EL-REI DINHEIRO

ROMANCE

POR

ARNALDO GAMA

Es usted hombre? pues basta.

El dinero es su Dios unico,

Y desde el bueno hasta el malo,

Desde el sabio hasta el mas rudo,

Podia no creer en Dios

Pero en el oro es seguro.

GIL Y ZARATE. D. Frifon.

PORTO

LIVRARIA DE JACINTO A. PINTO DA SILVA -- EDITOR

136, Rua do Almada 136,

1876

AO ILLM.o E EXM. SNR.

Dr. Arnaldo Anselmo Ferreira Braga

Bacharel formado em medicina e philosophia pela Universidade de Coimbra , lente de zoologia na Academia Polytechnica do Porto , director do Consultorio Homeopathico Portuense, etc ., etc ., etc.

OFFERECE

Em testemunho de profundissima e indelevel gratidão, e do mais subido respeito

EDITOR

Jacinto Antonio Pinto da Silva.

Ill.mo e Ex.mo Snr.

Um dia a doença entrou na casa de um homem que na sua obscuridade vivia contente , por que era o amparo e o idolo dos seus, e roçando-o com a sua aza deleteria , disse-lhe: A minha presa vaes ser tu .

E foi.

Dias apoz dias, semanas apoz semanas, um mez depois de outro , o infeliz , prostrado no leito que lhe era ecúleo de tormentos, sentiu o corpo totalmente alquebrado , e o animo de todo desfallecido .

A familia extremosa cercava-o de carinhos . Os homens mais altamente conceituados na divina arte de curar redobravam de disvelos para com elle . Mas tudo era inefficaz ; a doença progredia e o saber humano, já quasi se confessava vencido.

N'isto um medico distincto, illustre, abalisado -- sectario de uma doutrina, tão duramente combatida, mas tão eloquentemente triumphante -- foi, encaminhado e inspirado pela Providencia, sentar-se junto da cabeceira do enfermo, e ao ver as lagrimas que derramava uma familia inteira sobre o corpo semi-morto do seu chefe, disse com um sorriso benevolo, capaz de animar a mais pungente desesperança :

-- Que pranto é este ? Nós temos aqui um doente , mas não um homem morto . Para o fazer voltar ao que era, só precisamos de algum tempo e de bons cuidados...

E a fagueira prophecia cumpriu-se. Dentro de poucas semanas, o homem que os seus chegaram a julgar perdido para o seu affecto , o homem que ninguem suppunha poder arrostar a ferina investida de uma enfermidade lethal, voltava, restabelecido, aos seus trabalhos, entregava-se, animado do antigo vigor, ás suas lides costumadas.

Esse homem , Ex.mo Snr., sou eu. O medico distincto , illustre, abalisado, que o salvou de uma morte, julgada infallivel por alguns dos mais distinctos vultos da medicina portuense , é V. Exc.a.

Uma divida sagrada, immensa, ficou aberta no meu coração. Solvel-a é impossivel. Ella é insoluvel. Mas o que eu não posso, o que eu não devo, é deixar de lavrar uma publica obrigação d'ella. Escolhi para o fazer este livro, dedicando-o a V. Exc.a e inscrevendo n'elle este convicto mas deseloquente testemunho da minha incommensuravel gratidão.

O livro que tenho a honra de dedicar a V. Exc.a, é a ultima producção de um talento como o de V. Exc.a privilegiado : de um conterraneo de V. Exc.a, que se tornou illustre nas letras, como V. Exc.a o é na sciencia ; de um contemporaneo de V. Exc.a nos tempos saudosos da Academia de Coimbra, de que elle foi, como V. Exc.a é, ornamento distincto ; de um amigo, talvez, cujo talento V. Exc.a apreciou e cuja falta, como todos os amadores das boas letras, ainda hoje deplora.

Mais que qualquer outro, escolhi este meio de patentear a V . Exc.a o meu indelevel reconhecimento . Alliando a confissão d'elle a uma obra que , como as demais de auctor tão illustre, viverá no porvir, assim consigo, como é intimo desejo meu, perpetuar n'um padrão, que pela mão do artifice que o lavrou , julguei ser digno de V . Exc .a, a divida que nunca julgará satisfeita o que, cheio de profunda veneração , tem a honra de confessar-se

De V . Exc.a venerador e criado eternamente grato

Porto , 15 de abril de 1876 .

J. A. P . da Silva .

EL-REI DINHEIRO

PARTE PRIMEIRA

Quanto tens, tanto vales

Muchos amigos tuve cuando prospero; todos me deseaban, me regalaban , y con sumission se me ofrescian ; cuando faltaron dineros, faltaron ellos, falescieron en un dia su amistad y mi dinero.

M. ALEMAN. -- Gusman de Alfarache.

I

O general Bernardo Tovar tinha, em 1841, sessenta e dois annos de idade. Era de estatura regular, mais alto que baixo, muscular e de membros media namente cobertos de carnes. Tinha sido homem de grandes forças. Aos vinte e cinco annos fazia parar um boi na carreira , com um murro matava um cavallo , e de uma cutilada partia em duas metades o cráneo de um homem . A coragem correspondia-lhe a este valor muscular ; e no meio dos maiores perigos conservava uma serenidade e um sangue frio tão admiravel e tão natural que punha valor aos mais descoroçoados. Era de natureza bemfazejo e bondoso , mas rude e grosseiro como qualquer soldado de leva : apurava o sentimento da honra e do brio até o melindre , e, em geral, as suas ideias eram justas e sensatas; -- mas era casmurro e teimoso como poucos, e depois de embirrar, cerrava os olhos a todas as considerações, e ia brutalmente para diante . A gotta aguçara-lhe, nos ultimos annos, este caracter naturalmente irritavel e rabugento . A paciencia e a resignação eram virtudes com que nunca travara amizade; atacado, por tanto, por uma molestia que lhe violentava a natural actividade, e que lhe embaraçava de imprimir ao habito de mandar a expressão despotica que lhe lisongeava aquelle genio que tinha, póde bem imaginar-se o que elle seria depois que se viu amarrado ao terrivel éculeo da inerte podagra .

Bernardo Tovar era filho segundo de uma casa nobilissima e vinculada do Minho ; quer dizer, era homem que nascera condemnado pelas velhas leis portuguezas a ser pobre e dependente toda a vida. Desde creança mostrou caracter rixoso, dado todo a valentias e exerciciosmusculares, e nada proprio para as letras, ás quaes jurara odio figadal, desde que lhe metteram o alphabeto nas mãos. Apezar d' esta natural inimizade, o pae, aconselhado por um tio bispoque tinha, dedicou-o desde o berço á egreja , e quiz fazer d' elle frade cruzio . Bernardo , mal teve consciencia da peça que lhe queriam pregar, reagiu desde logo contra ella com toda a violencia do seu genio . O pae quiz leval-o ao principio pela brandura , pintando-lhe com tintas fidelissimas todas as commodidades de aquella boa e santa vida fradesca ; mas vendo por fim que nada vencia com aquelle caracter casmurro, soccorreu-se a um bom marmeleiro, e Bernardo, persuadido por umas poucas de sovas que apanhou , cedeu da teima, e foi estudar. No fim de trez annos de latim , chegou a saber traduzir de cór o Mundus a Domino constitutus est. Mas toda esta sciencia e todo este longo tyrocinio nada puderam com aquelle caracter montaraz e quasi selvagem . Bernardo continuava a raivar desesperado diante da regencia emmaranhada da phrase latina, e vingava-se da coacção do marmeleiro do pae , quebrando a cabeça aos condiscipulos, e fazendo das folhas do compendio buchas para carregar a espingarda de caça.

N'esta occasião os francezes invadiram Portugal. O caracter bellicoso de Bernardo Tovar não pôde resistir a agitação febril, que concitou todo o paiz em favor da independencia . Em certo dia foi á cara ao professor de latim que suspirava pela paz , roubou ao pae dez moedas e um cavallo , fugiu , e foi assentar praça de soldado razo n 'um regimento de cavallaria . Seguiu-se a guerra com todos os seus heroicos episodios. Bernardo combateu em todas as batalhas até aos muros de Tolosa , ficou quatro ou cinco vezes estendido por morto no campo, e quando o exercito portuguez voltou á patria , já elle era coronel, tendo galgado por distincção uns poucos de postos. Mas em lugar de regressar com os seus camaradas, Bernardo continuou com os francezes para a frente . Lord Wellington , apesar dos muitos desgostos que aquelle genio casmurro lhe dava, tinha-lhe grande predilecção. Admirava-lhe aquella prodigiosa força muscular, e sobretudo aquella coragem de leão , e aquelle sangue frio maravilhoso, que tantas vezes testemunhara, no meio dos maiores perigos. Em consequencia d'esta amizade e sobre tudo persuadido por aquella mania bellicosa que tinha, Tovar continuou para a frente com lord Wellington, e com elle foi parar, a Waterloo, onde assistiu ao ultimo acto da grande tragedia que a Europa representava , havia annos, agitada pelo genio de um dos maiores capitães de que a historia do mundo faz menção.

Em 1815 acabou a guerra. Então Bernardo Tovar achou-se , segundo a phrase vulgar, como o peixe fóra de agua . Por mais de dois mezes andou impertinente, e como pasmado, porque não podia habituar-se a paz, estado anormal para o seu genio e para o seu organismo. Por fim , desesperado e aborrecido , embarcou para a Asia , levando comsigo o seu camarada José Lopes , conhecido no exercito pelo nome de Pedreneira , em razão do genio teimoso e casmurro que tinha, no que, bem como em coragem e em força muscular, não cedia o passo ao general. Entre estes dois homens havia a mais bem atada e sentida amizade , apezar de parecerem inimigos figadaes, porque não consta que, durante a longa vida que viveram em commum , estivessem um só momento conformes, ou deixassem de ralhar um com o outro. Comtudo a amizade que os ligava era verdadeira ; deixar-se-iam morrer um pelo outro sem vacillar um momento . Ligava-os um grande serviço que mutuamente se tinham prestado. Em Badajoz, o Pedreneira salvou a vida a Bernardo Tovar, arrancando-o , quasi exanime, debaixo de um montão de cadaveres, que tinham ficado metralhados á bocca da brecha ; em Talavera, Tovar salvou a vida ao Pedreneira, que de certo morreria desamparado no campo, onde cahira derribado por duas cutįladas e um tiro de pistola , se elle o não retirasse, atravessado sobre o cavallo , e o não tivesse conduzido ao hospital de sangue.

Estes motivos ponderosissimos, actuando sobre aquelles dois caracteres verdadeiramente generosos e nobres, fizeram o prodigio de ligar, para a vida e para a morte , aquelles dois homens, que pela egual dade dos genios indomaveis e teimosos que tinham , pareciam haver nascido para serem inimigos irreconciliaveis um do outro. A longa convivencia completara a obra principiada pela gratidão generosa : Bernardo Tovar e o Pedreneira chegaram por fim aquelle grau de amizade em que bem se pode dizer que a mesma alma rege: os dois corpos, o que elles não deixavam de demonstrar praticamente, pela egualdade com que teimavam , rabujavam , gritavam e ralhavam de tudo e de todas as coisas deste mundo, não exceptuando, já se vê, elles mesmos.

Como ia dizendo, em 1815 , depois de acabada a guerra, Bernardo Tovar embarcou com o Pedreneira para a India, e com elle e comsigo deu finalmente em Macau. Ahi o amor fez das suas, e, por ventura, para demonstrar quanto pode ou quanto é caprichoso , acommetteu o coração de Tovar, e levou-o litteralmente de assalto . Foi o caso.

Quando Bernardo Tovar chegou a Macau , já tinha os seus quarenta annos de idade, isto é, estava no vigor da virilidade, e se não era bonito nem pintalegrete , à sua figura tinha comtudo certa elegancia varonil, adonairada primorosamente por um bem tirado desplante marcial. Havia em Macau uma rica herdeira, senhora de quatrocentos contos de reis , que tinha chegado solteira á idade de trinta annos por não ter encontrado o seu typo. Era uma scisma mas scisma que tem entrado na cabeça de muito boa gente do sexo , e que outrosim tem feito com que muitas raparigas fiquem solteiras,se por ventura não teem quatrocentos contos de reis de dote . Ora o typo da sobredita senhora era precisamente o typo marcial, e com quanto nas suas imaginações não tivesse prevenido a grosseria e a rudeza do Apollo bellicoso que sonhava, comtudo Bernardo, pelo lado da marcialidade , ultrapassava todos os limites de aquellas idealisaçeõs excentricas. Já se ve que quem espera trinta annos por um typo, quando o encontra, aferra-o como o naufragado se agarra ao cabo de salvação. A dita senhora começou, portanto , a namoral-o com todo o desgarre, esperando d 'elle a solicitude, a que o seu amor e os seus quatrocentos contos lhe davam direito . Mas Bernardo era homem que nunca tinha namorado,e que era até incapaz para o namoro . Todas as suas campanhas amorosas tinham sido pelejadas com as vivandeiras do regimento , e quando muito com alguma tricana, apaixonada da farda, e todas ellas sem excepção tinham terminado pelo assalto da praça á viva força . O namoro, portanto , da millionaria era coisa nova para elle. Bernardo Tovar acommettido pois por um inimigo e por uma manobra desconhecida, ficou prudentemente na espectativa , suspeitoso e murando de nesga as evoluções do contrario . Por fim desenganou-se e entrou decididamente em campanha, já se vê, encarando a conquista pelo lado material, e sem que nem por fumos lhe entrasse na cabeça a idea de que a tudo aquillo presidia uma paixão, e que estas paixões nas mulheres teem e devem ter por desenlace final o matrimonio . Mas a coisa mostrou que havia de ter delongas e grandes delongas, e Bernardo, que não era homem para ellas, resolveu-se a levar a dama de assalto á laia de vivandeira ou de tricana.

E d'esta resolução sahiu o amor e o casamento ! Se Bernardo Tovar se tivesse lembrado de tal, tinha-se suicidado primeiro .

Resolvido portanto a decidir a batalha por um assalto á queima roupa, Bernardo chamou o Pedreneira a conselho , e os dois combinaram o plano de ataque, que havia de ser realisado no dia seguinte . Chegado este e a occasião propicia , Tovar entrou resolutamente em combate , mas quando, em sequencia das manobras combinadas, ia a pôr em pratica um atrevimento decisivo , a dama sacudiu-se-lhe corajosamente dos braços e assentou-lhe em cheio na cara a mais estoirada bofetada que mão de mulher , amadora de typos marciaes, pode estender em face de soldado affeito a ouvir assobiar as balas. Bernardo Tovar viu as estrellas ao meio dia , soltou um berro que fez fugir a Lucrecia macaense , poz-se a bravejar como um toiro , e por fim sahiu furioso pela porta fóra . O passeio até casa acalmou-lhe o ardôr da face ; quando chegou á porta sentiu o coração em vivas chammas de amor, ao pôr o pé no primeiro degrau da escada lembrou -se de casar, ao chegar ao patamar deu um berro pelo Pedreneira, e ao entrar na sala ordenou lhe peremptoriamente que vestisse a farda nova , e que fosse perguntar á dama do bofetão se queria casar com elle esbofeteado.

Um raio que tombe aos pés de qualquer christão não produz maior assombro do que esta ordem fez em Pedreneira. Ao principio quiz resistir , mas tudo foi baldado ; o amor fallou mais alto que todos os seus argumentos, e sobre tudo tinha contra elles o capricho do amo, que teimava que havia de casar, visto que o camarada dizia que era grande asneira fazel-o.

Por fim , a pezar seu , Pedreneira partiu com a embaixada. Aquella pergunta marcial a dama respondeu marcialmente que sim ; e oito dias depois Bernardo Tovar e a sobredita senhora eram marido e mulher.

Coisa admiravel ! A posse não fez n'aquelle amor a pirraça costumada. Bernardo Tovar continuou a amar sua mulher, chegou a amal-a extremosamente é com toda a violencia do caracter que Deus lhe dera , e a tanto chegou aquelle amor que debaixo da pressão d 'elle curvava-se como escrava aquella vontade indomavel e selvagem , que não vergara debaixo do rigor da estreita disciplina do exercito britannico .

Dois annos depois a mulher de Bernardo Tovar morreu . No primeiro impeto Bernardo quiz matar-se n'um accesso de desespero e de raiva ; valeu -lhe então o Pedreneira, e por fim ... o tempo. Resignou-se com a vontade de Deus, e partiu para a Europa, trazendo comsigo os contos de reis, o Pedreneira e um filho que lhe tinha ficado, e que lhe garantia o usofructo da outra metade do dote .

Ao chegar a Europa achou proclamada a constituição de 1820 . Fez-se liberal como toda a gente o era então, e por teima continuou a dizer, em 1828 , que a constituição era boa, apezar do irmão morgado e de toda a familia lhe gritarem que era pessima. Emigrou portanto para o Brazil, donde partiu para a Ilha Terceira , logo que recebeu uma carta de seu cunhado o conde de Vermoim , participando-lhe que ia arrebentar a guerra . Entrou então em todas as campanhas de 1832, bateu-se como se tinha batido na guerra peninsular, fez parte das expedições mais audaciosas, e em 1834 appareceu no Minho , já marechal de campo, com mais umas poucas de cutiladas e de balas no corpo, e impertinentissimo por já não haver guerra . Em 1837 veio estabelecer-se no Porto , para completar a educação do filho , fazendo-o entrar no grande mundo. Comprou uma casa fora da barreira da Aguardente ,mobilou-a com mais commodidade que luxo , ajardinou-lhe o quintalejo que tinha, e fez construir ao lado d'ella uma espaçosa cavalhariça , onde tinha sempre seis ou oito excellentes cavallos, em que passeava, entretanto que á gotta o não impediu de montar a cavallo . Com todo este luxo de cavalhariça, Bernardo Tovar não tinha uma unica sege. Debalde o filho tentara metter-lhe aquella commodidade em casa, ou mesmo um tilbury, ou um gig , em que viesse pintalegrar na cidade; o general declarou peremptoriamente ao filho que podia comprar e montar toda a casta de cavallos conhecidos , mas que se tivesse a petulancia de lhe metter das portas a dentro aquellas affrontosas effeminações -- quebro-te a cabeça ! Esta era a phrase sacramental de que usava em todas as occasiões solemnes, em que entendia dever impôr energicamente a sua vontade, o que acontecia pelo menos duzentas vezes cada hora.

São nove horas da manhã de um dia calmoso de junho. O general tinha acabado de almoçar, e , segundo o costume, subia vagarosamente pelo jardim acima em direcção a um caramanchão de madresilvas e lilazes, à sombra do qual costumava passar as horas mais calmosas do dia . Ia impertinentissimo ; acabava de entrar em convalescença de um ataque de gotta, e por isso caminhava difficilmente, encostado a uma grossa bengala de punho de oiro , e ao hombro robusto do seu amigo Pedreneira, que n'estas occasiões lhe servia de moleta indispensavel. Atraz d'elle marchava , lento gradu , e de cabeça e rabo cabido um outro membro essencial da familia . Era um velho cão da Terra Nova , por nome Badajoz , rixão e casmurro como o amo, seu favorito e grande imitador, que se o amo berrava, rosnava com ar ameaçador ; se ria , espreguiçava-se, dando ao rabo e bocejando com estrepito ; se se sentava , deitava-se-lhe aos pés, e dormia como um bemaventurado ; afora, já se vê , quando tinha maus sonhos, em que arremettia , rosnava ou chorava, com grande espanto do general, que nunca pôde explicar o phenomeno, e por causa d'elle chegou a per suadir-se mais de uma vez que o seu cão era maluco.

O general caminhava com difficuldade, e acompanhava o seu difficil caminhar com um regougo im pertinente mas imperceptivel. Por fim foi aclarando a palavra , até que deixou distinguir o que fallava .

-- E tudo por tua causa , maroto -- dizia elle para o veterano -- tudo por tua causa ! Se me tivesses deixado ficar em Badajoz, não soffria agora isto.

-- A culpa é toda sua -- respondeu o soldado em tom afinado pela impertinencia do amo -- Eu bem lh'o dizia ; se tivesse tomado os meus conselhos, não chegava a esta desgraça . A culpa é sua ; agora aguante-se .

-- Quebro-te a cabeça !.. A culpa é minha ! Com cem raios !.. Mariola !.. -- bradou o general parando e batendo com a bengala no chão, satisfeito de ter occasião de despeitorar o desespero em que ia .

-- É como lhe digo -- replicou o veterano -- Quem quer bebesse menos. Eu bem lhe dizia que aquelle rhum havia de dar cabo de si. Meio quartilho para matar o bicho ! Só pelo diabo !.. Agora aguente-se ; é como lhe digo.

-- Mariola !.. Quebro-te a cabeça ! -- regougou o general, e continuou a andar.

Chegado ao caramanchão, sentou-se, arranjou-se e aconchegou -se commodamente em uma pequena mesa que o veterano pôz diante d'elle , depois tirou da algibeira uma charuteira, e collocou-a defronte de si. O veterano foi então sentar-se a distancia em um banco de pedra , e o cão estendeu-se aos pés do amo, poz o focinho entre as mãos, e desandou a dormir .

Passado alguns minutos de silencio , o general tirou um charuto da charuteira .

-- Pedreneira -- disse em voz de commando.

-- General.

-- Lume para o charuto.

O veterano tirou fuzil e isca da algibeira, petiscou lume, que offereceu ao general, e entretanto que elle accendia o charuto , preparava um cigarro para si.

-- Raios e diabos ! -- gritou então Bernardo Tovar, arremeçando furioso o charuto : Não se accende e fede que tresanda!. : Quebro-te a cabeça !... Que charutos !.. puh ! que fetido !.. Isto é veneno para envenenar uma divisão inteira ! Cem diabos !..

-- É mais certo que foguetes á Congréve ! Pelo inferno !.. -- regougou com raiva o veterano.- -- E andar um homem ... quebro-te a cabeça !.. a arriscar a sua vida para que haja um contracto do tabaco com direito de envenenar o povo ! Por mil raios ! Caçara-os eu em Almoster ... Cortava-lhes as orelhas...

-- E eu fazia-lhes fumar d'este tabaco ...

E assim dizendo , o veterano , com os olhos abrazeados, apresentou ao general um cigarro bolorento que tinha nas mãos.

O general tomou outro charuto , que acéendeu depois de muito trabalho, e poz-se a fumar. De ahi a pouco principiou a sorrir ironicamente e a balancear compassadamente a cabeça ...

-- Hein ! E que te parece ? -- disse por fim -- O snr. Francisco ... ! O snr. meu filho ... dormiu está noite no Carmo, preso ... preso por bulhento , por desordeiro !... Cem diabos ! E eu aqui amarrado a esta cadeira !...

-- Coisas de rapaz !- respondeu fleugmaticamente o veterano .

-- Coisąs de rapaz ? -- exclamou o general, dando um salto na cadeira -- Quebro-te a cabeça ! Coisas de brejeiro, de garoto ... Jogar o socco na sua publica , quebrar as costellas a um cidadão honrado ... à vista de Deus e de todo o mundo .... sem respeito pela lei e sem vergonha ... Hein ! . ..

-- Ora adeus, não faça tanta bulha -- replicou o veterano fumando -- sempre aconteceram d'estas coisas. Lembre-se do seu tempo .

-- Mariola ! Quebro-te a cabeça !.. Pois tu desculpal-o!... Mas de certo ; se tudo isto é por tua culpa ! Ahi tens, anda, bate, as palmas... Ahi tens os resultados da bella instrucção que lhe déste !... Anda, continua a encobrir-lhe as maroteiras... Cem diabos ! Quebro-te a cabeça ! ... Andar ao socco no meio da rua ... quebrar as costellas a um homem pacifico ... Achas isto bonito ?...

-- Acho que quem tem telhado de vidro, não apedreja os dos visinhos -- respondeu o veterano, levantando-se e atirando rudemente com a ponta do cigarro para a frente.

-- Mariola ! ... Quebro-te a cabeça ! Pois eu estive alguma vez preso no Carmo ?

-- Não senhor, mas esteve preso em Valença ... cem diabos !. . mas esteve preso na Hespanha muitas vezes: e em Tolosa, se não fosse o lord, era fusilado por querer cortar as orelhas ao general da divisão... É como lhe digo ... Pelo inferno! O rapaz não ha-de ser nenhum banana. Tenho dito .

-- Mariola ! Quebro-te a cabeça ! -- bradou o general, dando um salto furioso na cadeira.

-- Sentido ! -- disse então o Pedreneira, acenando com a cabeça para a rua que conduzia ao caramanchão. Depois deu uma volta sobre os calcanhares, e sentou-se resmungando.

O general, com o rosto incendiado pela colera, olhou na direcção que o veterano lhe indicava. De repente operou-se n'elle completa transformação. Os olhos brilharam-lhe de felicidade, e os labios encresparam-se-lhe com um leve sorriso de alegria intima.

Pela rua acima caminhava um moço de figura esbelta e apessoada, e cujo rosto franco e cheio de viveza denunciava uma grande alma e uma grande intelligencia . Trajava com toda a elegancia e sem affectação, e nas maneiras desopprimidas e desaffectadas manifestava homem habituado ao grande mundo , mas franco e leal e incapaz de esconder o que sentisse nem por medo, nem por calculo .

Era Francisco Tovar, o filho querido do general, que elle estremecia sobre todas as coisas d'este mundo, e contra o qual estivera a gritar até agora, porque havia passado a noite preso no Carmo.

-- Bons dias, meu pae ; como passou ? -- disse o moço aproximando-se do general, cuja mão tomou e beijou respeitosamente.

O general deixou ver no rosto toda a amizade extremosa que lhe tinha. Nos labios pronunciou-se-lhe mais o sorriso de felicidade, e a mão correu instinctivamente pela cabeça do filho, como se o quizesse afagar. De repente , porém , Bernardo Tovar atirou-se de repellão para o encosto da cadeira , crispou furiosamente as feições, e exclamou :

-- Como passei ? Mariola ! ... Quebro-te a cabeça ! ... Quantas vezes lhe tenho dito que não quero que bulhe com ninguem ? Pelo inferno !... Quem sou eu ?

-- Meu pae, oiça-me...

-- Quebro-te a cabeça ! Ouvir o que ? Que andaste a fazer de garoto , hontem à noite, ao sahir do theatro !. .. Cem diabos !. .. Que foi preso... que dormiu esta noite no Carmo ? ...

-- Porém , meu pae...

-- Qual porém , nem qual diabo ! Cale-se ! E' a ultima vez que lh'o digo -- não quero garotos em minha casa. Andar a fazer desordens, e depois levar uma facada... um tiro .. . uma estocada... E depois... quebro-te a cabeça !... e eu aqui n 'esta cadeira ...

-- E elle a dar-lhe -- regougou o veterano, accendendo um cigarro .

-- Quebro-te a cabeça ! Tenho dito ; se me torna a constar que anda ás bulhas, vae tudo com um milhão de diabos ... Mariola ! Andar a fazer desordens por toda a parte, sem vergonha, nem respeito pela authoridade... e depois poder levar um tiro, uma facada ...

-- Dá-lhe que ainda bole ! -- resmungou outra vez o veterano.

-- Com cem raios ! Que resmungas tu ?... Quebro-te a cabeça !... -- trovejou o general voltando-se para o Pedreneira.

-- Digo ... -- replicou este rudemente -- pelo inferno !... que não é preciso tanta bulha por tão pouco ? E olhem quem ! Já lhe disse , quem tem telhados de vidro não apedreja os do visinho ... É como lhe digo.

-- Mariola ! Quebro-te a cabeça ! -- gritou o general, furioso como um toiro agarrochado vinte vezes no curro.

-- Cala-te, Pedreneira -- disse Francisco Tovar , piscando o olho ao veterano -- meu pae tem razão , maş...

-- Tenho razão ! -- exclamou o general n'um crescendo enfuriado -- não tenho , não senhor, não tenho. Mil diabos ! Andar a fazer desordens, e depois ... poder levar um tiro , uma facada.

-- E elle a dar-lhe... com cem raios !... e elle a dar-lhe -- rouquejou o veterano , levantando-se, e assentando, ao levantar-se, duas grandes palmadas nas coixas.

-- Mariola ! ... Quebro-te a cabeça ! -- regougou o general, empurrando a mesa enfurecido.

Francisco Tovar, que conhecia aquelles dois genios casmurros, e sentia ao mesmo tempo que tinham tocado n'aquelle momento o ultimo grau da casmurrice, donde se seguia quasi sempre violenta e interminavel polemica , metteu-se de permeio, dizendo :

-- Se me dá licença, meu pae, conto-lhe o que aconteceu , e creio que me dará razão ...

-- Razão !... Quebro-te a cabeça ! -- bradou o general -- dar razão a uma desordem ! Esta só pelo diabo ! Tenho dito ; se torno a ouvir ...

-- Porém , se me da licença ...

-- Tenho dito .. . tenho dito . .. tenho dito ... Quebro-te a cabeça !... Não quero bulhas... não quero bulhas ... não quero bulhas...

-- Oiça-o , com mil diabos ! -- gritou o Pedreneira furioso .

-- Mas dê-me licença, meu pae. .. -- acudiu Francisco Tovar , para desviar a attenção do general das palavras do veterano .

-- Não dou licença, não senhor ; tenho dito , não dou licença ... dou licença , diga , diga lá o que tem a dizer. Ha-de ser bonito, não tenha duvida, ha-de ser bonito ... Quebro-te a cabeça !

Assim dizendo, o general aprumou-se teso contra o encosto da cadeira , e fitou o filho com cara avinagrada. O Pedreneira sentou-se, fazendo um gesto de desespero e de zanga. Francisco Tovar, que tinha conservado no meio da tempestade o mais admiravel sangue frio , puxou uma cadeira para perto da do pae, e disse-lhe sorrindo :

-- Não é verdade, meu pae, que por mais de uma vez me tem dito que me dava um tiro se lhe constasse algum dia ter-me eu deixado insultar impunemente ?

-- E dava. Quem o duvida ? -- exclamou o general -- Quebro-te a cabeça !... Antes morto que covarde. Mas não ser covarde não é ser bulhento , tenho dito .

-- Bem o sei, meu pae, e tambem não fiz esta pergunta porque o não soubesse muito bem . Foi só para o recordar. Agora vou contar-lhe o que succedeu e depois veremos se me acha ou não razão.

O general derribou-se mais sobre o encosto da cadeira , e contrahiu o pescoço n'um tremulo que lhe balanceou a cabeça de um modo que significava perfeitamente a ironia teimosa , com que acceitava o desafio do «veremos» com que o filho o provocava .

-- Hontem -- disse este sorrindo-se e tirando da charuteira do pae um charuto -- acompanhei ao theatro a familia do nosso amigo Francisco Ribeiro. Ao sahir da sege, dei o braço a D. Adelaide, e com ella me encaminhei para as escadas da segunda ordem , seguido por elle e por D. Manuela . Ao dobrar o patamar do segundo lanço ... Pedreneira tens ahi lume?

O veterano petiscou lume, e Francisco Tovar accendeu o charuto .

Ao dobrar o patamar do segundo lanço , deparei pela frente com dois individuos, que estavam conversando um com o outro. Ora deve saber, meu pae , que ha mais de dois mezes que não fallo com aquelles dois homens, apesar de pertencerem ao grande mundo , e não fallo com elles porque... porque emfim entendo que nenhum homem honrado deve fallar com elles . São dois miseraveis para os quaes não ha homem honrado, não ha senhora virtuosa, nem ligação franca e leal ; dois homens emfim para cuja maledicencia não ha no mundo coisa sagrada ; que por mais de uma vez tem levado com a sua má lingua a intriga e a desgraça ao seio de muitas familias .

-- Raios e diabos ! -- regougou o general, aprumando-se na cadeira .

-- E depois se aquella ma lingua fosse abonada por um caracter sem mancha , se fosse resultado da misantropia da honra que não transige com as conveniencias sociaes... Mas nada ; aquelles dois Catões são dois caloteiros safados que vivem das mais abjectas fajardices , que deprimem a honra das mulheres para as rebaixarem até elles, e atacam a reputação dos homens para fazer do silencio mercadoria que lhes produza dinheiro . Ora já vè, meu pae, que um homem honrado não deve apertar a mão a estes homens. O mundo acceita-os e acaricia-os pela frente, reservando-se o direito de lhes dizer nas costas o que sente a respeito d'elles . Eu porém, que nem sempre costumo fazer o que vejo fazer aos outros, entendi que lhes devia dizer francamente : « Os senhores são uns infames; não lhes consinto que me tornem a comprimentar» .

-- Bravo !... Quebro-te a cabeça ! Muito bem... muito bem , meu rapaz -- bradou o general, com os olhos brilhantes de satisfação.

-- Ora -- continuou Francisco Tovar -- esta minha intimação teve logar ha dois mezes. Tive o trabalho de a fazer a cada um em separado, porque os não encontrei ambos juntos. Hontem porém encontrei-os reunidos, ao dobrar, com D. Adelaide pelo braço , para a segunda ordem do theatro de S . João. Ao passar por elles ouvi que diziam : «Olá ! então substituiu o primo! -- pois olha que não lucrou muito com a acquisição.»

-- Pelo inferno ! -- gritou o general, fazendo-se fulo de raiva.

-- Com mil diabos! -- regougou o Pedreneira , pondo-se de pé com os punhos cerrados.

-- Ouvindo isto --- continuou placidamente Francisco Tovar -- já se vê que não fiquei muito contente ; mas para que Adelaide o não ouvisse tambem , levantei a voz, fazendo-lhe notar um rico vestido, que trajava uma senhora que atravessava para um dos camarotes da esquerda. Infelizmente, porém , Adelaide fez-me notar que o pae e a mãe tinham ficado conversando com uma familia no baixo das escadas, e que era preciso parar. Parei, que não tive remedio , e então elles, parece que de proposito , começaram a vomitar mil chanças insolentes contra a reputação de Adelaide, envolvendo-me n'ellas e a Luiz , que é como o pae ha-de saber , o namoro d'ella .

-- E tu ... e tu .. . raios e diabos !... e tu que fizeste ? -- bradou o general em voz surda e abafando de colera.

-- Eu -- respondeu fleugmaticamente Francisco Tovar -- conduzi Adelaide ao camarote ...

-- E não esmagaste aquelles morotos ! ... raios de diabos !... E deixaste-te insultar e á filha do nosso Ribeiro !... Quebro-te a cabeça ! Covarde !... Mariola!... -- exclamou o general saltando desesperado , na cadeira.

-- Oh ! meu pae, bem vê que dormi esta noite no Carmo...

-- Mas não os arrebentaste logo, logo, alli mesmo: mas tens sangue canalha que não se incendeia com esses insultos ! Milhões de diabos !... Quebro-te a cabeça !... E eu aqui amarrado a esta cadeira!...

Os olhos de Francisco Tovar lampejaram como os olhos de um tigre . Fitou o general com um olhar, que á mingua de outras provas, era bastante para evidenciar que era legitimo filho d'elle ; depois tirou do charuto uma grande nuvem de fumo, sorriu-se com um meio sorriso ironico , mas forçado, e disse com a mais admiravel fleugma :

-- Já vê, meu pae, que sou menos bulhento de que v. exc.a. No meu logar não teria respeitado a dignidade da senhora que acompanhava ; teria perdido a cabeça, e feito uma desordem com grave compromettimento d'ella ...

-- Pelo inferno ! ... Que me importava a mim com essas historias? ...

-- Eu entendi o contrario -- interrompeu Francisco Tovar sempre com a maior placidez -- fui deixar Adelaide no camarote , fingindo que nada tinha ouvido , isto para a não amedrontar, e depois ...

-- E depois ? Cem diabos ! -- regougou o Pedreneira , que durante a narração estivera olhando Francisco Tovar de maneira que bem demonstrava que , n'aquella occasião, era em tudo e por tudo da opinião do general.

-- E depois desci, e vim procural-os. Encontrei-os n'uma roda de rapazes a dizer mil infamias a meu respeito e a respeito de Adelaide. Ainda ouvi algumas palavras. Cheguei-me a elles , agarrei cada um por um hombro ...

-- Bravo ! bravo ! meu rapaz . ..

-- E disse-lhes : « Vocês são dois infames, dois canalhas, dois sevandijas ; se fossem dois homens de bem , esmagava-os aqui, mas como são dois pulhas abjectos e indignos, faço-lhes assim !» e deitei um escarro na cara de cada um .

-- Só isso ... só isso ! ... Raios de diabos ! -- gritou o general que esperava que o filho dissesse que os tinha deixado ambos mortos aos pés.

-- Só isto não ---- continuou Francisco Tovar, accendendo outro charuto -- não pude ser senhor de mim n'aquelle momento , e cai na fraqueza de quebrar nas costas d'elles a bengala que trazia commigo.

-- Muito bem , muito bem , meu rapaz !-- gritou o general , estendendo-lhe a mão – se o não fizesses... quebro-te a cabeça !... esmagava-te .

-- Mas a coisa não parou aqui -- continuou Francisco Tovar -- depois é que vi, que os dois vinham combinados para se vingarem de aquella intimação que lhes tinha feito , havia dois mezes. Quando eu sahia da platea no fim do primeiro acto , um d'elles chegou-se a mim , e disse-me: « Se o senhor é capaz de fazer aqui fóra , o que acaba de fazer diante de gente , siga-nos» .

-- E tu , mil demonios ? ...

-- Eu segui logo apoz elle , que á porta se reuniu com o outro , e começaram a caminhar na direcção das Fontainhas. Ao chegar ao largo da Policia , pararam , e mal me aproximei, arremessaram-se logo contra mim armados de punhaes.

-- Pelo inferno !... E eu aqui n'esta cadeira ! -- gritou o general, fulo de colera .

-- Canalhas ! -- regougou o Pedreneira , rangendo os dentes, e levando contra a cara os punhos cerrados pela raiva.

-- Eu fiz pé atraz , e sustei-lhes o impeto com os braços... :

-- Bravo , bravo , meu rapaz!

-- Tirei-lhes os punhaes da mão ...

-- Muito bem , muito bem ....

-- Atirei um murro á cabeça de um que o fez ir sem sentidos a terra ...

-- Bravo ! bravissimo ! muito bem , muito bem , meu Francisco !

-- Então o outro puxou de uma pistola , e desfechou sobre mim ...

-- Milhões de diabos ! ... -- gritaram á uma o general e o veterano.

-- Não houve duvida , fez-me apenas esta arranhadella -- disse fleugmaticamente Francisco Tovar, arregaçando a manga, e mostrando ao pae o braço esquerdo , ligado na parte superior .

-- Então eu -- continuou , entretanto que os dois lhe examinavam anciosamente o braço -- perdi a cabeça com aquella infame traição. Tirei-lhe de repente a pistola das mãos, e com ella lhe atirei tal pancada , que lhe quebrei um braço e não sei quantas costellas.

-- Bravo, bravo , meu rapaz ! -- bradou o general, pondo-se de pé, e atirando-se de repente aos braços do filho , que se viu obrigado a ajudal-o a sentar-se mais de vagar do que se tinha erguido, rangendo os dentes e jurando como um damnado entre as dôres da gotta , que aquelle excesso de enthusiasmo lhe tinha provocado.

Depois que as dôres do general acalmaram , Francisco Tovar continuou :

-- Ao som do tiro, a patrulha correu , viu aquelles dois homens em terra e a mim de pé, levou-me portanto para o Carmo, onde dormi deliciosamente.

– Pelo inferno ! Porque o não mandou dizer ? -- resmungou o Pedreneira.

-- Para que ? Era muito tarde, não quiz incommodar meu pae. E agora diga-me -- continuou voltando-se para o pae -- tive ou não razão para o que fiz ?

O espirito de contradicção occupou de repente o animo do general. Encostou-se para traz na cadeira, e disse com cara envinagrada :

-- Se tens razão ? Conforme. Quebro-te a cabeça!... Se fosse no principio , vá ; mas depois ...

-- Alto lá , sôr Francisquinho -- disse rudemente o Pedreneira , puxando-lhe pelo braço -- deixe-o fallar que elle desdiz sempre todo o mundo. É systema. Tem razão e muita razão ; portanto fez muito bem , e é como todo o homem honrado deve fazer, ainda que lhe arrumem em seguida com as seis balas da ordem no bucho. É como lhe digo ; mas para outra vez não se metta n'essas alhadas, que o podiam matar. Encommende-me cá o negocio a mim que, pelo inferno !... é como lhe digo ... palavra de soldado ! não lhes ficava osso inteiro no corpo.

-- Raios e diabos !... E eu aqui amarrado a esta cadeira ! Quebro-te a cabeça ! ... -- bradou furioso o general, a quem o alvitre officioso do veterano fizera sentir profundamente a impotencia a que o reduzira a gotta .

Francisco Tovar sorriu-se como se sorri todo o homem , que tem a consciencia de que vale tanto como os que mais valem , mas que nas palavras que lhe poem em duvida esta verdade, conhece a amizade sincera que as inspira.

N'este momento chegou ao caramanchão um novo personagem .

II

O recemchegado era nada menos que Francisco Ribeiro , amigo intimo do general e pae de aquella menina que o moço Tovar acompanhava , quando lhe deram motivo para a desordem que o fez ir passar uma noite ao Carmo.

Francisco Ribeiro era homem alto , sobre o magro , e que affigurava ter para além de sessenta annos, apezar de que realmente pouco passava dos cincoenta e cinco . O rosto nada tinha de bonito, mas, em compensação, reflectia abundosamente uma grande alma, cheia de bondade , de cavalheirismo e de gene rosidade. Os modos livres e desaffectados, o olhar brilhante de benignidade e de alegria , e a jovialidade expressiva que lhe contrahia os labios n'um sorriso cheio de franqueza e de lealdade, que ao mais leve motivo se disparava n'uma gargalhada estrondosa e rasgada, quando fallava com os seus amigos, apresentavam-o como homem sem pretenções de qualidade alguma, serviçal e propenso a correr instinctivamente a valer á desgraça --- um homem emfim d'esses poucos, d'esses rarissimos, que ainda por ahi apparecem para honra da humanidade, na qual vêem em cada homem um egual, em cada egual um amigo. .

-- Bons dias, compadre , bons dias -- disse elle sacudindo com força a mão que o general estendeu para elle affectuosamente -- bem sei porque está arrenegado. Olá , meu traga-moiros (para Francisco). Cá está o Pedreneira, bons dias, bons dias.

Assim dizendo , apertou a mão do Pedreneira com amizade, soltando uma das suas risadas atroadoras e joviaes ; depois puxou uma cadeira para junto da mesa do general, sentou-se, lançou uma perna sobre a outra, atirando ao mesmo tempo com o chapeu para cima de um banco de pedra que alli estava visinho. O chapeu rolou ao chão, sem o dono dar sequer por isso , e alli ficaria até ao final da conversa, se o Pedreneira não tivesse dado pela quéda, e não acudisse a levantal-o e a repôl-o no seu lugar, depois de o ter préviamente limpado com o cotovello .

– Então , meu compadre, está muito arrenegado com o heroe da batalha de hontem á noite ? Ha ! ha ! ha ! -- disse elle por fim -- pois aqui estou eu que venho fazer as pazes, e trago demais uma boa noticia para apimentar o pratinho.

-- Então que tal ? -- disse o general, em cujo rosto bem como no de Francisco Tovar e no do veterano se fazia notar o quanto elle lhes era extremosamente caro -- Mas chega-te para cá, homem – continuou o general, puxando-lhe por um braço -- Com os diabos ! não vês que te dá na cabeça o sol, que entra por aquella brecha, que não sei que maldito gato -- os diabos o levem ! -- me abriu acolá na muralha das madresilvas ?

Francisco Ribeiro soltou estrondosa gargalhada, e desviou a cadeira na direcção que o general indicara .

-- Pois a respeito do nosso Francisco ... -- disse elle .

-- Basta ! Quebro-te a cabeça ! não quero ouvir fallar mais n'isso -- disse o general, dando-se ares de pae severo , cujo resentimento se tinha acalmado com difficuldade.

-- Então está feita a paz ?

-- Sim , a paz ... ha paz. Está tudo acabado ; tenho dito.

-- Está bom ; n'esse caso calo-me, se não. ..

-- Raios e demonios ! -- interrompeu o general -- mas a tal noticia ?

Francisco Ribeiro soltou uma grande gargalhada, batendo ao mesmo tempo duas grandes palmadas na meza , sobre a qual tinha estendidos os braços.

-- Recebi hoje carta de Coimbra -- disse elle -- visitas do meu Paulo ... para todos -- accrescentou rodeando os olhos pelos tres amigos -- Fez acto antehontem , e sahiu-se ... nemine discrepante . Ha ! ha ! ha!...

-- Então só isso ? -- disse o general, pondo-lhe a vista envinagrada .

-- E creio que não é má noticia para um pae e para amigos.

O general fez um tregeito de aborrecido.

-- És um grande asno. Quebro-te a cabeça ! -- disse por fim -- agora vae dar-te por ahi ao desfructe , a apregoar pelas portas que teu filho ficou approvado.

Francisco Ribeiro fitou surprehendido os olhos n'elle .

-- É como te digo -- continuou Bernardo Tovar em tom rabugento -- Pelo inferno ! Olhem o caso extraordinario , inesperado , para chrysmal-o de grande noticia ! És um asno, tenho dito . Quem te ouvir ha-de cuidar que teu filho é algum alarve, e que passou por misericordia : o Paulo é uma grande cabeça ; se o approvaram , é porque deviam , nem outra coisa havia a esperar d'elle . É caso corrente , tenho dito .

-- Oh ! o meu compadre... O meu compadre -- disse Francisco Ribeiro, rindo-se e esfregando as mãos, porque a sinceridade do comprimento do general sabia-lhe melhor, apezar da rudeza e da grosseria, que muitos outros que já tinha recebido em phrase alambicada, mas apenas nascidos dos labios dos congratuladores.

-- É como te digo -- continuou o general em cujas maneiras se descobria claramente o sincero cuidado que lhe merecia tudo que dizia respeito ao seu amigo -- Asno nasceste , e asno has-demorrer, e quanto mais vais indo em idade, quanto mais asno parece que vais sendo ... Se isso é de natureza ! ... Pelo inferno ! é bom ter alma bem formada, mas ser um banana, um bom-serás ... A proposito , diz-me cá, quando é que tencionas ajustar as tuas contas com o teu grande amigo Vasco de Noronha ?

Francisco Ribeiro soltou grande gargalhada, mas apezar da franqueza jovial com que a quiz soltar, deixou ver que não gostava da pergunta .

-- Ora meu compadre, adeusinho ; deixemo-nos d'isso , fallemos de outra coisa -- disse elle por fim .

O general aprumou-se na cadeira , e fitou os olhos no amigo com severidade e com aspecto irritado .

-- A modo que estás maluco de todo -- disse elle por fim -- Raios e diabos ! fallemos n'outra coisa ! Mas em que te hei-de fallar , senão dizer-te que és um asno , e que abras esses olhos, que parece que andam colados a breu e muito breu ? Francisco -- continuou, pretendendo amaneirar a voz -- - eu sou teu amigo, pelo inferno ! e tenho dito. Se o duvidas és um mariola , quebro-te a cabeça !... Por isso é que não posso ver o que vae lá por tua casa, por isso é que quero fallar n'isto , por que tu tens filhos, e por muitos milhões que tenhas ... ferve-me o sangue ao verte comido por um mariola , que se filou a ti como sanguesuga, que te suga, que te esfola , que te rouba, engrolando-te com bonito palavriado e com lisonjas pessoaes que não sei se acreditas nem se não. Mil diabos !

Francisco Ribeiro deu nova gargalhada, e depois respondeu , batendo com a mão no braço do general:

-- Ahi está com os seus berros, compadre. Isso não é assim . Vasco de Noronha é meu amigo , fique n'isto . Não precisa de mim , tem muito que comer .

-- É teu amigo !... Tem muito que comer ! Ora esta ! -- - exclamou o general fazendo-se fulo -- Quebro-te a cabeça ! Pois tu queres dizer-me quem é aquelle maroto ?... Pelo inferno ! Quem é aquelle sevandija ? Um morgadete de provincia , pobretão é devasso, que depois de ter consumido o dote da mulher, achou um pobre diabo , um bom-serás como tu , senhor de uns poucos de milhões, a quem se agarrou com todas as unhas, e de quem tira todo o sangue que pode .

O general calou-se um momento , e depois continuou :

-- É como te digo, Francisco. Sabes que sou teu amigo , que o sou até por obrigação de familia , e por isso attende bem ao que te digo , homem . Põe fóra sentinellas perdidas, reforça os piquetes, e reune toda a força sobre o teu centro ; olha que o inimigo anda-te na cóla , e se pode flanquear-te , cae-te em cima e leva-te o diabo a geringonça. É como te digo .

Francisco Ribeiro quiz soltar a sua gargalhada costumada, mas apenas conseguiu sorrir-se com um sorriso mais amplo do que costuma ser esta especie de contracção labial.

-- Mas, compadre -- disse-lhe por fim -- que significa tudo isso ? Pois porque um homem é meu amigo, porque frequenta , elle e a familia , à minha casa assiduamente , aqui-d’el-rei sobre esse homem , é um tratante , um mariola , que me come, que me esfola, que me engrola !... Ora adeus ; se não lhe conhecesse o genio , compadre , punha-me medo. Isso tudo é filho da desconfiança que tem de toda a gente; é uma grande desgraça para si.

-- Que alarve! -- exclamou o general voltando-se para o veterano que sorriu com ar de entendido -- Vejam vocês que pobre homem este , que ainda não percebeu a ideia de aquelle vagabundo ! Come-te e recome-te , meu Francisco , e o que é peior é que procura impingir a estouvada da filha ao teu Paulo , e casar a tua Adelaide, a minha afilhada, entendes bem ? raios de diabos ! a minha afilhada, com o estupido do filho , que, primeiro que isso aconteça , racho-o eu a cutiladas em qualquer parte onde o encontre .

-- Que visões ! que visões ! -- exclamou Francisco Ribeiro -- mas supponhamos que é assim que não é , general, que não é -- que me importam todos esses planos , todas essas maquinações, se tudo isso cae diante do meu arbitrario «não quero» ?

-- Não quero ! -- replicou o general -- Pobre homem ! Pois se elle conseguir desandar a cabeça aos teus filhos, que importa que digas que não queres ?

Rouba-t'os, batendo-te até com as ordenações do reino na cara , leva-t’os, quer queiras quer não, e com elles os teus milhões, pedaço d'asno ! que é o que elle pretende, aquelle troca-tintas. E depois o teu querer ! Raios de diabos ! É para perder a paciencia ! Pois tu tens querer em tua casa ? Quem a governa ? a snr.a D. Manuela . Quem domina nos teus filhos ? A snr.a D. Manuela . Quem te manda como creado ? A snr.a D. Manuela . Quem decide dos teus negocios ? A snr.a D. Manuela . E tudo a snr.a D. Manuela ; para cima e para baixo a snr.a D. Manuela ; e a snr.a D. Manuela traz a cabeça derrancada pelas antiphonas de aquelle marmello , e quando elle lhe propuzer a negociação, approva-a com todas as forças, e obriga-te a casar os teus filhos com aquellas joias -- filhos d'elle, e tu tens medo, e dizes que sim , que és um Manel-côco , indigno de vestir calças.

Francisco Ribeiro tinha soltado trez ou quatro gargalhadas durante esta longa e temerosa verrina.

-- Misericordia ! O que ahi vae, compadre ! Dê-me porém licença de lhe dizer que minha mulher é demasiadamente amiga de seu marido e de seus filhos para sacrificar a felicidade da sua familia a imaginações parvoas e ridiculas ; mas quando assim não fosse, por muito amigo que seja d'ella, tenho o bom senso e a coragem sufficiente para lhe retirar a condescendencia , com que até hoje a tenho tratado.

-- Que estás tu ahi a alanzoar, homem ? -- exclamou o general -- Vae com essas fanfurrices a outros. Tens medo d'ella que te pellas... A apostar cem moedas que não és capaz de lhe dizeres isso mesmo na cara ?...

-- E a apostar duzentas que o compadre não se lhe atreve a dizer a ella isso que acabou de arrazoar ? -- replicou Francisco Ribeiro de modo que não deixava a menor duvida sobre a veracidade do que o general acabava de asseverar.

Este, mal acabou de ouvir as palavras do amigo, deu um salto furioso na cadeira , e entoou um berro selvagem , como o de um tigre esfaimado na gaiola.

-- Não me atrevo a dizer-lh'o ! Raios de diabos ! -- exclamou enfurecido -- Aqui mesmo, aqui mesmo, outro dia quando me veio visitar, disse-lhe coisas ainda mais pesadas. Mas quem diabo estava aqui? Pedreneira, é ou não verdade o que digo ?

O veterano , que fumava tranquillamente o seu cigarro, manifestando apenas a sua approvação ou desapprovação por olhadellas ou leves signaes de cabeça , não se dignou responder aquella interpellação.

-- Com um milhão de diabos! -- bradou então o general -- Quebro-te a cabeça ! Não ouves, mariola ?

Pedreneira abanou mais outra vez a cabeça, despediu uma enorme baforada de fumo, e respondeu fleugmaticamente :

-- É verdade, mas tambem é verdade que ella deu as costas em resposta , e que foi por ahi fóra regougando com uma cara que mettia medo. Pelo inferno ! Antes dez granadeiros da guarda pela frente, do que uma mulher das que fazem caras assim ás coisas de que não gostam .

Francisco Ribeiro ficou estupefacto e como quem lhe custava a acreditar o que ouvia , tal era a consciencia que tinha do genio de D. Manuela . Por fim deu uma grande gargalhada, e exclamou , esfregando as mãos :

--- Bravo ! bravo ! Então como foi isso ? Conta lá , compadre.

-- Como foi? Raios de diabos ! Foi tudo raso ! -- respondeu o general -- Pilhei-a aqui, e disse-lhe que eras um pedaço d'asno, um banana, um são-bom-homem , que se tivesses figados como os meus , outro gallo lhe cantava a ella . E rematei dizendo-lhe : « A senhora traz essa cabeça trespoutada por aquelle velhaco do Noronha, mas olhe que elle desfructa-a, e o que quer é comel-a. Pois crê nas fumaças que elle lhe metteu na cabeça ? Tenha juizo. Todas aquellas basofias de fidalgo com que aquelle mariola a enloxa , é tudo peta, em que elle acredita tanto , como eu acredito em Mafoma, e de que se devia dar por offendida se tivesse dois dedos de senso commum . Fidalga a senhora ! Isto só por um milhão de diabos! A neta de um extirpa-torrões e a filha de um ferrageiro, que ganhou meia duzia de contos de reis atroando os ouvidos aos visinhos a martellar em ferro ! Fidalga isto ! Arreda , atraz, villões ! Fidalgos e mais fidalgos ! ... Raios de diabos ! quem falla aqui em fidalguias ? Aquelle bigorrilha de outro dia, aquelle villão entre a verdadeira nobreza ! Aqui estou eu que pertenço a uma familia, mais velha do que o reino, e que já antes de haver reis em Portugal tinha uns titulos de nomes arreveçados, de que já me não acordo, mas de que muitas vezes me fallou o padre-mestre, para me congraçar com os cartapacios, quando meu pae embirrou em me fazer estudar latim , aqui estou eu, mil diabos ! e dá-se-me tanto da fidalguia como de todos os diabos dos infernos. Que é isto de ser fidalgo ? Não percebo , por satanaz ! Se é coisa de comer e beber , eis-me aqui que sou fidalgo velho ; mas se é coisa de embofia e de toleima, arreda lá , que não presto para figurante de comedias parvoas. Portanto , tenho dito ; tenha juizo , e veja o que váe por sua casa .

-- E ella , e ella meu compadre ? -- exclamou Francisco Ribeiro, estupefacto de tamanha audacia e em voz abafada de medo instinctivo .

-- E ella , mil diabos ! -- respondeu o general -- ergueu-se , e foi-se por ahi fóra resmungando e com umas trombas de javali assanhado. E o mesmo, tenho dito. Não gostou ? que me importa ; cá para mim o pão é pão e o queijo é queijo . Se não voltar, que se vá com mil diabos, e tu com ella que és um asno e um banana.

Francisco Ribeiro não se atreveu a responder. O general continuava a regougar palavras imperceptiveis com cara envinagrada e raivoso.

-- Parece-me, meu pae -- disse então o moço Tovar -- que a sua amizade pelo nosso Francisco Ribeiro o leva longe de mais . A uma senhora tal linguagem !...

-- Que me importa ? C'os diabos ! Tenho dito ; quebro-te a cabeça ! -- exclamou o general -- Isto é um borrego, um pedaço d'asno, um alarve . Se soubesse pôr-se no seu logar, não me via eu obrigado a metter-me assim na vida d'elles . Com que direito o trata ella como quem trata um negro ? Por ventura é ella mais do que elle ? tem mais juizo ? tem mais força ? e por ventura a duzia de contos de reis que tem de dote são mais que os muitos milhões de cruzados que este pobre diabo tem ganhado com o suor do seu rosto ? Raios de diabos ! se fosse minha mulher, tinha-a endireitado; se não fosse a palavra, era a arrôcho .

-- Oh ! meu pae, um cavalheiro bater n'uma mulher ...

-- Pelo inferno ! E que tem isso ? -- exclamou o general cada vez mais furioso -- Pois porque é mulher ha-de ter o direito de amargurar com insultos e vituperios a vida inteira de um homem ? É fraqueza bater em quem é mais fraco do que nós, é covardia , é de villão , pelo inferno ! sim senhor. Mas a mulher não é mais fraca que o homem , raios de diabos ! Se não tem as forças musculares de um homem , tem a lingua -- a lingua de mulher que é mais forte , que pode mais que os raios, os braços, os nervos, os musculos e toda a força de um homem . Por mil diabos ! Pois hei-de ter o direito de enfiar uma espada no corpo de um homem , porque me joga meio insulto n'uma só palavra , e hei-de eu obrigal-o a aturar dez , vinte , trinta annos uma mulher, que me insulta pelo menos duzentas vezes cada hora , sem que eu tenha o direito de a aquietar com um arrôcho, quando não baste a palavra ! Isto nem os moiros da moirama. Tenho dito , quebro-te a cabeça ! Fôra eu marido d'ella , e veriamos quem governava em minha casa . Aquella sevandija tinha já ido a pontapés pela porta fóra .

