habitual, perguntou á irmã:

-- E' realmente verdado, Margarida?

-- O quê?

-- O que corre pela aldeia.

-- Então o que é que corre?

-- Que o senhor marquez fez pouco de ti.

Margarida corou. Olhou a irmã com ressentimento e volveu-lhe:

-- E tu acreditas isso de mim?

Joanna baixou os olhos e respondeu balbuciando:

-- Não sei... Vejo-te tão triste...

-- Isso não é razão.

-- Depois, no melhor panno cae a nodoa... Olha a filha do morgado.

-- Tens razão. A gente não se deve imaginar melhor do que os outros. Mas podes acreditar, Joaninha, por alma da nossa mãe te juro, que não dei nenhum passo mau.

-- Acredito. Mas... porque andas assim?

-- Gosto d'elle. Bem vês, não está mais na minha mão. Hei de fazer de conta que assim não é, mas isso não impede que eu soffra.

-- Queres fazer commigo uma novena á Senhora das Dôres para que te tire essa scisma?

-- Não. Eu não quero deixar de o amar, mas sim ter forças para cumprir o que devo.

-- Vem a ser quasi a mesma cousa.

-- Não é tal.

-- Bem, vamos então a começar a novena n'essa intenção.

E Joanninha foi-se ajoelhar em frente da commoda em que estava a imagem da Senhora das Dôres.

Sem sahir do logar, Margarida ajoelhou tambem, e respondeu ás Ave Marias começadas pela irmã com verdadeira fé. Quando terminaram a resa, Margarida abraçou a irmã, murmurando:

-- Obrigada. A tua ideia foi bôa. Agora sinto-me melhor.

-- Pudera não! As resas sempre confortam.

-- Que quererá a fidalga do Adro á avó? perguntou Margarida, não sem inquietação.

-- Tambem me tem feito curiosidade. Contanto que não seja para lhe contar o que se diz por ahi!...

-- Credo! Santo nome de Maria! Pois ella havia de se atrever a tal?

-- Que queres? Os fidalgos pensam que só elles são gente. A canalha, como dizem quando fallam de nós, não tem coração.

-- Fazem-te mal as leituras que ouves na venda do Lourenço, Joanninha. Tantos mezes que lidei com pessoas de qualidade, o nunca os ouvi chamar canaIha ao povo.

-- Porque uma familia não é assim, não quer dizer que as outras o não sejam. Eu cá tenho tanto desdem por elles como o que elles têem por nós. Para mim é que o teu marquez vinha bem com os seus ares de «não me bulas»! Quanto mais não vale o João, um rapaz da nossa igualha, que tem uma habilidado n'aquellas mãos como não ha outro! Que diabo sabe fazer o teu marquez? Matar gallinholas e coelhos? Olha que é uma linda arte a sua, valha a verdade.

-- Se tu o ouvisses tocar e cantar!

-- Então não ouvi? Não estive lá na cosinha nos ultimos annos da fidalga? Ouvia-se tudo muito bem. Mas entre aquellas cantigas lamentosas, n'uma lingua que a gente não entende, e uma cantiga cá das nossas, bem repenicada na guitarra -- ai! filha! -- não ha que escolher.

Margarida sorriu e não respondeu.

-- Bem. Vou-me chegando. São horas de ir tractar dos porcos. Não vens d'ahi?

-- Não. Vou coser a roupa que lavei, para logo á noite a passar.

Joanninha beijou a irmã com ternura e pediu:

-- Não estejas triste. Aperta-se-me o coração quando te vejo assim.

-- E's uma bôa rapariga. Bem hajas pela amizade que me tens.

E entrando em casa, Margarida foi buscar a costura e voltou a sentar-se no degrau da porta.

Era linda a vista que d'alli se disfructava. Abrangia-se todo o valle. Ao fundo, para a esquerda, via-se a casa do marquez, erguida entro o seu formoso parque talhado à inglesa; do lado opposto, a casaria pardacenta da aldeia; e, a meia encosta do monte fronteiro, a casa do Adro, com a sua fachada antiga, sustentando á frente um vasto terraço apoiado sobre alta arcaria. Era n'aquelle terraço, sentada n'uma das seixas, que se obriam entre os alegretes prodigamente floridos, que a fidalga do Adro, D. Maria da Graça Moscoso, costumava sentar-se nas tardes em que não chovia, por forte que soprasse a ventania. Sem querer, Margarida dirigia para alli o pensamento e torturava-se com a ideia de que era d'ella e do

marquez que D. Maria da Graça queria fallar a sua avó.

Depois, lembrava-se de ouvir contar,-- já não era caso do seu tempo, -- o desigual casamento que aquella senhora fizera. Muita vez, nos serões de inverno, a velha avó alludia ainda a esse facto que causara grande sensação em toda a aldeia. D. Maria da Graça era filha unica de D. Antonio de Moscoso, tão nobre quanto dissipador. Passava os dias e as noites jogando pelas feiras o casas do seu conhecimento e por occasião da sua morte a mulher e a filha tiveram de juntar ao desgosto de o perder a desagradarei surpreza da sua completa ruina. D. Genoveva, ao saber que teria de pôr em praça a casa dos seus antepassados, soffreu um choque, que, diziam as más linguas, fôra muito superior ao pezar de perder o esposo. D. Maria da Graça, mulher de animo varonil e já então perto dos quarenta annos, encarou a situação com sangue frio e quiz ter uma conferencia a sós com o procurador de sua mãe.

Era um velho curvo, de óculos doirados, e com uns olhitos perspicazes e um sorriso ironico que incommodavam geralmente o interlocutor. Era raro atacar uma questão francamente. Servia-se de rodeios sobre rodeios para attingir o seu fim. E, quando D. Antonio Moscoso marcava uma entrevista ao seu procurador, ora certo que, começando depois de almoço, só terminava á hora de jantar.

Com D. Maria da Graça não succedeu assim.

Recebendo os cumprimentos do procurador, fez-lhe peremptoriamente esta pergunta:

-- E' realmente verdade que a nossa casa está totalmente arruinada?

-- Eu exponho a questão a V. Ex.ª...

-- E' inutil. Está ou não está?

-- Infelizmente, minha senhora,... está.

-- Não quero que esta casa se venda nem que o nosso modo de vida soffra a menor alteração emquanto minha mão existir. Ha algum meio practico de conseguir isto?

-- Havia, se se tractasse d'outra pessôa menos distincta que V. Ex.ª; assim... nem me atrevo a dizê-lo.

-- Auctoriso-o a que o faça.

-- O senhor D. Antonio, que Deus haja, reuniu todos os seus debitos na mão de Paschoal de Sousa. E' um homem de meia edade, bom educado, e dotado d'uma bôa alma.

N'este ponto o velho procurador fez uma pausa. Depois continuou com mais lentidão:

-- E' solteiro... Viu V. Ex.ª em casa do juiz e teria muita honra em casar com a filha do sr. D. Antonio.

D. Maria da Graça pôz-se em pé como se fôsse impellida por uma mola e tornou-se extremamente pallida. Apoiou-se com ambas as mãos á borda da mesa e perguntou com voz sumida:

-- E não ha outro meio de minha mãe poder morrer como viveu?

O procurador, depois de alguns segundos de silencio, respondeu:

-- Não, minha senhora, não ha.

D. Maria da Graça passou a mão pela testa afogueada e, com voz mal firme, volveu:

-- Não diga nada a minha mãe da nossa conversa e peça a esse homem que venha fallar-me ámanhã.

E, despedindo o procurador, recolheu-se ao quarto.

No dia seguinte, á hora aprazada, Paschoal de Sousa era recehido por D. Maria da Graça que, offerecendo-lhe uma cadeira junto da mesa, lhe dizia com o ar com que qualquer ministro trata um negocio do Estado:

-- Consta-me que o sr. Paschoal de Sousa tem na sua mão todas as dividas d'esta casa...

-- E' exacto, minha senhora.

-- Inutil será dizer-lhe que não tenho meios de lhe pagar e lhe não quero ficar a dever. Vejo um unico meio de saldar os compromissos de meu pae sem reduzir minha mãe á miseria: casar comsigo. Agrada-lhe esta solução?

-- Muitissimo, minha senhora. E' uma honra que eu não podia esperar.

-- Mas que teve o cuidado de preparar, não é verdade? perguntou ella sem aspereza.

-- Confesso que, desde que a vi em casa do juiz, ha onze annos, não tive outro pensamento senão desposa-la. Nunca me atrevi a faltar n'isso ao sr. D. Antonio, mas tinha feito as minhas confidencias ao seu procurador.

-- Não lh'a levo a mal. Não fallemos mais n'isso. Deixe-me apresenta-lo a minha mãe. Espere-me aqui um momento.

E sahindo da sala, dirigiu-se ao seu quarto, onde se sentou por momentos n'uma cadeira, para cobrar animo de consummar o que ella estava convenaida de que seria um enorme sacrificio. Compondo uma physionomia prazenteira, D. Maria da Graça foi pedir á mãe licença para lho apresentar o eleito do seu coração, fazendo-lhe crer que, se Paschoal do Sousa emprestara dinheiro a D. Antonio, fôra sempre por dedicação por ella. Tão bem apresentou a questão, que a velhinha julgou que, dando o seu consentimento, tornava a filha felicissima. Abraçou-a ternamente e disse lhe que fosse buscar Paschoal a quem fez uma affectuosissima recepção. No dia immediato, de manhã, recebeu D. Maria da Graça, da parte do sou noivo, um cofre de velludo no qual encontrou todas as joias da sua casa e, além da restituição de todos os titulos de divida, a quantia de cincoenta contos em notas, para as obras e despezas que quizesse fazer para o seu enlace. Acompanhava o cofre um lindissimo ramo de rosas brancas o um bilhete conciso e respeitoso, no qual Paschoal lhe pedia desculpa de não ter animo de desistir do sacrifício, que ella tão corajosamente fazia a sua mãe, pelo grande amor que por ella sentia. Impressionada pela delicadeza das expressões o pela generosidade do seu futuro marido, Maria da Graça respondeu-lhe, tambem em poucas linhas, que não fizera sacrificio algum,

porque, embora o não amasse, sympathisava com elle e não lhe custava a crêr que, quando elle fôsse seu marido, o viesse a estimar de todo o seu coração.

E assim foi. Tão delicadamente andou Paschoal com sua mulher, que ella nunca se sentiu dependente d'elle senão no momento em que lhe concedeu a sua mão. Depois, em nada mudou a sua situação a não ser para melhor. Os seus mais pequenos caprichos eram ordens para o marido e, quando a mãe morreu, foi com a maior sinceridade de coração que, lançando-se nos braços d'elle, exclamou:

-- Agora só te tenho a ti, meu adorado.

E a sua voz exprimia tanta verdade que, desde então, Paschoal acreditou que era amado e elles fôram completamente felizes.

-- Ora, pensava Margarida costurando, Paschoal de Sousa era filho d'um sardinheiro que costumava passar na aldeia e muita vez vendeu peixe a minha avó...

Porque razão não faria o tempo o milagre de a aproximar do marquez e porque não occuparia ella outra condição social diversa da que tinha agora? E, dando redoas a phantasia, viu-se marqueza como por encanto, habitando ValIe Negro e adorada por Estevam que a rodeava de disvelos.

VI

Sahindo do casal, a tia Engracia encaminhou-se vagarosamente para casa do marquez. Ia pensativa e, á medida que se aproximava do palacio, sentia-se inquieta, e com uma grande tentação de retroceder. Avisinhando-se da alta grade que rodeiava o parque, viu o marquez passeiando sob a frondosa ramaria dos olmos que ornavam a entrada. Pareceu-lhe que tambem estava nervoso, e sentiu uma forte vontade de chorar, um mêdo immenso d'essa entrevista que elle lhe annunciára alegre e da qual, talvez por isso mesmo, tanto se temia.

Vendo-a, Estevam fez-lhe signal para não puxar a sineta e veio elle proprio abrir-lhe o portão.

-- Por aqui, sr.ª Engracia, por aqui, E' inutil que os criados dêem fé da sua vinda a Valle Negro.

E, seguindo na frente da velhita, entrou para um copado caramanchel a pequena distancia da alameda que os encobria perfeitamente á vista não só das

pessôas que passavam na estrada, como até dos trabalhadores da quinta o dos criados da casa.

O coração da tia Engracia pulsou mais apressado, e uma ideia torturante a pungiu:

-- Teria Margarida entrado alli com o marquez?...

E, fitando no rosto do Estevam um olhar que em vão tentou mostrar sereno, disse-lhe:

-- Que deseja, sr. marquez?

-- Sente-se, tia Engracia. O que tenho a dizer-lhe é longo.

E, notando a visivel afflicção da pobre velha, continuou:

-- Socegue, não ha nada que lhe seja desagradavel no que lhe quero expôr; antes pelo contrario. Escute: tive occasião do apreciar o caracter de sua neta durante o tempo que esteve em minha casa. E', sem favor, uma excellente criatura.

-- Lá isso é verdade. Não é por ser minha neta, mas cá na aldeia não ha quem lhe deite o pé adiante.

-- Tambem penso. Ora eu, desde que morreu minha mulher, vivo n'um grande desconsolo. Resolvi tornar a casar-me e quero casar com sua neta.

-- Com a minha Margarida !... O senhor marquez quer?... E' possivel!...

-- E' possivel, é. Mas comprehende perfeitamente que ella não está educada para senhora. Resolvi portanto propor-lhe o seguinte: Ella ir para Lisboa e dar entrada n'uma casa respeitavel, onde terá bons mostres e lhe ensinarão tudo quanto uma senhora mais urgentemente precisa saber. Eu pago todas as

despezas e, se no fim de tres annos, ella gostar de mim, como agora, caso com ella; no caso contrario, tem uma bella educação, pode ser mestra e ter emfim uma vida mais folgada do que aqui lhe estava reservada, Acceita?

-- Como não hei de eu acceitar tão grande esmola, senhor?

E a tia Engracia chorava de alegre commoção.

-- Não quero que ella saiba que sou eu que lhe pago as despezas para que na occasião de a pedir em casamento ella tenha plena liberdade de me dar qualquer resposta. Emfim, tudo isto terá de ser feito com segredo para evitar que se falle antes de tempo. Tive de despedir a governante e queria que a sr-ª Engracia viesse tomar o logar d'ella.

-- Eu estou tão velha, senhor!

-- Pois sim, mas minha mãe dizia que a sr.ª Engracia, com um dedo, fazia mais do que as outras com ambas as mãos.

-- Mas no tempo em que eu servi a sua mãesinha, que Deus haja, tinha menos quarenta annos do que tenho hoje.

-- Isso não quer dizer nada. E' só para governar durante os dois ou tres annos em que a sua neta estiver ausente. Eu podia fechar a casa e ir fazer durante esse tempo uma viagem pelo estrangeiro; mas sabe o que é esta gente. Se eu sahisse d'aqui ao mesmo tempo que Margarida, ninguem lhes tiraria da cabeça que eu a tinha levado commigo e a isso juntariam mil calumnias, E, como não quero dar com

a minha conducta razão a que boquejem no seu nome, resolvi ficar.

-- O senhor marquez é um santo!

-- Não, sou um homem como todos, mas intelligente bastante para pôr a minha felicidade acima dos estupidos preconceitos sociaes.

A tia Engracia não percebeu o que Estevam queria dizer, mas entedeu que lhe devia dar razão:

-- Isso é que é pensar! Faz o senhor muito bem.

A conversa prolongou-se ainda e, quando a tia Engracia retirou de Valle Negro, já as primeiras sombras da noite começavam a envolver a terra.

O João da Levada passava junto da grade do parque, vergado sob um pesado fardo de lenha, quando viu abrir-se cautellosamente o portão e escoar-se por elle a tia Engracia, emquanto o marquez fechava por sua mão a gradaria e tomava a direcção da casa.

O João estremeceu. Pousou a lenha em terra e, sentando-se sobre ella, tirou o lenço do bolso e limpou o suor. Depois murmurou por entre dentes:

-- Cheira-me a chamusco! Isto tem que se lhe diga!...

E, tirando a carapuça, coçou com desespero a esguedelhada cabeça.

-- Dar-se-ha o caso de a velha estar connivente com este bonifrate para lhe entregar a minha rapariga?... Com mil raios!... se assim é, não lhe queria estar na pelle!

E ficou absorto, com o queixo descançado na mão esquerda e o cotovello apoiado no braço direito.

Dando conta de que escurecera completamente, retomou o fardo e affastou-se lentamente, murmurando a espaços:

-- Não lhe queria estar na pelle!

Entretanto Engracia dirigia-se para o casal levando a alma verdadeiramente em festa. A pobre velha dizia comsigo:

-- E' uma sorte grande para a rapariga! Nem que nascesse n'um folle. E que dirá a gente do povo, quando tiver de a tractar por senhora marqueza? Ai! minha rica Mãe das Dôres! não me leveis d'este mundo antes d'esta ventura! E o parvo do João da Levada que já andava a fazer a cama! Não é para o teu dente, meu rapaz! E' para outra loiça mais fina.

Depois, absorvia-se na sua immensa felicidade e, passados momentos, volvia:

-- Não que ella parece mesmo talhada para fidalga! nunca teve o nosso ar... tão branca, tão linda! Até o senhor prior, o anno passado, pelos Santos, dizia que ella fazia lembrar a Senhora das Graças, quando distribuiu o pão por Deus aos pobrezinhos á porta da residencia.

E, monologando assim, chegou ao casal onde Joanna e Margarida a esperavam muito inquietas.

Contou-lhes as cousas a seu modo o Margarida, muito contente, resolveu acceitar a partida para Lisboa, que a avó lhe disse ser offerecida pela fidalga do Adro

-- Foi a novena, Margarida. Tinhas tanta vontade

de ir ver a cidade!.... dizia Joanninha com convicção.

Quando a conversa estava mais animada, chegou o João da Levada, trazendo sob o braço esquerdo a guitarra que de tarde Joanninha descrevera a sua irmã.

-- Já a vi hoje, tia Engracia, disse-lhe accendendo o cigarro e sentando-se no poial que acompanhava a parede sob a latada.

-- Já?

-- E' verdade, ao lusco-fusco. Sahia vomecê de Valle Negro e foi o proprio marquez que lhe veio fechar a porta.

A velha sobresaltou-se. As raparigas entreolharam-se pasmadas.

João fitava insistentemente a tia Engracia.

Fez-se um silencio.

Com voz arrastada, o da Leveda volveu:

-- E' estranho que o marquez, soberbo como é, lhe viesse abrir a porta... tendo tantos criados...

E o olhar de João parecia descer ao fundo da alma da velha.

Esta sentiu que tudo estava perdido, senão tomasse uma grande resolução. E, fingindo não dar pelo tom insinuantemente atrevido do apaixonado de Margarida, volveu-lhe com naturalidade:

-- As cousas que parecem menos explicaveis são por vezes d'uma grande simplicidade. E' o que vaes pensar, meu pobre João, quando eu te disser tudo que passei com o marquez e apellar para os teus

sentimentos, para que não tentes destruir o bello futuro que se prepara para aquella que olhavas já como tua promettida.

Então, exigindo-lhes primeiro a sua palavra de honra e fazendo-lhes jurar pela salvação da sua alma que guardariam segredo, contou-lhes toda a verdade. Era um quadro digno de vêr-se e que commovia o coração do quem o contemplasse. Margarida, á medida que sua avó fallava, transfigurava-se por tal modo, que se podia dizer sem hyperbole que o seu rosto resplandecia de felicidade. Joanninha escutava com curiosidade risonha, e o pobre João puzera mansamente a guitarra sobre o poial, lançara fóra o cigarro, e a sua physionomia tomára um tom cadaverico que lembrava a do condomnado na hora do suplicio. Era a elle que se dirigia Engracia, para elle que fallava, estudando-lhe cuidadosamente no rosto os cambiantes de dôr por que a sua alma passava. Quando terminou, disse-lhe com sentimento:

-- Meu pobre filho! Era outro o futuro que sonhavamos, mas que lhe havemos de fazer? Não temos o direito de os impedir de serem felizes. Olha que eu sei... para mim este casamento do Margarida vale por uma morte. Marqueza, não se importará mais com a sua velha avó, que foi antiga criada da sogra. Só isto lhe hade soar mal aos ouvidos. Mas, se é preciso perdel-a para que ella tenha ventura...

João continuava callado e a tia Engracia começava a temer por ter contado demais com a generosidade da sua alma.

Então Joanninha poz-lhe, commovida, a mão no hombro e disse-lhe:

-- Casamento o mortalha no ceu se talha, diz o adagio, João. Se tinha ou tem de ser, não valem de nada falias nem tenções.

Estas palavras, com que a irmã de Margarida julgava tirar-lhe todas as illusões, encheram a alma de João de esperança, tão tenaz é ella no coração do homem.

Erguendo-se, estendeu lealmente a mão a Margarida, dizendo-lhe:

-- Vai. Estimo que sejas feliz. Não posso querer mal ao marquez... procede como um homem honrado.. Eu esperarei... esperarei que te enfades dos estudos e de todos esses habitos novos que vaes criar... Se assim fôr... acabarei a cama que comecei.

-- Vai trabalhando n'ella, João. Se a Margarida casar, não se acabam por isso as mulheres na aldeia, observou-lhe Joanninha.

Elle olhou-a com tristeza o, estendendo a mão a Margarida, disse-lhe com a voz embargada de lagrimas:

-- Adeus.

E, como se não pudesse suster mais o seu desespero, affastou-se apressado sem se despedir do mais ninguem.

Joanna, apanhando do chão a guitarra correu apoz elle gritando:

-- João! ó João !

Elle parou até ser alcançado pela gentil rapariga.

-- Que é?

-- A guitarra, que te esqueceu.

-- Dá-lh'a. Eu trazia-a para ella. Dize-lhe que a guarde como uma lembrança de quem muito lhe quiz.

E fugiu para que Joanninha o não visse chorar.

Esta voltou lentamente para casa e entregou a guitarra á irmã, dando-lho o recado de João.

-- Coitado! disso Margarida sinceramente compungida, elle quer-me devéras.

A irmã fez-lho um arremêsso do rapariga mal-criada e volveu-lhe com mau modo:

-- Tens muita pena! Mas preferes casar com o bonequinho!

E sahiu da cosinha, n'um assomo de indignação.

-- A tua irmã é que não se agradaria d'um fidalgo!

Tambem digo. E' muito orgulhosa. Teria receio de que a olhassem por cima do hombro.

Depois, retirando-se da porta, sentaram-se junto da mesa conversando. Era tarde quando recolheram aos quartos e tardíssimo quando se deitaram. Das tres pessôas que pernoitavam no casal nenhuma dormiu. Margarida tinha a mente escandecida pelo espectaculo do seu brilhante porvir. Engracia impava de vaidade, pensando no estrondo que faria na terra o ditoso enlace. Joanna pensava na dôr do João da Levada, alcunhava a irmã de leviana e de ingrata, e não percebia como podia haver um coração de mulher, tão duro que resistisse á vista de tão pungento dôr.

Mal viu que era manhã ergueu-se e, depois de se compor á pressa, pegou na roupa e dirigiu-se para o rio. Cada semana era a vez d'uma d'ellas desempenhar o serviço de lavadeira do casal. la pensativa e triste como a irmã quando fizera aquelle caminho a ultima vez. Mas de repente, como quem toma uma subita resolução, voltou atraz e, chegando á porta da venda do Lourenço, que já estava aberta para vender aguardente aos homens que iam para o trabalho, pediu:

-- Guarda-me ahi a trouxa por um pouco, tio Lourenço? Tenho que voltar a casa. Esqueceu-me o chloreto.

-- Deixa ficar, rapariga.

Affastou-se ligeira, atravessou o povoado, seguiu outra vez o leito do rio, atravessou a linha ferrea e foi direita a uma pequena cabana de pedra solta, que se erguia na falda da grande propriedade do Adro. A porta estava fechada. Joanna hesitou um momento. Depois bateu rosolutamente:

-- Quem é? perguntou de dentro uma voz mascula, mas abatida.

-- Sou eu, João.

Então a porta abriu-se immediatamente e o rosto livido do apaixonado de Margarida appareceu no limiar, com o olhar brilhante de esperança.

-- Foi ella que te mandou?

Joanna abanou tristemente a cabeça e respondeu:

-- Não. Eu é que mo lembrei de vir vêr como estás. Não preguei olho toda a santa noite, com pena de ti.

-- E ella?

-- Não sei. Ainda a não vi hoje. Tu não vaes para o trabalho?

Elle encolheu os hombros como a dizer que tudo lhe era indifferente agora. Ella instou:

-- Vai... Que ficas tu ahi a matutar na vida? Não remedeias nada com isso. Eu, no teu caso, bastava vêr que ella me tinha trocado por aquelle alfenim para a deitar ao desprezo.

João olhou-a com sympathia e, sorrindo tristemente, commentou apenas:

-- Elle é rico.

-- Mais uma razão para o mandar ao diabo. Aposto que, quando se casarem, lhe ha do atirar constantemente á cara com o seu dinheiro e fidalguia.

-- Talvez não.

-- Vai para o trabalho, anda. Já tomaste o café?

-- Não me appetece.

-- Qual não appetece!

E, entrando resolutamente na cabana, Joanninha foi-lhe accender o lume.

-- Não estejas com isso. Já te disse que não tenho appetite.

-- Tanto monta. Has de comer.

João, forçado pela bôa rapariga, tomou uma caneca de café o comeu um tanaco de pão com um pedaço de queijo de ovelha. Depois, pondo a enxada ao hombro, olhou para o ceu como quem quer ajuizar da hora, e disse:

-- Quando lá chegar, devo ter perdido quasi meio quartel.

-- Não faz ao caso. Tu não vaes lá para trabalhar, mas para espairecer.

Elle teve um sorriso pungente e, fechando a porta da cabana, despediu-se de Joanninha.

-- Eu vou para o mesmo lado. Para que te despedes de mim?

-- Porque quem nos vir de longe ha de pensar que vou com a tua irmã, e isso agora pode prejudica-la.

-- E's melhor do que ella! Adeus.

-- Adeus, Joanninha, e bem hajas pela tua caridade.

-- Aqui não se tracta de caridade, mas do amizade: sou sinceramente tua amiga, João.

-- Bem o vejo e agradeço-te.

E, apertando-lhe a mão, seguiu o caminho por onde viera Joanninha. Esta subiu o monte e foi direita á ermida da casa do Adro. Uma voz alli, ajoelhou A porta, que estava fechada, e resou longo tempo.

Quando, voltando á venda do Lourenço, pegou de novo na trouxa para a pôr á cabeça, ia alegre, satisfeita e com os olhos brilhantes de jubilo.

-- Para ir a casa demoraste-te muito, pequena, disse-lhe o Lourenço em tom de mofa e piscando o olho.

-- E' que eu não fui só a casa, tio Lourenço; fui tambem á Senhora do Adro a quem trago uma novena.

-- Para te casar cêdo?

-- Quem sabe? Eu não costumo confessar-me.

-- Fazes bem.

E affastou-se ligeira, cantando com toda a força, n'uma toada tão alta que lhe assemelhava a voz a uma rabeca:

Se me queres dar um fructo,
Eu escolherei a romã,
Mas lê-lhe o nome ás avessas
Porque eu não sou tua irmã.
Nos teus olhos côr do ceu
Vejo Deus Nosso Senhor.
Não dês a româ. Se a dás
Promettes-me eterno amôr,
A flôr que enfeita os vallados
É joia para a pobreza,
Mas a romã é um cofre
Com rubins da natureza.
Dá-lhe o seu nome ao contrario
E procura a sua flôr:
Tem na côr a côr da guerra
Porque guerras ha no amor.

João cavava uma leira proximo do sitio onde Joanninha ia lavar. Vergado ao peso da enxada, ouvia a fresca voz da rapariga echoando nos reconcavos da serra visinha. Primeiro não lhe deu attenção; mas, como ella não cantasse outra cousa, repetindo incessantemente as mesmas quadras, começou por sentir os nervos irritados e a ter vontade de lhe gritar que se callasse. Mas, lembrando-se do interesse que ella lhe manifestara n'essa manhã, não teve animo de se mostrar rude e intolerante. Resolveu-se por isso a ouvir resignadamente a torrente lyrica a que Joanninha dava impetuoso curso. Para melhor a supportar, resolveu inconscientemente analysar-lhe a letra que não conhecia, e acabou por se entreter n'essa tarefa, chegando mesmo a achar chistosa a ideia de dar á romã o nome ás avessas. Quando n'essa tarde recolheu a casa, levava a toadilha nos ouvidos com uma insistencia incommoda. E, agachando-se na lareira para atear o lume e preparar a ceia, achou-se a trautear mau grado seu:

Se me queres dar um fructo,
Eu escolherei a romã,
Mas lê-lhe o nome ás avessas
Porque eu não sou tua irmã.

-- Maldita moda que me não sai do sentido!