O general calou-se então. Francisco Ribeiro tirou um lenço da algibeira , com que limpou o suor que estas invectivas do general lhe tinham feito apparecer na fronte , e depois disse-lhe socegadamente :

-- Obrigado, compadre, obrigado ; conheço que tudo isso é filho da muita amizade que me tem ; mas creia-me, nem tudo isso é exacto . Manuela é muito amante de seu marido e de seus filhos, e não me trata assim mal como diz . ..

-- Não te trata mal ! Raios de diabos ! ...

-- Não, não me trata assim . E' verdade que tem impertinencias, rabugices , exaltações de genio, que poem em alarme toda a familia ; mas emfim aquillo não é por mal. Deus fel-a assim e demais tudo aquillo é nervoso.

-- Nervoso ! nervoso ! -- disse o general abanando a cabeça, e fazendo com a mão uma pantomima expressiva, e que representava ao vivo qual era, segundo a opinião d'elle, o melhor remedio para curar o nervoso das mulheres de mau genio.

Francisco Ribeiro sorriu-se.

-- E' o que lhe digo, e digo-lhe a verdade. Fallo-lhe com toda a franqueza que devo á sua verdadeira amizade, e á recordação de que meu avô foi creado de seu avô, e meu pae creado de seu pae ; e eu tambem, não me pejo de o dizer, antes de ser negociante. É isto que lhe digo, compadre: Manuela, apezar das suas exquisitices, não é capaz de sacrificar seu marido e nem os filhos a embofias, por mais brilhantes que sejam as que porventura lbe queiram metter em cabeça. Na occasião tudo desapparece, diante do amor extremoso que tem á sua familia.

Francisco Ribeiro parou um momento, durante o qual o general abanou constantemente a cabeça sorrindo com ironia.

-- Vasco de Noronha, compadre -- continuou Ribeiro -- tambem foi injustamente apreciado por si. Tenho esta convicção, e creio tanto na justeza d'elle, como creio em que hei-de morrer. Não digo que não tenha pensado muitas vezes em casar seus filhos com os meus. E' pae, e como pae é n'elle muito louvavel o desejo de estabelecer seus filhos convenientemente. E em quanto a Luiza, por mais que elle o pense e procure realisar , não sei porque lh'o hei-de levar a mal. O meu Paulo , casando com ella , não perde nada.

-- Com um milhão de diabos ! Uma loureira, uma cabeça no ar , uma rede de arrastar rapazes ricos!... -- exclamou o general em tom de escarneo.

-- Oh ! compadre, pelo amor de Deus, não faça tamanha injustiça aquella pobre creança. Não traduza por loucura de cabeça airada o que é pura manifes tação e jovialidade da innocencia. Luiza é um anjo que fazia o meu Paulo feliz . Se elle quizer casar com ella , pela minha parte não faço opposição .

Aqui houve de novo um minuto de silencio .

-- Em relação a Estevão. -- continuou depois de elle Francisco Ribeiro -- creio que tal casamento nunca se fará. Em quanto eu viver é um impossivel, na litteral e rigorosa significação da palavra . Não duvido que Vasco de Noronha se lembrasse como pae, alguma vez, d'esse enlace, mas como meu amigo, estou tambem convencido que havia de repellir a ideia de unir a minha adorada Adelaide, e sua querida afilhada , general, a um homem que, desgraçadamente , não pode fazer a felicidade de mulher alguma como marido. Esta é que é a verdade, compadre, tudo o mais são visões, são chimeras. Por muito banana que lhe pareça, creia de mim que sei mais da minha casa, e dirijo-a muito mais effectivamente do que a minha Manuela , apezar de todo o medo que põe com o seu nervoso e com as suas impertinencias.

As palavras de Francisco Ribeiro tinham uma tal expressiva de convicção, que o general não se sentiu com animo de as contradizer ; mas como aquelle espirito de contradicção não era para se aquietar facilmente, soltou uma gargalhada de incredulidade ameaçadora, e fitou Francisco Ribeiro com cara de mangação e abanando com ironia a cabeça.

Este ou não deu ou fingiu não dar por isso . Quando acabou de fallar, levantou-se , e aquelle rosto que exprimia sempre a mais completa jovialidade, deixou ver de repente a mais profunda tristeza . Deu alguns passos ao acaso pelo caramanchão , depois tornou a sentar-se junto do general .

-- Devo ser franco , franco de todo comsigo, meu compadre -- disse elle depois de pensar alguns minutos – devo-o como seu amigo e devo-o como creado que fui de seus paes. Ha algum tempo a esta parte que ando triste , é verdade ; direi até que sou infeliz , porque ... para que lh'o hei-de negar ? ... trago a alma verdadeiramente amargurada. Mas os motivos da minha tristeza, compadre , não são esses que allega , e que não passam de imaginações, de puras chimeras ; as causas da minha tristeza são outras que descobri ha pouco tempo em minha casa , e que me fazem verdadeiramente desgraçado.

O general deu um pulo na cadeira, e deixou ver a maior anciedade no rosto .

-- Mas então ? ... -- exclamou elle -- com mil diabos ! ...

-- A razão da minha tristeza , o que me afflige devéras -- continuou Francisco Ribeiro -- vou revelal-o aqui francamente, porque sei que o revelo entre amigos. Descobri, meu compadre, descobri que minha filha ama seu sobrinho, e que desgraçadamente é amada por elle...

-- E isso afflige-o ? -- exclamaram a um tempo Francisco Tovar e o Pedreneira.

-- Então é isso ? Pelo inferno !... -- bradou o general, soltando uma gargalhada que pedia meças ás mais atroadoras que Francisco Ribeiro costumava soltar.

-- É isto , e isto afflige-me devéras , porque a culpa é toda minha -- continuou Francisco Ribeiro -- Eu devia-o na verdade prevenir, confesso até que me chegou a lembrar algumas vezes ; mas repellia sempre demim a ideia , porque estava convencido que o conde de Vermoim não se apaixonaria por ninguem da minha familia .

-- Mas então ... -- balbuciou o general, franzindo as sobrancelhas.

-- Suppunha-o de espirito mais alto e mais generoso -- continuou Francisco Ribeiro , cada vez mais triste -- suppunha que a minha familia seria respeitada por um homem , que...

-- Raios de demonios !... pois tu pensas ?... -- bradou o general, cujo rosto se tornara negro de colera , e os olhos chammejavam como os de uma fera .

Pela cabeça passou -lhe rapidamente a ideia de que Francisco Ribeiro suppunha o conde capaz de uma acção infame. O millionario comprehendeu-lhe immediatamente o pensamento .

-- Penso -- respondeu elle com dignidade -- que o conde de Vermoim não pode casar com minha filha. Penso que o descendente dos Tovares e o representante dos Forjazes é muito nobre para se alliar com a filha de um plebeu . Penso que eu, como creado antigo de aquellas nobres casas, não devo consentir em que sangue tão illustre se deshonre misturando-se com o sangue de um villão.

A voz de Francisco Ribeiro tinha ido pouco e pouco abaixándo ; quando acabou de fallar, as lagrimas corriam quatro e quatro pelas faces do bom do velho.

-- Bem sei que a minha resolução -- continuou balbuciando -- é a infelicidade de minha filha. Aquelle amor está adiantado de mais . Mas que lhe hei-de eu fazer ? A honra está para mim acima de todas as considerações, e o sangue fidalgo não se compra com oiro .

Estas palavras fulminaram Bernardo Tovar que espantou os olhos no amigo sem saber o que havia de dizer. O Pedreneira regougava não sei quê para o lado com ares de enfurecido.

-- Snr. Francisco Ribeiro --- disse então o moço Tovar , que percebeu a necessidade de desenlaçar aquella situação -- desculpe a minha franqueza as verdades que lhe vou dizer. Essas ideias não fazem , na actualidade, muita honra á sua intelligencia , e o snr. de Vermoim , se estivesse aqui, não ficaria muito satisfeito de ouvir assim censurar seu pae por lhe ter dado um villão por padrinho.

-- É verdade, raios de demonios ! -- bradou o general, que os argumentos do filho puzeram immediatamente a caminho -- mariola ! Quebro-te a cabeça !... Pois atreves-te a censurar meu cunhado, por te ter chamado para padrinho do filho?

-- Não censuro ...

-- Não censuras ! Pelo inferno ! Pois não és tu padrinho do conde de Vermoim ?

-- Mas ha uma differença muito saliente entre os dois casos, compadre -- replicou Francisco Ribeiro , que reconquistara a sua natural jovialidade -- Quando o snr. conde de Vermoim , que Deus haja, me deu ordem para assistir de padrinho ao baptisado de seu filho, estava emigrado, e nenhum dos seus parentes consentia em occupar este logar. Demais entre um baptismo e um casamento ha muita differença . E assim mesmo sabe Deus quanto trabalhei para arranjar para o filho do snr. conde um padrinho digno da fidalguia do seu nome !

-- Se me dá licença , snr. Francisco Ribeiro - replicou o moço Tovar -- ainda assim não fica livre de ter censurado meu tio , porque me parece que , admittindo mesmo essas divinisações da fidalguia , se o conde de Vermoim actual, porque é fidalgo, não deve casar com a filha de um homem da sua cathegoria na sociedade, o velho conde de Vermoim não devia chamar para seu compadre um plebeu que nada valia e que acabava de sahir do numero dos seus creados. Ha-de concordar que se o filho tem espiritos baixos porque ama uma menina que está hoje n'uma alta posição social, o pae tinha-os muito canalhas abaixando-se a dar a um pobre diabo de um villão o direito de estender a mão para os labios do representante dos Forjazes de Vermoim .

-- O oiro não faz um homem fidalgo, Francisco -- replicou Ribeiro -- O plebeu que comprou uma carta de fidalgo por um punhado de oiro que ajuntou , é tão villão com o seu pergaminho na algibeira, como antes do dia em que a vaidade parvoa o levou a alistar-se entre os actores da tola comedia que este seculo está vendo representar. A vaidade balofa póde transtornar-lhe a cabeça a ponto de o fazer considerar-se fidalgo, mas o ridiculo distingue-lhe pelo cheiro a villania do sangue, que tanto mais fede quanto mais se atreve a aproximar-se do sangue secular. Esta é que é a verdade, Francisco.

-- Mais respeito e menos familiaridade, senhor Ribeiro -- disse o filho do general, tirando o charuto da bocca e sorrindo-se com o ar zombeteiro de quem apanha uma contradicção -- Francisco !... lembre-se de que tambem sou um Tovar.

-- Raios de diabos ! -- bradou então o general, que já não podia conter-se -- eu não sou para essas geringonças Pão , pão -- queijo , queijo , tenho dito . Pelo inferno ! Ou tu estás tolo, homem , ou estás a mangar comnosco. Que diabo quer dizer pergaminhos, sangue secular, fidalgo, infernos, diabos, e quantas parvoices estás ahi a alinhavar ? Um pergaminho é um pergaminho, e o sangue é todo um . Tenho dito , não me repliques. Isso hoje é uma borracheira ; os nossos avós, que eram uns lapuzes, acreditavam n'essas parvoices. Hoje acabou isso , e má peste para o diabo ! que andasse eu ás cutiladas com os migueis, para que um lanzudo como tu me venha dizer essas tolices na cara ! Raios de diabos ! Quebro-te a cabeça ! És um alarve. Que era d'antes um fidalgo ? Era um mandrião, um caloteiro, um parvo enfatuado, que se julgava superior aos outros, porque o pae, o avô e o bisavô e o diabo que os carregue, tinham vivido sempre lá na toca,mandrionando, comendo, bebendo e dormindo a somno solto , ao passo que o asno do povo trabalhava como jumento , e consentia em lhe respeitar o direito á mandrioneira, á embofia . Isso hoje acabou, foi-se tudo com mil diabos. A constituição dissipou a fumaceira que protegia os alarves. Bem haja ella . Hoje fidalgo é todo o homem honrado e util á sua patria . Eu sou fidalgo, porque vivo com honra e servi o meu paiz; e tu és fidalgo e fidalguissimo, por que és util á nação e porque és honrado e honrado como poucos, se não que o diga eu , meu cunhado é toda a nossa familia , de quem tens sido fiel amigo, e foste em outro tempo o bemfeitor. Pelo inferno ! se o conde de Vermoim ama a minha afilhada , e a minha afilhada ama o conde de Vermoim , hão-de casar, e quebro-te a cabeça ! ... Tenho dito , e não me repliques, se não , pelo inferno ! racho-te aqui de meio a meio .

Assim dizendo, o general levou da bengala que lhe servia de moleta , e ergueu-a , ameaçando um sexto , sobre a cabeça do millionario .

-- Veja , meu pae, acolá vem quem decide a contenda -- disse o moço Tovar, apontando para a rua em frente da estrada do caramanchão.

-- Anda depressa, Luiz -- bradou o general dirigindo a palavra na direcção indicada --- corre, meu rapaz , pelo inferno !

-- Oh ! compadre ... --- exclamou o millionario , como querendo fazer conhecer ao general a inconveniencia do seu procedimento . Mas este não lhe importou com as demonstrações do amigo, e continuou a berrar pelo sobrinho, que instado pelos brados do tio , apressou o passo quanto pôde.

Francisco Ribeiro tomou então repentinamente o chapeu, correu para a porta do caramanchão, e escapando-se por uma rua lateral, desappareceu por traz de uma parede de cedros e larangeiras que corria em todo o comprimento de um dos lados do jardim.

-- Agarra ! agarra ! -- bradou o general, como quem corre atraz de um criminoso.

O conde de Vermoim parou , olhando estupefacto ; o Pedreneira ergueu-se para dar cumprimento ás ordens do general, mas antes de o levar a effeito , Francisco Tovar agarrou-o por um braço , e conteve-o .

-- Raios de diabos ! -- bradou o general, voltando-se furioso para o Pedreneira -- Quebro-te a cabeça ! Não ouviste ?

O veterano ia à responder, mas o moço Tovar antecipou-se com a resposta .

-- Deixe-o ir , meu pae ; n'esta occasião é melhor que elle não esteja aqui.

Momentos depois o conde de Vermoim entrou para dentro do caramanchão .

Luiz Vasques Forjaz de Menezes Tovar, conde de Vermoim , era como o leitor já sabe, filho de outro conde do mesmo titulo e de uma irmã do general Tovar, que lhe queria como se fosse filho .

O conde de Vermoim tinha vinte oito para vinte e nove annos de idade. A figura era a de um verdadeiro fidalgo , cheio de nobreza e de affabilidade. Era elegante e bem talhado de formas; e as feições revelavam uma alma cheia de poesia , e um espirito melancolico e pensador. A fidalguia da sua figura e das suas maneiras, o seu titulo e a sua riqueza , a sua generosidade, o seu cavalheirismo e a sua coragem comprovadas por mais de uma occasião importante , tinham-lhe dado no grande e no pequeno mundo tão alta consideração , que muitos se lisongeariam vaidosamente de conquistar sequer metade egual a elle .

-- Que é isto , meu tio ? Quem é que fugiu ? -- disse elle sorrindo-se, depois de beijar respeitosa mente a mão do general.

Este , depois de atirar trez huns ! e quatro pragas horripilantes, disse-lhe em tom peremptorio , e remexendo-se inquieto na cadeira :

-- Vieste em muito boa occasião. Raios de diabos! Senta-te ahi e responde .

O conde sentou-se , e fitou o tio com curiosidade .

-- Diz-me, amas Adelaide Ribeiro ? -- perguntou o general em tom militar.

-- Porém , meu tio ... -- balbuciou o conde, não sabendo o sentido de aquella pergunta inesperada.

-- Franqueza, franqueza. Falla para ahi e sem rodeios. Raios de diabos! Amas a minha afilhada? Responde.

O conde fitou Bernardo Tovar um momento , depois respondeu resolutamente :

-- Amo, meu tio.

-- Muito bem , pelo inferno! E és amado por ella ?

-- Não sei .

-- Não sei ! Com mil diabos ! Quebro-te a cabeça ! Como se entende isso ?

-- Amo Adelaide extremosamente, meu tio , mas como nunca lhe disse que a amava, não sei se sou amado por ella .

O general soltou um berro estrepitoso, e assentou em cima da mesa um tal murro que a aba que o recebeu, voou em pedaços, fazendo saltar a distancia os pregos das dobradiças.

-- Pelo inferno ! -- bradou este por fim -- Esta só pelo diabo ! Pois nunca lh'o disseste ?

-- Não meu tio , nunca me atrevi a dizer-lh’o.

-- Nunca te atreveste a dizer-lh'o -- exclamou o general balbuciando estupefacto -- Com mil diabos! Eis o que são os rapazes de hoje ! Não tem coragem para dizer a uma rapariga que gostam d'ella ! Ah ! tempos ! tempos ! Pelo inferno ! No meu tempo cá os rapazes, como eu, faziam as coisas dentro em vinte e quatro horas. Olá , Pedreneira, com todos os diabos ! ouves isto ? Diz aqui como eu namorei a mãe d'este rapaz.

O veterano regougou um momento e depois disse com mau modo :

-- Que diabo me lembro eu d'isso ? Se tenho presente aquella bofetada, em que ella lhe pôz a cara n'um bolo , por causa não sei de que atrevimento ...

-- Porém , meu tio , o que significa tudo isto ? -- interrompeu o conde de Vermoim , que estava morto por descubrir a razão de aquella proposta tão inesperada .

-- O que significa ? eu t'o digo. Viste quem se foi agora por ahi fóra , fugindo que parecia que levava todos os diabos no corpo ?

– Vi atravessar um homem de repente , mas não o pude conhecer.

-- Pois era Francisco Ribeiro.

-- Francisco Ribeiro ! O pae de Adelaide !...

-- Sim , elle mesmo, pelo inferno ! Eu te digo tudo...

O general contou então ao sobrinho o que tinha acontecido , e depois de jurar muita praga e de formular para alli uma argumentação que só elle era capaz de imaginar, accrescentou :

-- Portanto , se amas Adelaide, e ella te ama, é casar, e está acabado . Mas, pelo inferno ! Vê lá se te achas capaz de fazer a felicidade da minha afilhada, entendes bem ? Se não , não , que emquanto eu fôr vivo , se alguem a maltratasse ... raios de demonios ! Quebro-te a cabeça !...

E o general, a quem já se afigurava na imaginação o caso em questão, empunhou furioso a enorme bengala , e ergueu-a em forma de sabre por cima da cabeça , com as feições negras e contrahidas pela colera, e os olhos cheios de sangue e a luzir como dois carvões accesos.

-- Nada tema por esse lado, meu tio -- disse sorrindo o conde de Vermoim -- sinto-me capaz de fazer feliz a mulher que adoro. Agradeço-lhe sinceramente o cuidado que tem pela felicidade de Adelaide; mas o casamento que deseja , não pode ter logar por ora.

-- Não pode ter logar por ora ! E porque ? Pelo inferno !

-- Por um motivo muito poderoso , meu tio .

-- Quero sabel-o já , raios de diabos !

-- Não lh'o posso revelar.

-- Mas porque ... porque ?

-- Porque o impede a minha honra -- O que é , suspeito-o apenas ; se a suspeita se realisar, nunca serei marido de Adelaide, deixar-me-hei antes matar do que commetter uma tal infamia . Se se não realisar, irei então pedir a mão d'ella a Francisco Ribeiro, que apezar de todos os escrupulos não m'a ha-de negar.

-- Não sei se está enganado , Luiz -- disse o moço Tovar ao primo.

-- Não me engano -- replicou elle -- Francisco Ribeiro não se ha-de oppôr á minha felicidade . Mas se se recusar como amigo... ha-de obedecer como creado .

Um lacaio entrou então para dentro do caramanchão , trazendo n'uma salva de prata uma tira de papel escripta a lapis. O general tomou-a e depois poz-se a remexer em todas as algibeiras.

-- Pelo inferno ! Lá me esqueceram os oculos -- tornou elle por fim -- Lê isso , Francisco.

O moço Tovar tomou o papel, e leu :

« De amanhã a oito dias são os annos da minha Adelaide . Espero que não faltem no baile.»

-- O snr. Ribeiro foi quem te entregou isto ? - disse elle ao creado.

-- Saiba v . exc.a que sim .

-- Podes retirar-te.

O creado sahiu .

-- Os diabos me levem , se eu lá faltar ! Ainda que va de rastos. Eu vos ensinarei -- disse o general.

-- Pois eu só falto no caso de ficar essa noite no Carmo -- disse sorrindo Francisco Tovar.

-- Eu ... não sei -- disse o conde tristemente.

D'ahi por algum tempo o general levantou-se e dirigiu-se para casa , encostado ao Pedreneira , apageado pelo velho Badajoz , e acompanhado pelo filho e pelo sobrinho.

Eram horas de jantar.

III

Findou uma valsa.

E depois de findar, aconteceu no baile, dado por Francisco Ribeiro para solemnisar os annos da filha, o que é de uso acontecer em todos os bailes, depois que uma valsa termina.

Os que não dansavam , e que tinham estado até então agrupados em circulo em torno dos valsantes, espraiaram -se agora pelo salão; os paes sorriam uns para os outros, como que a darem-se reciprocamente o parabem da perfeição com que as filhas se riam saltando, abraçadas nos seus cavalheiros; e os gebos, isto é , aquella parte sensata dos frequentadores de bailes, que vão a elles porque as familias os obrigam e que portanto em todos aquelles episodios não veem com prazer senão os que dizem respeito ao estomago , arremeteram corajosamente com os taboleiros dos doces e dos fiambres, que os creados trouxeram para as salas. Ao mesmo tempo os pares, cavalheiros e damas, começaram a passear nos salões, uns enlevados ainda nas sensações anacreonticas da doença castissima; outros pavoneando-se na vaidade pateta de terem figurado, um quarto de hora, de bonecos de realejo .

Tudo alli manifestava felicidade, nenhuma cara espelhava, nem de leve, cuidado de pezo . Todos traziam a fronte levantada e o sorriso nos labios ; todos se requebravam em si e na festa , e para todos parecia tambem que a vida corria continua n'aquella bemaventurança . É o que tem os bailes ; n'aquella embriaguez da vaidade esquece-se tudo . Esquece-o porém quem nasceu para viver da vangloria das futilidades. Os outros não ; os que Deus formou incapazes de se deixarem possuir do genio das bagatellas, esses fogem dos bailes , sentem -se mal, se lá vão , aborrecem-se , retiram-se, e sentem-se depois animados de profundo desprezo pela raça a que pertencem . São coisas; póde bem ser que a razão esteja do lado das funcções; pelo menos esta ultima opinião tem tão pouco pezo na balança das considerações sociaes, que não faz com que não haja bailes, e que a maior parte da humanidade se não sinta embriagada com o ruido das parvoas vanglorias d'elles. E é de certo por esta poderosissima razão que o baile de Francisco Ribeiro corria animado e n'elle a felicidade reinava completa e sem gradações ; todos eram felizes e todos egualmente felizes , porque as provas que davam da felicidade: eram as mesmas em toda a gente . Todos sorriam , todos tinham caras : contentes, todos -- vagueavam pavoneando-se , e todos : emfim apontoavam a esmo semsaborias, que jorram somente dos labios de quem não precisa de pensar no dia de amanhã...

E comtudo, se Diogenes entrasse alli com a terrivel lanterna em punho, alli no meio de aquella admiravel bebedeira de luzes, de perfumes, de valsas, de vaidades e de semsaborias, não a procurar um homem que n'essa não cahia ellet mas a procurar um ente de casaca ou saia balão , que lhe explicasse a razão de aquella felicidade , estou convencido que o não encontrava ...

Um baile ! Se eu fosse fadado para altos destinos, dava de bom grado toda a gloria que me estivesse destinada, embora fosse egual á de Homero ou de Camões , a troco de subir com a intelligencia tão alto que chegasse a comprehender o valor razoavel de um baile.

Quando eu era poeta, e por consequencia privilegiado por Deus com essa loucura sublime que fantasia e cria mundos na imaginação , e com a alma vive n ’elles vida tão real e verdadeira , como a que vive o corpo sobre este mundo da economia politica, arrebatado pela nobreza de sentimentos generosos que alli se respiram , descrevi assim o que era um baile :

Trez horas já bateram ; para o esplendido
Palacio, cada vez mais animado,
Tudo agora corria alvoroçado, ' .
E deserto o jardim porfim deixou.
Todos lá foram , e n'esse gozo ephemero
O mundo, de si mesmo deslembrado,
Qual louco representa enthusiasmado
Pueril, tôrpe comedia , que inventou .
Um baile ! um baile ! P'ra o sentir de um cynico
Immenso campo, onde insidia a vida,
Brilhante palco , onde a razão se olvida,
E o mundo estolido a saltar se vê.
Onde entre aromas a razão e o espirito,
Qual sensitiva, recolher parece ,
E, d 'ella isempto , de qual é se esquece.
O homem então , e no que finge crê.
Ao baile ! ao baile ! Já resôa a musica,
A valsa chama, já lhe abriram praça ,
A virgem pura já o tôrpe abraça,
Cujas palavras escutou e creu .
Ao baile ! ao baile ! etc., etc.

Isto dizia eu dos bailes quando era poeta. Hoje que o não sou , que abdiquei o titulo , depois que uns certos criticos do Porto me provaram triumphantemente que não tinha jus a elle --- 1.o porque, feita a devida contagem pelos dedos, os meus versos são errados ; 2.o porque não tenho vocação para cantar os olhos, a bocca, o nariz, os lagos, a lua, e nem sequer

.... uma flor... um bichinho,
Um ninho de pardal, um gafanhoto,
Da historia natural suados fructos --

hoje , digo, que em logar de versos faço prosa chata e desenramalhetada, e que desenganado pelos Horacios cá da terra , troquei a poesia pelo officio de politico , reduzo-me a dizer tambem chatamente -- nunca em dias de vida pude comprehender, nem comprehenderei d'aqui por diante, o senso commum da realidade de um baile .

O baile tinha chegado a este ponto . A turba dos convidados, para mais de seiscentos em numero , baloiçava-se, vagueando em mil meandros pelos salões e salas contiguas, alumiadas por mil lumes fulgurantes, perfumadas pelas essencias e adornadas por milhares de rosas, cujas folhas amarellecidas causavam compaixão , e faziam maldizer o capricho impio que as condemnara a morrer asfixiadas entre os miasmas odoriferos de Maugenat e de Coudray.

Deixemos a turba, e aproximemo-nos d'esta porta, á umbreira doirada da qual está encostado um moço, cuja fronte espaçosa e desassombrada, e olhar profundo e cheio de luz revela o fogo sagrado do talento .

É um poeta e escriptor afamado.. A sociedade respeita-lhe e venera-lhe o nome, não pelas, obras, como ella mentidamente assevera -- que essas poucos as leram , porque esta alta sociedade só lè reportorios e locaes de periodicos.--- mas por medo, mas pela mesma razão porque os malvados respeitam Deus quando troveja .

Ferreira de Aguiar , que assim se chamava o poeta , tinha uma intelligencia , superior e cultivada, e era dotado, ao mesmo tempo, de um caracter mordaz e sarcastico, que sabia aproveitar com talento para fazer rir os alarves uns á custa dos outros. Os epigrammas, os sarcasmos espirituosos, e as chanças mordazes jorravam-lhe da bocca em torrentes, e ai de aquelle sobre quem as fizesse trovejar o caprichoso satyrico ! Lazaro , por mais lazaro que entrasse no tumulo , nada tinha que ver com o estado em que ficava a consideração social da victima, depois que o terrivel chanceador cessava a flagellação. Este talento , protegido por uma coragem , ora provocadora e arrebatada, ora fria e imperturbavel, tinha-lhe grangeado alta e terrivel reputação , e era a causa verdadeira do respeito com que o grande mundo flagellado acatava o flagellador...

Ao acabar a valsa , Ferreira de Aguiar encostara-se á umbreira de aquella porta , e d'alli, com os labios encrespados por uma ligeira expressão de zombaria , mergulhava a vista prescrutadora e penetrante no meio de aquella multidão de bemaventurados. Estava no seu elemento . Dera-lhe Deus o talento de classificar os ridiculos , a sciencia de differen çar os typos, e alli encontrava á farta colheita vastissima onde saciar o sestro . Afora aquelle contentamento geral, aquelle ridiculo pueril, que animava todos os convivas, cada um tinha de per si uma qualidade particular, um movimento especial, uma cara propria e toda sua , que os distinguia uns dos outros, e que a mordacidade de Aguiar ia classificando por grupos, como bibliothecario experiente no meio de muitos centos de volumes de differentes edições e tamanhos.

De repente parou defronte d'elle , e quasi a tocar com elle , um moço de pouca idade, um d'estes frequentadores de bailes, que entram , e andam pelas salas como os pardaes pelos ramos das arvores e pelos muros dos campos -- especie de frades de sabugo , que parece que trazem uma mina de azougue no corpo é no cerebro ; que andam aos saltinhos e aos tregeitos, que se miram e remiram por todos os lados, que se dão ares de muita coisa, e que por fim de contas são as creaturas mais mentalmente insignificantes que Deus houve por bem vasar n'este mundo.

-- Está magnifico! -- disse elle , parando a baloiçar perto do poeta , quasi apegado a Aguiar, e voltando-lhe ao mesmo tempo as costas para ficar olhando a multidão , de cabeça empertigada, oscillando, e como que já esquecido da presença de aquelle a quem tinha fallado.

Ferreira de Aguiar voltou-se n'outra direcção e não lhe deu resposta .

-- Não achas? --- continuou o janota um pouco desconcertado por aquelle silencio , e voltando por uma manobra especial tres quartos de cara para o poeta .

-- Penso que sim -- respondeu este friamente.

-- Pensas ! Pois não vês, não tens olhos ? Pois, meu caro, assevero -te que está magnifico. Em Pariz ou em Londres não ha de certo bailes mais elegantes, nem mais sumptuosos. É em verdade baile de millionario . Acredita-o , que t'o digo eu.

-- Fico acreditando -- respondeu o poeta sorrindo-se de compaixão e de escarneo.

N'este momento rompeu por entre o circulo de dez ou doze rapazes, que se tinham chegado a Aguiar, um moço de cara intelligente e olhar zombeteiro , que se aproximou d 'elle, e disse-lhe batendo-lhe no hombro:

-- Repara para acolá , Aguiar ; olha que escandalo.

O poeta olhou ; e o janota , entalando a luneta entre dois callos, que, á força de uso, tinha conseguido arranjar por debaixo da sobrancelha esquerda, e na parte superior do nariz, dirigiu para o logar indicado um olhar de má lingua provocada.

Ferreira de Aguiar sorriu-se, e o janota empallideceu , mordendo os beiços:

-- Olha como elle ficou !... -- disse então o outro, soltando uma gargalhada de zombaria por detraz do hombro esquerdo do poeta . .

-- Quem ? -- Eu ? -- perguntou o janota, despeitado; e , movendo immediatamente o sobr'olho, desentalou a luneta que lhe veio cahir sobre o peito -- Enganas-te , meu caro ; não me incommodo com bagatellas. Das mulheres nada mais exijo que tempo preciso para fallar e ... manobrar.

-- Na retirada ? -- perguntou com toda a seriedade Ferreira de Aguiar -- Creio-o piamente. Todos Os bons capitães teem um ramo predilecto na tactica . Tu, em amores , és forte nas retiradas, és o Xenofonte do namoro. Mas de que se trata ! continuou maliciosamente , cavalgando sobre o nariz a luneta , que dirigiu , como ao acaso , para o logar indicado.

-- Pois não entendes? -- replicou o que viera mexericar o janota -- Olha para acolá ? Vés aquella dama vestida de branco com enfeites azues celestes ? É um projecto de conquista ... Não me desmintas -- interrompeu-se elle dirigindo-se ao janota que manifestava querer negar-lhe o que ia a dizer -- bem sabes que vi e ouvi tudo. E perigoso fallar alto , n'um baile , ao ouvido de uma mulher . Ha pouco , quando dansaste com ella , chamaste-lhe anjo , estrella , ou não sei que ... n'isso não estou bem certo ; mas no que o estou é em que lhe disseste que ella era o teu primeiro e seria o teu ultimo amor, protestaste-lhe que por ella te sujeitarias a que te mandassem ir ... ir á Taprobana , e por fim de contas vieste dizer ao João de Menezes que ella já estava perdida por ti. Para th'o provar, pediste-lhe que a tivesse de olho, entretanto que lhe ias fazer negaças de indifferença para o meio da casa. O Menezes chamou-me para o ajudar na vigia, e palavra de honra, entretanto que andaste aos torcicollos no meio da casa , não tirou ella os olhos de ti ... assim a modo de distrahida, diz o Menezes ; eu cá juro que não . Mas depois ... ai mulheres! mulheres ! ... depois chegou aquelle engoiado ...

-- Com cara de propheta de procissão de aldeia ? Quem é , aquelle Alcibiades ? -- disse Ferreira de Aguiar, continuando a fitar o grupo que estava em discussão .

-- Quem é? -- disse o murmurador , engrossando a voz, como quem se resentia da falta de respeito -- É o exc.no commendador (hoje todos os commendadores teem excellencia ) Bernardo Peixoto Burgães, fidalgo ha oito dias da casa real. Tem nas armas dois paus em cruz, como que a arrenegar o diabo, e por baixo uma coisa que se parece com um sapato de oirello . Chegou ha trez mezes do Brazil, e tem tres milhões de crusados de seu, ganhos a curar da rabugem os negros. É um homem notavel, um grande homem -- possue tres milhões de crusados. Emquanto à prosapia não é lá essas coisas ; mas emfim como os grandes homens não téem ascendentes, todos procedem de si mesmo, Bernardo Burgões não quer saber o que foi, nem de quem descende. Descende dos seus milhões, e está tudo dito . Comtudo, como todos n'este mundo téem obrigação de ter pae, o exc.m , commendador Burgães é realmente filho de um negociante de adubos de terras de S. Cosme. Este honrado calça de coiro , vendo que não podia fazer do filho um carpinteiro mediano, mandou-o para o Brazil, onde elle viu que tinha a vocação de se fazer um rico millionario ... Mas repara -- disse interrompendo-se -- vê a attenção , olha o enthusiasmo com que ella está fallando ao selvagem ! E para fazer perder a paciencia , Eugenio !... Lá se retira elle ... Agora , agora, amigo ; vae descompol-a , vae dizer-lhe que não é nem será o teu primeiro e derradeiro amor. Mas, alto ! -- continuou aferrando-o por um braço , e conchegando-se todo com elle -- não queres vér ! Lá o torna a chamar ... Já pede ao Menezes que o vá chamar. Ao Menezes, Eugenio , ao Menezes !... Isto não se atura. Bravissimo !... lá lhe dá o braço ... lá vae passear agarrada ao braço d' elle ... Lá vae tudo com todos os diabos, Eugenio!

E assim dizendo, desfechou uma gargalhada de escarneó , que atordoou de todo o janota.

Entretanto a dama e o brazileiro , que tinham sido assumpto d'esta conversa, avançaram em direcção a elles. Era ella uma linda menina de vinte e trez a vinte e quatro annos de idade, apessoada e donairosa de corpo, e olhar imperativo e calculador . Elle era uma figura burlesca -- homem nem alto nem baixo , mas tão desageitado de formas, que por mais prodigios que tentou fazer-lhe o alfaiate com a casaca no corpo, não conseguiu pôl-o a mais que duas linhas distante de um judas de alleluia, com seus ares de espantalho de figueira . As feições não tinham classificação; eram redondas, chatas, angulosas, tinham emfim todas as formas geometricas, misturadas na mais grutesca e descommunal confusão e desharmonia .

-- Que bello par ! --- rosnou o janota, quando os dois iam passando pelo grupo dos murmuradores.

O brazileiro não ouviu ; os labios da dama encresparam-se, porém , com um sorriso de ironia e de desprezo pronunciadissimo. Ao mesmo tempo fitou os olhos n'uma camelia branca, que trazia na mão, accrescentou o escarneo ao sorriso , e deixou-a cahir , como ao acaso , sobre uma das botas do brazileiro , que , apanhando-a de raspão ao dar o passo, fel-a ir parar a pouca distancia do janota motejador.

-- Oh ! minha senhora. .. -- articulou o millionario querendo dirigir-se a apanhar a flor.

-- Deixe-a ir, senhor commendador -- atalhou ella , sustendo-o -- aquillo não vale a pena.

E continuaram para diante.

-- Ai que eu parto a cara a este maroto ! -- disse o janota, tomando uns ares de ferrabraz que lhe ficavam muito malas.

-- Porque, homem ? -- Que ciumes burlescos são esses ? ...

-- A minha camelia ... .

-- A tua camelia ! Ai sim , um pataco perdido ; aquelle malfadado pataco que desté por ella no Bolhão !...

-- -- Deixa que eu te ensino -- rosnou então como para si o janota.

Assim dizendo, apanhou a rosa , e metteu-se na turba dos passeantes com ella empolgada . D'ahi a pouco a pobre flor agitava-se em oscillações caprichosas nas mãos de nova possuidora.

-- Que pateta !- balbuciou a rir o motejador.

-- Deixa-o viver -- respondeu o poeta -- se não fossem aquelles, ou as bemaventuranças mentiam , ou o ceu ficava deserto por falta de alarves.

Seguiram-se alguns minutos de silencio , em que Aguiar e os seus amigos se entretiveram a observar as evoluções do janota , ou com a dama a quem tinha entregado a camelia, ou com aquella que a tinha atirado ao chão , todas as vezes que ella passava por elle , em intima conversação com o brasileiro, e já sem mesmo se lembrar de que elle estava alli.

-- Quem é aquella fragata a vapor desmantelada, que o Teixeira vae rebocando, seguido com velocidade egual por aquella eternidade de casaca ? -- disse então um dos moços que estavam no grupo, assestando a luneta para um par que ia atravessando o salão com notavel rapidez, seguido por um homem já velho muito baixo e muito magro.

-- Quem é ? -- respondeu o murmurador, soltando uma grande gargalhada -- Ai como tu estás falho em conhecimentos, Pacheco ! ...

-- Homem, acabo de chegar dos Antipodas...

-- Em attenção a teres estado trez annos ausente -- disse o poeta -- vou dizer-te em duas palavras o que aquillo quer dizer. Aquillo é a historia de Rachel e Jacob, tão completa e perfeita que nem lhe falta Lia nem Labão.

-- Palavra de honra! Não entendo.

-- Homem, estás hoje de uma estupidez admiravel! -- repetiu o murmurador.

-- Admiravel -- repetiu o poeta. -- Attende ; vês aquella sombra de Cain, enfurnada n'aquella casaca? E' um homem que tem cem contos de reis. Vês aquella figura de pasta, de dez palmos de altura de corpo, palmo e meio de pescoço e dois de cara, esguia e corcovada ? E' a herdeira dos supraditos cem contos de reis. O Teixeira conheces tu. Percebes agora ?

-- Percebo ; é o Teixeira a fazer namoro a um rabo de vassoira, com o fim de refazer a bolsa, depois de ter dado cabo, sem gloria nem proveito, dos vinte contos de reis que herdou do pae.

-- Isso mesmo.

-- Mas não comprehendo o motivo porque chamas Labão ao velho...

O poeta e o murmurador soltaram uma gargalhada.

-- E se dás licença ---- continuou Pacheco -- para que a historia fosse completa era necessario que houvesse Lia e essa falta .

-- É a rapariga .

-- E Rachel ?

-- E' o dinheiro ...

-- Mas... mas como representa o velho de Labão ? ...

-- Homem ou diabo -- exclamou o murmurador -- és capaz de enfuriar a paciencia de um santo . Pois não adivinhas coisa alguma? Vae para a Trappa ; este mundo é uma completa charada, e já vejo que não tens vocação para charadista. Ora olha aquelle velho ; é o snr. barão de Godim ...

-- Barão ! diabo, tantos barões !... .

-- Barões, commendadores e fidalgos é coisa em que Portugal mais abunda hoje. Elles e o lixo andam a rodo. Mas como te ia dizendo aquelle é o snr. barão de Godim . Ora o snr. barão é viuvo, tem aquella filha unica, e cem contos de reis e uma amiga de quem se lhe meteu em cabeça fazer legitima esposa. Para realisar a ideia , quer primeiro descartar-se da fiIha, quer casal-a , mas sem dote , já se vê. Porém como na actualidade os homens casam com os dotes e não com as mulheres, o barão para achar marido á filha, chocalha o sacco dos contos como reclamo de noivos. A tactica é esperta . O noivo apparece, o barão recebe-o com toda a amabilidade, e como conhece a alma terna da filha, e receia alguma logração , para sanar a qual lhe seja preciso soltar as redeas á bolsa, vigia-a e não a deixa um momento só com elle . Debaixo d 'este plano a coisa caminha. O noivo aferra á isca dos cem contos, como o macaco ao milho dentro do cabaço , e quanto mais pensa n'elles, tanto mais aferra , animado pela amabilidade do barão, que vae entretanto demorando o caso , e com a demora atiçalhe o appetite . A coisa chega por fim a arrebentar : O patusco pede a menina -- ostensivamente , já se vê , porque o que pede na realidade são os cem contos -- o pae cede constrangido, mas por fim diz que sim , promette mundos e fundos, falla em ser ella filha unica, e tapa com isto a bocca ás exigencias do noivo . Faz-se o casamento, e então faz como Labão ...

-- Em logar de Rachel dá-lhe Lia , isto é , em logar de dinheiro impinge-lhe o espantalho da filha, e livra-se por consequencia d'ella . Mas o Teixeira cahira na esparrella ?

-- Palpita-me que sim . É passaro bisnau, mas d'esta vez parece-me que achou quem seja mais esperto do que elle .

--- Peço toda a attenção dos illustres membros do cavaco a favor dos merecimentos e mais partes do respeitavel perú que acaba de entrar na sala -- disse então um moço rubicundo , baixo , quadrado e admiravelmente gordo , com uma cara tão notável pelas bochechas monstruosamente anafadas, como pelo ar de zombaria que a aureolava pronunciadamente .

Todos olharam .

Era uma senhora vestida com luxo verdadeiramente oriental, tão gorda como aquelle que à tinha apontado aos murmuradores, nariz enorme e variegado de azul e vermelho , e as gordissimas faces nacaradas do mais fulgurante vermelhão natural. Mostrava passar já dos sessenta annos.

Os nossos maldizentes mal tinham tido tempo de a fitar um momento , quando ella , descubrindo no meio d'elles o que a tinha alcunhado perú , tomou um aspecto encolerisado, e chamou-o acenando-lhe com o leque de um modo que se fez notar por toda a gente, bem como a expressão de ira que lhe brilhou diabolicamente nos olhos e lhe arrouxou o vermelhão com que a natureza lhe havia pintado a cara .

– Vamos lá ver a quantos por cento estão hoje os meus fundos na praça -- disse elle erguendo-se indolentemente.

-- A mamã chama, Estevão -- disse o poeta , sorrindo maliciosamente .

-- Qual mamã, nem qual diabo ! -- replicou elle -- aquella é a minha praça commercial; vou lá ver a quanto tenho os fundos cotados. A má lingua não me amedronta ; façam-me a honra de me ficar discutindo , mas sempre , para esclarecer a discussão, deixarei dito que alli não ha Lia , é tudo Rachel .

Assim dizendo, dirigiu-se , bamboleando sobre as gordissimas pernas, para a dama que o chamara , e os dois continuaram a caminhar no mesmo passo atravez da multidão.

-- Que quer elle dizer ? -- perguntou Pacheco admirado.

-- Quer dizer que é o amante de aquella velha extendeira, ha dez annos senhora de mais de duzentos contos de reis , que um dia lhe vieram da America como cahidos das nuvens, em consequencia da morte do marido , que lá embarcou para o outro mundo, e de quem ella não sabia ha muitos annos. A velha consola-se da falta d'elle com Estevão, que por causa das duvidas, já a foi obrigando a fazer um testamento , com que o deixa herdeiro dos sobreditos duzentos contos.

-- Ahi vae o exm.o commendador Antunes -- disse então do lado um outro moço -- meu pae diz-me que ha dez annos era na loja d' elle , onde, no Porto, se vendiam as melliores velas de cebo. Sal, cebo e, mechas ninguem as tinha melhores do que elle .

-- Ó Aguiar , repara : lá vae D. Fortunata Martins. Ó celeberrimo vestido ...

-- Reconheço o ultimo motivo das lagrimas de mad. Guichard.

-- Que queres dizer com isso ?

-- Quero dizer que aquella mulher jurou arruinar as modistas, como eu e os meus collegas litterarios juramos arruinar os editores.

N’esta occasião o grupo dos murmuradores que tinlia ido descahindo para a porta da sala , sentiu-se violentamente empuxado por um homem , que, com cara de importancia insolente, pretendeu passar por entre elles, arredando-os como quem arreda gallegos de esquina. Era homem alto e gordo, cara vermelha e recbonchuda, e feições que distilavam estupidez e soberba alarve. A custa de empuxar para a frente a empinada barriga, conseguiu abrir caminho, fazendo cambalear alguns dos circumstantes, e entre elles Fernão de Aguiar , que, ao vel-o , exclamou irritado :

-- Passagem ao asno de oiro .

Ao ouvir estas palavras o homem da grande barriga, que trazia na camisa dois enormes solitarios, ao peito um crachá coberto de brilhantes, os dedos cobertos de anneis de pedras fulgurantes, e o relogio preso a uma corrente de oiro da grossura de um dedo pelo menos, voltou-se com ares de colera impertinente.

-- Como está v. exc.a, snr. visconde -- disse então Aguiar com a mais pronunciada insolencia , dando dois passos para fora do grupo, e estendendo a mão para o interrogado.

-- Oh ! é v. exc.a ... -- balbuciou o visconde desfazendo-se de repente n'um sorriso cheio de amabilidade.

-- Eu mesmo, snr. visconde --- replicou Aguiar com pronunciadissimo tom de escarneo provocador Estavamos agora aqui fallando sobre um assumpto , em que v . exc.a tem voto de preferencia ... como em tudo. Estavamos dizendo que ha alguns annos a esta parte , o Brazil, entre um grande numero de individuos bem educados e estimaveis que nos tem enviado, tambem nos tem re-exportado uma não pequena porção de malcreados e de insolentes, que por terem algumas centenas de contos de reis, julgam -se com direito a não terem consideração pelos outros . Estes homens, dizia eu , não tem outro correctivo possivel para estas soberbas insolentes e parvoas, senão um chicote, manejado por uma boa mão , por exemplo uma mão como a minha. V. exc. não é da mesma opinião ?

-- De certo , snr. Aguiar -- balbuciou o pobre diabo -- a má educação ...

-- A má educação é a má educação -- replicou Aguiar n'um tom cada vez mais provocador – A má educação em toda a parte merece chicote , sobre tudo quando é filha da insolencia deslocada, como a de certos miseraveis que conheço.

-- Oh ! de certo ... -- rouquejou o visconde, obrigado a fallar por uma pausa que fez Aguiar, com os olhos fitos n'elle .

-- Estimo que v . exc. seja da mesma opinião, snr. visconde -- continuou elle no mesmo tom -- O seu voto n'estes casos é insuspeito , e demais vale mil vezes o nosso, que somos uns pobres diabos, entretanto que v . exc.a é millionario ... archi-millionario... Porque na verdade não ha nada mais asqueroso e repugnante do que ver uns miseraveis, filhos de uns parvos, insolentes a ponto ... Porque, snr. visconde, nem sempre a origem de aquelles milhões se pode escudar por traz da defeza da honra ; mas ainda mesmo que possa por mais licitos e penosos que fossem os meios , de que se serviram para alcançar a riqueza que possuem , nem ella nem elles lhes transformam a origem , nem lhes dão direito a tratarem os outros com insolencia e má educação.

-- V. s.a tem toda a razão ... Se me dá licença, está acolá o meu amigo barão de Godim , a quem preciso dizer duas palavras...

-- Essa é boa , snr. visconde ; vá v. exc.a fallar com o seu digno amigo, o snr. barão de Godim. V.exc.a é muito amavel, e a sua delicadeza lisonjeia-me muito.

Assim dizendo , sacudiu violentamente a mão do millionario , que tinha até então conservado preza entre as suas, apertou-a ao mesmo tempo de modo que o pobre diabo não pode deixar de manifestar por uma careta mal disfarçada o vigor dos musculos do poeta .

O visconde, mal se sentiu á solta , voltou rapida mente as costas, e desappareceu no meio da turba .

-- Quem é este alarve ? --- perguntou Luiz Pacheco , seguindo-o com o sobr'olho ainda carregado.

-- Pois não vès quem é ? Repara como o cumprimentam , e lhe abrem caminho, e nota o ar de protecção com que empina a cabeça , e tem a audacia de estender o punho felino a toda a gente. É a maior fortuna do Porto ; dizem que possue dez mil contos de reis.

-- Ganhos ? ...

-- Ganhos em especulações de moeda falsa e a mercadejar em negros. É tão rico como malcreado, e tão malcreado como desalmado. Conta-se até que vendeu os filhos e a propria mulher, que, segundo corre , era pretinha retinta, mas possuia mais contos de reis , do que tinha de pellos na carapinha.

-- Que infame ! E a esse homem apertam-lhe a mão ?

-- Possue umafortuna de dez mil contos de reis , tem a praça atada á cinta com letras usurarias , e chama-se o visconde dos Carriços .

N'este momento , Teixeira, aquelle que namorava os cem contos de reis do barão de Godim na antipathica pessoa de sua engoiada filha, aproximou-se do grupo motejador , com os dedos pollegares mettidos nas cavas do collete , e movendo com os braços a casaca para refrescar-se da calma. .

-- Ai! Maladetta la vita del povero ! -- exclamou estouvadamente -- muito custa a ser rico !

-- Muito custam a empolgar cem contos de reis -- disse Fernão de Aguiar a rir-se .

-- Palavra de honra ! É cerco mais aturado e rija que nem o de Badajoz. Dou dois contos de reis a quem me descubrir o meio de ser herdeiro do pae, sem que a herança me obrigue em appenso com o phantasma da filha . Ora façam favor de olhar para aquella veronica ! Que formas ! Que ares ! O diabo, por mais feio que seja , é estampa de figurino a par d'ella -- accrescentou voltando-se para o lado da herdeira dos cem contos, que o seguira com os olhos cheios de ternura derramada, e fitando n'ella os d'elle que pareciam frechar amor por todas as pestanas.

Uma gargalhada geral respondeu aquella apostrophe tão pouco lisongeira , e aquella olhadella amorosa que tão mal se coadunava com ella .

-- Escandalo ! escandalo ! bradou então o murmurador, fitando os olhos na direcção de uma das portas da sala .

Por ella vinha entrando uma menina de vinte annos pouco mais ou menos, branca e ligeiramente corada, o nariz aquilino e a barba um pouco saliente . O todo das feições não era desagradavel, e a falta de mulheres bonitas, podia passar por formosa . Conduzia-a pelo braço um homem de boa presença, e elegantemente vestido, com quem vinha conversando tão familiarmente, que bem semanifestava que entre elles havia relações amorosas em grau muitissimo adiantado.

-- Escandalo ! escandalo !

-- Que é aquillo ! -- exclamou o poeta , como espantado .

-- Que hade ser ? -- replicou o outro encolhendo os hombros -- é Adriana da Silva com a sua ultima paixão.

-- Que dizes, Azevedo ? um homem casado ! ...

-- É assim mesmo -- - replicou o motejador -- E o peior é que as más linguas...

-- Homem , pelo inferno ! -- - exclamou Luiz Pacheco -- conheci-a tão creança ...

-- E eu tão de perto ! -- disse o poeta com um meio sorriso ironico .

-- Mas expliquem-me isto ?

-- Não tem que explicar, Pacheco . Aquella Adriana da Silva que tu conheceste tão creança , quando chegou a ser mulher, deu-se a ler meia duzia de romances dos mais apimentados de Dumas, suppoz-se mulher de instrucção superior, tornou-se parvoamente vaidosa, e quiz por força ser admirada por todos oshomens. Mas a reunião de todas estas loucas pretenções deu em resultado afugentar de junto d'ella todos os rapazes, que um rosto com tal ou qual formosura provocava a fazer-lhe namoro. Então ella , desapontada, começou a espalharmil namoros imaginarios, a dar -se por querida de todos os rapazes do Porto , e para desculpar o abandono em que realmente estava , dizia que os tinha desfructado e por fim demittido. Isto soube-se, e o resultado foi o escarneo e o desprezo . Por fim de contas deu em namorar um homem casado, e o peior é que as más linguas...

-- Mas a familia ?...

-- Qual familia , homem ? Se aquella é uma das victimas da familia ! O exemplo d'um pae desmoralisado perverte o espirito dos filhos, por mais tendencias que tenham para a honra , e dá audacia ás filhas para se lançarem com os braços abertos pelo caminho da perdição .

-- Mas por Deus, que não te entendo, Azevedo ...

-- Eu me explico: Adriana da Silva é filha do homem mais immoral que tem o Porto. A immoralidade da vida de aquelle homem só tem similhança com a torpissima linguagem que uza , que nem mesmo o rapaz mais louco e de costumes menos convenientes é capaz de escutar sem tedio . Esta immoralidade de costumes é egualmente rivalisada pela indifferença cynica com que avalia a honra da familia , e pela nenhuma consideração com que trata a esposa . As filhas , animadas por estes bons exemplos do pae, e protegidas de mais a mais pelo cynismo d'elle , alargaram o horisonte que a decencia delimita ás mulheres virtuosas e de bom senso . A mãe é tratada no meio da familia como a mais reles das creadas da casa, o pae tem uma amazia em cada canto da cidade, e as filhas tornaram-se assim ; esta deu até em namorar um homem casado.

-- Muito bem -- replicou Pacheco -- se és proprietario na Viella da Neta , felicito-te desde já pela bonita inquilina que terás em pouco tempo.

-- Não o sou, felizmente , porque se o fosse dava a propriedade por perdida. É impossivel que não venha alli a cahir raio , n'aquella casa.

-- Que piedade ! ...

-- Ahi vem a rainha da festa. Como vem linda ! -- disse do lado um dos murmuradores.

-- A proposito ; porque não veio ainda a familia de Paulo Ribeiro ? Elle já fez acto ...

-- Mas teve de ir a Lisboa a negocios do pae. Calculava vir assistir hoje aos annos da irmã, mas o vapor protrahiu mais um dia a partida , e de sorte que só pode chegar amanhã ou depois. Mas vejam como é formosa a rainha da festa ! Vejam como é linda !

O poeta estremeceu .

Mas o que se passou de aqui por diante merece um capitulo separado .

IV

-- Ahi vem a rainha da festa ! --- disse pois do lado um dos murmuradores. -- Vejam como vem formosa !

Fernão de Aguiar estremeceu .

-- E com ella Luiza de Noronha. O corpo e a sombra -- disse outro .

-- Dize antes o anjo e o demonio -- emendou Azevedo.

O poeta encrespou o sobr'olho.

-- Bem sei eu quem não deixaria passar impunemente a classificação , se estivesse presente -- disse um do lado.

-- Fallas em Paulo Ribeiro ?

-- Fallo . Pois de que outro hei-de fallar ?

-- Pode ser que haja outro ; declaro porém que não o conheço por ora . Em quanto a Paulo, digo-te que tenho dó do engano do pobre moço . É uma grande alma, um grande coração , fascinado por uma alma damnada e capaz dos mais baixos embustes.

-- Perdão – disse então o poeta com seriedade e com ares de pouco satisfeito -- assevero-te , Azevedo, que te enganas no conceito que fazes de Luiza . .

-- Como ! Pois negarás que Luiza é pelos embustes e pela hypocrisia filha dignissima de aquelle grande velhaco Vasco de Noronha que trata de apossar-se da grande fortuna do excellente homem senhor d'esta casa , procurando casar os seus dois filhos com os dois unicos herdeiros d ’esta immensa riqueza ? Negarás que Luiza auxilia o pae nos enredos, inspirando calculadamente um amor louco a Paulo , e forcejando por allucinar o animo de Adelaide em favor de aquelle grande estupido e brutal Antonio de Noronha , seu irmão e digno filho de aquelle mariola e grande patife, que arrota pergaminhos, e resúa calotes por todos os poros ?

-- Ainda ahi exageras, Azevedo, Vasco de Noronha não é caloteiro .

-- Não é caloteiro ! Essa agora ainda é melhor. Pois negarás que aquelle impostor gasta sem conta nem medida á custa de Francisco Ribeiro ?

-- Não o nego ; mas isso não se chama caloteiro .

-- Então como se chama ?

-- Chama-se parasita , velhaco... tudo o que quizeres, menos caloteiro.

-- Parasita ! Pois seja. Estás n'este ponto de uma bonhomia admiravel.

-- Isto não é bonhomia, é correcção de linguagem que a minha qualidade de litterato desculpa. Para te provar que não é bondade da minha parte, digo-te que Vasco de Noronha é um grande tratante que de pois de ter perdalariado a enorme fortuna da pobre şenhora com quem casou , e que fez martyr á força de tratos que lhe deu durante a vida, quando se viu reduzido aos mesquinhos rendimentos do seu ridiculo morgado, e aos ultimos seis contos de aquella fortuna , aferrou-se a Francisco Ribeiro , e conseguiu d'elle entregar-lh'os , em deposito , e receber juros do seu dinheiro de que o millionario não precisa, e que tem em seu poder para o obsequiar . Além d'isto Vasco de Noronha ostenta grande casa e grande luxo, e tudo com que ? Com as fartas generosidades que o seu parasitismo desfaçado consegue de Francisco Ribeiro, a quem chama seu intimo amigo, seu melhor amigo, seu particular amigo, a quem tem tanta amizade, como Judas teve a Christo. Já vès que isto não é bonhomia , é correcção litteraria . Em quanto a Luiza , assevero-te que erras completamente a apreciação.