E, emquanto a marmita fervia na mal reparada fornalha que quatro tijolos formavam, á semelhança das casas que as crianças construem com cartas de jogar, João, sentado á porta, fumava o seu cigarro, estendendo a vista pelo valle e admirando o poente, deveras majestoso n'esse dia. A saudade, que áquella

hora agita sempre os corações, levou-o insensivelmente a olhar para o passado.

Viu-se criança, garotinho de sete a oito annos, brincando no rio com barquinhos de papel e cortiça. de bragas arregaçadas e pés descalços. Via sua mãe, já então fraca e doente, mas trabalhando como se fosse robusta, desempenhando as funcções do guarda da via ferrea, para que fôra nomeada por morte de seu pae, que uma zorra, abalada sem governo da estação visinha, esmigalhara na linha. Elle não vira o desastre, mas tanto o ouvira contar que tomara horror ao comboio, e, quando sua mãe morreu, succumbindo á tysica que havia muito a minava lentamente, recusou desempenhar o logar d'ella, como lhe offereciam, preferindo ser cavador a vêr a morte todos os dias.

Era por este terrivel nome que elle designava o comboio. Contava elle então dezoito annos, mas era, como a mãe, uma natureza franzina e delicada. Vendo-se só no mundo, sem os affectuosos carinhos a que a sua bôa mãe o habituára, começou a desanimar. Elle não tinha amigos. A pobre tysica, para quem o mundo fôra verdadeiramente inhospito, tinha das pessoas o das cousas as ideias mais pessimistas que se podem imaginar. Desde muito cêdo dissera ao filho:

-- Não creias na amizade do ninguem, João. E' uma léria como tudo o mais. E, para te convenceres d'isto, experimenta e verás se eu tenho razão. Mostra-te bom, mas sem prestimo algum. Não tenhas

um cigarro, um fructo ou um brinquedo a repartir com os companheiros, o verás que se affastam de ti; mas se, vendo-os de costas já voltadas, accenderes um cigarro, tornarão a ir ter comtigo, o encostar-se-hão ao teu hombro na esperança de que lhe dês algum, se tiveres mais, ou metade do que estás fumando, pelo menos. Os homens são todos assim. E olha que as mulheres não são melhores. Eu estou doente, posso morrer d'um momento para o outro e não quero que uma d'essas desavergonhadas, que por ahi andam, te venha embeiçar com pretensões de virtude. O que ellas são!

E, som recato, esquecendo a pouca idade do filho, contava-lhe as maiores miserias phisiologicas e dizia-lhe no fim:

--Vê o que ellas são: depravadas. Elles e ellas são peiores do que os animaes que têem para sua desculpa a inconsciencia.

Julgava a pobre mulher, fazendo-lhe estes e outros discursos identicos, entre frouxos do tosse que a deixavam exgotada, prepara-lo para a vida. Não via que lhe semeava no espirito uma impressão de desconfiança e desdem por quanto existe, que não podia deixar de lho ser prejudicial, conduzindo-o lentamente á descrença e ao desanimo. Vendo-se, pois, sem a mãe, só, sem amigo algum, João cahiu n'uma profunda prostração moral, acabando por se atirar ao rio, n'um dia invernoso de cheia, para terminar uma vida que era verdadeiramente intoleravel, porque lhe não achava um fim nem um interesse.

Eram nove horas da manhã, quando, aproximando-se da margem do rio, no sitio mais profundo, proximo da lovada, João despiu o jaleco e se atirou á agua depois de ter resado com fé uma oração, visto ser Deus o unico ser no qual a mãe não tentara abalar-lho a confiança.

Chovia a cantaros o não se via nos campos nem viva alma! A louca tentativa do João tinha todas as probabilidades de exito. Mas não morre quem quer. D. Maria da Graça, a fidalga do Adro, era uma criatura bôa, mas cheia de originalidades. Uma d'ellas, consistia em gostar de sahir em dias de temporal. De botas altas, um casaco curto e impermeavel, saia curta, pau ferrado, e um amplo capuz tambem á prova de agua a quarentona deliciava-se em se expor ao tempo e em andar pelos campos, quando os proprios camponezes deixavam de trabalhar o buscavam, tremendo de frio, o agasalhado abrigo da cosinha, onde se conversava aquecendo as mãos á lareira n'um brazido borralhento e bom, agradavelmente confortavel.

D. Maria da Graça, feia, alta e corpulenta, tinha um genio varonil, uma excellente alma, e, dada aos exercicios physicos com paixão, conservava a agilidade dos verdes annos.

Descia a encosta, quando viu João ajoelhar-se e resar, sob uma chuva torroncial. Apiedou-se do rapaz e apressou o passo no intento de perguntar em que lhe poderia ser prestavel. Quando o viu atirar-se

ao rio, mesmo correndo, despiu o casaco, atirou fóra o capuz e lançou-se resolutamente apoz elle.

Foi uma lucta titanica a que a corajosa mulher teve de sustentar. As aguas corriam alli vertiginosamente, formando um redomoinho. Fôra n'elle que a mulher de Paschoal vira sumir-se o pobre rapaz, o a elle denodadamente se arrojou invocando o nome de Deus. Mergulhou, voltou á tona d'agua, e finalmente appareceu, segurando fortemente o corpo de João desmaiado. Não podia sahir alli do leito do rio, apesar da cheia, porque as margens ficavam a muita altura. Por isso, tendo conseguido, por um esforço quasi sobrehumano, arrancar-se do vertiginoso rodopio das aguas, deixou-se ir na corrente, sempre segurando o corpo que ella já suppunha cadaver, até alcançar a margem, quasi a dois kilometros abaixo. Deitando João sobre a relva, a robusta mulher desmaiou.

Trocaram-se então os papeis. Foi elle que primeiro voltou a si. Apalpou-se, sentou-se na relva e viu-se illeso, apesar de encharcado. Olhou em volta e a poucos passos viu D. Maria da Graça, em mangas de camisa, com o pouco fato, que conservava, rasgado, o cabello em desalinho, encharcada como elle e com o corpo contundido e escorrendo sangue em mais d'um sitio. Percebeu n'um relance o que se passára, e sentiu uma immensa alegria inundar-lhe a alma. O mundo não era tão mau como sua mãe lh'o pintara. Havia ainda n'elle quem, mimoso dos favôres da sorte, não hesitasse em sacrificar a vida para salvar a do seu semelhante. Esta alegria deu-lhe uma

força estranha. Correu para uma cabana, que a pouca distancia se avistava, e pediu alli um pouco de vinagre ou agua ardente para uma pessôa desmaiada: obteve da bôa mulher que a habitava um frasco de bagaceira e volveu apressado para junto da sua salvadora, que, tendo recuperado os sentidos, fazia esforços inuteis para se levantar. João correu em seu auxilio, fez-lhe beber uns goles do aguardente e ajudando-a a erguer, retomou com ella, servindo-lhe de apoio, o caminho da casa do Adro. Tudo isto era feito sem palavras, machinalmente, como se ambos elles tivessem o espirito n'um completo estado do atonia.

Quando entraram no palacio, Paschoal do Sousa correu apressado á vozearia dos criados, e, vendo a mulher n'aquelle estado, suppoz que lhe acontecera um desastre. Fez chamar o medico immediatamente e tentou saber pormenores. Mas nem ella nem João estavam em estado de os dar. Este ultimo, a muito custo, balbuciou envergonhado:

-- Quiz matar-me, mas a senhora salvou-me. E' uma santa!

E, como o esforço moral da confissão o exgotasse, desmaiou de novo.

D. Maria da Graça restabeleceu-se rapidamente. A sua conducta foi elogiada em dez leguas ao redor e o João, reconciliado com a vida pelo exemplo de abnegação da sua protectora, ficou cavando nas propriedades do Adro, e desde então chamou sempre madrinha á sua salvadora o passou a ser conhecido pelo João da Levada em, vez de ser o João da Guarda, como até alli o nomeavam. Paschoal de Sousa quiz fazer uma grande festa á Senhora do Adro em acção do graças por sua mulher não ter morrido em tão arrojada empreza, festa que depois continuou celebrando, querendo que n'esse dia o João jantasse sempre nas cosinhas do palacio e estreiasse um fato novo de que lhe fazia presente. Assim corriam as cousas, quando o João se namorou da Margarida do Giestal. Começou então o pobre rapaz a conhecer como a vida tinha momontos deliciosos. Não se curan do nunca completamente da desconfiança que sua mãe lhe semeara no espirito, não tinha amigos. Os seus ocios empregava-os fazendo varias obras do madeira com embutidos do ossos, que os criados do Adro lhe davam e que elle depois offerecia á sua salvadora, que os punha na sala onde eram vistas e admiradas como peças do raro engenho.

Pensava em comprar um banco e ferramenta o tornar-se carpinteiro para ter um officio mais limpo e rendoso quando se casasse; mas das suas tenções nada dizia. Era reservado. Lembrava-se da opinião de sua mãe ácerca das mulheres e queria que Margarida o estimasse por elle o não pelas commodidades que no futuro elle lhe pudesse proporcionar.

E vinha a proposta do marquez anniquilar todos os seus sonhos!

Em tudo isto pensava João emquanto a marmita fervia. N'um repellão do furia ingrata, bradou:

-- Porque não morri eu? Porque é que aquella mulher me não deixou morrer o teimou em me salvar para mo dar esta vida de trabalho e castigo?

Mas, como era justo, mal soltou este brado, arrependeu-se logo e resolveu ser forte.

Aproximou-se da marmita e, vendo que as batatas estavam promptas, descascou-as, regou-as com um fio de azeite e começou a comer.

De subito um pensamento tornou-lhe resplandecente o olhar. Abriu uma garrafa de vinho e fez-se a si proprio uma saude, exclamando com alegria:

-- Coração ao largo, rapaz! Esta ideia vale uma fortuna. Ainda não está tudo perdido. Quem melhor as tem melhor as joga. A' tua saude, João, para que sejas bem succedido no que vaes tentar.

E bebeu o copo d'um trago com singular satisfação. Depois orou, deitou-se, e dormiu como uma pedra que cahisse em poço.

VII

D. Maria da Graça acabara de almoçar e, sentada junto da mesa, com os cotovellos apoiados n'ella, lia com attenção o Diario de Noticias. Esta senhora, assanhadamente progressista, tinha sempre um papel importante nas eleições locaes, e seguia com a maxima attenção as noticias parlamentares que davam os jornaes, para vêr a importancia que o deputado do seu circulo tinha nos debates. Se era palrador, ella enthusiasmava-se e apoiava quanto elle dissesse, embora, ás vezes, no fundo da sua consciencia, se sentisse quasi em completo desaccordo; mas, se, pelo contrario, elle não fallava e as sessões decorriam sem haver pelo menos uma allusão ao illustre deputado do seu circulo, ella barafustava, insurgia-se, e exclamava indignada:

-- Isto não pode continuar assim! E' preciso que elle falle; senão, nas proximas eleições, torna-se necessario alija-l'o. Um deputado, que não falla, não pode ser um defensor capaz dos nossos interesses.

E recommendava-lhe, por cartas interminaveis e curiosissimas, varios pequenos interesses dos seus

eleitores, terminando-as sempre por estas palavras: «Falle, senhor deputado, falle. No caso contrario, não será facil poder reelegê-lo. O nosso povo gosta de ver que o seu representante faz bôa figura e não vai com a voz ao bucho».

Esta ultima razão fizera justamente embuchar mais d'um representante que aquelle circulo enviara ás côrtes.

Estava, pois, a senhora D. Maria da Graça radiante, porque o seu deputado pedira ao ministro que fôsse dada urgencia ás obras da igreja n'um tom pomposo e florido de rhetorica, quando lhe annunciaram que o João da Levada estava alli e pedia para lho fallar.

-- Que entre: ha já muito que não apparece e eu gosto de o vêr.

Passados momentos, João, vestido com o seu melhor fato e torcendo na mão a aba do chapeu, apresentou-se entre portas com ar meio compromettido.

-- Então, diabrete, que é feito? perguntou-lhe alegremente a senhora D. Maria da Graça.

-- Tenho trabalhado, madrinha.

-- Bom é isso. E saude ?

-- Quando mal, nunca peior.

-- Bem, bem. E' o que se quer.

-- Eu hoje, volveu João tornando-se muito vermelho e pondo os olhos no chão, além de vir ver a fidalga, queria tambem pedir-lhe um favôr.

-- Dize lá. Já sabes que, se puder, não te direi que não. Tenho um fraco por ti desde que me levaste a arriscar a pelle por tua causa.

-- E' grande fineza que devo a V. Ex.ª

-- Então que queres tu?

-- Queria ir estudar para a cidade. Como a senhora sabe, sei lêr o escrever o tenho uma certa aquella para o desenho. Gostava por isso de o estudar a valer, arranjando em Lisboa um emprego do noite para me deixar as horas do dia livres para o estudo. Lembrei-me de que a madrinha podia pedir ao senhor deputado...

-- Podia, e era talvez facil arranjar-te no Gremio um logar de criado ou de camaroteiro em qualquer theatro; mas não peço, prefiro não pedir nada.

O rosto de João annuviou-se.

A sua protectora continuou :

-- Pelo que vejo desejas ser artista. E' um empenho muito rasoavel visto que tens raras aptidões. Não se servem bem dois senhores ao mesmo tempo. Algum ha de ficar sempre prejudicado. Por isso vaes estudar e eu pago todas as tuas despezas até concluires o curso.

João corou, empallideceu e desatou a chorar de jubilo.

-- Vem cá ámanhã para ires ao alfaiate do senhor com uma ordem minha para te talhar tres fatos á moda da cidade. As minhas criadas te farão anecessaria roupa branca.

-- Mas isso é muita despeza, minha senhora... talvez não fôsse preciso...

-- E', é. Precisas não to sentir humilhado junto dos teus collegas por nenhuma differença exterior.

Quanto ao resto, és bastante esperto para o adquirir em pouco tempo pelo estudo o imitação. Eu vou já escrever para Lisboa, e no principio do mez poderás partir.

-- Muito agradecida, madrinha. Deus lhe pague todo o bem que me faz.

-- Paga, paga. Nunca fica a dever nada a ninguem. Até ámanhã.

-- Até ámanhã, madrinha.

E João retirou-se experimentando pela primeira vez na sua vida uma verdadeira embriaguez de prosperidade e ventura.

Agora, nada na vida lhe parecia impossivel. E grato, infinitamente grato à sua protectora, exclamava:

-- Não é Maria da Graça: é a Senhora das Graças que me appareceu e me guia.

Paschoal de Souza voltava da adega onde fôra assistir ao trasfêgo d'um vinho generoso, que elle só usava nas occasiões em que queria obsequiar extraordinariamente os visitantes. Fitando a mulher, perguntou-lho com ternura:

-- Estás zangada por ter almoçado só?

-- Não estou, mas devia estar. Para tão estranha disposição do espirito, verdadeiramente contraria ás causas que me deste, concorreram dois poderosos e imprevistos motivos. Primeiro, o excellente discurso do nosso deputado. Não ha duvida: é um homem de merecimento, do qual temos tudo a esperar. Has de lê-lo. O segundo foi o João da Levada ter-me vindo procurar cheio de justas ambições.

E, emquanto o marido almoçava, D. Maria da Graça contou-lhe a sua entrevista com o João e as promessas que lhe fizera.

O marido escutava-a, sorrindo o dando a espaços mudos signaes de aprovação. Quando ella concluiu, apoiou:

-- Fizeste bem. Não teria valor o dinheiro se não nos proporcionasse sermos uteis aos outros e não nos desse com isso uma singular satisfação.

Fallaram muito no caso, encararam-no por varios lados, enthusiasmando-se com elle até á loucura, e acabaram por concluir ambos que era uma gloria para elles darem ao paiz um grande artista. Porque a rara habilidade do João devia produzir pelo estudo cousas verdadeiramente geniaes. D. Maria da Graça affirmava ter uma unica magua: -- não ter tido ella aquella ideia.

E o marido retorquia-lhe:

-- Nem por isso deixa de ser uma obra tua. Se não fôsses tu, não teria meios para estudar.

-- Não digo que não. Mas se a ideia tivesse sido minha!..

Depois d'uns instantes de silencio, volveu:

-- Que pena não termos um filho, Paschoal! Que alegrias não devem sentir os pais ao planear o futuro d'uma criança a quem deram o ser, quando eu simplesmente por ter salvo a vida d'esta pobre cria-

tura, me deleito assim com a esperança de o vêr grande e considerado!

Paschoal respondeu-lhe:

-- Pois bem. Se o João corresponder ao que esperamos d'elle, sorá para nós um filho. A sua gloria será a nossa.

-- Deus te ouvisse!

E, como na aldeia ha pouco em que se converse, este assumpto suggeriu-lhos nos dias subsequentes considerações sem fim.

João, por sua parte, não tinha paragem. Ia ao alfaiate, que ficava a mais de duas leguas, provava os fatos, onlevava-se na contemplação da sua pessôa. Depois, com o proprio Paschoal de Souza, foi comprar calçado apropriado ao gosto do marido de D. Maria da Graça, que prezava de bem vestir, não som alguma razão. Nunca mais voltara ao Giestal, onde tambem a sua ausencia era taxada de natural depois de quanto se passara. A satisfação alli não era menor. Só Joanninha, triste o aprehensiva, estranhava não vêr o antigo namorado do sua irmã. Sabia que elle não estava doente porque, mansamente, sem que ninguem desse por isso, todas as manhãs espreitára do alto da ermida do Adro, se elle sahia ou não. Via, pelos seus modos, que João estava resignado; parecia-lhe alegre e mais d'uma vez julgou ouvido cantar. Disse para consigo que elle acceitára a situação. E, sentindo-se despoitada pelo pouco caso que elle mostrara fazer do interesse que lhe manifestára, resolveu affastar-se do seu caminho. Mas o que era certo é que, ao passo que João perdia terreno no coração de Margarida, ganhara-o no do Joanninha, e, bem que ella fizesse os maiores esforços para cumprir as resoluções tomadas, ao fim de quinze dias foi de novo bater á porta da cabana de João.

Este veio abrir e, ao vê-la, disse-lhe com modo risonho:

-- Ah! E's tu. Joanninha?

-- Venho saber de ti. Não ha quem te veja... Receei que estivesses doente e vim vêr se precisavas de alguma cousa.

-- Agradeço-te o cuidado. Como vês, estou optimamente.

-- Então porque não vaes trabalhar?

-- Saio da terra, Joanninha. Ainda o não disse a ninguem, nem digo. Mas, como me tens mostrado amizade, digo-t'o a ti e peço-te que guardes segrêdo.

Joanna empallideceu e dasatou a chorar.

-- Então vaes para o Brazil?

-- Não. Vou para Lisboa, mas não digas nada á tua avó. Vou ter um largo futuro!

E, sem fazer caso das lagrimas da pobre rapariga, começou a descrever-lhe os seus sonhos de gloria.

Ella ouvia-o em silencio, torcendo e retorcendo entre os dedos a ponta do aventalinho branco. Por fim enthusiasmou-se tambem. E, sentados ambos á porta da cabana, um em frente do outro, fizeram mil sonhos gloriosos. Mas onde esmoreceu todo o ardor de Joanninha foi quando, terminando os seus planos, João lhe disse:

-- Então tornarei a fatiar em casamento a tua irmã e quero ver se ella ainda me prefere aquella figurinha de menino onde te porei.

-- Vaes-te embora sem to despedir de mim?

-- Não. Hei de dizer-te adeus e não me esquecerei nunca dos favores que te devo.

-- Quando no povo derem pela tua falta, hão de julgar que te mataste.

-- Tens razão. Não tinha pensado n'isso. Direi então que vou para o Brazil. Mas a verdade não quero que a saibam para a não dizerem a tua irmã.

-- E tu não tens medo do que ou te traia?

-- Não. Tenho confiança em ti.

-- Então, até breve, João.

-- Até mais vêr. Olha, vou contigo até ao povoado.

-- Já não tens receio do comprometter minha irmã aos olhos do senhor marquez?

-- Desde o momento em que me vou embora, não a podem ferir com suspeitas por minha causa... parece-me.

E, conversando em banalidades de interesse local, dirigiram-so vagarosamente para a aldeia.

Ao passarem na venda do Lourenço, este gritou-lhe lá de dentro.

-- O' João"! Então tu não trabalhas, homem?

-- Estou do partida para o Brazil, tio Lourenço. Tenho de preparar os meus arranjos.

-- Bôa vae ella! Então, até tu pensas em sahir da terra! Pelo que vejo dentro em pouco fechar-se-hão

todas as casas da aldeia. E a Joanninha já deu essa novidado á irmã?

-- Ainda não. Mas ella tambem não fica na aldeia.

-- O quê! Vai comtigo?

-- Não senhor. Arranjou officio em Lisbôa e vai tambem fazer pela vida.

-- Sempre vocês me sahiram uns ambiciosos! Com que então já se não contentam com o que a terra lhes pode dar, heim?

-- Elle tem razão, tio Lourenço. Com a arte que tem, em qualquer parte pode ter acceitação.

-- Isso creio eu! Se creio!

João ficou na venda e Joanninha dirigiu-se para o casal, onde deu á avó e á irmã a noticia da partida do João para o Brazil.

-- E' um bem, volvou-lho com indifferença Margarida: talvez lá faça fortuna e seja mais feliz do que é aqui.

-- Dizes bem, cachopa; pode muito bem ser, aprovou a tia Engracia.

Joanninha, contrariada de vêr o pouco interesse que a familia tinha pelo João, pegou na celha das lavagens e foi tractar dos porcos.

VIII

O marquez, desde a sua conferencia com a tia Engracia, na qual fizera um plano de vida futura, tornou-se mais sociavel. No primeiro domingo, depois da missa parochial, convidou para jantar o prior e Paschoal de Sousa. A' noite jogou com elles e com o boticario o voltarete e o casino, conversaram em assumptos de interesse geral, e pediu-lhes amavelmente que voltassem todos os domingos a fazerem-lhe companhia. E, a pouco e pouco, a casa de Valle Negro tornou-se o ponto de reunião de todos os homens dos arredores.

Margarida partira sem se despedir do marquez como se nada soubesse das combinações havidas entre elle e sua avó.

E esta viera com Joanninha para o palacio e substituia ahi, muito vantajosamente para Estevam, a velha governante que, apesar de idosa, era mais nova do que ella, mas juntava o sou pé de meia á custa da patrão.

E que pé de meia!

A tia Engracia, pele contrario, governava com a maxima economia, tractando como sua a fazenda alheia o não consentindo o menor desperdicio.

Quando chegou ao fim do mez, entregou a Estevam trinta mil réis de sobras, com grande pasmo do seu amo que tivera muito melhor e muito mais frequentada a sua mesa nesse mez de que nos anteriores.

Joanninha, com muita contrariedade sua, teve de adoptar o vestido preto e o avental e a touca branca das criadas de Valle Negro. O elegante trajo ficava-lhe a matar; mas, verdadeiramente insubordinada, vestia-se com o fato do camponeza e ia lavar ao rio, dando constantemente, com os sons actos, razão àquelle dictado que diz: gallinha do campo não quer capoeira. A avó ralhava-lhe e, quando a sós com ella, dizia-lhe:

-- Has de ser a vergonha da tua irmã!

-- Não se rale, avó, eu não hoi do incommodar muito tempo com a minha presença. Quando a senhora marqueza vier, se Deus permittir, jã heide estar casada.

E dizia isto com tal certeza que a tia Engracia chegou a persuadir-se de que a neta tinha namoro e não lh'o queria dizer.

Nãe era. Joanninha, muito supersticiosa, atribuiu a resolução de João a inspiração divina, e todo o mérito de D. Maria da Graça a um milagre da Senhora do Adro, em resultado da novena que começara a fazer-lhe para que tornasse João venturoso. Ella não

pedira inais nada, mas no seu pensamento a ventura de João andava emparelhada com a sua.

João despedira-se d'ella antes de partir, chamando-lhe ternamente a sua irmãzita, classificação que ella acceitou com apparento reconhecimento, mas sem prazer algum.

Uma tardo, a tia Engracia queixou-se ao marquez de que a neta, pelo exemplo da sua desobediencia, indisciplinava a criadagem: e ajuntou:

-- Como santos de casa não fazem milagres, bom seria que V. Ex.ª a reprehondesse.

-- Pois sim, dize-lhe que me venha fallar.

E entrou para a estufa que abria portas para a casa de jantar. Examinou com interesse os varios exemplares raros que possuia e foi sentar-se ao fundo do vasto jardim caseiro junto da unica vidraça que não tinha vidros despolidos, olhando com aprazimento o bello panorama que d'alli so disfructava. A sua attenção foi despertada por Joanninha que, vestida do camponeza, com as tranças cahidas ao longo das espaduas, corria com a cabra predilecta atravez das ruas do parque. A rapariga era verdadeiramente gentil nos seus menores movimentos, cheios de graça o naturalidade. E, emquanto a velha a chamava da escadaria principal, o marquez dizia comsigo:

-- Como hei de eu ralhar-lhe se ella fica assim tão linda!

Momentos depois, entrou Joanninha na estufa quasi como um vendaval. Trazia as faces animadas pela

carreira e olhava fixamente o marquez com o ar altivo do quem não conhece nem acceita hierarchias.

-- O que é? perguntou ella abruptamento.

-- Não estou contento comtigo.

-- Pois mande-me embora. Isso não me dá pena nenhuma; antes pelo contrario.

O marquez, ante a promptidão da resposta, ficou desconcertado. Passados instantes, volveu-lhe:

-- Não pode ser. A tua avó acha-se bem aqui e tu és muito nova para não estares onde ella está.

-- Ora adeus! Isso são lérias! Então eu toda a minha vida, desde que me entendo, andei só por toda a parte, e agora, que já sou mulher, é que não posso andar sem companhia? Tem graça, mas não pega.

-- Isso não é maneira de fallar. Tu não ouves a tua avó fallar assim.

-- Nem admira. Ella, desde que so apanhou no palacio e com criadas ás ordens, apesar de não se poder mexer, faz andar tudo n'uma poeira! E dá-se uns ares que parece que anda a estudar para fidalga. Eu cá sou d'outra laia. Não me pareço com ella nem com a Margarida. Quero-me com os da minha igualha. Os meus pés não se fizeram para pisar tapetes, mas para correr descalços nas margens do rio. Por isso, se o senhor não esta contente commigo, passe muito bem que eu já hoje vou dormir ao casal, de onde, por gosto meu, não devera ter sahido.

-- Eu não quero que te vás embora. Desejava apenas que desses bons exemplos ás outras criadas para

tornar mais suave a lida da tua avó, que tu deves ser a primeira a fazer respeitar.

-- Eu nunca faltei ao respeito que devo à minha avó, senhor marquez. Mas não posso passar de aldeã a madama assim d'um dia para o outro. Gosto muito da condição em que nasci, e nem por um throno dava a liberdade a que estou habituada. Umas horas pelo dia heide vestir-me ao uso da terra e ser eu. Bem basta ter de gastar o resto no fingimento d‘aquillo que eu não sou!

-- Bom. Mas vamos então vêr se é possivel arranjarmos isso melhor. Passas a sor a jardineira das estufas. Não tens nada que vêr com o serviço da casa e podes vestir-te como te appetecer. Agrada-te?

-- Isso já é outro cantar.

-- Tua avó não vai ficar contente; mas eu me encarrego de a convencer. Não lhe digas tu nada.

-- Não digo. pode estar socegado.

-- E tu saberás tractar-me bem das plantas?

-- Não sei eu outra cousa! Mas, quando assim não fôsse, aprendia. Não quer mais nada de mim?

-- Mais nada.

-- Então até logo.

E, voltando-lhe as costas, sahiu com a mesma natural desenvoltura com que entrára na estufa.

O marquez desatou a rir, exclamando:

-- Que indomavel criaturinha!

Depois teve um gesto de desagrado, que correspondia ao seguinte pensamento:

-- O peior, n'um casamento desigual, é a familia. A mulher pode educar-so... mas os outros? Ha um recurso unico: a distancia. Usarei e abusarei d'elle.

Causou grande sensação no povo a simultanea ausencia do Margarida e do João, e as más linguas não deixaram de a commentar a seu modo, architectando sobre ella varias hypotheses, algumas das quaes acharam ecco nas casas mais gradas dos arrodores. O marquez, aos ouvidos do qual alguma cousa chegou, respondeu a quem lhe deu a nova:

-- Eu não acredito. Como sabe, Margarida foi criada em minha casa e a sua conducta foi sempre correctissima.

Mas, de si para si, ficou vivamente contrariado de que ousassem boquejar na reputação da mulher que escolhera.

As cartas, que a neta do Engracia escrevia á avó e que o marquez ha ávidamente, attestavam os constantes progressos educativos da intelligente rapariga. A caligraphia era primorosa, conservando um cunho individual, e a redacção correcta.

Eis uma d'ellas. Dizia:

J. M. J.

Querida avozinha,

«E' hoje domingo, e, como sou eu a unica pensionista que não tenho visitas, venho escrever-lhe não

só para matar saudades, como para lhe contar o emprego que faço do meu tempo.

Esta semana comecei a trabalhar no manto que me encommendaram d'ahi para a festa de Nossa Senhora. E' todo branco, bordado a prata, o o desenho é composto por festões de flôres do larangeira artisticamente dispostos. Foi a mestra geral, que é habilissima em traçar debuxos, que m'o fez. No portuguez, como já lho disse, vou optimamente: o francez é facilimo, mas o inglez é que tem para mim immensa difficuldade; no entanto, com preserverança, creio que o chegarei a fallar rasoavelmenteo. Para a musica, segundo affirmam as minhas freiras, está provado que tenho decidida vocação. Vou bem no piano, mas no canto melhor. O solo do hymno á Virgem, quo se canta durante o mez do Maria, foi com applauso unanime executado por mim. Diz a nossa mãe que a minha voz é de soprano dramatico. A avó não sabe o que é, mas a sr.ª D. Maria da Graça sabe, porque entendo do musica. Nas minhas horas de recreio, como não gosto nem tenho paciencia já para brincar, estou fazendo uma grande coberta de trama para lhe offerecer nos seus annos. As férias grandes começam no fim de julho, mas, se a avó não fôr contra isso, não sairei do convento o as mestras, a quem já fallei n'esse sentido, ostão dispostas a continuarem-me as lições. Soror Martha conta que para o anno, caso estude da fórma que até agora tenho estudado, estarei bastante adiantada para poder sahir do convento e acabar de estudar sósinha sem estar

a fazer a grande despeza que aqui faço. Recommende-me muito a todos da terra, especialmente á sr.ª D. Maria da Graça e ao sr. marquez.

«Dê um abraço á Thereza e receba outro muito do coração da sua neta que lhe pede que a abençoe.

Margarida.»

F. M.

João, pelo seu lado, escrevia tambem á sr.ª D. Maria da Graça, e as suas cartas, embora por motivo diverso, não eram menos apreciadas. Eis uma.

Minha bôa Madrinha,

«Accuso, com muito reconhecimento, a sua carta de 20. Vou bem, e continuo fazendo progressos. Tenho pena de ter dito na terra que ia para o Brazil. Privei-me do prazer de a poder ir vêr nas férias. Custa-me, porque a gente, por muito bom que esteja em qualquer parto, tem sempre saudades da sua terra. Estou convidado por um companheiro de estudo, para passar o mez de setembro em Azeitão. Dizem-me que é um dos mais bonitos sitios dos arredores de Lisboa.

«Fico com curiosidade ácerca das noticias que me dá com respeito ao Zé da Rosa. Ainda não vi a Margarida nem sei onde é o convento do Bom Successo. Vou informar-me.

«Desculpe, minha querida madrinha, tirar-lhe o tempo, mas entendo do meu dever dar-lhe noticias minhas, além do muito que desejo saber de V. Ex.ª e do sr. Paschoal, que tão bons têem sido para mim.

«Mande sempre o seu humilde criado,

João da Levada.»

Como se doprehendo da leitura d'esta carta, D. Maria da Graça mandára dizer ao João qual era o convento onde Margarida estava encerrada. Desde esse dia, o protegido de D. Maria da Graça não pensou senão no modo de poder vêr a sua ex-namorada. Não era facil, porque o convento tem clausura. Mas não ha no mundo impossiveis quando um coração so empenha verdadeiramente em os vencer.

Começou por ir ouvir a missa dos domingos ao Bom Successo. Não via Margarida mas calculava que seria visto por ella. Quando cantavam, fazia esforços vãos para tentar distinguir, entre as outras, a sua voz, mas nada conseguia. Como as missas conventuaes são cêdo e não lho implicavam com as horas das aulas, começou João a ir todos os dias á missa, tendo o cuidado de se pôr bem em evidencia.

Quando sahia, monologava comsigo:

-- Ella vêr-me-ha? Reconhecer-me-ha?

Lembrou-se de tentar subornar a porteira, mas receiou, não o conseguindo, vêr-se expulso da portaria.

Nos dias de visita ás educandas estacionava em frente do portão, invejando a sorte dos felizes que eram admittidos a vê-las.

Lembrou-se, vendo entrar varios rapazes que iam visitar as irmãs, de vêr so conseguia relações com elles. Teve o trabalho de lhes fixar as physionomias, de os seguir, e acabou por saber que um d'elles era frequentador do Martinho. Começou tambem a ir alli. Um dia em que se sentiu mais afoito, pediu-lhe lume, trocou com elle algumas palavras e ficaram se cumprimentando. Depois travou com elle mais relações e, lentamente, com a tenacidade dos que sabem querer e não desistem nunca, acabou por se tornar grande amigo do Luiz Soares, aspirante da Escola do Exercito, rapaz intelligente e bom, que juntava á estima dos seus camaradas a do todos os profossores.

Chegaram, como era natural, a fallar de si e dos seus. João, sempre desconfiado, pelas ideias que sua mãe lho inoculara na adolescencia, não lhe disse a humildade da sua origem, que aliaz o appellido traia. Confessou-lhe não ter pae nem mãe, e ser educado pela madrinha.

A gente moça contenta-se com todas as explicações. Sem reserva, Soares tornou-so inseparavel de João e este aprendeu com elle a dar-se ares e requebros de elegante e a sabor escolher os collarinhos e as gravatas: Tornou-se um dandy. Conseguiu emfim o seu almejado intento. Um domingo, acompanhou o Soares e a familia, que já frequetava com intimidade, a visitarem a irmã. Transpondo o portão do Bom Suc-

cesso, o coração de João parecia estalar-lhe no peito. Ia, julgava elle, ver finalmente Margarida.

Que decepção! Muitas raparigas vieram ao locutorio, viu muitas freiras, mulheres ainda bollas, envoltas no elegante habito dominicano, mas não viu quem desejava vêr. Margarida não appareceu. Retirou-se triste.

Luiz Soares, notando o estado de espirito do amigo, resolveuconfessa-lo quando estivessem sós. O pobre João não pedia mais do que ter um coração amigo que lho guardasse as confidencias. Contou-lhe tudo. E, desde esse dia, foram dois os cerebros empenhados em descobrir um meio de ver Margarida.

Luiz Soares, conversando com a irmã, soube habilmente por ella o optimo conceito em que Margarida era tida no convento. Adélia contou-lho que era ella que no mez de Maria cantava os solos, o que fôra quem fizera os palmitos brancos que ornavam o altar da Virgem. Tudo isto, que era nada, fôram grandes satisfações para João.

Uma manhã, em que, mais pesaroso que de costumo, elle se encaminhava para as aulas, ouviu atraz de si uma voz conhecida que lhe gritava alegromonte:

-- O' João! João! Dá cá um abraço, rapaz. Achei! achei o que não havia meio de encontrar.

-- Mas como, homem, como?

-- Muito simplismente. Anda d'ahi.

E encaminhou-se para casa, subindo as escadas a quatro e quatro.

João seguia-o n'um sobresalto.

Entrando no seu quarto pela porta que dava directamente para a escada, Luiz fechou-a depois de fazer entrar o amigo, e apresentou-lhe um fato de gallego e uns matacões.

-- Veste isso, e compõe a frontaria do predio.

Foi dito e feito.

Entretanto Luiz explicava:

-- Vaes com esta caixa ao convento e procuras por minha irmã. Mandas essa carta para dentro. Diabos me levem se d'esta voz não consegues vêr a Dulcinea! Ora ouve lá: «Cara mana: -- Tenho muito empenho em que me faças uns palmitos iguaes aos do altar da Virgem para offerecer a nossa mãe no dia dos seus annos. Como está proximo e receio que já haja pouco tempo, mando d'uma loja da minha confiança preparos para flôres. Escolherás o que melhor te parecer. Não olhes ao preço, mas sorá bom consultares na escolha a tal senhora quo fez aquelles que tanto mo agradam. O moço sabe os preços de tudo.»

-- Eu?

-- Pois quem? Eu? De outro modo não lhe verás nem a ponta do nariz.

Tiraram as etiquetas a tudo, fazendo uma lista de preços que João se propoz estudar pelo caminho, e com muitas gargalhadas e chistes, dirigiram-so para a estação de Santos onde esperaram o electrico.

Chegando a Belem, Luiz Soares ficou no jardim emquanto o supposto gallego so dirigia ao Bom Successo.

Não falharam as conjecturas de Luiz Soares. A porteira tomou conta da caixa e da carta, e foi entrega-la á roda. Passou muito tempo. João julgava já vêr frustradas as suas esperanças, quando a porteira lhe veio dizer que passasse ao locutorio.

Oh! que grande, que enorme satisfação! Acompanhadas pela mestra geral, Adelia e Margarida estavam na grade. Disfarçando como pôde a sua emoção, o supposto gallego respondeu a todas as perguntas conforme soube e teve o prazer de vêr que lhe encommendavam mais panno branco para recortar petalas do lyrios. Emfim, depois d'uma demorada escolha, retirou-se tendo o prazer do poder tornar.

Margarida não o conhecera. Tinha emagrecido e empallidecido como elle, mas estava mais formosa, e os cabellos loiros e annellados, cahindo n'uma grossa trança pelas costas, pareciam coroar-lhe o rosto d'uma aureola doirada.

Quando voltou a entregar o panno, já não teve a satisfação de ser recebido no locutorio. Mandaram-no embora, dizendo-lhe não ser preciso mais nada.

Continuou a ir á missa. A sua conducta era por tal forma commedida e discreta que não despertou suspeitas a ninguem. A mestra geral, que á força de o vêr na igreja, ja o conhecia, dizia á Prioreza:

-- Aquelle rapaz é um exemplo! Com que devoção elle faz as suas rezas! Não falta nunca á missa. Faz gosto um rapaz assim. A mãe deve ter orgulho n‘elle.

Margarida tambem o notára, mas não o reconhe-

cera. João usava agora um bigode longo e bem cuidado. A sua figura, esbelta e franzina, moldada n'um fato elegante, era tão diversa da do João que ella conhecera na terra, andando quasi sempre em mangas de camisa o jaleca ao hombro!

No entanto, tinha, como as madres, em optimo conceito o frequentador da igreja, e muita vez se achava a dizer comsigo:

-- Aquella physionomia lembra-me outra. Mas de quem?

E não achava.

Adelia, começando a fazer os palmitos, pediu, como era natural, varias vozes a opinião de Margarida. E, quando aos domingos vinha á grade, fallava n'ella á familia, lamentando que fosso a unica no convento que nunca recebia visitas.

Então a mãe mostrou desejos de a conhecer.

Obtida licença da prioreza, Margarida veio um domingo ao locutorio.

Fallou-se então em que ella não ia a férias e a mãe de Adelia lembrou-lhe que mandasse pedir á avó para ir passar os domingos a casa d'ella durante as férias grandes o para vir ao locutorio sempre que ella visitasso a filha.

E' tão monotona a vida conventual que Margarida exultou com a proposta. Escreveu á tia Engracia, que, tendo consultado o marquez, lhe respondeu affirmativamente. Do combinação com o amigo, João fôra apresentado á familia Soares com o nome de João de Sousa, porque, dissera elle, era o que tencionava

usar para o futuro, como prova do gratidão pelo muito que devia á familia do D. Maria da Graça.

Qual era a verdadeira razão está vendo o leitor. Sabendo quanlo a sua transformação externa tinha sido completa, João não queria ser reconhecido pela sua ex-namorada.

As férias grandes aproximavam-se. Estava já fixado o dia para a solemne distribuição dos premios. Não sem difficuldade conseguiu Luiz Soares licença para levar comsigo o amigo. As madres tinham-se mostrado ronitentes em admittir na festa uma pessoa estranha ás famílias das educandas; mas, sabendo por um acaso que so tractava do devoto da missa conventual, a licença foi dada gostosamente.

Era meio dia d'um dos mais formosos dias de julho.

As carruagens começavam a afluir á portaria do convento. Nas salas destinadas á distribuição dos premios, estavam reservados logares para o ministro inglez e para o senhor patriarcha.

Ao fundo, para além da galeria, via-so n'um elevado estrado um magnifico Erard, de cauda, e uma harpa. Era alli que se deviam executar todos os numeros do programma.

Foi Margarida, com Adelia e uma outra menina de origem ingleza, que abriram a sessão. Margarida, toda vestida do cassa branca, com um vestido elegantissimo, de que uma das melhores modistas da capital lhe fôra tomar as medidas, estava do pé entre a harpa e o piano, nos quaes as suas amigas e

companheiras proludiavam. Finalmente, erguendo a voz, cantou admiravelmente um dos mais bellos lieder de Schumann e teve uma grande e estrepitosa ovação.

Não houve prémio nem distincção que Margarida não merecesse e, quando, com uma linda corôa do louros pousada nos seus fulvos cabellos, so retirou ao fundo da sala, ia visivelmente commovida.

A festa prolongou-se até ao entardecer. Eram sois horas, quando a portaria se abriu dando passagem ás educandas que se precipitavam alegremente nos braços da sua familia com verdadeiro transporte.

Adelia tomou lugar na carruagem junto dos seus, e Luiz Soares, enfiando o braço de João da Levada, exclamou com sinceridade.

-- Tens bom gosto, João. A tua Margarida é uma criatura divina.

João estremeceu. Parecia-lhe que o seu amigo dissera aquellas palavras n'um tom estranho e commovido que lhe despertou o ciume.

IX

Margarida foi passar o primeiro domingo de ferias a casa da familia Soares. A' imitação de João, não disse como era modesta a sua origem. Não tinha apellido, mas entrando para o convento, com um instincto admiravel da importancia que têem para certas classes sociaes os preconceitos, disse chamar-se Margarida do Giestla e assim ficou sendo tractada.

Os seus modos, copiados pelos das suas mais distinctas companheiras, eram d'uma verdadeira senhora e os vestidos, simples mas elegantissimos, trahindo uma magnifica tesoura, realçavam-lhe a natural distincção.

Adelia mostrava-se muito amiga da sua condiscipula, apesar da grande differença da idade que entre ellas existia, e o irmão, mau grado seu, sentia-se completamente captivado. Por seu gosto, não teria convidado João a jantar, mas, muito leal, vence o

egoismo do sentimento que lhe despontava n'alma o convidou o amigo.

Muito rica, a familia Soares, occupava um magnifico primeiro andar na Avenida da Liberdade. Tudo alli dentro era luxuoso e bom. O gabinete de musica, todo mobilado de setim côr do rosa o banbú doirarado, profusamente ornamentado do arbustos, seria encantador, se não tivesse dimensões extremamente acanhadas para comportar um grando piano de concerto.

A sala toda estofada de velludo cinzento com cravos de todas as côres e espelhos venexianos d'um requinto do originalidade moderna que encantava o olhar, foi, de todos os compartimentos da casa, o que mais agradou a Margarida. Sentada n'um lindo sofá do feitio de concha, collocado em frente d'uma floreira, que na base d'um grando crystal reflectia n'elle uma profusão de cravos multicôres, Margarida, com a mão direita esquecida nas de Adelia, ouvia d'ella a confissão do profundo e sincero affecto que lhe inspirava o amigo do seu irmão.

O reposteiro da porta ergueu-se o Luiz Soares, enfiando o braço de João, muito elegante com o seu smoking negro, perguntou:

-- Não somos demais?

-- De modo algum.

Luiz pediu licença a Margarida para lhe apresentar João, ao que ella accedeu com uma leve inclinação de cabeça.

Mas, ao ouvir a voz do seu ex noivo, ella que o vira tanta vez indifferentemente sem o reconhecer, estremeceu e fitou n'elle um olhar profundamente investigador que o da Levada sustentou sem pestanejar.

-- E' celebre, murmurou ella, enganei-me.

Mas, como a duvida lhe persistisse no espirito, disse alto:

-- E' estranho! V. Ex.ª é exactamente o retrato d'um companheiro da minha infancia.

-- Tem graça, volveu João com a maior naturalidade, como ha ás vezes semelhanças de familia entre pessoas que nem de longo se conhecem !...

Margarida, cada vez mais suspeitosa, perguntou-lhe abruptamente:

-- De que provincia é V. Ex.ª?

-- Do Algarve, respondeu promptamente João.

A conversa generalisou-se. Adelia fazia da sua parte todo o possivel para captivar as attenções de João, que, muito amavel com ella, parecia quasi não dar attenção a Margarida que se mostrava aprehensiva.

Luiz Soares fallava pouco e não despregava os olhos da condiscipula de sua irmã, o que João notava com verdadeiro despeito.

A noticia de que o jantar estava na mesa reuniu toda a familia.

Conversou-se animadamente e a mãe de Adelia e Luiz elogiaram a grande habilidade manual de João que fizera uma linda guitarra que offerecera ao seu amigo.

Margarida olhou-o maia prescrutadoramente e perguntou-lhe:

-- E nunca tinha feito nada n'esso genero?

Elle hesitou, mas acabou por responder:

-- Fiz outra... ha perto de dois annos. Era mais bonita do que esta. Offereci-a á minha noiva pouco tempo antes de partir para Lisboa. Fi-la toda de pau santo com embutidos de osso o tinha no tampo a data do dia em que ella me promotteu a sua mão.

E, fitando-a nos olhos, concluiu:

-- 22 de março de 1902.

Dou-se então um episodio curioso: Adelia empallideceu a ponto que parocia ir desmaiar, e Margarida enrubesceu por tal forma que a mãe da sua condiscipula perguntou-lhe:

-- Está incommodada, Margarida?

-- Ligeiramente, minha senhora. E' um affrontamento. Eu sou sujeita a estes pequenos achaques.

-- Não queres ir lá dentro? perguntou-lhe Adelia fazendo-se forte.

--E' inutil. Já vai a passar.

Quando a refeição terminou, tocaram, cantaram e dansaram, trocando Luiz e João, de quando em quando, o par. Então o da Levada perguntou baixo a Margarida:

-- Esqueceste-me completamente, Margarida? E' realmente verdade que o amor que me tinhas morreu com a ambição de seres marqueza?

-- Eu não sou ambiciosa, João. Amo o marquez.

-- Amas? Olha-me bem.

Margarida desviou o olhar. Então João, estreitando-a mais nos braços no doido giro da valsa, murmurou-lhe com funda convicção:

-- Não, Margarida, tu não o amas. Estás deslumbrada por um magnifico futuro, nada mais. O teu coração é meu e sempre o será.

Ella quiz responder-lho, mas a voz embargou-se-lho na garganta.

Elle continuou:

-- Estou estudando. Quero e hei de ser um homem celebre. Espora. Em igualdade de circumstancias tenho a certeza de ser preferido ao marquez.

E como a valsa terminasse, offereceu-lhe o braço e reconduziu-a ao seu logar.

Entretanto Adelia pensava:

-- Tem noiva!... Mas que importa? Ella está longe o eu estou perto. Não seria, se se desse, a primeira vez que os que estão longe esquecem.

Quando, no dia seguinte de manhã, Margarida entrou para o convento acompanhada pela governante dos Soares, encontrou na portaria João, que ia, como do costume, á missa conventual. Trocaram um banal cumprimento, mas o olhar que Margarida lhe lançou no desaparecer na portaria, não era um olhar indifferente, e bastou a encher de jubilo a alma de João.

Por seu lado, Margarida sentiu n'alma um profundo reconhecimento por João. Admirou-lhe o caracter, a dedicação, a tenacidade! Que differença entre elle e o marquez! Estevam pagava-lhe generosamente a

educação, não lhe escrevia, parecia não querer saber d‘ella senão atravez da avó. Ama-la-ia elle realmente? Pode-se amar duas vezes sinceramente? Naturalmente, não.

Ello quizera á marqueza de todo o seu coração. Quando ella morreu, o seu desespero fóra commovedor e, se pensava em casar segunda vez, não era por amor: era porque se sentia só e precisava d'uma companhia. A prova é que nunca lhe escrevêra, nunca viera vê-la, nem mesmo por occasião da distribuição dos prémios, onde elle devia calcular que ella desempenhava um papel. Quem lhe dizia mesmo que este casamento, tão desigual, era feito na ideia de nunca substituir realmente, no seu coração, a imagem de Mafalda por a do outra mulher?

Emfim, a comparação com João começou a ser desfavoravel ao marquez no espirito do Margarida, a a generosa acção de Estevam a ser afeiada a seus olhos por deducções desvantajosas do factos minimos aos quaes até então não ligára importancia.

Ninguem se fie no affecto da mulher desde que descure o cultiva-lo.

Queixar-se depois dos factos naturaes é, sobre imprevidencia, toleima.

X

Na estufa de Valle Negro, Joanninha, no sou trajo campesino, ajoelhada junto dos vasos, mondava as hervitas que despontavam sem licença sobre a terra destinada a lindas e garbosas plantas.

O marquez, sentado na mesma cadeira em que já uma vez o vimos, fumava, fingindo lêr, e observava ás furtadelas a gentil figura da sua futura cunhada. Tres gaiolas, suspensas do tecto da estufa, continham tres infatigaveis cantores: dois pintasilgos e um canario.

Ao centro da estufa, n'um pequeno tanque, fluctuavam largas fôlhas de forma elliptica.

Joanninha, olhando para o marquez, perguntou com a somcorimonia habitual:

-- Isto é que é o tal nenufar?

-- Não. E' a Salvinia; deram-lhe este nome em honra d'um notavel professor de Florença chamado Salvini.

-- Forte mania! Pôr nomes de pessoas ás plantas!

-- Estes passaros estão insupportaveis, Joanna. Amanhã has de os pendurar n'outra parte. Fazem-me dôres do cabeça cem e seu constante chilrear.

-- E' porque o senhor não tem a cabeça bôa. Isto até agrada! Chamar insuportaveis a estes anjinhos que passam o dia a louvar a Deus, o fazem tão lindas habilidades! Lá irá para onde o pague!

O marquez, sorrindo da indignação da rapariga, perguntou:

-- Que habilidades fazem elles? Nunca dei por isso.

-- Pudera! o senhor anda pelas casas e parece que deixa os olhos peles montes á espera das perdizes e das gallinholas.

-- Agora não é tempo.

-- Talvez por isso mesmo as não tira do sentido. Olhe, todos elles me conhecem. Em lhe abrindo as gaiolas vêem pousar em mim e comer-me na mão. E este, -- apontava para um dos pintasilgos,--dá-me beijos e finge-se morto na palma da mão.

O marquez, cerrando o livro, disse:

-- Sempre quero vêr isso.

Joanninha saltou ligeiramente para a borda do tanque e abriu as portas das gaiolas, dizendo:

-- Meus meninos, venham cá, venham cá!

Immediatamente os passares, sahindo da gaiola, vieram pousar-lhe nes hombros e comer-lhe nas mãos.

Então, voltando-se para aquelle quo ella indicára a Estevam como o mais sabio dos tres, fez-lhe festas na cabecinha e disse em tem de lamuria:

-- Morreu, morreu.

O passaro sacudiu as azas, como agitado por uma convulsão, e deitou se-lhe na mão, hirto, de papo para o ar o cabeça pondida, como se realmente tivesse morrido.

Joanninha, olhando triumphante para Estevam, pediu ao passarinho:

-- Um beijo, pshiu, pshiu, pshiu!

E o pintasilgo, agitando as azas, veiu pousar-lhe o bico nos labios. Então, abanando uma apoz outras as portas das gaiolas, fê-los comprehender que era tempo de recolherem a suas casas, e elles obedeceram promptamente ao convite.

Esta scena que lhes descrevo sem atavios nem arrebiques do linguagem, ao correr da penna, era, vista, d'um encanto irresistivel.

Ha muito que elle sentia uma attracção para esta criatura simples, rustica, mais orgulhosa do que elle; que a cada passo lhe mostrava não lhe ligar a minima consideração o não querer trocar nem por um throno a sua liberdade e os seus tamanquinhos. Deitava esta attracção á conta d'um d'esses caprichos physicos a que os homens estão sujeitos e que, quando têem caracter, sabem e podem dominar.

Considerando Joanna como irmã da sua futura mulher e como uma verdadeira vergonha social do quem elle teria de fugir assim que casasse, Estevam dominava em si a besta, sem contar que ella se podia rebellar um dia. Foi o que succedeu.

Vendo a scena gentilissima, da qual não conseguimos dar uma pallida ideia ao leitor, uma vertigem assombrou a razão de Estevam. E elle, o homem bom, o respeitador da moral, sempre prompto a defender os fracos que encontrava no caminho: elle, que quizera fazer sua mulher uma simples rapariga do campo, preferindo educa-la a obte-la como amante, o que talvez lhe não fosse difficil porque ella amava-o, e não ha razões superiores ás d'esse sentimento quando sincero: elle, que nos pontos de honra era intransigente, lançou-se sobre essa rapariga indefesa, como um tigre sobre um ser humano.

Ella debateu-se em vão.

Quando, passada uma hora, Joanninha sahiu da estufa, ia pallida, chorosa e tremula. O marquez, envergonhado e pesaroso, dizia-lhe commovido:

-- Não contes nada a ninguem. Perdôa-me. Eu não tenho culpa... Hei do reparar o mal que te fiz.

Sem lhe responder nada, Joanninha recolheu-se ao quarto chorando.

A tia Engracia, que passava no corredor, perguntou:

-- Ó Joanna, porque vaes tu a chorar?

O marquez, antes que a rapariga respondesse, fê-lo por ella:

-- Andava a mondar as hervas na estufa, e picou-so nas fôlhas d'uma cycua. Não vale nada.

Socegada, a tia Engracia dirigiu-se para a casa de fóra, murmurando:

-- Sempre se está fazendo uma piégas o diabo da rapariga!

Estevam deixou-se cahir sobre a cadeira que em má hora havia abandonado, e desatou a chorar como choram as creanças.

Joanna, no seu quarto, parecia-lhe que acordára d'um sonho, e toda a antipathia, todo o desdem que até então sentira pelo marquez, mudara-se n'um impetuoso amôr, violento e fogoso como o seu indomavel caracter.

E murmurava baixinho:

-- Agora é que eu comprehendo!... Não era zanga o que eu lhe tinha. Era... era amôr.

XI

Passada a primeira crise do desespero, durante a qual o marquez se censurara asperamente pelo acto que praticara, resolveu entregar-se com todo o impeto da sua natureza violenta, soffreada ha tão longos mezes, a esta paixão illicita, expontaneamente nascida n'um segundo.

Dizia comsigo:

-- Remediar o mal feito é impossivel. Ganharemos tempo.. fechando os olhos para não vêr. E' o melhor.

E, realmente, tão bem os fechou que nem se lembrou de prever as consequencias mais naturaes.

Joanna, pelo contrario, mostrava-se triste e pesarosa. A lembrança da paixão de Margarida pelo marquez enchia-lhe a alma do remorsos. A irmã, um dia, havia de voltar... O que se passaria então? Ella tremia de o pensar, E, nas exaltações das suas noites sem somno, via-se á beira do rio, resando como

o João da Levada e procurando na morte o remedio para tão extranha situação.

Morrer! Era o unico caminho. Desapparecida ella, todos podiam ainda ser felizes.

Depois revoltava-se e perguntava com furia a si propria:

-- Mas porque razão me hei de eu sacrificar? Porquê? Tenho menos direito á vida do que os outros? Alguem pensou acaso em mim? Ninguem. As attenções, os cuidados, são para os outros. Para mim nada!... Sou um trapo em que nem a avó nem elle pensam!

E, mettendo um lenço nos dentes, tirava-o esfarrapado pela raiva. A sua saudo começou a ressentir-se. Cada vez mais pallida, mais magra, com enjôos de estomago e tonturas, começou a desconfiar do seu estado desde que, tendo-se levantado da mesa do almoço com fundas agonias, a avó lhe dissera rindo:

-- O' mulher! Se eu não pudesse pôr as mãos no fogo por ti, havia do jurar que estavas prenha.

Ella tentou sorrir, mas não pôde. E, desde então, uma certeza cruel se lhe assentou no espirito. Seria em breve mãe. E sua avó, tão velha, que fôra sempre tão zelosa do bom nome das netas, decerto não resistiria a esse desgosto.

Depois, via todas as raparigas da aldeia aponta-la a dedo e rirem quando ella passasso, chamando-lhe gallinha, insulto usual na terra ás raparigas a quem acontecia qualquer fatalidade. Muito triste, começou

a calcular o tempo da sua gravidez e, a occultas da avó, a fazer pequenas camisinhas, casacos, e tudo quanto ás mulheres da aldeia ella vira fazer em casos taes. O marquez estranhava-lhe a tristeza e atribuia-a a remorsos de vêr estragado o futuro da irmã, porque, naturalmente recto, não suppunha que ella o imaginasse capaz de casar com Margarida depois de a ter compromettido. Todos os dias fazia tenção de lhe fallar n'isso, de lhe confiar os planos que o seu espirito esboçava, mas, vendo-lhe o ar de fundo ressentimento que, mau grado seu, ella não sabia nem podia occultar, resolvia esperar sempre para o dia immediato.

E o tempo ia passando.

Um dia, Joanna, mais triste que de costume, resolveu dizer-lhe alguma cousa. Os seus encontros tinham logar n'uma casita de guarda, que ficava nas terras do marquez e que ha muito não tinha habitantes. A's horas a que deviam separar-se, Joanninha, com voz trémula, annunciou ao marquez a fatalidade de que era victima, por este modo secco o brusco:

-- Vou ser mãe.