-- Ora adeus, Fernão ; a modo que anda ahi interesse intimo ...

-- Aqui não anda interesse algum -- replicou severamente o poeta ; -- o que pretendo é não deixar arrastar na lama a reputação de aquella pobre menina, unicamente porque teve a infelicidade de ter um maroto por pae, é de lhe haver morrido a mãe, antes de ella ter chegado á idade de lhe poderem ser aproveitados os grandes sentimentos da alma, e prevenidos solidamente contra a influencia da indole hypocrita e velhaca do malvado, de que Deus a fez nascer filha . Demais sou intimo amigo de Paulo Ribeiro , e seria um infame, se por ventura deixasse correr diante de mim á revelia a reputação de uma senhora , que é adorada sobre todas as coisas do mundo pelo homem em cuja casa sou recebido como filho. Creio que é assim que procede um homem de honra, e que é assim que devem proceder todos aquelles que se dizem amigos de Paulo Ribeiro.

-- Isso é commigo, Fernão de Aguiar ?

-- Digo o que é verdade -- replicou severamente o poeta -- e a verdade nunca affrontou o homem honrado ; mas se por infelicidade estou enganado a teu respeito , Azevedo, e as minhas palavras te affrontaram , toma-as como quizeres .

-- Ora deixem-se de tolices ! Por uma ninharia !... -- exclamou Pacheco, pretendendo apagar a discussão.

-- Não é ninharia, nem tolice , Luiz Pacheco -- retrucou o poeta -- ė a honra de uma senhora, noiva do filho do senhor d'esta casa, e é a honra áté de Francisco de Azevedo, que n'esta questão se poz muito abaixo da nobre generosidade do seu caracter. .

-- Então como explicas tu todos esses embustes que ahi estás accentuando ? -- exclamou desalmadamente Azevedo.

-- Como explico? -- replicou Aguiar arrebatado e com os olhos cheios de fogo .

Depois serenou um pouco , e continuou :

-- A discussão foi longe de mais, meus amigos, para que possa paral-a aqui. A minha honra demanda que a esclareça de todo. Revistam-se, portanto de paciencia, e attendam um momento á historia de esta familia, que vou referir-lhes em muito poucas palavras.

E depois de uma pausa continuou :

-- Francisco Ribeiro , o millionario que dá hoje este baile sumptuoso , para solemnisar o anniversario do nascimento de Adelaide, sua filha querida, é uma d'estas grandes almas, nobres, generosas e sinceras que, na época presente, são mais que excepção , são milagre. Quem olha para aquelle rosto tão desassombrado, tão franco e sempre tão prasenteiro ; quem attender aquellas maneiras tão lhanas e communicativas , com que se dirige a toda a gente sem distincção de fortuna ; quem sabe o muito que dispende em esmolas sem ostentação ; o quanto é util aos seus amigos , e favorece generosamente e sem vaidade todos aquelles que precisam da sua bolsa e da sua influencia ; quem vê a indifferença , que mais parece insensibilidade, com que esquece todas as injurias pessoaes, e continua a tratar e a favorecer quem o injuriou com a mesma franqueza e a mesma cordialidade que d'antes, admira-o , e não pode deixar de pensar ácerca d 'elle o que tenho pensado todas as vezes que medito nas excellencias invulgares d'este caracter excepcional. Francisco Ribeiro não só é incapaz de fazer o mal, mas é até incapaz de o conhecer ; a sua alma é tão boa e tão nobre , que por ahi nem sequer rocou ainda a ideia de que n'este mundo ha homens, que praticam actos que se chamam crimes, e que entre elles ha taes que a sociedade deve expulsar de si, para provêr á sua propria conservação.

A origem da sua grande fortuna é tão justa , tão pura e tão santa como a sua alma; e o desenvolvimento progressivo d'ella não desconforma um só ponto com a origem . Ribeiro é filho de um lavrador do Minho, que morreu , ainda ha poucos annos, nos braços do filho, rodeado de todas as commodidades da vida e abençoando com lagrimas de gratidão a bondade de Deus por lhe ter dado tal filho. Depois de alguns annos de caixeiro n'uma das principaes casas de commercio , Ribeiro conseguiu reunir pela mais estricta economia um pequeno capital, com o qual principiou a negociar por sua conta . A fortuna , em puxada pela actividade e pela honradez, centuplicou em poucos annos aquellas economias, que eram abençoadas, porque tinham por origem o trabalho legal, a mais justa origem que pode ter a riqueza.

-- Em 1827, Ribeiro já era negociante acreditado na praça . Por esta occasião o conde de Vermoim , antigo fidalgo portuguéz, que fora governador do Brasil, onde tinha casado com uma senhora millionaria, viu-se obrigado a emigrar por liberal. O pae de Ribeiro tinha sido criado e caixeiro do pae do conde, e este , que sempre tratara Ribeiro como amigo intimo de sua familia , entendeu que a ninguem melhor podia deixar entregue a grande somma de dinheiro que tinha, parte em giro e parte em moeda, do que a elle , que tantas garantias lhe dava de plena confiança . Ribeiro era constitucional, mas o seu caracter bondoso punha-o a cobro de todas as perseguições. Estas porém chegaram , provocadas pelo disvelo com que o espirito previdente do honrado negociante tratou de liquidar a fortuna do conde, terrivelmente ameaçado pelos rancores de facção. Em consequencia da perseguição que soffreu , este homem honrado teve de esconder-se, e os seus bens foram sequestrados; mas a fortuna do conde ficou salva, porque Ribeiro tinha-a occultado de forma que era impossivel dar com ella . Tinha-a enterrado.

-- Quando os acontecimentos de 1832 restituiram á patria o conde de Vermoim , Ribeiro estava pobre ; no exilio chegara até a precisar das esmolas dos seus amigos. Imaginem portanto o pasmo do conde, quando aquelle homem honrado lhe entregou toda a riqueza sem lhe faltar um real! O conde de Vermoim era fidalgo no verdadeiro sentido do termo; a gratidão inspirou-lhe portanto o dividir com o amigo a riqueza que a honradez d'este lhe havia salvado . Ribeiro recusou , recusou egualmente a influencia do conde para rehaver a sua fortuna das mãos dos realistas, como muita gente fez á custa de muitas injustiças, e recusou até acceitar o offerecimento que o conde lhe fez de lhe emprestar os quatrocentos contos de reis, para de novo encetar o commercio em grande escala. Ribeiro , como digo, repelliu a offerta , porque a sua honradez fazia-lhe receiar um lance desgraçado da sorte , e portanto a perda irremediavelda riqueza que lhe queriam confiar. Mas n'este ponto o conde foi inflexivel: pediu , rogou e implorou primeiro ; depois exigiu, e mandou . Ribeiro teve de ceder ; e cedeu , com a condição porém de o conde ser companheiro no negocio. Elle acceitou, e o velho fidalgo fez-se negociante.

-- Deus nem sempre quer provar n'este mundo os justos com o desamparo ; mais cedo ou mais tarde faz-lhes muitas vezes justiça . Seis annos depois, em 1839 , Ribeiro estava millionario . O conde quiz então separar a sociedade, e ao dividir os lucros, pagou-lhe amplamente e como cavalheiro a nobreza e a honradez com que elle lhe salvara a fortuna na época da emigração . Recebeu os seus quatrocentos contos, e recusou os lucros, que n'essa occasião já triplicavam o capital.

-- Francisco Ribeiro nunca tinha suspeitado aquella cilada. Queixou-se , gritou, rogou , disse que ficava deshonrado diante da sua consciencia, mas o conde foi inexoravel. Para lhe acalmar de todo os escrupulos , recorreu até ás preoccupações da posição , que Ribeiro respeitava porque tinha bebido com o leite o respeito por ellas. Apparentou zombar d'elle, e perguntou-lhe com soberba que bom senso era o d'elle para acreditar que um fidalgo portuguez se abaixasse a ser negociante . A esta coarctada insolente para outro qualquer homem , Ribeiro cedeu como fulminado.

Devéras muito tolo devia de estar no momento em que acreditou que o conde de Vermoim se prestava a deslustrar a sua prosapia , mercadejando como qualquer plebeu . Nas nossas provincias, meus caros amigos, o villão encara o fidalgo como raça predestinada e á parte. Quando nasce, aprende na veneração dos paes a olhal-o como homem superior e de uma essencia , para assim dizer, acrisolada. Quando morre, deixa este mundo com aquella convicção tão enraizada na alma, que estou convencido que se encontrar lá no outro o fidalgo, ainda lá o ha-de acatar e servir como n'este. Ribeiro foi educado com estas preoccupações, e o generoso conde, abusando d'ellas para pagar a sua divida de proceder fidalgo e honrado, não o fez por soberba , mas por saber que diante d'este argumento Francisco Ribeiro recuaria , deixando-o portanto desquitar-se em paz de uma obrigação , com o peso da qual não podia a sua grande alma.

-- Um anno depois o conde de Vermoim morreu, deixando por unico successor do seu nome e de uma grande fortuna, esse moço generoso e valente , que tão notavel se tornou pela sua coragem e vasta intelligencia , como pela excessiva susceptibilidade e rigidez de principios. Ribeiro tem sido para elle verdadeiro amigo e verdadeiro pae ; aconselha-o com a experiencia , e acarinha-o com os disvelos todas as vezes que as triste zas da alma ou as enfermidades do corpo lhe fazem sentir mais a orphandade. Mais do que isto não pôde fazer ; porque Luiz de Vermoim , que conhece de quanto a generosidade de Ribeiro é capaz, conserva longe da influencia d'elle os seus capitaes, e apenas para o não desgostar lhe deixa gerir vinte ou trinta contos de réis. Pasmo de o não ver aqui; o conde está no Porto , e, apezar da excentricidade do seu caracter , nunca falta ás festas do amigo do seu pae, que trata por um nome carinhoso .

Fernão de Aguiar parou um pouco, e depois continuou assim :

-- Eis aqui, meus amigos , a origem da fortuna de Francisco Ribeiro que, segundo se diz, possue hoje cinco mil contos de réis. O caracter d'elle é esse que deixei descripto ; o de D. Manoela , sua esposa , não é difficil nem longo na descripção . Olhem para acolá .

Assim dizendo, o poeta apontou para um dos lados da sala , por onde ia passando uma senhora já de edade, alta e nutrida, que caminhava toda teza e a passo grave, pelo braço de um homem baixo e magrissimo, cara afuinhada, nariz comprido e bicudo, e olhos vivos e traiçoeiros.

-- Vệem aquella senhora ? -- continuou Aguiar.

-- É D. Manoela .

-- Pelo braço do exc.mo Vasco de Noronha -- accrescentou com malicia o murmurador.

-- Silencio , Azevedo -- replicou o poeta -- não tens licença de fallar senão depois de eu findar o meu juizo critico . Vêem , portanto , aquelles modos e aquelles meneios ? Acolá está a verdadeira definição do caracter de D. Manoela. É vaidosa , mas vaidosa sem senso commum , se por ventura ha ahi vaidade que a tenha. Agora oiçam a razão psychologica de aquelle caracter. D. Manoela nasceu nos fins do seculo passado, e é filha de um abastado negociante do Porto . A sua educação foi a da épocha ; viveu encerrada de portas a dentro até que casou . Mas em casa do pae havia muito dinheiro , e a maioria da gente que habitualmente a frequentava , era gente de negocio , que dependentes e em posição inferior de fortuna, acatavam o negociante e a familia com respeito e veneração humildosa . A alma de D. Manoela, á força de arrepiar-se com o som argentino do louro metal, que de continuo sentia contar, e a força de ouvir e presencear as palavras e os actos humildes dos dependentes da fortuna de seu pae, foi enfunando, enfunando como bujarrona com vento galerno, e por fim chegou a impar com a vaidade do dinheiro . Acreditou, portanto , que a sua vontade era lei n'este mundo, o seu capricho uma soberania e a sua posição o non plus ultra das graduações sociaes. Entretanto que viveu na ignorancia das coisas do mundo, de que a sequestrava o encerramento em que estava em casa de seu pae, a vaidade de D. Manoela pavoneava-se na soberania e no despotismo com que tratava os criados , que olhava como uma corja vil; mas quando o seu Casamento a introduziu nos salões, e a trouxe para o centro da vida social, D . Manoela sentiu que havia cá por föra uma vaidade muito mais orgulhosa e altiva que a do balcão endinheirado. Diante d'esta o seu bom senso havia de succumbir por força. Seu pae era filho de um pobre lavrador da Maia , que principiára a carreira commercial como todos a começavam n'aquella época. Entrou na cidade, olho arregalado e estupido, cabello estopetado e hirsuto , cuécas de estôpa e pé descalço ; n'este traje foi servir n'uma casa commercial, e principiar o penoso tirocinio por varrer a loja , acarretar agua da fonte , e levar muito pontapé e muito carôlo do patrão e dos caixeiros, e até da mesma patrôa, se por ventura chorava o menino, de quem nas horas vagas era nomeado ama secca. D'ahi subiu a calçar chinelo branco e a usar jaqueta de saragoça ; e depois a vender na loja , e ainda aos vinte annos andava sem lenço ao pescoço , e não tinha licença do patrão para limpar a cara dos primeiros cabellos da barba, que trazia n'ella emmaranhados e hirtos, como sedas de porco montaraz atacado pela bretoeja . D'aqui subiu a primeiro caixeiro , depois foi patrão , e aos sessenta annos tinha uma fortuna de cento e cincoenta contos de réis, educava os filhos, como eu disse que D. Manoela foi educada, e protestava impotente contra as extravagancias dos filhos, que apezar de muitas missas e muitos lausperennes que foram obrigados a aguentar na infancia , sahiram depois uns verdadeiros quebra-cabeças.

-- Já se vê, portanto , que D. Manoela não podia pretender á vaidade genealogica , mas o afazimento da educação e o habito de se reputar sobranceira aos outros, auxiliados pelas lisonjas e considerações dos fidalgos parasitas dos milhões de seu marido , predominaram sobre o bom senso d'ella , e no fim de poucos tempos D. Manoela tinha trocado a vaidade do dinheiro pela vaidade do sangue , que traduzia n'aquelles modos graves e seriedade emproada que distinguem tão perfeitamente o villão atidalgado, do que nasceu ver dadeiro fidalgo. Mas ponham de parte , meus amigos, aquella caricatura que presenceiam , desopprimam-a de aquella verdadeira monomania , e encontrarão D. Manoela como realmente é boa mãe , esposa extremosa , amparo dos pobres e dos desgraçados. Seus dois filhos -- Paulo , que acabou de fazer acto do terceiro anno medico, e Adelaide, que viram passar pelo braço do filho de Vasco de Noronha, são , elle um cavalheiro perfeito ; nobre e corajoso como poucos, ella um anjo de bondade e formosura , semelhante em virtude aos paes e ao irmão , e sem rastrear ao menos por nenhum dos defeitos da mãe.

O poeta parou um momento , depois continuou, comprimindo a custo na voz a commoção que o agitava :

-- A descripção que lhes acabo de fazer da familia do homem generoso , que foi o amigo intimo de meu pae, que depois da morte d'elle foi o meu bemfeitor, e a quem devo emfim esse pouco que valho pela educação e pelos estudos -- porque eu, meus amigos, não me pejo de o dizer, sou filho de um militar honrado mas pobre, que me deixou por unica herança a reputação das suas virtudes e a amizade de Francisco Ribeiro esta descripção não é inteiramente ociosa , por que serve para dar luz ás razões que tenho a allegar contra o que disse , ha pouco , o nosso amigo Azevedo. Ora digam-me -- continuou elle sorrindo -- é por ventura caso digno de admiração, que, sendo Francisco Ribeiro e D. Manoela taes quaes os descrevi, Vasco de Noronha, velhaco e tratante como o conhecem , os explore e tire partido d'elles ? Domina D. Manoela por que lhe lisongeia a vaidade, mette-lhe na cabeça presumpções de fidalga, e chega a pontos até de a enfunar de forma que a faz tratar com soberania muita gente de sangue purissimo. Explora Francisco Ribeiro , porque, alem da protecção que tem de D. Manoela , conta com bondade extrema d'elle , de quem sabe que nunca hade ouvir uma palavra e nem sequer um signal de que lhe conhece a velhacaria . Assim vae recebendo d'elle o juro do dinheiro que lhe pediu que guardasse, e ao mesmo tempo vae locupletando-se ricamente á custa de mil artificios, com que sabe explorar-lhe a fortuna. Esta é a verdade ácerca de Vasco de Noronha; isto porém não é calote , é velhacaria ; não é ser caloteiro, é ser parasita industrioso.

-- Mas, segundo diz Azevedo, Luiza entra com o pae nos enredos, por meio dos quaes pretende alliar a sua familia aos milhões de Francisco Ribeiro. Luiza, meus amigos, é um anjo pelo coração, que Vasco de Noronha fez um pouco mulher do mundo pela cabeça. Se não tivesse aquelle pae era digna de ser a amiga querida de Adelaide ; com a educação que teve, e com o mal que lhe vão fazendo os conselhos que recebe, dentro em pouco será uma alma inteiramente damnada, se antes d'isso o amor de Paulo Ribeiro a não salvar da perdição. Mas temos por ventura direito de maldizer de Luiza , porque teve a infelicidade de nascer de um homem como aquelle ? Deveremos por ventura accusar o seu amor pelo filho do millionario como törpe comedia de hypocrisia ? Seria severidade de mais, seria até crueldade. Luiza ama Paulo com toda a pureza com que Deus lhe dotou a alma. Se antes de o conhecer, o pae lhe ensinou a vêr n'elle o filho de um millionario , depois que o conheceu e o amou , não vê n'elle senão o homem que ama. Isto não é convicção officiosa , infundamentada. Da nobreza de sua alma são provas sobejas a bondade com que trata toda a gente sem distincção de posições sociaes, a sua caridade para os pobres, e até o amor e o respeito demasiado que a acorrentam ao pae, e que dão a este os meios precisos para a fazer chafurdar nos embustes e nas infamias que medita . Do seu amor pelo nosso Paulo não são argumentos menos convincentes a felicidade que espontanea lhe brilha no rosto , quando elle apparece diante d'ella , e os sacrificios a que do coração se sujeita para the não dar o menor desgosto . A mulher é por indole vaidosa e loireira, meus caros, e a mulher que chega, como Luiza ; a cooperar com um grande velhaco para uma grande tratantada, se do coração não amasse Paulo , não teria, porque é mulher, a força bastante para encobrir os instinctos e tornar-sé, na ausencia do amante, irreprehensivel e admirável para todos aquelles que sabem que ella é amada por elle.

N'este momento o conde de Vermoim e Francisco Tovar assomaram à porta do salão. O poeta , ao dizer as ultimas palavras, voltou-se n'aquella direcção e deu com os olhos n'elles: Mal os viu , sahiu do grupo onde estava conversando, e foi recebel-os a alguns passos distante .

Depois dos primeiros comprimentos, Fernão de Aguiar perguntou pelo general; estranhando não o ver no baile.

-- Ainda não ha duas horas -- respondeu o conde -- que estava na firme resolução de vir , e perfeitamente convencido que vinha. Mas no momento de partir , appareceu um inconveniente ..., -- Espero que não fosse novo ataque de gota -- disse o poeta mostrando-se receioso pelo bem-estar do general.

-- Não , homem --- replicou rindo Francisco Tovar -- a questão foi de botas.

-- De botas!...

-- Sim -- continuou Tovar, dando uma grande gargalhada -- meu pae não se lembrou que o ultimo ataque de gota ainda estava muito recente, e que por isso , para vir ao baile, precisava mandar fazer calçado onde lhe coubessem os pés. Tambem nenhum de nós nos lembramos d'isso , de maneira que quando quiz calçar os botins para sahir , não pôde. Experimentou todos quantos tem , teimou até em calçar uns que eram mais largos, mas quando quiz andar , cahiu berrando com dôres . Descalçamol-o , e então é que nos lembramos com horror que estava impossibilitado de nos acompanhar ao baile. Imagina o que por lá foi. O Pederneira foi quem carregou com toda a responsabilidade, e por conseguinte tambem com dois terços das pragas em que despeitorou a colera de aquelle desapon tamento . Para o consolar , fizemos-lhe companhia até agora ; mas como vissemos que não se aquietava de modo algum , e como conhecessemos por fim pelos bocejos que começou a fazer, que estava com somno, resolvemos deixal-o aos cuidados do Pederneira, que se incumbiu de o metter na cama, onde é provável que esqueça a zanga n'um somno bemaventurado. Quando sahimos, deixamol-o a praguejar , mas já a dormir .

-- Pobre general ! -- disse o poeta sorrindo-se.

Francisco Tovar separou-se d'elles então, e foi procurar o millionario para lhe communicar o motivo por que o general os não tinha acompanhado ao baile . O poeta e o conde dirigiram-se para o grupo dos murmuradores, que receberam este com as mais claras demonstrações de amizade e de consideração .

-- Luiz Pacheco --- disse o poeta -- apresento-te o meu amigo, conde de Vermoim , de quem ha pouco te fallei. Luiz -- continuou voltando-se para o conde -- apresento-te um homem digno de ser teu amigo. É tambem um viajante incansavel : chegou ha mez e meio, apenas, de uma viagem de cinco annos, e creio...

-- Que parto brevemente ? -- disse Pacheco -- É verdade ; parto já no paquete que deve chegar ámanhã ; por isso agradeço duplicadamente ao acaso e a Fernão de Aguiar o proporcionarem-me n'este momento occasião de conhecer a v. exc.a, snr. conde.

O conde cortejou e respondeu :

-- Eu é que agradeço a Fernão, snr. Pacheco , o gosto de me antecipar o seu conhecimento , que de outra forma seria travado longe da influencia de tão lisongeiro auspicio . Tambem parto amanhã no paquete...

-- Tambem , snr. conde ? Oh ! é uma verdadeira felicidade para mim . Já vês, Fernão, roubo-t'o ...

-- Partes, Luiz ! Mas eu suppunha... tinha até motivos para acreditar ... -- balbuciou o poeta, fitando n'elle um olhar penetrante e cheio de admiração.

-- Parto -- respondeu o conde sorrindo tristemente -- preciso sahir do Porto, e d'esta vez... por muito tempo. Vou para a Asia .

-- Tanto melhor -- exclamou Pacheco -- vou para o Egypto ; assim gozarei por mais tempo a companhia de v. exc.a.

-- N'esse caso pode ser que nos não separemos, snr. Pacheco -- replicou o conde -- O meu caminhar é sem destino determinado, e por isso é mais que provavel que sacrifique a minha primeira ideia ao prazer de ter por companheiro de viagem o homem que Fernão de Aguiar me apresentou como digno de ser um amigo.

O poeta , cuja fronte se contrahira pouco a pouco, não deu tempo a Pacheco de responder a este comprimento . Travou do braço do conde, e levou-o de repente para o meio da casa .

-- Luiz -- disse elle -- não comprehendo esta resolução repentina. Ainda hontem nos dissestes que era muito provavel não tornares a sahir do paiz .

O conde sorriu-se com um sorriso triste .

-- É uma velleidade de viajante , Fernão. Que queres ? são coisas do meu caracter -- disse elle .

Fernão deu mais alguns passos com elle na sala, distrahido e como luctando com affectos encontrados, que lhe tinham indeciso o espirito .

-- É preciso que sejamos francos, Luiz -- disse elle por fim -- O teu procedimento esmaga-me n'esta occasião. Diz-me, não amas Adelaide ?

O conde estremeceu , levou de repente a mão de Fernão ao coração, e balbuciou:

– Só muito tarde comprehendi a verdade ; quero reparar o que fiz . Perdôa-me.

Fernão deu mais alguns passos agitados na sala .

-- E é por isso que partes? Enlouqueceste ? -- disse elle por fim .

-- Eu sou rico, e tu ...

-- Sou pobre, é verdade. E suppões que Adelaide ? . .

-- Nao continues, nem mesmo por pensamento injuries aquelle anjo . Mas o mundo é muito tôrpe, e se eu alcançasse o amor d'ella , diria que foi o meu dinheiro a causa da tua infelicidade. Por isso parto ... devo partir.

-- Isto é , sacrificas-te . E julgas-me tão vil que acceitasse a minha felicidade á custa da tua desgraça ? E julgas-me de espirito tão baixo , e tão sem brio e sem dignidade, que me queira sujeitar ao que o mundo diria de mim , se pretendesse ao amor da filha do millionario ? Pódes ficar , não amo Adelaide.

O conde sorriu-se com um sorriso triste e melancolico .

-- A minha resolução é inabalavel, -- disse elle apertando affectuosamente a mão do poeta ; -- parto amanhã irrevogavelmente.

Fernão de Aguiar, apezar de conhecer a firmeza das resoluções do conde, ia a replicar ainda esperançado em poder abrandal-o d'esta vez, quando duas mãos robustas se apoiaram familiarmente nos hombros dos dois amigos, e separando-os um pouco, uma cabeça entrou de repente para o meio d'elles, soltando uma gargalhada estrondosa e jovial.

Era Francisco Ribeiro.

-- Bravo ! Muito bem ! -- exclamou elle -- Pilhados em flagrante delicto de polemica . Que andam aqui a discutir os meus dois predilectos, longe das damas que estão anciando por elles ? A dançar, vamos ; deixem aos velhos a vida pacata.

Os dois amigos surprehendidos não atinaram com resposta .

-- Mas que andavam conversando ? -- continuou Francisco Ribeiro -- Aposto que tu , meu motejador, andas a meditar algum folhetim a respeito do meu baile . Ah ! já sei -- continuou soltando uma nova gargalhada -- andavas a cathechisar o nosso Luiz para que não fuja das damas. E é muito bemfeito ...

-- Não , meu caro padrinho -- interrompeu então o conde -- andavamos a fallar da minha proxima viagem.

-- Como na tua proxima viagem ? Pois voltas...

-- Parto no paquete que chega amanhã. Previna-se portanto, se me quer dar algumas ordens.

-- -- Amanhã -- - balbuciou Francisco Ribeiro -- Pois tu ... Mas sim , tens razão -- continuou elle tristemente -- deves partir ...

Ribeiro não pôde terminar a phrase . Foi-lhe interrompida por um homem gordo, de crachá ao peito , que se aproximou d'elle com um lenço de seda na mão .

-- Snr. Ribeiro -- disse elle com ares de lisongeiro e contente de achar occasião de prestar um serviço -- tenho a honra de lhe, entregar o seu lenço , que lhe cahiu alli, ha pouco, no meio da sala.

-- Oh ! snr. commendador, mil vezes obrigado a v. exc.a -- replicou Ribeiro, soltando a sua costumada gargalhada jovial -- mil vezes obrigado , mil vezes obrigado. Estes meus descuidos...

-- Que os seus amigos estimam para lhe mostrarem quanto desejam ter occasiões de o servir -- replicou o gordo commendador, cortejando.

Uma turba, immensa de lisongeiros cercou immediatamente o millionario.

-- O seu baile está magnifico -- disse um d'elles -- só v . exc.a é que sabe dar d’estas festas.

-- Que encantadora está sua filha!

-- E s. exc. à snr.a D . Manoela!... Que delicadeza ! Que maneiras ! ... E ' digna de v. exc.a, snr. Ribeiro .

-- A proposito , v. exc.a não nota a extrema animação que reina no baile ? só em sua casa é que se vê d'estas coisas.

-- E que regularidade no andamento do baile ! Que profusão e que grandeza no serviço !

-- Oh ! meus senhores ; isso são obsequios da bondade dos meus amigos -- respondeu Ribeiro.

E ao mesmo tempo apertavá, para a direita e para a esquerda, as mãos que todos porfiavam em estender-lhe. E aquelle bondoso homem , que a não ser a extrema bondade que tinha, expulsaria a chicote pela porta fóra aquella tựrba abjecta de bajuladores, via-se obrigado a atural-os em toda a parte, onde precisava parar um momento .

-- V. exc. procura alguem , snr. Ribeiro ? -- disse o commendador, que viu que Ribeiro estendera o pescoço e olhara para a multidão como que a procurar no meio d'ella.

-- Queria ver se achava algum dos criados, para...

-- Eu vou chamal-o .

-- Oh ! snr. commendador, por quem é ... -- replicou Ribeiro , suspendendo-o no impeto de solicitude servil -- Mas que faz o regente da orchestra que não toca para uma polka ? O baile desanima ; com licença, eu vou...

-- Perdão, não se incommode ; eu vou transmittir-lhe as suas ordens.

-- Oh ! snr. barão ... de modo nenhum ... não consinto ...

Mas o barão , barão de hoje em toda a extensão do papel, tinha corrido promptamente para a orchestra, e já gritava debaixo, orgulhoso da commissão de que se encarregara :

-- Ó snr. Ribas, tenha a bondade de tocar uma polka. Manda s . exc.a, o snr. Ribeiro.

-- V. exc. manda alguma coisa ? -- disse então um dos criados, aproximando-se.

-- Felizmente appareceste...

-- Por que eu o fui chamar; gosto mais de obrar, do que de me offerecer -- disse do lado e a meia voz Vasco de Noronha.

-- Oh ! meu caro amigo , muito e muito obrigado. Não sei como lhe hei-de agradecer tamanhas finezas.

-- A sua amizade vale muito mais ; não tem preço .

E estas e outras eguaes lisonjas, e offerecimentos e serviços do mais requintado e abjecto servilismo continuaram a cercar o millionario .

O conde e Fernão apartaram-se enjoados. Este ia a reatar a conversa sobre o assumpto , de que Ribeiro lhes quebrara o fio , quando Adelaide e Luiza pararam diante d'elles.

-- Dizem-me que parte ámanhã para Inglaterra, Luiz ! --- disse Adelaide, mal podendo disfarçar a agonia que lhe brilhava nos olhos, humidos de lagrimas.

-- É verdade, Adelaide -- balbuciou elle.

-- V. exc.a quer acceitar o meu braço, minha senhora ?--- disse Fernão, offerecendo o braço a Luiza .

Ella tomou-lhe o braço, e Adelaide o do conde. N'um momento os dois pares, por uma manobra habilmente praticada pelo poeta , caminhavam em direcções oppostas.

Cinco minutos depois Vasco de Noronha aproximou-se , e pediu respeitosamente licença a Fernão para conduzir sua filha á sala contigua, onde D. Manoela esperava por ella . Fernão ficou só ; no fundo da sala Adelaide conversava com o conde. Ella fallava animada e como supplicando ; elle tinha o rosto ligeiramente colorido, os gestos eram agitados, parecia recusar com firmeza .

Fernão contemplou-os um momento .

-- Ella ama-o! -- disse elle por fim -- Luiz de Vermoim , não me excederás em generosidade!

Assim dizendo, sahiu da sala .

Eram cinco horas da manhã, quando as seges começaram a rodar, levando os primeiros convidados que se retiravam do baile.

V

Estamos na vespera do Natal de 1844 -- seis mezes precisamente depois do baile , a que foi assistir o leitor nos dois capitulos antecedentes.

Nunca o nascimento de Christo fora precedido por noite mais tempestuosa e mais feia . Logo ao alvorecer da aurora, o vento principiara a soprar do lado do sudoeste . Uma phalange medonha de nuvens acastelladas, empuxadas por elle , apoderara-se totalmente do espaço , recamando-o de uma atmosphera calmosa e pardacenta , por sobre a qual atropellavam-se com rara velocidade outras ainda mais gigantes, afumadas e coloridas de negro , que o tufão impellia em direcção da cidade.

Ao cahir da noite a tempestade desmoronou-se de todo. A chuva começou a cahir em torrentes, e o vendaval tornou-se permanente. Toda a população abrigára-se debaixo de telhas, e fazia as delicias gastronomicas da consoada, já com todas as ideias da missa do gallo postas de parte . Os chefes de familia , a quem a tempestade fornecia razão justificativa para resistirem a acompanhar a familia na devota excursão da meia noite, agradeciam mentalmente á ventaneira a pacifica digestão, em que iam remoer a ceia de aquelle anno ; e as raparigas loireiras e andejas, cujas cabeças airadas ainda alimentavam esperanças, tinham recebido desengano total e desalentador, quando , ao abrirem audaciosamente as janellas para espreitarem o tempo , o vendaval lhes lavara os pés com golfadas de chuva fria como neve.

As ruas do Porto estavam portanto desertas. A missa do gallo era impossivel em noite como aquella , e só a possibilidade da missa do gallo é que seria capaz de fazer sahir á rua os bons burguezes do Porto em noite de consoada. Amofinavam -se as beatas, choravam as loireiras, e praguejavam os peralvilhos ; mas folgava a moralidade publica , porque emfim n'aquella velha costumeira o escandalo aproveitava sempre occasião de fazer das suas com grave detrimento da religião e sobre tudo da honestidade das raparigas solteiras.

São quasi nove horas da noite .

Francisco Ribeiro tinha acabado de tomar o chá com a familia, e com Vasco de Noronha e Luiza, que haviam jantado em casa d 'elle . Nas duas familias, apezar da solemnidade do dia, faltavam dois membros -- Paulo Ribeiro que estudava em Coimbra , e Antonio de Noronha que era alferes do regimento de infanteria 16 , aquartelado em Lisboa.

Depois do chá os convivas tinham formado dois grupos. D. Manoela , Francisco Ribeiro e Vasco de Noronha sentaram-se ao fogão ; Adelaide, e Luiza tinham ido sentar-se ao piano, e entretinham-se a tocar differentes peças de musica , entretanto que os paes conversavam na outra extremidade da sala. A conversa corria animada e discutida , e cada um dos trez presonagens pareciam ter n'ella interesses distinctos. O rosto de Ribeiro , apezar da jovialidade natural, deixava reflectir visiveis signaes de enfado e de mau estar interno, que debalde tentava abafar ; o de D. Manoela retratava a colera e o despeito , e o de Noronha o aborrecimento agastado de quem se vê contrariado e não tem remedio senão soffrer os impulsos do desapontamento .

-- Olhe, meu caro Ribeiro -- disse elle -- seja tudo o que quizer , mas dè-me licença que lhe diga que filho meu não o fazia impunemente .

-- É uma indecencia , indigna de um cavalheiro -- disse D . Manoela , recostando-se com soberania na poltrona, e confrangendo os beiços com despeito.

-- Mas se o rapaz não pôde vir! ... Jesus! que teima ! -- exclamou Francisco Ribeiro, agitando-se enfadado na cadeira.

-- Não pôde vir ! -- retruçou Vasco de Noronha -- diga antes que não quiz. De Coimbra aqui não é tanto caminho , que lhe mettesse medo, se tivesse verdadeira vontade de vir estar n 'este dia solemne com a sua familia . Ora uma catarral! Como se uma constipação fosse capaz de impedir um rapaz, quando quer fazer qualquer coisa ! E mais elle ! Sabe que mais, não veio porque não quiz , porque para estes meninos da moda os costumes e usos sagrados de nossos avós são velharias ridiculas e fosseis. Ah ! tempo ! tempo ! snr.a D . Manoela . N'outras epocas o verdadeira fidalgo prezava-se de ser temente a Deus e amante de sua familia . Hoje !. . hoje sim . Chega um dia como este, um dia solemne para todas as familias, e o filho manda dizer ao pae que não vem assistir a esta solemnidade veneranda, porque está com uma catarral, e tem medo da chuva que apanharia se se pozesse a este caminho de dezoito legoas ! A culpa é dos paes. Á moda entrou até nas cabeças dos velhos. Está tudo perdido.

Francisco Ribeiro soltava uma das suas estrondosas gargalhadas.

– Mas, amigo Noronha -- disse elle -- não viu a carta do meu correspondente ? E' elle proprio , que é um velho, e velho sizudo e austero, quem diz que no estado de saude em que está Paulo , seria imprudencia arriscar-se por este tempo e sosinho.

-- O snr. sempre crê em coisas ! -- exclamou D. Manoela com voz de desprezo irritado -- É uma indignidade, já lhe disse ; é improprio de um cavalheiro. Isto não deve ficar assim .

-- Ora adeus, Manoela...

-- Snr. Ribeiro!... -- exclamou ella com os olhos como dois carvões accesos -- isto não ha-de ficar assim , tenho dito . O senhor é quem perde seus filhos.

-- Manoela ...

-- Não ha-de ficar assim , já lhe disse. O senhor ha-de escrever-lhe, estranhando-lhe rigorosamente esta falta de respeito . Um cavalheiro não se porta assim para com seus paes, e para com as pessoas que o estimam . Não vir reunir-se comnosco na festa do Natal ! Isto é de canalha, é uma indignidade. O senhor ha-de escrever-lhe, já lhe disse.

– Menos isso ; eu não reprehendo meu filho por ter tido juizo .

D . Manoela deu um salto como se a mordesse uma vibora.

-- Veja , snr. Noronha , veja que homem este ! -- exclamou ella por fim -- veja que sentimentos tão baixos que tem ! E elle quem estraga os filhos, educando-os como uns pelitrões, e com uma educação impropria da alta sociedade... Snr. Ribeiro , é necessario que nos entendamos ; se o senhor nasceu com sentimentos tão baixos que não sabe dar a seus filhos a educação que a nossa posição social exige que lhes dê, eu, pela minha parte, não consinto em ser envergonhada por meus filhos. Não quero que se portem como a canalha ...

-- Ora adeus ! Canalha ... canalha ! Bem canalha é cada um em sua casa -- - disse, sorrindo-se o pacifico Ribeiro , batendo compassadamente os dedos sobre a tampa da caixa de oiro , da qual tomou por fim uma pitada.

-- Que homem ! – balbuciou D. Manoela com o mais pronunciado desprezo, e cravando n'elle os olhos inflammados de raiva, e como ameaçando-o da tempestade que trovejaria quando ficassem a sós.

-- Ora, amigo Ribeiro -- acudiu então Vasco de Noronha – ha-de concordar que s. exc.a tem razão . Ora diga-me, se seu filho tivesse vontade de vir consoar comnosco, não lhe seria facil...

-- Mas se elle está doente ! -- exclamou Francisco Ribeiro .

-- Perdão ; se não podia vir a cavallo ...

-- Vinha naturalmente a pé ?

-- Não, em Coimbra ha liteiras, e ... .

-- De liteira ! -- exclamou Ribeiro soltando uma gargalhada.

-- Não vejo inconveniente , vindo elle acautelado como...

-- Pois ha la cautelas ? . .

-- Não interrompa, snr. Ribeiro, não interrompa -- exclamou D. Manoela, pondo n'elle os olhos luzentes como os de um tigre.

Depois recostou-se furiosa contra o encosto da volteriana, balbuciando em voz baixa -- «Malcreado!» -- Francisco Ribeiro sorriu-se, e poz n'ella os olhos com a paciencia de um bemaventurado.

-- Perdão , meu caro amigo -- disse então Noronha, fingindo não fazer caso da violencia inconveniente da apostrophe, que lhe servia para os seus fins -- mas eu me explico . Se Paulo quizesse vir ao Porto , podia vir sem inconveniente n'uma liteira, bem acondicionado contra o rigor da estação, porque a elle não lhe falta dinheiro, e a quem tem dinheiro, não lhe faltam recursos de levar a cabo qualquer intento , se n'elle está empenhado verdadeiramente .

-- Isso tudo será assim , snr. Noronha -- respondeu Ribeiro -- mas o que tambem é verdade, é que não ha liteiras capazes de resistir ao tempo que está . Apanha-se n'ellas tanto frio e tanto vento como vindo a cavallo ou a pé.

-- Ora adeus ! Isso agora é querer teimar. Pois não será possivel arranjar uma liteira de maneira .. .

-- Que fique uma verdadeira redoma de vidro , não é assim , snr. Noronha ? -- interrompeu Francisco Ribeiro , soltando uma gargalhada atroadora.

-- Deixe-o , snr. Noronha, deixe-o -- exclamou então D. Manoela , cada vez mais irritada. -- É um homem sem sentimentos, com quem se não faz nada. Mas eu é que não estou resolvida a deixar continuar esta casa no estado em que tem ido até aqui, e advirto-lhe, snr. Ribeiro, que para fazer o que devo , vou começar por prohibir a porta d'esta casa ao pelitrão do seu protegido Fernão de Aguiar ...

-- Que dizes, menina ? Estás louca ! ...

-- Digo que não quero que me torne a pôr os pés em casa um má lingua, um pelitrão, que se atreve a pôr os olhos em nossa filha , abusando assim da caridade com que a tolice do senhor o protege.

O rosto de Francisco Ribeiro exprimiu rapidamente um vivo desgosto , mas de repente aquillo tudo fundia-se na habitual expressão da bondade jovial, que se traduziu logo n'uma das costumadas gargalhadas.

-- O meu Fernão namorar Adelaide ! ... -- exclamou elle por fim -- como andas cega, Manoela ! Olha que te enganas, filha...

-- Snr. Ribeiro !... – bradou ella furiosa , e curvando-se para elle com os olhos a brilharem de repente .

-- Está bem , não te irrites, menina...

-- Se me dá licença , snr. Francisco Ribeiro -- disse então Vasco de Noronha -- dir-lhe-hei com franqueza que a snr. D. Manoela tem mais razão do que ella mesmo pensava. Por mim mesmo tenho visto... tenho notado... emfim eu fui...

-- Ora, amigo snr. Noronha... -- atalhou Francisco Ribeiro com um sorriso malicioso e com um olhar tão significativo que o fez emmudecer .

Medearam alguns instantes de silencio , no fim dos quaes Francisco Ribeiro abriu de novo a conversa .

-- Torno a dizer-te , menina -- disse dirigindo-se a D. Manoela -- as tuas suspeitas não tem fundamento algum ; mas, se o tivesse, que inconveniente achas tu em que Fernão ame nossa filha?

-- Que homem ! que homem ! -- exclamou D. Manoela já mal podendo conter-se -- O senhor bem mostra de quem nasceu . Bem diz o dictado -- o que o berço dá, só a tumba o tira. E ter eu de viver eternamente com um homem , que a cada passo que dá , mostra sempre de quem é filho !...

-- Dizes bem , Manoela , dizes bem -- replicou Francisco Ribeiro -- Mas que queres ? A culpa não é minha . Eu, como sou filho de um calças de coiro , de um pobre lavrador , penso assim baixamente ; tu, que emfim és filha de um grande fidalgo, deves ter pensamentos mais elevados.

-- Snr. Ribeiro, o senhor atreve-se a insultar a memoria de meus paes? ...

-- Não, filha ; o que quero dizer, é que ainda mesmo que Fernão não fosse filho do homem honrado que no tempo da usurpação me abrigou em sua casa , matou a fome, e posso até dizer, que me livrou da forca, ainda assim a tua organisação fidalga não devia antipathisar tanto com as relações d'elle com nossa filha, se por ventura essas relações existissem . Fernão de Aguiar pertence a uma casa nobilissima, é fidalgo, mais fidalgo que muitos que por ahi vejo apregoar os seus pergaminhos -- accrescentou fitando de novo Vasco de Noronha, e sorrindo-se com evidente malicia . -- N'estas circumstancias -- continuou – já se vê que Fernão de Aguiar deve ser reputado por um digno esposo de Adelaide.

-- Que indignidade ! -- exclamou raivosa D . Manoela -- Um pelitrão, que não tem onde cahir morto ...

-- A snr. D . Manoela não discute a fidalguia de Fernão de Aguiar -- disse então Noronha um pouco atrapalhado -- por esse lado não ha que dizer. A razão por que se nota a inconveniencia de tal enlace, é porque na verdade o nosso poeta é um poeta em todo o sentido , e por isso ...

-- Ah ! a questão não é de pergaminhos , é de dinheiro -- interrompeu rindo-se Francisco Ribeiro -- Bem , estou de acordo, e n'esse caso , para sermos bons paes, é preciso que prohibamos a entrada n'esta casa a todos aquelles que estão nas mesmas circunstancias, e que são uns pelitrões, uns pobres diabos, e que te protesto , Manoela, que tem calculado mais sobre a fortuna de nossos filhos do que o meu pobre Fernão de Aguiar. Não lhe parece que isto é de justiça , amigo Noronha ?

Vasco de Noronha não pode responder, balbuciou apenas algumas phrases sem sentido. A allusão tinha-o reduzido a zero. D. Manoela , em quem ella fizera metade do effeito que havia operado sobre o parasita velhaco, cravou os olhos ameaçadores no marido, mas não se atreveu a responder.

-- Mas deixemo-nos d'isto -- continuou por fim Francisco Ribeiro -- tudo isto são suspeitas mal fundadas. Podes ficar certa , minha querida Manoela , que Fernão de Aguiar não tem a menor pretenção á nossa filha ...

-- O snr. Ribeiro atreve-se a desmentir-me ?...

-- Não , filha ; o que digo é que apezar de teres lume no olho , como costumas dizer , e eu ser um pobre diabo, um banana, atinei melhor do que tu com o namoro .

-- O senhor zomba de mim ?

-- Não zombo, digo só que o amante de Adelaide é ... mas veja se adivinha, amigo Noronha.

-- A não ser elle ... não sei... não posso ... -- balbuciou Vasco de Noronha ancioso.

-- Quem é ? Quem é, que se atreve a pôr os olhos em minha filha ? --- exclamou D. Manoela .

-- É o conde de Vermoim .

-- O conde de Vermoim !!! -- exclamou ao mesmo tempo D. Manoela e Vasco de Noronha.

A exclamação tinha sido repetida pelos dois ao mesmo tempo, mas a revelação tinha sido recebida por elles com sentimentos muito diversos. Vasco de Noronha recebeu-a como o condemnado ouve lêr a sentença de morte; D. Manoela como quem n'um acto de desespero e de raiva recebe na cara uma bofetada em cheio .

N'este momento a harmonia dos sons que o piano soltava debaixo dos dedos de Adelaide, embaralhou-se e parou um momento , e a voz de Luiza , que estava cantando uma aria do Nabuco, calou-se, e em logar d'ella , ouviram-se-lhe dizer estas palavras :

-- Ai, menina ! Como estás nervosa ! Não gostas d'esta musica ? Se queres vamos para o teu quarto acabar a leitura do capitulo que deixamos em meio ?

-- Não, Luiza -- respondeu Adelaide -- continuemos.

E continuaram , apezar de Adelaide se enganar de quando em quando, porque estava mais attenta á conversa dos paes, que procurava perceber, do que a musica com que acompanhava a amiga ; e apezar de esta se enganar não poucas vezes, porque o que queria, não era cantar bem , mas abafar os sons da conversação de forma que Adelaide não podesse percebel-a. Quando perto do fogão os animos começaram a aquecer, Vasco de Noronha tossiu repetidas vezes, e Luiza que o ouviu , abandonou de repente o piano onde tocava com Adelaide uma peça a quatro mãos, e começou a cantar uma das arias mais estrepitosas do Nabuco , que teve a virtude de fazer cessar immediatamente a tosse do pae.

Junto do fogão a conversa retomava o fogo primitivo , depois de alguns momentos de silencio , em que D. Manoela fizera esforços inauditos para soltar a lingua dos freios com que a raiva lh'a açaimava na bocca.

-- O conde de Vermoim ! O conde de Vermoim! -- exclamou ella por fim furiosa ; e ficou mais alguns instantes sem poder obrigar a lingua a obedecer-lhe. -- Olhe, snr. Ribeiro, antes quero ver minha filha morta, do que casada com tal homem.

-- Porque, menina ? Pois o conde não a satisfaz! Um homem rico e nobre, muito rico e muito nobre!...

-- Um homem que é sobrinho de aquelle grosseirão ... d'aquelle tarimbeiro, que o senhor tem a tolice de chamar o seu melhor amigo ! ...

--- Ah ! já sei -- exclamou Francisco Ribeiro , batendo uma palmada na fronte e rindo ás gargalhadas. -- Mas olha, filha, quem ama Adelaide, não é o tio , é o sobrinho.

-- Um embofia , um homem que traz o rei na barriga, que parece que falla por favor para a gente ! ...

-- É um fidalgo , Manoela ; tu admiras os fidalgos.

-- Já lhe disse , snr. Ribeiro, antes quero minha filha casada com um gallego, do que casada com tal homem .

-- Com um gallego ! -- exclamou maliciosamente Francisco Ribeiro -- Que baixeza de sentimentos !

-- O snr. zomba de mim , snr. Ribeiro ?

-- Não zombo, filha ; digo só que se Adelaide amar o conde...

-- Pois ella...

-- E o conde amar Adelaide ...

-- Snr. Ribeiro!...

-- Hão-de casar, se quizerem ... mas não com o meu consentimento . .

-- E é um alvitre muito bem tomado, amigo Ribeiro -- atreveu-se a dizer Vasco de Noronha -- O casamento não sendo á vontade da mãe ...

-- Minha filha ha-de casar á vontade d'ella, snr. Vasco de Noronha -- interrompeu Francisco Ribeiro em tom ligeiramente enfadado, mas decidido -- Ha-de casar á vontade d'ella, e só á vontade d'ella, apezar de quantas combinações e enredos andem por ahi a armar-lhe a fortuna. Em quanto ao conde, nem elle apezar da muita amizade que lhe tenho, nem ella apezar do amor com que a estremeço , alcançarão o meu consentimento para se enlaçarem . Era um casamento convenientissimo e honroso ; mas não devo consentir n'elle , e não devo consentir n'elle , por que sou filho de um criado dos senhores de Vermoim , e a honra exige de mim que não deixe deslustrar aquelle sangue nobilissimo com a mistura de um sangue villão como o nosso, Manoela .

A estas palavras, proferidas pelo marido diante de Vasco de Noronha, D. Manoela fez-se pallida de raiva e de amor proprio. Duvidou um momento se havia de atirar-se ao socco a elle , ou se havia de desmaiar. Por fim desmaiou , soltando gritos agudissimos , e estorcendo-se em medonhas convulsões. As meninas deixaram o piano, e correram para ella . Vasco de Noronha acudiu á campainha que tocou estrepitosamente para reclamar um copo de agua, e Ribeiro , pallido e de todo atrapalhado, não sabia o que havia de fazer. D. Manoela fixou-lhe porém a missão. No meio das convulses, tombou para o lado do fogão , como quem ia a cahir sobre o fogo. Ribeiro tomou-a de repente nos braços ; e D. Manoela , filando-o com presa nervosa , sentiu-se então atacada de convulsões cada vez mais violentas, e , no estorcer d 'ellas, começou a desandar-lhe pelo peito e pelas costas uma medonha trovoada de murros. Por fim , levantou-se n'uma contorsão mais violenta , e , querendo arremessar-lhe os braços ao pescoço , levou -lhe por engano as mãos á cara, onde cravou as unhas de forma, que lhe arrancou uma pouca de pelle do nariz . Depois cahiu immovel sobre a volteriana , e pelas faces começaram a correr-lhe as lagrimas em fio , e começou a soluçar convulsivamente .

--- Depressa, depressa , levemol-a ao sofá -- disse Vasco de Noronha, em cujo rosto se liam os mais evidentes signaes de escarneo .

Assim dizendo, elle e Ribeiro , que estava afflictissimo e sem saber o que havia de fazer , pegaram n'ella em cheio , e deitaram-a sobre um sofá . Então Adelaide tomou o copo da agua das mãos da criada que tinha corrido com elle , e começou a borrifar-lhe o rosto ao de leve. Mas o fanico não cedia ; foram então buscar ao quarto d 'ella um anti-hysterico, queimou-se papel mata-borrão, queimaram-se pennas de gallinha, e porfim , já Ribeiro, estava desesperado e com a cabeça perdida , quando Vasco de Noronha, se lembrou de lhe coçar na ponta do nariz com a rama de uma penna de escrever. As cocegas fizeram-lhe dar dois ou tres espirros, e D . Manoela abriu por fim os olhos.

-- Filha... minha menina. .. isto não é nada. Ora tu !... -- exclamou Francisco Ribeiro, cheio de afflicção e com as lagrimas a correrem-lhe pelas faces abaixo.

-- Este homem ha-de ser a causa da minha morte ! -- suspirou ella por fim , dirigindo-se a Vasco de Noronha e desatando a chorar .

-- Oh ! filha!... -- exclamou Francisco Ribeiro , que não sabia o que havia de fazer para a apaziguar -- ora tu que tomas todas as coisas sempre a serio ! Valha-me Deus ! Bem sabes que não tenho outra vontade se não a tua. Ora socega, menina ; bem vês que o teu nervoso ...

-- Deixe-me, senhor, deixe-me, pelo amor de Deus !

-- Porém , Manoela , minha querida Manoela , perdoa-me. Confesso que foi um gracejo de mau gosto . Mas tambem tomas tudo a serio . Jesus ! Deus meu ! Que nervos ! ... Olha, socega , filha ; se queres vou já escrever a Paulo , reprehendendo-o de não ter vindo a ferias, e dar ordem a Fernão que não volte cá . Em quanto ao mais ... será tudo como tu quizeres -- terminou elle ao ver que a filha estava presente .

-- O senhor matou-me; esta leva-me decerto á sepultura . O senhor ha-de ser o meu assassino .

-- Porém , minha querida Manoela ...

-- Saia de diante de mim . O senhor é um miseravel, um homem sem sentimentos, um canalha. Mal haja meu pae quando me obrigou a casar comsigo . Eu não nasci para viver toda a vida unida a um homem de espiritos tão baixos.

-- Mas, menina , repara, foi um gracejo ...

-- Gracejo ! Diga antes um insulto grosseiro. O senhor não sabe dizer senão grosserias insolentes. Meu Deus ! a que homem estou unida, e para sempre ! A um miseravel, filho de um trocatintas, sem dignidade, sem sentimentos... Saia de diante de mim . A sua vista augmenta a magoa da minha desgraça.

E D. Manoela poz-se a soluçar hystericamente, e dando signaes de que ia recomeçar as convulsões espancadoras de ha pouco.

-- Manoela, minha filha, volta a ti. Bem vês que o disse por gracejo .

-- Ora, snr.a D. Manoela -- disse então do lado Vasco de Noronha -- v. exc.a não deve offender-se tanto . Concordo que a sua nobre susceptibilidade havia de ferir-se com a inconveniencia do snr. Ribeiro, mas por fim de contas, foi um gracejo , e depois das explicações que deu ...

-- Oh ! snr. Noronha, este homem é incorrigivel .

-- Porém , minha senhora...

-- Oh ! esta não se pode soffrer ; nunca me poderei esquecer d'este insulto .

E D. Manoela triplicou a força dos soluços , e calou-se abafada em lagrimas.

Francisco Ribeiro , de joelhos e atrapalhado , beijava humildemente a mão da mulher, e fazia tudo quanto podia para a apaziguar. Por fim D. Manoela entendeu estar sufficientemente vingada, ergueu-se melindrosamente e sentou-se com ares de soffrimento .

-- Vamos, querida esposa -- disse Francisco Ribeiro -- esqueçamos esta desgraçada occorrencia. Prometto que nunca mais te darei motivo de te affligires. São coisas do meu genio, desculpa-as...

-- O snr. promette sempre, e falta melhor.

--- Porém d'esta vez fico avisado . Juro-te que nunca mais tornarei a dizer coisa alguma que te offenda assim o nervoso . Ora vá, diz que não me ficas com rancor ...

-- Vá-se d'aqui, deixe-me.

Vasco de Noronha preparava-se para interpôr o seu valimento efficacissimo, quando um criado abriu a porta, e annunciou o snr. Domingos Gebreu , piloto de numero dos da barra do Porto , e piloto particular que servia a casa de Francisco Ribeiro .

-- Que entre -- disse o millionario , indeciso em sahir do lado de D. Manoela e cumprir os deveres da civilidade para com o piloto .

O rosto de D. Manoela exprimiu evidentes signaes de enfado e de zanga ; mas, antes que tivesse tempo de o exprimir , a porta abriu-se , e no limiar d'ella appareceu o piloto . D. Manoela cravou os olhos enfurecidos no marido, e empurrou-o do sophá, como para exprimir o desprezo que lhe inspirava a petulancia que tinha o marido de introduzir perante a sua grandeza aquelle atomo serventuario da casa.

E comtudo o snr. Gebreu não era tanto atomo como isso , e se o era , pertencia á ordem d'aquelles, cuja importancia é tão crescida, que inspiraram a Smollet a ideia de escrever as Memorias de um d'elles.

Para provar que o snr. Gebreu não era um atomo, basta dizer que era homem de mais que mediana estatura, reforçado , rosto vermelho e crestado pela brisa do mar, que tinha cruzado muitos annos em differentes direcções como capitão de um dos navios de Francisco Ribeiro, no qual tinha ganho quinze para vinte contos de reis pela India , pelo Brazil e pela Australia .

-- Olá , meu compadre, por aqui? -- disse Francisco Ribeiro, dirigindo-se a elle , satisfeito pelo empurrão que tinha levado, mas que o tinha habilitado a perder o medo de sahir de junto da irritada esposa.

-- Boa noite , snr. compadre. Passassem muito bem , minhas senhoras. Meu senhor, estou à sua disposição -- dizia o piloto , fazendo repetidas venias, e forcejando ao mesmo tempo por despir um casacão de oleado, por onde a agua da chuva escorria em fio, e que trazia vestido por sobre um outro de alentado baetão.

-- Entre , vamos, então? -- disse Francisco Ribeiro, preparando-lhe uma cadeira.

O snr. Gebreu , depois de ter conseguido victoria do teimoso casacão de oleado, que atirou para fora da porta , preparou-se para obedecer; mas primeiro olhou para as suas grossas botas de agua todas enlameadas, e para o oleado da sala , como indeciso se havia ou não de entrar.

-- Vamos, entre sem ceremonia , compadre -- disse então Francisco Ribeiro -- então que o traz por cá , ás onze horas da noite ?

-- Que me traz? -- Com mil diabos , compadre; sempre lhe digo que apanhei um aguaceiro como nunca na minha vida aguantei. Pois olhe que me vi n'ellas crespas por esses mares de Deus, mas nunca em talas como hoje , nem mesmo quando no canal de Moçambique o vendaval me apanhou de sopetão, e me levou driças, escotas e os cabos todos, e me fez em farrapos a vela grande, chegando até a desferrar-me por duas vezes as velas das gaveas. Foi uma de seiscentos milhões de diabos. Navegavamos a barlavento ...