-- Tu?! exclamou elle com jubilo que a Joanninha, cheia de prevenções, pareceu surpreza.

-- Sim, eu. Prometta-me pela sua vida que nunca faltará ao meu filho, não só com o preciso como com a ternura que lhe deve.

-- Prometto.

-- Pela Senhora do Adro?

-- Por ella, e pela minha honra.

Joaninha sorriu com sarcasmo.

-- E para ti não pedes nada? perguntou elle com alvorôço.

Ella lançou-lhe um olhar, cortante como afiado gume, e respondeu-lhe em tom sumido, mas firme:

-- Peço. A Deus que me faça a esmola de me matar antes de lhe ter odio, senhor marquez.

E affastou se altiva.

Estevam fechou a porta o seguiu pelo caminho opposto. A poucos passos encontrou um banco rustico. Sentou-se e começou monologando comsigo:

-- Que estranho caracter o d'esta pequena! Nunca vi uma mistura mais original de graça camponeza e de orgulho regio! Se eu conseguisse educa-la!.... Mas como?... Eu não terei nunca animo de me separar d'ella. Emfim, é preciso tomar uma decisão que não possa ser indigna de mim...

Ergueu-se o seguiu resolutamente para casa.

A tia Engracia, chamada pelo marquez ao seu escriptorio, ficou espantada de elle lhe offerecer uma cadeira e, fechando a porta por dentro, dizer-lhe com voz commovida:

-- Vou dar-lhe uma noticia que talvez lhe não agrade, Engracia.

A velha empallideceu e, levantando-se, murmurou no tom do quem sente desabar todos os seus sonhos:

-- Já não quer a minha Margarida?

-- E' verdade. Prefiro Joanninha e quero casar com ella ainda este mez.

-- A Joanna! lsso pode lá ser, senhor marquez?! O senhor não está em sim. A minha Joanninha, uma cabra que só sabe correr por montes e vallados, que não tem educação! Não pense n'isso, menino... seria a sua vergonha.

-- Já pensei e não desisto.

-- E julga o senhor que ella o quer ? Olha quem! Não, que aquella é de outra casta. Não era ella que trocara um camponez pelo maior fidalgo!

E havia n'estas palavras, ditas n'um tom de gabo, um orgulho e vaidade em nada inferiores áquelles que vimos Joanninha demonstrar, alguns capitulos atraz.

-- Vae vêr.

Abrindo a porta, chamou:

-- Joanninha! ó Joanninha!

-- Ainda não entrou, senhor marquez. Deve estar nas estufas da quinta, respondeu a voz d'uma criada.

-- Vae vêr se a encontras e dize-lhe que venha cá depressa.

Momentos depois a neta de Engracia entrava no escriptorio e, dando com os olhos na avó, empallidecia, encostando-se á cadeira proxima. Pensou que a velha adivinhara tudo.

O marquez dirigiu-se para ella, e pegando-lhe na mão, disse-lhe meigamente:

-- Acabo de dizer á tua avó que quero casar comtigo ainda este mez. Ella affiança-me que eu não sou gente para ti e que me não queres. Decide tu.

Joanninha lançou-so-lhe violentamente nos braços, chorando e rindo. O marquez voltou-se para a tia Engracia o perguntou:

-- Que diz a isto?

-- Que hei de eu dizer? Faça-se a vossa vontade. Pobre Margarida!

E desatou a chorar.

-- A avó sempre gostou mais d'ella que de mim!

-- Enganas-te. Era justamente o contrario; mas agora hei de preferi-l'a visto que é ella a mais infeliz.

-- E' justo, concordou o marquez.

E continuou:

-- Vou mandar pedir uma dispensa a banhos. Logo que ella chegue, casamos e vamos para a Suissa. A Engracia fica senhora em Valle Negro. Deixo-lhe uma boa mezada. Conserva os criados que quizer e despede os que lho não agradarem. Em qualquer embaraço recorre ao senhor prior a quem deixarei as minhas instrucções.

-- E... o que hei de eu dizer á Margarida?

-- Nada. A sr.ª D. Maria da Graça será encarregada por mim do lhe ir fallar e conforta-la. Claro que me encarrego de todas as suas despezas da mesma forma, mas entre nós está tudo acabado. Não nos tornaremos a vêr tão cêdo. A minha mulher é esta.

Outra vez Joanninha se lhe lançou nos braços, exclamando:

-- E's um anjo, um verdadeiro anjo. Não ha homem que te valha.

-- Ouve, tia Engracia? perguntou, não sem uma certa vaidade, o marquez.

A criada franceza, habituada havia muito a transformar os vestidos da defuncta marqueza, foi encarregada de tomar cuidadosamente as medidas do corpo de Joanna, medidas que n'essa mesma noite o marquez enviou á M.mo Damien que era, depois da M.me Aline, a modista mais conceituada em Lisboa no tempo em que se deram os acontecimentos que estou narrando. O marquez, assim como a tia Engracia e a neta, mantiveram o maior segredo ácerca das suas combinações.

Na cosinha murmurava-se e suppunha-se que as medidas, que a franceza tirara, seriam para fazer um fato a Joanninha e, segundo a propria expressão usada pelas más linguas, manda-la pelo caminho da outra. E esta phrase era sublinhada com um venenoso sorriso em que se subentendiam mil cousas más.

O marquez, desde a sua nobre decisão, andava radiante. Sentia-se bem comsigo e não ha satisfação comparavel para um coração recto. Auxiliado pelo criado de mesa e pelo criado de quarto, com a presença de Joanninha, tractou de presidir ao arranjo das malas para uma longa viagem. Havia uma grande azafama em Valle Negro. Todos que rodeiavam o marquez tinham vontade de lhe fazer perguntas, mas, dado o seu caracter reservado, embora lhano para todos, ninguem se atrevia a dirigir-lh'as. Uma semana depois da scena passada no escriptorio do

marquez, o correio trouxe um volumoso sobrescripto com as armas de Sua Emminencia o senhor D. José I, Cardeal Patriarcha de Lisboa, e o comboio uma grande mala dirigida tambem ao marquez do Valle Negro.

Estevam mandou pôr a mala nos antigos quartos da marqueza e abriu jubilosamente o grande sobrescripto.

Era a dispensa a banhos que pedira o a licença para poder casar na capella da casa.

Depois de as lêr fechou-as na secretária e dirigiu-se ao presbyterio.

O prior, que passeiava no passal pelo braço do sobrinho, veio recebê-lo á cancella com demonstrações de regosijo.

Era uma linda e estranha casa o presbyterio. O prior tinha inquestionavelmente um singular gosto artistico. Era um velho algarvio que fôra collado n'aquella parochia por pedido seu, com poucos proventos, mas muito prazer em a pastorear. Quando alli chegou, tanto a casa da residencia como a igreja precisavam ser caiadas de novo. Elle não quiz. Pediu a Paschoal de Sousa e a D. Maria da Graça que lhe dessem cortiça o, ajudado por alguns homens habilidosos da povoação, elle proprio emprehendera forrar a igreja o a casa externamente de cortiça. Substituira a expensas suas todos os vidros da igreja por crystaes rosados, e plantara hera em torno da igreja, da casa e dos muros. E, dentro de poucos annos, o presbyterio, a igreja e todas as suas

dependencias, tinham o ar cuidado o elegante das construcções suissas.

Por dentro, a casa do prior não era menos interessante. A sala, pequena e esteirada, tinha uma mobilia alemtejana pintada de vermelho, sempre com o ar de nova á força do cuidados. Constava do tradicional camapé, cadeiras e mesas. Nas portas, os reposteiros eram cobertores alemtejanos, o as braçadeiras que os sustentavam guizeiras de machos. No meio da mesa, collocada ao centro da vasta quadra, reluzia um antigo candieiro de azeite em volta do qual so viam varios tratados de theologia, revistas e livros dovotos. Adornavam a parede principal dois grandes quadros, representando os corações de Jesus e de Maria, devidos ao pincel de Constantino Fernandes.

Chamava elle a estas duas imagens os donos da casa. As outras paredes estavam totalmente cobertas de inscripções piedosas, colhidas nos livros dos mais notaveis escriptores contemporaneos. A casa de jantar tinha o chão lageado, o as paredos quasi que desapareciam sob as trepadeiras. Parecia, ao entrar-se alli, um viçoso e florido caramanchel. O aparador, trinchantes, mesa e cadeiras, era tudo feito com troncos do arvores, de uma forma geitosa e elegante. Na parede principal sobresaia entre a verdura um grande Christo de jaspe agonisando na cruz feita do marmoro negro. Era o seu auctor Francisco Santos, que lhe imprimira no rosto bellissimo uma intensa expressão do soffrimento que pungia as almas

de quem o fitava. Toda a casa do presbyterio mantinha em cada aposento uma nota original, o a sua descripção occuparia muitas paginas. Creio, tratando d'ella, ter já dito o bastante para definir o caracter da bôa criatura quo alli habitava.

Beijando com respeito a mão do seu prior, (o marquez pertencia ao numero dos raros homens que não descuram os seus deveros religiosos nem esquecem as attenções devidas aos ministros da sua religião), sentou-se na sala que acabamos de descrever e disse ao padre:

-- Eu desejava, se o não incommodo, dar-lhe uma palavra em particular.

O sobrinho do clerigo levantou-se e sahiu sem esperar que lhe dessem ordem para so retirar.

Ficando só com o seu velho amigo, pelas mãos do qual recebera em criança a primeira communhão, Estevam contou-lhe as suas primeiras resoluções, a loucura que quasi inconscientemente praticara, as luctas intimas que atravessára, e a sua ultima resolução.

O padre abraçou-o com affecto, dizendo-lhe que tinha uma verdadeira satisfação com o seu procedimento. E ajuntou:

-- Não é que mereça gabos por isso: cumpre simplesmente o seu dever e nada mais. Comtudo, por mal de todos nós, vivemos n'uma epoca em que são raros os que fazem o que devem!

A conversa prolongou-se por muito tempo e, quando o marquez se retirou, levou comsigo o prior. Jantaram os dois em Valle Negro, n'uma deliciosa intimidade, conversando em lingua estranha para não serem entendidos do criado. Depois fôram tomar café no escriptorio de Estevam o alli o prior examinou os papeis chegados de Lisboa. Como estivessem conformes, marcou-se o casamento para o dia seguinte de manhã, uma hora antes do passar o comboio, para poderem sahir immediatamente da capella para a estação e pouparem Joanninha aos commentarios o invejas das suas companheiras.

Quando o prior sahiu, tendo-se encarregado de ir pessoalmente fallar a Paschoal de Sousa e a sua mulher e convida-los para padrinhos, o marquez chamou a criada franceza e disse-lhe o que esperava d'ella: vestir bem Joanninha o ensinar-lhe a usar o fato como devia, nos quinze dias unicos que contava demorar-se na capital; se cumprisse bem quanto elle desejava, teria uma gratificação do cem mil réis. A franceza cahia das nuvens com o que ouvia, mas, sem se espantar de coisa alguma, accedia a tudo com aspecto risonho na apparencia, ainda que interiormente estivesse comida de inveja. Depois, Estevam chamou a tia Engracia e disse-lhe que despedisse os criados que entendesse desnecessarios. Ella respondeu-lhe:

-- Todos, menos duas raparigas cá da terra para trazerem a casa convenientemente limpa, e os da quinta que, isso já está visto, não se podem escusar.

No dia seguinte, ás duas da tarde, a noiva, muito linda, de olhos no chão e rosto extremamente ruborisado, entrava na capella por entre alas de criados e do camponozes, ao som festivo dos sinos não só da capella como tambem da freguezia. Era conduzida pelo braço de Paschoal de Sousa, cuja mulher se apoiava ao braço do marquez o ia primorosamente vestida de setim côr de chumbo. Seguiam-se-lhes o medico com a tia Engracia, que eram os padrinhos da noiva.

Havia grande alegria, pasmo o sorrisos entre os espectadores, mas ninguem se atrevia a exteriorisar os seus sentimentos pelo respeito que estavam habituados a ter ao marquez e aos seus convidados. Quando, finda a boda, a noiva entrou no palacio para despir o vestido branco e enfiar um elegante trajo de viagem, os espectadores espalharam-se em grupos pela quinta o commentavam em voz baixa, com abundancia de gestos, o estranho acontecimento.

As carruagens esperavam em frente da escadaria de pedra. A porta abriu-se e de novo o povo o os criados viram apparecer Joanninha com o marquez e os convidados.

Houve um murmurio de lisonjeiro pasmo por entro o qual se ouvia: «Pareco mesmo uma fidalga!» «E' uma perfeita madama!» e outras semelhantes exclamações. Quando ella descia a escada, o jardineiro, lembrando-se de que tanta vez a descompuzera por lhe pisar os canteiros, chamando-lhe estupor de cabra, veio offerecer-lhe, com muitas zumbaias, um magnifico ramo de rosas brancas, dizendo-lhe:

-- Senhora marqueza, permitta que lhe offereça este modesto presente.

Joanninha desatou a rir e disse-lhe com a costumada familiaridade, emquanto elle baixava os olhos, confuso:

-- Marqueza! tem graça! Eu para ti sou e hei de ser sempre a cabra.

E, voltando-se para os outros, accrescentou commovida:

-- E para vocês ficarei sempre sendo a Joanninha. Eu não sou tola. Não mo esquecerei nunca de que comemos á mesma mesa e fui a vossa companheira.

E, pedindo a Annetto que lhe desse um sacco de setim preto muito grande, que ella trazia na mão, distribuiu a todos um embrulhinho atado com fitas de setim côr de rosa e preso n'um botão de flôr de laranjeira.

O marquez olhava-a risonho e admirado, emquanto a turba, enthusiasmada até ao delirio, gritava:

-- Viva a Joanninha! Viva o senhor marquez!

E como a noiva continuasse a affimar que seria sempre para os seus camaradas a Joanninha, Estevam concluiu mentalmente:

-- Não voltaremos tão cêdo a Portugal.

Percebendo a contrariedade de Estevam, o prior apressou-se a terminar aquella scena que começava a degenerar em pathetica, dizendo:

-- Aviem-se, vamos! O comboio não espera.

Meia hora depois, trocadas as ultimas despedidas entre os marquezes e os seus padrinhos, Joanninha,

acenando da portinhola alegremente com o lenço á velha avó, que chorava nos braços de D. Maria da Graça, ia a caminho d'um futuro ridento e prospero, que uma semana antes nem em sonhos havia ousado prever.

O marquez respirava. Estava livre emfim da gente da torra e dos seus commentarios.

Só a criada franceza, notando os modos ainda rudes da sua antiga companheira, ia triste, pensando que n'este mundo mais vale cahir em graça do que ser engraçado.

E achava-se tão excessivamente engraçada quanto infeliz.

Vão lá tirar as illusões a ninguem!

XII

Joanninha compenetrou-se tanto de que precisava apresentar-se como uma senhora para não envergonhar o marido, que, rapidissimamente, á força de estudar as mulheres que encontrou e viu pelas ruas, obteve, senão maneiras distinctas, pelo menos tão naturaes, que não feriam as pessoas de bom tom. Podiam talvez chamar-lhe despretenciosas, mas isso nunca foi defeito. Fallava pouco, e, como o marido, habituado á sua grande verbosidade lh'o estranhasse, ella respondeu-lhe docemente:

-- Sei que fallo mal e não quero envergonhar-te.

O marquez ficou penhorado com ella: todos os dias lhe descobria novos e delicados sentimentos.

O estado physico de Joanninha melhorara muito. A satisfação do seu coração só era empanada pela recordação de Margarida. O marquez quiz sahir de Lisboa quanto antes para evitar o encontro de antigos conhecidos. Despediu a franceza com a gratificação promettida e poz um annuncio pedindo uma

dama de companhia que tivesse mais do cincoenta annos, fosse muito culta e distincta, o não se importasse de viajar. Appareceu-lhe uma irlandeza, baixinha, de cabello grisalho, trigueira, com uns olhos azues apagados, quasi sem brilho, mas distinctissima. Fallando várias linguas com grande facilidade, tocava harpa divinamente e possuia uma soberba voz de contralto a contrastar com a sua fragil figurinha que lembrava um Saxo.

O marquez expôz-lhe com franqueza a sua situação e fechou com ella um contracto vantajosissimo para a pobre criatura: toilettes e viagens pagas e cinco libras mensaes. Logo no dia seguinte, Miss O'Connoll entrou para o Avenida Palace, occupando o quarto immediato ao dos marquezes e, uma semana depois, os tres para Paris, alugando alli o marquez por alto preço uma casa mobilada no boulevard des Capucines, para que o seu primeiro filho não visse a luz do dia n'um hotel.

Miss O'Connell era uma boa o dôce criatura que muito cêdo a familia affastara para longo e obrigara ao mister pungento de ir ganhar pão em torras estranhas. Ao principio escreviam-lhe, mostravam-se affectuosos e agradecidos quando ella lhes enviava alguma lembrança arrancada ás suas necessidades; mas, depois que lhe morreu o pae, os irmãos deixaram pouco a pouco de lhe dar noticias, e ella, notando com profunda magua que era importuna para a familia, retrahiu-se dolorosamente e deixou tambem de escrever.

Nunca encontrara amizade em ninguem. Dedicara-se com affecto ás crianças que tinha educado, mas, ao fim de cinco ou seis annos de vida commum, pagavam-Ihe os seus serviços, mandavam-n'a embora e ella tinha outra vez de ir procurar collocação e, por assim dizer, refazer de novo a sua vida, tentar novas affeições, sem esperança de as conseguir sinceras. Quando ainda muito nova, apaixonara-se loucamente pelo irmão d'uma discipula sua, um bello cadete de cavallaria, noivo, n'ossa epoca, d'uma prima que morreu tysica á força de valsas e do se apertar no espartilho, sem se alimentar como devia, no receio de engordar. O apaixonado moço, que passara junto da irlandeza sem a notar, fez-se padre no auge do seu desespero amoroso, o Miss O'Connell, sem uma lagrima nom um lamento, guardou sempre a sua imagem ciosamente no coração como se elle tambem tivesse morrido. O seu curtissimo sonho, para o qual ninguem contribuira, durara um anno apenas e assombrara-lho toda a vida. Pobre mulher! Nunca mais vivêra. Alma feita para criar fortes affeições, fôra condemnada pelo destino a viver triste e só. Quando o marquez a ajustou, disse-lhe:

-- Se minha mulher se lhe affeiçoar, como espero, a nossa casa será sempre a sua e os meus filhos serão seus netos. Porque o papel, que eu a convido a desempenhar junto do Joanna, é sobretudo o de mãe.

Ninguem, até este feliz momento, lhe fallara nunca assim. Uma esperança nova entrou no coração da pobre irlandeza: a de conseguir enfim uma familia. E com essa esperança voltou-lhe de novo o brilho aos olhos e o sorriso aos labios descoloridos.

Pelo seu lado, a marqueza tinha ancia de achar um coração amigo em que depositasse as suas confidencias, e quo a aconselhasse n'esta vida nova em que ella se sentia completamente deslocada.

Trocaram as suas confidencias, fôram amigas e, quando, quatro mezes mais tarde, nasceu o sr. João Luiz Manuel da Cunha Valladares e Menozes, já Miss O'Connell tractava a marqueza por minha Joanna e Estavam por meu Estevam, e ouvia-se com grande prazer chamar por Jenny, o seu nome de baptismo, que desde os quinze annos ninguem mais lhe dera.

Como Joanna achasse Paris encantador, o marquez resolveu alugar uma casa em Neully e conservar-se em França até que a mulher estivesse completamente digna d'elle e pudesse entrar na sociedade sem lhe fazer vergonha. Realmente, em paiz nenhum elle teria mais facilidade em não ser notado, quando o não quizesse ser, nem mais facilidado em auxiliar pelos olhos a educação da mulher, que elle desejava rapida, pois a via de quando em quando ter verdadeiros ataques de nostalgia, com saudades da patria. Então Jenny lamentava-se, mas com mais razão, por isso que desde os quinze annos não voltara a vêr a verde Erin.

Estevam prometteu-lhe que não regressaria a Portugal sem lhe dar o gosto de voltar a Dublin a vêr e abraçar os seus, se por ventura ainda vivessem.

As cartas da tia Engracia, escriptas pelo prior, eram uma das maiores alegrias da marqueza. Na ultima leu Joanna com verdadeiro prazer o seguinte periodo:

«Bem se diz que Dous escreve, ás vezes, direito por linhas tortas. Tua irmã, que eu tanto receiara vêr infeliz para todo o sempre, ajustou hontem casamento com um figurão, lá da cidade, chamado Luiz Soares. E' militar, filho de gente grada e irmão d'aquella Adelia em que ás vezes ella nos fallava nas cartas. Casa-se na igreja do Bom Successo. Não me convidou para a bôda, mas diz que logo a seguir ao casamento vem qui passar um mez. Posso recebe-los em Valle Negro, ou tenho do os fazer pousar no casal? Respondo. Quem, pelos modos, levou isto muito em desgosto foi o João da Levada, que em vez de ir para o Brazil, como cá disse na aldeia, foi para Lisboa, onde -- coitado! -- andou sempre na pista de vêr a nossa Margarida, um instante que fosse. Esse da tropa, com quem ella casa, era pelos modos o maior amigo do João. Quem sabe tudo isto bem e t'o pode contar melhor do que eu, é a tua madrinha, a fidalga do Adro, que tomou as dôres pelo João e se mostra muito pezarosa, dizendo que o tal Soares atraiçoou o amigo e que não pode ser bom. Emfim, é um rosario que ella entra a desfiar em se lhe fallando no caso, que a gente, ainda que não queira, fica com pena do João.»

A marqueza sentiu uma grande alegria por vêr que o seu casamento não infelicitara a irmã. Mas, olhando para o passado, lembrou-se do seu infantil affecto pelo João. Viu-se em casa d'ello accendendo-lhe o lume, no dia seguinte áquelle em que a tia Engracia lhes contara a conversa com o marquez, e depois, entrando na venda do Lourenço, pondo a trouxa á cabeça e sahindo a cantar com voz de falsete, que ecoava nos reconcavos dos montes

Se me queres dar um fructo,
Eu escolherei a romã;
Mas lê-lhe o nome ás avessas
Porque eu não sou tua irmã.

E, (quantas contradicções se abrigam no coração humano!) teve saudades d'esse dia em que, mal enroupada, com os pés descalços, corria sobre a relva humida de orvalho, cantando como um passarito ao qual tivessem aberto a porta da gaiola.

O marquez veio surprehendê-la embebida n'estas meditações e tendo a carta da avó aberta sobre os joelhos.

-- Em que pensas? perguntou-lhe elle.

-- Na Margarida.

E fitando o marido, para lhe surprehender o minimo movimento d'alma, accrescentou:

-- Vai-se casar.

Estevam teve um sorriso amarello. Não que o seu coração soffrêsse,-- elle adorava a mulher, -- mas porque a sua vaidade de homem sentia-se involuntariamente lisonjeada com a ideia de que sua cunha-

da choraria eternamente a perda do seu amor. Não pôde ser superior áquella rapidissima consolação.

-- Ainda lhe queres! exclamou Joanninha com pena.

-- Não sejas tonta!

-- Eu bem vi o teu involuntario movimento.

-- De natural espanto e, se consentes, direi mesmo de sincero regosijo. A maneira por que andei com ella... custava-me... tinha um certo remorso. Vejo agora quanto era tolo. Estamos quites.

-- Que dizes? A avó pode recebê-los em Valle Negro?

-- Porque não? Nós não estamos lá...

-- Posso então escrever-lhe n'esse sentido?

-- Sem duvida.

O marquez sahiu para o jardimzinho que rodeiava a casa o Joanna ia preparar-se para escrever a sua avó, quando mies O'Connell lhe entrou no quarto.

-- Incommodo?

-- Absolutamente nada, minha querida Jenny.

-- Ia escrever?

-- Não tenho pressa, tanto mais que não estou em boa disposição de espirito.

-- Doe-lhe a cabeça?

-- Felizmente não. Mas, como não tenho segredos para a Miss, vou dizer-lhe com franqueza o que me preoccupa. Estevam não ficou indifferente ao receber a noticia do casamento de minha irmã. Percebi que tinha sentido um forte abalo.

-- Não é natural...

-- Mas é certo... E a precipitação com que sahiu para o jardim foi para se furtar aos meus olhos.

-- Não seja ciumenta, minha Joanna. E' uma terrivel doença.

-- Creio.

-- Pois eu tenho a certeza. Eu tambem na minha vida senti ciumes, o justificadissimos que elles eram. E' o peior dos males... antes morrer.

-- Sabe o que lhe digo, minha amiga?

-- O quê?

-- Não voltarei a Portugal emquanto puder convencer Estevam a viver no estrangeiro. Apesar das muitas saudades que tenho da minha terra, ha qualquer cousa que me diz que uma forte desventura me espera na minha vella a Valle Negro. Não, emquanto puder, não voltarei.

Um vagido, vindo do quarto visinho, obrigou-a a erguer-se precipitadamente e a ir vêr o que era. Momentos depois, voltou trazendo nos braços uma robusta criança a quem dava o seio.

Jenny sorriu-lhe affectuosamente o beijou o pequenino ser com enlevo verdadeiramente maternal.

A Joanninha, que estamos vendo reflectida no espelho, é differentissima da mulher que conhecemos em Valle Negro e em Lisboa. Muito mais magra e esbelta, a figura elegante moldada n'um magnifico espartilho, estava occulta n'um feixe de rendas finissimas que lhe cahiam soltas dos hombros, deixando adivinhar á vista a gracilidade das suas admiraveis formas. Nós de setim côr do rosa enfeitavam

este simples, mas rico trajo caseiro. Olhando-a, tinha-se saudades d'essa outra Joanninha, tão rusticamente bella, com o busto cingido no corpete negro que lhe erguia e opulentava os seios, de saias curtas, pés descalços, cabellos que o vento punha em constante desalinho, e um andar rebolado nas ancas, que era o enlevo dos rapazes que a seguiam na estrada, quando ella passava levando á cabeça uma trouxa de roupa ou uma bilha de agua. O seu typo de belleza era realçado pelo trajo antigo. A sua figura, entre aquellas rendas custosas, lembrava uma papoila ou um malmequer em jarra de oiro ou prata cinzelada.

Ella, que tinha como pouca gente o instincto das cousas, sentia isto, que, é forçoso confessar, a humilhava aos proprios olhos. Suspirava muita vez e achava-se a dizer comsigo:

-- Eu teria sido felicissima com Estevam, se tivesse nascido n'este meio. Mas assim!... é um sacrificio constante em que vivo, ao qual ninguem dá valor e que muito me custa!

E era verdade. Custava. Por muito bem que qualquer criatura se adapte a um ambiente diverso d'aquelle a que está destinada a viver, faz sempre para isso um esforço, embora muita vez inconsciente, mas que nem por isso deixa de se sentir. E não é só ella que o sente: são tambem os outros, os que formam esse ambiente, que soffrem emquanto a criatura estranha não entra perfeitamente no modo de ser geral.

Em todo o caso, os caracteres femininos, mais maleaveis, adaptam-se melhor e mais facilmente do que os dos homens; mas Joanna, por excepção á regra, sentia intimas rebeldias. Na apparencia, pelo muito, que ostimava o marido, conseguia tudo de si, mas no intimo não. Era tão ferozmente selvagem, quanto se obrigava a parecer civilisada.

Sentando-se, continuou dando de mamar ao filho, a que o marquoz não conseguira tomar uma ama.

-- Tinha que vêr! exclamara a marqueza n'um tom impetuoso que lembrava a mão na ilharga, antigo gesto habitual. Se eu, podendo vender saude, dava o meu filho para se criar a peitos estranhos!

-- Mas era muito mais commodo para nós, e...

-- Deixa-lo ser. Fizeste-o, não fizeste? Agora atura-o e não te queixes. É a tua obrigação.

O marquez, sentindo quo no fundo a mulher tinha razão, e que o sou desejo era pela propria consciencia taxado de egoista, cedeu.

Quando, tendo readormecido o filho, voltou a deita-lo, Joanninha disse a miss O'Connell:

-- Espreite da janella, Jonny. Veja so percebe pela attitude do marquez aquillo em que pensa.

-- Não é facil. Eu não sou perspicaz. Olho, está sentado n'um banco e olha fixamente para a porta. Não posso perceber quaes são os pensamentos que o agitam... é impossivel.

Joanninha veiu espreitar por seu turno, observou demoradamente o marido e affirmou sem hesitar:

-- Deve estar pensando pouco mais ou monos isto: «Fui um estupido! Que destino arranjei! E e que não havia escapar-lhe... se não fôsse esta, seria a irmã... Como é que eu não vi os mil inconvenientes d'um casamento tão desigual? Etc., etc., etc».

-- Não seja injusta, Joanna. Creio que elle nunca pensou taes cousas.

-- Pois eu tenho a certeza do contrario. Se visse! A ultima voz que fomos ao Bois, encontramos a duqueza de Alhandra, que esteve uns dias em Paris, de passagem para a Suissa. Foi-lhe forçoso apresentar-me a ella, depois de vêr que a não podia evitar. Que inquietação com que Estevam acompanhou a nossa conversa, sempre no receio de me vêr cometter qualquer inconveniencia!

-- Mas isso não prova menos affecto, nem nada do que, sem motivo serio, pressente!

-- Não provará, mas eu sinto mil vezes ao dia o pêso d'esta sociedade que abomino, feita de tolas convenções, a que tudo fornece pretextos ao escarneo. Tenho, á força de estudo e sacrificio, conseguido que mo poupem. Não dei ainda a meu marido o menor ensejo para notar em mim uma deslocada, mas sinto cem vezes n'um minuto vontade do que eu chamava n'outro tempo atirar com a albarda ao ar.

-- Oh! Então não sente no amor do sou marido a compensação de tudo isso?

-- Não. O amor é uma palavra ôca, sem significação, a não sor quando um desejo carnal, embora inconsciente, lh'a dá. Na ancia de saber, de me aper-

feiçoar, tenho lido muito, miss. Bem sabe, tenho lido tudo. E quanto mais leio, mais besta estou, convencida de que sou, e todos somos animaes educados em alta escola que a nós mesmos alcunhamos de superiores. Seria ridiculo, se não fosse profundamente triste.

-- Não ama então Estevam? perguntou a irlandeza desolada. Não estima a sua velha Jenny?

-- E' conforme. Os meus sentimentos, mesmo os mais fortes, variam conforme as circunstancias, o que prova que no bicho humano nada é estavel, nem serio. Talvez, se continuasse a minha vida antiga sem conhecer os depravadores moraes a que se dá o nome de livros; se não passasse, como passo agora, horas na ociosidade, entregue á analyse dos meus e dos alheios sentimentos; talvez eu tivesse esta apurada raça de macacos em maior consideração. Assim, começo por desdenhar de mim, que adoro Estevam em casa e o odeio logo que os preconceitos sociais estabelecem entre nós distancia; que estimo a miss se condescendo commigo, e a aborreço se me contradiz: que gosto do sol, se quero passeiar, e lhe prefiro a chuva, quando não quero que Estevam saia... Já vê... é tudo tão condicional em nós que, em consciencia, não podemos affirmar cousa alguma. Somos portanto uns animaezinhos extremamente antipathicos. Olhe, o Estevam levantou-se. Apanhou uma rosa e dirige se para casa. N'este momento não minto dizendo-lhe que o adoro. Mas, se ao chegar aqui, depois de me dar aquella flôr, eu

perceber que o casamento de Margarida lhe é desagradavel, odeio-o com tal vehemencia que me paroco impossivel te-lo amado.

Miss O'Connell, passando-lhe a mão pelos cabellos com um gesto maternal, exclamou:

-- Meu pobre camaleão, não passarás nunca de ser um grande selvagem! Tenho muita pena de ti. O que para a felicidade de outra mulher sobraria, nunca bastará á tua!

-- Tambem digo.

E Joanninha, vendo entrar o marido, lançou-se-lhe impetuosamente ao pescoço; mas, prendendo uma das mangas de renda no fecho da porta, rasgou-a toda.

O marquez sorriu, mas murmurou contrariado:

-- Que loucura. Has de ser sempre assim. So tivesses uns modos comedidos e não esse ar de vendaval, não tinhas rasgado o teu lindo vestido.

Joanna não respondeu nada, mas lançou um olhar a Jenny, que esta comprehendeu.

Molestada pela censura, odiava-o. Não sabia meio termo.

Miss O'Connell suspirou e, apanhando do chão a rosa, que propositadamente a marqueza deixára cahir, metteu-a n'uma jarra de crystal.

Joanninha, percebendo na attitude da irlandeza o desgosto pelo seu acto, tornou-o natural, dizendo:

-- Ponha-lhe agua, Miss. Não acabo do ser desastrada!

Esta confissão, n'um tom arrependido, mereceu-lhe um olhar de approvação de Jenny e um carinhoso abraço do marido. Mas, no seu intimo, furiosa por ter annuido ao pensamento dos outros, dizia com profunda convicção:

-- Não poder eu ser eu!... E' impossivel que não acabe por atirar com a albarda ao ar!

E sorria amavelmente ás palavras do marido e de Jenny, parecendo estar nas melhores e mais amistosas disposições de espirito.

São assim as mulheres. Não ha que fiar n'ellas.+

XIII

A gentil irmã de Joanninha, Margarida, que ha tanto tempo deixamos esquecida, impõe-nos o dever de a lembrarmos aos leitores. Deixamo-la no convento do Bom Successo, confrontando no seu pensamento o noivo com o seu ex-namorado. Tudo levava a crer que finalmente seria o pobre artista o enlevo do seu coração. Mas quem quizer fazer previsões do sentimentos está sempre sujeito a errar. Foi o que d'esta vez aconteceu.

O amigo do João começou a acompanhar a mãe, sempre que ella ia vêr Adelia, com o apparente pretexto de trazer noticias a João, mas do facto para vêr Margarida. Não lhe passava pela mente, nem por sombras, atraiçoar o amigo; mas gostava de a vêr, comprazia-se na sua conversa, enlevava-se na musica da sua voz, e João mostrava-se tão reconhecido d'este favor, que entendia, não sabendo ninguem o que se passava no intimo da sua alma, poder, sem quebra do dignidado, frequentar o convento e conversar com Margarida.

As raparigas novas, mesmo as que são mais ingenuas, teem uma vista dupla para perceber os sentimentos amorosos das pessoas da sua idade. Adelia começou notando a assiduidade de seu irmão era visita-la. Primeiro penhorou-se: depois, tendo o rubor que subia ás faces do irmão logo que Margarida apparecia, começou a suspeitar do caso; o finalmente, um dia em que por levo incommodo ella não veiu ao locutorio, teve a certeza.

Luiz ficou de tal modo perturbado, tão taciturno, mostrando involuntariamente tanta inquietação, que Adelia adivinhou o motivo das visitas do irmão e, como nada sabia dos sentimentos que haviam existido, ou subsistiam, entre João e Margarida, contou a esta que seu irmão estava apaixonado por ella e como lho seria agradavel te-la por cunhada. Margarida alvoroçou-se. Luiz Soares era gentil e a farda realçava-lhe o natural garbo.

E depois era rico, vivia rodeiado de elegancias e de conforto, emquanto que o pobre artista só devido á genorosa caridade do D. Maria da Graça podia hombrear com os outros. Eram estes pensamentos que se lhe debatiam no espirito e que Margarida julgava sem consequencias. Estava convencida de que devia casar com o marquez e, talvez por uma natural contradição feminina, desde que se convenceu de que devia, sentiu esfriar todo o enthusiasmo. Desde que o sentimento que o marquez lhe inspirava entrou nas vias do possivel, deixou de ter o interesse primordial que primeiro lhe ligava. Por isso, quando uma tarde, depois de larga conferencia com a Prioreza, D. Maria da Graça a chamou ao locutorio e lhe communicou com grandes rodeios a noticia do casamento de Estevam com Joanninha, a sua grande impressão foi de pasmo.

Depois, cahindo em si, acabou por causar á sua visita quasi a mesma impressão que ella sentira.

-- A Joanninha! Ora a Joanninha! Quem me havia de dizer!... E estimam-se?

-- Muito.

-- Ainda bem. Desejo que sejam felizes.

-- E não tens má vontade a tua irmã?

-- Não, minha senhora. Deus bem sabe o que faz. Eu tambem começava a sentir que não era aquelle o meu destino. Nunca me escreveu nem veiu vêr-me!... omfim, se elle me tivesse amor, teria procedido do outra forma. Ha muito que ou andava pezarosa e dou-me por feliz com este rompimento. Se elle se tivesse arrependido ou apaixonado por Joanninha depois do casar commigo, seria bom peior... O que a Providencia destina é sempre um bem.

D. Maria da Graça e a Prioreza não se cansaram de encarecer esta conformidade christã e Margarida, levada talvez por uma pontinha de despeito, contou tudo á sua amiga Adelia, dizendo-lhe:

-- Eu, que não podia ser indifferente ás attenções de teu irmão, fiquei contentissima.

No primeiro dia em que Adelia pôde fazê-lo, escreveu uma longa carta ao irmão, dizendo-lhe como surprehendera os seus affectos, contando-lhe a his-

toria da Marga, como no convente chamavam a Margarida, e dizendo-lhe que o seu maior empenho seria concorrer para a felicidade de ambos. Ne primeiro domingo em que o irmão a foi vêr, conseguiu passar-lhe a carta furtivamente, o que não foi facil.

Luiz Seares, lendo o que a irmã lho escrevia, rejubilou e, sophismando o caso, censeguiu transigir com a propria consciencia.

Dizia assim:

«Eu tenho o direito de me sacrificar, mas não posso nem devo sacrificar Margarida á amizade que tenho pelos meus amiges, por dedicades e melhores que elles sejam.»

Postas as cousas n'este pé, o resto teve o sou natural curso. Sem animo para dizer na cara a João as coisas como eram, reselvou escrever-lhe e incluir na sua a carta de Adelia.

João respondeu-lhe n'uma folha de papel:

«Tens razão. Escreve-lhe. Se ella to responder affirmativamente, affastar-me-hei do tou caminho sem deixar de me confessar sempre amigo sincero. lnfelizmente, Luiz, os factos não dependem de nós. Somos nós que lhes estamos sujeitos por um mysteriose destino a que não ha fugir.

Sempre teu

João.»

Este papel valeu para Luiz Soares o mesmo que para um escravo a carta de alforria.

Escreveu a Margarida, e, na primeira vez que foi ao convento, conseguiu passar-lho a carta n'uns rebuçados que levou á irmã.

Margarida acceitou a declaração, e a resposta que enviou a Luiz causou-lhe tanto prazer quanto desespero ao pobre João, que deixou de ir á missa conventual e de frequentar a casa dos Soares.

Chegaram as férias grandes e Margarida, obtida facilmente licença da avó, passou-as em casa dos Soares. Ora é preciso dizer que Luiz, ao julgar-se escravo d'uma paixão não correspondida, se entre gara á mais desenfreada extravagancia.

A mãe admoestara-o mais d'uma vez, mas era tudo inutil. E o pae, guardando um silencio precursor do forte tempestade, estendia a viseira e não lhe dirigia nunca a palavra. Porém, assim que Luiz soube ser correspondido o pôde aspirar á ventura que sonhara, mudou immediatamente do conducta. Adelia, habituada pela mãe a contar-lhe tudo, segredou-lhe em confidencia o caso, e esta por sua vez disse-o ao marido que, vendo os bons effeitos quo esse poderoso sentimento tinha no filho, o acceitou gostosamente. E aqui está porque, um anno mais tarde, o casamento se realisava com grande pompa na igreja do Bom Successo. Os padrinhos de Luiz eram seus paes, e os da noiva D. Maria da Graça e seu marido. A avó não fôra convidada a assistir.

Margarida foi a primeira a concordar com o pensa-

mento que ninguem se atrevia a expôr-lhe, e disse a sua futura sogra:

-- Minha avó está muito velhinha. A vinda a Lisbôa causar-lhe-ia um grande incommodo... O melhor é nós irmos vê-la em seguida ao casamento.

-- Tambem acho. Seria uma nota profundamente desagradavel, se ella tivosse qualquer accidente em resultado da viagem.

A sogra exultou. Ter de começar as suas relações com a nora ferindo-lhe as susceptibilidades, desagradava-lhe altamente; mas preferiria tudo a vêr tomar parte na festa a humilde provinciana que ella suppunha exotica.

Realisou-se, pois, o casamento com grande pompa como já disse. As freiras quizeram todas presentear a noiva, e olla foi com seu marido á grade, depois da cerimonia, receber as bênçãos o os mimos das bôas madres.

Todas lhe patentearam grande satisfação, mas, como não suspeitavam de nada, lamentavam a ausencia do inseparavel amigo de Luiz que, havia precisamente um anno, se dizia no estrangeiro para a familia Soares e para o convento.

Luiz, de commum accordo com o seu amigo, resolvera não o procurar mais. João, porém, informava-se d'elle a miudo pelos conhecidos, e não lhe foi difficil saber o dia o hora do casamento. Disfarçado de pobre, assistiu a toda a cerimonia n'um recanto da igreja. O coração estalava-lhe de dôr. Elle nunca, apezar dos factos, se convencera de que aquelle ca-

samonto se realisasse. Esperava sempre um acontecimento imprevisto que viesse collocar as cousas e as pessoas no que elle entendia ser o verdadeiro logar.

No proprio dia, ainda uma louca esperança o animava. Fôra preciso vêr consumar a cerimonia religiosa para que a verdade lhe apparecesse em toda a sua crueza.

Nem uma lagrima nem um gemido lhe escaparam do peito oppresso. Assistia a tudo como n'um sonho. Quando, finda a cerimonia, o sacristão quiz fechar a igreja, bateu-lhe no hombro, e disse-lhe demanso:

-- Meu irmão, são horas de fechar.

Então ergueu-se cambaleando e, atravessando o vasto pateo, sahiu para a estrada.

Eccoava-lhe ainda aos ouvidos o rodar dos trens e o bater das portinholas. Voltou a pé a Lisboa o tomou automaticamente o caminho do seu quarto. Chegado alli, despiu os andrajos de que se cobrira e metteu-se no leito. Uma forte febre se apossou d'elle. As scenas do casamento dançavam-lhe confusamente na imaginação confundindo-se com outras do passado.

Fallava, ria, cantava e ninguem lhe acudia! As suas hospedeiras haviam-se ausentado por dois dias de Lisbôa.

E o desgraçado não tinha amigos? perguntar-me-ha o leitor.

Tinha os seus protectores, mas esses eram da festa. Quando ella terminou, regressaram ao hotel Central, onde costumavam pousar, e ficaram muito admirados de não encontrarem alli João como com elle haviam combinado. No dia seguinte, vendo que eram tres horas e elle não apparecia, Paschoal de Sousa resolveu-se a procura-lo. Chegou á escada quando elle entoava com toda a fôrça dos seus pulmões uma das ultimas arias que ouvira cantar a Margarida. Bateu á porta repetidas vezes e, vendo que elle não abria, metteu-lhe os hombros. O espectaculo que se lhe deparou era immensamente triste. Desgrenhado, com o peito a escorrer em sangue de se arranhar com as unhas, a camisa esfrangalhada, o pobre rapaz estava sentado no leito, com o olhar desvairado e gostos descompostos.

Paschoal chamou-o pelo seu nome. Elle não o reconheceu e continuou cantando. Então, o marido de D. Maria da Graça, não se atrevendo a deixa-lo só n'aquelle estado, desceu ao andar inferior e pediu a um visinho que lhe fôsse chamar um medico e a mulher. Depois voltou a sentar-se junto do doente que com voz apressada contava a sua triste historia, como se tivesse uma pessôa a escuta-lo no sitio vazio para onde dirigia olhares e gestos.

O marido do D. Maria da Graça inteirou-se então de tudo e, quando o medico chegou, pôde informa-lo da causa que puzera o pobre rapaz n'aquelle estado.

-- Está louco? perguntava-lhe Paschoal.

-- Não me parece. É o delirio, que a grande febre que tem, lhe causa. Coitado! Recebeu uma violenta commoção cerebral!

D. Maria da Graça, excessiva em tudo, não quiz que João entrasse para o hospital. Olhava-o quasi

como filho, e os progressos que elle fizera em dois annos de estudo pareciam-lhe verdadeiros triumphos. No seu ultimo anniversario João offerecera-lhe o retrato d'ella em tamanho natural, pintado por elle de memoria. Para technicos era um trabalho cheio de imperfeições; mas para os habitantes da casa do Adro foi uma maravilha que os acabou de conquistar completamente.

Nunca mais o nome de João foi pronunciado sem que o possessivo nosso o antecedesse.

Vendo, pois, doente o heroo dos sous sonhos de gloria, esse filho adoptivo que ella sentira seu desde que lhe salvara a vida, D. Maria da Graça, ainda mais sensibilisada por quanto Paschoal tinha ouvido, sentou-se-lhe á cabeceira, logar que só cedia ao marido, e resolveu disputa-lo á morte por todos os meios possiveis. Quando houve um momento em que o medico quasi perdeu as esperanças de o salvar, ella dizia ao marido lavada em lagrimas:

-- Perdemos os nossos sonhos de futuro. Se elle morre, meu amigo, só nos restará o passado.

Paschoal, que era muito sensivel, pensava como ella, mas não exteriorisava a sua magua nem o seu cuidado senão por phrases como esta, que, para quem conhoce o coração humano, são bem significativas:

-- Se elle escapar, é preciso leva-lo para casa, distrahi-lo, amima-lo... Que diabo! com o que lhe havemos de deixar, o rapaz não precisa de se matar a trabalhar.

-- Pois está claro! concordava a mulher.

João voltou lentamente á vida. Quando pela primeira vez tomou conhecimento de quanto o rodeiava, os seus olhos descançaram em D. Maria da Graça quasi com adoração, e murmurou por entre dentes:

-- Duas vezes, madrinha, é demais!

E rompeu n'um choro impetuoso ao qual se seguiu um somno reparador.

Passados quasi dois mezes, acompanhado dos seus amigos, a quem dava ternamente o nome de paes, partia para Valle Negro, onde ia refazer as suas fôrças tão grandemente depauperadas pela doença.

D. Maria da Graça manifestára receios de que a vista d'aquelles sitios, que lhe iam recordar o passado, lhe fizesse mal.

Mas elle socegara-a, dizendo:

-- O passado está bem morto em mim. Agora é que eu comprehendo que as pessoas não têem geralmente para nós senão o valor que lhes attribuimos, e não o que realmente lhes cabo. A Margarida é uma leviana cuja unica ambição era ser senhora. Uma mulher assim não vale uma lagrima, quanto máis uma doença como a que acabo de ter.

-- Pois sim, mas se a vires...

-- Não vejo. O Luiz tem uma grande alma, apezar de tudo. Ha de ter o cuidado de me poupar o menor dissabor. Quiz a mulher. Não ha de pretender viver na terra. Essa é para mim e não fico peior servido.

-- Não te faltam mulheres com quem casar.

-- E' cêdo para pensar n'isso. O rude golpe que soffri não me deixou muita vontade de criar outras affeições além das suas, porque não encontrarei nunca outras mais puras nem mais sinceras.

-- Isso tambem eu digo, affirmou Paschoal abraçando-o.

D. Maria da Graça, commovida, levou o lenço aos olhos.

Não se pode negar que em todo o peito de mulher ha um coração de mãe.

XIV

A tia Engracia recebera de manhã um telegramma que lhe dizia:

«Partimos hoje, devendo chegar ahi no comboio

das tres.»

«Margarida»

Immediatamente mandára recado á sua comadre Joaquina, a mais habil cozinheira do logar, para vir tomar conta dos negocios culinarios de Valle Negro durante a permanencia dos noivos alli.

Fizera arranjar-lhes os proprios quartos dos marquezes, e vestira-se de pannos largos para os receber.

Estivera primeiro muito embaraçada e fôra á casa do Adro antes de se realisar o casamento consultar D. Maria da Graça. Ella não sabia como se havia de vestir, e dizia afflicta:

-- Se me visto de senhora, causo riso aos da terra. Se me visto de camponeza, envergonho as netas. Não sei o que hei do fazer.

Então D. Maria da Graça, depois de pensar maduramente om tão importante caso, aconselhou discretamente:

-- Conserve o penteiado da terra e modifique os vestidos, não á moda, o que seria causa de riso para todos, mas assim: uso sapatos pretos e simples em vez das tamanquinhas, meias pretas, saia preta com menos roda do quo as das camponezas e muita mais do que as das senhoras, o um casaco preto, curto e largo, que tão bem pode cahir no corpo d'uma senhora, como no d'uma camponeza. Por casa, aventaes pretos: para a egreja, capa toda preta e mantilha. Antes de usar estes dois ultimos objectos, uma semana antes, ha de dizer que lhe foram enviados da cidade pela neta para que lh'os não levem a mal. Agora, para receber os noivos, dou-lhe eu um vestido de seda preta que era da minha mãe e que está perfeitamente nas condições, logo que, para o tornar alegre mais lhe ponha uns punhos do renda branca e cabeção igual, que tambem lho offereço.

E aqui está, como n'um trajo muito simples e perfeitamente acceite pelas duas camadas sociaes com que tinha de conviver, a tia Engracia, seguida do prior, do medico e do pharmaceutico com a mulher, se dirigiu á estação, onde o comboio das tres lhe trouxe a neta, transformada n'uma elegante senhora, e o neto, um garboso official que aos seus

olhos, deshabituados de vêr farda, parecia um ente de essencia superior. Toda a gente da aldeia se deu feriado e correu cheia de curiosidade á estação. Manda a verdade que se diga que, além da bisbilhotice, havia tambem esperança de que Margarida repartisse pelas suas antigas companheiras uns rebuçados iguaes aos que Joanninha lhes offerecera. Mas as suas esperanças foram logradas. Fóra d'aquelle meio ha muito tempo, Margarida nem pensava que as suas antigas companheiras existiam. Quando, na esperança dos ambicionados rebuçados, os camponezes lhe desandaram aos vivas, ella agradeceu com sorrisos e senhoris inclinações de cabeça. Não fallou senão á avó e aos que a acompanhavam, o atravessou por entre a multidão com ademanes de rainha.

-- Esta é que devia ter sido marqueza, murmurou o chefe da estação. Tem o ar arrogante das pessoas que se julgam filhas do sol e netas da lua.

Um murmurio de descontentamento ecoou entre os camponezes mal as carruagens partiram em direcção a Valle Negro. Ouviam-se exclamações como estas:

-- Sempre está uma tola!

-- Olha a delambida!

-- Guarde o seu dinheiro e falle à gente.

-- Lá guardar o dinheiro faz ella, que nos não deu nem cheta.

-- Já está esquecida do tempo em que me ia mondar a horta!

-- Que figurona!

-- Nem salve-os Deus!

Isto diziam os homens e a velhas; mas as raparigas seguiam com olhos deslumbrados a figura de Luiz e trocavam as suas observações.

-- Aquillo é que é um gajo!

-- Mau gosto não tem ella, não.

-- E' melhor do que o marquez.

-- Pois não fostes!

-- Isso é que elle é.

-- Parece um roi.

-- E ella? e ella? Quem é que ha de dizer que é da nossa igualha?

-- Parece mesmo a fidalguinha dos Sobreiros, que Deus haja.

-- Isso parece.

-- Sabes o que te digo?

-- Falla.

-- Atiro fóra a sachola e vou-me para a cidade. Quero cá voltar n'aquelle preparo.

-- Para isso é preciso ter nascido n'um folle o tu nasceste nas palhas.

-- Não desdenhes das palhas que n'ellas nasceu Christo.

-- Então vamos a Valle Negro?

-- Fazer o quê?

-- Uma pinga sempre nos hão de dar.

-- Isso dão, que a tia Engracia não é forreta.

-- Nem tem soberba nenhuma.

-- Lá isso é verdade. E' sempre a mesma para a gente.

-- lsso é que eu não digo, volveu uma velha que devia ter a idade da avó de Margarida. Quando lá vou, nunca me recebe nas salas.

-- Essa é boa! Então ella havia de se servir das salas?

-- Ai! Não! Que ella não recebe n'ellas o senhor prior mái-lo medico...

-- Pudéra! pessoas d'aquellas!

-- Com que então a tia Domingas queria ser recebida da sala, heim?

-- O' Zé, tens de lhe mandar comprar um sofá para a casa de fóra.

-- Espera por essa que já vai.

-- Não é caso para chalaça. Eu não sou menos do que ella.

-- E' por isso que, vivendo quasi sempre na cozinha ou na casa dos engomados, te recebe onde está sem mais aquellas.

-- O' Zé, bota-lhe esteira e compra-lhe espelho.

-- Ora o estardalho! Metta-se com a sua vida que eu para palito não sirvo.

-- Deixa-a, Pedro. Não a faças escamar que quem paga as favas sou eu. Enzoina-me depois os ouvidos toda a santa noite.

-- E' porque não tens atraz da porta um... Calla-te bocca.

-- Coitadinho! volveu a Domingas furiosa. Isto é mesmo só dar!

As raparigas riam, mas uma d'ellas, que sabia a vida negra que o pobre Zé passava, e teve dó do inferno que elle teria de aturar, se a sua cara metade não recolhesse a casa de melhor sombra, exclamou:

-- Então nós ficamos aqui a dar razões, ou vamos vêr se esta dá rebuçados?

Esta lembrança foi decisiva. Todos tomaram apressados o caminho de Valle Negro.

Entretanto havia um bom quarto de hora que os trens, penetrando pela sombreada avenida da quinta, tinham vindo parar em frente da larga escadaria que dava entrada para o andar superior do palaeio, onde estava preparada uma refeição, sobria e elagante. A tia Engracia servira muitos annos a velha marqueza, mãe de Estevam. Era observadora e nada do que vira ou ouvira lhe tinha sido inutil. Além d'isso, naturalmente ciosa da sua prioridade na familia, não estava disposta a abdicar em cousa alguma da auctoridade que julgava ter nas netas. Entrando na casa de jantar depois d'uma toilette summaria, Margarida ficou admirada de vêr a naturalidade com que sua avó se dirigiu e sentou no logar principal, dando a direita ao prior, a esquerda ao medico e indicando ao pharmaceutico a direita de Margarida e á mulher a de Luiz. Reparou no modo por que ella estava vestida admirou-lhe o tacto, e pensou que já estava predestinada para senhora. A sorte é que a não tinha ajudado.

Luiz estava espantado. Margarida, não sabendo qual a recepção que lhe seria feita, tinha-se limitado a apontar o seu modesto nascimento e que a irmã tinha casado com o marquez de Valle Negro,

que tinha sido seu noivo, e nada mais. De forma que Soares não suppuzera nunca, nem a grande fortuna do marquez, que aquella principesca morada accusava, nem á avó de Margarida aquelle ar naturalmente imponente dos que por cousa alguma estão dispostos a abdicar da dignidade propria.

A conversa correu primeiro, como era natural ácerca do casamento, dos presentes de noivado, de mil ninharias feminis. Depois, o prior, ancioso por mostrar a Luiz que era um homem de espirito, levou-a para viagens e arte, o finalmente o medico, em peccado mortal com o systema então vigente, conseguiu fallar de politica e maldizer de tudo, com grandes apoiados do boticario e frouxas contestações do prior.

Quando o lanche terminou, passaram á sala, onde Margarida a pedido do prior cantou, acompanhando-se ao piano, alguns dos trechos sacros que aos domingos cantava no côro do convento.

N'este momento vieram dizer á tia Engracia que os camponezes queriam vêr Margarida e dar-lhe os parabens. Ella hesitou e ia negar-se, quando a avó lhe disse, n'um tom que ella ainda não esquecera.

-- Vai e trata-os amigavelmente. Não deves esquecer que aquelles é que são teus iguaes.

E, chamando uma criada antiga em que tinha mais confiança, mandou dar vinho, castanhas e doce a todos. Margarida desceu. Luiz, percebendo quanto isto lhe custava, não a acompanhou.

Ella dirigiu-se a todas as suas companheiras antigas, tractou-as amavelmente, teve uma phrase amiga para cada uma, mas quando se retirou todas ficaram despeitadas, E uma d'ellas, a mais esbelta e galhofeira do rancho, teve esle dito que foi celebrado por todos os outros com grandes applausos:

-- Sabom vocês? Eu não casaria nunca com um d'estes gravatas. E a razão é que não se importam de nos elevar até elles, mas não descom até nós.

Com vinho á discrição o bailarico não se fez esperar. E, omquanto na sala os noivos conversavam com os seus amigos, cá fóra, ao ar livre, choviam cantigas, cada vez mais picantes á medida que o alcool lhes aquecia o cerebro.

Depois de Margarida ter voltado, a avó foi buscar-lhe o seu presente e o da irmã e do cunhado. O d'ella era um lindo adereço de topazios queimados, que Joanninha lhe enviara para esse fim. O d'esta e do marido era um adereço do brilhantes, todo de margaridas do campo, com diadoma, brincos, pulseira, annel e collar, e n'esto ultimo um pendentif com a palavra «Margarida» oscripta em grandes letras de brilhantes. Era um presente verdadeiramente regio.

O medico e a mulher offereceram um estojo contendo uma rica coberta da China, e o prior, sempre artista e sentimental, um quadro ropresentando o casal em que ella nascera, com a velha avó sentada à porta a fiar. Margarida, áquella inesperada evocação do passado, commoveu-se e abraçou o prior, que a abonçoou paternalmente.

Ao deitar-se na cama que muito tempo julgara que havia de ser sua, Margarida sentiu uma viva repugnancia, que não se atreveu a contar ao marido porque na sua consciencia não conseguia definil-a bom. No dia seguinte visitaram o palacio e as suas dependencias, correram a cavallo os arredores, mas Margarida não se sentia bem alli. Pesavam sobre ella os olhares de todas as suas companheiras e a inveja d'uma aldeia inteira. Ella sentia os commentarios e a malevolencia com que a olhavam atravez dos sorrisos que lhe dirigiam e dos amigaveis acenos do mão. Acabou por confessar ao marido que não se sentia com fôrças para prolongar mais tempo a sua estada alli.