-- Sim , sim , compadre, já me contou isso. Mas agora vamos a saber o que o traz por cá a estas horas e com este tempo?

-- Eu sei lá , compadre! Foi o diabo em figura de um inglez , má raios o partam.

-- Mas o que succedeu ?

-- O que succedeu ? Má morte o mate ! Eu lhe conto , compadre . Ao cahir da noite , o sudoeste tinha começado a puxar para a barra, a cerração embrulhava tudo , e o mar roncava como dez milhões de cavallos marinhos,rebentando em flor de encontro ás pedras da barra. Eu e os collegas estivemos vigiando até à noitinha, mas depois dissemos: -- «Toca a deitar ; a cerração engrossa , e hoje não ha que vigiar ... Se alguma coisa anda lá por fóra , já se fez ao largo porque, má mez para os tolos ! que o vendaval os cace á beira de terra, e nem a Senhora da Luz é capaz de valer lhes. Vamos dormir. » Dito é feito , retiramos nós, e eu recolhi-me para entre lençoes . Eram nove e meia, e eis senão quando sinto bater-me á porta como quem bate ao portão de uma quinta . Truz, truz , truz -- parecia que ia ia casa abaixo. Ergo-me, e corro á janela. « O sôr Gebreu , leva arriba!» gritou de fora um catraeiro. -- « Que é lá isso , com um raio de diabos?» -- pergunto eu -- «Que ha-de ser ? -- responde-me elle. Má raios o partam ! E o paquete que lá está com as trombas em riba do Toiro, e d'esta vez reconterno por sua alma.» -- «Homem, um raio o parta .... « Amen ! Leva arriba, que já lá está a pilotagem no castello.» -- Assim dizendo, foi-se o homem . Eu envergo as calças, que, graças a Deus ! nem tempo tive para vestir as silouras, e venho sem ellas, como vê , snr. compadre, e vou-me lá . Sabidas as contas, o paquete tinha chegado, e apezar do tempo , fez signal para sahir a catraia. De cá responderam -lhe que se fizesse ao largo , primeira, segunda, terceira vez, mas o bruto inglez não tomava nada. E então, meu compadre, para que lhe hade dar o diabo ? Mette a proa á barra, arriba sobre o Toiro , e grita de la pelo porta-voz -- « A catraia fora, immediatamente .» -- «Faz-te ao largo, com seiscentos diabos, perro inglez -- gritaram de cá -- olha que vaes ao fundo » -- « A catraia fóra » -- tornou elle a dizer . E depois sem mais tir-te nem guarte, põe a prôa ao mar , e vae fundear defronte de Carreiros. Parecia que estava a mangar, o ladrão ! Deliberou-se , e decidiu-se que sahisse a catraia por Carreiros. Ora como eu -- não é por me gabar -- sou o mais entendido e mais pratico , nomearam-me para a commandar. São espertos aquelles moinantes !. Má raios os partam ! Mandaram-me porque nenhum se atrevia a lá ir. Mas fui eu . Zás, catraia ao mar, galga o vagalhão , e eis-nos com o vapor que dansava como casca de nóz. Subo. -- Aqui tem a mala , diz -me o commandante -- e esta carta por fora para o negociante Francisco Ribeiro . Tenho ordens para lh'a fazer entregar immediatamente. Aqui estão estas vinte loiras para quem lh'a for levar. » -- E partiu . Fomos então para terra, e decidi-me a ganhar eu mesmo a esportula . Se fosse com outro, os diabos me levem , se arredasse o pé da Foz com o tempo que faz ; mas o negocio era comsigo , meu compadre, por tanto puz-me a caminho, ganhei as vinte libras, e aqui está a carta .

O piloto acabou de arrazoar . Francisco Ribeiro fitára-o como surprehendido e intimamente martelado por um desgosto vago, um anceio indefinido de presentimento afflictivo .

-- Oh ! que pressa tão extravagante ! -- disse elle por fim -- Vamos a saber a razão. Com licença.

Levantou-se, e poz-se a lèr a carta á luz de um candieiro que ardia sobre uma das mezas da sala . Ás primeiras linhas descorou como um cadaver, depois os labios emmarelleceram tambem , e por ultimo, quando acabou a leitura, a cabeça pendeu-lhe desanimada sobre o peito e duas lagrimas rolaram-lhe pelas faces abaixo.

-- Deus m'o deu , Deus m'o levou. Seja feita a sua divina vontade!-- disse por fim , erguendo o rosto pallido, mas sereno e resignado .

Depois tomou um castiçal, e sahiu da sala .

-- Meu filho!... meu filho morreu! -- gritou D. Manoela com a vista desvairada e no desafogo do primeiro impeto de uma imaginação nervosa e irreflectida .

Ás ultimas palavras de Francisco Ribeiro, Vasco de Noronha erguera-se machinalmente , compellido por um presentimento affadigoso que de repente se lhe arremessara do instincto.

-- Seu filho! ... -- disse elle , fitando D. Manoela com um olhar carregado e distrahido -- seu filho está em Coimbra, e a carta vem de Londres.

Depois deu machinalmente alguns passos na sala, rosnando palavras imperceptiveis.

-- Ó snr. Gebreu -- disse por fim , parando junto do piloto, que assistia embasbacado a esta scena -- o commandante do paquete não lhe disse mais coisa alguma ?

-- Saiba v. exc.a que não -- replicou o piloto com cara de asno , e morto por saber o que significava toda aquella pasmaceira mysteriosa .

Vasco de Noronha continuou a vaguear machinalmente na sala , e por fim disse à filha:

-- Prepara-te para nos irmos embora .

-- Ainda é tão cedo, snr. Noronha !.. -- disse D. Manoela que estava tão curiosa como o piloto , mas que as maneiras extravagantes de Vasco do Noronha continham em respeito .

-- Porém , snr. Noronha -- balbuciou o piloto. -- V. exc.a não me dirá ...

-- Que diabo quer que lhe diga, homem ? -- interrompeu elle desabridamente -- Sei tanto como v. m.ce, mas tenho cá um certo palpite de que a estas horas tenho seis contos de reis jogados aos dados. Corria hoje na praça que tinha havido em Inglaterra uma fallencia monstruosa, e os diabos me levem se não é a casa de Londres que falliu .

-- Ai ! meus dois contos de reis da minha alma! -- exclamou o piloto , arregalando os olhos, cerrando os punhos e fazendo menção de querer correr , porém sem saber para onde.

-- Mas, snr. Noronha, que tem meu marido com essa fallencia ? -- disse D . Manoela, que se aproximára d'elle , ao ouvir-lhe a resposta que dera ao piloto.

-- Que tem ! Essa não está má!... -- respondeu elle com mau modo, e pondo machinalmente o chapeu na cabeça.

-- Snr. Noronha !.. Essas maneiras para com uma senhora!...

-- Senhora !... -- disse elle , olhando-a de nesga -- Ora deixe-se d'essas tolices . Sabe que mais, peça a Deus ou ao diabo que se não realise o presentimento que tenho , se não ha-de ouvir fallar de mim.

Assim dizendo, dirigiu-se para a porta da sala , arrastando comsigo Luiza que o procedimento do pae havia collado fulminada ao pavimento da sala .

-- Mas, snr. Noronha !... -- disse o piloto, seguindo apoz elle com ar de quem imploravą.

-- Deixe-me, com seiscentos diabos ! .

-- Porém os meus dois contos de reis ...

-- Que tenho eu com os seus dois contos de reis ? Deixe-me.

E sahiu , perseguido pelo piloto , que na afflicção de perder dois contos de reis, agarrava-se machinalmente a elle como taboa de salvação , abandonando na loucura de aquella dôr chapeu, casacão , e guarda-chuva. Consta que na abstracção de aquella magoa , chegára á Foz sem dar pela falta d'elles, e molhado como um pato . A molhadella produziu-lhe uma catarreira asthmatica , mas, segundo a opinião do medico que o tratou, embaraçou-lhe uma congestão cerebral que por momentos esteve a assenhorear-se de aquella cabeça branca.

A ultima grosseria de Vasco de Noronha fulminára D. Manoela . Acostumada ás lisonjas e aos servilismos do parasita abjecto , aquella brutalidade independente feriu-a com toda a magia do espanto . Viu-o sahir acompanhado pelo piloto , sem consciencia do que os olhos estavam vendo ; mas quando as rodas da carruagem , que levava Noronha, se ouviram estremecer o pavimento da rua, acordou como sobresaltada. O rosto tomou uma expressão ameaçadora , pegou de um castiçal de oiro que accendeu nas velas que allumiavam o piano, e sahiu tão preoccupada , que nem reparou em Adelaide que chorava encostada a elle com o intimo presentimento de que a sua familia estava ameaçada por uma grande desgraça.

D. Manoela dirigiu-se ao seu quarto . Quando entrou , encontrou Francisco Ribeiro, encostado a uma commoda, com a cabeça entre as mãos e os cotovellos poisados sobre o marmore d'ella . Ao sentir então a esposa , Ribeiro voltou-se machinalmente , com a fatal carta ainda nas mãos.

D . Manoela pousou o castiçal, e dirigiu-se ao marido com semblante carrancudo e imperioso .

-- Que quer dizer isto , snr. Francisco Ribeiro ? -- disse ella -- Vasco de Noronha acaba de sahir, insultando-me grosseiramente, e tratando-me com todo o desdem .

-- Quer dizer , Manoela -- replicou elle com voz abalada e convulsa -- que estamos pobres e miseraveis, e que Vasco de Noronha farejou a nossa miseria .

-- Pobres !... miseraveis ! -- balbuciou D . Manoela , espantando os olhos no marido, já quasi avassallada por um verdadeiro delirio nervoso .

-- Lê -- replicou Ribeiro, entregando-lhe a carta .

D . Manoela relanceou apenas os olhos pela carta .

-- Não comprehendo... -- balbuciou ella por fim -- não posso ler ... .

-- Coragem , filha -- replicou Francisco Ribeiro -- é preciso ter coragem e resignação. Se fosse possivel esconder-te esta grande desgraça , não te affligiria com a revelação d'ella . E porém impossivel ; amanhã todo o Porto o saberá, e devo prevenir-te contra os resultados provaveis d'elle . A casa de Short & C . de Londres acaba de fallir com um passivo de dez milhões de libras. Estamos arruinados; hoje nem as mesmas camisas do corpo são nossas ... porque sou um socio de aquella casa .

D. Manoela fitou o marido com um olhar estupido e pasmado.

-- Porém o meu dote ...- balbuciou ella emfim .

-- Ai, filha, é isso o que mais me compunge n'este momento . Nem ao menos te posso salvar o teu dote. Quando casamos, eu já era senhor de uns poucos de centos de contos de reis. Teu pae julgou portanto que não valia a pena garantir por uma escriptura os teus trinta contos de reis de dote . Não fiz opposição a isso, porque apezar de alguns amigos me dizerem que o contrato me não convinha assim , porque se tu morresses sem filhos, metade da minha fortuna passava por lei a teu pae, amava-te muito para te querer defraudar das vantagens d'ella no caso de eu morrer primeiro , e alem d'isso tenho muita confiança e muito respeito por aquelle honrado velho para suspeitar na sua proposta a ideia de mercadejar com a vida da filha. Nem eu nem elle pensamos que podesse succeder o que succedeu . Uns poucos de milhões pareciam na verdade garantia segura dos pobres trinta contos de reis do teu dote . Não aconteceu porém assim ; o teu dote afundou-se tambem com a nossa fortuna. Seja feita a vontade de Deus.

Ao ouvir estas palavras, D . Manoela cahiu n'uma cadeira , com o peito a arfar em arrancos convulsivos, sem poder fallar e com a respiração quasi abafada.

-- O senhor... é um ladrão... que me roubou -- disse eļla por fim , fitando no marido à vista delirante e estendendo para elle os punhos cerrados convulsivamente .

Francisco Ribeiro , mal ouviu estas palavras levou de repente as mãos á cabeça , recuou machinalmente dois ou trez passos , e exclamou espavorido e em delirio :

-- Tu ! ... tu !. . Receei que elles ... Os outros m'o dissessem ; mas esperava ... Mas tu ! ... tu!...

D. Manoela começou então a gritar hystericamente. Quando o accesso acalmou , tomou-se da colera do desespero , e começou a apostrophar o marido, que os gestos, hystericos d' ella tinham voltado á razão , e que a segurava nos braços com amor e com bondade.

-- Manoela , coragem , minha querida Manoela -- disse elle por fim .

-- Retire-se , aparte-se de mim exclamou ella -- o senhor roubou-me, o senhor foi a minha desgraça . Bem me diziam , quando casei comsigo. Um perdulario ... um gastador...

-- Onde perdulariava eu , Manoela ? Com quem gastava senão comtigo e com os nossos filhos ?

-- Se eu quebrara uma perna quando sahi para a igreja ! Não lhe dar a si um estupor quando me foi inquietar a casa de meus paes? E para que? Para isto. Quem dissera a minha mãe o estado a que eu havia de chegar !

-- Manoela, tens tido por ventura até hoje motivo de te arrependeres de ter casado commigo ? Não te tenho tratado como marido carinhoso ? Tem-te faltado alguma coisa ?

Houve um momento de silencio.

-- Não quero saber das suas desgraças -- bradou por fim D. Manoela , voltando-se enfurecida para o marido -- O senhor não tem nada com o meu dote. Hei-de recebel-o, quero recebel-o ...

-- Manoela , volta a ti ...

-- Hei-de recebel-o, tenho dito . O senhor não tem nada com o que é meu ; meu pae não lhe devia nada, nem precisava de dever-lhe. Eu não tenho nada com o senhor, hei-de receber o meu dote.

-- Teu pae assim o quiz ...

-- Meu pae ! Meu pae foi illudido pelas suas basofias. O senhor illudiu-o; foi sempre um pelintra , um miseravel que foi enganar um homem honrado para lhe desgraçar a filha ...

-- Tu não sabes o que estás a dizer... -- balbuciou Francisco Ribeiro em voz tremula .

-- Quero o meu dote . .. hei-de tel-o. Eu não tenho nada comsigo. Roube muito embora todos os que cahiram na asneira de se fiarem de si, mas a mim não me ha-de roubar.

-- O inferno vomitou-te para a minha desgraça ! -- balbuciou Ribeiro com os olhos brilhantes de colera concentrada.

-- Saia ... saia d'aqui. Retire-se que me faz nojo . Os diabos levem a hora em que casei comsigo. Envergonho-me de ser sua mulher.

E lançando-se de repente de encontro ao marido , empurrou-o de arremessão para fora da porta , que fechou á chave sobre si.

Francisco Ribeiro soltou um grito estridente e abafado, e arremessou o corpo de encontro á porta com os olhos luzentes da ferocidade de um tigre. Apertou depois a cabeça entre as mãos, e passado um momento deitou a correr como um louco em direcção ao seu escriptorio.

-- Oh ! quem me livrára da vida! -- exclamou elle lançando em derredor de si um olhar delirado.

Depois deixou-se cahir sobre uma cadeira .

-- Meu pae ! -- soou então junto d'elle uma voz maviosa e abafada pelas lagrimas.

Francisco Ribeiro olhou ; era Adelaide.

O desgraçado lançou-se nos braços do anjo que Deus lhe dera por filha, e soluçou n'elles toda a tortura de aquella triste situação.

VI

No dia seguinte Francisco Ribeiro convocou os seus credores em Portugal para uma reunião em sua casa, d'ahi a dois dias.

No dia assignalado vestiu-se com o esmero do homem que vae assistir a um baile , e, meia hora antes da marcada para a reunião, desceu ao escriptorio. Era este uma ampla sala adornada de escrivaninhas, estatuas e cadeiras de mógono, e no meio uma grande meza , sobre a qual se viam agora livros de commercio e differentes papeis, collocados com ordem .

O rosto de Francisco Ribeiro tinha soffrido uma completa transformação. Durante aquelles trez dias os cabellos, que já tinham começado a raiar-se de branco , encaneceram de todo, as faces apanharam-se-lhe em rugas nervosas , e os olhos que d'antes brilhavam felicidade e alegria , tinham-se-lhe retrahido um pouco para dentro das orbitas , donde, atravez das palpebras arrôxadas, arremessavam um olhar concentrado e luzente que chispava de quando em quando com o brilho da exaltação que precede a insanidade. Era completa a transformação ; quem não tivesse assistido á agonia de aquelles treż dias, não ousaria asseverar ser aquelle o mesmo homem que antes d 'elles conhecera. Tambem ninguem ainda soffrera mais do que elle em tão pouco tempo ; de um lado o sentimento do brio e da honra despenhado de toda aquella grande altura dos milhões que possuira : do outro o inferno no meio da familia, onde se achava a sós com o desespero descomedido da esposa e o pensamento torturante do futuro dos filhos. Aquelle era um homem verdadeiramente infeliz ; via-se n'um momento lançado do alto das commodidades e da reputação de millionario , para os apuros mais rudes da miseria do pobre, e para o desprezo e deshonra que fulminava o negociante fallido -- mas fallido de boa fé ; e para o consolar d'este desgraçado tinha apenas o delirio insultante de uma esposa inconsiderada, e as lagrimas de uma filha que o amava devéras, mas cuja vista n'este momento lhe servia de maior tortura. O filho estava ainda ausente, e só n 'esse dia é que podia chegar , apezar de ter partido de Coimbra immediatamente , que pelo telegrapho recebeu ordem do pae para o fazer, em consequencia de grave acontecimento na familia.

Francisco Ribeiro entrou para dentro do escriptorio , e parou junto da grande meza onde estavam os seus livros commerciaes ; d'ahi rodeou com um olhar triste e solemne toda a casa, depois cruzou os braços, deixou pender a cabeça, e começou a passear com passos agitados em todo o comprimento da sala .

Cinco minutos depois appareceu no limiar da porta um homem baixo, magrissimo, nariz adunco, grande boca, e olhos pequenos e encovados que brilhavam com um olhar luzente e desconfiado por traz dos vidros de uns oculos de grossos aros de prata. Mostrava ter para mais de sessenta annos de idade, e trajava um comprido casaco de panno azul, de grandes e afiladas lapellas, colete de setim roçado, calça preta e esguiada em volta de umas pernas magrissimas, e fortes botins de bezerro. Mal entrou para dentro da sala poisou a um canto d'ella uma grossa bengala de canna da India com castão de prata , tirou depois o chapeu sem affectar muito respeito, e dirigiu-se sem dar palavra e sem se importar com Francisco Ribeiro para uma escrivaninha que estava a um dos lados da casa.

Ao ouvir-lhe os passos, Francisco Ribeiro voltou-se, e deu com os olhos n'elle . Ao ver-lhe as maneiras insolentes e irrespeitosas, fitou-o primeiro com espanto , depois sorriu-se com desprezo .

-- O general já chegou ? -- disse-lhe por fim .

O recem-chegado ia a tocar a escrivaninha, quando ouviu a voz de Francisco Ribeiro. Voltou-se, e apoiando a mão direita sobre o mocho -- especie de escabello de pernas gigantes de que os negociantes se servem para se assentarem as suas escrivaninhas -- respondeu seccamente :

-- Sim , senhor.

-- Levaste-lhe os papeis ?

-- Sim , senhor.

-- Os dois massos ?

-- Sim , senhor.

-- E elle leu-os ?

-- Sim , senhor.

-- E que te disse depois ?

-- Que me disse ? Chamou por quantos diabos havia no inferno, depois empunhou a bengala , e correu atraz de mim como um damnado -- respondeu o interrogado , ageitando o mocho a seu sabor, e pondo o pė sobre uma das travessas da qual se costumava ajudar para subir a sua diminutissima figura para cima de aquella especie de parau de pau mógono .

Ao ouvir a resposta do seu guarda-livros que nada menos era que um dos guarda-livros da casa aquelle que parecia nascido para epygramma do genero humano, a menos que não ponhamos fé implicita nas navegações de Gulliver -- Francisco Ribeiro sorriu-se tristemente e os olhos humedeceram-se-lhe pela primeira vez de lagrimas que lhe não queimavam as palpebras.

-- Pobre homem ! -- balbuciou elle , e continuou a passear.

-- Pobre homem !... Que o leve seis centos diabos! -- rosnou o guarda-livros , e apoiando-se ao mesmo tempo sobre a travessa, onde já tinha collocado o pé, deu um impulso de salto ao corpo , com o qual conseguiu empoleirar a sua figura no alto do mocho .

Empoleirado que foi, aconchegou-se, e depois de aconchegado encostou-se com a ilharga esquerda á escrivaninha, estendeu o braço sobre a meza d'ella, e poz-se a olhar por cima dos oculos para Francisco Ribeiro , baloiçando ao mesmo tempo as pernas, que lhe ficavam ao dependuro .

Ribeiro continuava a passear sem prestar attenção á mesquinha figura do seu guarda livros; este aproveitou uma das occasiões em que elle caminhava de costas voltadas para elle, e rompeu por esta forma o silencio :

-- Ora vamos a saber, snr. Ribeiro ... E os meus ordenados ?

Francisco Ribeiro voltou-se como se fôra mordido por uma serpente.

-- Os teus ordenados ! -- balbuciou , fitando-o com um olhar espantado .

-- Os meus ordenados, sim -- replicou o outro -- Sou ha trinta annos seu guarda livros, sabe muito bem que não tenho recebido vintem , e creio que está convencido que o não tenho servido pelos seus lindos olhos ...

-- Miseravel – balbuciou Francisco Ribeiro, dando alguns passos para elle, com os punhos cerrados e o olhar chammejante.

De repente parou, o rosto serenou-se-lhe , e fitou o caixeiro com um olhar de profundo desprezo . Este , que não podera resistir á vista chammejante do amo, voltou-se, e disfarçava a impressão, tomando do tinteiro uma penna, cujos bicos se pôz a afiar com um canivete .

Francisco Ribeiro fitou-o um momento com um sorriso de desprezo nos labios, por fim apostrophou-o d'esta forma:

-- Thomé Antunes , és um miseravel; tive-te sempre na conta de nojento reptil que se alimentava roendo ás occultas na minha substancia . Não te expulsei de minha casa, como merecias, porque tinha dó de ti, e , estava convencido que, se o fizesse, descambarias por fim em algum mau feito que te levasse por ladrão ou falsario a uma cadeia . Fiz ainda mais por ti do que deixar-te roubar-me impunemente; quiz tornar-te homem honrado, e a fallar-te a verdade pensei que o tinha conseguido. Enganei-me; a tua natureza viciosa foi superior aos meus esforços. Acabo de reconhecel-o . Vou portanto responder-te sem rodeios á pergunta insolente que me fizeste . Ha trinta annos que és meu caixeiro , e trinta annos ha tambem que te visto e que te sustento , que tens casa e roupa lavada, que tens todas as necessidades da vida á minhà custa. Durante elles nunca me pediste vintem de teus ordenados; e tens comtudo gasto , não tendo outras rendas, mais do que elles. Donde te tem vindo o dinheiro? Roubavas-me, é evidente. Convencido d'esta verdade, tomei ha dez annos o expediente de propor-te que te estabelecesses com os fundos que tinhas em meu poder, e com alguns mais que te offereci de em prestimo. Recusaste , e pediste-me que te consentisse ser meu socio como foste dos lucros correspondentes aquelle capital, que desde logo deste como entrado no capital social. Consenti, e desde então ficaste meu guarda-livros e meu socio por aquella maneira. A casa falliu, falliste tu com ella. Quaes são pois os ordenados que me pedes?

A serenidade com que Francisco Ribeiro dissera estas ultimas palavras fizeram viva impressão no velho caixeiro. Deitou-lhe á surrelfa um olhar de nesga, a soslayo dos oculos, e vendo-o com os olhos fitos n'elle , respondeu continuando a aparar os bicos da penna :

-- No fim de contas quer dizer que trabalhei trinta annos de graça ?

-- Quer dizer que soffreste a perda a que te sujeitaste quando te propuzeste aos ganhos.

-- Um ovo por um real. Não deixa de ser graciosa a evasiva. Nunca o pensei, porque se tal me viera á cabeça, ha muito que tinha fugido a todo o correr d'este verdadeiro alçapão de patetas.

-- Miseravel !

-- Mas por fim de contas o senhor está resolvido a perder-me, não é assim ?

-- Estou resolvido a não ser ladrão em teu beneficio , nem no de ninguem .

-- Boa e santa doutrina essa em verdade. Mas faça favor de dizer-me qual é a razão porque entendeu de justiça pôr a coberto o general e o conde de Vermoim , que deviam soffrer como os outros ?

-- O general e o snr. conde de Vermoim tinham em minha casa os seus capitaes em deposito , não os tinham para negocio . Eu era seu administrador e não seu devedor ; nada tinham com a minha casa commercial. Entreguei-lhes portanto o que era d'elles, o que tinha a guardar em minha casa . O mesmo te faria a ti, se os teus capitaes, em logar de associados, estivessem depositados em meu poder .

-- Visto isso o senhor falta-me assim, sem consciencia , á confiança que eu depositava em si ?

-- Thomé Antunes, és um infame.

-- Sou um homem roubado.

E assim dizendo em voz de desespero, atirou os braços sobre a meza da escrivaninha, e mergulhou entre elles a cabeça, chorando de raiva.

Francisco Ribeiro ficou a olhar para elle com os dentes apertados uns contra os outros, e os labios encrespados pelo desprezo e pela colera. Ouviram-se então passos na escada ; Ribeiro serenou-se pouco e pouco, e Antunes ergueu o rosto incendiado, e poz-se a aguçar de novo os bicos da penna.

Um novo personagem entrou em scena.

Era homem de mediana estatura, magro e cabellos mesclados debranco e negro. Nos olhos, pequenitos e orlados de raras pestanas, luzia uma alma perversa, e um espirito intromettido e intrigante . O nariz era afilado, a bocca grande, e os labios delgadissimos.

Chamava-se Antonio Pedroso ; tinha sido n'outro tempo guarda-livros de algumas casas de commercio, mas depois com a pequena herança que herdou dos paes e alguns contos de reis que juntou em economias e sizadellas, constituiu uma pequena fortuna, com a qual se julgou independente e em estado de abandonar a profissão. Durante o tempo que trabalhou , Antonio Pedroso foi sempre reputado má lingua, porém má lingua açaimada pela necessidade. Depois que se viu independente deu-se ao officio de censor e moralista, e com uma alma egoista e perversa entendeu ter direito de ferir pelas costas a honra dos outros é a acabrunhar a desgraça lançando-lhe em rosto os acasos da sorte contraria ou as imprevidencias imprudentes. No seu proprio conceito Pedroso era um sabio : ninguem pensava melhor do que elle , e ninguem mais do que elle sabia de especulações commerciaes. E comtudo não passava de um asno com fumaças de vaidade balofa, e com reputação de grande homem empoleirado sobre a estupidez do commercio do chinelo branco . Mas que lhe tirassem da cabeça aquella opinião ! Era mais facil fazer um novo mundo en sete dias.

Antonio Pedroso entrou para dentro da sala, poisou o chapeu n'uma cadeira , encostou a bengala a um canto da casa , depois avançou para Francisco Ribeiro, esfregando as mãos, e a passo largo, vagaroso e saltado .

-- Olá , como está isso, senhor Ribeiro ?

-- Muito obrigado . A que devo a honra da sua visita ?

-- Soube a sua infelicidade, e vinha saber se precisava alguma coisa de mim . Um amigo nunca é de mais n'estas occasiões.

-- Obrigado, não preciso de nada. Estou à espera dos meus credores.

-- E os seus livros estão em ordem ... como é preciso que estejam ? ...

-- A minha escripturação foi sempre conforme o Codigo .

-- Não digo isso ... quero dizer... Para isso é que eu vinha offerecer-me como amigo ... Bem sabe que em escripturação sou alguma coisa entendido, e n'uma fallencia ... é preciso saber. . Bem me entende.

-- Não entendo, não senhor.

-- Não me entende !

E o snr. Pedroso começou a medir todo o comprimento da sala com o seu costumado passo largo, vagaroso e saltado, e com os olhos no chão e sorrindo.

-- Não me entende ! -- repetiu lançando sobre Francisco Ribeiro um olhar de nesga, em que se traduzia com toda a clareza uma certa compaixão de homem que se reputa superior a outro em intelligencia -- Pois olhe, a coisa é facil de entender. Eu me explico. N'isto de fallencias é preciso que o fallido prepare os seus livros de forma que se torne credor de si mesmo, quero dizer, se deve dez , cumpre provar que deve trinta . Entende agora ?

-- Perfeitamente. O que acaba de dizer traduz-se da seguinte forma -- o snr. Pedroso aconselha-me a roubar os meus credores.

-- A roubar os seus credores ! Está bem , está bem . O senhor está arranjado. É sempre o mesmo homem . Se tivesse tomado os meus conselhos...

-- Mas eu pedi-lhe alguma vez conselho, snr. Pedroso ?

-- Mas devia tomar os que lhe dei. Eu fallava por experiencia ; porém estas basofias e estas philaucias de agora fizeram-lhe perder a cabeça. Pois olhe que na sua idade é indesculpavel.

-- O snr. Pedroso tem a bondade de dizer-me se lhe devo alguma coisa?

-- Felizmente não. E pode estar certo que nunca m'o havia de dever, porque não sou eu homem que me confie em negociante que se arrisca assim n'essas grandes emprezas que podem levar coiro ou cabello . Eu quero ser um homem prudente e que saiba ganhar dinheiro pouco e pouco. Isto de arriscar em emprezas colossaes, que abrangem toda a fortuna de um homem , por grande que seja como era a sua, é rematada loucura. Os antigos tinham maximas que é preciso não esquecer ; estas modernices dão com um homem em vasa-barris. O exemplo tem-o em si mesmo. Eu disse-lh'o muitas vezes.

-- Disse-m'o muitas vezes! Naturalmente teve tenções de m'o dizer, mas nunca se atreveu até hoje . E hoje mesmo podia deixar de o fazer, porque não lhe peço conselho nem favor. Na minha prosperidade não precisava das suas migalhas, na minha desgraça nem mesmo me lembro do senhor para coisa alguma. Conheço-o desde muito . O senhor é um d'estes homens que Deus vasou n'este mundo com o destino das moscas e das pulgas. Incommodam , e não servem para coisa alguma mais do que incommodar e roer, parasitas na sustancia dos outros. Sabe que mais, senhor Pedroso, o unico obsequio que desejo receber de si é que saia de minha casa immediatamente .

O snr. Pedroso continuou a medir todo o comprimento da sala no passo que lhe era particular , rosnando , esfregando as mãos e sorrindo. Ao ouvir as ultimas palavras de Francisco Ribeiro o sorriso pronunciou-se mais , esfregou as mãos com mais força, e respondeu, momentos depois :

-- Desgraçadamente é obsequio que lhe não posso fazer, meu caro senhor. Venho precisamente para assistir á reunião dos seus credores.

-- Pois eu devo-lhe alguma coisa ?

-- Já lhe disse que me não deve, e mesmo que nunca me havia de dever. Eu não confio o meu dinheiro a quem tão mal sabe o valor d'elle . Se tivesse tomado os meus conselhos...

-- Mas emfim porque motivo se arroga o senhor o direito de assistir contra minha vontade a um acto de interesse meu particular ? ...

-- Sou procurador de um dos seus credores. Represento o snr. barão de Godim , cujos interesses hei-de zelar como devo .

-- N'esse caso fique.

Assim dizendo, Francisco Ribeiro sentou-se n'uma das volterianas que havia na sala e deixou cahir a cabeça para o peito . Thomé Antunes , que tinha assistido aquella tortura com os mais visiveis signaes de satisfação , acenou então a Antonio Pedroso .

-- Ó snr. Pedroso, uma palavra.

Pedroso aproximou-se.

-- Faz favor de me dizer -- continuou o outro, como pretendendo ser ouvido só por elle, mas fallando alto bastante para ser ouvido por Francisco Ribeiro -- que nome merece o patrão que, sem alma nem consciencia , envolve na sua fallencia os ordenados de um servo fiel que o serviu durante trinta annos sem ver cruzes ao dinheiro ?

Ribeiro deu um salto na cadeira e o rosto tornou-se-lhe livido como o de um morto .

-- Ah ! pois você cahiu n'essa ! -- respondeu Pedroso sorrindo-se -- Eu sei lá como se deve chamar o patrão ? O servo sei eu ; chama-se asno. Se tomasse os meus conselhos, não lhe acontecia tal. Agora deite-lhe bichas.

-- Mas isto não ha-de ficar assim , eu lh'o protesto .

-- Reze-lhe por alma, meu caro .

-- Os tribunaes hão-de fazer-me justiça , o roubo tem leis especiaes. Protesto-lhe ...

Ribeiro ergueu-se a tremer de colera .

-- Miseravel !-- exclamou elle para o guarda-livros -- sai já de minha casa.

-- Não saio ; sou seu credor, quero saber como hei-de ser pago, e hei-de ver como os seus credores tomam contas da sua perdularidade.

-- Eu bem o dizia . Se tomasse os meus conselhos ... -- rosnou Antonio Pedroso.

Ia seguir-se de certo uma scena desagradavel, quando o tropel de passos na escada, e as vozes de muitos homens que fallavam todos á uma, fizeram conter Francisco Ribeiro , que tentou serenar-se , e depois dirigiu-se para a porta da entrada. Eram os credores que chegavam . Minutos depois assomaram á porta do escriptorio .

Vasco de Noronha vinha na frente d'elles, atraz vinha o visconde dos Carriços e logo apoz sete ou oito individuos mais, com todos os quaes já nós estivemos no baile que deu Francisco Ribeiro por occasião dos annos de Adelaide.

O immundo parasita que tinha até ali succado na fortuna de Francisco Ribeiro, entrou de rosto soberano e carregado, dando apenas uns «bons-dias » com ar insolente . O negreiro não disse coisa alguma, e entrou com cara de tyranno e sem fazer caso do dono da casa ; dos outros, alguns o comprimentaram pelo nome, mas todos em geral mostraram-se credores na cara.

Apezar dos esforços que fez para se dominar, o rosto de Francisco Ribeiro atraiçoou o profundo desgosto que sentia com o tratamento suino, com que era recebido por aquelles mesmos que dias antes o tratavam com mil lisonjas servis . Deixou-os passar com pleno orgulho d'aquella soberba alma, depois dirigiu-se atraz d'elles para junto da meza, onde estavam os livros.

-- Saibamos para que nos chamou a sua casa -- disse então o visconde dos Carriços -- tenho que fazer, não me posso demorar.

-- Creio que o não ignoram já -- disse profundamente commovido Francisco Ribeiro -- Thomé Antunes, chega cadeiras a estes senhores .

O guarda-livros não se moveu , deixou-se ficar a olhar insolentemente o patrão do alto do mocho , onde se havia empoleirado. Ribeiro fitou-o um momento com o rosto ligeiramente azulado; depois, vendo que se não movia , chegou elle mesmo as cadeiras para derredor da meza .

Vasco de Noronha poz o chapeu na cabeça e atirou-se com mau modo para a cadeira, onde se repotreou com ar de juiz eleito de aldeia em julgamento de umas pauladas que deram . O visconde imitou-o , e dos outros alguns sentaram-se ficando descobertos.

A mais viva commoção nervosa agitava Ribeiro, cujo rosto se tornava pouco e pouco de um rôxo apopletico, e cujos olhos seguiam fascinados aquelles miseraveis .

-- E depois ? -- disse insolentemente o visconde de Carriços , fitando-o com um olhar arrogante .

Francisco Ribeiro fez um esforço sobre si.

-- Meus senhores -- disse elle balbuciando -- ahi está a participação que acabo de receber do meu socio de Londres, dando-me parte das enormes percas que acabamos de soffrer. Como verão dos meus livros, haviamos intentado grandes especulações de colonisação na Australia do sul. A fortuna abandonounos, e perdemos n'ellas para cima de seis milhões de cruzados. As nossas plantações de café no Brazil e em Cabo Verde não produziram como era preciso que produzissem para realisarmos a especulação que haviamos tentado , e a pesca na Terra Nova deu em resultado uma perca de sessenta mil libras sterlinas. Ahi estão os meus livros regularmente escriptos ; por elles se verá qual é o nosso deficit e o que ainda nos resta da nossa fortuna. Convoquei-os para lhes dar parte d'estas infelicidades...

-- Quer dizer , que nos dá parte que estamos roubados -- disse brutalmente Vasco de Noronha.

-- Roubados não, snr. Noronha -- replicou Ribeiro, pondo-se cada vez mais rôxo -- a fortuna atraiçoou-nos e comnosco todos aquelles que negociavam com os seus capitaes no nosso commercio ...

-- Essa não está má! -- gritou desabridamente O visconde -- nós tinhamos-lhes confiado a juros o nosso dinheiro, não negociavamos nas suas especulações, não tinhamos nada com ellas.

Francisco Ribeiro calou-se um momento .

-- Senhores -- disse elle por fim , quando tive a noticia da minha desgraça , suppuz que merecia áquelles que na prosperidade me chamavam amigo mais attenção , e mais favor. Enganei-me ; mas o que não posso duvidar é que farão justiça à minha honra á vista dos meus livros , que lhes darão a conhecer que eu não fico com cinco reis de ninguem , e que, ao abandonar aos meus credores esta casa, fico na necessidade de mendigar uma esmola para sustentar a minha familia no dia seguinte .

-- Deixemo-nos d'esses londuns; meu caro -- disse Vasco de Noronha. Quanto offerece?

-- Dez por cento ; é o que me resta .

-- Dez por cento ! -- gritou Vasco de Noronha -- Então assim me rouba, assim me reduz á miseria !

-- Compadre ! -- balbuciou Francisco Ribeiro, agitado por uma violentissima commoção nervosa.

O visconde dos Carriços puxou de arremesso os livros para si ; os credores curvaram-se sobre elles e depois de um quarto de hora de os examinar e todos os papeis de credito que estavam em cima da meza, o visconde disse para Francisco Ribeiro :

-- Aqui está solvido, com data de hontem, um credito a favor do general Bernardo Tovar no importe de duzentos contos de reis em inscripções e outros papeis de credito , e mais trinta e cinco contos a favor do conde de Vermoim . Com que direito entregou o senhor estas quantias a estes credores?

-- Esses individuos não eram meus credores -- respondeu Ribeiro. -- Eu tinha em meu poder esses papeis que lhes pertenciam ; entreguei-lh'os , logo que quiz liquidar o que possuia.

-- Quer dizer, o senhor roubou-nos em favor de aquelles seus amigos---exclamou Vasco de Noronha -- Pouca vergonha ! Eu não assigno a concordata que se propõe . Isto é um verdadeiro roubo ; aqui ha dolo e ha má fé. Estes crimes punem-se.

-- Eu tambem não assigno -- disse o visconde -- Não protejo ladroeiras...

-- Nem eu.

-- Tenham a bondade de olhar esta verba de deficit -- disse do lado um dos credores, que tinha ficado de chapeu na cabeça . -- Vejam que pouca vergonha.

-- Dez contos de reis em despezas de casa ! -- exclamou Vasco de Noronha -- Isto é literalmente um roubo !

-- Se me dão licença , meus senhores -- disse então o snr. Pedroso --- como procurador do snr. barão de Godim preciso de fazer uma observação. A fallencia do snr. Ribeiro relativamente aos seus credores em Portugal são trezentos contos apenas, e s. exc.a apresenta-nos aqui trinta contos somente. Ora a fallar a verdade ter todos os seus fundos... os seus milhões em Inglaterra ... Não quero offender ... porém tambem não posso assignar a concordata .

-- Diz muito bem , diz muito bem , isto é um verdadeiro roubo.

-- Se tivesse tomado os meus conselhos...

-- Ou os meus --- disse então do lado o snr. Thomé Antunes -- mas nada, aqui tudo era á larga. E por fim de contas para nem ao menos me pagar os meus ordenados de trinta annos que o servi. Isto brada ao ceu .

-- Como! Pois o senhor não recebe ha trinta annos ?

-- Não , senhor, não recebo. O meu trabalho, toda a minha vida desappareceu victima d'estas perdularidades.

-- Então a ladroeira é ainda mais flagrante. A fallencia já é muito antiga. Tudo era basofia. Pouca vergonha!

-- Você é um ladrão! -- exclamou então Vasco de Noronha -- Mas nós o ensinaremos.

-- Isto é peior do que roubar com um bacamarte na estrada -- gritou o visconde.

-- Para isto era escusado chamar-nos aqui. É uma ladroeira.

-- É o roubo mais escandaloso que se tem feito na praça. Isto só com a forca se ensina .

Francisco Ribeiro não dava uma só palavra . Parecia uma estatua, de pé, braços cruzados, livido o olhar, fito e allucinado.

Os credores capitaneados por Noronha ergueram-se , e arredaram de arremesso as cadeiras. Iam a dirigir-se à porta , quando no topo da escada se ouviu tropel de gente , que subia apressada, e que gritava como que ralhando uma com a outra .

A porta appareceu de repente o general Tovar, acompanhado do seu fiel Pederneira e do seu inseparavel e casmurro Badajoz.

-- General, vem em muita boa occasião -- exclamou Vasco de Noronha ao dar com os olhos n'elle -- Vem em muita boa occasião. Venha ver como um ladrão se póde disfarçar muitos annos com a capa de homem honrado.

-- Um ladrão ! -- balbuciou o general, espantando os olhos n'elle .

-- Um ladrão, sim -- replicou Vasco de Noronha -- um ladrão que nos roubou sem vergonha, que viveu muitos annos faustuosamente a nossa custa ...

Estas palavras, ditas por Vasco de Noronha , o parasita do millionario Ribeiro, illuminaram a estupefacção que a apostrophe subitanea havia produzido no general. Imaginou de repente tudo o que tinha acontecido, viu um homem honrado victima dos seus proprios parasitas , e ao dar com os olhos no amigo, que parecia um cadaver posto de pé pela galvanisação , soltou um grito selvagem , e exclamou, caminhando para os credores de bengala empunhada:

-- Arreda para traz, infames! -- bradou elle fazendo-os recuar de junto da porta para o meio da sala -- Pederneira, não sahe nem um só -- accrescentou em voz de commando e apontando para a porta .

O velho soldado collocou-se de um salto á entrada da porta , com os olhos a luzirem como dois carvões accesos e brandindo uma grossa bengala de punho de ferro. Badajoz interiçou a cauda felpuda, arregaçou os labios, deixando ver duas fileiras de dentes ponteagudos, e a rosnar em tom surdo e cavado , prolongou-se com a ilharga do amo, que , de bengala empunhada , o rosto preto de colera e os olhos flammejantes, contemplava aquella matilha de infames covardes, a tremer como azougado, e com a lingua tolhida pela raiva.

-- Infames !... Miseraveis !... Raios... de demonios! -- balbuciou elle sem desfitar de cima d'elles os olhos que chispavam vivas faiscas de enfurecimento.

Ia estoirar de certo medonha tempestade, de que as costellas, e quem sabe se a vida, d'aquelles tratantes se não salvariam de certo a muito bom talante. O general baloiçara já sobre as pernas robustas como touro que prepara o salto; Pederneira jurava, rangendo os dentes e cortando no ar terços e sextos com a bengala de punho de ferro empunhada pelo conto, e Badajoz espreguiçava-se aos pés do ámo, rugindo e abrindo a bocca em bocejos de raiva impaciente. E os pobres diabos tinham recuado até á parede. Apezar de superiores em numero, tinham a consciencia de que nada podiam em frente d'aquelles tres poderosos adversarios.

N'este momento sentiram-se passos a subir apressados a escada. Pederneira rodou sobre os calcanhares, para apresentar a frente de batalha ao novo inimigo se por ventura o fosse. Mas em lograr de sustentar a posição, retirou sobre o flanco, e deixou entrar um novo personagem em scena.

Era Francisco Tovar.

Ao dar com os olhos na figura pallida e hirta de Francisco Ribeiro, ao ver o pae n'aquelle estado de enfurecimento, e Vasco de Noronha e os outros credores com cara de sitiados que se rendem á discricão, o moço Tovar comprehendeu immediatamente que tinha acontecido alguma coisa muito desagradavel.

O seu primeiro acto foi correr para o pae, a fim de estorvar-lhe o impeto da raiva que estava em pontos de estoirar temerosa.

-- Meu pae... -- disse elle, agarrando-o por um braço.

O general, inteiramente allucinado, fitou-o sem o reconhecer, depois balbuciou n'um regougo quasi imperceptivel, tão cavado e abafado era pela raiva :

-- Infames! ... Quebro-te a cabeça ! ... Chamarem-lhe la... drão ! Olha para o nos... Raios de diabos ! Olha pa ... ra o nosso po ... bre amigo !

Ao ouvir estas palavras, o moço Tovar empallideceu como um morto.

-- Serene-se, meu pae -- disse elle por fim -- esta canalha não vale a pena de que um homem de bem se deshonre, pondo-lhe as mãos.

-- Raios de diabos! -- regougou o general que n'aquelle momento não comprehendia raciocinios cavalheirosos.

Francisco Tovar aproximou-se então da mesa, onde estavam os livros commerciaes de Ribeiro, e atirou sobre elles uma grande carteira de couro, prenhe de papeis, que tirou de dentro de um dos bolsos do preto peletot que trazia vestido.

-- Os senhores são os unicos credores do snr. Francisco Ribeiro ? -- disse elle dirigindo-se aos pobres diabos que Bernardo Tovar fizera recuar até á parede.

Nenhum se atreveu a responder. Tovar repetiu a pergunta. Então o snr. Antonio Pedroso sahiu detraz da figura do bojudo visconde, e balbuciou, fazendo uma profunda cortezia :

-- Em Portugal... temos essa honra.

-- A quanto montam os seus creditos?

Pedroso consultou com os olhos os companheiros, que lhe deram a conhecer por um signal expressivo que delegavam n'elle todos os poderes, e respondeu:

-- Trezentos contos.

O moço Tovar abriu a carteira, tirou de dentro alguns maços de papeis, depois disse com voz secca e imperiosa, atirando com elles para a outra extremidade da meza :

-- Conte.

O snr. Pedroso tomou machinalmente um massete, depois ficou, com elle nas mãos, a olhar com cara de asno e de basbaque para o moço Tovar.

-- Conte -- repetiu este cada vez em tom mais secco e imperioso -- são notas do banco, e inscripções no valor real de trezentos contos de reis. Os papeis são legaes, examine-os.

O snr. Pedroso tomou de cima da mesa os papeis, examinou-os um a um, depois balbuciou vivamente impressionado pelo que estava acontecendo :

-- São para nos pagarmos ?

-- São.

-- Podem receber-se -- disse então o snr. Pedroso, voltando-se para os outros credores.

-- Passem ahi um recibo geral -- disse então o moço Tovar -- e ponham ahi os seus creditos sobre a mesa. No recibo digam que receberam do snr. Francisco Ribeiro real a real tudo quanto lhes devia.

O recibo foi passado e assignado como Francisco Tovar exigia . Este tomou-o então, examinou-o , e, poisando-o sobre a mesa, metteu as mãos nas algibeiras e poz-se a olhar com um sorriso de escarneo e de desprezo para aquellas immundas creaturas. O general com os olhos a brilharem de raiva e de satisfação , não desfitava o filho, como quem esperava d'elle o signal de romper a pancadaria.

Francisco Tovar conservou alguns momentos aquella canalha debaixo da pressão provocadora do seu olhar cheio de desprezo.

-- Fazem -me nojo na verdade ! -- exclamou elle por fim -- Não lhes vejo a mais pequena parcella de brio nem de honra, que me desculpe esmagal-os com a sola da botina. No meio da rua já , canalha -- exclamou em voz de trovão, apontando para a porta .

Os credores atiraram-se machinalmente para a porta, fulminados pelo terror que lhes incutia a voz e os gestos do moço Tovar.

-- A elles, Pederneira -- bradou então o general.

O veterano poz-se de um salto junto do seu velho commandante , e ambos unidos arremeteram como dois toiros sobre aquella fileira de infames insultadores da desgraça , que recuaram até à parede, levando nos calcanhares , com um barulho atroador, as cadeiras que toparam atraz de si.

Levantou-se então um arruido infernal, mil vezes superior ao que imaginou Cervantes na bodega do laverneiro manchego, e que ahi mesmo mereceu a D. Quixote as honras de ser comparado com o tão celebrado do campo de el-rei Agramanto .

Ao ver arremetter o pae e o Pederneira contra o grupo dos credores, Francisco Tovar lançára-se de repente entre os dois partidos contendores . Usando dos seus robustos braços e de toda a virilidade das suas forças gigantescas, conseguira suster o primeiro impeto de aquelles dois colossos e arredar com um pontapė Badajoz que, mal seu grado, foi parar a distancia . Travou-se então uma lucta renhidissima: Francisco Tovar gritava aos credores que fugissem , procurando arredar o pae e Pederneira; estes a qualquer menção que os credores faziam para se aproveitar d'esta ou d'aquella aberta que o moço Tovar lhes conseguia dar instantaneamente , levavam-o de repellão até elles. Andava tudo n'um verdadeiro redemoinho , era um turbilhão infernal de berros, de patadas e de cadeiras embaraçadas nas pernas dos luctadores e dos fugidiços. A tanto arruido acudiram D. Manoela e Adelaide, que correram a amparar Francisco Ribeiro que immovel e como uma estatua assistia a este combate singular. Por fim a lucta ia cada vez tornandose mais desigual ; as forças do moço Tovar iam enfraquecendo com grave damno dos cercados e ó general e o Pederneira ameaçavam-o já desesperados, e Badajoz, irritado pela repetição de pontapés monumentaes, principiava a mostrar-se propenso a perder o respeito ao amo novo.

Um grito estridente e o baque de um corpo cahido em cheio no pavimento poz instantaneamente remate a esta scena. Os tres luctadores voltaram -- se machinalmente para o logar d 'onde tinha soado. Francisco Ribeiro jazia estendido por morto no chão, e D. Manoela e Adelaide soltavam sobre elle gritos agudissimos. Os tres amigos correram para elles. Os credores aproveitaram o ensejo favoravel, e sem esperarem pelo fim da festa, escoaram-se a correr pela porta fóra apenas perseguidos pelo implacavel Badajoz , que fez n'elles uma medonha razzia de mangas, de barrigas de pernas, de chapeus, de calças e de sobrecasacas.

Francisco Tovar ergueu nos braços o desgraçado Ribeiro. Tinha a face rôxa e os olhos abriam-se-lhe e fechavam-se-lhe com espantosa velocidade.

-- É uma congestão -- exclamou Francisco Tovar -- Pederneira, um medico immediatamente .

Pederneira lançou-se como um raio pela porta fóra ; arremessou-se dentro da carruagem em que viera Francisco Tovar, e mandou correr a toda a brida para o hospital de Santo Antonio , onde tinha a certeza de achar pelo menos o facultativo que estivesse de dia.

Ao ouvir as palavras do filho, o general soltou um grito como uma fera enraivecida.

-- Raios de diabos ! -- bradou, arrojando-se cego de furor para o logar, onde deixara ha pouco os credores.

Não viu porém viva alma. Então voltou a ajudar o filho, que já caminhava com Ribeiro nos braços em direcção ao quarto de dormir d'elle .

Dez minutos depois chegou o medico. Pederneira tinha felizmente encontrado no caminho um medico amigo de Francisco Tovar , fizera parar a sege, obrigara-o a entrar sem mais explicações para dentro, e ordenou ao cocheiro de correr a toda a brida para o palacio de Francisco Ribeiro.

O medico mal poz os olhos no doente, reconheceu logo uma congestão sanguinea do cerebro. Puxou da lanceta , e sangrou ; mas o sangue não corria, e a veia mais fortemente comprimida começou a gotejar apenas sangue espesso e denegrido.

-- Então ? -- disse o general, que sustentava nas mãos a bacia .

-- Não é caso desesperado -- replicou o medico .

Depois deixou o braço repousado sobre as bordas da bacia , e tirou o moço Tovar para uma janella .

-- Dentro em duas horas estará morto – disse-lhe ao ouvido e em voz baixa.

O general que tinha deixado a bacia ao Pederneira para ir intrometter-se na conferencia do filho e do medico, mal viu a pallidez que assomou no rosto d'aquelle, levou os punhos cerrados aos olhos, e soltou um tal brado e uma tal praga , que fez estremecer o filho, o medico , e o Pederneira e até o proprio quasi defuncto .

N'este momento assomou á porta do quarto um moço , alentado e esbelto , verdadeiro typo da belleza varonil, e de tudo quanto a alma do homem é capaz de ter de grande, de emprehendedor e de sublime.

Era Paulo Ribeiro .

Ao dar com os olhos no pae moribundo e a gotejar sangue do braço , no meio de aquella scena que rescendia afflicção e desgraça , o moco Ribeiro empallideceu e estacou no limiar da porta . Francisco Tovar, mal o reconheceu, correu para elle, e tomando-o por um braço , levou-o para a sala visinha .

-- Paulo , é preciso ter coragem -- disse elle estreitando-o nos braços -- Teu pae está gravemente doente ; tua mãe e tua irmã estão inteiramente desanimadas . É preciso ter coragem , é preciso ser superior á desgraça .

Francisco Tovar contou-lhe então tudo o que tinha acontecido, occultando porém o generoso sacrificio que o general fizera da maior parte da sua fortuna para salvar a honra do amigo, e rematando a narração com a historia succinta da luta que tivera com elle , para o impedir de castigar severamente os parasitas miseraveis que lhe haviam insultado o amigo.

Paulo Ribeiro ouviu impassivel a noticia da fallencia que o reduzia á miseria, mas quando ouviu a narração dos insultos de que o pae fôra victima, er gueu os punhos cerrados para o alto , soltando um rugido de fera. Depois entrou no quarto . Ao passar por junto do general tomou-lhe de repente a mão que beijou muitas vezes, e sobre que deixou cahir duas lagrimas, d'ahi dirigiu-se para a cama onde o pae jazia amortecido e ajoelhou junto d'elle .

O medico acabava de atar a sangria .

Meia hora depois as palpebras de Francisco Ribeiro começaram a abrir-se e a fechar-se convulsivamente ; por fim abriu-as de todo , e fitou os olhos espantados nas pessoas que o rodeavam .

Ao dar com elles no general, que estava de pé junto d'elle, soltou um pequeno grito, e tomou-lhe de repente a mão .

-- General -- balbuciou elle -- obrigado... tenho um amigo ... morro com um amigo ... Oh! foi muito grande o sacrificio ... não o consinto ... Paulo, tu aqui! -- Depois ergueu -se um pouco sobre o braço, e exclamou em voz estridente mas clara -- Lava a honra do meu nome; lego-te esta obrigação ...

E assim dizendo tornou a cahir sobre os travesseiros.

-- Amigo. .. graças... graças -- balbuciou finalmente -- General, deixo-lhe ... Os meus filhos... Adelaide. .. filha. .. minha pobre ... filha !... Manoela ..... Graças. .. gra .. . ças.. . a ... mi. .. go...

E as palpebras principiaram de novo a mover-se convulsivas ; primeiro com toda a rapidez , depois mais brando, mais brando ... Por fim deu um estremeção violento , e expirou com a mão do general apertada contra o seu peito .

Bernardo Tovar tremia como varas verdes; o rosto principiou então a arrôxar-se-lhe e as palpebras a moverem-se-lhe em convulsões eguaes ás do amigo .

O moço Tovar, mal o percebeu, arremessou-se para elle , tirou-lhe a mão d'entre as mãos do cadaver , e empurrando-o para a sala visinha, arrojou-lhe de subito sobre a cabeça toda a agua que continha a bacia , onde o medico lavara as mãos.

-- Raios de diabos! Infernos ! Quebro-te a cabeça ! -- bradou então o general, arremetendo furioso com o filho.

Mas ao reconhecel-o, parou.

-- Francisco -- balbuciou entãom -- fica ahi... Raios de diabos ! Eu endoideço ! ... Nunca pensei... pelo inferno... que me custasse tanto ! ... Fica ahi; faz o que eu não posso fazer. Pelo inferno !... Se pilho aquelles infames...

E assim dizendo, encostou-se ao Pederneira, e dirigiu-se para a porta . Mas a meio caminho voltou , tornou a entrar no quarto de Ribeiro, e elle e o Pederneira deitaram-se sobre as mãos do cadaver que beijaram repetidas vezes.

-- Se ha santos na terra . .. raios de diabos! ... este homem era santo -- balbuciou Bernardo Tovar.

Depois encostaram-se um ao outro , dirigiram-se para a porta, e sahiram.

Nas faces de aquelles dois rudes e velhos soldados luziam ainda os sulcos das lagrimas, que furtivas lhes tinham escorregado dos olhos até á raia dos espessos bigodes, onde se haviam mergulhado.

Na noite seguinte, o cadaver de Francisco Ribeiro foi conduzido ao cemiterio da Lapa, e ahi sepultado no mausoleu que Bernardo Tovar tinha mandado levantar para a sua familia . Não houve convite porque Paulo Ribeiro insistiu que o não houvesse , apesar de toda a insistencia com que o general queria fazer ao amigo um enterro pomposo . Porém o fallecimento era notorio e conhecido em toda a cidade. Apesar d'isso, e do incommensuravel enxame de parentes e lisongeiros que cercaram o millionario no tempo da prosperidade, só quatro pessoas assistiram ao enterro do negociante fallido. Essas quatro pessoas eram os dois Tovares , pae e filho, o Pederneira e Fernão de Aguiar, o poeta .

Se queres a razão d'esta pobreza de concorrencia , leitor , retrocede ao principio d'esta primeira parte da minha historia. Ahi a acharás completa e cabal. É Matheus Aleman, quem ta diz , na epigraphe que d'elle citei. « Muchos amigos tuve cuando prospero; todos me deseaban , me regalaban , y con sumission se me ofrescian ; cuando faltaron dineros, faltaron ellos, falescieron en un dia su amistad y mi dinero » ...