-- Vamo-nos embora quando quizeres, accedeu elle promptamonte.

-- E' que não sei como ha-de ser. A avó conta comnosco um mez. Se percebe que sou eu que quero partir, não me perdoa.

-- Como ha do ser?

Margarida hesitou. Por fim sugeriu:

-- Tu podias dizer a Adelia que pedisse a tua mãe para nos chamar a Lisboa sob qualquer pretexto.

Luiz concordou.

Não se admire o leitor da procipitação com que Margarida queria deixar a aldeia.

E' que, no correio da manhã, havia chegado uma carta anonyma dirigida ao marido, e que ella conseguira intorceptar. Contavam n'ella as peiores calumnias a seu respeito, terminando por esta phrase brutal.

«E o senhor, que, depois de tudo, casou com ella e so não espanta do que encontrou, é porque tem muito boa bocca, como o outro que diz.»

Margarida, afflicta, mostrou a carta á avó e vieram ambas ao convoncimento de que semelhante infamia devia ter sido forjada na venda do Lourenço, chegando a tia Engracia quasi a pôr os nomes áquelles que entravam em tão vil machinaçao. E disse á neta:

-- E' necessario que te vás embora, minha filha. Acordaste violentamente a inveja dos nossos. Não te perdoam que vivas no luxo e na ociosidade, quando elles arrostam uma vida de miseria e trabalho. Estavas votada á mesma sorte. Fugiste a ella e por isso sempre serás perseguida pela sua invoja. Sai d'aqui quanto antes. Elles pertencem quasi todos ao numero dos que não hesitam nos meios para chegar aos fins.

-- Mas sahir d'aqui, como? Se passaram apenas oito dias e eu disse que estaria aqui um mez?

Foi ainda a velha Engracia que ensinou a Margarida o estratagema que devia empregar e que deu o melhor resultado.

Estavam todos os de casa, com o prior e o medico reunidos na estufa, quando chegou a carta do pae de Luiz, pedindo-lhe que viesse a Lisboa por negocio urgente. Tractava-se do arrendamento d'uns foros que elle lhe dora por occasíão das escripturas nupciaes. Era um contracto vantajoso que não se podia fazer sem a assignatura d'elle e da mulher. Partiram.

E Engracia ficou rindo da facilidade com que levara o seu recente neto a abandonar Valle Negro. Dizia ella consigo:

-- Estou muito velha para me contrafazer. Se o marquez acaba por vir viver para aqui, volto-me para o casal. Preciso de socego e sobre tudo de estar á minha vontade. Custa-me a não ver as raparigas, isso custa; mas é melhor assim. Que me diria a Margarida, se, com aquelles ares de princesa que agora tem, eu a mandasse pôr-me um caldo verde ao lume? E a outra? Que se apanhou de titulo? Quando sahiu, apesar dos vestidos, era ainda camponeza de lei. Agora... nas cartas que me escreve, já bota umas taes fallas que ás vezes não a percebo bem. Emfim, elles puzeram-n'as ao seu geito, mas não ficaram ao meu. Isto é que é uma verdade.

E a tia Engracia olhava com desolação para o futuro e via-se completamente só. Como teria sido diverso, se ellas tivossem casado com rapazes da sua igualha, o João, por exemplo, aquelle excellente rapaz que tanto lhe queria! Poderia então ter esperanças n'uma velhice risonha, passada entre a alegria dos novos, amimando os netos e servindo de protectora contra as iras paternas. Mas assim! Uns embonecados em rendas que, logo que começassem a raciocinar, haviam de a olhar com mal encoberto desdem.

--Mais vale só que mal acompanhada, diz o adagio, terminava a tia Engracia n'um tom de intimo consolo, que uma lagrima furtiva desmentia.

E' que a ideia da solidão envolvo um sentimento de desamparo tão triste que é preciso toda a energia d'um sêr para não succumbir a ella, a não ser que a ingratidão dos homens lhe tenha já demonstrado que o melhor e mais sensato meio de se ter paz é viver sósinho. Pode-se morrer só, mas que importa? Não vale talvez isso mais? Ora a tia Engracia fôra toda a vida uma criatura feliz. Emquanto casada, nunca o marido a tratou como senhor á escrava nem lhe deu o minimo desgosto. Viu-o morrer, é verdade; mas a forte e arreigada convicção de quo se reuniria a elle n'um mundo melhor, adoçou-lhe a magua. O mesmo lhe succedeu com a perda da filha e, quando lhe morreu o genro, já se não incommodou, apesar de ser amiga d'elle. Dizia:

--Pois se eu já lá tenho o melhor da minha alma, como é que elle me havia de fazer mingua?

Quando Margarida partiu, já foi differente, embora a deslumbrante situação, que lhe estava reservada, e sobretudo a grande inveja que o facto ia despertar na terra, lhe désse tanta alegria que lhe tirára noites de somno.

Mas depois de Joanna se ter ido embora tambem é que ella soffreu tanto como quando lhe morreu o marido. Disporsos os fumos da vaidade, a razão recuperou o sangue frio e viu que em tudo isto fôra ella quem ficara lograda. Então, fechando-so no seu quarto, chorou muito, e, quando as lagrimas se acabaram, um profundo abatimento moral se apossou d'ella.

Trabalhava mais do que nunca, mas isso, que matava o tempo, não lhe sanava a magua. Quando menos se precatava, a palavra «só» apparecia-lhe na imaginação e estarrecia-a. Depois pensava com ironia:

-- E nem lhes posso pedir para ter commigo um filho d'ellas: não m'o confiariam... e no entanto, na sua meninice, não conheceram outros carinhos além dos meus.

O prior, que tinha tanto de arguto, quanto de bom homem, comprehendeu o que se passava no espirito da pobre velha. A's tardes, depois do seu jantar, tomou o habito de se encaminhar para Valle Negro. Perguntava noticias dos ausentes e, sentado junto do fogão, n'uma commoda poltrona, tomava um magnifico café, que a tia Engracia lhe tinha preparado. O padre sentia-se agradavelmente n'aquella confortavel sala, junto do fogão, pressurosamente servido pelas duas cachopas que estavam sob as ordens da Engracia, e escutado por ellas com devoção. Demais a mais, algarvio o persuadido do que praticava uma obra piedosa distrahindo a tia Engracia das suas tristes meditações, fallava muito, contava casos da passada mocidade, ainda não muito distante, e manda a verdade que se diga que o tempo lhe voava tão rapidamente emquanto fallava, que as suas idas a Valle Negro não envolviam sacrificio; antes pelo contrario. Vamos assistir a uma d'ellas para melhor as imaginarmos.

A tia Engracia, consultando o relogio:

-- São quasi cinco horas, franganitas: toca a ir accender o fogão na sala grande e a preparar o café. Não tarda ahi o nosso prior.

-- O' tia Engracia, olhe que aquella de hontem tinha pilheria, pois não tinha?

A velha abanou affirmativamente a cabeça, e a mais moça confessou:

-- A mim até me doíam as ilhargas do riso que me deu.

-- Que contará elle hoje?

-- Talvez nada. Aquillo um dia ha de ter fim.

-- Espera por essa! Vocês não percebem que elle lê muito? Tem jornaes de todas as bandas, em linguas estrangeiras que elle falla tão bem como a sua.

-- E se um dia lhe faltarem as folhas? perguntou Magdalena.

-- Tem livros. Tanto os que lhe pertencem, como os de cá e os da casa do Adro.

-- Credo! Nem sei como lhe não desanda o juizo com tanta leitura.

-- Deixa-te de pasmos e vae pôr-me o fogo em acção.

-- E' um ai.

E cada uma d'ellas desappareceu por sua porta, emquanlo a tia Engracia apoiando-se á bengala, desceu a esperar a visita, pensando:

-- Se elle um dia não vier, sempre me ha de fazer uma falta! E' que a gente tambem tem necessidade de ter habitos, e este é dos quo não fazem mal mas que custam quando se perdem.

A tia Engracia sentou-se n'um banco rustico perto da porta e ficou-se olhando a estrada através das grades.

Soaram passos do lado opposto, e a velha ergueu-se pressurosa para ir ella propria abrir-lhe a porta. O padre teria quando muito uns cincoenta e cinco annos. Era alto, esbelto, com um typo genuinamente portuguez e um ar saudavel, que é preciso não confundir com o aspecto d'aquelles que só vivem para a mesa.

O padre Martinho era sobretudo um intellectual. Apreciava quanto fosse bom ou bello, mas era exemplarissimo no cumprimento dos seus deveres religiosos, que por cousa alguma descurava. Como se fizera padre? Porque se encontraria n'aquella batina negra, que nunca largava, quando tudo nos dizia que elle fôra criado para as batalhas da vida e para as conquistas do amor? E' o que vamos ouvir-lhe narrar.

Entrando na sala, o padre Martinho, que deixára o chapeu na antecamara, sentou-se ao fogão e, depois d'um prolongado «ai» de satisfação ao enterrar-se na confortavel poltrona, perguntou:

-- Então, tia Engracia, o que ha de novo?

-- Que eu saiba, nada, senhor prior.

-- E de Paris?

-- Não tenho tido noticias. Os novos esquecem-se facilmente dos velhos.

-- Qual esquecem! Isso é scisma.

-- Não o quero contradizer, senhor prior.

As duas raparigas entraram, uma trazendo os jornaes que da quinta do Adro lho mandavam entregar alli por ser mais perto, e a outra o café. A tia Engracia ergueu-se para lh'o servir, o as raparigas esperaram um signal do prior para se sentarem no chão, junto do lume.

A tia Engracia sentou-se tambem.

Emquanto tomava o café, o prior dizia:

-- Muito azeite ha este anno! E' uma benção de Deus!

--Já varejou as suas oliveiras, sr. Prior?

-- Ainda não. Lá para o dia quinze. Quem não anda contente é o José da Custodia...

-- Porquê?

-- Entraram-lhe de noite no olival e fizeram bôa apanha.

-- E' o que acontece a quem se deita de borco e dorme como um porco.

Uma das raparigas informou:

-- A culpa é d'elle. Gabava-se de que ninguem lhe roubava nada, e nunca vigiava o seu.

-- Ah! elle gabava-se d'isso?

-- Gabava. lnda o anno passado, estando o de Almagreira a dizer que andava tresnoitado por passar as noites quasi todas de vela, elle respondeu-lhe a rir:

«Bem faço eu que nunca me ergui para rondar nem olival, nem vinha, nem pomar, por causa d'uma azeitona ou d'um cacho que me possam levar.»

-- Pois d'esta feita não foi azeitona nem cacho: foi alguma cousa mais. Anda pelo visto por dez moedas o prejuizo que lhe causaram.

-- Coitado! E com tanto filho!

Magdalena commentou:

-- Elle tem bom pé de meia, não lhe faz grande falta.

-- Tambem digo, concordou o padre.

-- Mais café, senhor Prior?

O padre estendeu a chicara.

-- Obrigado, tia Engracia.

-- Veja se está bom de assucar.

-- Uma colher mais não o prejudica.

-- Assim?

-- Bem, muito bem.

O prior bebeu a chavena d'um trago e, depois de a pousar sobre a bandeja, desdobrou os jornaes e passou-os pela vista. As raparigas conversavam baixo entre si, e a tia Engracia pegou na meia que interrompera. Quando, lidas as noticias, o prior guardou a luneta, Magdalena, como mais ousada, perguntou:

-- Então, senhor prior, não nos conta hoje nada?

-- Que lhes hei de eu contar?

A tia Engracia disso:

-- Se eu não tivesse receio de que me chamasse curiosa, pedia-lhe que me dissesse o motivo por que seguiu a vida de padre.

-- Queria então que eu lhe contasse nem mais nem menos do que a historia da minha vida, heim?

-- Conte, senhor prior.

-- Conto, conte.

-- Pois bem, lá vae.

Depois d'um instante de recolhimento, começou:

-- Nasci em AIjezur, n'uma pequenina e bonita villa algarvia, e alli vivi até á idade de onze annos em que me mandaram para casa d'um tio residente em Lisboa, para me educar.

«Esse tio era senhor de opulentos haveres e não tinha comsigo ninguem de familia, nem mostrara affeicão forte por ninguem. Já não era novo, e podia dizer-se, sem receio de mentir, que vendia saude. Recebeu-me bem, mas sem exaggeros: pelo meu lado mantive-me nos limites da mais estreita cortezia. Um dia meu tio queixou-se de perturbações cerebraes e mandou vir o medico, que lhe receitou varias drogas, com as quaes elle pareceu recobrar o seu optimo estado habitual. Findara eu n'essa epoca os preparatorios do lyceu, em que tive sempre distincções. Meu tio não mostrou nenhuma alegria por ellas e foi com a maxima indifferença que me viu partir para Aljozur depois de sete annos de convivencia constante. A ideia de meus paes era mandarem-me para Coimbra. Quando chegou outubro, para lá parti. Mas imaginem qual não seria o meu espanto quando, ao chegar áquella cidade que me sorria de longe com acenos de pandega e liberdade, deparo com meu tio na estação. Disse-me simplesmente:

-- Vem para minha casa.

-- Pois o tio está aqui?!

-- Estou. Tanto me faz viver em Lisbôa como em Coimbra. Resolvi por isso vir aqui passar o tempo do teu curso.

Havia n'isto uma prova inegavel de amizade sincera que me commoveu, tanto mais que eu o suppunha o mais egoista e indifferente dos homens. Com a expansão propria do meu caracter juvenil lancei-lhe os braços impetuosamente ao pescoço chamando-lhe «querido tio». Elle sensibilisou-se.

Fui, durante esses annos de Coimbra, rapaz estroina e bulhento como os outros. Tive varios amôres, mas apaixonei-me a serio por uma rapariguinha muito doente, pallida e triste, quo não era bonita, mas que me fallava ao coração como nenhuma outra até então fizera. N'este meio tempo morreu meu tio, deixando-me inesperadamente herdeiro de todos os seus bens. Meus paes eram pobres. O seu maior sonho de ventura era obter para meu pae um emprego em Lisboa, que permittisse virem todos viver para a capital, que os fascinára desde a primeira vez que a visitaram. Eu já a essa data contava vinte e dois annos. Escrevi-lhes, pois, dizendo-lhes que tinha conseguido o desejado emprego e que meu tio morrêra com testamento, o que não aproveitava á família. Mandei-lhes meios para a partida e vim espera-los á cidade. Não se descrevo a alegria do meus paes quando viram o testamento, e me souberam herdeiro da grande fortuna.

-- E o emprego? qual é o emprego? perguntava-me minha mãe.

-- O emprego, respondi-lhe eu abraçando-a, é alugar uma bôa casa, administrarem-me a fortuna e tomar bons mestres a minha irmã. Quando eu casar, o

que será breve, terão de repartir alguma cousa commigo.

Conclui o curso e pedi em casamento a mulher que amava. Ella morreu sem que eu tivesse podido chamar-lhe minha. Foi uma dôr tão grande que decidiu de todo o meu futuro. Abandonei a fortuna a meus paes e a minha irmã, e consolei-mo no amor de Deus e dos seus pobres, convencido de que a felicidade na terra não era para mim. Ora aqui tem, tia Engracia, a razão por que me fiz padre, do que não estou arrependido. Tenho paz de espirito, o unico bom que talvez é possivel e que a maioria das pessôas desdenha.

Magdalena exclamou com grande sinceridade:

-- Então o senhor prior foi um homem exactamente como os outros?!

-- Sem tirar nem pôr.

-- Pois não parece... Julguei quo tinha sido sempre assim.

-- Olha o disparate! exclamou a outra. Querias talvez por hi que elle já nascêsse de oculos.

-- O' senhor prior, e depois que pensou em se casar nunca mais teve olhos para outra mulher?

-- Essa pergunta, tia Engracia. não é propria da sua perspicacia. Nos olhos d'um rapaz de vinte annos ha logar para todas as bellezas e no seu coração para todas as mulheres.

-- Não comprehendo então para que se fez padre.

-- E' facil: aquella valia por todas o as outras todas não a valiam. Bem: isto de evocar recordações nem sempre é agradavel. Estas para mim são muito

tristes. Mas lá vai uma alegre para desfazer pezares. Quando eu tinha vinto annos, era um rapaz todo pimponaço, que gostava de se admirar ao espelho e de fazer destroços nos corações femininos. Um dia, recebo uma carta muito perfumada, escripta em papel côr de rosa, na qual me diziam que uma mulher, fortemente apaixonada por mim, me pedia uma entrevista. Eu não era santo; fui. Encontrei uma criatura elegante, embrulhada n'uma capa preta e com o rosto velado por uma mascara.

-- Que vem a ser isso? perguntou Magdalena.

-- E' uma careta: não conheces tu outra cousa! accudiu a outra.

-- É. Mas esta de que lhes fallo não era como aquellas que se usam para cá. Era toda de velludo preto e tapava-lhe completamente o rosto. Pedi-lhe que a tirasse. Não quiz. Voltei a vê-la o, n'um impeto de curiosidade, arranquei-lhe a mascara. Fui punido. A mulher que eu julgava um encanto era... imaginem o quê.

-- Bexigosa?

-- Qual!

-- Céga?

-- Tambem não.

-- Vesga ?

-- Peior, muito peior.

-- Então não sei.

-- Era preta, inteiramente preta!

-- Ah! Ah! Ah! casquinou com gosto a tia Engracia secundada pelas suas duas companheiras.

-- Isso é que é uma entrega!

-- E que fez?

-- Fugi. Deitei a correr com tal precipitação que não sei o caminho que segui. Achei-me em casa como por encanto!

-- E nunca mais soube d'ella?

-- Nunca mais. Mas o que é estranho é que, depois da minha noiva, foi a preta que me deixou no espirito mais saudosas recordações.

-- Então para que fugiu?

-- E' que não resisti a vêr e a saber que ella era negra. Assim succede muita vez na vida com as apparencias moraes. Achamo-nos attrahidos para as criaturas, julgamo-l'as pelas exterioridades e vamos para ellas de braços abertos; mas eis senão quando, as qualidades moraes apparecem, senão de repente, a pouco e pouco em toda a sua hediondez, e... fugimos d'ellas com a mesma pressa com que eu fugi da preta. Muitas vezes esse conhecimento dá-se tarde demais, e eis a razão por que n'este mundo ha tanto homem e tanta mulher presos eternamente a outros que os não podem tolerar.

-- Têem a alma preta como o rosto da sua amada.

-- Coitados! E não têem, como eu tive, a liberdade de fugir. Bem, são horas. Vou-me chegando até ao presbyterio. Deus lhes dê bôas noites.

-- Boa noite, senhor prior.

-- Adeus, tia Engracia.

-- A sua benção.

-- Eu vos abençôo, minhas filhas.

E o padre Martinho retirou a pasao largo para o presbyterio, onde o sobrinho o esperava para lhe ensinar as lições.

-- Demorou-se, meu tio!

-- Que queres, rapaz? quando o passado nos empolga, somos insensiveis ao presente e desdenhamos o futuro.

E dirigiu-se para a capella a fazer as suas orações da noite.

XV

Emquanto durou a criação do filho, a marqueza não pensou em sahir nem em divertimentos. Estevam ia só a toda a parte e ella ficava embalando o berço e conversando com Jenny. Mas não ha nada peior do que ferir a vaidade feminina. Uma magua intensa dormia falsamente no coração de Joanninha. Aquella apresentação á duqueza de Alhandra no Bois, em que tão visivel lhe fôra o receio que o marido tinha de a vêr cometter qualquer inconveniencia que fôsse ferir as attenções dos que se prezam de saber viver, a pressa com que retomara habitos mundanos desde que tivera a certeza de que a mulher o não acompanharia ás festas, tudo isso a susceptibilisara cruelmente e lhe fizera nascer no espirito a ideia da vingança. Não d'uma vingança torpe que a sua alma não percebia, mas d'uma vingança digna d'ella.

-- E' preciso, pensava Joanninha, que elle, quando fallar commigo, perca o habito, que adquiriu, de jul-

gar que falla a uma criança prestes a cahir, se lhe não acodem.

Era o segundo anniversario do pequenito. Estava tudo em festa na pequena e alegre casa de Neully. Um almoço intimo reunia os amigos de Estevam em Paris e... nenhuma senhora. Joanninha, maguadissima, mas som o dar a conhecer, foi gentilissima durante todo o almoço e, quando elle acabou, disse ao marido:

-- Não venhas tarde. Convidei para jantar Laura Rentini, que está de passagem com o marido em Paris, Maria Pereira da Cunha e a duqueza de Alhandra, que chegaram hontem e tiveram a gentileza de me vir vêr immediatamente.

-- Não me disseste nada! exclamou Estevam visivelmente contrariado.

-- Nem admira. Não me parece que as visitas que recebo ou retribuo sejam assumpto digno de menção.

-- Contraria-me... essa ideia de as teres convidado a jantar... Podias escrever-lhes, dizendo que uma subita indisposição...

-- Não comprehendo o motivo por que hei de proceder assim.

Elle, muito terno, volveu-lhe:

-- Gostava de jantar em familia, só com vocês... Era mais intimo, mais...

-- Não prosigas. Trouxeste para almoçar os teus amigos: é justo que eu tenha para jantar as senhoras de quem desejo fazer amigas.

O ressentimento colorira as faces de Joanna e o

brilho de lagrimas, prestes a soltarem-se, velava-lhe o olhar.

O marquez percebeu que fôra longe de mais e que ella vira fundo no seu coração. Abraçou-a ternamente, murmurando n'um tom a que as mulheres dificilmente resistem:

-- Perdôas-me, sim? Não julguei maguar-te.

N'essa tarde, Joanninha, com a sua figura elegante

moldada em seda cinzenta, recebia as suas visitas com a distincção que era de esperar da mulher que usava o aristocratico e antigo titulo de Valle Negro. Foi seductora de graça no desempenho dos seus deveres de dona de casa. O marquez estava radiante, Jenny vaidosa como se Joanna fôsse realmente sua filha, e a duqueza de Alhandra retirava-se convencida de que em Lisbôa lhe tinham mentido quando afirmaram que o marquez casara com uma criada de lavoura. A' sahida, enfiando o braço no de Maria Pereira da Cunha, murmurou-lhe ao ouvido:

-- Que achas d'isto tudo? Acreditas que esta criatura fôsse uma criada de lavoura?

Maria da Cunha, mais habituada a estudar o seu semelhante do que a duqueza, apesar de muito arguta, respondeu:

-- E' possivel. A educação transforma completamente as criaturas.

-- Ministrada desde tenros annos, convenho; mas assim, depois de mulher, não creio.

Desde esse dia o marquez perdeu o receio de apparecer em publico com sua mulher. E Joanna, a quem

não era indifferente ouvir-se chamar senhora marqueza, começou uma vida inteiramente nova. Tornou-se garrida. Gostava de parecer bonita e de que lhe dissessem que o era. Frequentava todo o genero de divertimentos e entregava-se ao sport com viva furia.

O marquez que, apesar de novo ainda, adquirira, pela longa permanencia no campo, habitos caseiros, desde que tivera a certeza de que a mulher não o envergonhava diante do mundo, perdeu o desejo de o frequentar, tão constante é sempre nos sêres humanos, e especialmente nos homens, o espirito de contradicção.

-- Vamos dar uma volta, Estevam ? perguntava Joanna, entrando no escriptorio do marido, já com o chapeu na cabeça e a calçar as luvas.

-- O' minha filha, por muita vontade que tenha de te acompanhar, é perfeitamente impossivel. Estou extenuado. Bem me custa, mas é forçoso confessar-te que não posso andar constante mente n'esta roda viva! Não tenho pressa nenhuma de morrer.

-- Acredito-te. Mas, pela natural razão de que não achas graça aos divertimentos, porque já te divertiste muito, não hei de eu privar-me do que me agrada. Até logo.

-- Porque não levas Jenny?

-- Quem tomaria conta do pequeno? Bem sabes que o não confio das criadas. Adeus.

E, dando á pelliça uma posição que lhe pareceu mais elegante, desceu a escada com passo estudado,

seguindo depois pelo boulevard, com uns modos de rainha que lhe não ficavam mal.

Esqueceu-me dizer que elles tinham vindo de novo morar no boulevard des Capucines desde que Joanninha fôra atacada da febre do prazer.

O marquez aproximou-se da janella e ergueu o estore, pensando:

-- Quem te viu e quem te vê! O que eras... e o que eu te fiz!

Quem pudesse penetrar-lhe o pensamento, medir-lhe a intensidade, e traduzir-lhe realmente o sentido das phrases, ficaria profundamente admirado. Não era orgulho nem vaidade; ora. .. um mixto de indifferença e desdem. Vendo-se á luz da propria consciencia, Estevam pensava:

-- O meu primeiro casamento foi um acto rasoavel. O segundo... um quarto de hora do animalidade que todos temos na vida. Une nos a belleza e a atracção physica, mas nunca as nossas almas se encontrarão, porque, na classe a que Joanninha pertence, não existem almas, ou, se as ha, são differentes da minha, pairam n'um mundo inferior. Não ha duvida que tenho uma linda boneca, mas não possuirei nunca uma mulher. Pobre Mafalda! Por quem eu te substitui!

A marqueza já nós sabemos como pensava. Se o casamento d'estas duas criaturas não falhara, era porque nenhuma d'ellas encontrara no seu caminho alguem que sinceramente lhes agradasse.

Os annos passavam e elles não arredavam pé de Paris. Apenas, para satisfazer o grande desejo de miss O'Connell, passaram uns mezes na Irlanda, onde ella, apesar dos annuncios que fez inserir em varios jornaes, não encontrou familia.

O marquez começou a queixar-se de dôres e consultou os melhores medicos. Soube que tinha uma lesão cardiaca e que precisava ter grandes cuidados com o seu estado, embora não fôsse ainda de extrema gravidade.

Joanninha, que, apesar de leviana, tinha um grande fundo de bondade, reformou os seus habitos e rodeou o marido de disvelos. Foi tudo em vão.

O mal aggravava-se de dia a dia e, justamente n'uma tarde em que se sentira melhor, morreu quasi instantaneamente, sem ter tornado a Portugal, nem e desejando fazer, com receio da convivencia com os plebeus de Valle Negro. A marqueza conheceu então que era mais amiga do marido do que ella julgava.

Soffreu, chorou, arrepelou-se (nas grandes crises de dôr e de alegria ha sempre uma involuntaria regressão ao meio) e, mettendo o filho, que jà contava onze annos, n'um dos melhores internatos francezes, resolveu que a Portugal e levar comsigo o cadaver do marido para o depositar no jazigo de familia em Valle Negro. E pensava, atacada d'uma febre de justiça:

-- Coitado! Expatriou-se por minha causa. Seria mal feito deixar-lhe dormir o ultimo somno em terra extranha.

Jenny acompanhou-a e chorou Estevam como so realmente elle fôsse seu filho.

Foi grande o desgosto da marqueza ao separar-se do pequeno, que era agora o seu grande affecto; mas o orgulho e a vaidade haviam-se dosenvolvido n'ella por tal fórma que não tinha animo de lhe mostrar quanto a sua origem era inferior á do marido.

-- Mais tarde, muito mais tarde,-- quem sabe? -- talvez eu possa vender Valle Negro e, se o conseguir, elle não chegará mesmo a suspeitar a verdade.

Vender Valle Negro! Como os sentimentos máus são irreflectidos! Valle Negro, a origem do titulo de seu marido ha bons seis seculos! Valle Negro que o vira nascer e que, apesar de modernisado, trahia a cada passo a sua antiguidade atravez das novas roupagens, como uma cara de mulher velha se trahe atravez dos cremes e das tintas com que, sem illudir os outros, consegue ainda parecer bem. Ah! se o defunto marquez ouvisse aquillo! se o pudesse impedir!

E pôde.

Mais intelligente do que a mulher, á medida que a doença avançava, não podendo empregar-se nas suas habituaes distracções, dera em psychologo. Estudara cuidadosamente o caracter de Joanninha e percebera que Valle Negro era o seu pesadelo. Comprehendeu-Ihe a causa e pensou:

--Se ella pudesse, aliena-Io-ia.

Por uma natural successão de ideias acudiu-lhe o pensamento seguinte:

-- E se eu morresse?

A tentativa de vender Valle Negro não lhe offereceu duvida. Seria certamente posta em pratica e, como elle não queria isso, fez um testamento no qual só seu filho, depois de ter attingido a maioridade, o poderia fazer, e incluiu-o na sua terça para que, caso elle o tentasse, a terça revertesse a favôr dos seus parentes collateraes.

Quando a marqueza tomou conhecimento do testamento, teve um real desengano, mas não pôde deixar de exclamar convencida:

-- Como elle me conhecia bem!

E como não era criatura que pudesse habituar-se à ideia de perder cousa alguma, resolveu-se, visto que o não podia vender, a habita-lo, a ir viver alli no pé em que os antigos marquezes viviam, tractando os camponezes a muita distancia, mas fazendo-se perdoar este proceder por habeis e reguladas generosidades.