O mundo é assim . Se um homem significa el-rei dinheiro , todos lhe fazem mil homenagens, e mesuram-lhe cortezias e affagos: se descahe de valimento , é como os reis desthronados; os parasitas e os cortezãos voltam-lhe as costas, deixam-os e não o conhecem . Junto d'elle ficam apenas aquelles que não adoravam o poder, mas estimavam o homem .

O que aconteceu a Francisco Ribeiro é o mundo n'esta vida. Quem esperar outra coisa ; quem , tendo a bolsa vazia , esperar que o tratem com considera ção egual á do tempo , em que ella lhe tilintava na algibeira, ou é tolo ou está nas vesperas do o ser . O homem , a quem a boa fé cega a este ponto pertence por lei ao limbo dos parvos, que é uma especie de Rilhafolles onde nem todos os Pulidos d'este mundo são capazes de fazer milagres.

SEGUNDA PARTE

Res humanas ordine nullo Fortuna regit, spargitque manu Munera cæca, pejora fovens.

Vincit sanctos dira libido:

Trans sublimi régnat in aula :

Tradere turpi fasces populus Gaudet ; eandem colit,atque odit ; Tristis virtus perversa tulit Præmia recti. Castos sequitur Mala paupertas ; vitioque potens Regnat adulter.

Seneca . Hypol. ACT. III.

São passados dez annos.

Estamos portanto no de Christo de 1854 , e o que mais é nos fins de outubro, e pallidas, o mez das folhas cabidas que n'outro tempo me inspiraria sentidas considerações, mas em meu espirito prosaico e chatamente asselvajado não vê mais do que a hora canonica , em que o anno costuma pôr-se em seloiras e cobrir o barrete de dormir para se recolher a cama commum , onde jazem a dormir per omnia secula seculorum , os seus anteriores e engoiados irmãos.

Dez annos ! -- a terça parte do termo medio da vida do homem na Europa, segundo dizem os estatisticos, prodigiosos calculadores que ainda hão-de vir a metter o mundo n 'um sacco , sem que lhe valham nem todos os distingos do lente Curelo!

Dez annos ! tres mil seis centos e cincoenta e dois dias em que se passaram tres milhares de milhares de milhões de factos, que fizeram dar muitas cambalhotas á honradissima humanidade, sem comtudo serem capazes de alterar-lhe com espanto as leis essenciaes que o dominam e fazem rodar da mesma forma que a manivela de um realejo governa e faz girar os bonifrates que o adornam , e com precisão egual áquella com que as leis naturaes, que regem os corpos celestes, os fazem girar no espaço em torno do centro commum .

Dez annos !- enorme tracto de tempo, em que gerações succedem a gerações; em que se dissolvem familias, e outras se multiplicam ; em que os parentes e os amigos mais caros ou morrem ou separam-se , arrebatadospelas vicissitudes da vida; em que se apagam as illusões mais ardidas, o espirito mais exaltado esfria , e a imaginação, que respira a esperança , é desthronada pela razão calculadora , que exila todos os sonhos, e esmaga no coração todos os sentimentos generosos : -- immenso tracto de tempo, no fim do qual o homem , que olha para traz , vê entre si e o passado largo abysmo, por sobre o qual não lhe é dado poder saltar.

Dez annos são , portanto, passados sobre os heroes d'esta minha chronica, e como o leitor vae ver, não foram passados debalde. Era n'um dia dos fins de outubro de 1854 . O fallecido café portuense ainda vivia na casa, que lhe foi berço e campa, á metadeda rua de Santo Antonio ; e apesar dos seus coxins de rico velludo, dos seus excellentes marmores, e das suas estatuas de prata, estava, como sempre as moscas, por falta de bons criados que o servissem e sobre tudo pelo local lhe ser pouco azado para lucros .

De repente uma das portas abriu-se de repellão , e um grupo de cinco ou seis individuos, trazendo no meio e como em triumpho um official de marinha, entrou para dentro d'elle, fazendo muito barulho, e foi sentar-se a uma das mezas redondas que havia aos lados da casa.

Tenha o leitor a bondade de fitar estes seis personagens. Conhece-os ?

Ora fite-os mais, examine-os bem ...

Ah ! parece que...

Nada de esforços de memoria , examine bem quem são .

Este , que aqui está gordo e anafado, barriga empinada, e o nariz monstruosamente grosso e vermelho, é Estevão de Mendonça , aquelle moço que ha dez annos, no baile de Francisco Ribeiro, chamou sua praça commercial aquella viuva edosa muito rica e muito vermelha, que o retirou do cavaco das más linguas, convocando-o para lhe dizer a quanto estavam cotados os fundos . Tres mezes depois casou com ella , mais um anno e ficou viuvo , herdando d'ella duzentos contos de reis e aquella molestia de pelle que lhe abatatou o nariz, e que ella tinha herdado do primeiro marido, de quem tambem herdou a fortuna.

Este é Alberto Teixeira , que enamorava a bolsa do barão de Godim na pessoa de aquella segunda filha d'elle. Dois mezes depois o barão e ella chegaram á falla , sobre o assumpto do matrimonio . O barão não quiz dar dinheiro, Teixeira não quiz casar, e matou de repellão o namoro. Em consequencia d'isso a pobre Laura apaixonou-se, cahiu em consumpção e morreu . Como correu o caso mais do que era necessario para a reputação de Teixeira , os paes de familia esconjuraram-o desde então como o diabo, e o barão que lhe agradecera mentalmente o tel-o livrado de aquelle trabalho, deplorou-se com grande gritaria, e contribuiu quanto pôde para o descredito d'elle. O futuro dos casamentos ricos cerrou-se-lhe para sempre , e como a bolsa lhe entysicava a olhos vistos, viu-se obrigado a procurar um emprego. Como não achasse mais nada, fez-se amanuense de uma das administrações dos bairros do Porto , mesquinho desembargo em verdade para quem esteve por um triz a ser possuidor de cem contos de reis. Está magro, ossudo e esqueleto , está emfim verdadeiro amanuense de administração de concelho.

Aqui está este . É Luiz Pacheco , o incansavel viajante. Nasua ultima viagem tentou explorar a nascente do Nilo ; no caminho teve a infelicidade de cahir abaixo de um dromedario , e quebrar uma perna. Isto fez-lhe perder a mania de viajar. Voltou ao Porto , casou-se, e tem quatro filhos. Como é rico , continua a não fazer coisa alguma. Está magro , mas com cara de homem casado. Começam a apparecer-lhe os cabellos brancos, signal infallivel de que é pae de quatro filhos .

Este é Manoel de Azevedo, aquelle murmurador que o leitor tambem conhece do baile supracitado. Um anno depois foi despachado delegado do procurador regio , tomou posse do logar, exerceu-o tres mezes, e depois fez -se deputado, ou fel-0 o governo, que é o mais exacto. A politica elevou-o . Ao segundo anno de deputado , foi nomeado governador civil de um dos districtos do norte . O governo queria dissolver a camara e queria ter gente capaz de fazer eleições no districto .

Azevedo fez a eleição á vontade dos seus amigos, pelo que foi despachado juiz de direito para o ultramar, e um anno depois passado , com grande escandalo , para o continente. O facto porém esqueceu , mesmo porque não era unico. Como elle milhares. Agora está em commissão no Porto, não me lembro que qualidade de commissão é, mas o que sei é que é um nicho e um bom nicho de amigo que lhe arranjaram .

Dos dois outros homens que o leitor vè ao lado d'estes nada direi, porque não são meus conhecidos. Veremos se no correr da conversa elles mesmo terão a bondade de deixarem ver quem são. Todos teem já quarenta annos , e todos teem nas feições signaes indeleveis de que o tempo não correu debalde para elles .

Agora o official de marinha . Parece ter pouco mais de trinta annos. Alto , espadaudo, mas elegante e bem talhado. Fronte alta e desembaraçada, olhar vivo e cheio de intelligencia e de cavalheirismo, bigode negro e espesso , e o rosto tostado pelo sopro da aragem do mar e pela atmosphera abrazadora de Africa , donde acaba de chegar .

É Francisco Tovar , o filho querido de aquelle rabujento mas nobre e generoso homem , que o leitor conhece desde o principio da historia.

-- Cognac! -- bradou Estevão de Mendonça , mal se assentou -- Um official de marinha bebe sempre cognac.

-- Nem sempre, Estevão -- disse Francisco Tovar -- aqui estou eu , e mais pertenço á arma, e não sympathiso lá muito com a tal bebida .

-- Não bebes cognac ? -- exclamou Azevedo .

-- Não, não sou muito affeiçoado a bebidas espirituosas.

-- Homem , essa só pelo diabo ! -- gritou Estevão de Mendonça -- Pois hoje has-de beber por força .

Aqui estou eu com este respeitavel nariz hymorroidal, inutil e abjecta herança, por assimilação , de minha defunta ex-consorte , que apezar dos medicos, hei-de saudar condignamente a tua reapparição , ainda que o supradito se me ponha maior do que o mundo.

-- E eu, ainda que indigno collega de Papiniano -- disse de la compungidamente Azevedo -- não me farei rogar para pôr, em honra tua, as barbas de molho a um importante pae da patria ...

-- Cognac ! -- gritou de novo Estevão de Mendonça -- aqui não ha reflexões a fazer. Ao diabo todos os Papinianos, e todos os narizes hymorroidarios, Hoje hão-de ir por força dez annos a terra. Viva o cognac, a unica eau de juvence conhecida.

-- Homem , queres que a minha chegada seja a ruina dos meus amigos?

-- A tua chegada é uma chegada como qualquer outra, mas os teus amigos não são amigos de cá-cá-ra-ca. Cognac! Pelo inferno! Lorpa de mil diabos, trazes ou não trazes cognac?

O creado pôz então diante d'elles uma bandeja de prata com oito calices de crystal e duas garrafas de cognac.

Estevão encheu os copos.

-- Á ventura de termos entre nós Francisco Tovar -- exclamou elle .

-- A virar -- exclamaram todos á uma.

Os brindes succederam-se então rapidamente uns aos outros:

-- Ao nosso antigo e querido amigo.

-- Ás nossas recordações de ha dez annos.

-- A Francisco Tovar , ao valente soldado que já honra a marinha portugueza .

-- Para que elle nos não torne a deixar.

-- Ao defensor de Moçambique.

-- A gloria do amigo querido, que faz honra a todos aquelles que tem a felicidade de possuirem a sua amizade.

-- Ao valente commandante da fragata « Porto » . Brindo ao heroico marinheiro que fez reviver no mar das Indias a antiga gloria da bandeira portugueza.

-- Viva ! viva ! viva ! -- gritaram todos á uma, pondo-se de pé, e fazendo tilintar os copos cheios de cognac.

A todos estes brindes enthusiasticos , Francisco Tovar não tinha dado palavra . Tinha os olhos arrasados de lagrimas, por que aquellas expansões enthusiasticas não eram inspiradas pelo fogo da mocidade, já apagado n'aquelles homens, mas pelo regosijo sincero de tornarem a abraçar o amigo .

Por fim levantou-se com as lagrimas a deslisarem pelas faces.

-- Brindo a vós, meus amigos. Depois de abraçar meu pae, é esta a maior felicidade que tenho sentido. Posso dizer-me verdadeiramente feliz . Tive e tenho amigos sinceros e leaes.

Assim disse o moço Tovar. A este brinde, aquelle arruido enthusiastico acalmou de repente, as lagrimas rebentaram de todos os olhos, e todas as mãos se dirigiram sinceramente para elle .

-- Para a vida e para a morte -- exclamou Tovar descobrindo-se e mettendo a mão direita entre as que estavam estendidas para elle.

-- Para a vida e para a morte -- exclamaram todos -- deshonra e infamia a quem esquecer este pacto de alliança eterna que juramos.

Seguiu-se um momento solemne de concentração de espirito . Aquella expansão cordial, que os subira a toda a sublimidade do ardor generoso da mocidade, sahira -lhes tão sinceramente do peito , que nem mesmo tiveram tempo de se reconhecerem assenhoreados por ella. As palavras que soltaram , feriram-lhes tão inesperadas os ouvidos já desacostumados a ellas, que aquelles homens, habituados desde muito ao frio calcular da vida real, sentiram os olhos humedecidos por uma lagrima de saudade dos sentimentos generosos, que os inspiravam no tempo dos sonhos e dos castellos no ar de felicidade futura .

Estevão foi o primeiro que acordou de aquelle embriagamento saudoso .

-- Ao diabo as tristezas -- bradou elle -- Rejuvenesca a nossa antiga alegria . Brindo ao futuro que vamos viver no goso da alliança que fizemos.

-- Alto -- disse então Francisco Tovar -- deixemo-nos de loucuras, Estevão de Mendonça . O que lá vae, lá vae; hoje não podemos tornar a ser o que fomos. Os vinte annos já vão longe, os trinta acabaram de soar . Já não podemos senão com as recordações. Vamos portanto á realidade. Prometti contar-vos a minha historia d'estes ultimos dez annos, vou cumprir o que prometti; mas antes, quero saber com quem estou tratando, porque emfim não podeis continuar a figurar diante de mim com dez annos mettidos na algibeira. O que és e o que fazes, Luiz Pacheco?

-- Sou casado e vivo das minhas rendas. Gemo d'esta perna, que quebrei nas margens do Nilo , e adoro meus filhos, e acompanho minha mulher aos bailes e visitas, que é de todos os males o maior com que a justiça de Deus póde provar n'este mundo a paciencia de um homem .

-- Vida de patriarcha e de antigo portuguez ...

-- Menos as visitas...

-- Menos as visitas, concordo; mas ainda assim vida de remanso e de paz, desembargo de todos os que foram andarejos na edade das verduras, remate , em fim , de vida, que esperava o capitão Cook , se não tivesse tido a honra de morrer tolamente as mãos dos selvagens de Owlyhée. E tu Manoel de Azevedo?

-- Eu sou venerando interprete das ordenações do reino , collega dos Pegas e dos Silvas, cujas luminosas lucubrações tenho contribuido para espalhar por mar e por terra. Quero dizer, sou juiz de direito , de cujas funcções a patria me alliviou ha trez annos, mandando-me por seu deputado ás cortes. Ultimamente o governo , em attenção ás minhas luzes e talentos, houve por bem incumbir-me a espinhosa commissão de visitador das cadeias do reino, a fim de proceder ao estudo preparatorio para a reforma das nossas prisões . Resumindo -- sou solteiro , e vivo de trez modos de vida, scilicet, deputado, magistrado, e commissario do governo com 4 $500 reis diarios. Tenho aproveitado bem o meu tempo.

-- Tens, de véras. Dou-te os meus parabens. Entraste na classe dos maiores e mais commodos proprietarios do nosso paiz. As tuas quintas são os rendimentos publicos, os teus caseiros, os contribuintes. Bem hajas tu que tão bem soubeste collocar os teus capitaes. Adiante . E tu , Alberto Teixeira ?

-- Eu sou tambem empregado publico , mas não da ordem dos proprietarios. Sou dos infimos serventuarios d'esta para outros pinguissima lavoura. Observa a tenuidade d'esta minha figura. Sou lamanuense de uma administração de concelho: ganho 400 reis diarios.

-- Homem , que dizes? E a filha do barão de Godim ?

-- Ao diabo a filha do barão de Godim ; não me falles n'ella, foi a minha desgraça.

-- A tua desgraça ! ... Não entendo.

-- Por favor não fallemos mais n'isso. Perco a cabeça quando me lembro de tal. Tovar, para outra occasião te explicarei ... Por agora, para me lastimares, basta que saibas que vivo de 400 reis de amanuense da administração.

-- Pobre amigo ! E tu , Estevão de Mendonça ?

Estevão espanejou-se todo na monstruosa obesidade do seu tecido adiposo , e tomando aspecto importante respondeu:

– Vivo das minhas rendas, e passo os dias a recordar-me da minha finada ex-metade, considerando a um espelho esta monstruosa beterraba em que ella me deixou transformado o nariz. Requiescat in pace. Nas horas de ocio sou agiota .

-- Maldito ! És o mais feliz de nós todos. Reinas desde o fidalgo até o peão. Sempre me pareceu que com aquellas tendencias que tinhas para observar as cotações dos fundos na praça , havias de dar comtigo no grau supremo das competencias da actualidade. Salve, trez vezes.

Estevão sorriu-se. Depois de alguns minutos de silencio Francisco Tovar rompeu de novo a conversa.

-- Aqui estou eu -- disse elle -- Deveis de saber, meus amigos, que, faz agora dez annos, meu pae chamou-me um dia , e disse-me:

« -- Sabes muito bem que a nossa fortuna está hoje reduzida a cem contos de reis. Ainda assim é o bastante para um homem não precisar de trabalhar , mas eu, raios de diabos, não quero vadios em minha casa. Escolhe um modo de vida : ou armas ou letras.

« -- Escolho as armas -- respondi eu .

« -- Bravo ! exclamou Pederneira .

« -- Bravo ! repetiu meu pae.

« -- Quero assentar praça na marinha.

« -- Raios de diabos! bradou meu pae, espantando os olhos.

« -- Raios de diabos ! repetiu o Pederneira, da mesma forma.

« -- Os dois veteranos não podiam acreditar o que ouviam . Tinham servido na arma de cavallaria , que no seu fanatismo reputavam o non plus ultra da honra militar, e ficaram fulminados ao verem-me com espiritos tão baixos que a trocasse pela arma de marinha, pela qual tinham o mais decidido desprezo.

-- Houve grande altercação, mas como puz meu pae no dilemma ou de me deixar seguir a marinha, ou a ociosidade por toda a vida, optou pelo primeiro alvitre , e parti para Lisboa com valiosas recommendações para o ministro . Como tinha estado algum tempo no collegio militar, fui despachado guarda-marinha. D'ahi a dois mezes estava em viagem para a Costa de Africa ; um anno depois estava nos mares da China, e despachado segundo-tenente por não sei que toza que dei nos chins; dois annos depois defendi Moçambique contra uma expedição de flibusteiros, e fui despachado primeiro tenente ; quatro annos mais tarde varri de piratas o mar da China, cooperei com os inglezes na expedição a Shangay, desembarquei, e com duzentos homens occupei a cidade e na volta do paquete inglez recebi por Calcutta a nomeação de capitão de fragata . O anno passado tive ordem de voltar ao reino com a fragata «Porto», que commando, por commissão, ha sete annos, depois que o commandante, o capitão Menezes, morreu de um ataque apopletico a bordo, quando andavamos a correr na Costa de Africa. Eis-me aqui com mui boas disposições de me demorar dois a trez annos com meu pae, que, pobre velho ! experimentado por estes dez annos de ausencia , jura como um damnado todas as vezes que fallo em tornar a embarcar...

Francisco Tovar calou-se um momento para accender um charuto , e depois concluiu assim :

-- Eis aqui a minha historia , amigos; é a vida de um soldado e nada mais...

-- Mas vida gloriosa -- interrompeu Luiz Pacheco.

-- Fiz o que devia -- continuou o generoso filho de Bernardo Tovar -- e por isso não mereço elogio. o cumprimento dos deveres não se paga com elogios. Quando enverguei esta farda, tomei sobre mim a obrigação de honral-a, e quando vi hasteada no mastro grande da minha fragata a bandeira portugueza , que meus passados e ultimamente meu pae sempre hastearam gloriosamente , fiz no coração o juramento de a não deixar desauthorisar em guarda minha. Fiz o que devia , e cumpri a promessa que fiz de contar-vos a minha historia . Agora dèem-me novidades, preciso d'ellas.

-- Que taes ? perguntou Estevão de Mendonça.

-- Primeiro que tudo digam-me o que é feito de Fernão de Aguiar. Ha seis annos que meu pae não sabe d'elle , e é uma das penas que o pobre velho não póde soffrer. Fernão desappareceu de casa d'elle, sem razão alguma para cortar assim tão abruptamente as suas relações . Meu pae amava-o como filho, eu estimava-o como um irmão , e Fernão era um homem muito nobre de espirito para assim nos abandonar sem motivo. Meu pae tem procurado por todos os meios saber novas d 'elle ; mas tem sido debalde, e agora confia em mim para saber noticias do seu antigo amigo. Que sabem d'elle ? O que é feito de Fernão de Aguiar?

A estas palavras, um homem alto , barba inteira e já rareada de branco, vestido com um casaco muito comprido, e na cabeça um grande chapeu já russo , que tinha entrado no café , quando Tovar procedia ao exame da situação actual dos seus amigos, e que se tinha sentado na mesa opposta, de costas para ellos, e a ler os jornaes, estremeceu ligeiramente , e deixando cahir o jornal que tinha na mão, poz-se a escutar.

Ás palavras de Francisco Tovar, Estevão de Mendonça encolheu os hombros.

-- Qua sabemos nós de Fernão de Aguiar, homem -- disse elle -- Estás bem aviado se te mettes a ir atraz das recordações d'elle . Isso é uma especie de vampiro, com aspecto de urso bravo, que provavelmente a estas horas recolheu já ao paiz de fanton , onde por fim todos nós havemos de ir parar com os ossos.

-- Como? Pois ... Não te percebo , Mendonça .

-- Eu me explico...

-- Permitte-me que o faça eu , Mendonça -- interrompeu Luiz Pacheco --- este é caso que pede lagrimas, e não chanças, amigo , e o teu espirito é pouco azado para o serio . Perguntas-nos por Fernão de Aguiar, Francisco , e como vaes ver, estamos nas mesmas circumstancias que tu e teu pae a respeito d'elle . O que sei, é muito pouco , mas assim mesmo é motivo bastante para serias apprehensões a respeito da sorte do nosso pobre amigo . Depois da morte de Francisco Ribeiro e do desapparecimento mysterioso de Paulo , Fernão de Aguiar foi accommettido por uma melancolia profunda que operou n'elle transformação completa . Morreu-lhe de todo a alegria , as chanças prasenteiras transmudaram-se em sarcasmos ferinos, e o espirito azedou-se-lhe, de forma que a irritabilidade e a tristeza inspiravam-lhe uma insolencia provocadora , que escandalisava os seus mais verdadeiros amigos. Sabes como eu o presava; aquelle estado de irritação continua fez-me desconfiar que fosse resultado de falta de meios e da protecção com que Francisco Ribeiro o tratara . Conhecia-o , porém , bastante para me atrever a offender-lhe o orgulho , offerecendo-lhe rasgadamente a minha bolsa. Indaguei portanto acerca d'elle , e soube com pasmo, que em lugar de falta de recursos, Fernão tinha os sufficientes para poder viver com economia , mas sem sentir privações. Alem do que os seus escriptos lhe davam, tinha de mais a mais uma pequena fortuna que havia herdado do pae. Attribui então aquella melancolia aos acontecimentos que tinham perseguido a familia Ribeiro, que elle estimára como sua, e creio que acertei na supposição. Dois annos depois Fernão recebeu do Brasil a herança de um parente no valor de mais de cem contos de réis. Como elle proprio m'o disse depois com a maior indifferença possivel, descontou-os a um especulador, e realisou uma fortuna de setenta contos de réis . Desde então não tornou a escrever uma linha , e longe de melhorar de condições de espirito , tornou-se cada vez mais mysanthropo e irritavel. Um dia desappareceu inteiramente. Eu era sinceramente amigo de aquelle moço; admiráva n'elle uma grande intelligencia e uma grande alma. O seu desapparecimento causou-me portanto profundo cuidado . Fiz em consequencia d'isso as mais vivas indagações a respeito d'elle , nada porém pude saber , e , hoje , amigo, creio piamente no que a principio apenas suspeitava . Fernão foi victima da melancholia e da tristeza , com que o affectára a desgraça que desbaratou a familia Ribeiro , e o modo indigno , villão , com que foi tractada depois d'ella pelos seus antigos parentes e bajuladores. Aquella grande alma foi a pouco e pouco recolhendo em todas as amarguras que aquella recordação lhe causava; por fim succumbiu a ellas. Fernão de Aguiar suicidou-se de certo . Eis aqui as noticias que te posso dar de aquelle nosso tão estimado amigo.

O homem do casacão, ao ouvir as extremas palavras de Pacheco , fez um movimento convulsivo e rapido, depois encolheu os hombros, tomou de novo o jornal, e fitou os olhos n'elle com um sorriso de fastio e de ironia a pairar-lhe nos labios.

-- Pobre Fernão ! -- disse então Francisco Tovar, limpando uma lagrima que lhe correra pelas faces abaixo. -- Não me custa a partilhar da tua crença a respeito d'elle , Pacheco . Aquella era uma grande e nobre alma, um verdadeiro cavalheiro , um amigo sincero e leal, um homem como poucos. A desgraça da familia Ribeiro devia impressional-o profundamente, sobretudo o desapparecimento de Paulo , que elle tinha em conta de irmão. Aquella intelligencia robusta havia de acrysolar a realidade de forma que por fim vinha a ser impossivel o poder com o peso d'ella. O suicidio foi de certo o ponto final de aquella existencia amargurada por tão pungentes agonias. Não fazes idéa do que me magôa esta recordação , Pacheco . Melhor eu não perguntasse por elle ! ... Desculpem-me, mas digo-lhes sinceramente que esta desgraçada noticia faz-me lastimar o ter voltado a Portugal. Pobre Fernão !

Francisco Tovar fez um grande esforço sobre si para suffocar a forte impressão que o agitava , mas não pôde reprimir duas lagrimas que dos olhos lhe vieram rolando pelas faces abaixo .

-- Com os diabos! Isto é intoleravel! -- bradou então Estevão de Mendonça, que apezar de toda a sua impassibilidade egoista , não podera resistir á commoção que agitava os seus amigos. -- Leve o diabo as recordações. Acabemos com isto . Não vim ao café portuense para representar um drama serio diante d'esta garrafa de cognac. Isto assim não tem geito .

-- Olha, Tovar -- disse então Manoel de Azevedo -- Não lastimemos a morte de Fernão de Aguiar; como genio que tinha, a vida para elle era na actualidade um inferno. Tudo contribuia para isso. Tinha presenceado a queda ruidosa de uma familia que presára e hoje presenciaria o vilipendio da pessoa pela qual tinha muita consideração , e cuja reputação lhe era cara por estar ligada com essa mesma familia .

-- De quem fallas tu, Azevedo?

-- Fallas de Luiza de Noronha ?

-- A filha de Vasco de Noronha! Pois que ha a respeito d'ella ? E' verdade, tinha-me esquecido indagar o que era feito d'essa senhora. Então em que parou essa familia ?

-- Pois não sabes nada ?

-- Nada, pela palavra.

-- Pois então escuta, que em duas palavras te digo tudo. Vasco de Noronha morreu ha seis annos, mas antes de morrer , teve o castigo das suas infamias, assistindo aos factos que te vou contar. Seis mezes depois da morte de Francisco Ribeiro e do desapparecimento de Paulo , Noronha conseguiu caçar na rede das suas velhaquissimas artimanhas, um pateta, filho de um rico negociante de bacalhau , que tinha morrido havia pouco tempo. Casou-o com a filha, e começou na posse do usofructo da fortuna do genro . Pouco porém lhe durou o romance afortunado que buscava. Luiza deu n'uma verdadeira cabeça de vento , obrigou o marido a expulsar o pae da administração dos seus haveres, e depois lançou-se com elle n'um luxo furioso, que tres annos depois reduzia a zero todo o dinheiro do bacalhau. Durante estes tres annos teve a par do marido mais de tres ou quatro amantes , com os quaes se embriagou de loucuras. A reputação de aquella mulher chegou a perder-se de todo; mas depois que se esgotou o ultimo cartucho de soberanos do pobre do bacalhoeiro, é que a desfacatez da devassidão violenta deaquella mulher tocou no extremo. Separou-se do marido, e poz-se a soldo de todos os rapazes ricos que uns apoz outros se apaixonaram por ella . A difamação chegou a tal ponto , que nem mesmo esta nossa benevola sociedade que aperta a mão a todos os escandalos, julgou licito transigir com o d'ella . Todas as portas se lhe fecharam , e Luiza teve de recolher-se a um convento para desforçar esta infamante reprovação geral. Mas aquella alma estragada nem dentro de aquellas paredes pôde aquietar-se. As scenas de bordel repetiram-se dentro do claustro, graças á audacia dos amantes e á facilidade com que ella se prestava a patrocinar todas as tentativas. O escandalo resaltou , com espanto de todos, para fora de aquellas paredes, que aqui para nós, não o presenciaram pela primeira vez . E aquella mulher, amigo, foi amada por Paulo Ribeiro com idolatria ! Era ella , que aquella grande alma havia escolhido para o acompanhar eternamente na sua peregrinação sobre a terra! Fernão de Aguiar morreu a tempo. Tive uma vez uma questão com elle a respeito do verdadeiro caracter d'ella . Foi n'um baile de Francisco Ribeiro ; eu previa o que tem acontecido, elle , na boa fé da sua alma generosa, teimava pela pureza de caracter da mulher que era amada por Paulo Ribeiro . Que responderia agora se assistisse aos escandalos que o Porto tem presenciado?

A estas palavras, o homem do casacão ergueu-se subitamente , arredou de repellão o banco em que estava sentado, voltou a face severa para o grupo e fitou n'elle os olhos ardentes . Aquelle arruido todos os rostos se voltaram para elle , e todos os olhos se fitaram nos d'elle como fascinados.

O misanthropo caminhou então direito a Manoel de Azevedo, poisou-lhe a mão sobre o hombro, e disse-lhe com voz secca e vibrante:

-- Responderia o que te respondeu n'aquelle baile , Manoel de Azevedo ; responderia: enganas-te na apreciação que fazes da vida de aquella desgraçada mulher .

A estas palavras um estremecimento de terror sobrenatural agitou convulsivamente aquelles que não podiam desprender a vista de cima de aquella figura extravagante , mas rude e severa, que os fitava com a mais insolente ironia a chispar-lhe dos olhos ardentes.

-- Fernão de Aguiar! ... -- balbuciaram todos á uma, depois de passado o primeiro impeto da estupefacção, que os extasiara.

-- Sou eu mesmo, é verdade -- respondeu o misanthropo seccamente. Depois continuou : -- Não me suicidei, Luiz Pacheco; um homem como eu não se suicida. Francisco Tovar, teu pae não tem razão de sequeixar de mim ; não me arredei d'elle por ingratidão para com a sua amizade, separei-me por um sentimento de delicadeza. O general é na verdade o unico homem com quem na actualidade me era possivel conviver. É um genio rude e intractavel, mas franco , e incapaz de transigir com este mundo de torpezas, e ainda menos de desforçar o conceito que formo d'elle . Porém teu pae nunca tomou o mundo a serio ; ou não soube ou não quiz . Eu cahi na loucura de me pôr um dia a pensar ácerca d'elle , e d'ahi resultou a impossibilidade de viver com teu pae . O general não transige com a corrupção da humanidade , mas pode viver no meio d'ella ; transige com o incommodo que sente , porque nunca pensou que poderia haver uma coisa melhor, se o espirito humano não andasse tão distanciado da honra, do pundonor, da vergonha e de todos os sentimentos nobres. Eu nem isso posso fazer , e a consciencia de que podia viver n'um mundo mais supportavel, fez-me perder a cabeça , enlouqueci da monomania da irritabilidade, e tornei-me insupportavel. Que direito tinha eu a amesquinhal-o com as intoleraveis consequencias da minha loucura ? Arredei-me portanto ; não tem de que se queixar, deve antes agradecer-me.

-- Fernão de Aguiar, és injusto -- balbuciou Francisco Tovar.

-- Francisco Tovar -- replicou o misanthropo -- és como teu pae, não pensas ou não sabes pensar. Suppões que teu pae, por ser meu amigo, me aturaria com paciencia as rabugices. Enganas-te; a amizade dos homens não chega tão longe. Logo que as commodidades dos outros fazem sombra ás commodidades do eu , a amizade do homem reduz-se ao que verdadeiramente é -- uma pura phrase de convenção ou um resultado da sympathia , que, como instincto , cede diante de outro instincto mais justo do que elle , de outro instincto que é o soberano de todos os nossos instinctos, o egoismo, o instincto do interesse proprio . Com teu pae aconteceria assim.

Francisco Tovar deu signal de querer replicar, mas o misanthropo atalhou-o rudemente .

-- Cala-te, não me contradigas. A minha convicção não é resultado da reflexão de um momento . Ensinou-m'a a razão, depois de meditar noites e noites sobre a experiencia . O mundo é assim . Vês todos estes protestos de amizade, todos estes enthusiasmos, todas estas demonstrações de affecto com que foste recebido ? Pois , bem , tudo isto é simples ar. Que o interesse se interponha amanhã entre os vossos interesses pessoaes, e vereis. Estevão de Mendonça, o agiota , aproveitar-se-ha pharisaicamente das tuas más circumstancias, e será para ti mais judeu , do que para outro que nunca conhecesse, mas que esteja menos enredado que tu : Manoel de Azevedo, o magistrado, sentenciar-te-ha a perder toda a tua fortuna, se em demanda que tiveres, for teu adversario qualquer personagem de que elle esteja dependente: Luiz Pacheco, o rico proprietario , independente elle mesmo, se na balança do interesse puzerem n'uma concha toda a tua felicidade futura, e na outra o mais ridiculo foro que lhe pagam os seus caseiros, atirar-se-ha com todo o peso sobre esta , embora tu fiques eternamente desgraçado; e tu mesmo, Francisco Tovar, não duvidarás prender a bordo do teu navio qualquer d'elles, lançar-lhe a gargalheira do escravo, depois ir vendel-o na Havana ou nos Estados-Unidos, se d'isso te provierem interesses que correspondam em merecimento com a torpeza do feito. Offendem-se ? -- continuou , observando o movimento de impaciencia que elles fizeram -- Não se offendam ; o que digo de vós, digo-o de mim . Todos nós somos assim , e eu como todos os outros. Estas são verdades desagradaveis , mas se as não queriam ouvir , para que me evocaram para fora do meu tumulo ? Eu bem vos disse que estava insupportavel, que estava insolentemente provocador, como ha pouco disse Luiz Pacheco ; mas se não me queriam aturar, para que proferiram o meu nome, para que se puzeram ahi a prantear Fernão de Aguiar, como se lhes importasse muito com a sorte do misanthropo?

Fernão de Aguiar calou-se então. Os olhos brilhavam-lhe com um brilho negro mas luzente , as feições tinham-se-lhe contrahido, e a agitação convulsiva que lhe desvairava os movimentos dava a conhecer cabalmente que estava apresado n'aquelle momento por um violento ataque de irritabilidade.

-- Fernão de Aguiar -- disse então Luiz Pacheco -- senta-te aqui. Faz de nós o conceito que quizeres, mas faz-nos ao menos a justiça de acreditar que sentimos grande alegria com a tua reapparição.

O misanthropo encolheu os hombros, e sorriu-se com ironia ; depois como se se recordasse de alguma coisa , replicou, sentando-se no banco que Luiz Pacheco lhe offerecia :

-- Sento sim ... é verdade, é preciso que me sente. Tenho de dar a Manoel de Azevedo uma explicação . Foi por causa d'ella que me resolvi a fazer-me conhecer, que por outro motivo não . Azevedo -- continuou voltando-se para elle -- tudo o que estiveste a dizer de Luiza de Noronha é uma historia calumniadora, puras atoardas que o mundo costuma espalhar e augmenta á medida que vae espalhando, e a que tu tolamente deste credito como todos costumam dar, sem reflexão , sem procurar saber a verdade, embora a calumnia implique a reputação de uma mulher que é a mais melindrosa de todas as convenções , com que se rege este mundo de malvados e de imbecis.

-- Por ventura negas os factos que narrei? ...

-- Não nego os factos, nego a razão d'elles, e para mim o crime não está nos effeitos, está nas causas. Digo-te , portanto que de todos os erros de que ha pouco accusaste Luiza de Noronha, a responsabilidade não pertence a ella , porque n'ella não está a causa d'elles . A causa está na depravação dos costumes que sacrifica o futuro de uma mulher a combinações abjectas, está na sordidez dos que abusam da triste situação de uma desgraçada, angustiada por todos os males da vida, está em ti e em todos que espalham como tu as calumnias que irritam os espiritos generosos, e que lhe inspiram vingar-se , embora a vingança lhes custe o sacrificio da propria felicidade . Entendes-me?

-- Não muito bem , mas...

-- Eu me explico ; Vasco de Noronha era um malvado e um intriguista ...

-- Disse-t'o sempre.

-- E eu nunca o neguei. Era um malvado e um intriguista que pretendia armar com a belleza da filha á posse da riqueza que lhe désse as commodidades que desejava. Para elle Luiza era um meio e nada mais ; a felicidade d'ella nunca teve o mais pequeno valor entre os algarismos dos seus calculos. Luiza amava sinceramente Paulo Ribeiro; se aquella casa não tivesse fallido, e Paulo continuasse a ser o herdeiro de um ultimo navio , é natural que nunca Luiza chegasse ao que chegou. Mas Francisco Ribeiro falliu e morreu, Paulo desappareceu , e Noronha viu-se portanto obrigado a procurar com a belleza da filha um noivo que substituisse, o mais que pudesse, nos seus calculos interesseiros a momentos a lacuna com que estes acontecimentos lh'os embrecharam. Achou por fim um homem azado para isso : parvo e estupido e capaz de se deixar dominar . A alma era idiota e o corpo egual a ella em figura. Era um imbecil em corpo e alma, era o homem que convinha , pela alma já se vê, para o desenlace feliz das combinações d 'aquelle grande malvado. Vasco disse á filha que havia de casar com elle ; Luiza reagiu , e tentou esquivar-se por todos os meios, mas o pae obrigou-a , e o casamento fez-se . Ao dizer o sim que a ligava para sempre aquelle imbecil macaco , a pobre menina sentiu que já não tinha futuro de felicidade. Estava ligada a um ente abjecto e parvo , ella , alma ardente e cheia de amor, intelligencia fina , e demais amada por um homem como era Paulo Ribeiro . Que querias pois que resultasse d'aqui, Azevedo ? Luiza odiou o pae, porque via n'elle o homem que a sacrificou a um pensamento egoista e indigno, e odiou o marido , porque via n'elle o ente ominoso em alma e corpo, a que tinha sido sacrificada. Aquella mulher nascera talhada para os sentimentos excessivos. O odio foi n'ella portanto egual ao que havia sido o amor. Vingou-se do infame, que tinha por pae, burlando-lhe os calculos em obrigar o marido a expulsal-o da administração da casa, e vingou-se do marido embriagando-se com o luxo e com a devassidão , para se esquecer que era mulher d'elle. Quando as riquezas findaram , arredou-o de si com a ponta do pė como quem arreda um sapo ou uma salamandra . Depois que querias que fizesse ? Luiza não se vendeu, não; mente quem o asseverar. Luiza não precisava de vender-se; ao abandonar o marido trouxe comsigo a pequena fortuna que herdara do pae , e essa chegalhe para viver sem precisar de pôr o corpo em almoeda. Não se vendeu, deu-se, não por luxuria , não por torpeza da alma, mas por necessidade de esquecer-se com a embriaguez das aventuras, que fora amada por Paulo Ribeiro , e que estava por momentos a ser amada é venturosa no mundo. Deu-se, Azevedo, deu-se, e deu-se tambem para escandalisar essa sociedade torpe que a não protegia contra um pae desnaturado, e para saborear o unico prazer que lhe resta , o vingar-se d'aquelle infame deshonrando até á ultima deshonra o nome e a memoria do algoz que a sacrificara.

Fernão de Aguiar parou um momento sacudido por violenta irritação, e depois continuou :

-- Azevedo, quem ha ahi que se atreva a atirar a primeira pedra a esta mulher ? Dirás que ha muitas desgraçadas que soffrem em silencio e com resignação, dirás que ha muitos paes assim , não é verdade? Que agradeçam ao diabo o ter-lhes dado filhos que não se assemelham a Luiza, com intelligencia e com elevação de espiritos, e tremam os que o forem no futuro, de que os filhos que gerarem não lhes saiham taes quaes ella . A verdade é esta, Azevedo. Atreves-te agora a condemnal-a ?

-- Não me atrevo a duvidar de ti ...

-- Se o fizesses, seria duvidar da verdade .

-- Não o faço , socega, Fernão de Aguiar . Apezar que o conceito que formas de nós, me dava agora direito de duvidar da sinceridade da tua defeza, não o faço , e não te illudirei dizendo que penso o contra rio do que estou pensando. Visto serem essas as causas que determinaram o procedimento de Luiza de Noronha, não posso recusar-me a unir-me comtigo em desculpal-a.

O misanthropo deixou então pender a cabeça sobre o peito , e cahiu em profunda meditação abstracta . Ninguem ousava despertal-o d'ella ; por fim ergueu a cabeça, e batendo uma palmada sobre a mesa, gritou em voz de estentor :

-- Rapaz, mais um calice.

Depois , voltando-se para os amigos, continuou sorrindo-se com ironia pronunciadissima:

-- Quero mostrar-vos que não esqueci os meus habitos de rapaz . Vou fazer um brinde.

O criado trouxe o copo. Fernão encheu-os todos e depois exclamou pondo-se de pe:

-- Á memoria de Paulo Ribeiro, á memoria do homem , que no tempo da prosperidade chamamos amigo. A virar.

Todos os copos se dirigiram para os labios, mas Francisco Tovar dirigiu o seu rapidamente a tocar no do misanthropo, e obrigou-o a parar.

-- Espera -- disse-lhe elle -- permitte-me que faça uma modificação necessaria ao teu brinde.

Depois voltando-se para os outros, exclamou, erguendo o copo a toda a altura do braço:

-- Brindo, não á memoria , mas á saude de Paulo Ribeiro; que a fortuna chova sobre elle a prosperidade para que possa voltar em breve a Portugal a cumprir o seu generoso pensamento.

Ao ouvir estas palavras o braço do misanthropo, em logar de levar o copo aos labios , estendeu-o machinalmente bem longe d'elles , e os olhos fitaram-se-lhe pasmados no moço Tovar.

-- Homem ou demonio – bradou elle por fim -- quem te fez essa revelação ?

-- O corsario «Radgi» nos mares da China -- respondeu sorrindo Francisco Tovar .

-- Diz-me uma palavra.

-- Dez annos.

Ao ouvir esta phrase , Fernão de Aguiar deixou cabir machinalmente o copo das mãos, depois passou-as pela fronte, e fitou desorientado o moco Tovar. Por fim aferrou-o com toda a força por um braço , e balbuciou a meia voz :

-- E nada para mim ?

-- Muito .

-- Diz-m'o, diz-m'o já ...

-- Não me incommodes -- replicou rudemente Francisco Tovar, sacudindo-o com força de si -- Que direito tens tu a exigir de mim que gaste o meu tempo, e estafe os meus pulmões a contar-te historias que nada me importam ? Que interesse tiro d'isso? Não me importunes.

-- Dou-te em troca tudo o que possuo .

-- Sou rico, não preciso das tuas migalhas.

-- Francisco Tovar ...

E depois de pronunciar este nome em voz surda e cavernosa, o misanthropo levou vagarosamente a mão ao seio , fitando o amigo com um olhar cheio de ferocidade. Francisco Tovar metteu as mãos nos bolsos desdenhosamente , e olhou-o de lado e sorrindo com o sorriso do homem a quem não amedrontam ameaças.

-- Francisco Tovar -- disse então o misanthropo em voz mais branda -- pela nossa amizade de outros tempos...

-- Amizade! Pois não acabaste de dizer que a amizade era um sentimento de convenção ou o instincto da sympathia que cede diante do interesse pessoal? Ora adeus, não me incommodes.

-- Francisco , por teu pae...

-- Basta . Não tenho difficuldade em dizer-te o que me incumbiram que te dissesse; mas imponho uma condição.

-- Qual é? Manda.

-- Vem commigo dizer a meu pae que ainda és seu amigo , vem dar ao pobre velho a consolação de te tornar a ver.

Fernão de Aguiar calou-se um momento , durante o qual mediu com ares desconfiados o moco. Depois exclamou a meia voz :

-- Desgraçado de ti se me illudes!

-- Pobre misanthropo ! -- replicou o moço Tovar sorrindo -- A tua loucura foi mais longe do que me persuadi ao principio. Vamos.

Assim dizendo, despediu-se dos amigos, e tomando Aguiar pelo braço , sahiu para fora do café. A' porta estava uma sege, dentro da qual se metteram, e que foi parar d'ahi a pouco a casa do general Tovar.

– Meu pae já está recolhido ? -- perguntou o moço Tovar ao criado que lhe abrira a porta.

-- Sim , meu senhor.

Francisco Tovar subiu as escadas, seguido de Fernão de Aguiar, silenciosos ambos como tinham vindo desde que sahiram do café. Ao chegar ao patamar, Francisco abriu uma porta, e tomou o castiçal da mão do criado, e disse-lhe:

-- Vae accender luz no meu quarto .

Depois entrou com Fernão para dentro do quarto .

-- Ficarás aqui hoje -- disse-lhe elle -- Até ámanhã: boa noite .

-- E a tua promessa ?

-- Não a posso cumprir senão diante de meu pae. Ámanhã saberás tudo .

-- Francisco , queres-me deixar entregue uma longa noite a toda a tortura d'esta anciedade?

-- E não torturaste tu tambem meu pae, que te estremece, por mais longo espaço de tempo ? Agradece-me a generosidade com que te consinto compensar com as agonias de uma só noite as magoas e os cuidados que lhe fizeste soffrer por seis annos. Boa noite .

O moço Tovar fechou então a porta sobre si e retirou-se para o seu quarto . Fernão de Aguiar mediu umas poucas de vezes a sala agitado por violenta irritação e por fim atirou-se para uma volteriana, deixou pender a cabeça sobre o peito , e assim ficou até que o dia começou a raiar.

Todo o genio senhoril de Aguiar e toda a ferocidade da sua misanthropia sentiam-se fracos e impotentes diante da vontade de ferro do moco marinheiro.

O misanthropo passou toda a noite em angustiosa insomnia ; o general dormiu-a toda de um somno e muito socegadamente.. .

II

A figura do general Tovar não tinha feito mudança sensivel, apezar dos dez annos que haviam decorrido . Aquelle organismo robusto sentira-os passar por si com igual indifferença á com que sentem os rochedos as arremettidas das ondas, desde que ha mar, e ha rochedos. Era o mesmo homem emquanto ao vigor physico, e até parecia que tinha por fim alcançado victoria sobre a gotta, por que apezar de ter os pés mais inchados e estar mais tropego, os ataques eram mais distanciados uns dos outros do que costumavam ser ao principio . A subita apparição do filho rejuvenescera-lhe tambem o espirito, e desde que elle chegara podia dizer-se que o general Tovar era o mesmo homem que conhecemos, ha dez annos atraz.

Em relação ao Pederneira podia affoitamente dizer-se o mesmo. E' verdade que nos ultimos dois annos, começou a soffrer de dores nos tornozellos, as quaes foram classificadas rheumatismo pelos medicos. Mas Pederneira tinha resistido sempre, a concordar com o diagnostico scientifico, e as sobreditas dores não tinham ainda podido subir á cathegoria de rheumaticas, e conservavam-se na muito mais inferior em que elle as classificava -- dôres de fuga, que nas occasiões de aperto tratava com fricções dadas com uma baeta molhada n'um decocto de vinagre e alhos por elle mesmo manipulado na cosinha da casa .

Quem tinha sentido todo o rigor dos dez annos havia sido o casmurro Badajoz. No fim do quarto começara a sentir todos os inconvenientes da idade provecta , e ao quinto passou d'esta a melhor vida, victima da extrema velhice, molestia de que a maior parte da gente deseja morrer . O seu fallecimento foi sentido com todo o rigor pelo general e pelo Pederneira. Foi lucto verdadeiro para toda a familia . Badajoz teve no quintal do amo um enterro como muita gente não tem : foi acompanhado até à sepultura pelo general de fardalhão grande, e pelo Pederneira vestido de sargento de lanceiros de 1834, e sepultado com todas as honras militares. Por muito tempo a sua falta foi sinceramente sentida pelos dois veteranos, que durante elle deram tregoas á rabugice para despertarem em sentidas recordações a saudade; por fim habituaram-se a viver sem elle, o Badajoz deixou de ser assumpto do cavaco diario , e passou para o rol das recordações que se evocam em occasião propria com um suspiro de saudade.

Esta era a alteração mais importante que a vida domestica de Bernardo Tovar havia soffrido , á parte para si, a falta do filho .

São nove horas damanhã; o general e o Pederneira , que depois da partida de Francisco Tovar , tinha sido elevado á força ás funcções de commensal, aguardam a chegada d'elle , com impaciencia e não pouca vontade de arremeterem ao almoço que já está posto diante d 'elles. Por fim a porta da sala do jantar abriu-se , e Francisco Tovar entrou para dentro seguido pelo misanthropo .

Ao ver entrar o filho com um desconhecido , o general tentou levantar-se para o cumprimentar.

--- Veja se o conhece -- disse então o moço Tovar , apontando para o poeta com um sorriso tão significativo que collou o general a cadeira.

Bernardo Tovar fitou n'elle os olhos, embasbacado e sem o conhecer . O misanthropo dirigiu-se então para o lado d'elle , e disse-lhe em tom secco mas com amizade bem pronunciada:

-- General, desculpe-me...

-- Fernão de Aguiar ! ... Raios de diabos!... -- bradou o general que o reconheceu pela voz.

Erguendo-se de um pulo , agarrou-se-lhe ao pescoço com tal força , que, ao recahir sobre a cadeira, trouxe-o pela cabeça subjugada entre os braços, e fel-o ir de joelhos a terra.

O poeta não fez opposição alguma a esta viva manifestação de sincera amizade. Apezar de toda a misanthropia que lhe trazia azedado o espirito, sentiu-se abalado por aquelles signaes inequivocos de que era ali sinceramente prezado. Quasi que chegou a arrepender-se de se ter voluntariamente sequestrado do trato familiar de um amigo tão certo e tão leal. Enlevado n'esta impressão sentidissima, apertou sinceramente o velho general contra o coração . Depois commetteu levantar-se ; mas o general poz-lhe rijamente as mãos sobre os hombros, e exclamou em voz de trovão, obrigando-o a continuar de joelhos:

-- Alto , deixe-se estar assim , maganão, mariola ! Raios de diabos! Assim . .. assim , até que me dê as desculpas do que mé tem feito soffrer por você até hoje . Onde tem estado? Que tem feito ? Porque não tem dado noticias suas? Mariola ! Quebro-te a cabeça !

-- General -- respondeu o misanthropo atrapalhado foi verdadeiramente uma mania ... emfim , peço-lhe desculpa .. . Não devia em verdade. .. Eu me explicarei .. .

-- Não tem que explicar -- replicou o velho soldado cada vez mais enthusiasmado -- Responda -- onde tens andado ? que tens feito ? porque não me déste ha tanto tempo noticias tuas ?

-- Tenho estado no Porto .

-- No Porto !... Quebro-te a cabeça !... E não me vir ver ! ! ...

-- Não o queria incommodar. O meu genio ...

-- O teu genio ! Os diabos carreguem commigo se te percebo ! Falla portuguez, homem ...

-- Emfim , general -- replicou Fernão de Aguiar, sahindo-lhe mansamente de debaixo das mãos, erguendo-se -- é que perdi o costume de viver com gente . O meu genio tornou-se tão duro, tão rispido... Que direito tinha eu a atormental-o , a aborrecel-o todos os dias com as casmurrices do meu genio ? Assim retirei-me; pensei que era a maior prova que lhe podia dar de amizade.

-- Cada vez te percebo menos, pelo inferno ! -- replicou o general espantado -- Homem , que diabo de ideias são essas? Pederneira, que dizes a isto ? Quebro-te a cabeça!

Pederneira encolheu os hombros, e resmungou lá do lugar onde estava, com o olho pregado na cafeteira e nas torradas:

-- Gerigonças que me não entram tambem cá nos cascos. Rilhafolles com elle . Trez meia volta , general, a galope, que esfriam as torradas.

A esta coarctada Francisco Tovar soltou uma gargalhada bem do peito e bem franca.

-- Fiquem as explicações para outra vez, meu pae --- disse elle então para acudir á atrapalhação em que a teima do general tinha o pobre misanthropo -- eu lhe explicarei cabalmente o caso; por agora basta saber que Fernão está arrependido do que fez , e que desde hoje por diante pode contar com a companhia d'elle . Não é assim , Fernão?

-- Com toda a certeza.

-- Palavra de honra ? -- exclamou o general, estendendo-lhe a mão .

-- Palavra de honra -- respondeu Fernão de Aguiar levando machinalmente aos labios a mão que o velho soldado estendeu para elle .

-- Agora ás torradas, que se tardamos , estamos arriscados a achar o campo da batalha varrido pela primeira carga , que o Pederneira commandou e executou .

E era assim . O velho soldado, a quem estava incumbida a tarefa de temperar o almoço, mal deu a voz de a galope, encheu as chicaras, e repartindo-as pelos differentes logares, abalroou-se com a sua , e arremettendo ao prato das fatias, fez n'elle terrivel destroço .

O almoço passou-se recheado de insistencias do general, que ardia em curiosidade de saber os motivos por que o poeta lhe tinha abandonado a casa; por fim o Pederneira houve por bem dal-o por ferido, e Fernão de Aguiar pediu ao moço Tovar o cumprimento da promessa que lhe tinha feito na noite anterior.

Francisco Tovar accendeu um charuto , e depois disse ao poeta:

-- Primeiro que tudo preciso que me respondas com toda a franqueza a algumas perguntas a que meu pae não tem podido responder-me.

-- Diz -- replicou serenamente o poeta .

-- Onde para a familia de Francisco Ribeiro ? Onde estão D. Manoela e Adelaide?

O poeta estremeceu, e fez-se pallido como um defuncto.

-- Não sei – balbuciou por fim em voz sumida.

Francisco Tovar tirou o charuto da bocca, e fitou-o um momento com um olhar cheio de severidade.

-- Misanthropo -- disse elle então -- ainda desconfias de nós ?

-- Francisco Tovar -- replicou Fernão rudemente -- não costumo senão dizer a verdade. O que disse , disse .

-- Mas Paulo esteve comtigo duas horas antes de partir ...

-- É verdade, mas por mais que instei com elle, não pude conseguir que me revelasse onde deixava a sua familia , nem as condições em que a deixava .

-- Tal qual como a mim , raios de diabos ! exclamou do lado o general.

-- Forte scisma! -- balbuciou o Pederneira , que parecia estar tocando clarinete n'um charuto , a que estava agarrado com ambas as mãos e a que bufava com toda a força, a ver se lhe podia tirar o fumo.

-- Singular caracter ! -- exclamou Francisco Tovar -- Nem mesmo a ti !...

-- Nem mesmo amim -- replicou o misanthropo. -- Ás trez horas da noute em que partiu , Paulo veio bate-me á porta. O criado abriu , e elle entrou para dentro do meu quarto . Quando entrou, não o conheci, tão embuçado como vinha n'uma capa, que trazia coberta. Quando se desembuçou, deixou-me ver as feições tão pallidas e tão quebradas pela agonia , que me fez receiar algum acontecimento funesto.

« -- Venho dizer-te adeus -- disse-me por fim -- parto d'aqui por duas horas.

« -- Partes! E para onde? -- repliquei eu , admirado d’esta resolução tão subitamente tomada .

« -- Não sei ainda -- respondeu -me elle -- parto e parto para muito longe. É tudo o que por hora sei de mim .

« -- Mas, Paulo , ainda esta manhã não fallavas em partir. Esta determinação tão repentina...

« -- Tomei-a no dia em que meu pae foi enterrado, meditei-a depois durante a insomnia de muitas noites, e hoje principio a executar o que tenho meditado até agora. ..

-- Assim dizendo, parou e deu machinalmente algumas voltas pelo quarto ; e depois continuou , voltando-se para mim e fitando-me com os olhos luzentes como dois carvões accesos:

-- Preciso de ser rico ... muito rico . .. millionario . Preciso de rehabilitar a memoria de meu pae, de pagar as suas dividas... Foi a herança que me deixou , lembras-te ?

-- Mas, Paulo -- disse-lhe eu, impressionado por aquella resolução tão indefinida como inabalavel -- que plano é o teu ? que ideaste fazer ? como has-de ser rico ?

-- Paulo fitou-me um momento distrahido , depois encolheu os hombros, e replicou :

« -- Como hei-de ser rico ? sei eu lá como !... Hei-de ser rico , porque preciso ser rico , e quero ser rico. Olha, Fernão, -- continuou aproximando-se mais de mim , e abaixando um pouco a voz -- ha homens que podem sempre o que querem , e, desde a morte de meu pae, sinto que sou d'esses homens.

Depois deu mais algumas voltas distrahido na casa e accrescentou :

« -- Hei-de ser rico ... millionario , porque o quero ser, porque sinto de mim que não sou homem para parar diante de embaraços, sejam elles quaes forem . Hei-de ser rico , e rico em pouco tempo; preciso de o ser, hei-de o ser . Vou para a America , para a Asia ... sei eu lá para onde vou ? Vou para onde me chamar a realisação d'este pensamento , d'esta vontade firme e inabalavel. Vou emfim para onde estiver a riqueza, para onde possa tornar-me rico em pouco tempo. Parto pois, e vou á ventura , sem saber mais de mim do que que preciso ser rico , que o quero ser e que, para o ser , cumpre-me abandonar a Europa, esta velha e infame devassa que a tudo se presta menos a emprezas como a minha. Aqui o poderoso tem amigos, o millionario tem parasitas lisongeiros, o infame embrazonado tem aduladores, o crime, emfim , o crime e a infamia tem bajuladores, com tanto que se avulte opulento , ao passo que a virtude e a honra morrem de frio e de fome, para ahi desprezadas a um canto , se por ventura se cobrem com os andrajos da pobreza , ou com os vestidos modestos da mediania . Quero ser rico ... quero ser rico , e hei-de o ser -- continuou elle insistindo n'esta ideia , e repisando-a uma e muitas vezes, -- quero ser rico, millionario , e hei-de o ser... hei-de o ser, porque o preciso, porque o quero. Meu pae legou-me a sua rehabilitação , e eu impuz-me esta obrigação , egualmente sagrada , que hei-de cumprir, custe o que custar . Desde que elle morreu , mal sabes Fernão, a transformação que soffri; custou-me primeiro muitas lagrimas occultas , depois as lagrimas azedaram-se-me em fel no coração . Aquelles factos desvendaram -me: vi hoje bem o que é o mundo ... Quero ser rico ... rico ... millionario ; e hei-de o ser, embora os meios. E quem pensa nos meios, tendo de viver aqui ? O caso é ser rico ... e hei-de o ser , hei-de o ser... em pouco tempo ...

Paulo balbuciou mais algumas palavras machinalmente , rodeando distrahido pelo quarto. Emfim dirigiu-se a mim :

« -- Adeus, Fernão -- disse-me elle -- dentro em dez annos voltarei ao Porto , rico ... millionario . Até então, adeus; não me esquecerás e por isso até então . Não me esquecerás, não -- repetiu , affincando fortemente n'estas palavras -- não me esquecerás; foste sempre meu amigo, e eras amigo leal e sincero . Eras... eras, que foste um dos quatro que acompanharam á ultima jazida o fallido e desprezado Francisco Ribeiro. Adeus, Fernão.

Assim dizendo, estendeu-me a mão, que eu apertei machinalmente entre as minhas, e achei fria como a de um cadaver. Depois dirigiu-se para a porta resolutamente , sem que eu o podesse embargar na sahida, que tinha a voz atada na garganta, e a garganta e a lingua secca e paralysada . Ao vel-o pôr a mão no fecho, fiz um esforço supremo e disse-lhe:

-- Paulo , onde deixas tua mãe e tua irmã ?

-- Em logar accommodado e por dois annos a coberto da fome. Velei por tudo, e antes de me despedir d'ellas, reduzi a dinheiro todas as joias que nos restavam , e deixei-as em estado de não precisarem de ninguem durante dois annos. Depois eu proverei. Não me perguntes mais por ellas -- accrescentou , calando-me assim a insistencia que via já a oscillar-me nos labios – não descubrirei a ninguem onde deixo a mulher e a filha do desgraçado Francisco Ribeiro . Não devem tornar a apparecer, senão quando eu voltar rico ... rico ... millionario ... Não insistas --- continuou exasperando-se -- esta resolução é tão inabalavel e meditada como todas as que tenho tomado depois que meu pae morreu . Ainda ha pouco o general Tovar me instou por todas as formas para o saber, mas nem a elle o disse , ném a elle, ao amigo intimo de meu pae, nem a elle a quem meu pae nos recommendou como filhos nos seus ultimos momentos. Nem a elle ... nem a elle ... não insistas ...

-- Raios de diabos ! E foi assim -- balbuciou o general, limpando uma lagrima -- Que diabo estás tu dizendo , Pederneira?

Pederneira, que tinha regougado sempre, desde que Fernão de Aguiar principiara a relatar a sua ultima entrevista com Paulo Ribeiro , fitou o general e respondeu rudemente :

-- Digo que fez elle muito bem , e que, pelo inferno! um valente como aquelle não se encontra duas vezes no mundo.

Todos os olhos se fitaram no veterano, que pelo modo de fallar parecia saber mais d'aquelle caso do que nenhum d'elles sabia . Mas elle sem lhe importar com a impressão que fizera, tirou um charuto da algibeira, petiscou no fusil, e poz-se a fumar , sem se dignar olhar para elles, e regougando sempre sem que se lhe podesse perceber palavra.

Fernão de Aguiar fitou-o por alguns minutos, depois continuou a sua narração .

-- Paulo -- disse elle -- tinha-se aproximado de novamente no fogo de me calar de todo a pergunta que lhe fizera , e que bem vi que lhe doera rijamente. Depois das ultimas palavras , ficou a olhar para mim. Não me sentia com animo de insistir , mas tinha ainda uma pergunta a fazer-lhe e que me parecia de honra minha dizer-lh'a .

« -- Paulo -- principiei eu primeiro .

« -- Já to disse -- replicou elle exasperado -- não insistas. A minha familia morreu, até que eu volte. Até então não quero que esmole beneficios de ninguem ... de ninguem , percebeste ?

« -- Respeito o teu segredo, amigo, apezar de que me doe, como nada era capaz de me doer assim . Desculpa-me, porém , mais uma pergunta . E se morreres?

« -- Se eu morrer ? -- disse elle, fitando-me por um momento -- Eu não morro -- accrescentou finalmente -- não morro , não; quero ser rico ... rico ... millionario ... Mas se morrer ? Se morrer, ellas te procurarão, e mais a elle, ao general.

Assim dizendo, Paulo estendeu-me outra vez a mão.

« -- E Luiza ? -- balbuciei eu .

Paulo descorou como um morto , e assim ficou diante de mim sem dar palavra. Por fim replicou em voz abafada:

« -- Luiza ? ... Quero ser rico . . millionario , e está tudo dito . Hontem fui a casa de Vasco de Noronha, e perguntei por elle ; uma voz , a d'elle, respondeu do alto da escada que não estava em casa, e o criado fechou-me redondamente a porta na cara . Fiquei colado defronte d'ella, como se um raio me tivesse assombrado. Por fim sahi; ao voltar a esquina , abriu -se de repente uma janella da casa, e aos pés cahiu-me um papel amarrotado; levantei-o , e li na letra de Luiza um convite para apparecer á meia noite pelo lado do jardim . Fui, e ella já me esperava . Chorou muito ; eu tambem chorei, mais no coração que pelos olhos não podia . Disse-me que me esperaria os dez annos, leal e pura ... leal e pura. Jurou-o pelo nosso amor e pela alma de meu pae. Esperará ? Creio que sim , por que creio que me ama...

Paulo fez então uma longa pausa, e ficou durante ella mergulhado n'um completo esquecimento de mim e de tudo que adorava: por fim passou as mãos por cima da fronte e balbuciou:

«- Dez annos!... dez annos! ... Adeus, Fernão, até d'aqui a dez annos.

Assim dizendo, voltou-me as costas, e sahiu .

-- Nunca mais soube novas d'elle , nem pude achar o rasto de D. Manoela e de Adelaide. Que será feito d'ellas , Deus meu ! Pobre Adelaide ! Pobre Adelaide ! ...

E o misanthropo, pallido como um defuncto , carregou a sobrancelha , e retomou o aspecto negro e repulsivo que tinha, quando Francisco Tovar o encontrou no café Portuense..

-- Por um milhão de raios! -- exclamou então o general, batendo com o punho cerrado sobre amesa estas exquisitices tem-me tirado vinte annos de vida. Por que diabo aquelle maldito Paulo me não quereria dizer o que era feito da minha afilhada ? Que estás tu a resmungar, Pederneira ?

-- Digo que fez elle muito bem .

-- Mariola ! Quebro-te a cabeça !

-- É como lhe digo -- replicou o veterano aferrado casmurramente á primeira opinião .

Francisco Tovar não lhe despregava os olhos de cima; parecia desconfiar cada vez mais de aquelle socego pertinaz, com que elle defendia o procedimento de Paulo.

-- Fernão -- disse finalmente o moço , depois de alguns minutos de silencio -- já que cumpriste lealmente comnosco, lealmente te vou dar as novas que te posso dar do nosso amigo. Estive com Paulo nos mares da China, encontrei-o rico ... millionario , e posso-te affirmar que em breve o verás em Portugal, em circumstancias de poder comprir o legado que o pae lhe deixou .

A estas palavras o general e Fernão fitaram n'elle os olhos com anciedade. Pederneira tambem o fitou , mas de nesga, á surrelfa e como desconfiado, e com tantas mostras de o estar que, encontrando pregado em si o olhar firme do moço , desviou o seu surrateiramente , e poz-se a limpar cuidadosamente a cinza da ponta do cigarro. Francisco sorriu-se, com ares de quem resolveu o problema, e depois voltou-se para o pae e para o amigo , e continuou :

-- Pouco mais de um mez depois de eu chegar a Macau , onde o governo me mandou estacionar com a minha fragata , o commandante da estação naval in gleza de Hong-Kong pediu-nos o auxilio das nossas lorchas de guerra para varrer de aquelles mares uma enorme armada de piugos e povaus chinezes, que o infestavam havia dias. As lorchas partiram, e eu fui na conserva d'ellas, para o que désse e viesse. Dias depois encontramos a armada dos piratas, sem ainda termos encontrado um só navio de sua magestade britannica. Era uma chusma enorme de embarcações pequenas e grandes, que alterosas e sem temor se dirigiram para nós, e cercaram corajosamente as nossas pequenas lorchas e a minha propria fragata. Rompemos então sobre elles um fogo aturado de artilheria, e ás bombardadas lhe arrombamos e mettemos no fundo un não pequeno numero de navios. Apezar d'isto os chins não davam mostras de afracar, e depois de tres horas de acceso combate e de percas não pequenas, pelejavam com o mesmo ardor do principio. Sobre tudo a minha fragata era a quem mais elles pareciam querer. Logo no principio seis piugos dos mais alterosos tinham vindo prolongar-se commigo, mostran do querer abalroar-me. Confiado na inexperiencia de aquella gente, deixemos aproximar ao alcance da artilheria, e ás primeiras bandadas metti um d'elles no fundo, e desarvorei outro quasi que inteiramente. Mas os quatro não desanimaram, e começaram a servir-me com a artilharia de forma, que por mais de uma vez imaginei que eram manobrados por artilheiros europeus. Sete horas depois o combate feria-se tão acceso e travado como no principio. A todas as minhas manobras, os chins respondiam de forma que nunca os pude alcançar em cheio com a artilheria da fragata e as lorchas, cercadas de uma multidão infinda de grandes e pequenos navios , mal dirigidos é verdade, mas que pareciam pullular do seio do mar á medida que se iam mettendo alguns d'elles no fundo , não me podiam auxiliar de forma alguma. Já pelejavamos, não desesperados, mas cansados. De repente vejo apparecer no horisonte uma pequena vela , que foi avultando rapidamente e com tal ligeireza que meia hora depois prolongava-se com o lugre onde andavamos ás bombardadas com os chins. Era uma pequena escuna, esguia , elegante, de mastros tombados, e tão ligeira e tão rapida de movimentos que não parecia navegar, mas sim escorregar sobre as ondas. Trazia muito pouco panno desfraldado, e a ré uma bandeira singular era negra e no meio uma caveira pintada de branco cercada de um resplendor da mesma côr.

« -- Que navio é aquelle ? -- disse eu a um marinheiro velho que servia ha muitos annos n'aquelles mares .

« -- É o corsario -- respondeu elle -- é o corsario ... Que diabo ! -- interrompeu então Francisco Tovar -- sempre me esquece o nome! É o corsario ... é o corsario ... Pelo inferno! não posso atinar como nome!... O corsario ...

-- Hadgi, o corsario Hadgi, raios de diabos ! – exclamou o Pederneira , atirando com força a ponta do charuto .

-- Hadgi, é verdade . Mas como diabo lhe sabes tu o nome, Pederneira ?

-- Li-o na gazeta.

-- Leste-o na gazeta ! ... -- - disse o moço Tovar sorrindo e abanando com ironia a cabeça -- Ah ! velho , velho , que não me fallas verdade. Descubri o teu segredo...

-- Eu não tenho segredos --- exclamou brutalmente o veterano.

-- Mas o corsario Hadgi -- replicou com ironia o moço Tovar --- pediu-me que, se relatasse o nosso encontro a meu pae, o fizesse diante do... Pederneira.

– Raios de diabos ! -- regougou o Pederneira arremessando e fazendo sobre si um movimento rude e sacudido, com que ficou de costas meio voltadas para os trez amigos.

Francisco Tovar sorriu-se , e piscou os olhos a Fernão, que olhava esta scena espantado, sem poder comprehender a razão da ironia do moço nem do desapontamento do veterano.

-- Hadgi -- continuou d'ahi a pouco Francisco Tovar -- mal reconheceu os contendores do combate, içou no mastro grande a bandeira portugueza , e mettendo-se entre os chins, serviu-os de forma, que uma hora depois batiam-se em debandada, deixando em nosso poder vinte e seis dos seus melhores piugos e povaus. Démos-lhe caça por algumas horas, em que perdi de vista o navio do corsario . Pouco depois tornou a apparecer , e veio fundear prolongando-se com a minha fragata. Chamaram então de lá , e disseram em hespanhol, se eu podia receber immediatamente o capitão. Respondi que sim , e d'ahi a pouco lançaram um dos bateis ao mar, e o corsario saltou para dentro , e fez remar para a fragata . Trazia vestido um riquissimo trajo grego e na cabeça uma touca foteada á moda da India . Em breve atraicou o meu navio , e appareceu no tombadilho. Mal nos encaramos, Hadgy fez-se pallido como um cadaver, e eu recuei dois a tres passos atraz admirado.

« -- Paulo ! -- balbuciei eu, sem o poder desfitar .

« Hadgi ergueu a mão, como a mandar-me calar; depois disse-me serenamente em hespanhol:

« -- Commandante , venho a vosso bordo , para dividirmos a presa; metade é minha e metade é vossa . Ás vossas ordens para quando quizerdes fazer lealmente a partilha.

« -- Desçamos á camara -- disse-lhe eu .

E desci e elle atraz de mim . Dentro da camara , voltei-me e fitamo-nos de novo.

« -- Paulo ! -- exclamei eu , mas sem me poder conter mais, e lançando-me nos braços d'elle .

« -- Francisco ! -- replicou elle apertando-me rijamente contra o coração.

-- Hadgi, meus amigos, o corsario Hadgi era nada menos que Paulo Ribeiro.

-- Raios de diabos! -- exclamou o general, dando ruidosa expansão á sua alegria -- Viva ! Viva ! Ainda o hei-de tornar a abraçar!... Abaixo Badajoz !

-- Paulo . .. corsario ! .. . -- disse cada vez mais carregado Fernão de Aguiar -- E que te disse elle ?

-- Disse-me que estava millionario , depois de ter sido caixeiro no Rio de Janeiro , explorador de oiro na Australia, flibusteiro no isthmo de Panamá, contrabandista de oiro na Sonora, pirata no mar da Arabia , negreiro na Zambezia e na Havana, e por fim corsario nos mares da China. Eis aqui o resumo da historia d'elle .

-- Paulo ... negreiro ! -- exclamou Fernão de Aguiar .

-- Mas millionario , rico ... rico... a mais não poder ser, millionario , como te disse que havia de o ser . Que diabo! e isso que me importa ? Em dez annos não se ganham milhões, pela mansa , e Paulo carecia de ser millionario em dez annos. E que importam os meios? A questão é tel-os. Quando embarcou , Paulo já ia decidido a tudo, mas a brisa do mar varreu-lhe da memoria os ultimos escrupulos. Não ha nada como a má vida das tempestades, para curar a molestia do cavalheirismo; la correm ares muito cheios de bom senso . Poucos são os que não aproveitam com elles , sobre tudo os que teem bem inpresso na memoria qué cá em terra aperta-se com vaidade a mão de um infame, comtanto que essa mão cheire a oiro .

O rosto de Fernão de Aguiar tornou-se cada vez mais sombrio .

-- Até elle !... até elle !... -- balbuciou distrahido e com o rosto allucinado.

-- Ai que estás louco varrido , meu pobre Fernão – disse então Francisco Tovar, sacudindo-o pelo hombro -- deixa-te de asneiras, e ouve o fim do meu recado .

-- Até elle ... até elle .. . -- balbuciou o misanthropo, sem dar attenção.

-- Homem , pelo inferno, queres ou não ouvir o recado que o corsario Hadgi me deu para te dar?

-- E que me importa a mim com o negreiro e com o pirata ? Mas, emfim , diz lá.

« -- Se chegares a Portugal primeiro que eu -- disse-me elle -- procura Fernão de Aguiar , e diz-lhe que o corsario Hadgi é Paulo Ribeiro, e que Paulo Ribeiro está millionario , e que os dez annos estão a acabar» -- Perguntei-lhe então se sabia noticias de Luiza ; fez-se negro e os olhos chisparam de colera concentrada, e respondeu-me com mau modo -- «Não me falles d'essa mulher» -- Da sua familia disse-me sorrindo , que lhe não tem escripto ha seis annos, mas que sabe, por via de um intimo amigo que deixou no Porto , homem do povo, e velho militar , que nada lhe falta , é que é lealmente protegida por um amigo intimo que tem desde a infancia. Depois accrescentou -- Quando narrares a teu pae e a Fernão a nossa entrevista , não o faças sem que esteja presente o nosso velho Pederneira.»

Ao soltar estas ultimas palavras, a que dera de proposito um tom significativo, Francisco Tovar soltou uma grande gargalhada, fitando maliciosamente o veterano. Fernão de Aguiar comprehendeu de repente toda a significação de aquella mimica expressiva.

-- Então és tu o confidente de Paulo ! -- exclamou elle fitando o veterano -- diz-me onde vive D. Manoela e Adelaide?

-- Como! ... Pois! ... Raios!. .. -- exclamou o general ainda indeciso se tinha ou não bem comprehendido o poeta .

-- Pois isto é clarissimo, general, exclamou elle. -- Pois quem é o velho amigo , o homem do povo, o veterano, que o informa do Porto , senão aquelle diante de quem elle pediu a Francisco que narrasse o seu encontro com Hadgi?

-- Raios de diabos! E nunca me disse nada! -- exclamou o general, batendo com o punho cerrado na mesa -- Patife ! Mariola ! Já para alli, diga alli tudo. Raios de diabos ! Quebro-te a cabeça !

-- Pelo inferno ! -- exclamou brutalmente o veterano -- que diabo de embrulhada é esta ? Que sei eu cá de corsarios nem de Paulos? Cem diabos!

-- Raios de diabos! Quebro-te a cabeça ! Diga já ... diga já ... Quebro-te a cabeça !

E assim dizendo, o general empunhou , abafado de raiva , a bengala que lhe servia de moleta . O veterano ergueu-se e resmungou furioso :

-- Mil diabos! -- exclamou rudemente – Já sou velho para comedias. Vão mangar com os diabos que os carreguem .

E assim dizendo, atirou-se pela porta fora , arremessando-se com força sobre o batente .

-- Raios de diabos! -- regougou o general, pondo-se a pé com a bengala empunhada.

-- Socegue, meu pae ; onde é que vae? --- disse-lhe então Francisco Tovar, pondo-se-lhe de diante .

-- Raios de diabos ! Anda, dize tudo ... -- balbuciou o general fulo de raiva .

-- Mas dizer o que?

-- Quebro-te a cabeça ! Onde está a minha afilhada ... e ... . a D. Manoela ... Cem diabos !

-- Mas se elle o não sabe ? Paulo não me disse que lh'o tinha confiado a elle .

-- Pois então ... Cem diabos?

-- São meras suspeitas, general ---- disse do lado Francisco Tovar.

O general aquietou-se, e o Pederneira foi chamado de novo para a sala , onde jurou por todos os santos do ceu, e por todos os satanazes do inferno, que nada sabia acerca da familia de Paulo . Com isto o general ficou socegado, e continuou a deplorar a sua completa ignorancia áquelle respeito .

-- Pois sim , sim -- dizia Francisco Tovar ao ouvido do poeta , quando este retirava para casa -- o velho jurou «palavra de soldado» ; mas apezar d'isso estou na mesma. Paulo nada me disse especificadamente a este respeito ; mas do que lhe ouvi, e de tudo que o Pederneira deixou ver, tiro em conclusão que é com elle que se corresponde no Porto .

-- Creio que não te enganas -- replicou o poeta . É preciso fazel-o fallar.

-- Para que ? Mais mez menos mez, Paulo deve chegar. Pouco ou nada, pois, adiantamos, e perdemos o merecimento de lhe respeitar o segredo até final. Demais conheço a fundo o nosso velho, e se prometteu segredo, guardal-o-ha ainda que o leve Satanaz. É tão fiel como casmurro ; ninguem lhe arrancará palavra , ainda que lhe ponham ao peito um bacamarte carregado até á bocca.

Os dois amigos separaram-se , depois de convencionar que esperassem pela chegada de Paulo para saber de Adelaide e de D. Manoela . O poeta jurou tambem que visitaria diariamente o general e sahiu meditando uma resolução que entendeu não dever communicar a Francisco Tovar.

É, porém, necessario que o leitor saiba desde já que Fernão de Aguiar não era sincero, quando jurou ignorar onde paravam Adelaide e D. Manoela. Ninguem o sabia melhor do que elle, mas a ninguem tinha até então descuberto o segredo da existencia da familia de Paulo. Os meios por que elle o descubriu, e as razões por que apparentava ignoral-o, serão conhecidas mais adiante.

III

Luiza de Noronha, depois da morte do marido, ainda não tinha mudado de amante effectivo.

Dois annos antes d'esse acontecimento , Luiza, assistindo no Minho a um baile, viu n'elle um nioco de figura esbelta e olhar altivo e audacioso, mas de maneiras extremamente delicadas e sisudas, que apezar de muito novo, era tratado por toda a gente com consideração e com respeito . Perguntando acerca d'elle , soube que se chamava Nuno de Athayde, que tinha vinte e trez annos de idade, e que era filho de um rico negociante de Vianna e de uma senhora de familia nobilissima e ainda aparentada com a d'ella . Este moço era sobre tudo distincto pelo extremoso amor que tinha , a seu pae, já viuvo , pela extrema seriedade de sua vida, e pela sua vasta erudição e amor pelo estudo da historia e da litteratara antiga .

Luiza quiz que lhe apresentassem o seu sisudo parente . Quatro mezes depois o pae de Nuno de Athayde era já morto , e elle era um homem airado, um louco varrido que vivia no Porto , amante effectivo de Luiza.

Durante estes dois annos, Luiza foi-lhe infiel pelo menos duzentas vezes; mas, apezar d'isso e da vida extravagante e caprichosa que vivia , Nuno de Athayde não se desacorrentou da influencia que aquella mulher exercia sobre elle , gastou com ella sommas fabulosas , amparou-a contra as perseguições que a velleidade inspirava ao miseravel com quem o pae a casara , e agora, quatro mezes depois da morte d'elle, é ainda o amante effectivo e privilegiado da filha de Vasco de Noronha.

Este facto e outros muitos a elle semelhantes, e aos quaes alludiram os amigos de Francisco Tovar na reunião do café portuense, pode fazer conhecer ao leitor a medida do conceito em que Luiza era tida por todos aquelles que a conheciam . So , pobre e desamparada de familia , cuja importancia doirasse aquella dissolução tão desacautelada da vida que levava, Luiza achou-se em pouco tempo o anathema da immoralidade de tarracha , que respeita ou fulmina segundo a importancia das condições sociaes de aquelle que se torna no tavel por qualquer circumstancia . Se Luiza fosse rica , ou se vivesse ao amparo do nome de uma familia poderosa , a vida desregrada que vivia seria apenas boquejada em segredo, mas ella recebida e protegida pelos moralistas corruptos, que sentem coragem para fulminar a má vida e a deshonra , quando a vêem na casa do pobre e desamparado de importancias sociaes . Mas como era pobre e abandonada da familia , Luiza viu-se repellida em toda a parte ; as suas loucuras tiveram a publicidade da má lingua desenfreada de respeitos, e a pobre filha de Vasco de Noronha viu-se desprezada e apontada como a mais vil das prostitutas, até por aquellas cuja vida era uma historia asquerosa de prostituição hedionda, mas tolerada ao vil preço da sua valia social.

Luiza estava , porém , muito longe de ser o que d'ella se dizia em toda a parte . Não era uma mulher vulgar que se prostituia sem consciencia do crime, e arrastada unicamente pelos instinctos brutaes da materia e pelos ignobeis desejos desenfreados e do luxo . O espirito de aquella mulher era um mytho, que esta sociedade corrompida e que vive de apparencias e por ellas julga e decide, não sabia comprehender , e não o quizera , ainda que podesse, porque fazel-o seria condemnar a sua vileza e a sua corrupção.

Luiza era uma d'estas pessoas de quem se pode dizer com razão que a alma nunca fez completa sociedade com o corpo. O sentimento de aquella mulher era delicado até á ultima exaggeração da poesia . Nascera com esse desejo vago e indefinido, que leva a alma atraz de um amor ideal de que precisa para aquietar-se, e que a absorve de talmaneira que a vida é quasi uma abstracção continuada, e quasi exclusivamente da méra responsabilidade do corpo.

Até aos dezeseis annos, Luiza vivera debaixo da pressão de dois unicos sentimentos -- O amor ideal encarnado em Paulo Ribeiro , e o receio febril de o perder, representado nos factos da astucia maliciosa que o pae lhe fazia acreditar necessarios para ligar eternamente a si o homem que era a realidade de aquelle seu anhelo de amor. Quando a catastrophe que afundou a familia Ribeiro , a despertou rudemente de aquelle sonho de felicidade, Luiza achou a solidão dentro em si, e sentiu a ancia e o desespero febril do homem que se acha de repente em ermo vastissimo, de que lhe é preciso sahir, e para sahir do qual não sabe o caminho que hade tomar.

Dez annos ! Esperar dez annos, e ao fim d'elles um futuro incerto , e durante elles o remordimento pungente e continuo de aquelle sentimento indefinido, mas imperioso, de aquelle espinho que lhe picáva na alma, de aquella incerteza que sem cessar lhe bradava -- caminha , caminha.

Era impossivel a espera. Paulo fôra uma sombra que se projectara de aquelle amor ideal, uma chimera que afigurara a realidade, um sonho que desapparecera , deixando apoz de simais apurado ainda aquelle desejo vago e indefinido, aquella ancia de amor que via diante de si o vacuo, immensuravel como a eternidade, e no qual existia , mas em parte incerta , a realidade de aquelle desejo , a saciedade que havia de fartar aquelle amor e despontar aquelle espinho com que o instincto da felicidade ideal lhe anceára o espirito .

E Luiza poz-se a caminhar ao acaso, não arrastada pelas exigencias ignobeis da carne, não levada de rôjo na lama pelos vis desejos do luxo ; mas empurrada por aquella ancia , por aquelle instincto , por aquelle amor que lhe era preciso satisfazer , que podia mais do que ella , e com o qual não lhe era dado luctar com vantagem .

No rosto , nas maneiras, reluzia convincentemente aquelle destino fatal. Nos olhos, quando os fitava, havia uma luz vaga e desconfiada, que lampejava de quando em quando, nos momentos de esperança ; nas feições pallidas pelo soffrimento intenso , havia só a vida da materia , e as palavras que lhe sahiam dos labios tinham o som plangente de quem soffre continuamente, traduziam o amor como irradiação da alma e não como inspiração deaquelle a quem se dirigiam . Quando dizia que amava, e fitava os olhos no homem a quem o dizia , gelava-lhe na alma a audacia , e fazia-o sentir a necessidade de ajoelhar, opprimido por um sentimento vago de que diante d'elle estava um grande infortunio . Quando cedia o corpo, fazia-o sem consciencia e quasi que sem o sentir . Cedia-o por compaixão de quem via soffrer por amor d'ella , e , no fervor do arrebatamento que a posse inspirava aos amantes, fitava-os com um olhar gelado e abstracto e com um sorriso triste nos labios.

De quando em quando despertava para o mundo , e então , alma energica e inspirada pela altivez da intelligencia , remexia-se com rancor e com raiva, e vingava-se de tudo o que elle lhe fazia soffrer, insultando-lhe a moralidade refalsada com a franqueza da devassidão. Então é que vendia o corpo como mercadoria vil, então é que trocava a honra pelo luxo , então é que abusava do amor para corrompel-o até as ultimas fibras.

Este é que era o verdadeiro caracter de Luiza de Noronha. Quantas não vemos por ahi assim , tão mal reputadas como ellas, tão mal comprehendidas , e tão desgraçadas tambem !

Um pae desnaturado que mercadeja com o futuro da filha, não para lhe conseguir a felicidade, mas para conquistar para si proprio uma posição social e commodidades que não tem ; um marido infame que , depois de illudir a ancia de um amor de uma pobre menina, dá em troco d'elle á esposa a brutalidade da estupidez, e transige com a deshonra a ponto de cruzar os braços ao vêl-a escorregar pelo abysmo para onde elle proprio a empurrou -- serão por ventura coisas difficeis de encontrar n'este mundo ?

Fóra porém com as moralidades, que a epocha não vae azada para tanto . Melhor eu escrevera quatro chalaças truanescas que fizessem rir a gentalha, e déssem lucro ao editor, do que memettesse a dizer verdades, que no fim de contas não me dão proveito nem gloria , e que podem mover por ahi algum queixoso a esperar-me á esquina de uma rua, e quebrar-me a calhau a cabeça , que de outra forma, benza-os Deus, cara a cara, não se mettem de certo em entejos.

Mas quod scripsi, scripsi -- Saia o que saír ... não borro a escriptura.

Luiza de Noronha habitava n'uma elegante casa ao rez do chão, ahi para a rua da Restauração. A casa estava mobilada com luxo verdadeiramente exotico , e revelava o bom gosto que tinha presidido á mobilação .

Eram dez horas e meia da noite ; Luiza acabava de chegar do theatro italiano. A filha de Vasco de Noronha, aos vinte e seis annos, faz salientissima differença do que a vimos aos desezeis em casa de Francisco Ribeiro. Então era uma mulher creança, franzina e delicada , caminhando para o completo desenvolvimento ; hoje é uma mulher, em toda a realeza da mais extremada formosura , alta , airosa e porte verdadeiramente de rainha.

Luiza está sentada n'uma volteriana, no seu quarto de vestir, junto de uma pequena banca de mogono, sobre a qual arde uma serpentina de prata , junto de um tinteiro do mesmo metal, e rodeado de differentes papeis e livros espalbados a granel.

Luiza está ainda vestida de passeio ; tem as mãos cruzadas com desalento sobre o regaço , e a cabeça pendida para o seio . Sobre as mãos vêem-se as lagrimas que insensivelmente se lhe desprendem dos olhos. Aquella meditação não era, porém , um esquecimento de si propria e do mundo, semelhante aquellas em que tantas vezes a alma se lhe desvairava e fugia atraz da anceada idealisação. A esta presidia agora um sentimento todo real; no espirito referve-lhe um anceio doloroso , que lhe faz recordar vagamente o passado e a põe indistinctamente diante da realidade da vida que vive .

-- Sempre aquelle homem --- pensava ella -- sempre aquelle homem ... sempre ... sempre ; e sempre aquellas palavras frias, severas, aquella ironia accusadora , e aquellas maldisfarçadas allusões ao passado!... Quem será elle ? Que lhe fiz eu para me perseguir assim ? Que destino fatal o liga a mim como um juiz , severo, tremendo , cujas palavras mysteriosas me despertam n'alma terrores indefinidos e me fazem arrebentar, a pezar meu, as lagrimas pelos olhos fóra ? Que mysterio haverá aqui ? ...

E Luiza olhou como a medo uma carta fechada que tinha poisado sobre a meza , e arredou-a machinalmente de si.

Alguns minutos depois abriu uma das gavetas da banca e tirou para fóra um album de folhas doiradas , que era o livro onde archivava os seus mais intimos pensamentos e recordava os factos mais dolorosos da sua vida e as considerações que lhe suggeriam .

Abriu-o na ultima pagina que estava escripta , e leu n'elle o que occorrera havia apenas dois dias. Dizia assim :

-- « Vi-o outra vez... aquelle homem . Sempre o mesmo... frio , indefinivel, mysterioso . Fallou-me. As palavras que disse , rescendiam como sempre a compaixão do algoz que deplora a victima no momento em que a vae justiçar. Senti-me gelada de medo, borbulhou-me na fronte um suor frio , e perdin um momento a vista dos olhos . Ha n'aquelle mysterio alguma coisa de muito terrivel, que o coração presente e que o faz ancear por instincto .

-- « Quem será elle ?

-- « N'aquellas feições ha alguma coisa que conheço . Vi-o já algures ; mas onde ? Será... Oh ! não , não ; não pode ser. O outro tinha o coração de um anjo , era uma grande alma que se compadeceria de mim , e que era incapaz de me matar lentamente , fazendo lampejar diante do meu coração as recordações do passado. Não , não é elle ... porque elle nunca existiu , porque elle foi um sonho de ventura, um sonho e nada mais .

-- « O passado ! ai ! o passado !.. . Lembro-me que fui feliz , que houve tempo em que não sentia isto que sinto , que vivia tranquilla e sem este anceio que me mata . E como findou tudo isso ? Não sei. Ai o passado ... o passado foi de certo um sonho ; nunca vivi outra vida senão esta , eu fui sempre desgraçada.

-- «Fui-o e hei-de sel-o até morrer . Sinto que me falta um não sei què, e isso que me falta não o posso encontrar em parte alguma. E comtudo não posso viver sem achal-o , porque a vida assim não é vida, é a solidão, é o escuro, é o desespero , é tudo menos vida, porque a vida é a felicidade, e a minha felicidade depende d'essa idealidade indefinida, cuja realisação não sei onde existe ... não existe talvez n'este mundo .

-- « Será o amor ? Mas eu não posso amar ; tenho sido amada por tantos e ainda não amei ninguem !... Minto , amei já ; e d'esse tempo é que me recordo que não sentia isto que sinto , que não me pungia esta ancia , que vivia feliz e alegre . Mas esse amor foi um sonho , punca existiu . Foi um sonho, nada mais. Desgraçada de mim , que só posso achar a felicidade sonhando, e que esse sonho não tornará de certo outra vez.

-- « E comtudo aquelle homem mysterioso existe , e a existencia d'elle significa o quer que seja para mim . O passado , ai, o passado ! Significará por ventura alguma recordação d 'essa epocha? Não seria aquillo tudo um sonho ? Existiu esse tempo ? Será o amor o norte para onde esta ancia vaga e incerta me volta de continua a alma ?

-- « Esta tarde eu estava sósinha, sentada debaixo das arvores do bosque do jardim de S. Lazaro. De repente senti ruido, atraz de mim . Era elle ... frio , impassivel e severo como sempre.

-- « Fitei-o allucinada e cheia de medo.

-- « Luiza -- disse-me elle n'um tom gelado como sahiria dos labios de um cadaver, se por acaso fallasse -- em que estás pensando ? Porventura estas folhas viçosas de verdura , que a primavera desabrocha das arvores , fazem-te recordar que os annos succedem aos annos, e que o tempo, rodando sobre o campo infinito da eternidade, faz e desfaz esperanças, consume e reconstrue acontecimentos uns apoz outros, como as estações succedem ás estações, e os homens que nascem succedem aos homens que morrem ?

-- « E depois de um momento de pausa continuou :

-- « Ai, Luiza , ha dez annos o que eras tu ... . e o que és hoje ! Ha dez annos ! Sobre as vagas do mar do oriente deslisa a esta hora ligeiro navio que transporta para as costas de Portugal uma esperança ... um odio ... uma vingança ... Que poderá elle transportar, Luiza ? Responde ... Não o ousas fazer ? Não o sabes ? Não o podes ? Ai, Luiza, como te vejo !...

-- « E parou de novo ; e depois de alguns segundos em que me teve fascinada com a vista fria e serena pregada na minha, accrescentou :

– « Luiza , attenta em ti. Será tempo ainda ? Attenta em ti, Luiza , attenta ... attenta ...

-- « E partiu vagarosamente , deixando-me fulminada e louca de medo... de terror, não sei porque ... de terror intenso, que me punge com o remorso de um grande crime que ignoro .

-- «Meu Deus ! Quem será este homem ?

-- «Que significam aquellas palavras mysteriosas e incomprehensiveis ? ...

-- «Ó minha mãe, minha mãe, acudi-me!»

Era esta a ultima linha que estava escripta no album . Ao chegar a ella , Luiza soltou um grito cheio de terror, largou o livro e cobriu o rosto com as mãos.

Alguns momentos depois descobriu-o , deixando-o vêr santa e docemente resignado , é as lagrimas a correrem por elle mansamente ..

-- Que mal faria eu a Deus para me predestinar tão desgraçada ! -- disse ella por fim , continuando em voz alta a meditação interior em que ha pouco estivera mergulhada -- Mas é o meu destino ; cumpre esgotar o calix até ás fezes .

Apanhou então o livro, abriu-o e tomou do tinteiro uma penna.

-- Hoje são... 23 de março -- disse ella . E escreveu no alto da pagina .

-- 23 de marco.

E estacou de novo, e a penna cahiu-lhe machinalmente da mão.

-- 23 de março ! -- - repetiu ella como a medo -- 23 de março ! É verdade ... Faz hoje dez annos que Paulo ... partiu . Dez annos!... dez annos !... Meu Deus ! Será elle ... será elle ?

E levantou-se lentamente, pouco e pouco , como um cadaver erguido pelo galvanismo, com os cabellos eriçados, a vista vaga, as feições decompostas, e as mãos contrahidas e levantadas á altura da cabeça .

Deu então com os olhos na carta que ha pouco arredara de si. Soltou um grito e tomou-a. Aquella carta fôra-lhe arremessada para dentro da sege , ao sahir do theatro, por aquelle homem mysterioso .

-- Será elle... será elle ... -- balbuciou a desgraçada com os olhos fitos na carta fatal.

Rompeu de um relance o sobrescripto , e lançou os papel escripto que encerrava. Dizia assim :

Diz , Luiza , muitas vezes
Os olhos no ceu não fitas ,
Só estando, e não meditas
No triste futuro teu ?
E mil vezes não o esqueces
N'aquelle puro anilado,
Encontrando a inspiração,
Que te recorda o passado
Do teu pobre coração ?
Diz , Luiza , diz , então
Não te lembra aquella vida,
Tão formosa e tão garrida
De candura e puro amor ?
Não te lembra que perdeste
Aquelles com quem viveste
Em santa e meiga affeição ?
Os prazeres e alegrias
Não te lembram da innocencia ?
E do teu casto pudor
Os mil receios tão vivos ?
E aquelles sonhos festivos
E ao mesmo tempo anciosos,
Em que, a vez primeira , o amor
Agita o peito á donzella ?
Não te lembra a sorte bella ,
A que toda a mulher visa,
E que tu tiveste aos pés
Por um momento indecisa ?
Não te lembras, diz , Luiza ,
Do que foste e do que és ?
Ai que és ! ... Quem o dissera,
Quem antevêl-o podéra ,
Na vida ao vėr-te apontar
Tão pura e tão innocente ,
Tão pudibunda e formosa,
Como pura e branca rosa
Que, á primeira luz da aurora,
O virgineo seio inflora
-- Do botão desabrochado
Virgem flor, tão casta e pura,
Que é peccado maculal-a,
Que é peccado pôr-lhe os olhos,
Que é peccado até amal-a !

Ao chegar aqui, Luiza interrompeu a leitura. Deixou cahir as mãos com desalento , abafada em soluços e as lagrimas a deslisarem em torrente pelas faces abaixo. Na cabeça, e no coração agitaram-se-lhe em turbilhão todas as recordações que aquelles versos lhe despertaram , e a desgraçada, com a sombra do passado evocada diante de si, media com saudade e viva dôr o abysmo que a distanciava de aquelles tempos de verdadeira felicidade.

Momentos depois serenou-se , e continuou a lêr.

E hoje , ai hoje !...
A angelical candura
Por que trocaste tu, louca mulher ?
A que vil preço ao mundo revender
Ousaste, diz , insana, a virgem pura ?
A troco foi da divinal ventura ?
Do mundo achaste-a pois no revolver ?
Podeste acaso assim satisfazer
O que o desejo em illusões figura ?
Feliz és pois ? -- Bem vejo ; o mundo pára
Perante o teu poder, curva-se, e aos pés
Vaidades põe-te que fallaz prepara .
Mas o que valem ! diz , louca, não vès ?
Luiza, attenta em ti, olha, repara,
Um anjo eras então ... hoje o que és?

A estas ultimas palavras, Luiza soltou um grito estridente e cheio de angustia ; deixou fugir o papel, e cahiu desfallecida sobre a cadeira, cobrindo o rosto com as mãos.

-- Um anjo ... eras então ... hoje ... o que és? -- balbuciou ella -- Que sou ?.. . Que sou ?... Ó minha mãe... minha mãe...

E a desgraçada soluçava , abafada de lagrimas e quasi louca de afflicção e de dôr. Depois apanhou o papel, e continuou a lér:

Luiza, escuta ; vou contar-te um conto,
Que deves escutar, curvada a fronte
E a lingua muda,
Como se foras ante Deus, ouvindo
A voz que um dia hade accusar tremendo
Os crimes teus.
Um mytho encerra ; na consciencia busca
O verbo que o decifra temeroso,
E depois chora :
Luiza , ai ! chora , que chorar tu deves,
Se n'alma ainda te resôa o écco ,
Que repercute a fera voz que esperta
O pungir intimo.
I
Do mar do oriente sobre as aguas tumidas
Aos mais potentes reis contesta , ha muito ,
Bravo pirata o superior imperio .
Independente e grande, como o oceano,
E como as vagas fero, e irrital-as
O vendaval ousou , -- as leis insulta ,
Que dictar ousam com soberba estolida
De sobre fôfo throno, a quem por solio
Tem um navio a debater-se affeito
Com as vagas do mar, quando rebrama,
Do raio á luz e do tufão aos silvos,
A tempestade alli.
Seu nome é Hadgi;
Mil alterosas naus elle possue
E riquezas sem fim : da Australia o oiro ,
De Visapur e de Golconda as gemmas
E de Ceylão as transparentes pérolas,
Que dizem ser as lagrimas da aurora ,
Em grande copia tem em seu thesoiro.
Os seus navios sobre o mar percorrem
Impondo a lei que dicta ; os seus soldados,
Valentes como heroes, ante elle curvam
A indomita cerviz, que o consideram
Heroe entre os heroes.
Feliz tal homem ,
E mais que um ser feliz, quem ha no mundo
Que não deva julgar affoitamente ?
Aquillo tudo é d'elle ; o vasto imperio
Do mar onde navega, as grandes almas,
Que de alli a um só aceno a fronte curvam ,
Que impossiveis até commetteriam ,
A gloria , um grandenome, e a omnipotencia
Do genio , do talento , e mil riquezas
Que não téem fim nem conto -- - ah ! tudo é d'elle .
Quem mais feliz ha ahi? quem tem mais causas
Para trazer nos labios sempre o riso,
E dos olhos na luz mostrar ventura ?
E apezar d'isso o infortunio brilha-lhe
Na luz dos olhos; triste e melancholica
A face sempre tem ; já mais o viram
Sorrir uma só vez , des que percorre
Por sobre aquelle mar, em que domina ;
Estas palavras, abstractas, frias,
Ao dia muitas vezes, d'entre os labios
Jorram-lhe imperceptiveis , fita os olhos
Muitas vezes tambem para o occidente ,
Como quem busca perceber um porto.
Por entre o vacuo ao longe.
Então , se conta ,
Que aquelle homem valente , que nos perigos
Serena a face mostra , e que impossiveis
Commette tão seguro e tão sereno ,
Como quem despedaça fragil canna,
Amostra os olhos humidos de lagrimas
E dos labios lhe saltam , como a lava
Do seio do vulcão, estas palavras :
« Dez annos, ai, dez annos !»
II
Um dia amigo caro, amor de infancia,
E que de aquella vida conhecia
As phases e segredos, como o astronomo
Signala o curso aos astros, por acaso
Com elle se encontrou :
Fallaram muito , e muito segredaram ,
O passado saudosos evocaram ,
E cada um d'elles o que foi chorou ;
Mas do porvir em fim quando trataram ,
D'est'arte elle a conversa rematou :
« Jurei, hei-de cumprir. Em sacrificio
Á honra do meu nome devotei
Amor e patria por dez longos annos... !
Jurei-o, exige-o o brio , cumprirei.
Longe de tudo que dá preço á vida,
E sempre em mil receios a ancejar
Por tudo isso que é vida, e que está longe...
Deż longos annos hei-de assim contar ! ...
E contal-os, amigo, de hora a hora ,
De minuto a minuto em anciedade...
E contal-os a olhar um tempo infindo ,
Que do vacuo assemelha à immensidade !...
Dez longos annos !... .
Dez annos, ai ! dez annos de torturas ,
Dez annos de incerteza, de saudade !...
E um dia de pezar é mais que um seculo ,
Uma hora de agonia , é a eternidade !... »
Assim disse elle ; toda aquella gloria ,
Todo aquelle poder , vês tu , Luiza ,
Era nada; da palha qual o fumo
A brisa se desfaz, se desfazia
Perante a solidão que tinha n'alma.
Da ambição os prazeres,
Do fatuo brilho que treslouca o mundo,
Mulher insana, a realidade é aquella ,
Poder, riqueza e gloria , tudo é nada
São tortura e agonia , são o inferno,
Se carecemos de intima ventura ,
Do coração ainda sacrosanta,
A que ascender anhela a alma, como
A chamma ao ceu .
Dez annos o que são perante o curso
Veloz do tempo, que caminha rápido,
Como quem tem p'ra andar a eternidade ?
Dez annos o que são na vida humana ?
Apenas um momento -- que se olhamos
Acaso para traz se nos figura
O dia de hontem terminado, ha pouco .
E elle comtudo imaginava um seculo ,
O nunca terminar da eternidade
No curto e breve espaço , que a ventura
N'um relance atravessa !...
Mas não para o tempo
Segundo o receio
Que ao homem o anceio .
Da magoa inspirou .
Os dias rolaram ,
As horas passaram ,
Correram , voaram ,
E um anno findou.
Mais um , mais um outro
Mergulha no espaço ,
Correndo e não lasso ,
Voando ligeiro,
Mais outra e mais outra
Lá cáe, lá mergulha ,
E a ponta da agulha
Do ferrreo relogio
Sempre a caminhar ...
Mais outro , o penultimo,
E o tempo do ultimo
Começa a contar.
Um'hora ... mais outra . ..
Mais outra... mais outra ...
E d'esses dez annos
De lenta agonia
O ultimo dia
Começa a raiar.

O terror de Luiza tinha ido crescendo a medida que os versos iam terminando. Ao findal-os, ficou um momento como fulminada de medo.

-- E' elle ! é elle ! ... -- bradou então soltando um grito pavoroso de afflicção.

E a cabeça bateu-lhe desanimada contra a banca e o corpo começou a agitar-se n'um tremor convulsivo.

E d'esses dez annos
De lenta agonia
O ultimo dia
Começa a raiar.

Ouviu então repetir de junto da porta da sala , em voz abafada e cujo tom lhe parecia sobrenatural.

Ao primeiro verso , Luiza começára a erguer-se machinalmente ; ao ultimo voltou-se para o lado d'onde a voz sahia .

No limiar da porta estava um homem alto , magro e pallido , com a barba toda crescida e vestido desleixadamente.

Era Fernão de Aguiar, o poeta misanthropo.

Ao dar com os olhos n'elle , Luiza soltou um grito terrivel e cahiu de joelhos.

-- Paulo!... Paulo ! ... -- bradou ella com os olhos espantados de terror e estendendo os braços para aquelle homem que se lhe antolhava visão pavorosa e vingadora.

Ao ouvir aquelle grito , Fernão de Aguiar estremeceu e as feições retrataram-lhe a surpreza e a admiração da alma.

-- -- Pois isto é possivel? -- balbuciou elle , caminhando lentamente para ella , e não desfitando os olhos de aquelle rosto que exprimia mais agonia , do que mesmo terror.

-- Pois isto é possivel ! -- murmurou elle já a dois passos d 'ella , e parando.

-- Paulo ! Paulo ! -- exclamou ella com voz maviosa , apertando as mãos com afflicção sobre o peito , e com as lagrimas a correrem-lhe pelos olhos abaixo .

-- E que Deus o quizesse assim ! -- continuou o poeta com voz commovida, com os olhos cheios de lagrimas, e sem desfitar os olhos d'ella.

Esteve assim um momento , depois estendeu-lhe os braços, ergueu-a e sentou-a na volteriana.

-- Senhora D. Luisa --- disse então com a voz cada vez mais commovida, e aproximando o rosto ao d'ella -- repare bem em mim ; não me conhece ?

-- Paulo ! Paulo ! -- balbuciou ella .

-- Não , não sou Paulo ; repare bem . Por ventura tão mudado estarei que me não conheça ? Olhe bem para mim , repare. Não haverá ainda n'este rosto alguma coisa de um homem , que no tempo da felicidade chamava seu amigo , porque era o amigo intimo de Paulo Ribeiro ; de um homem que lhe agourou tantas vezes a felicidade, que tantas vezes lhe cantou o futuro em versos que não tinham fel ?

Luiza escondeu o rosto entre as mãos; depois passou-as pela fronte, fitou-o alguns segundos e balbuciou como assustada :

-- Fernão de Aguiar !...

-- Sou eu mesmo, minha senhora .

-- Fernão de Aguiar !! -- murmurou ella com os mais vivos signaes de terror, e querendo levantar-se .

-- Oh ! não tenha medo -- disse então o poeta , segurando-a por um braço -- Não sou um phantasma, sou a realidade ; sou Fernão de Aguiar em pessoa . As noticias da minha morte foram falsas ; eu nunca morri para aquelles que estimo.

Luiza fitou os olhos n'elle com um olhar prescrutador, e ainda duvidoso.

-- Sou eu , sou , minha senhora -- continuou o poeta – sou eu , não é visão, não é um phantasma, como a reapparição lhe faz recear ; mas eu mesmo, em pessoa, Fernão de Aguiar, com tanta vida e com tanta estima por v. exc. , como n'outro tempo me conheceu , sou eu que a persigo ha seis mezes com as recordações do passado ... eu mesmo... repare bem . Veja -- continuou elle, levando a mão d'ella junto do peito o coração palpita-me ainda, e a mão tem ainda o calor da vida. Escalda, não é verdade ? Mas escalda, porque a vida em mim é ha dez annos um rancor continuado ; porque hoje vivo apenas das lembranças de outro tempo , e a vida de quem não já tem presente , de quem vive apenas do passado, é fogo que escalda nas veias , e que incendeia o coração e a cabeça.

Ao ouvir estas palavras do poeta , Luiza fitou-o com altivez um momento , depois empallideceu como um cadaver.

-- Sou Fernão de Aguiar -- continuou elle -- Sou para v. exc.a o mesmo que era ha dez annos, o amigo de Paulo Ribeiro ; e v . exc .a não será ainda hoje o mesmo... para mim ?

Á pausa momentanea que Fernão tinha feito sem querer antes de pronunciar estas duas ultimas palavras, Luiza escondeu o rosto com as mãos, e começou a soluçar .

-- Oh ! sim Aguiar!... -- balbuciou ella com voz tão angustiada de afflicção e de vergonha, que o poeta sentiu a voz presa pela dôr na garganta e não pode responder de prompto .

-- Perdão, Luiza, perdão -- disse elle ajoelhando diante d'ella – eu não a quiz offender . Esqueçamos tudo até hoje, tudo, Luiza ; lembremo-nos de que nos estimamos como irmãos n'outro tempo... Permitte-me que a trate como então a tratava ?

Luizá não pôde responder ; enlaçou com os braços o pescoço de aquelle homem , encostou a cabeça ao hombro d 'elle, e poz-se a chorar , abafada em soluços.

Os olhos de Fernão estavam arrasados de lagrimas. Tomou com as mãos a cabeça de Luiza, beijou-a na fronte , e depois desembaraçando-se dos braços d'ella , ergueu-se e sentou-se.

--- Luiza -- disse então,aproximando a cadeira para perto da d ella -- socegue, e vamos a conversar como irmãos muito queridos que somos . Não nos recordemos do passado ; não , porque isso afflige-a , e afflige-me a mim . Não fallemos senão do futuro, é d'esse devemos fallar muito , é preciso que fallemos muito , e para fallar n'elle , é que Deus me inspirou a ideia de vir aqui hoje . Mas antes, responda-me, desengane-me de uma suspeita , que me punge e que me fere como um espinho. Não era verdade aquelle amor que tinha a Paulo ?

Luiza puxou para junto d'ella o album que estava aberto sobre a meza, e apontou a pagina, que acima copiei.

O poeta leu-a com as lagrimas a saltarem-lhe pelos olhos fóra , e depois de lêl-a, fitou os olhos em Luiza e contemplou-a cheio de dôr alguns segundos.

-- Não me enganei ... não me enganei -- balbuciou elle por fim , cobrindo-lhe asmãos de beijos e de lagrimas -- Ai! pobre anjo !

Depois ergueu-se machinalmente, e poz-se a passear na casa , abstracto e murmurando em voz baixa palavras inintelligiveis.

-- E que Deus o quizesse assim ! -- ouvia-se-lhe distinctamente de espaço a espaço. E os olhos scintillavam como dois ferros em braza , e os dentes rangiam uns contra os outros nos impetos de aquelle rancor blasphemo de espanto . Por fim parou diante de Luiza, e fitou-a um momento com um olhar negro e carregado .

-- Luiza -- disse elle finalmente -- Paulo Ribeiro está a chegar por mezes , por dias, por horas talvez...

Luiza fitou n'elle os olhos cheios de terror.

-- E Paulo Ribeiro é o Hadgi, o pirata ...

Luiza soltou um grito de terror.

-- E Hadgi, o pirata , interrogado um dia ácerca de Luiza , respondeu apenas : « Pelo inferno ! Não me fallem n'essa mulher !» E ao dizer isto, os olhos scintillaram-lhe odio , e a face denegriu-se-lhe como a de um demonio acorrentado a um potro , com à vingança a referver-lhe por toda a essencia de aquella existencia maldita .

Ao ouvir estas palavras, Luiza soltou um novo grito , e cahiu de joelhos. Fernão continuou alguns momentos a divagar pela sala , abstracto e sem dar pela agonia que torturava aquella desgraçada.

Por fim ergueu-a com carinho, e sentou-se outra vez junto d'ella .

-- Vamos, Luiza --- disse então -- vamos pensar muito no futuro, vamos meditar em como remediar o passado. Não pague o anjo as culpas... do destino .

Luiza encostou a cabeça ao hombro d'elle .

-- Luiza -- disse o poeta depois de meditar um pouco – comprehende bem o que é soffrer dez annos, as agonias da saudade e da incerteza ? Comprehende o que é ter um homem entre si e a felicidade um obstaculo de honra, sacrificar ao vencimento de elle todas as commodidades da vida, os carinhos e as lagrimas da familia , a honra e a propria consciencia , e depois de tão longa agonia e de tantos sacrificios, vir encontrar a felicidade destruida por um capricho e impossivel por causa ... Perdão, Luiza, eu não a quero affligir ; mas é preciso recordar todas estas tristes verdades , para lhe fazer apreciar bem qual será o procedimento de Hadgi, o pirata , inspirado pela consciencia dos soffrimentos e dos sacrificios do desgraçado Paulo Ribeiro .

-- Oh ! Fernão , Fernão, que me faz medo...

-- Medo não , Luiza ; aqui não ha de que ter medo , ha muito sobre que meditar para podermos remediar o passado.

-- Remediar o passado! Os impossiveis não tem remedio , as faltas realisadas não deixam de existir ...

-- Mas attenuam-se . Quando a Hadgi fôr dita sincera e francamente a verdade, a grande alma de Paulo Ribeiro ha-de perdoar-lhe e choral-a , Luiza.

-- E quem se atreverá a dizer-lh'o , Fernão ?

-- Eu, eu que lh'o direi com soluços e com a firmeza que ainda ninguem me contestou impunemente .

-- Mas o que lhe hade dizer, Fernão ? Hade dizer-lhe que atraiçoei aquelle puro amor com que nos amamos? que calquei aos pés a felicidade da minha vida! que me prostitui como infame? ...

-- Silencio , Luiza, silencio sobre o passado . Irei ter com Hadgi, e fallar-lhe-hei assim : -- Paulo , Luiza amava-te com um amor puro e santo ; tu eras para ella a felicidade, a realisação de aquella idealidade bellissima de amor e de ventura a que Deus lhe atrellou necessariamente a alma. Podias ter sido o homem mais feliz do mundo , porque talvez não houvesse outro a mor tão do fundo d'alma como aquelle . Mas o demonio da soberba tentou-te , e n'aquelle orgulho louco e vaidoso , sacrificaste-lhe tudo: sacrificaste-te a ti, a ella , aquelle amor e aquelle futuro. Quem é aqui mais criminoso? Ella que te amava, que te adorava como a realisação do seu destino, ou tu que sacrificaste o amor que lhe juraras, ao frenesi da tua vaidade satanica ? Responde Paulo , que direito imaginavas ter á constancia do amor de uma mulher, tu que te exilaste d'ella por dez annos, e que durante elles nunca lhe fizeste chegar uma palavra que a alentasse no meio de aquella solidão de alma, a que a condemnavas ? O des tino fadou o amor o norte da vida de aquella mulher e a ti a realisação , a unica realisação de aquelle amor, de aquelle sentimento indefinido e imperioso que a fez correr machinalmente atraz do destino de que eras a realidade. Entretanto que teve a consciencia da tua existencia, amou-te com todo o fervor de aquelle sen timento ; depois que desappareceste como uma sombra de diante da adoração de aquelle amor , a tua imagem tornou-se para ella um sonho, uma phantasia , e ella continuou a correr apoz aquelle destino imperioso, quasi convencida de que nunca tinhas existido, de que fôras apenas um visão de luz projectada pelo sol que ella adorava, mas que nunca chegou a encontrar. Que lhe has-de tu dizer , Paulo ? Que se esqueceu ? -- e não foste tu a causa d'esse esquecimento ? Que se deshonrou, que prostituiu aquelle amor ao demonio do luxo, que enfraqueceu diante das ignobeis tentações do dinheiro ? São crimes, são, Paulo ; mas que direito tens tu -- tu Hadgi, tu contrabandista de Sonora, tu negreiro das costas de Africa, tu pirata nos mares da China – que direito tens tu de a accusar de sacrificar a honra e a consciencia ás commodidades do luxo e ás tentações do dinheiro ? Paulo Ribeiro , quem será mais criminoso -- -- ella que teve por pae um homem cynico e depravado, ella que tu abandonaste sem attenções aos desvarios caprichosos e desatinados de um imperioso destino de amor, e ás tentaçõos que o dinheiro póde exercer sobre uma mulher pobre e acostumada a viver vida de millionaria; ou tu que tiveste um pae virtuoso , que tiveste em teu poder os meios de lhe vingar gloriosamente a memoria d'elle , de ser feliz e de a fazer feliz a ella , e que tudo sacrificaste ao orgulho satanico de te vingares pelo dinheiro ?