Como se enganava! Por muito rudes que elles fossem, tinham um coração e, bem que ninguem ainda lhes tivesse prégado a igualdade, o instincto dizia-lhes tantas coisas!

Não ha compendio de moral mais perfeito do que aquelle que, sem palavras, temos gravado na nossa consciencia.

XVI

A tia Engracia consternou-se ao receber a noticia da morte do marquez. Andara com elle ao collo, adormecera-o nos joelhos contando-lhe historias e, se sempre lhe quizera, desde que Estevam se tornára seu neto, tinha por elle um verdadeiro culto.

Sabendo que a neta vinha para Valle Negro não se alegrou. Já não era Joanninha que chegava. Era a nova marqueza que lhe enviara o seu ultimo retrato de Paris, no qual ella procurára em vão, anciosamente, um traço da sua Joanninha. Desejou mudar para o casal antes da sua chegada, mas receou dar que fallar no povo.

Resolveu portanto esperar, encommendando-se com devoção á Senhora das Dôres para que lhe não desse um fim de vida attribulado.

Joanna chegou sem se annunciar. Ella e miss O'Connell percorreram a pé os quatro kilometros a que Valle Negro se encontra da estação. Quando se appro-

ximaram da grade que rodeava a quinta, Lobo, o cão predilecto de Estevam, reconheceu-a, e começou a ladrar furiosamente, dando repetidos puxões á corrente.

A tia Engracia fallou-lhe de dentro de casa para o acalmar, mas, como nada conseguisse, sahiu a vêr o que o punha em tão grande agitação.

N'esse momento, mettendo a mão atravez da grade, Joanninha tentava abrir o portão.

-- Tu! exclamou a tia Engracia não crendo nos seus olhos. Pois és tu! Bemdito seja Deus que não morro sem te vêr!

E dirigiu-se apressada para o portão. Mas antes que alli chegasse, a marqueza tinha conseguido abril-o o corria para ella com alvoroço verdadeiramente infantil. A vista dos sitios da sua mocidade, tão pobre e tão ridente, commoveram-na.

Sentiu-se a mesma que d'antes era, e foi com o tom de outros tempos que exclamou:

-- Venha de lá um abraço valente, d'esses que custam a supportar de pé.

A tia Engracia chorava commovida.

-- E's tu! és tu! Os ares da cidade não te mudaram como á Margarida!

Subiram ao primeiro andar. Joanninha percorreu varias casas tendo a lembrança do Estevam a perseguil-a. Por fim, entrando no escriptorio, não pôde conter o pranto recordando-se da immensa alegria que sentira quando elle lhe dissera que casava com ella, e da grande gratidão, que não seria facil desvanecer,

que se lhe arreigara fortemente no espirito. Sentou-se alli, e só então reparou que não apresentava Jenny a sua avó. Fê lo com tanto tacto que concorreu para que as duas mulheres se estimassem desde logo. Depois conversou, perguntou por todos da terra e só se decidiu a ir jantar depois de sua avó ter despejado o saco das novidades.

Eram isto oito horas da noite. O prior n'aquelle dia não apparecera em Valle Negro. Eram os annos de João e fôra convidado a ir jantar ao Adro.

-- Então o João vive agora no Adro?!

-- Ha já rnuitos annos. Não t'o mandei dizer?

-- Não, nunca me fallou n'elle.

-- Pois desde que casou tua irmã, os do Adro adoptaram-no como filho.

-- Ainda eu cá estava quando elles lhe proporcionaram os meios de ir estudar para Lisbôa.

-- Bem estudou elle! Foi mas foi na piugada da Margarida e, quando a viu casar, deu-lhe uma tal febre que o poz ás portas da morte. Foi então que o snr. Paschoal, depois de o procurar por toda a parte, o encontrou desamparado e como doidinho, n'uma casa onde não estava uma alma christã que lhe matasse uma sêde d'agua. Então a tua madrinha, com aquella caridade que tu lhe conheces, sentou-se-lhe á cabeceira e não veio de lá sem o trazer comsigo. Vê-lo quando chegou era uma dôr d'alma... as faces chupadas, os olhos encovados, os labios sem côr... um cadaver. O coveiro velho, mal o viu, murmurou:

-- Parece-me que ainda hei-de ser ou que te hei-de deitar em cima a primeira pá de terra.

-- Crédo! Que agouro!...

-- Enganou-se. Primeiro foi elle, jã faz pelas cerejas três annos.

A conversa prolongou-se. Joanninha, com grande pasmo seu, sentia-se como o peixe n'agua.

No dia seguinte vieram visita-la todas as notabilidades da torra e o povo em peso. Ella foi muito amavel com todos, mas, lembrando-se do filho, tratou de erguer entre si e os seus antigos companheiros e companheiras a muralha das conveniencias sociaes.

João veio tambem com os seus paes adoptivos.

-- Como estimo vê-la, senhora marqueza! Não esperava tornar a ter esse gosto...

E João, muito corado, balbuciava.

Ella desatou a rir.

-- Senhora marqueza! Enlouqueceste, João? Esqueces-te de que eras o meu melhor amigo quando eu era pequena?

-- Não esqueço, mas...

-- Pois então chama-me como d‘antes, porque eu não estou disposta a tratar-te de outro modo.

-- Já viste tua irmã? perguntou-lhe D. Maria da Graça.

-- Não, minha senhora... E, se quer que seja franca comsigo, dir-lhe-hei que não tenho vontade de a vêr. E' estranho, mas é verdade. As circumstancias da minha vida complicaram-se de fórma que me deram as apparencias de lhe ter roubado o noivo. Ella

decerto m'o não perdoou, embora se tenha consolado depressa. E eu, que no fundo da minha consciencia não tenho nada que me peze, confesso-lhe que me não sentiria á vontade diante d'ella.

-- Mas quando Margarida souber que vieste, não deixará de te vir vêr...

-- Não vem. Tem mêdo que agora, que estou viuva, lhe tire o marido como tirei o noivo.

-- Atribues-lhe uma malevolencia que ella não tem.

-- Perdão, atribuo-lhe aquella que é natural ter depois de quanto se passou.

-- Demora-se cá muito, Joanninha? perguntou Paschoal.

-- Não... ou antes, sim. Faço tenção de vir para aqui viver. O cadaver de meu marido deve chegar na proxima semana. Não fiz annuncios nos jornaes nem farei convites. A' carta, que Margarida me escreveu, respondi de lá e vim no mesmo comboio que a trouxe. Não lhe disse que passava por Lisbôa.

-- Não te zangas, Joanninha, se eu te fizer um reparo?

Esta pergunta era da avó.

-- De modo algum.

-- Acho que tu não dás o verdadeiro peso ao desgosto que soffreste.

-- Porquê?

-- Pois perdêste o marido ha pouco mais de mez e meio, manda-lo empalhar para poder fazer a viagem

quando te parecer, terminas com todo o socego os teus arranjos em Paris e, depois de o despachar como um objecto de arte, vens adiante recebê-lo, com o mesmo ar com que aquelle sabio inglez que teu sogro hospedou, levou d'aqui um macaco para offerecer ao museu de Londres!

Todos desataram a rir incluindo Joanna, que, passado esse accesso de hilaridade, soluçou:

-- Engana-se, avó. Chorei muito quando Estevam morreu. Fiz até mesmo uma grande gritaria á moda cá da terra; mas depois, acalmados os nervos, cahi n'um estado de atonia que é natural. Não faço alarde da minha magua porque entendo que, desde o momento em que ella se não pode remediar, é forçoso acceita-la. De nada servem queixumes.

-- lnfelizmente, suspirou D. Maria da Graça.

-- E olhe que separar-me do meu filho, n'este momento, não me foi menos doloroso.

-- Acredito. Eu, que não sou mão do João senão pelo affecto que lhe tenho, nem a brincar acceito a ideia d'uma separação.

-- Eu o que não percebo é porque deixaste lá o pequeno.

-- Quero que elle tenha uma optima educação e com toda a minha bôa vontade, mesmo ajudada por Jenny, eu não saberia dar-lh'a.

-- Quer não, mas deixar o rapaz assim, só, a tantas leguas!

-- A' mais pequena cousa que elle tenha fazem-me um telegramma e parto immediatamente.

Estava n‘este pé a conversa, quando a porta se abriu e entrou o prior.

-- Ora venha de lá esse abraço, Joanninha. Quem me havia de dizer que a havia de vêr viuva e ter eu, muito mais velho que o marquez, de lhe rezar as encommendações. Altos designios de Deus! Deixe-me vê-la bem. Está mais alta e mais bonita, não é verdade, João?

João corou e não respondeu, mandando intimamente o padre ao diabo por lhe fazer perguntas que elle taxava de inconvenientes.

Miss O'Connell, vendo entrar o prior, empallidecera. Quando, depois de fallar a todos, elle se curvava diante d'ella, olhando para a marqueza como quem espera uma representação, miss O'Connell estendeu-lhe a mão, dizendo, n'uma voz que em vão se esforçava por parecer serena:

-- Não se lembra da mestra de sua irmã?

-- Oh! Desculpe-me, miss O'Connell; mas estava tão longe de a encontrar aqui...

A marqueza instou com todos para que jantassem em Valle Negro, para, dizia ella, lhe disfarçarem a tristeza forçosa da chegada em taes condições. Accederam ao convite. Durante a refeição Joanninha teve de ouvir D. Maria da Graça descrever-lhe minuciosamente a doença gravissima e as innumeras habilidades do afilhado. Quando todos se retiraram, a marqueza disse a Jenny e a sua avó:

-- O que faz a educação o um bom alfaiate! Podia ver João em qualquer parte que o não conhecia.

-- Estás como eu, quando elle chegou. Não me fartava de o olhar.

Com o pretexto do contar cousas da aldeia, escreveu a tia Engracia uma longa carta a Margarida, dizendo-lhe que a irmã estava em Valle Negro, mas, devido ao estado de espirito do afilhado de D. Maria da Graça, adiavam ambas prudento e caridoso que ella não viesse a Valle Negro, nem o marido. Quando Joanna fosse a Lisbôa não deixaria de a procurar. Nas entrelinhas d'esta carta julgou Margarida vêr uma acintosa indifferença da parte da irmã e queixou-se ao marido.

Elle volveu-lhe:

-- Conheces ainda pouco os homens e o mundo. Ella, que te roubou o noivo, é que se retrahe porque não se sente à vontade junto de ti. O mesmo me acontece com o João, apesar de ter usado com elle d'uma relativa lealdade.

-- Pois sim, mas tu não és irmão d'elle. Depois d'uma ausencia de annos, não desejar vêr-me! Custa!

-- Tens razão; mas o melhor é procurar esquecer que tens uma irmã.

-- Era isso o que fazias, se Adelia procedesse assim comtigo? perguntou Margarida incredula.

-- Decerto. Eu procuro sempre corresponder aos outros com sentimentos identicos aos que lhes inspiro.

E beijando a, concluiu:

-- E' por isso que te adoro.

As lagrimas de Margarida seccaram como por en-

canto. Ella era felicissima com Luiz o com a familia d'elle, com quem ficara vivendo. A sogra não fazia differença entre ella e Adelia, e o sogro tinha por Margarida grande estima e muita consideração. Modesta, com um caracter sério, se a sua imaginação de rapariga borboleteara um pouco, quando solteira, o casamento fixou-a.

Amava o marido apaixonadamente, mas escutando attenta os conselhos da sogra, que tinha larga experiencia do soffrimentos intimos, tinha com elle uma grande reserva, não lhe deixando nunca facil leitura no seu espirito nem no seu coração.

-- Cautella! bradara-lhe a mãe de Luiz: Mulher comprehendida é mulher vencida, e mulher vencida está morta para o amor, embora lhe murmurem o contrario nos tons mais ternos e convincentes. Quando a paixão passa, Margarida,--e passa no homem logo que seja satisfeita em tudo,--o sou maior prazer é trahir. Para evitar isso não ha sagacidade possivel aos que não tomaram precauções nem sabem ter prevenções. Ah! o que eu tenho soffrido, minha filha! que dôres inenarraveis, nunca sonhadas, encerra ás vezes uma alma de mulher! Ninguem pode suppôr os dramas medonhos que têem apenas por theatro um simples coração. E' por isso que eu nunca julgo nem condemno a mulher. Quantas vezes, n'um tribunal, ella se poderia defender e se calla por pudor, para não expor a intimidade da sua vida á baixa e malevola curiosidade d'um publico sempre prompto a condemna-la só porque é mulher. Quantas vezes pre-

fere a condemnação, que a injuria, a relatar factos que lhe escaldariam os labios e lhe fariam subir o rubor ás faces ao ter de os repetir! Pobres mulheres! Eu, que tenho soffrido, lamento-as do coração e nunca as censuro. Eu sei lá, adivinho lá o que as lança ás vezes na mais baixa infamia e o que ellas teriam sido, se tivessem encontrado no seu caminho gente digna e bôa?! A minha experiencia de nada me serve já. Estou ainda mais velha do que pareço e o ressentimento matou em mim toda a possibilidade de ventura; mas tu, que és nova, que começas a viver e tens diante de ti um largo futuro, acautella-te! Cuida da felicidade porque, só semeada e cultivada, é que ella cresce e fructifica. Não queiras dominar, nem consintas que te dominem. Ha sempre de parte a parte esse desejo instinctivo: é um mal. O homem, se se sente dominado, revolta-se e odeia; se domina, abusa com a força bruta do mais forte. Conserva a tua individualidade quanto possivel, iguala-o no que puderes o, se vires que podes excedê-lo, acanha-te para não passar além. Seria essa uma falta que homem nenhum perdoaria. Consulta, combina, aconselha-te com elle, mas não admitas ordens, porque uma pessôa no uso das suas faculdades não as deve receber senão no desempenho de qualquer cargo, mas nunca d'um igual, d'um companheiro. Elle tem a sua vontade propria, tu a tua. Quando estejam de accordo, muito bem; mas, quando assim não aconteça, não sejas tu sempre a ceder. E' preciso que cada um se constranja do seu lado um pouco, para que se com-

binem. E, se assim não fizerem, desenvolverão um intoleravel egoismo que ha de acabar por criar uma desharmonia surda, tres vezes peior do que a que questiona, porque, não tendo essas naturaes valvulas par dar sahida á indignação, é a que leva ás resoluções extremas e irremediaveis.

Aconselhada assim pela mãe de seu marido, a intelligente Margarida, sempre que no caminho da vida sentia uma hesitação, recorria a ella e encontrava receita prompta e efficaz. Por isso Margarida, fallando ás vezes com as suas amigas, confessava lhes:

-- Não me venham dizer que a experiencia alheia não serve de nada. Se não presumirem muito de si e discorrerem que é preciso aprender a viver, como a cantar ou a qualquer outra cousa, verão que a experiencia alheia não é perdida.

E a senhora D. Carolina quasi dava por bem empregados todos os seus soffrimentos, vendo que era o filho que tirava o proveito d'elles.

XVII

Enterrado o marido no grande mausoleu do cemiterio de Valle Negro, a dôr de Joanna, já tão rasoavel, diminuiu consideravelmente. Aquelle negocio, segundo o seu innato modo de ser, estava arrumado.

A gente do povo, passada a novidade da chegada, quasi se convencera de que ella era outra mulher. Evitavam fallar-lhe, cumprimentavam-n'a de longe, ao que de longe ella amavelmente correspondia; mas, se por acaso se viam forçados a dirigir-lhe a palavra, não lhe davam o titulo nem o nome, arranjando varios circumloquios para não empregarem a palavra senhora.

Comtudo não a tratavam por tu. Aquelle ar, que ella trouxera de Paris, impunha-se-lhes, mau grado seu.

Joanna estava contente. Mandara vir bons criados da capital e vivia a seu gosto. Todas as tardes tinha o prior a jantar, e às quintas e domingos reunia á

sua mesa e ao serão todas as notabilidades de Valle Negro.

Jenny, olhando o prior, sentia a paixão da sua vida transformar-se n'uma solida e sincera amizade, e dizia comsigo:

-- E foi este homem que me inspirou tão grande paixão! Não tem um unico traço do rapaz que eu amei!... Só a voz é que accorda no meu coração a mesma saudade que uma toada conhecida, ouvida cantar na mocidade e repetida vinte annos depois!

Um dos frequentadores, que apparecia mesmo sem ser nos dias marcados, era João. As suas conversas com a marqueza eram interminaveis. Ambos elles adoravam o campo e nenhum, a não se darem circumstancias especiaes, teria nunca pensado em sahir do seu meio, a cuja liberdade tinham sempre achado um particular encanto.

D. Maria da Graça e Paschoal de Sousa faziam planos:

-- A marqueza é que era um bom casamento para o nosso João.

-- Era, era, volvia-lhe o marido; mas não tenho esperança nenhuma d'isso. Não falla senão de Paris... parece que não ha no mundo outra terra. E é tudo, «quando eu estava em Paris... quando eu fôr a Paris... logo que eu volte a Paris...» Já vês que as suas ideias ácerca da vida a seguir, estão formadas.

-- Não me parece, volvia a mulher. Ella tem um modo especial de lhe fallar... Ha nos seus olhos verdadeira alegria quando elle chega.

-- Haverá, mas ainda não dei por isso. Não vá o rapaz toma-la a sério e pôr-se ás portas da morte por causa d'esta, como aconteceu por causa da outra.

-- Credo! Longo vá o agouro. Raras vezes se repetem os mesmos factos em circumstancias identicas.

-- Isso não me parece bem observado.

-- Porquê?

-- Porque, se a acção é igual, a reacção hade ser semelhante.

-- Em intensidade, mas não no modo.

-- Porque motivo?

-- Porque, desgraçadamente, nós não somos hoje os mesmos que eramos hontem. Envelhecemos, mudamos do gosto e de pensar, etc.

-- Estás então convencida de que elle não faria por Joanna o mesmo que por Margarida?

-- E' indubitável, tanto mais que não amará nunca outra mulher como amou aquella.

-- Sim, isso é natural.

Parecia, mas não era, Joanna, além de ser uma criatura de gostos semelhantes aos de João, tivera como elle a mesma falsa educação e, como elle, fizera um esforço sobrehumano para que o seu indomito orgulho não soffresse a menor quebra.

Não era como Margarida uma flôr de excepção, nascida por engano entre as urzes do campo, e que recobrara o seu valor quando transplantada para o meio que lhe era proprio.

Joanna ficara um producto exotico que os cam-

ponezes não queriam reconhecer por igual e que não acceitava a alta classe a que se elevara porque desdenhava todas as suas convenções, todos os seus usos, e todos os seus membros sem excepção, tendo-lhes uma surda má vontade por se lhe julgarem superiores.

Joanna esperava, pois, a vinda de João, como a terra espera o sol. E, mal o avistava, corria para elle de mãos estendidas e riso nos labios. Essencialmente franca em todos os seus actos, não viu que começavam a murmurar dos sentimentos que ella não escondia.

João era mais reservado. Não era muito facil adivinhar-lhe os sentimentos. Havia um ar de circumspecção nos seus menores actos que os revestia de gravidade, velando-lhes por assim dizer a significação.

Uma tarde, Joanninha passeava nas ruas do parque, levando na mão um livro que não lia, e pensando qual seria o motivo por que João não gostava d'ella. Porque, era evidente, elle não a amava. Se assim não fôsse, quem o impedia de se lhe declarar, agora que ella estava viuva? Mas então Margarida tinha-se apossado por tal fórma d'este homem, que elle não via mais mulheres no mundo senão ella?

E na sua alma sentia contra a irmã a mesma indignação que tivera dôze annos antes.

N'isto, uns passos que ella conheceu bem, aproximaram-se rapidamente.

-- Ah! E's tu? Julguei que não vinhas hoje!

-- Julgaste mal.

-- Por onde tens andado?

-- Tive de ir á villa. A madrinha precisava que eu lhe fizesse lá umas compras.

-- Só?

-- Pois que mais?

-- Não tens por conta propria nada que te demore por lá?

E estas palavras eram ditas n'um tom que não deixava duvida do assumpto a que se referiam.

-- Nada, respondeu elle com naturalidade. Nunca mais pensei n'isso.

-- Ficaste a estudar para padre? exclamou a marqueza, não podendo occultar um certo despeito.

-- Quem sabe? volveu elle com um sorriso enigmatico. Não está ainda provado que seja a peior das carreiras, e eu, mais dia menos dia, tenho de escolher uma. Não hei de passar a vida sem fazer nada.

-- Pois acredita que é essa a melhor occupação.

-- Será, mas não me agrada.

-- Tencionas então deixar Valle Negro?

-- Por ora não, por causa da madrinha que anda muito adoentada e não quer ouvir fallar n'isso; mas logo que ella melhore...

-- Então, só a madrinha é que te interessa em Valle Negro?

E Joanninha desviou o olhar para occultar a commoção.

-- Eu não disse isso.

-- Disseste o preciso para me capacitar que te é indifferente a minha companhia.

-- Enganas-te. Sou teu amigo como se fôsses minha irmã.

As faces de Joanna coloriram-se de violento rubor, e ficou silenciosa.

João percebeu perfeitamente o que lhe ia n'alma. Chegou a dar um passo para ella na intenção de lhe dizer que a amava; mas lembrou-se de que ella era rica e que, pobre como elle era, talvez um dia pensasse que a procurara pela fortuna.

Digam o que quizerem os apaixonados ácerca da violencia do amôr, mas ha qualquer cousa mais forte do que essa paixão: é o amor proprio que se julga ferido.

João preferia estragar todo o seu futuro, a correr o risco do que a marqueza pudesse fazer d'elle uma ideia menos digna.

E Joanna, indignada e amesquinhada aos proprios olhos por não saber inspirar o sentimento que desejava, conseguiu dominar-se e fallar de outros assumptos.

Voltando a casa, João sentia-se o mais infeliz dos homens e monologava:

-- Que tristeza a minha! E se ella agora, despeitada, resolve partir? Como supportarei eu esse desgosto?

A noite afeia os objectos. A scena que de tarde decorrera tão simples, pareceu a João quasi brutal da sua parte. Não pôde conciliar o somno, teve febre, e, quando rompeu a manhã, saltou fóra do leito e, vestindo-se á pressa, sahiu para o campo, ancioso de que o ar da manhã lhe dissipasse os pensamentos tristes.

Dirigiu-se insensivelmente para a sua antiga cabana, agora deshabitada, e sentou-se n'aquella mesma pedra, onde treze annos antes chorára a sua desventura. Sentia-se bem alli. Era a sua casinha. E a palavra minha pareceu-lhe encantadora. resolveu concerta-la, e, visto que D. Maria da Graça lhe satisfazia todos os caprichos, pedir-lhe que lhe desse alguns dos moveis velhos que guardava no sotão, para a tornar mais habitavel e fazer alli o seu gabinete de estudo, longe do borborinho que havia sempre na casa do Adro.

Quando elle sahia em direcção da casa, notou uma gentil camponeza que, saltando de fraga em fraga com a ligeireza d'uma corça, subia para a capella do Adro, peto tado mais inaccessivel.

João parou e olhou.

-- Parece exactamente a Joanninha, como ella era ha treze annos! Mas... quem é?

Quanto mais se affirmava, mais julgava ser uma illusão dos seus olhos.

-- Não, já agora hei de vêr!

E João, tomando por outro caminho, foi occultar-se n'umas moitas sob uns copados sobreiros, junto do muro da capella.

A rapariga aproximava-se e João notou, não sem pasmo, que era a marqueza. Que bem lhe ficava o fato regional e as lindas chinelas que trazia suspensas na mão para poder subir melhor! Na meia bran-

ca, um ligeiro fio vermelho denotava que ella já se ferira e que os seus pés já não estavam habituados a taes façanhas. Aproximando-se da porta da ermida, ajoelhou e, como fizera treze annos antes, orou devotamente. Depois ergueu-se e voltou pelo mesmo péssimo caminho por onde viera.

-- Não quer encontrar ninguem, é o que é.

E João seguiu-a de longe até a vêr entrar no parque de Valle Negro. Então, aproximando-se da grade, n'um dos sitios em que a trepadeira era mais espessa, espreitou. Viu-a entrar na casa pequena que alli havia e sahir minutos depois vestida do senhora.

-- Que estranha phantasia! pensou elle affastando-se.

N'esse dia, que era uma quinta-feira, jantava elle em Valle Negro com todas as notabilidades da terra. A marqueza mostrou-se radiante e, pela primeira vez, recebeu os seus hospedes sem estar vestida de luto.

Uma elegante toilette branca com laços roxos claros, n'uma mistura de tons que lembrava lilazes e amores perfeitos, moldava a bonita figura da marqueza, dando lhe um frescor de mocidade que ella começava a perder.

Os cabellos, frisados sobre a testa, faziam-lhe sobresahir a sua doirada tez de trigueira, e os labios, entreabertos n'um sorriso, tinham a côr rubra da romã.

Era inegavelmente uma bella mulher, se não fôsse

alta demais. A sua cintura, delgada, deixava suppor um aperto que ella nunca usára e que a opulencia dos seios, desenvolvidos pela criação do filho, tornava mais graciosa.

-- Uma novidade, exclamou ella em tom jovial, quasi á sobremeza.

-- O que é? perguntou o prior.

-- De hoje a oito dias faço-lhes as minhas despedidas. Vou para Paris.

-- O quê! Já? perguntou D. Maria da Graça desapontada.

João, com os olhos no prato, fazia o possivel para occultar a commoção.

Ella, fingindo nada notar, continuou sem o perder de vista:

-- A companhia de todos V. Ex.ªˢ é muito agradavel, mas nada mais tenho aqui que me prenda, emquanto que lá tenho o meu filho que não vejo ha mais d'um anno.

-- E' justo, é justo, concordou o prior.

-- Eu tenho já muitas saudades d'elle, affirmou Jenny.

-- Gostava de o conhecer, disse a tia Engracia n'um tom triste, que pareceu á marqueza uma censura por não contar com ella.

Então levantou-se n'um tal repente, que a cadeira cahiu por terra e, precipitando-se nos braços da avó com o estouvanamento proprio da sua indole impulsiva, murmurou-lhe ao ouvido:

-- Eu não vou, mas não diga nada. E' para vêr quem tem mais pena de mim.

A tia Engracia beijou-a e dosatou a chorar. Mas era de alegria. Ella, que julgava já não contar para ninguem, percebeu que readquirira no coração de Joanna o logar antigo e isso impressionou-a tão vivamente que as lagrimas cabiam, sem que ella as pudesse suster.

-- E's cruel, Joanninha, observou D. Maria da Graça em tom de reprehensão. Olha o estado em que puzeste tua avó.

Todos faziam observações, menos João que se conservava callado.

-- E tu, não lhe dizes nada? perguntou Paschoal.

-- Entendo que não devo. Ella é que deve saber, melhor do que ninguem, a urgencia que tem de voltar a Paris. Depois, terminou o lucto, o que em Portugal não costuma acontecer às viuvas. E' natural que queira frequentar as festas de que era um dos mais brilhantes ornamentos. E' jovem e bella; parece-me que ninguem lh'o pode levar a mal.

-- Decerto, decerto, apoiou o medico.

João esforçara-se por fallar naturalmente, mas o seu constrangimento era visivel para todos, que, percebendo-lhe a causa, o lamentavam intimamente.

Depois de jantar passaram á sala onde Jenny, sentando-se ao piano, tocou brilhantemente.

Quando a conversa estava mais animada, João dirigiu-se surrateiramente para a porta e começou a descer a escada exterior.

A marqueza correu apoz elle e perguntou-lhe:

-- Onde vaes?

-- Retiro-me. Dóe-me muito a cabeça.

E um abatimento extremo se trahia no rosto do amargurado rapaz.

-- Não dóe. Porque eu não quero que te dôa. Volta para cima, anda.

-- Deixa-me retirar... peço-te.

-- E eu supplico-te que fiques. Quero dar-te uma cousa.

-- Amanhã.

-- Não, hoje. Para que has de ter dôres de cabeça, se eu tenho um remedio que as cura infallivelmente? Volta.

Contrariado, João tornou a entrar na sala.

-- Meus senhores, disse-lhes Joanninha alegremente: eu tenho de ir lá dentro buscar uma cousa que estou certa, lhes ha de causar a todos agradavel surpreza; mas peço-lhes que guardem bom o João e não o deixem sahir porque a presença d'elle é essencial agora aqui.

O prior e Paschoal de Sousa prometteram guardar João á vista. E todos, com curiosidade, esperavam um acontecimento que não previam bem por causa da annunciada partida de Joanna.

Então a marqueza, voltando-se para os circumstantes, disse:

-- Supponham que o João da Levada está cavando á beira do talude do Lourenço, emquanto eu não venho.

Todos sorriram, menos João, que corou intensamente.

Emquanto commentavara o caso, Jenny sorria como quem pressentia o que se ia passar. Momentos depois entrou um creado na sala e entregou ao prior um cesto pequeno tapado com um guardanapo, dizendo:

-- A snr.ª marqueza recommenda a V. Rev.ma que não destape o cesto e o entregue ao snr. Joãosinho quando ella entrar.