Fernão parou de repente. Luiza tinha-se arrojado nos braços d'elle , e apertava-o freneticamente ao coração.

-- Depois accrescentarei -- continuou Fernão de Aguiar -- Paulo , aquella mulher peccou, mas tu és maior peccador do que ella . Tu soffreste durante dez annos todas as torturas da incerteza, apurada pelo amor , mas espicaçada tambem pela vaidade e pelo amor proprio que soffria por si cruelmente; mas ella durante aquelles dez annos padeceu todas as agonias da consciencia da sua deshonra e do seu vilipendio , da agonia da recordação de aquelle amor que gosava e da agonia de aquelle sentimento intimo que a arrasta incertamente apoz a idealidade da ventura . Como vens tu a ella agora, Paulo ? Pirata , vejo-te a mão sobre o cabo do punhal; millionario , vejo-te sorrir para os teus milhões, meditando arrastal-a pela lama mais immunda do vilipendio . Pois olha, amigo, eu fui encontrar Luiza a chorar com o teu nome, nos labios, e, quando m'o ouviu pronunciar, vi-a acordar do que era, como quem acorda de um pesadello terrivel e vi-a olhar com desespero e com angustia para aquelles dez annos, atravez dos quaes o destino a arrastou machinalmente . Paulo Ribeiro, esquecimento para o passado, para o teu e para o d'ella , e amor ainda para aquella mulher ...

Luiza deu um grito , e cahiu de joelhos diante do poeta .

-- Oh ! não , não -- exclamou ella -- isso é impossivel. Entre mim e elle ha um abysmo; esquecimento para o passado , sim ; mas esquecimento tambem para mim . Eu morri para elle ; o amor de Paulo deve trajar eternamente luto por mim .

-- Mas não desejará ao menos, minha senhora, que elle ame a sua memoria ?

-- Oh ! sim , sim ... Mas será por ventura possivel?

-- É ... hade-o ser; Paulo tem obrigação de continual-a a amar assim ; mas para isso , Luiza , é precizo um grande sacrificio . Acha-se com coragem de o fazer. Luiza ?

-- Que é preciso que eu faça , Fernão de Aguiar ? -- disse ella com firmeza .

-- Depois de amanhã entrará para um convento , e a vida da sociedade findará eternamente para si.

Luiza estremeceu , e fez-se pallida como um morto .

-- Meu Deus ! -- bulbuciou ella -- então já não tenho futuro?

-- Tem , Luiza ; tem-o nas recordações deliciosas de aquelles tempos de innocencia e de amor, na memoria da felicidade que gosou na casta e pura affeição que a ligou áquelle homem .

-- E terei eu forças para tanto ? Tão nova ainda! -- balbuciou ella a tremer e com o rosto livido e arrasado de lagrimas que a escaldavam .

O poeta ergueu-se de um pulo, com as feições carregadas é severas, e com os olhos scintillantes.

-- Luiza, por Deus ! -- bradou elle – Estarei porventura enganado ? E' uma grande alma que me ouve , ou o espirito mesquinho de uma prostituta vulgar ?

Luiza endireitou-se com a altivez de uma rainha, e o rosto coloriu-se-lhe com soberana animação .

-- -- Estou prompta para tudo, saiba . Depois de amanhã entrarei n'um convento .

-- Graças.. . graças... anjo ! -- - exclamou o poeta cobrindo-lhe as mãos de beijos -- Depois de amanhã começará portanto a regeneração sublime de uma grande alma, que previne por ventura tambem um infortunio incalculavel.

-- Oh ! Fernão ! Fernão ! -- - exclamou a desgraçada arrojando-se nos braços do poeta, e escondendo no seio d'elle o rosto coberto de lagrimas.

N'este momento assomou à porta do quarto um moço esbelto e de figura elegante , mas pallido e de rosto macerado por todos os symptomas de uma vida dissoluta e devassa. Ao ver Luiza nos braços do poeta , os olhos scintillaram momentaneamente e as feições contrahiram-se-lhe com ferocidade. Mas aquillo não durou mais do que o espaço de um relampago, e deixou o campo livre a um certo ar de sarcasmo que lhe era habitual, apimentado agora por uma pronun ciadissima expressão de ironia escarnecedora .

Demorou-se um instante no limiar da porta , de pois vendo que não davam por elle, disse em tom escarnicador:

-- Sinto incommodal-os; mas, vejam lá. Se é preciso, não entro.

O poeta e Luiza voltaram -se ; o rosto d'elle exprimiu a colera mal reprimida, e o d'ella exprimiu primeiro a surpreza e depois o desalento de alma.

-- Luiza, quem é este homem ? -- disse o poeta , fitando-o com vista terrivel.

-- Bravo ! Luiza . .... Olá ! o negocio está adiantado -- disse o outro em tom de escarneo, e caminhando lentamente para ella ...

Luiza tinha-se desviado dos braços de Fernão, e ficára com os olhos no chão, como collada ao pavimento da casa .

-- Luiza , quem é este homem ? -- repetiu o poeta , avançando para elle.

-- E'... -- balbuciou Luiza, retendo-o por um braço ; mas, deixando-o de repente , cobriu o rosto com as mãos e poz-se a soluçar.

-- Adeus, Luiza , até depois de amanhã -- disse então o poeta apertando-lhe a mão -- O dia de hoje ainda pertence a historia do passado.

Assim dizendo, dirigiu-se altivamente para a porta , entre elle e a qual se interpunha o homem que o surprehendera .

-- Oh ! senhor... pelo amor de Deus! não se incommodem , eu nunca fui desmancha-prazeres...

-- Engana-se , senhor -- - disse o poeta , parando em frente d'elle -- vim aqui com um fim muito diverso do que pensa . A minha missão está cumprida, retiro-me portanto .

-- N'esse caso, permitta-me que lhe allumie ...

Assim dizendo, correu ao castiçal que ardia sobre a mesa, tomou-o , e voltou-se para allumiar a Fernão.

--- Fique, senhor --- disse Luiza , retendo-o por um braço .

Ao chegar à porta , o poeta havia parado .

-- Peço-lhe, senhor -- disse elle com altivez provocadora -- peço-lhe que não attribua a medo a minha retirada. Saio, porque quero , porque tal é a minha vontade. E se se acha offendido pela minha presença n'esta casa , saiba que me chamo Fernão de Aguiar, e que moro ao fim da rua da Rainha n.o ...

Ao ouvir estas palavras o moço cynico soltou uma gargalhada tão provocadora como a altivez de Fernão .

-- Oh ! com mil demonios !--- exclamou elle -- Isto é que é o melhor da festa ! Um phantasma ! Com mil pipas de cognac !... olhe, senhor phantasma, ou o quer que é, declaro-lhe sob a minha palavra de honra , que não me offendeu de forma alguma; porém como não tenho a certeza de que o meu procedimento seja avaliado da mesma forma por v . s.a , ou como lá no mundo das sombras se usa tratar, saiba que o meu nome é Nuno de Athayde e que moro na rua de Cedofeita n.o...

Fernão de Aguiar continuou collado ao limiar com as feições contrahidas pela colera e os olhos chammejando como os de um tigre nas trevas.

-- Agora sempre lhe vou allumiar, Luiza -- disse Athayde, com a naturalidade mais cynica possivel e tomando o castiçal.

-- Fique, já lh'o disse -- repetiu Luiza com firmeza .

-- N'esse caso ... -- disse elle , e poisou o castiçal.

Fernão de Aguiar desappareceu então a um aceno de Luiza. Nuno de Athayde lançou-se na volteriana rindo com estrepitosas gargalhadas, que de quando em quando mal podiam abafar totalmente um certo tremido com que a colera lh'as pretendia interromper.

IV

Nuno de Athayde tirou então da algibeira uma charuteira de ebano, accendeu um charuto que metteu na bocca , e, atravessando depois a perna direita sobre o joelho esquerdo e agarrando-se a ella com ambas as mãos por junto do tornezello , fitou Luiza , rindo com novas e estrepitosas gargalhadas.

-- Quem é este exquisito , Luiza ? -- disse elle por fim .

-- E' um amigo da minha infancia -- respondeu ella .

-- Oh ! pelo az de paus ! -- replicou elle -- não sabia que tinhas na tua historia uma parte tão poetica. Um amigo da minha infancia ! ... Que sublime e terna poesia !

-- Nuno !

-- Com um milhão de diabos ! -- continuou elle batendo com o punho cerrado uma forte punhada na banca. -- Um amigo da minha infancia ! Que sublimidade , de pensamento ! Já na infancia tinhas amigos, Luíza ! Que grande mulher foste sempre ! Já na infancia ! ...

-- E's injusto para commigo, Nuno ; conheço aquelle homem desde a infancia . Era n'esse tempo um moço elegante e senhor de uma brilhante reputação de poeta é de homem de coragem . Estimava-o então tenazmente porque era o amigo intimo de um homem que não conheceste , e que foi o unico que amei n'este mundo ...

-- O unico que amaste!. ..

-- Sim , o unico que amei com verdadeiro e sentido amor. Fernão de Aguiar era então ...

-- Ai! por Deus; Luiza , temos historia e historia com poesia . Deixa-te d'isso que não venho com paciencia para a ouvir , nem pelo az de paus! Sim , pelo az de paus!... Jurarei eternamente por elle , por que foi a este infame do az de paus que acabo de sacrificar os ultimos quatro contos de reis , que me restavam de toda a nossa fortuna.

-- E preciso que me ouças, Nuno.

-- Pelo inferno ! --- replicou elle, batendo nova punhada sobre a meza que me importa a mim esse homem que sahiu ? Pensas que venho hoje , a estas horas da noite, a tua casa para fazer de tyranno de bordel, por que achei um homem no teu quarto ? Vinte , trinta, cem que me importavam ? Ha dois annos e meio que te conheço , e desde então tens-me feito duas mil infidelidades. Outro qualquer , a ser poeta , apunhalava-te; sendo pouco vil, quebrava-te os ossos do corpo ; por ventura disse-te, uma só vez, alguma coisa ? Ora como diabo se te mette na cabeça que posso agora escandalisar-me, isto na propria hora em que acabo de perder os ultimos quatro contos de reis de toda a minha fortuna ?

--- Foi mais uma loucura, meu amigo -- disse Luiza friamente.

-- Achas isso ? -- replicou elle surprehendido da frieza com que ella recebia aquella terrivel noticia .

-- Acho -- respondeu ella sempre no mesmo tom -- e sinto-o deveras por ti, Nuno.

-- E por ti não , Luiza ? -- disse elle com ironia bem pronunciada...

-- Por mim , não. Olha, para que te heide estar a illudir , meu amigo ; vou dizer-te tudo com franqueza. Depois de amanhã entro para um convento.

Nuno de Athayde deu um salto como se o tivesse mordido uma serpente ; depois atravessou a perna esquerda sobre o joelho direito , e desandou a rir ás gargalhadas.

-- Era o que me faltava , pelo az de paus ! -- exclamou elle -- Olha, Luiza , venho agora mesmo de uma casa, onde se dão bailes e partidas, e em que se joga o monte como na mais reles espelunca . Sabes que isto hoje é vulgarissimo no Porto . Ora pois, entro , sen to-me á meza do jogo, olho, estava o az de paus na mesa, aquelle infame az de paus ! aposto cincoenta loiras de porta , e o az de paus sahiu-me de cara ! Fiquei com um ferro dos demonios ! Eil-o segunda vez; ponho cem loiras de dentro , perdi á segunda, pelo inferno ! -- em trez, duzentas loiras ; mamerão, trezentas ; eligamo, outras trezentas -- as ultimas, Luiza , as ultimas !... Foi-se tudo com trezentos diabos, ou antes com o az de paus ! Disse então com os meus botões : «Ora estou sem cinco reis ; de que diabo me serve a vida agora ! De tudo o que tinha, resta-me só um par de pistolas de alvo , carregadas felizmente com magnifica polvora ingleza . Está bom , sei o que devo fazer. Acabou-se a comedia , toca a descer o panno .» Levantei-me e sahi com a firme intenção de dar um tiro na cabeça. Mas o ar bom fez-me bem , despertou-me a memoria -- « Ai que grande asno que sou , disse eu commigo, ainda não perdi tudo , resta-me Luiza .»

-- A tụa ultima propriedade, não é assim , Nụno ?

-- Sim e não , isso é conforme. Mas fallemos seriamente, Luiza. Creio que deves, estar convencida de que, depois de te possuir dois annos e meio , não devo ter grande vontade de me escandalisar, porque acho á meia noite um homem no teu quarto. Podes estar socegada a respeito do que acaba de acontecer; sou o homem mais condescendente possivel, e portanto não entrei aqui com animo de fazer de tyranno, apezar de já desconfiar ha muito de que me ias pregar uma das tuas.

-- Nuno, peço-te pela minha honra...

-- Pela tua honra ! ...

E Nuno de Athayde soltou uma estrepitosa gargalhada de escarneo .

-- Ora deixemo-nos de comedias, e vamos a fallar sério . Queres fazer-me o obsequio de me ouvir seriamente um quarto de hora , Luiza ?

-- Diz, que eu escuto -- replicou ella, sentando-se defronte d'elle e fitando-o com uma frieza verdadeiramente glacial.

-- Muito bem .

Assim dizendo, Nuno de Athayde accendeu o charuto , e dirigiu-se d'esta forma á filha de Vasco de Noronha :

-- Lembras-te do que eu era ha dois annos e meio , Luiza?

-- Temos recordações, Nuno ?

-- E' preciso ter esta para o que tenho a dizer-te. Mas não te atterres ; não hade haver massada. Vou recordar-me o mais succintamente possivel, mesmo porque a fallar-te a verdade, as minhas recordações, quando mexo n'ellas, pesam mais que o mundo, e eu sou fraco Atlante para taes pezadellos.

-- Prometteste não massar...

-- Dizes bem ; assim , Luiza, lembras-te o que eu era ha dois annos e meio ?

-- Então ?...

-- Eu te vou recordar o que era , e isto sem massar, em muito poucas palavras. Era um lanzudo e alarve parvalheira , que vivia com meu pae uma vida patriarchal, e que tinha pelo estudo a mais torpe de todas as manias conhecidas. Imagina que vidinha aquella e que grande lapuz eu era quando a vivia . Levantava-me ás sete horas da manhã , e quando Deus queria , ás seis ; pegava em Camões ou em Francisco Rodrigues Lobo e outras vezes em Barros ou Fr. Luiz de Souza , e ia sentar-me n'um caramanchão do nosso jardim , a extasiar-me com a leitura matinal de aquelles inspiradissimos doutoraços. As oito estava em casa e ia dar os bons dias a meu pae, honrado ginja , a quem em sequencia ajudava a vestir e a ageitar as revoltosas rôpas, com que, a modo de testo , usava tapar a respeitavel calva. Em seguida ageitava a fronte pudibunda para o author dos meus dias, que depunha n'ella um beijo piedosamente ungido de amor e de símonte. Depois íamos almoçar.

-- E então, Nuno ? -- disse aqui Luiza, interrompendo-o ...

-- Então ? ... O resto do dia passava-o em conformidade com este beatifico começo . De manhã gastáva uma hora a passear no jardim , arrastando como o piedoso Eneas, o meu tropego Anchises, dependurado do meu braço. Depois ia ler os classicos e os antiquarios, e em seguida punha-me a rabiscar sobre um caderno de papel almaço luminosas lucubrações, em que provava que a despeito das venerandas barbas de Lelio é de Scipião , Terencio não passava de um insipido fazedor de comedias, e que Plauto , á parte as immundices, era o Molière da antiguidade ; no outro dia de monstrava que a satyra de Juvenal era, por mais acerada, muito mais interessante que a de Horacio ; e que Stacio na imaginosa Thebaida, o Seneca na Medea e no Edipo tinham adivinhado à eschola romantica que Shakspeare fundou gloriosamente no seculo XVI, e que os escrevinhadores da actualidade exageraram até ao ridiculo . Não parava ainda aqui a minha alarve paixão por aquelles nefandos calhamaços; n'aquelle enthusiasmo de lapuz batia as azas de morcego e avoejava para mais longe. Então arremessava-me apoz de Rezende e de Gaspar Estaço , e discutia com aquellas horrificas sombras de massadora memoria , dissertando doutamente sobre a lidima decifração da metade de um I esguio que se achava incompleto na aresta de umalapide, que fôra encontrada partida entre a argamassa do solo do antigo municipio eborense.

-- Nuno, permitte-me que te advirta que já passa de duas horas da noite --- disse Luiza interrompendo-o .

-- Bem sei, minha amiga, mas sei tambem que uma ou duas horas mais não te incommodam . Nós costumamos deitar-nos mais tarde.

Assim dizendo, Nuno de Athayde accendeu o charuto que se lhe apagara, e continuou :

-- Á uma hora, erguia-me, e ia ebrio de gloria e ainda com ella a fulgir-me nos olhos, buscar meu pae para o jantar. O meu honrado ancião , que pela tenuidade da corporatura e pela delicadeza da tibia era sombra ainda mais somenos que a do Lino e até que a do Nino do theatro de S. João, erguia-se de diante dos penates, depunha o rosario lento por onde estava engrolando padres nossos, e agarrando-se ao meu braço , caminhava para a sala do jantar , com a lagrima a luzir no olho ophtalmico, e a grunhir , olhando-me de nesga: -- Oh ! ninguem tem melhor filho do que eu !

Nuno parou de repente ; apezar do cynismo repellente da phrase e do desplante da posição que tomara, ao chegar aqui a voz prendeu-se-lhe de repente na garganta e as feições atraiçoaram a commoção que o agitava , e á qual não fôra superior a propria ironia satanica que n'aquelle momento lhe animava a palavra. Luiza estremeceu e fez-se pallida...

-- Que infame charuto ! -- exclamou então , disfarçando-se com o impulso quasi impossivel de fazer sahir o fumo do charuto que tinha accendido. -- Que infame e desavergonhado charuto ! Acima d'isto ... Só um contractador.

Depois de alguns minutos continuou :

-- Jantavamos ; eu comia como um alarve, e depois de comer fazia o chylo , e depois do chylo começava a digerir , e depois ja dormir a sesta , depois da sesta ia acabar a digestão dando um passeio de duas horas a cavallo , parando aqui e acolá , conforme os objectos que se me apresentavam á minha admiração. Ora admirava a uva pedral ou o barrete de clerigo, a maçã camoeza ou a raineta , a pera virgolosa ou a sete-cotovellos; ora o colorido do pôr do sol, o murmurio do ribeiro , ou o suspirar da brisa entre a rama dos pinheiros . E depois vinha parar a casa , jogava a bisca com meu pae; e depois iamos cear, e eu ceava como um alarve e com a profunda convicção de que era bom cear; e depois levava o meu velho ao seu quarto , ajudava-o a despir-se , mettia-o na cama, aconchegava-lhe a roupa, dava-lhe as boas noites, e ás dez o mais tardar deitava-me, e dormia alarvemente até o dia seguinte ! Vé que vidinha esta , Luiza ! Eu era deveras o parvalheira mais asno , mais lapuz que tem produzido até hoje os sertões da parvalheira.

Nuno parou de novo para chegar outro charuto á luz da vela . Ao ouvir-lhe as ultimas palavras, Luiza sorriu-se com uma ironia triste.

-- Foi então que tu appareceste como o sol no meio das trevas do meu lapuzismo -- continuou elle. -- É desnecessario lembrar-te como, basta que te recorde que dois mezes e meio depois, tudo estava mudado e o lapuz transformado em outro homem . Meu pae tinha feito o favor de recolher á sepultura , e tinha entrado n'ella , amaldiçoando aquelle bom filho, como o qual ninguem tinha outro ; Plauto , Juvenal, e toda a mais farragem antiquada, empilhados em auto de fé no pateo da casa , tinham subido em nuvens de fumo até o paiz das bagatellas; e eu era um janota , um elegante de primeira plana , que fumava charutos de tostão , lia Dumas e Sue, que bebia como um louco , que jogava como um furioso , que luxava como um Cresso , e que tinha a honra de ser o teu amante effectivo, Luiza , privilegio que me custou logo da primeira as sentada a bagatella de seis contos de reis.

E Luiza franziu orgulhosamente as sobrancelhas.

-- Queres insultar a minha pobreza com a recordação das tuas generosidades, Nuno ? -- disse com voz ligeiramente tremula .

-- Não, minha querida amiga -- replicou elle com indifferença e estouvamento --- quero unicamente recordar-te que dos cem contos de reis que meu pae me deixou , gastaste pelo menos cincoenta -- pelo menos, digo, e é mais uma generosidade que tenho comtigo, Luiza, porque em consciencia podia bem dizer que tu gastaste dois terços e eu apenas um . Se não repara -- e acredita que não é para rebaixar-te, que recordo os obsequios que te tenho feito , mas unicamente para conseguir o meu fim , que é nada menos do que convencer-te que és irrazoavel pretendendo trocar pelos prazeres romanescos de uma clausura, a obrigação de pagares todos os sacrificios que a minha posição te fez, e o direito de me poderes dizer um dia -- nada te devo, Nuno.

As feições de Luiza tinham ido pouco e pouco tomando a mais pura expressão da soberba satanica.

-- Posso dizer-lh'o já , senhor -- exclamou ella -- por ventura as suas generosidades eram favores despidos de recompensa? Não foram resultado de um contracto formado entre nós, pelo qual o senhor dava as suas riquezas, e eu o meu corpo ? De mais quer ver como avalio tudo isto ? É assim .

E Luiza arremessou de repente ao pavimento da sala um rico plateau de porcelana que tinha sobre a mesa, puxou furiosa por uma das pulseiras que tinha nos braços, e deu signaes inequivocos de estar dominada pelo espirito de destruir todos os objectos de luxo que a cercavam , se Nuno de Athayde a não embaraçasse .

Este tomou-a de repente entre os braços, sujeitando-a n'um relancear de olhos, e disse-lhe em tom zombeteiro , e como quem achava prazer em irritar lhe a altivez de aquelles brios:

-- Oh ! Luiza ... pelo amor de Deus ! ... Olha que estás destruindo os meios necessarios para me poderes reconstruir o futuro . Perdão ! não quiz offender-te , não te agonies, serena; olha que o que temos de tratar é muito serio , é o nosso futuro, e por isso é preciso que estejas bem senhora de ti.

-- O meu futuro está decidido , senhor.

-- É o convento ? Aquella doce paz ... da clausura ... de que tu sabes tirar tanto partido, e que...

-- Deixe-se de insultos, senhor, e lembre-se que por muito que tenha feito por mim , não tem direito de se deixar de reputar um infame e um villão, se continuar a insultar grosseiramente uma mulher desgraçada, de que nada tem a receiar. E' o convento , snr. Nuno de Athayde, é o convento , o meu futuro... não o convento como já o encarei, mas o convento sepultura de uma mulher perdida, solidão onde ella vae esconder as lagrimas que não pode chorar diante do mundo .

-- Vejo que não posso prescindir de te recordar todos os sacrificios que te fiz -- replicou Nuno de Athayde com ar de zombaria forçada, mas podendo mal disfarçar o tremulo da voz e a pallidez que lhe cobria as feições .

-- Falle -- replicou rudemente Luiza, sentando-se de novo diante d 'elle , encarando-o com altivez.

-- Primeiro que tudo -- continuou elle , cada vez mais pallido e com voz cada vez mais tremula -- é preciso que acredites que, por muito infame que me reputes , sou ainda assim incapaz de insultar-te, por que ainda creio que a maior infamia , que o homem póde commetter , é abusar da fraqueza physica da mulher . E demais -- accrescentou elle depois de uma curta pausa , em voz surda e tremula , com os olhos scintillantes e aproximando o rosto ao d'ella -- se sou um infame: quem foi que me fez infame? Queres que te torne a recordar o que fui antes de te conhecer, e o que me tornei depois que te vi ?

Luiza estremeceu . Nuno , depois de a fitar alguns minutos, atirou-se de repente para o encosto da volteriana, em que estava sentado , soltou uma gargalhada galhofeira mas ainda ligeiramente tremula , accendeu o charuto, e , tomando a primitiva expressão de ironia , continuou:

-- Ora , minha querida Luiza, primeiro que tudo quero que te convenças que sou incapaz de insultar-te é que tudo isto nada mais é do que a expressão viva da muita familiaridade que tem havido entre nós até hoje , e que ... deve haver de aqui por diante. Assim , visto que não ha remedio , peço-te licença para conti nuar a usar d 'ella , e provar-te que da herança de meu pae quem mais gastou foste tu , e que portanto não deves trocar-me nem o meu bem estar pelas... pelas lagrimas que tencionas ir chorar por traz das grades dos locutorios , e ... e dos muros , sejamos rasgadamente francos, e dos muros do pomar do teu convento .

-- Tambem são necessarias essas recordações, Nuno ?

-- Precisamente não, querida, isto foi lapso provocado pela occasião . Assim , restringindo-me unicamente ao que é preciso dizer , ouve tu : Quando cheguei comtigo ao Porto , pela primeira vez, a tua casa era uma coisa a que só por favor se podia chamar commoda, o teu guarda vestidos cheirava a mofo ; a tua meza deixava um cenobita com fome, os teus creados eram ... as tuas pernas e as tuas mãos, e por carruagem tinhas as botinas. Ora trez mezes depois tudo havia mudado. Á minha voz possuiste esta casa mobilada com luxo asiatico , adornaste-te com os diamantes mais bellos que tinham os ourives do Porto , as modistas talharam para ti os mais ricos vestidos, a tua mesa serviria a um principe, e fazias estremecer o empedrado das ruas com as rodas das tuas elegantes carruagens. A este luxo de commodidades correspondia o luxo da despeza ; jogavas como eu, ostentavas mais do que eu , e perdulariayas em vaidades muitissimo mais ainda . Ora em consciencia , Luiza , não poderei asseverar , sem receio de que me desmintas, que só n'isto gastei comtigo, nos quatro ultimos annos, cincoenta contos de reis ?

Luiza estava fria e impassivel.

E os outros cincoenta contos -- disse elle. -- pensas que os gastei só commigo ? Enganas-te; ainda por tua causa gastei d'elles vinte contos pelo menos. Quanto pensas que gastei para pôr de moletas, a justiça, quando teu marido te perseguiu ? quanto pensas que gastei para o obrigar a desistir da querella ? quanto pensas que foi o preço , a que lhe comprei a infamia , com a qual aquelle mariola não consentia transigir se não por dinheiro ? quanto pensas que me gastou na via gem , a que o incitei para ficarmos em socego, e da qual foi Deus servido que não voltasse mais ? Dar-te-hei a cifra exacta de todas estas despezas, se por ventura quizeres fazer a somma d'ellas, mas fica desde já prevenida de que has-de tirar em resultado que dos cem contos de reis que meu pae me deixou , só tu á tua parte gastaste dois terços.

-- E a qué vem tudo isso ? -- disse por fim Luiza, quando elle se calou .

-- Vem para tirar em conclusão , que visto teres dado cabo de dois terços da minha fortuna, não deves agora sacrificar a um capricho a obrigação de me auxiliar a reconstruir o meu futuro , amparando-me na minha pobreza.

-- Mas que posso fazer por ti ? Como posso contribuir para reconstruir-te o futuro ?

-- Como! Pois não adivinhas ?

-- Não ; se a minha força vinha de ti, fraco tu , fraca e impotente fico tambem .

-- Que loucura ! Pois não adivinhas ?

-- Não , mas diz tu . . ! falla ...

-- Como !... Ora esta ! ... Como !... Casando commigo .

-- Casando comtigo ! ...

E o rosto de Luiza retratou primeiro a estupefacção da surpreza , depois a ironia desprezadora , e por fim o orgulho e a altivez revoltada .

-- Zombas de mim , Nuno ? -- disse ella com voz firme e sonora, fitando n'elle os olhos que relampejavam .

-- Zombo de ti, Luiza ! --- replicou elle apparentando a maior surpreza , mas estendendo ao mesmo tempo o braço na direcção do castiçal, para dar mais lume ao charuto que pouco a pouco se lhe tinha ido apagando -- Zombo de ti!! ... Ou tu me não attendeste ou eu me expliquei muito estupidamente . Zombo de ti !!!... Pois podes acreditar que sahindo de uma casa de jogo , depois de perder o meu ultimo real, tivesse vontade de entrar na tua, para fazer-te as duas horas da noite por zombaria uma proposta tão séria ?

-- Então que significa tudo isto , senhor ?

-- Significa, Luiza , que sahindo de aquella casa pobre e reduzido á ultima miseria , tive , como já te disse, a ideia de dar um tiro na cabeça ; mas lembrando-me que ainda tinha um meio de prescindir de aquella ultima formalidade, vim sem perda de tempo , propor-t'o , para salvarmos assim a nossa grandeza inteiramente arruinada.

-- Porém , Nuno ...

-- Eu disse commigo, são duas horas da noite , vou fallar com Luiza ; se ella accede, tenho tempo de dormir , se diz que não, ainda tenho tempo de voltar a casa e fazer saltar os miolos com um tiro de pistola .

Luiza fitou Nuno, sorrindo com um olhar de zombaria .

-- Isto tudo não passa de certo de uma ridicula farçada , Nuno .

-- Tudo póde ser , querida; mas o que é certo é que eu não tenho cinco reis de meu, e que me não acho com disposições de transigir nem com o trabalho , nem com o papel de pedinte , depois de ter representado quatro annos o papel de millionario . A vida não vale a pena de um homem se incommodar tanto por ella .

-- Mas em fim , senhor, de que lhe pode servir casar commigo ?

Nuno de Athayde fitou Luiza e d'esta vez fitou-a com verdadeiro pasmo.

-- Vejo com pezar -- disse elle por fim -- que as tuas theorias acerca da velha litteratura não tem a realidade que eu suppunha, e que o teu talento observador não é o que eu imaginava.

-- Mas que quer o senhor dizer com isso ?

-- Quero dizer , Luiza, que se tivesses o tino observador , acharias na vida d'esta nossa sociedade, e até no exemplo do teu defuncto marido, um exemplo caseiro , a explicação razoavel da proposta que tão enygmatica te faço ; quero dizer que se tivesses volvido, como eu, a antiga litteratura, terias como eu lido um livro precioso , donde deduzirias á risca o quanto vale o matrimonio em situações difficultosas como a nossa .

-- Não sei se te acredite, Nuno ... .

-- Ha na antiga litteratura hespanhola , Luiza -- continuou elle com a maior fleugma -- um liyro precioso, um livro que ponho sobre a minha cabeça com mais razão e mais respeito, do que tinha Cervantes para o fazer ao livro de Ariosto , que se tu tivesses lido, terias de certo comprehendido ha muito todas as vantagens que encerra a minha proposta matrimonial. Este livro é a Vida y hechos del Figaro Guzman d 'Alfarache, escripto por Mateo Alleman, vecino de Sevilla y creado del-rey nuestro señor, ditado que foi pena em tão grande talento , e que algumas moralisações estiradas de mais são a unica coisa má que aquelle grande livro encerra. Guzman de Alfarache, minha querida amiga, era, segundo o author, filho ás escondidas dos amores adulteros de uma Luiza do seu tempo. Lançado ao desamparo no mundo , foi picaro, limpa-bolsas , criado de servir, mendigo, secretario de embaixador, e por fim , graças aos seus talentos, chegou a figurar entre a primeira sociedade de Hespanha, como eu , e outros muitos como eu, temos figurado , e continuamos a figurar. A' sombra do seu bom talento , dos seus gostos opulentos na apparencia e dos seus sumptuosos vestidos, Guzman casou-se , não se casou muito bem , mas quando a hora da desgraça chegou , quando se achou , como me acho , sem real para gastar, teve o bom senso de fazer de um pessimo casamento , meio de viver folgadamente mais algum tempo. E sabes como ?

Luiza ouvia-o desdenhosamente .

-- Sua mulher era formosa, era como tu , Luiza , e elle tinha a prudencia de a deixar só com os seus amigos ricos e moços, e ella tinha a arte , que tu tens, de saber usar d'ella como de rendosas propriedades. Quando Guzman voltava a casa, achava a gaveta sempre cheia de bons ducados, e ...

-- E um dia achou a mulher fugida, porque se the tornara insupportavel viver com um miseravel assim -- disse Luiza , interrompendo Nuno e continuando ella a pausa que elle interrompéra .

Nuno de Athayde ficou um momento calado, e fitando Luiza com um olhar desconfiado e penetrante . Sorriu-se por fim e accrescentou :

-- D'isso nada tenho a recear. Sou mais philosopho que Guzman, porque não finjo para comtigo que não vi nem vejo , e não tenho como elle uma mãe velha e incommodamente rabujenta , a quem se mettia na cabeça tomar a direcção do negocio . Vejo que conheces o livro, Luiza ; deves portanto entender-me bem . Escuso de accrescentar mais nada . Que respondes á minha proposta ?

Luiza não respondeu logo. Tinha os olhos fitos no moço e sorria-se com um sorriso de ironia e de desprezo satanico, e abanando tristemente o corpo e a cabeça . O desprezo e a ironia foi tomando pouco a pouco maiores proporções , os olhos incendiaram-se lhe gradualmente com mais luz, e sem se despregarem do cynico . Depois soltou uma gargalhada, estridente e secca , e disse com ironia :

-- Acceito , Nuno .

-- Acceitas ? Obrigado, dispensas-me do trabalho de dar um tiro na cabeça, e abres diante de mim um futuro de rosas.

-- Acceito , serei tua mulher -- continuou ella sempre com a mesma ironia e desprezo -- acceito ; este amor não devia de ter outro final. E' preciso que eu pague as tuas generosidades, e heide pagar-t'as. Até hoje tu , de hoje por diante , eu. Quando é o casamento ?

-- Dentro em quinze dias -- replicou elle com toda a fleugma -- Não se pode demorar por muito tempo. Quinze dias já é espaço bastante para que o fastio da falta de dinheiro me faça entrar verdadeira mumia no teu leito nupcial. Quinze dias ! ... quinze dias de reclusão, e de aborrecimento ! ... Porque é preciso que saibas, Luiza , que durante estes quinze dias de preparativos, não saio á rua , entoco-me, por que não tenho que gastar, e eu não posso apparecer sem gastar.

-- Ahi n'essa casa ha pratas. .. Ahi estão as minhas joias. Vende-as e gasta.

-- Deus me livre. E com que haviamos de servir o baile do casamento ? Porque bem vés, Luiza , que este casamento deve principiar por um baile . E a primeira exposição. Em quanto ás tuas joias, essas ainda são mais respeitaveis, porque ainda são mais necessarias. As mulheres bellas sem adornos são como os cometas sem o resplandor da cauda. Não prendem a attenção . O proprio Amadis não resistiria de certo a falta tão essencial. Hybernarei quinze dias; é forçoso hybernar.

-- E no fim d' elles ...

-- E no fim d'elles, seremos marido e mulher, sem que deixemos de ser o que somos. Adeus, Luiza -- accrescentou elle , pondo-se a pé -- estou contente , muito contente . Obrigado ; és mulher de juizo , e, á parte as aberrações poeticas que te tornam de quando em quando com fumaças de Magdalena piegas, és uma grande mulher, mulher capaz de fazer a felicidade de um homem . Muito feliz fui em te encontrar ! ... Adeus.

Nuno de Athayde tomou o chapeu, deu um beijo na fronte de Luiza, e sahiu fumando e cantarolando :

Por angelito creia ,
Donsella , que almas guardabas,
Y eras araña que andabas
Tras la pobre mosca mia .

Luiza seguiu-o com os olhos até a porta , e ficou depois alguns minutos com o olhar fitado n'aquella direcção.

-- Este homem é um infame -- disse ella por fim -- mas eu me vingarei.

E depois de ficar um momento em abstracção intima, continuou com uma ironia triste:

-- E eu amei-o!... Cheguei a persuadir-me que alli podia haver amor... n'elle ... um infame! Oh ! eu me vingarei !... Meu Deus ! Meu Deus ! – continuou, soltando um grito de afflicção e cobrindo o rosto com as mãos -- Que mal vos fiz , para me fazerdes tão desgraçada ? ... Elle !... mas foi elle ! ... Fernão de Aguiar disse bem . Para que me deixou elle aqui só , entregue a este destino ? ... Oh ! que me importa ?... Que venha Paulo ... que venha o pirata ... mais baixo do que isto não posso descer.

Depois lembrando-se da promessa que fizera a Fernão de Aguiar, accrescentou :

-- Pense o que quizer. Sou uma mulher perdida ; quem tem direito a exigir-me que cumpra a palavra que dei ? ... Elle assim o quiz ... que venha... que venha revêr-se na sua obra.

V

Fernão de Aguiar sahira de casa de Luiza com a cabeça afogueada e perdida. Durante o seu dialogo com ella , a compaixão adoçara-lhe o azedume da misanthropia e as lagrimas que lhe haviam corrido dos olhos, desafogaram-lhe por um momento o espirito . A entrada, porém , de Nuno de Athayde fizera renovar todo o rancor primitivo. A realidade, a verdadeira realidade era aquella , e Fernão estava já muito positivo de mais para deixar de reconhecel-a , e para que ella deixasse de preponderar-lhe no espirito sobre as considerações mais espirituosas e poeticas que o tinham agitado até então.

Fernão transpoz, portanto , o limiar de aquella porta , agitado pelas considerações mais severas e mais negras. Tomou , como ao acaso, a direcção da rua do Rosario , a passo rapido, com a cabeça descoberta , que os impetos das arterias não lhe consentiam o chapeu , e balbuciando palavras entrecortadas.

-- O mundo é aquillo -- dizia elle comsigo -- é aquillo , só aquillo . O mais a que pode chegar é o que lá encontrei dentro ; a virtude na palavra e o vicio nas obras. O espirito humano é assim ; a censura que reprova sinceramente , é uma aberração, um phenomeno. Desgraçado de quem nasceu d'esta forma ! Lucta contra a realidade, e morre aferrado com desespero a um mero impossivel. Aqui a virtude é a apparencia d'ella ; quem melhor finge , é o mais virtuoso . O cão morre cegamente pelo amo, e o amo manda afogar o cão, quando já não tem forças para morrer cegamente por elle . E' que a indole do cão é melhor que a indole do homem ; aquelle morre pelo amo porque a amizade n'elle é sincera, sentida, e , como tal não se vê a si quando protege o seu amigo. O homem é incapaz d'isso , porque n' elle todos os sentimentos nascem na cabeça , e quando vão a descer ao coração , escoam-se pela bocca, pela palavra. Nem um só consegue passar alem , e o coração do homem , que surge do nada com um unico sentimento , o unico que nasce n'elle , o amor do eu , fica egoista como elle , e acima d'elle só as conveniencias sociaes e o interesse é que podem conseguir fazer subir momentaneamente o amor dos outros. Só apparencias e nada mais que apparencias. O mundo é assim , o mundo é aquillo que eu alli vi, o mundo é aquella mulher! ... Querer mais do que aquillo , é querer o impossivel, é ser misanthropo, é ser louco , como elles dizem . E elles teem razão porque o mundo é assim ... é aquillo . ..

Fernão de Aguiar havia tomado pela rua da Piedade abaixo; ao chegar á volta que alli faz ao descer para Massarellos parou .

-- Mas que fui eu alli fazer ? -- disse elle por fim. -- Maldita mania a minha ! Por ventura tenho poder para fazer dos demonios anjos ? E depois, quem sou eu ? Não sou tambem homem ? Não pertenço como os outros a este genero egoista que domina o globo ? Por ventura a minha consciencia atrever-se-ha a declarar me isempto dos defeitos que fulmino nos outros ? Pois que significa este rancor, esta irritabilidade que me agita ? Não será por ventura mais uma expressão de egoismo ? Não será tambem o amor do eu ? Que me importa a vida dos outros ? Que tenho eu com Paulo , o contrabandista , o pirata , o negreiro , e com Luiza, a adultera , a mulher perdida , a prostituta ? Pelo inferno !

E assim dizendo, metteu com toda a força o chapeu na cabeça , e continuou a caminhar a passo largo pela rua abaixo. Ao fundo d'ella , encontrou à direita uma estreita e mal talhada rua, pela qual entrou, e por onde foi dar a uma estrada ainda mais informe, que corria atravez de uma formosa campina , bordada pelo lado esquerdo por pedras toscas e lançadas com o fim de servirem de muro , e do direito por quatro ou cinco casas de um andar, cada uma, que distanciavam alguns passos uma das outras...

O luar estava formosissimo, como costuma ser no mez de março o luar da peninsula , a aragem estava fria , mas aromatisada pelas flores da primavera, è as arvores que principiavam a inflorar, meneavam-se brandamente sussurrando com o roçar das folhas umas nas outras.

Fernão de Aguiar sentou-se n'uma das pedras que bordavam a estrada, e que ficava quasi fronteira a uma das casas, tirou o chapeu que poz ao lado, e cravou os olhos nas janellas da casa que tinha diante de si. De ahi a pouco as feições, contrahidas pela misanthropia , foram-se-lhe pouco e pouco desanuviando e um quarto de hora depois brilhavam animadas pela expressão da mais celestial e doce poesia , que Deus insufla no coração do homem de talento a quem concedeu a felicidade de nascer debaixo de um ceu como o nosso.

Os relogios das torres das egrejas visinhas bate ram então duas horas. Fernão não as ouviu , enlevado como estava n'aquelle sentimento dulcissimo, que lhe arroubava o espirito . De repente a porta da casa em que tinha pregado os olhos, range na fechadura e abre-se; no limiar appareceu um homem e uma mulher; elle com um chaile-manta cabido dos hombros, e ella com uma luz na mão . Fernão estremeceu , as feições contrahiram-se-lhe de novo, e os olhos allumiaram-se-lhe de raios. Então o homem tomou a mão da mulher, levou-a aos labios e em seguida ao coração , e depois deu-lhe um beijo na face que ella lhe estendia com amor. Depois embuçou-se na manta , a mulher fechou a porta , e elle desceu para a estrada.

Ao encarar com Fernão de Aguiar, sentado de fronte da porta , o homem parou , encobriu o rosto com a manta, e caminhou direito a elle . Fernão derrubou o chapeu é baixou a cabeça sobre o peito . A meio da estrada, o homem parou e fazendo um angulo sobre a direita, poz-se a caminhar vagarosamente pela estrada adiante . A trinta passos voltou-se para traz ; Fernão, que o tinha seguido com os olhos, sem se mover donde estava, levantou-se , então . O homem continuou a caminhar, porém com mais pressa ; Fernão seguiu -o aligeirando o passo mais do que elle . Á medida que mais se separavam das casas, cada vez apressavam mais o passo. Por fim o homem parou , ergueu um braço, e apontou para Fernão de Aguiar uma pistola engatilhada.

O misanthropo parou tambem , atirou com o chapeu a terra , e lançando para traz o cabello que lhe cahira para cima da fronte , exclamou com voz firme e terrivel:

-- Desfecha, Luiz de Vermoim ; a par da infamia , o assassinato nada vale. Desfecha e não erres ; é preciso que te livres de um homem diante de quem tens de córar toda a vida.

Ao ouvir estas palavras, o embuçado deu um salto como se o mordesse uma vibora, deixou cahir das mãos a pistola , desembuçou-se e correu depois para Fernão .

Era de facto o conde de Vermoim . Fernão esperou-o sem se mover. O conde tomou-o pelos hombros, voltou-lhe de repente o rosto para a lua, depois arredou-se dois passos atraz, e exclamou :

-- Tu ... tu ... tu aqui, Fernão! ... .

-- E tu aqui, conde de Vermoim !... -- Tu ... tu vivo !... -- continuou o conde sem attender ás palavras do poeta .

Em seguida atirou-se-lhe nos braços e apertou-o contra o coração. Fernão recebeu friamente o abraço do amigo, depois arredou-o de si, levantou do chão a pistola , e disse-lhe, offerecendo-lh'a :

-- Toma; acaba a obra que principiaste n'aquella casa. Mata-me.

O conde de Vermoim franziu as sobrancelhas.

-- Fernão de Aguiar, porque razão me reputas infame?

-- Porque te vi transpor o limiar de aquella porta .

-- Ha seis annos que entro todas as noites alli.

-- Ha seis annos !...

-- E comtudo hoje como no primeiro dia existe alli uma mulher viuva e uma virgem .

-- Luiz de Vermoim ! ...

-- E quem se atrever a duvidal-o ... pela alma de meu pae! que não vive um momento .

As formosas e doces feições do conde tinham tomado a expressão de uma ferocidade selvagem . Fernão de Aguiar não pôde duvidar da sinceridade de aquellas palavras. O rosto do conde revelava o orgulho offendido de uma grande alma -- offendido por si e pela honra de quem mais amava no mundo .

O misanthropo fitou-o um momento sem poder responder .

-- Luiz -- disse por fim --- tive-te sempre na conta de homem honrado, e bem viste que no momento em que suspeitei o contrario , preferia morrer.

-- Obrigado, amigo, fazes-me justiça, mas para que a tua consciencia m'a possa fazer completa, preciso de explicar-me comtigo. Assim dizendo , o conde de Vermoim dirigiu-se com o misanthropo para junto das pedras que bordavam a estrada, e os dois amigos sentaram-se.

-- Quem foi que espalhou a noticia da tua morte ? -- perguntou Luiz de Vermoim , depois de fitar por algum tempo o poeta .

-- Eu -- respondeu elle.

-- Então sobre ti os resultados da tua propria loucura -- replicou o conde -- como homem de honra eu não estava obrigado a mais; hoje já não posso sacrificar Adelaide.

-- E quem te pede que a sacrifiques ? A que a hasde tu sacrificar?

O conde fitou no poeta um olhar penetrante .

-- Tu amal-a , Fernão -- balbuciou elle .

-- E quem te disse que a amo ?

O conde tornou a fitar no poeta um olhar penetrante e como desconfiado. Este não lhe deu tempo de replica , e continuou :

-- Houve um tempo em que imaginaste isso que me acabas de dizer. Então disses-te-me: tu amas aquella mulher , e eu tambem a amo; mas eu sou rico, e tu és pobre, e prevalecer-me d'esta vantagem que o acaso me deu sobre ti , seria uma infamia . Parto para nunca mais voltar.

-- Se voltei, foi ...

-- Foi porque a amavas, e se até hoje tenho feito por ella e por ti o que tenho feito , foi porque jurei n'aquella occasião que tu não serias mais generoso do que eu .

O conde fitava o poeta sem o comprehender e pasmado. O rosto do misanthropo revelava todo o negrume que trazia no espirito , e Luiz de Vermoim perguntava a si mesmo se por ventura era aquelle de véras o poeta festivo , e satyrico mordaz que conhecera em outro tempo.

Fernão de Aguiar levantou-se então machinalmente , e poz-se a passear diante do amigo, distrahido, com rosto carregado e severo, e balbuciando com rudeza palavras entrecortadas.

-- Pensas por ventura -- disse por fim -- que o homem que voluntariamente se condemnou em vida ao olvido dos mortos, cahisse em ligar-se eternamente com mulher alguma, fosse ella quem fosse ? Eu já não creio nem em mim mesmo -- accrescentou elle com rudez verdadeiramente selvagem .

-- Fernão, ao voltar do mundo dos mortos, vens de véras muito differente do que foste .

O misanthropo, encolheu os hombros.

-- Eu sempre fui assim -- disse elle -- em mim houve sempre um principio de bom senso que me fazia descer amiude do mundo das idealidades para este sujo mundo da pratica . E n'elle nunca me foi difficil descubrir a verdade, porque eu analysava-a com a razão e não com a imaginação. Sou o mesmo, repito-te ; a unica differença entre o eu de hoje e o eu de então, é que no passado vasava o meu fel no escarneo e na mordacidade satyrica, hoje não ... não o vaso em nada, porque hoje não transijo com as conveniencias e arredei-me de tudo .

E depois de parar um momento continuou :

-- Quando o meu fel encachoou de maneira que já nem o sarcasmo o satisfazia , quando me achei só, litteralmente só no meio dos actores e dos comparsas que representam n'esta infame comedia humana, o meu primeiro pensamento foi esmigalhar a cabeça com um tiro . Se é realidade a existencia do espirito que anima, pode ser que o mundo dos espiritos seja melhor que o mundo da carne; se não existe, se tudo isto é materia, tanto melhor, a experiencia terminará alli, e os sete palmos da sepultura cifrarão para sempre todas as dúvidas. Este pensamento não pôde réalisar-se; sobre mundo havia dois homens, a quem eu era ainda necessario , e apezar dos quaes o sentimento fallava em mim mais alto que a minha resolução de aniquilar-me. Um d'elles eras tu ; o outro é hoje um pirata , um contrabandista , um negreiro... Reduzi portanto a vida a este limitado circulo de obrigações ; morri para todos, menos para elles. Eis aqui tudo, Luiz de Vermoim .

O conde tinha ido pouco e pouco reconhecendo o estado de irritabilidade em que a misanthropia lhe despenhara o amigo .

-- -- Obrigado , Fernão -- disse-lhe então affectuosamente o que fizeste prova que me não enganava quando te chamava amigo. Obrigado por mim e por aquelle anjo , Fernão.

O misanthropo fez uma menção de enfado, e depois disse rudemente:

-- Quem te descubriu o escondrijo d'esta gente ?

-- Deus --- replicou o conde, apontando para o ceu .

O poeta sorriu-se com ironia e encolheu os hombros com o cynismo da descrença .

-- Eu fui menos feliz -- disse elle por fim -- A mim foi o acaso . Um dia passeava sem destino, vim parar a estes sitios; foi, ha oito annos, n'uma noite calmosa de estio . As janellas de aquella casa estavam abertas ; ouvi chorar, parei. De ahi a pouco a conversa que as lagrimas interromperam , continuou assim :

«-- Oh! minha mãe -- ouvi dizer em voz que me fez estremecer -- Paulo morreu de certo ; a não ter morrido, não nos abandonava assim á miseria . .

«-- Uma gargalhada que prenunciava a loucura foi a resposta .

«- Eu ... eu n'este estado ! -- responderam -- eu uma senhora em vesperas de mendigar! Eu!... eu !...

« -- Com um raio de diabos ! quem fallou aqui em mendigar ? -- replicou uma voz rude e atroadora que reconheci immediatamente -- Não sou rico, tenho apenas o soldo que o general me paga; mas cortarei pela despeza do tabaco , e para uma tigella de caldo sempre hade haver; e quem tem caldo e pão não morre de fome.

« -- E uma senhora hade viver de caldo e pão , Pederneira ? Antes morrer que tal indignidade!

Uma forte punhada dada sobre uma mesa foi à primeira resposta dada aquella basofia louca , que tu já tens reconhecido , Luiz . Depois ouvi dizer:

«-- Uma senhora vive de ar, se é preciso que viva de ar, senhora D. Manoela . Por um cento de diabos ! E demais isto não pode continuar assim muito tempo; se em tres mezes Paulo não dá novas de si, é porque morreu, e então fico desobrigado do meu segredo . Digo tudo ao general, e tudo mudará de figura.

Ouvi então arrastar cadeiras, e conhecendo por isto que se separava a conversa , retirei-me a toda a pressa para não ser surprehendido. No dia seguinte o Pederneira recebeu pelo correio uma nota do banco de cem mil reis, e desde então até hoje tem -- a recebido todos os mezes.

-- Então és tu que lh'a remettes ? -- exclamou o conde, erguendo-se com as lagrimas a resplandecerem-lhe nos olhos.

-- Sou .

-- Homem generoso --- disse Luiz de Vermoim , apertando o conde contra o coração -- tiveste a felicidade em teu poder e sacrificaste-a á tua generosa de dicação . Porque, debalde o negas, tu amal-a , Fernão...

-- Eu não amo ninguem n'este mundo -- disse rudemente o misanthropo, desembaraçando-se dos braços do amigo -- O que fiz, fil-o por mim mesmo. Eu devia uma divida sagrada á memoria do unico justo que conheci n'este mundo, paguei-a ; tinha feito o juramento de que não havia de exceder-me em generosidade, cumpri-o . Paguei e cumpri como rico , porque hoje tambem eu sou rico, Luiz de Vermoim .

O misanthropo passeava agitado em frente do amigo . Este contemplou-o um momento em silencio , depois tomou-o por um braço , e fel-o sentar junto de si.

-- Senta-te aqui, Fernão -- disse elle -- hoje mais do que nunca preciso de explicar-me comtigo. Vejo que nunca fui bem comprehendido por ti, porque até uma palavra innocente, que me sahiu dos labios na sinceridade de um sentimento de honra e de affeição que sempre te tive , cravou-te na alma um espinho tão doloroso, como não t'o cravara de certo a impunidade do mais rijo insulto .

-- Enganas-te , Luiz. Disseste-me um dia : Fernão, nós ambos amamos a mesma mulher; mas eu sou rico e tu és pobre, e a riqueza dar-me-ia a superioridade n'este pleito de felicidade futura. A honra e a affeição que te tenho, exigem portanto de mim que te deixe o campo livre, que me arrede para longe d'estes sitios. -- N'estas palavras, Luiz de Vermoim , não vi, juro-te pela minha honra, outra coisa mais que a expressão sincera do sentimento generoso e nobre de uma grande alma; mas como me prezo tambem de ser generoso e nobre, jurei logo que me não havias de exceder em generosidade. O acaso azou-me tempo de cumprir o que jurei, e hoje posso dizer-te com a mesma generosidade e nobreza, com que me disseste aquellas palavras: -- Luiz de Vermoim , encontrei um dia pobre e quasi mendiga a mulher que ambos amaramos. Tu estavas longe, e eu estava alli, poderoso com todo o poder da riqueza. Se a felicidade é aquillo , eu tinha na mão a felicidade. A honra porém e a affeição que sempre te tive, exigiam de mim o sacrificio de aquella occasião. Sacrifiquei-a ; tu não foste mais generoso do que eu. Ahi te entrego a mulher que amas, é tua; reservei-ta com egual generosidade á com que n'outro tempo quizeste sacrificar-te por mim ; e fiz mais ainda, salvei-a talvez da deshonra -- salvei-a , Luiz , porque quando a pobreza bate de rijo à porta da mulher , a virtude costuma saltar pela janella .

O conde franziu então as sobrancelhas.

-- Foste de véras mais generoso do que eu , Fernão ; comtudo na sinceridade da intenção , não fui escedido por ti. Amanhã réceberáś o teu dinheiro ; dois mezes depois D. Manoela já não precisava d'elle , e desde então o Pederneira tem ido accumulando as tuas notas n'uma pasta , para as ir entregar ao bemfeitor generoso, se por ventura a fortuna lho deparasse algum dia .

-- Não consinto que lhe digas que o achaste ;a este respeito exijo de ti o mais completo segredo . Em quanto ao dinheiro, arroja-o , se assim o queres, pela janella fóra ; que o leve o vento , que o apanhem os pobres, ou que o desbaratem os cães, para mim tudo é o mesmo. De hoje ávante não remetterei mais nenhum , mas o que remetti até hoje , não o tornarei a receber. Não me pertence , dei-o em pagamento de dividas que devia , e nada ha n'este mundo capaz de me tornar a constituir devedor de ninguem .

O conde sorriu tristemente.

-- Muito mudado estás de veras, Fernão !! !

-- Fizeram-me assim -- balbuciou elle, continuando a passear agitado diante do amigo.

Depois tomou o chapeu , que tinha poisado sobre uma pedra, e pôl-o na cabeça.

-- Adeus -- disse então -- esquece que me tornaste a ver, que eu me esquecerei que te tornei a encontrar .

Assim dizendo poz-se a caminhar na direcção da cidade.

-- Então assim te separas de mim , Fernão ? -- disse o conde tristemente .

Sirvo-te para mais alguma coisa ? -- respondeu o misanthropo, parando .

-- Serves.

-- Então falla ...

Assim dizendo, tornou a voltar para perto do conde, sentou-se a par d 'elle, e poisou de novo o chapeu sobre a pedra.

O conde fitou-o tristemente.

-- Eu tinha ha dez annos um amigo --- disse elle por fim -- que me amava muito ; a quem eu confiava todos os meus prazeres e todas as minhas penas. Queres attender-me agora com a paciencia com que elle me ouvia , Fernão de Aguiar ? E' no que me podes ser vir agora.

-- Falla , que estou escutando.

-- Seis mezes depois que sabi de Portugal com Luiz Pacheco --- disse o conde -- - separei-me d'elle . Precisava de caminhar só e ao acaso , dentro de mim laborava uma grande dôr, que me obrigava a isolar de tudo e da ideia de todas as coisas. Assim caminhei tres annos ; no fim d 'elles a saudade pôde mais que a minha vontade ; sem saber como, tomei o caminho de Portugal, appareci aqui. Quando cheguei, perguntei por ti -- morreu , responderam-me; perguntei pela familia Ribeiro --- desappareceu ; foi o que me disseram . Então senti-me verdadeiramente só ; parecia que a terra me tinha faltado debaixo dos pés, e que eu redemoinhava no vacuo, arrastado por um turbilhão que me fazia gyrar desatinado e sem que eu soubesse por onde ia ...

O conde parou um momento para prescrutar as feições do misanthropo, que achou frias e impassiveis.

-- Uma noite , clara e formosa como esta , encaminhei o cavallo para o lado do mar, e na volta achei-me n'esta estrada, por onde nunca viera até então.

Junto aquella casa montava então um homem a cavallo ; pareceu-me reconhecel-o, e parecia-me tambem reconhecer a voz que se despedia d'elle de cima da janella. O homem metteu á redea solta , e eu esporeei da mesma sorte o meu cavallo atraz d'elle. Ao principio não dava por isso , mas depois, reparando que era perseguido, voltou de repente , arrancou de uma espada que levava pendurada da cinta , e arremessou-se sobre mim , bradando :

-- « Que pretendes de mim , brejeiro ?