Todos os olhos se cravaram curiosamente no cesto.

Mal o criado sahiu, ergueu-so o reposteiro e Joanninha entrou vestida de camponeza, com uma trouxa á cabeça e cantando n'aquelle tom de rabeca, tão usado pelas cantadeiras minhotas:

Se me queres dar um fructo,
Eu escolherei a romã;
Mas lê-lhe o nome ás avessas
Porque eu não sou tua irmã.
Nos teus olhos côr do ceu
Vejo Deus Nosso Senhor,
Não dês a romã. Se a dás
Promettes-me eterno amor.

E o prior, estendendo o cesto a João, instava com elle para que entregasse a Joanna a romã que elle continha.

Mas o da Levada abanava tristemente a cabeça e dizia ao prior:

-- Não posso.

-- Mas porquê?

Todos olhavam anciosamente para João.

-- Porque ella é rica e eu sou pobre. Não quero que se imagine...

-- Ora, não sejas tolo, dizia-lhe a marqueza, de mãos nas ilhargas, com um tom que indicava uma perfeita regressão ao meio.

-- Isso não é razão, rapaz, affirmou Paschoal de Sousa depois do trocar com a mulher um olhar de intelligencia. O que nós temos é teu, como so fôsses filho. Nós não o havemos de levar para a cova.

O orgulhoso João estava vencido. Lançou-se chorando nos braços de Paschoal.

A marqueza dizia:

-- Então eu apanho ou não apanho a romã?

João entregou-lhe a romã e beijou-lhe cerimoniosamente a mão.

Ella estendeu-lhe o rosto, dizendo:

-- Ao uso da terra, não é assim?

João beijou-a na testa e, emquanto todos riam da scena, a marqueza, fazendo saltar a romã nas mãos, dizia ao prior:

-- Quantos trabalhos este maroto me tinha poupado, se ha treze annos me tem entendido a cantiga!

-- Quanto Deus faz é pelo melhor.

-- O peior, dizia a marqueza, fingindo-se assaltada de subitos escrupulos, é se elle vai dizer agora que casou por condescendencia. Eu tanto pedi... tanto

pedi... Isto fica-me mal aos olhos de todas as classes... Quediz, senhor prior? Parece-me que desisto.

-- Agora é tarde. Já não acceito a romã.

A velha Engracia estava de tal modo satisfeita que nem podia fallar.

Ria e chorava ao mesmo tempo. Era o seu sonho, que ella julgava impossivel e via realizar: um neto nos joelhos que lhe acariciasse a velhice com os risos da infancia, e mãos amigas que lhe descessem piedosamente as palpebras na hora final.

A marqueza continuava brincando, enrolando entre os dedos as pontas do avental e affectando os seus antigos modos:

-- E, se elle teimar em o affirmar, todos os senhores podem ser testemunhas de que fui eu que o pedi em casamento... Isto não parece bem, não é verdade?

-- Para que digamos, confirmou o prior, muito bem não parece, mas como já está feito... Nós, se nos perguntarem, temos de affirmar que vimos... Para recuar já é muito tarde.

-- Tambem digo... Então, vá lá.

E estendeu de novo as mãos a João que lh'as beijou com transporte.

XVIII

Margarida, ao sabor do casamento da irmã com João, pasmou e disse:

-- Está destinada a casar com os homens que gostaram de mim. Ainda bem que me não convidou para o casamento. Eu não teria animo de recusar o convite, e tremeria com mêdo de que ella me roubasse o Luiz.

-- Não havia perigo, aflirmou elle beijando-a na testa. Isso não entra nos limites do possivel.

Passaram annos de ininterrupta felicidade para os dois casaos. Margarida tinha tres filhos que eram os seus amores, e Joanna seis, contando com o filho do marquez. De parte a parte havia estranhas prevenções, e que os levou a nunca se aproximarem.

Escreviam-se pelo Natal e pelos annos das duas irmãs. Chegavam mesmo a enviarem se lembranças, mas não se visitavam, como se da sua aproximação pudesse resultar qualquer facto desagradavel para todos.

Um dia, pelas tres horas da tarde, a sineta suspensa ao portão gradeado de Valle Negro vibrou, fortemente impellida por uma mão mascula enluvada de proto, e o inesperado visitante entregou ao porteiro, que accudiu ao chamamento, um cartão tarjado de negro, dizendo-lhe:

-- Faz favôr de entregar este bilhete ao snr. João?

-- Sim, senhor.

E o porteiro, cumprimentando, retirou-se apressado.

Momentos depois voltou, pedindo-lhe que entrasse. Acompanhou-o á escadaria de pedra no alto da qual um creado inglês o esperava para o conduzir ao escriptorio de seu amo.

João, sentado junto de um bufete em frente da janella, ergueu-se precipitadamente quando, depois de lêr o cartão que o criado lhe entregara, sentiu no corredor os passos do visitante. Foi-lhe ao encontro, procurando esconder quanto possivel a impressão de constrangimento que a sua presença lhe causava, e exclamando n'um tom que em vão procurava tomar alegre:

-- Por aqui, Luiz?! A que feliz acaso?...

Mas reparando que o seu antigo amigo tinha um ar triste, e estava vestido de lucto dos pés á cabeça, suspendeu-se no que ia a dizer e, tornando-se pallido, interrogou:

-- Quem te morreu?

Simplesmente, com voz quasi extincta, Luiz respondeu-lhe:

-- Ella.

João fez entrar o amigo para o escriptorio e, fechando a porta, perguntou-lhe com profunda commoção:

-- De quê?

-- Repentinamente. Nem tempo teve para fazer a mais pequena disposição.

-- Mas como foi isso? Como foi?

E João, sem se poder conter mais tempo, rompeu n'um impetuoso choro, dizendo:

-- Não repares, Luiz. Tu bom sabes como eu a amei. Não calculas nem podes saber quanto o vosso casamento me feriu. Julguei que hoje me era uma criatura indifferente, mas bem vês que não: o coração sangra como quando a perdi para sempre.

Fez-se um longo silencio. Por fim, João perguntou:

-- E ella?... foi sempre feliz? Julgou que o era?

-- Julgou. Durante a nossa união nunca lhe mereci uma censura. Devia-Ih'o a ella e sobre tudo a ti, que tão generosamente te sacrificaste.

-- Enganas-te. Não houve n'isso generosidade. Se eu pudesse disputar-t'a, tinha-o feito. Não o fiz, nem me vinguei, porque ferir-te era feri-la; mas podes acreditar que te tive odio.

-- E' humano.

-- Agora mesmo, ao receber o teu cartão, senti mil sentimentos contrarios que se agitavam ferindo-me.

Ter-me-ia negado a vêr-te, so... se não receiasse desagradar-lhe.

-- N'esse caso, ausento-me.

E Luiz fez menção de se retirar.

João reteve-o, obrigando-o do novo a sentar-se.

-- Fica. Se os meus sentimentos fôssem ainda esses, não t'os confessaria. O meu coração, hoje que ella morreu, é para ti o mesmo que d'antes.

E abriu-lhe os braços sem reserva. Luiz era um sentimental. Tinha o coração a transbordar de amargura, e com a morte da mulher desaparecera para elle a consolação de dizer tudo a alguem.

-- Elle dir-lhe-hia tudo? pergunta-mo, incredula, uma leitora.

-- Dizia, porque a mulher foi para elle, emquanto viva, a unica criatura desejavel na terra.

-- Mérito d'elle?

-- Não creio. Julgo antes que a experiencia alheia, que ella tão intelligentemente soube aproveitar, a livrou da sorte commum da maioria das mulheres. Margarida era o confessionario do marido. Ha em quasi todo o ser humano uma necessidade absoluta de applauso ou de reprovação. A opinião alheia nunca é inutil, nem mesmo quando a não escutamos. O estimulo que ella ás vezes nos dá, ou a censura, tem sempre um peso, embora minimo, na balança da nossa consciencia. A pessôa que se habituou a inteirar o seu modo de ser espiritual completando a sua consciencia na consciencia alheia, tem, quando por qualquer motivo perde esse conforto moral, ainda mais

que a dôr da ausência, a impressão d'um desamparo horrivel, impressão que as palavras não traduzem e que um eloquente só é impotente ainda para explicar com verdade.

Era essa impressão que Luiz sentia como um accrescimo á terrivel dôr que tem por nome nunca mais. Era essa impressão que o fizera procurar João em vez de lhe escrever. Era ainda essa impressão que o ia ligar de novo ao seu amigo, ainda mais estreitamente do que d'antes. Elle não pensava nada d'isto, não se analysava nem estava em estado d'isso; mas procedia assim, automaticamente, como procedem todos que, lendo excedido o limite da capacidade humana para a dôr, sentem estalar o coração fibra a fibra e ficam na vida agindo como seres vivos exteriormente, quando na realidade estão mortos, lembrando essas bellas palmeiras que um processo chimico mata, conservando-lhes nas salas o vigoroso e apparente colorido que em vida tiveram.

Luiz fallou e desabafou. Começava a cahir a tarde quando a voz do Joanna perguntou fóra da porta:

-- Posso entrar?

Os dois homens ergueram-se sobresaltados. Ambos elles a tinham esquecido.

Era preciso dizer-lhe a verdade. Mas como?

-- João, enchendo-se de animo, respondeu:

-- Entra.

Joanna entrou o o marido apresentou-lhe Luiz com voz que em vão tentava tornar segura:

-- Falla-lhe... E'... o marido de.. de tua irmã.

-- O marido de Margarida? Mas tenho immenso gosto de o conhecer. Porque não veio ella?...

-- Porque... porque... n'esta occasião não lhe é possivel.

E a voz do Luiz embargava-se-lhe na garganta.

Joanna olhou-o admirada, fitou depois o marido, tomou a reparar em Luiz, e rompeu n'um choro ardente e sincero que fazia mal vêr.

Passada a primeira crise, quiz que o cunhado lhe contasse minuciosamente como ella morrêra. Depois foi prevenir a avó que, sem deitar lagrima, murmurou n'um tom resignado:

-- Aquella tinha morrido para mim ha muito... Deus tenha a sua alma em descanso.

Luiz quiz retirar-se no comboio que alli passava ás dez e meia da noite. Não lh'o consentiram. E teve de telegraphar para casa dizendo que ficava uns dias em Valle Negro e escrevia pelo correio.

Realmente escreveu, mandando ir os filhos com a mestra e uma mala com roupa. Os mozes seguiam-se o Luiz não tinha animo de abandonar Valle Negro. Recusaram-lhe mais licença e teve de voltar ao serviço; mas, a muitas instancias de Joanna, entregou-lhe os filhos.

Começou então uma correspondencia com João, a proposito dos filhos. Depois, como este adoecesse gravemente dos olhos, tomou o costume de se escrever com a cunhada e, quando tinha uns dias disponiveis, ia passal-os a Valle Negro.

Sua mãe, vendo a vida triste e isolada que elle tinha, mais d'uma vez tentou fallar-lhe em casamento. Luiz, tão terno com ella, era quasi rispido quando lhe fallavam em substituir Margarida.

A mãe commentava:

-- E' natural. A minha nora era uma criatura perfeita.

E julgava ser essa a causa da recusa de Luiz. Não era.

Como João peiorasse dia a dia, resolveu ir a Lisboa consultar os especialistas. Andou de mal em peior e um dia, ao accordar, notou que não via.

Julgando que seria uma impressão momentanea, pediu que lhe abrissem as janellas; mas, como nada desse resultado, chamou-se a toda a pressa o medico que, logo que o examinou, chamou de parte o cunhado e lhe declarou que João, atacado de gotta-serena, estava irremediavelmente cego. Para o não desanimarem repentinamente, Joanna partiu com elle para Paris acompanhada do cunhado. Todos os medicos lhe deram esperanças a pedido de Joanna, mas elle é que acabou por se convencer de que tudo que tentasse seria inutil. Então não houve dissuadil-o de regressar a Valle Negro.

A sua entrada em casa foi realmente uma scena emocionante. Até o enteado, de que elle nunca conseguira as sympathias, chorava commovido ante aquella immensa desgraça. Nunca João conheceu a alegria que é tão vulgar nos cegos. Desde o dia era que perdeu a vista, uma immensa tristeza se apoderou do desgraçado.

Era difficil de distrahir. Não fallava nem queria ouvir nada, e passava horas sentado no escriptorio, perdido em longas meditações.

Tinha tanto tacto que percorria só toda a casa, e ia ao Adro, persuadido de que ninguem o acompanhava, mas sempre seguido a distancia por um criado.

Uma tarde em que alli foi, demorou-se mais que de costume e, á sahida, disse a D. Maria da Graça com aquella infinita tristeza que nunca mais lhe abandonou a voz:

-- Minha mãe, -- deixe-me chama-la assim, -- ando aprehensivo... Assim como ceguei inesperadamente, posso morrer. Olhe pelos meus filhos, como se fôssem seus netos... Lembre-se de que lh'os recommendo.

-- E Joanna? perguntou D. Maria da Graça com voz trémula.

-- A Joanna?...

>E, depois d'um longo silencio, concluiu:

-- Sou-lho obrigado. Tem sido sempre uma mulher exemplar, mas... o seu coração fugiu-me desde que conheceu Luiz.

-- Credo, meu filho! não penses n'isso. E' uma calumnia.

-- Não; é uma realidade. Quando os olhos do corpo se fecham, os da alma vêem melhor. Elles amam-se: é natural. São feitos para se entenderem, e eu vim ao mundo só para soffrer.

-- Mas tu não tens nada que te dê o direito de suppôr...

-- Infelizmente, para suppôr não é preciso ter direito. Eu sou o primeiro a affirmar-lhe que elles nunca me faltaram ao que me devem nem ao que mutuamente se devem... nem eu sou homem que os deixe faltar. Estou plenamente tranquillo. Digo-lhe isto apenas para lhe explicar a razão por que lho não recommendo Joanna. Ella fica amparada e bem: Luiz é um excellente rapaz... talvez melhor do que eu. E' superior em tudo, não tenho a menor duvida. Margarida preferiu-o...

D. Maria da Graça tentou em vão alegrar-lhe o espirito.

N'essa noite, por volta da uma hora da madrugada, um tiro poz em alvoroço todo o palacio.

João tinha-se levantado da cama mansamente, entrara no escriptorio, sentara-se á secretaria e, tirando d'ella uma fôlha de papel, escrevera em letra enorme e desigual, verdadeira letra de quem não vê:

«Luiz

«Deixo-te Joanna. Casa com ella, se não tiveres n'isso grande repugnancia.

«João.»

N'outra fôlha, a D. Maria da Graça:

«Perdão, querida mãe! não tenho animo de conservar a vida que lhe devo.

«João.»

A' detonação correram todos e encontraram-n'o morto, cahido junto da secretaria.

Joanna teve uma grande magua e, com ella, todos os que estimavam João choraram a sua perda. O medico dizia:

-- Elle tinha a bossa do suicidio... Era fatal...

Desde criança que esta ideia o perseguia.

E Paschoal de Sousa affirmava, convencido:

-- Lá isso é verdade.

Mas D. Maria da Graça, sem communicar a ninguem os seus pensamentos, nem mesmo ao marido, dizia comsigo:

-- Quem sabe? Talvez se as circumstancias variassem... se elle não sentisse que já não era amado e que empecia a ventura dos outros... Quem sabe ?... Grande alma, grande coração tinha elle .. O seu fim, digam o que quizerem, não foi uma fraqueza...

E fazendo para si estas observações, afagava a cabeça annellada da mais pequena filha de João, pensando:

-- Hei de cumprir pontualmente a promessa que lhe fiz.

XIX

Passado pouco mais d'um anno, Joanna casava com o cunhado, mas, por não sei que particular enguiço, não o quiz fazer em Valle Negro.

Quando no povo conheceram a noticia, discutiram-n'a muito durante o primeiro mez. A' noite, na Tenda do Lourenço, emquanio se despejavam canecas de vinho e se jogava a bisca lambida, era assumpto forçado o casamento de Joanninha.

-- Não era eu que casava com ella! bradava indignado e dando uma punhada na mesa o filho d'um pequeno lavrador dos arredores.

-- E porquê? perguntou-lhe a mulher do Lourenço com curiosidade.

-- Porque mulher que já enterrou dois maridos é capaz ainda de enterrar o terceiro.

-- Enganas-te, vês? disse-lhe ella com mau modo. Essa razão é estupida. Mulher que escapou de tres, deve succumbir ao quarto... é fatal. Vocês imaginam que são muito bons de aturar? E' ella resistente como o demonio... de bôa raça... Enterrar tres homens!...

Uma gargalhada sonora estalou unisona em toda a venda.

-- Ella é de tal ordem, que você, mal vê o home casado, já o dá por morto.

-- Debaixo de terra, por ora, só estào dois apenas, tia Leonilda.

Envergonhada, a mulher do Lourenço retirou-se, resmungando:

-- Façam troça, façam: vocês verão quem tem razão.

-- Para vêr é ainda preciso que este morra!

-- Olha que eu parece-me que, já antes do João se matar...

-- Cala-te, lingua damnada! Que sabes tu da vida d'elles para os querer babujar com a tua peçonha?

-- O que sei?... Que o correio todos os dias trazia e levava cartas d'um para o outro.

-- Isso não prova nada. Tinha lá os filhos e é justo que quizesse e lhe dessem todos os dias noticias d'elles.

-- Sim ?!... Os filhos servem, ás vezes, de desculpa para muita cousa.

-- Tu é que gostas de fallar mal, alma ruim!

-- Serei alma ruim, serei; mas não cómo toda a palha que me dão...

-- E quem t'a quer dar, meu asno?

-- Tu, que dizes o que assim não é.

-- O que é que eu disse que não era?

-- Que elles se escreviam por mal.

-- E que fôsse ? E' isso da vossa conta ? Bem se vê que lhe comem o pão...

-- Que é lá isso?

-- Sim, digo eu que, se lhe não comessem o pão, talvez se não engasgassem quando fallam d'ella.

-- A Joanninha! Quem a viu e quem a vê!

-- E lembrar-mo eu que, quando ella era das nossas, ainda lhe arrastei a aza!

-- E ella fez tanto caso que ninguem deu por isso.

-- Não, que já andava com a mira em ser marqueza.

-- Vocês sempre discorrem cada uma que é mesmo um louvar a Deus!

-- O que é certo é que, quando casou com o marquez, já ella ia pejada.

-- Isso é calumnia.

-- Não sei. O que affirmo é que alguem me disse que a viu sahir da cabana do João depois de estar lá muito tempo com elle... e... tudo isso antes de casar com o marquez.

-- Querem vêr que o fidalgo comeu por obra sua trabalho alheio?!

-- Isso não! Que o rapaz é mesmo o pae escripto e escarrado.

-- Nem nunca olhou com bons olhos o padrasto.

-- E a este agora?

-- Não sei. Quando era tio, queriam-se muito; agora que o parentesco mudou, vão lá saber!

-- A Joanninha o que tem é sorte. Apanhou a fortuna do marquez, vem a ficar com a casa do Adro, e este agora, segundo contou para ahi o criado que elle trouxe da cidade, é tão rico que não sabe o que tem de seu.

-- Pois sim, mas como já tinha os filhos...

-- Ora! Quando mais não seja, come e bebe o que é d'elle, e põe de parte o seu.

E esta interessantissima conversa quasi que era repetida diariamente com pequenas variantes.

Luiz e Joanna tinham partido em viagem de nupcias pela Europa, deixando os filhos mais velhos em collegios, e os mais novos entregues a miss O'Connell, que se encarregára da sua primeira educação.

Eram então mais curiosos do que nunca os serões de Valle Negro. As crianças recolhiam ao leito cêdo; a tia Engracia, muito achacada do rheumatico, imitava-as; e miss O'Connell, o medico e o prior prolongavam até tarde a conversa, sempre á custa do passado, sem preoccupações do presente nem aspirações de futuro. Um dia o prior não veio e o medico e a irlandeza tiveram de se resignar a jogarem sosinhos.

Lembrou a miss uma partida do assalto. Adorava este jogo em que era oximia, mas raras vezes encontrava um parceiro da sua fôrça. O medico, por acaso, era um excellente jogador e accedeu ao convite.

Radiante, miss O'Connell começou a dispôr as pedras no taboleiro, emquanto o dr. lhe perguntava risonho:

-- A dinheiro?

-- Não. A historias. Aquelle que perder conta uma historia. A do seu passado, por exemplo.

-- Vou ouvil-a, miss.

-- Pelo contrario, doutor, eu é que o escutarei. Não sabe em que se metteu: tem uma adversaria terrivel.

-- Hum... o presumir muito das suas forças não quer dizer...

Começou a partida com ardente enthusiasmo de parte a parte. Era tal o fogo dos combatentes que se podia suppor que se estava alli decidindo d'uma aposta avultadissima. O ataque do miss O'Connell era vigoroso; deslocava os seus soldados, como conhecedora da tactica, com prudencia e segurança, sem precipitação nem hesitações. O medico defendia a fortaleza admiravelmente, o tão bem que, apesar da innegavel pericia da sua adversaria, conseguiu vencêl-a.

Miss O'Connell tentou não pagar a aposta, mas o doutor exigiu-o. Então, sem dizer nomes, contou a historia toda do seu passado sem omittir a unica e grande paixão da sua vida. Era uma historia triste, simples e commovente, como a de todos aquelles que um impiedoso destino sacrifica sem se saber porquê nem para quê. O doutor escutava-o interessado, e por vezes com emoção. Quando a miss acabou de fallar, observou-lhe:

-- A sua historia não está completa, miss Jenny: falta-lhe alguma cousa.

-- Contei tudo, concluiu a irlandeza com sinceridade.

-- Tudo não, porque o não sabe.

E continuou:

-- Quando esse rapaz de quem me fallou perdeu a noiva, pensou em procurar apoio na sua bondade, miss; mas, vendo-a tão fria e reservada, convenceu-se de que o não amava... ou já amava outro. Seguiu então o destino que o seu desamparo moral parecia indicar-lhe.

-- Se eu tenho sabido! murmurou com real e irreflectida pena miss O'Connell.

Depois, cahindo em si, corou e concluiu n'um tom melancolico:

-- Passa-se ás vezes junto da felicidade que se deseja, sem a vêr ou sem ousar estender a mão para a colher. Mais tarde, quando as circumstancias da vida a tornaram impossivel, é que sabemos quão pouco nos teria bastado para ser felizes... Mas quem lhe contou a minha historia?

-- Elle, no dia seguinte á sua chegada aqui... ou melhor, contou-me a d'elle. O prior nunca suppoz ter sido amado pela miss.

-- Não lh'o diga. Estamos ambos velhos, e o muro erguido entre nós é insuperavel. Obrigada, doutor. O que me contou fez-me bem. Era uma das grandes maguas da minha vida nunca ter inspirado a ninguem um sentimento de interesse, embora passageiro. Agora, que sei o contrario, sinto me menos infeliz do que me julgava.

E o doutor pensava, fitando o rosto precocemente envelhecido de miss O'Connell:

-- Como um coração de mulher se contenta com pouco!... A sombra d'um sentimento basta a causar-lhe um vivo o duradouro prazer! Pobre miss!...

Quando o medico se retirou, miss O'Connell recolheu-se aos seus aposentos e, sentando-se n'uma cadeira junto da secretaria, deixou cahir o rosto nas mãos e ficou pensativa. Por fim murmurou:

-- Porque será que a uns tão pouco basta a satisfazer-lhes a sêde d'alma, o outros são insaciaveis?

Não encontrou resposta. Depois comparou a sua vida, vivida na sombra d'um sentimento morto, á vida da marqueza, como involuntariamente lhe chamava nos seus soliloquios. Como aquella mulher era voluvel, sendo séria! com que facilidade mudava o seu amôr d'um para o outro, e se convencia de que era feliz na constante inconstancia da sua paixão!

Abriu a secretaria e tirou d'ella o Diario de Joana. Ia lêr a expressão sincera do seu sentir perante os seus tres maridos, o que, examinado por Joanninha n'um momento d'aquelles em que até os nossos proprios ridiculos nos fazem sorrir, a resolveu a rasgar o Diario.

Mas como essa tarefa lhe custasse,--havia alli tantas e tão saudosas recordações! -- entregou-o á sua amiga para que executasse a sentença a que ella o condemnava: queimal-o.

Miss O'Connell olhou o pobre manuscripto, tantos annos companheiro de Joanna e seu discreto confessor, e não teve animo de o reduzir a cinzas. Levou-se para o quarto, leu-o, meditou-o, comparou com o seu modo de ser o da sua amiga e... invejou-a, apesar

de se lhe sentir infinitamente superior. Aquella mulher tinha o caracter que dá a felicidade possivel na terra!

Tractando do marquez, escrevia a marqueza:

«Amo-o? E' evidente que sim e está provado que não. O que eu amo é o amôr, e a elle em consequencia d'isso: logo, se o meu sentir por elle é filho d'uma consequencia, não podo ter as honras d'um sentimento. Sou feliz? E' innegavel que sim e... está provado que não. Se bastasse á criatura a riqueza e a satisfação de prazeres materiaes, ninguem seria mais feliz do que eu. Mas não basta, e as nossas almas vivem no confiicto constante de preconceitos que teem para um o valor d'um thesouro e para outro não representam nada. Comtudo... é innegavel que o adoro.»

Annos depois, referindo se a João:

«Não ha duvida que o amo. Estou bem certa d'isso? Verdade, verdade, parece-me que não. Aconteceu-me com elle o mesmo que com o vestido, o leque, o chapeu. Encantador emquanto o não possuo... Depois... desde que habituei os olhos a vê-lo e os ouvidos a ouvi-lo... Não sei, mas parece-me que o marquez lhe era superior... pelo menos em gentileza. Sou feliz com elle? Sim e não. Se bastasse á felicidade humana a união dos espiritos, a conformidade dos gostos... Mas não, não basta.. Decididamente o marquez era bem superior ao João. Acaso o não amo? Esta pergunta sobresalta-me... Mas não... posso estar tranquilla. Não ha duvida que é amor o que me prende a elle. João é a vida da minha vida.»

Com um sorriso ironico nos labios, a miss passou muitas paginas e veio lêr no fim do caderno:

«Amo Luiz? Parece-me que não, e está bem demonstrado que sim. Para que casoi eu terceira vez? Foi para cumprir a vontade de João? Não. Foi porque amava meu cunhado? Menos. Porque foi então? Porque um marido é necessario a quem ama eternamente o amôr. Mas, se eu não amava meu cunhado, para que lho escrevia todos os dias tão longas e amigas cartas? Sinto o rubor subir-me ás faces, mas é forçoso ser franca visto que é commigo que desabafo. Não encontrando na minha ligação com João a satisfação do meu primeiro enlace, mas apenas muito espirito e conformidade de gostos, o que é muito, mas não é tudo, e não o querendo confessar, porque certas confissões só os nossos proprios ouvidos as podem admittir, resolvi juntar o espirito do meu cunhado ao de meu marido, para que o excesso de qualquer cousa enchesse o vacuo immenso da minha alma. Agora, que casei, acho meu cunhado superior a João ou ao marquez ? Não. Evidentemente, nenhum dos tres é a metade que me estava destinada. A todos falta qualquer cousa. Nenhum me completou inteiramente. E eu amo-o? Espero que a minha conducta não deixe d'isso a menor duvida a ninguem. Adoro-o porque amarei eternamente o amor. E, se elle morresse, tornaria a casar-me? Não. Por amor d'êlle? Não. O sentimento da falta levar-me-ia a sub-

stituil-o rapidamente... Então porquê? Porque, tendo ido de mal em peior, não quero chegar ao pessimo... E o amor proprio, digam o que disserem, é o maior amor que existo na alma humana.»

A miss fechou o Diario e o seu sorriso do ironia accentuou-se-lhe mais.

Em voz alta, como se fallasse com Joanna, respondeu á ultima hypothese que a leitura lhe deixou no espirito:

-- Sim, sim... Se enviuvasses, ias lá quarta, quinta, sexta, e até mais. Com o feitio que tens não poderias proceder de outro modo, e serias sempre feliz porque a tua extranha philosophia havia de te dizer: «Tudo peiora com a idade... é natural.» E' certo tambem que, desde que a tua philosophia falle, o coração acceita-a. Ah! Joanna! como tu és vulgar, e como eu te invejo! Quem recorda no passado uma collecçao diverte-se e não deve sentir muito. Se as lagrimas lhe correm dos olhos, são decerto parecidas com aquellas que um longo ataque de riso provoca. Rasgo o Diario? Não. Vou manda-lo á Maria O'Neill para que o desfigure e conte ao publico que, nem casando tres vezes, é facil encontrar a outra metade.

E aqui está, meus caros leitores, como eu tive ensejo de lhes poder contar pela rama, (não posso abusar d'um diario que estava condemnado a ser queimado) a historia da marqueza de Valle Negro.


Citation Suggestion for this Object
TextGrid Repository (2022). Portuguese Novel Corpus (ELTeC-por). A Marquesa de Vale Negro: Edição para o ELTeC. A Marquesa de Vale Negro: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001B-D8AD-D