« Pederneira ! -- exclamei eu, aproximando o meu cavallo ao d'elle .

« Pelo inferno ! O senhor !...

Desmontamos, e elle assentou-se nas hervas com toda a sincera affeição que me tem .

-- «Pederneira , és meu amigo ? -- « Pois duvida ? Com mil diabos !...

-- « N'esse caso hasde guardar-me um segredo.

-- « Diga .

-- « Não dirás a meu tio que me encontraste.

-- « Como ! Pelo inferno ! ao general !...

-- «Convém que ninguem saiba que estou no Porto ; no momento em que lh'o disseres, dou-te a minha palavra de honra que desfecho um tiro na cabeça .

-- «Mas... mas ... Cem raios !... .

-- « Promettes ?

-- « Pro ... pro ... prometto , palavra de soldado !

-- «Bem , obrigado, amigo. Agora quero que me digas outra coisa. Quem mora alli, n'aquella casa ?

-- «Em que casa ?

-- «N'aquella , donde acabas de sabir .

-- « Eu não sahi de casa nenhuma.

-- « O veterano disfarçou mal a vontade que tinha de desviar a conversa . Insisti portanto .

-- « Alli mora D. Manoela , e Adelaide.

-- « Que diabo sei eu lá d'isso ? Eu não sou almanach.

-- « Moram , que já mo disseram .

-- « E quem lh'o disse ? Raios de diabos !

-- « Tu mesmo.

-- « Eu!...

-- «Sim , tu , agora mesmo, não podendo resistir á colera que te tomou , vendo que eu sabia o teu segredo .

-- « Ora historias, senhor : eu disse lá coisa alguma? Eu não sei quem alli mora, nem venho de lá .

« Pois vou eu sabel-o .

-- Assim dizendo, voltei-me para me dirigir á porta da casa . O Pederneira póz-se de um salto diante de mim .

-- « Raios de diabos ! Não vá mais adiante . Pelo inferno ! Já lhe disse que não moram alli.

« Tu mentes, e mentes tambem quando te dizes meu amigo, e fazes segredo para mim de uma coisa em que me váe a felicidade.

--- «Mas, morte do diabo ! se é um segredo...

-- « Que eu adivinhei.

-- O veterano estava diante de mim , com a espada empunhada ; ao ouvir-me estas ultimas palavras, começou a alisar o bigode, e assim esteve mais de um minuto com os olhos cravados em mim .

-- « Pois bem -- disse por fim -- é verdade, moram alli ; mas se o diz a alguem , dou-lhe a minha palavra de honra que lhe passo esta atravez do corpo , apezar de ser um amigo e de o estimar desde pequeno como filho .

-- Eis aqui, Fernão de Aguiar -- continuou o conde -- como eu voltei a Portugal, como soube da noticia da tua morte , e como Deus me deparou a casa onde vive Adelaide .

Assim dizendo, cravou os olhos no rosto do misanthropo.

-- Na noite seguinte -- continuou depois de alguns segundos -- O veterano levou-me comsigo a casa de D. Manoela . Quando entrei aquella porta para dentro, Fernão , ja mais triste do que alegre . Apezar do egoismo que tu reputas innato no coração humano , no meu preponderava um sentimento muito mais generoso , que empanava a alegria da felicidade desembaraçada que eu sentia que tinha a minha disposição. Eu amo Adelaide ; amo-a com todo o amor com que se pode amar n'esta vida . A posse eterna de aquelle anjo , é a felicidade para mim , e nomomento em que entrei aquella porta, a posse d'ella era para mim uma obrigação de honra . A filha do millionario , a mulher que tinha nascido entre sêdas e diamantes, estava alli pobre e quasi desvalida, e aquelle millionario tinha sido o bem feitor de minha familia , como tu bem o sabes, Fernão de Aguiar: O meu dever era portanto offerecer-lhe o meu nome e o amparo de um marido rico e capaz de lhe dar as commodidades em que ella tinha vivido:

o meu dever era , pois, realisar a minha felicidade.

Nunca a honra exigiu mais doce sacrificio , nunca as circumstancias se colligaram tanto com ella para preparar a felicidade de um homem . Quando entrei aquella casa , Fernão, o meu dever era pensar assim , e pensava ; e comtudo eu ia triste, tremia do momento em que lh'o tinha de dizer, porque... porque para chegar aquella felicidade tinha sido precisa a tua morte, e porque aquella divida de honra tinha por causa obrigatoria o desamparo de aquelle anjo , e em logar do amante que mendigaria de joelhos aquella felicidade, o mundo havia de julgar ver o homem de honra sacrificando-se à sua obrigação de bemfeitor .

O conde parou ; Fernão de Aguiar tinha levantado pouco e pouco o rosto para elle , e fitava-o visivelmente commovido ...

-- Fiz tudo o que pude -- - continuou o conde -- para que Adelaide e D. Manoela não suspeitassem no meu pedido, outra coisa mais do que o desejo do amante que deseja ser feliz, unindo-se para sempre á mulher que adora. Mas ainda não me acreditarás, Fernão ?

-- Juro-te pela alma de meu pae, que me senti alliviado de um pezo terrivel, que me senti satisfeito , quando ellas me pediram que espaçassemos este casamento até á volta de Paulo .

« -- Meu filho rogou-m'o ... exigiu-m'o -- disse-me ella -- Heide voltar em dez annos -- - disse-me ao partir -- rico ... millionario . Então Adelaide hade casar como lhe cumpre que case , fazendo a felicidade do homem com quem casar e não por necessidade de receber protecção de um bemfeitor: Paulo disse-me isto, conde, e eu desejo fazer a vontade de meu filho . São passados tres annos, faltam sete ; Adelaide é nova, v. exc.a novo é tambem , nada se perderá com a espera. Durante elles as portas d'esta casa estão-lhe abertas de noite e de dia , porque eu conheço-o bem , caro conde, e a melhor garantia do respeito que nos deve guardar, é a sua alma generosa , é a sua honra . Sete annos passam depressa. .

-- D. Manoela disse-me isto , Fernão , e eu fiquei contente com esta resolução . Ella tinha-o sentenciado com toda a frieza de quem não ama, e do egoismo que sacrifica tudo a um pensamento que deseja realisar, comtudo eu fiquei contente . Podes bem comprehender a razão do meu contentamento , amigo ? Se o comprehendes , e se comprehendes o que é passar sete annos, todos os dias junto da mulher que se adora , com a taça da felicidade para assim dizer posta aos labios, sem lhe tocar, á espera de que passem sete annos para poder beber , para assegurar a felicidade, comprehenderás tambem o muito que a tua morte me custou e o muito respeito que tenho pela nobreza do orgulho generoso . Olha que é preciso um sentimento de honra muito apurado, uma alma muito grande, e uma força de vontade capaz de avassallar o mundo se por ventura o tentasse fazer, para consummar o sacrificio até o ultimo instante.

Luiz de Vermoim parou de novo ; dos olhos do poeta irradiava a altivez generosa do homem que se revé com orgulho nos feitos sublimes do homem que preza em egual a si.

-- Oito mezes depois -- continuou o conde -- O Pederneira deu-me a ler uma carta de Paulo . Depois de lhe dar parte de differentes acontecimentos dizia assim : -- Em quanto ao casamento de minha irmã, faça-se a vontade de Luiz , comtudo não o negarei que desejava que a vontade de minha mãe se cumprisse . Não é por orgulho , por Deus que, não é ; o que me dizes do procedimento d'ella fez-me derramar as pri meiras lagrimas que tenho chorado, depois da morte de meu pae , e a consolação d'estas lagrimas não deve ser retribuida com um orgulho mal cabido. Tanto não ė, que de hoje ávante , não te mando mais dinheiro ; deixo-lhe a elle o prazer de prover ás necessidades da familia que tão generosamente adoptou . Já vês por tanto , que no meu desejo não entra a menor sombra de orgulho, mas é que... Tu comprehendes-me de certo , Pederneira, porque tu conheces bem minha mãe.

O conde parou um instante , e accrescentou em seguida:

-- Eis aqui como entro, e por que entro n'aquella casa ha sete annos. Ainda tens alguma coisa de que me accusares na severidade da tua consciencia , Fernão ?

O poeta ergueu-se de repente diante d'elle , com o rosto brilhante e as lagrimas a tremerem-lhe nos olhos:

-- Não -- exclamou então --- és o homem mais nobre que Deus formou . Ainda que não fosse senão para te dizer que sou ainda para ti o que era d'antes, o teu melhor amigo, eu devia sahir do meu tumulo . Deus te pague este momento -- accrescentou elle em voz tremula , e arrojando-se nos braços do conde.

Os dois amigos ficaram nos braços um do outro sem poderem fallar por muito tempo. Então o conde arredou-o docemente de si, e disse com voz sumida e timida:

-- Mas eu hoje não posso sacrificar-me por ti... e tu amal-a!... .

O poeta deu algumas voltas distrahido diante do amigo.

-- Amo-a -- disse elle por fim -- Para que te heide negar que a não amo ? Amo-a , mas nada receies por mim ; este amor não precisa já do teu sacrificio, porque este amor nada tem de commum com o que tive n'outro tempo a mulher que tu amas. Possue tu Adelaide, meu Luiz , e possue-a francamente e sem teres a menor lembrança de mim . Pela minha honra , pela amizade que te tenho, pela luz que nos allumia , juro-te, amigo, que te heide vêr marido de Adelaide, tranquillamente e como se nunca tivesse sentido amor por ella . Não o duvides; asseguro-t'o franca e sinceramente. Isto não é apenas um dito para te tranquillisar, é a verdade, juro-to pela minha honra!

E depois de dar mais algumas voltas distrahido continuou :

-- Juro-t'o, repito-te , e juro-t'o por tudo o que tu reputares de mais sagrado para poder tranquillisar-te . Vejo que me não compréhendes , Luiz ; vejo que não podes concordar esta confissão franca do meu amor, com o que acabo de dizer-te , mas eu te explico tudo, e espero que esta explicação hade convencer -te. Amei Adelaide, e amei-a como tu a amaste , como ainda a amas; mas depois d'esse tempo em que ambos à amávamos, passou-me a alma por tão dolorosas e tão duras transformações, que n'ella não ficou logar para nenhum sentimento mavioso . A ideia melancolica que se me apoderou do espirito não deixa n'elle hoje logar para o amor. Amo Adelaide, mas amo-a nas recordações do passado; a Adelaide de hoje é indifferente para a minha alma, porque a minha alma não pode hoje nutrir amor. Se tens ciumes de mim, devés tel-os unicamente com relação ao passado . Amo a Adelaide de então , mas não amo a Adelaide de hoje , porque Adelaide para mim não é mais do que uma recordação, e essa amo-a porque já não posso amar outra coisa , e ninguem póde viver sem que sinta qualquer amor. Luiz, acreditas que sentindo tamanha amizade por ti, quereria aproximar-me de Adelaide, amando-a e sabendo que ella não pode ser minha? Creio que me fazes a justiça de acreditar que teria o bom senso e a força da vontade necessaria para me retirar para longe d'ella . Pois bem quero que me leves a Adelaide e a D. Manoela , e vel-o-has, amigo , porque não poderás deixar de reconhecel-o , fallo-te verdade quando te digo que o meu amor não se alimenta hoje senão da recordação do passado.

O conde tomou-o por um braço e fel-o sentar outra vez junto de si.

-- Fernão -- disse-lhe elle então -- devo muito , devo-te tudo o que se pode dever a um verdadeiro amigo, porque as tuas palavras pacificaram o meu espirito . Vejo que já não és o mesmo homem que foste , mas és o que cumpre que sejas para continuarmos a ser felizes com esta amizade que nos liga desde o berço . E ' egoismo, não é, Fernão ? Mas que queres -- sete annos de um supplicio de Tantalo por um homem egoista. E eu não quero perder-te , nem perder Adelaide. .

-- Eu não quero perder-te a ti -- -- replicou o poeta, apertando-lhe affectuosamente a mão. -- Graças á minha razão, á minha loucura , como o mundo lhe chama de certo , hoje não temos coisa que se metta de permeio entre nós, e que nos obrigue a separar-nos .

O conde sorriu-se tristemente .

-- Fernão, desejo que Adelaide e D. Manoela saibam que tu vives, mas eu não posso apresentar-te de novo a ellas.

-- Não podes!...

-- Não ; jurei ao Pederneira que nunca revelaria a pessoa alguma onde mora a familia de Paulo .

-- E não é preciso quebrar o juramento , amigo. Bem vês que o sabia antes que m'o dissesses. Eu proverei na maneira de as tornar a ver, sem compromettimento teu .

Os dois amigos abraçaram-se de novo e de ahi a pouco despediram-se , depois de terem convencionado a maneira de se verem no dia seguinte em casa de D. Manoela .

O conde dirigiu-se para o lado de Lordello , onde vivia n'uma pequena casa que tinha alugado; o misanthropo atravessou a cidade e sahiu pela barreira da rua da Rainha, ao fim da qual habitava.

VI

A's cinco horas da manhã do dia 24 de março de 18 ..., José Lopes, vulgo o Pederneira , antigo camarada, e actualmente commensal, amigo e moleta do general Tovar, como o leitor já sabe, acordou do somno bemaventurado, em que jazia , havia dez horas, esfregou os olhos, resmungou uma praga , e ergueu-se de repellão sobre o braço esquerdo .

A primeira coisa que fez, em seguida a estes actos preparatorios, foi procurar a caixa dos phosphoros, depois accendeu a vela , e, acto continuo, consultou á luz d'ella o relogio -- monumentoso caldeirão de prata macissa, que um soldado do exercito de Lannes roubara a um prebendado da cathedral de Saragoça , quando tomaram aquella heroica cidade, e José Lopes a elle por occasião da carnificina de Victoria.

Eram de facto cinco horas.

-- Bem , cem diabos ! -- rosnou o veterano.

E depois de dar esta prova inequivoca de estar satisfeito com a sua pontualidade, accendeu um charuto , metteu-o na bocca , e , rabiscando sobre o rosto uns certos gatimanhos com a intenção de fazer o signal da cruz, sentou-se na cama, encostou-se para tráz, e puxou com as duas mãos a roupa até o pescoço. Depois poz-se a rosnar , de charuto na bocca e entre nuvens de fumo, um certo palavriado indecifravel, que levou tres minutos a resmungar, e que foi rematado por umas certas garatujas, eguaes ás primeiras, com que o veterano se deu por bem resado e bem benzido, e o dia por christanmente principiado.

Aqui faço pausa, porque sei que heide ter duas especies de leitores que farão reparo . Uns, os piedosos e devotos, não poderão acreditar que tal homem fosse christão , dando tão pouca attenção ás praticas religiosas do christianismo ; os outros, os livres pensadores, dar-me-hão por calumniador, por fazer benzer e resar um homem , que pinto no mesmo passo com tão evidentes signaes de pouco crendeiro .

A uns e a outros vou dar asdevidas explicações, que se os não satisfizerem , então não sei que lhes faça .

José Lopes foi educado por seus paes nas praticas da religião catholica , apostolica e romana, as quaes já se vê, imprimiram-lhe na alma aquelle respeito e aquella crença instinctiva, contra a qual, á hora da morte , a philosophia não se atreve a luctar em homem algum . Depois que a vida dos acampamentos callejou rudemente a alma do soldado, José Lopes deixou de resar, porque não tinba que pedir a Deus. A vida não lh'a pedia , porque fôra covardia e mostrar receio das balas; a amizade dos chefes tambem não, porque um soldado, escravo da disciplina, nada tem a recear d'elles: a saude, não era preciso , porque era rijo como um ferro ; occasiões de fazer bolsa , tambem não, porque o menos que então se deparava no exercito , era ahi a cada aldeia uma batalha, e a cada praça um assalto .

José Lopes julgou-se por tanto desobrigado de resar, e não resou mais .

Mas a velhice chegou , as suas relações com o general estreitaram -se até ao extremo, e os acontecimentos succederam uns aos outros, com importancia mais que bastante para despertar na alma rude do soldado as impressões das crenças, que na infancia a educação lhe imprimiu na alma, e para o fazer lembrar de que precisava de Deus. Depois de certo tem po começou outra vez a resar ; ao principio só pedia a Deus que o general lhe sobrevivesse, depois pedia mais outra coisa -- pedia que Paulo voltasse a Portugal, e que voltasse muito rico .

Ora aqui tem as duas especies de leitores, a razão porque o Pederneira resava pouco , resava mal, porém resava .

Depois de gatafunhado o ultimo signal da cruz, José Lopes saltou da cama abaixo, vestiu -se, barbeou-se , lavou-se, preparo-se emfim para assistir convenientemente ao trafego do dia que principiava . Depois tomou o castiçal, poisou-o sobre uma carteira que tinha no quarto , e sentou-se em frente d'ella, isto a rosnar sempre e como distrahido .

Depois abriu-a , e tirou , primeiro uns oculos de monstruosos e redondissimos aros de prata , que cavalgou em continente sobre o nariz , depois um caderno de papel fino, uma caixa de pennas de aço , cabo e tinteiro, que arranjou sobre a mesa da carteira , depois de a fechar. .

Tomou então uma folha de papel, espalmou-a sobre a mesa, e alisou-a duas ou tres vezes com a mão direita ; depois tirou da caixa uma penna, encabou-a , e experimentou-a sobre a unha do pollegar da mão esquerda, assestando sobre ella os oculos e os olhos para examinar cuidadosamente se correspondia à medida dos seus desejos. Acabados estes preparativos, arranjou-se o melhor que pôde, curvando-se sobre a mesa e inclinando um pouco , a cabeça para a esquerda e confrangendo os labios, lançou sobre o papel um A maiusculo , e em seguida escreveu as seguintes palavras, em letra garrafal, muito mais legivel e muito mais perfeita que a de certo homem que conheço , que por ahi é tido vulgarmente em conta de sabedor e letrado.

Amigo, e senhor Paulo .

José Lopes inclinou então a cabeça para o lado direito , e em seguida tornou a inclinal-a para o esquerdo, como a revêr-se na sua obra. Então levou distrahido a penna ao tinteiro , mergulhou-a , e voltou com ella para cima do papel ; mas, n'isto cahe-lhe um borrão, e que borrão !...

– Raios de diabos! -- exclamou elle , dando um salto , e fazendo portanto cahir novo borrão.

E ficou um momento a contemplar a sua destruida obra , de penna no ar e rosnando. Tomou então com toda a fleugma outra folha de papel, e renovando os consabidos actos preparatorios, lançou novamente n'ella a phrase que o borrão quasi apagára na primeira .

E parou de novo, com os olhos pregados na escripta , penna no ar e como meditando .

-- Amigo e senhor Paulo !... -- rosnou elle -- Ora sempre sou bem asno. Cem diabos! Não é isto .

E ficou um momento a roer as unhas, e com a penna empolgada e no ar ; depois coçou atraz da orelha, esfregou a testa com a mão, bateu n'ella duas ou tres palmadas, e ficou meditando um momento .

-- E não atino !... Bah ! pelo inferno !

Dizendo isto , metteu a penna na orelha, abriu a carteira e tirou de dentro um masso de cartas que es colheu entre dois ou trez que lá havia . Depois levou os dedos á bocca , começou a passar as cartas e tirou por fim uma do masso . Abriu-a , volveu-a , resmungando , duas ou trez vezes detraz para diante, praguejou , ageitou os oculos, e por fim deu com o periodo que procurava. Dizia assim :

-- Emquanto ao tratamento que me dás, Pederneira , prohibo-te expressamente que me tornes a escrever d'esta maneira. Quero que me trates como teu filho ; já não tenho pae , e a ninguem pertence hoje com mais justiça este nome do que a ti, que o estás sendo verdadeiramente meu e de minha familia . Demais este filho não te envergonha, Pederneira ; eu conheço tambem como tu o sibilar das balas, e agrada-me hoje tanto como a ti te agradou n'outro tempo . Nada portanto de ceremonias commigo ; quero que me trates como filho, entendes ? quero-o , peço-o , exijo-o , e espero que não me negarás esta prova de affeição .

-- Oh ! que rapaz, pelo inferno! -- bradou o Pederneira depois de ler, e assentando sobre a mesa uma punhada tremenda.

Depois metteu de novo à carta no masso , que guardou no seu logar, tornou a pegar na penna, olhou para o papel, e poz-se de novo a coçar na cabeça . Por fim escreveu :

-- Paulo , meu filho.

E parou repetindo duas ou trez vezes estas palavras, cada vez com ares mais satisfeitos.

-- Paulo , meu filho ! -- disse elle sorrindo-se, e dando uma grande palmada na cabeça -- Caspite ! dei no vinte . Paulo , meu filho! ... E' isto mesmo, pelo inferno !

Depois para aproveitar a inspiração, lançou-se a escrever como um damnado , e escreveu o seguinte:

-- Recebi a sua ultima, e, segundo ordena, esta vae para Inglaterra . Não sei lá bem onde é a tal povoação , mas cá segundo o meu ver, é lá para além d'esses mares em fora, porque, segundo nos diziam uns futres que andaram comnosco no tempo da guerra velha, elles eram de lá e vinham dos mares de além . Seja porém onde fôr, esta ahi vae, com mil diabos ! -- Senhor. Isto assim não tem geito, pelo inferno ! Os dez annos acabaram hontem e o senhor faz-se tolo , e manda ir ainda resposta para a tal Inglaterra. Raios de diabos ! Pois olhe que se não vem breve, escangalho-lhe a barraca e digo tudo ao general. Por quanto, senhor, isto cá vae tudo com seis centos diabos, e eu não me entendo com estas embrulhadas. Sua mãe , como lhe disse na minha ultima, teve uma indigestão de cabeça, como diz o ladrão do medico, e ficou tola de todo . Dá cada guincho que se ouve na torre dos Clerigos; umas vezes dá-lhe o demo para vestir todos os vestidos ups por cima dos outros, e põe-se então a dizer muitas coisas como quando era vivo seu pae. Faz cortar o coração, raios de diabos ! Outras vezes dá-lhe a birra para esmurrar toda a gente . Sua mana apanha então que mette. dó, e eu , pelo inferno ! já cá tenho uma boa porção de soccos. Cem diabos ! Outro dia ...

Aqui o Pederneira descuidou-se , e no enthusiasmo da escripta , trouxe mais tinta do que cumpria , e deitou novo borrão no papel. Felizmente foi no ainda limpo. O veterano soltou uma praga tremenda, e poz-se a olhar, lucente-oculo a negra prova do seu negregado descuido . Depois levou o dedo duas ou trez vezes ao borrão, e outras tantas o limpou á calça , com o que armou uma tremenda borradella .

-- Raios de diabos ! -- disse elle com os olhos fitos na desgraçada nodoa. Cocou então atraz da orelha, e depois de um momento de meditação , tomou uma resolução desesperada. Fez parenthesis, e escreveu :

-- (Vae borrão, porque tirei tinta de mais do tinteiro . Mas não estou para escrever outra carta , pelo inferno ! tenha paciencia , e tenho dito .) Depois do parenthesis continuou em seguida:

-- O conde --- grande rapaz, mil diabos ! -- tambem tem levado a sua dose, e com paciencia. Ainda hontem , sua mãe andava aos saltos como um gato com o pello ao avesso, e como elle fizesse socegal-a , chuchou dois socos nos focinhos, que lhe esmichou o sangue pelo nariz fóra.

-- Senhor. Não tem geito , pelo inferno ! e tenho dito . Sua mãe está como lhe digo, o conde e sua irmã estão à sua espera para casar, e o senhor ainda a mandar ir as cartas lá para a terra dos taes futres! Pois , por Satanaz ! se não vem breve ...

Aqui a porta do quarto abriu-se docemente, mas não tanto ao de leve que não rangessem as dobradiças. O Pederneira sentiu-a e olhou . No limiar estava o misanthropo .

-- Olá ! Por aqui a estas horas ! -- disse o veterano, escondendo surrateiramente debaixo do caderno do papel limpo a folha que tinha escripto quasi que de todos os quatro lados .

-- -- E você a escrever a estas horas !... -- respondeu elle em voz rude , que contrastava singularmente com a mellifluidade, com que o veterano quizera adoçar n'aquella occasião a súa , que era naturalmente aspera .

A esta rudeza de Fernão de Aguiar o veterano enguliu em secco, e replicou:

-- Que lhe hei-de fazer ? Se é preciso , cem diabos! Isto são negocios...

-- E grandes -- interrompeu o misanthropo, sentando-se sem olhar para elle.

Pederneira sentiu seccar-se-lhe a veia oratoria diante de aquella rudeza, que o subjugava . Os dois ficaram um momento a olhar um para o outro.

-- Não me deitei esta noite -- disse por fim o poeta .

-- Não ! E então porque?

-- Porque scismei toda ella n'uma coisa , que quero fazer por força.

-- Cem diabos ! Tão dura é ella ?

-- Quero ir hoje á noite a casa de D. Manoela .

Pederneira deu um salto , e fitou Fernão com as sobrancelhas carregadas.

-- Raios de diabos! Já lh'o disse ; que sei eu de D. Manoela ? Já sou velho para chalaças, tenho dito.

-- Cem diabos ! -- exclamou o poeta , imitando-o -- para que está você a mentir ? Pelo inferno! eu sei tudo .

-- Então que sabe, cem diabos?

-- Sei que D. Manoela mora ao fim da rua do Priorado.

-- Pelo inferno !

-- Sei que você vae lá todas as noites .

-- Mil diabos!

-- Sei que você se corresponde com Paulo.

-- Raios de demonios! ...

A esta ultima praga, o veterano ficou a olhar Fernão com os olhos espantados . Este ergueu-se , e aproximando-se da carteira, tirou debaixo do papel limpo a carta que o veterano estava escrevendo, e accrescentou apontando para ella :

-- Esta carta é para elle.

Pederneira relanceou os olhos sobre a carta , fitou-os outra vez espantados no poeta , que depois de lh'a pôr a descuberto , tornara a sentar-se.

-- Mas quem lh'o disse, milhões de raios ? -- exclamou por fim .

-- Vi-o com estes -- replicou Fernão de Aguiar.

-- Mas... pelo inferno !...

-- Homem , não faça juizos temerarios . Eu lhe conto tudo .

E o poeta repetiu-lhe em seguida o que já contára ao conde de Vermoim , acerca da maneira por que descubrira a habitação da familia de Paulo. O veterano estava verdadeiramente estupefacto .

-- Como o outro, pelo inferno!... -- rosnou elle por fim.

-- Que outro ? -- repetiu Fernão, disfarçando .

-- Esta só pelo diabo !... seria elle , pelo inferno !...

-- Elle quem , homem ?

-- O conde ...

-- Mas que conde? Que diabo de embrulhada é essa ?

-- Luizinho de Vermoim ....

-- Pois elle não morreu ! -- exclamou o poeta , apparentando o mais perfeito pasmo.

-- Qual morreu !... Pelo inferno! ... -- replicou o veterano , fitando o poeta com olhar desconfiado.

-- Pois Luiz de Vermoim não morreu ? -- repetiu o poeta apparentando-se entre alegre e estupefacto .

-- Não senhor... e, pelo inferno ! descubriu tudo ...

-- Mas então onde tem elle estado ?

-- Raios de diabos! O senhor está a mangar commigo ? Já lhe disse que não morreu . E foi elle pelo inferno ! quem lhe descubriu tudo, faltando á palavra que me deu.

-- Dou-lhe a minha palavra de honra, Pederneira ; fui eu que o descubri. Sei-o, ha quasi oito annos.

-- Ha quasi oito annos ! ... Raios de diabos !

-- Ha quasi oito annos, e vou provar-lh'o. Deixe-me vêr a pasta, onde tem as notas do banco , que recebe todos os mezes pelo correio .

O veterano fitou no poeta uns olhos tão arregalados de pasmo, que pareciam querer saltar para fóra das orbitas. Abriu machinalmente a escrivaninha, tirou de dentro uma pasta, e entregou-a ao poeta . Este tomou a primeira nota que lhe veio à mão, e apresentando-a ao veterano pelas costas, disse-lhe rudemente :

-- Veja ahi n'esse canto ; que letra tem ?

José Lopes compoz os oculos, arregalou os olhos e depois de examinar minuciosamente , balbuciou :

-- Um F ...

-- E agora n'aquelle .

-- Um A .

-- Ainda não acredita ?

O veterano deixou-se cahir machinalmente para as costas da cadeira, e ficou a olhar para o poeta alguns segundos, sem poder proferir palavra .

-- Então , foi o senhor... -- balbuciou elle por fim .

-- Eu mesmo.

-- Mas ...

-- Sou rico . Ha quasi dez annos que recebi uma herança do Brazil.

Pederneira poz-se a olhar , ora para o poeta , ora para a pasta , que tomara de cima da mesa, e por fim replicou :

-- Raios de diabos ! Quem o podia imaginar ? Mas emfim ... N'esse caso, muito obrigado, mas não foram precisas, como vê. Tome lá .

-- O quê ?

-- As suas notas.

-- Guarde-as.

-- Como ! Pelo inferno !

-- Eu nunca dei para tornar a receber . Guarde-as para si.

-- Não preciso do seu dinheiro ---- disse orgulhosamente o veterano .

-- Então deite-o á rua .

-- Como ! cem diabos !.... Oito contos...

-- Oito milhões, que fossem , pelo inferno!...

-- -- Pois eu cá ... Ahi os tem -- disse rudemente o veterano , atirando com a pasta para cima dos joelhos de Fernão.

Este ergueu-se, e a pasta cahiu ao chão.

-- Ahi lhe ficam , pelo inferno ! -- replicou elle com a mesma rudeza , e desviando a pasta com a ponta do pé -- Até á noite , que venho para ir comsigo a casa de D. Manoela .

-- Senhor ...

-- Se não, vou só.

O poeta dirigiu-se á porta para sahir ; Pederneira ergueu-se então, e trazendo-o por um braço , obrigou-o outra vez a sentar.

-- Faz favor, raios de diabos ! não se vá embora . Temos que conversar.

-- Pois então diga.

O veterano ficou um momento a olhar para elle , depois poz-se a coçar na cabeça , sempre fitando-o ; por fim arrancou enraivecido uma mão cheia de cabellos, e bradou furioso , batendo com o punho cerrado sobre a mesa:

-- Esta só pelos diabos, milhões de raios !

-- Homem , que tem você ?

-- Pois isto é assim , senhor. Pelo inferno ! é como lhe digo. Andar um homem a guardar com todo o cuidado e trabalho um segredo , e vir o diabo e dar-lhe com toda a caranguejola em terra ... n'um momento ! Raios e infernos ! -- accrescentou , arrancando n'um impeto de desespero duas molhadas de cabello -- Que dira Paulo , quando o souber ?

-- Que você não é responsavel pelo que os outros conseguem saber .

-- E o general. .. pelo inferno ! e o general, a quem estou a enganar ha dez annos ! O general ... elle , o general... Raios de diabos !

-- Quando o souber, dirá que você é um homem honrado, pois nem a elle descubriu o segredo, que queria guardar .

-- Elle pensa lá isso , pelo inferno !. .. E mais elle ; não , cem diabos! e tem toda a razão .

-- Se não pensar no primeiro impeto , hade pensal-o depois, porque o general é homem honrado . Depois o melhor é não dizer-lhe nada por ora.

-- Essa só pelo inferno . .. Essa é de cabo de esquadra. Pois o senhor ha-de sabel-o e mais o outro e elle não !... Está na tinta ; vou já metter-lhe tudo no bico.

-- Faça o que quizer ; mas olhe que faz uma tolice .

-- Então porque, senhor?

-- Porque o general com ó genio que tem , e com a amizade que consagra á memoria de Francisco Ribeiro , faz ahi um tal barulho, que se vem a descubrir tudo, antes de Paulo chegar, que é precisamente o que elle não quer , pelos motivos que sabe. Ora Paulo está a chegar.. . deve chegar mais mez menos mez, e por isso, por tão pouco tempo, é melhor deixar tudo como está, fazer-lhe a vontade.

O veterano fitou de nesga o poeta , e depois de o olhar assim alguns segundos, replicou:

-- Então que me aconselha? Tenho a cabeça atordoada, pelo inferno!

-- Que lhe não diga nada.

-- Hein ? Cem diabos!

-- Que lhe não descubra nada, já lhe disse. E adeus até à noite . Vou ao quarto de Francisco.

-- Mas então não lhe diga nada tambem a elle .

-- Eu ! Nem palavra . Adeus.

-- Olhe. Pegue lá o seu dinheiro...

-- Já lhe disse que não.

-- Olhe que o deito pela janella fóra, raios de diabos!

-- Homem , você está doido ? Se não quer ficar com elle , dê-o aos pobres por sua e minha alma.

-- Qual alma, nem qual diabo .

-- Então faça o que quizer.

E com isto Fernão de Aguiar abriu a porta , e sahiu repentinamente.

O veterano ficou a olhar um momento para a pasta que tinha nas mãos.

-- Pois sim -- disse elle por ultimo e te ensinarei, meu tratante. Não queres que eu o diga ao general, raios de diabos! Pois hei-de metter-lhe tudo no bico. Depois aguenta-te. Sabel-o ha oito annos, e mais o outro, o tal sobrinho. Pelo inferno! Tanta culpa teem elles como eu ... e queriam que eu aguentasse com o peso da tramoia!... Está na tinta , cem diabos!. .. E' já, já dizer-lhe tudo. .. Eu vos ensinarei, pelo inferno! ... Não tem duvida... todo .

Depois olhou de novo para a pasta.

-- Mas que diabo hei-de, fazer a isto ? (Ao asylo de mendicidade... Abrenuncio ; para cada vez haverem mais pobres no Porto ... Nada -- exclamou depois de um momento de reflexão -- nada de asylos, nada de creches, nada de estabelecimentos pios ... Pelo inferno ! não sei para que servem , à vista do que por ahi vae . Ainda a Misericordia ... vá ! Ou lá , ou então aos desgraçados ,que vivem sem serem conhecidos, e a braços com a miseria de portas adentro. Ha muita miseria a que o homem rico póde valer , se quizer , pelo inferno!... Mas estas não vão aos periodicos, raios de diabos !... .

Assim dizendo, atirou com a pasta para dentro da escrivaninha, sentou-se a ella , e acabou assim a carta :

-- Senhor , lá vae tudo com todos os diabos. O Fernão de Aguiar não morreu , como lhe disse n'uma das minhas. Appareceu ahi de supetão com o Chiquinho, e desconfio que andaram ambos a moinantar lá por fora. Mas não pode ser, raios de diabos ! Foi elle que mandava o dinheiro que sabe. Portanto está tudo descuberto , e eu, pelo inferno! vou já pôr tudo em pratos limpos ao general. Tenho dito .

Seu amigo José Lopes Pederneira

O veterano ficou bem meia hora a olhar para a carta, depois de lhe ter posto o remate . Mil ideias lhe passaram pela cabeça, lembrou-lhe até fugir. Mas em fim resolveu-se ao que era mais prudente e, quando deram nove horas, desceu para a mesa do almoço com o espirito no estado em que o leitor o vae encontrar d'aqui a poucas linhas.

Fernão de Aguiar, sahindo do quarto do veterano, correu ao quarto de Francisco Tovar , a quem contou francamente tudo, rematando por lhe referir o meio que acabava de pôr em pratica , para poder visitar a familia Ribeiro, sem compromettimento do conde para com o veterano.

Francisco Tovar, que ha muito não sabia do primo nem da familia do amigo de seu pae, sentiu viva alegria com as noticias que o misanthropo lhe deu , e os dois resolveram presidir d'alli por diante a todos os acontecimentos, quer o veterano continuasse a guardar segredo para com o general, quer lh'o revelasse, como Fernão desconfiava , attendendo ás olhadellas de nesga , com que elle acompanhou as ultimas palavras que disse acerca de aquelle negocio .

Quando os dois desceram para a mesa do almoço , encontraram o general sentado na sua poltrona, trauteando com todo o garbo nas mãos postas á bocca em laia de clarim o toque de reunir. O Pederneira temperava o chá com ar carregado e pensativo .

Durante o almoço o general fallou muito , e os dois amigos piscaram muitas vezes os olhos um para o outro, referindo-se à pertinacia casmurra e scismadora , com que o Pederneira não tirava os olhos da chicara , nem das fatias que umas apoz outras enfurnava à pressa no estomago.

Por fim o almoço terminou. O Pederneira levantou-se então a rosnar e com mau modo, e foi pôr-se de joelhos diante do general.

-- General --- disse então --- raios de diabos ! peço-lhe perdão.

Bernardo Tovar abriu dois, olhos como duas lanternas .

-- Raios de diabos! -- balbuciou, arredando a cadeira para traz -- O homem endoideceu ... Quebro-te a cabeça !

-- Tenho dito .. . pelo inferno ! peço-lhe perdão .

O general estendeu-lhe instinctivamente os braços e fêl-o levantar.

-- Mas de quê ? Cem diabos! --- disse então cada vez mais admirado .

-- E' que emfim ! ... -- balbuciou o Pederneira , fitando os olhos no poeta.

-- Quebro-te a cabeça ! Raios de diabos ! Que tramoia é esta ?

-- E' que sei onde Paulo deixou a mãe... E mais elle -- accrescentou , apontando para o poeta .

-- A mãe ! ... -- balbuciou o general estupefacto .

-- Sim , senhor, raios de diabos ! E sei do Luizinho, e de Paulo ... E mais elle.

O general deu um pulo de raiva.

-- Ha dez annos ! -- bradou elle suffocado -- Mariola ! Ha dez annos !... Quebro-te a cabeça .

Ao mesmo tempo empunhou a tremenda bengala moleta , e teria descarregado com ella em cheio na cabeça do resignado, mas sempre regouguento veterano, se Francisco Tovar e o poeta se não tivessem interposto entre os dois.

-- General -- disse rudemente o poeta , carregando a sobrancelha -- o Pederneira cumpriu como homem honrado .

-- Mil diabos ! Enganar-me... dez annos! Quebro-te a cabeça.

-- Tinha dado a sua palavra de guardar este segredo até de si, e guardou-o . Fez o que devia .

-- A mim ... A mim !... Quebro-te a cabeça !

-- Pelo inferno ! Eu não queria, mas elle disse-me taes coisas...

-- Raios de demonios ! E que lhe disse, seu maroto ?

-- Disse-me, pelo inferno ! -- Pederneira , o nome de meu pae está infamado ; devo limpal-o d'esta nodoa, e para isso preciso de muito dinheiro .

« -- E não pouco -- respondi eu .

« -- Em Portugal não se ajunta ; devo portanto sahir para fora, para ser rico ... muito rico , como preciso de ser.

« -- Faz muito bem , pelo inferno !

« Mas tenho minha mãe e minha irmã.. .

-- E isso que tem ? Ahi está o general...

Elle poz-se a passear distrahido, e disse-me por fim :

-- Olha, Pederneira, ha dois homens em Portugal, a quem eu deixava entregue a minha familia , e ia embora sem cuidados. Estes dois homens são o general e Fernão. Mas o general já sacrificou duzentos contos de reis á honra dos meus, e com a amizade que lhe tinha e o genio generoso que tem , não é capaz de conservar o sangue frio a ponto de a deixar viver dez annos na obscuridade. E' padrinho de minha irmā Adelaide, a quem estima mais do que filha, e por isso não poderá deixar de querer que ella se divirta , que ande por theatros e por bailes, e é isso precisamente o que eu não quero. Porque a minha familia , Pederneira, não deve apparecer em publico senão depois que eu voltar , depois que rehabilite o nome de que ella usa , e para isso é preciso que viva dez annos totalmente ignorada de todos . Ora o general não é capaz de guardar o meu segredo tanto tempo .

-- Pois elle disse isso ? Quebro-te a cabeça ! -- bradou o general fazendo de novo menção de empunhar a bengala .

-- Tal qual como lhe digo . Depois continuou: « -- Fernão é extremamente nosso amigo, considera-se nosso irmão. Mas é pobre, e deixar-lhe entregue a minha familia , seria lançar-lhe as costas um peso que lhe amarguraria a vida em mil sacrificios generosos .

« -- Mas então , raios de demonios ! -- disse-lhe eu -- a quem diabo quer o senhor entregar a sua familia ?

-- A ti -- respondeu elle .

-- A mim !...

-- « A ti, sim que nos estimas desde que eu e minha irmã nascemos, a ti que nos prezas porque eras amigo de meu pae , a ti que és um homem honrado, capaz de ser protector de uma familia desgraçada.

A estas palavras o veterano interrompeu-se, enguliu em secco, assomaram-lhe duas lagrimas aos olhos, e regougou em voz suffocada um « Raios e diabos!» que mal se lhe pôde perceber. Depois continuou :

-- « Vendi todas as nossas joias -- disse-me Paulo -- e isso chega para sustentar a minha familia durante dois annos. Mas por Deus ! não hão-de acabar sem que eu esteja já em estado de prover a todas as commodidades de minha mãe e de minha irmã. Escrever-te-hei de toda a parte, e tu me darás noticias d'ellas. Eu hei-de ser rico ... muito rico ... millionario ; e no fim de dez annos dou-te a minha palavra que hei-de alliviar-te dos cuidados que hoje te encarrego.

-- « Tudo isso está muito bem -- -- respondi eu -- mas pelo inferno ! ha um inconveniente.

-- « Então ? -- « E' que eu não sei guardar segredos para com o general. Dizemos tudo um ao outro ha muitos annos.

– « Então queres que eu deixe a minha familia para ahi ao desamparo? --- «Mas, raios de diabos ! não está ahi o general ? Paulo poz-se a scismar, e disse-me depois: -- « Diz-me, Pederneira, porto-me ou não como homem honrado, indo procurar meios de rehabilitar a memoria de meu pae ? -- « De certo , pelo inferno ! – « Devo ou não exigir que a minha familia esteja esquecida, até que possa apparecer , sem que a gente que olha para ella , insulte a memoria de aquelle desgraçado com a recordação do seu infortunio ? -- « E faz muito bem , raios de diabos ! -- « Então já vês que só a ti é que devo confiar o meu segredo.

-- «Mas que dirá o general quando o souber ? -- « Dirá que foste um homem honrado, que foste um amigo leal, e hade abraçar-te por teres dado protecção ao desamparo de uma familia que elle estima tanto .

-- «Mas emfim , senhor... pelo inferno !...

-- « Pederneira, de duas uma, ou minha mãe e minha irmã ficam para ahi ao desamparo , ou tu hasde jurar-me que não dirás a pessoa alguma que sabes d'ellas.

-- «Mas, senhor .. .

-- « Dás-me a tua palavra de honra ? -- Eu pensei, e disse com os meus botões: --- preso por ter cão e preso pelo não ter, pelo inferno ! Mas emfim , o rapaz é birrento , não ha remedio . -- E respondi-lhe affoitamente : -- « Dou-lhe a minha palavra .

--- « Dás-me a tua palavra de honra de soldado ? -- « Dou , palavra de soldado .

-- E elle partiu , e eu fiquei na tal embrulhada ... ha dez annos, pelo inferno ! Eis aqui porque o fiz .

E fizeste muito bem -- exclamou o general, que o tinha ouvido com as lagrimas nos olhos, e a rogar pragas em meia voz -- Raios de diabos ! Se o não fizesses... Quebro-te a cabeça ! E Bernardo Tovar fez de novo menção de empunhar à terrivel bengala -- clava.

-- E elle com a birra ! -- exclamou então desafogadamente o veterano, conhecendo-se na offensiva -- então, pelo inferno ! para que gritou ha pouco ? -- Mariola , quebro-te a cabeça ! -- replicou o general, mas só por habito , e com a intonação despotica do costume.

Depois ergueu-se e berrou :

-- Pederneira, já, quero vestir-me, quero ir vêr a minha afilhada. Oh ! mil diabos! A minha Adelaide ! .. .

E o general começou a saltar como um louco , a rufar tambor com a lingua, a dar vozes de commando em batalha, a dar vivas e urros, que mais parecia que estava louco , do que em seu juizo perfeito ...

-- Vamos lá -- disse então o Pederneira -- venha livrar-me d'esta carga.

Assim dizendo, pegou-lhe por um braço , e quiz dirigir-se com elle para a porta ; mas Fernão de Aguiar embaraçou-os.

-- General, duas palavras -- disse elle grosseiramente .

-- Deixa, deixa. Quebro-te a cabeça ! -- gritou Bernardo Tovar, sacudindo-se de entre as mãos do poeta .

-- Escute-me; isso que quer fazer é mal feito .

O velho militar não deu palavra , mas parou e cravou no poeta os olhos scintillantes e ameaçadores.

-- Se estima Paulo -- continuou o poeta, gravemente -- se préza a dignidade de Francisco Ribeiro , não vá por ora lá . Paulo não tarda a chegar, deve estar no Porto dentro de poucos dias. Respeite-lhe até então a vontade , e não queira dar publicidade á existencia de uma familia , que só deve reapparecer no mundo depois de elle ter realisado o grande pensa mento pelo qual tamanhos sacrificios tem feito . Demais é comprometter o Pederneira ...

-- Eu d'ahi lavo as mãos , cem diabos ! -- interrompeu o veterano .

-- Hein ! Não te entendo... pelo inferno ! -- balbuciou o general, olhando , ora o poeta , ora o veterano , e fitando finalmente os olhos no filho.

-- Fernão tem razão , meu pae -- disse então Francisco Tovar, que desde a sua chegada exercia decidida influencia sobre a vontade despotica do general.

-- Como, pelo inferno! ... Quebro-te a cabeça ! -- A sua ida a casa de D. Manoela pode dar em resultado a publicidade da existencia da familia Ribeiro, que é precisamente o que Paulo não quer , porque não quer que ninguem recorde com a vista d'ella a prosperidade de que se precipitou na desgraça o nosso pobre Ribeiro . A compaixão é sempre insulto para os homens que tem a alma temperada como a de Paulo . Demais, francamente , creio até que não deve ir por sentimento de dignidade propria. Por muito nobres que fossem os motivos que inspiraram Paulo a occultar-lhe a existencia de sua familia , a si o amigo intimo, a si que tantas provas tinha a favor da sua dedicação por ella , não é de razão que o pae deixe de se mostrar resentido pela maneira porque foi tratado por elle . O seu direito a proteger Adelaide e D. Manoela era de certo mais forte que todas as razões que o orgulho inspirou a Paulo para o desprezar. Eu não ia.

O general bateu com a bengala uma forte contoada no pavimento da sala .

-- E dizes bem -- exclamou elle --- não vou , dizes bem . Pelo inferno! Mariola! Tratar-me como um lagalhé ! ...

-- General, não é assim ... -- interrompeu rudemente o Pederneira -- Paulo ...

-- Não me replique, mariola . Quebro-te a cabeça ! você e elle são dois tunantes. Eu os ensinarei.

Depois dirigiu-se cheio de raiva a cadeira á qual se arremessou com ar arrenegado, sentando-se como quem queria colar-se bem ao assento para não ser obrigado a ir .

N'isto um criado abriu a porta da sala , e annunciou a Francisco Tovar que na sala estava esperando por elle uma senhora , que o procurava.

-- Uma senhora ! -- exclamaram todos á uma.

-- Uma senhora ! Será ... -- bradou o general pondo-se de pé.

-- Eu vou ver , meu pae -- disse o moço Tovar, levantando-se, -- e se fôr pessoa que o interesse , mando chamal-o .

Passado um quarto de hora de anciedade para todos e de tormento para o general, este exclamou:

-- Pederneira , vae espreitar. Pelo inferno ! Será ella ?

-- Que, ella ... -- balbuciou o veterano com ironia .

-- Tenho dito ... Quebro-te a cabeça ! ... Vae espreitar .

O Pederneira sahiu ; trez minutos depois estava de volta.

-- Não conheço -- regougou elle -- E' uma mulher, e fallou de dinheiro . Parece coisa assim a modo de emprestimo ou de esmola .

-- E' alguma infeliz que vem recorrer á alma generosa de seu filho -- disse então o poeta , levantando-se. Adeus, general; até logo, que venho jantar comsigo .

-- Não faltes, cem diabos! Quebro-te a cabeça.

O poeta sahiu . Ao chegar ao primeiro patamar da escada que conduzia á porta da rua encontrou Francisco Tovar, que subia taciturno e pensativo .

Os dois moços fitaram-se .

-- Sabes quem era ? -- disse por fim o moço Tovar.

-- Não – balbuciou o misanthropo.

-- Era Luiza.

-- Luiza!...

-- Vinha pedir-me cincoenta libras emprestadas. Fui buscar-lh'as e quando lh'as quiz entregar , recusou recebel-as, dizendo-me com um sorriso significativo que me esperava esta noite em sua casa .

O misanthropo recuou pallido como um morto .

-- Ha n'esse procedimento um grande mysterio , Fernão. O rosto de aquella mulher exprimia quando me fallava, uma ideia, horrivel talvez, que n'este momento lhe domina a cabeça e a vontade imperiosa . Quando me convidava a ir com o dinheiro a sua casa, estou bem certo que não era em mim que ella pensava .

-- E tu vaes ? -- balbuciou o misanthropo.

-- Talvez -- respondeu distrahidamente o moço Tovar.

O poeta fitou um momento o amigo, depois exclamou com voz concentrada:

-- Se entrares n'aquelle bordel, Francisco , não faças como eu ; não pronuncies lá o nome de Paulo . E' uma profanação, é conspurcal-o com o fetido que exhala a alma corrompida de aquella prostituta . Mais uma illusão perdida ! ...

Acabando de dizer estas palavras, o misanthropo sahiu apressadamente pela porta fóra .

PARTE TERCEIRA

Unde habeas quærit nemo, sed oportet habere.

Hoc monstrant vetulæ pueris possentibus assem ,

Hoc discunt omnes ante alpha et beta puellæ .

JUVENAL. SATYRA XIV.

I

Uma tarde de julho á beira-mar, meu caro leitor, depois dos insupportaveis ardores de um verdadeiro dia calmoso de estio , é uma das mais deliciosas occasiões, em que a alma e o corpo de um homem se podem encontrar n'esta vida.

Os ultimos raios do sol, já mais de metade amergulhado no mar, reflectem sobre elle, como sobre immenso espelho de aço polidissimo, uma luz resplande cente e chammejante , que a vista mal pode soffrer.

A léste, por sobre asmontanhas que cerram o horisonte , começa a alvorecer o clarão doirado que precede a lua ; e d 'ahi a pouco surge ella , misturando a sua luz doce e maviosa com a luz já tibia do crepusculo que o sol deixou atraz de si, e que tinge de purpura sanguinea a orla do occaso , figurando com as nuvens, que por ventura se aproximaram d'elle, castellos, cavalleiros, combates e mil outras figuras e quadros phantasiosos. O espaço embalsama-se com os perfumes , que a aragem faz rescender das flores, sacudindo-as ; e o mar, prostrado por ella se sopra do lado da terra , ou animado se corre da banda do occaso, embate-se preguiçoso contra os rochedos da costa e estende-se mollemente e ciciando por sobre a areia humedecida das praias.

N'estas occasiões tudo o que existe é poeta , porque a poesia não está na cabeça do homem , está na natureza , e, quando ella resplende em grau tão subtil, tem o poder magico de animar todas as coisas , de se fazer sentir por tudo o que existe.

E a theoria não é difficil de conceber . A observação tirou-lhe a prova em factos.

Nunca viste o burguez pansudo e de grossa fibra sebenta , o homem que não vive senão da sensação material do dinheiro , que a tudo se sujeita por elle , que de dia falla só n'elle , com elle sonha de noite , e morre agarrado á burra das usuras, deixando por principal riqueza á familia a grata consolação de se vêr livre do tyranno, que a trazia continuamente vestida de entrudo e a levava somente no domingo a passeio -- nunca viste este tal com a caixa de chumbo meia aberta na esquerda, e na direita , entre o pollegar e o indice, a pitada, de venta no ar e olho taciturno pregado em tal hora no occaso ?

E depois d'elle -- porque entre todas as coisas creadas é elle aquella com que a poesia tem a luctar mais féra e travada demanda, e tão féra, que muitas vezes retira e se dá por vencida -- Olhae os rochedos mais silenciosos da costa , olhae as flores, olhae os arbustos, olhae as arvores. Tudo isso,se colore, tudo se meneia , tudo attende, como quem sente tambem a poetica belleza do quadro. Os passarinhos trinam soltos e espaçados trinados, que parecem phrases de canções interrompidas pelo embellezamento ; e até as proprias gallinhas e os frangãos, apeżar de toda a admiravel estupidez de que são dotados, aproximam-se instinctivamente da costa para admirar e gozarem tambem ...

E se sois observador e tendes estado como eu á beira-mar, que me dizeis dos gatos , o animal mais espertalhão e inquieto que se conhece ? Não vos envergonheis de fallar n'elle ; deixae lá o sorriso de escarneo dos apostados em poetas, e que o são unica mente à meia noite , à luz de duas vélas de cêbo, e entaipados em estreito e sombrio cubiculo , onde vêem estrellas azues, labios de carmim , dentes de neve, cabello de ebano, e outras muitas coisas mais, que nunca existiram nem hãode existir n'este mundo. Deixae-os lá, que a verdadeira poesia é esta, a que Deus creou , que é tudo o que forma a natureza, e que elles não vêem porque a imaginação não lhes comprehende nem adopta outra coisa afóra os sonhos que são proprios dos supracitados cubiculos.

Porque é que o gato e outras coisas mais naturalissimas, são reputadas assumptos baixos e indignos da grandeza da poesia? Isto affigura -- se assim a modo de correcção na obra de Deus, é um quinau dado á grande providencia . A humanidade tem muitas espertezas como esta .

Mas voltando a fallar dos gatos, e continuando com a poesia da natureza, digo -- se sois observador e tendes estado á beira-mar, nunca vistes na occasião supradita este animal esperto e desassocegado, sentado elegantemente sobre alto penedo , que avisinha com o mar, attento e quieto , encaracolando e desencaracolando a ponta do rabo, como em pleno desfructo do mais perfeito bem-estar ?

O burguez acima descripto, a silex e o gato , são as provas mais poderosas da omnipotencia d'esta graciosa poesia -- os primeiros por duros, o ultimo por nervoso e desassocegado. Tudo portanto o que existe é poeta n'estas occasiões.

Eu tive em casa uma prova irrefragavel do que digo. Quando o meu Black era vivo , aquelle amigo fiel e dedicado que tive, foi muitas vezes sentar-se commigo, em tardes como esta , sobre os rochedos da costa, na Foz. Observei então por mais de uma vez a verdade d'esta theoria. O meu querido cão da Terra Nova sentava-se ao meu lado com toda a gravidade e com aquella cara pensadora, com que Deus dotou os cães, e que realça os da raça d'elle, e assim ficava por muito tempo estatico, somente interrompendo aquelle embellezamento com levantar de quando em quando o focinho e cheirar , com o que demonstrava cabalmente que saboreava deliciosamente a prova dos perfumes, com que a aragem embalsamava o espaço .

Depois vinha poisar-me a cabeça sobre o hombro e assim ficava horas e horas, a pensar não , mas naturalmente a fazer o que eu fazia -- a gozar.

Pobre Black ! Não lucraria mais o mundo que em logar d'elle morresse um, dois e mesmo todos os marotos, que opprimem a humanidade, e que em intelligencia e em qualidadesnão soffrem comparação com elle ?

Elle não fazia mal a ninguem ; era muito meu amigo, velava por mim , acudia-me nos perigos, e se guia-me a toda a parte . Eis aqui a biographia d'elle ; e a d'elles, a dos marotos?

E comtudo o meu cão morreu, e elles ficaram !

São factos estes cuja razão se não comprehende. Mysterios que pertencem a Deus, dizem os theologos; ordem do mundo, diz o povo.

Mas descanse em paz omeu Black , e escureca se a saudade d'elle com a obrigação de finalisar esta historia, que te tenho estado a contar até agora, leitor.

Era no mez de julho de 18... e precisamente n'uma tarde tal qual aquella de que, entre muitas coisas, tenho estado a discursar até agora. A ' uma da tarde d'esse dia ,um pequeno e elegante brigue appareceu no horisonte , e mal os ultimos raios do crepusculo desmaiaram totalmente diantÉda luz da lua, desfraldou algum panno, e dirigiu-se ligeiro como uma setta para a ponta do quebra-mar de Carreiros, a distancia da qual fundeou.

Este pequeno navio, que usava a bandeira ingleza, tinha á proa uma peça de rodizio , de bronze luzente como o oiro. Era tripulado por dezoito homens, vestidos á grega e armados de pistolas de cronhas lavradas e marchetadas de madreperola , de compridos punhaes, e de espadas curtas e curvas, á similhança dos yataghans arabes. O capitão era um moço de vinte e cinco ou trinta annos, baixo, magro, e pallido, e franzino do corpo, mas com um rosto expressivo da coragem para as grandes emprezas, e de olhos negros, vivos e scintillantes.

Alem dos tripulantes e do capitão havia a bordo um outro personagem. Era alto e esbelto de formas ; tudo annunciava n'elle a força nervosa. O rosto era bello d'essa belleza que só pertence aos homens que Deus creou para arrostarem com os impossiveis. A expressão d 'elle era impassivel e soberana, os olhos eram negros, a vista serena e imperiosa; a tez morena, e o bigode que lhe cobria o labio inferior espesso , negro e comprido. O vestuario d 'este homem era um mixto extravagante . Tinha na cabeça uma gorra, similhante ás que usam os marroquinos, na frente da qual se viam bordadas a oiro duas espadas encruzadas.

Vestia uma blusa de lã escura, apertada na cinta por um cinto de verniz , e usava calça de casimira de côr, e botins á europêa.

Este homem que fallava. pouco, e cujos modos eram excentricos mas soberanos, havia saltado, mal avistaram terra, para dentro do bote que vinha talingado a bombordo , e ahi ficara desde então silencioso , com as costas voltadas para terra e os olhos fitos no horisonte demarcado pelo mar. Todos lhe mostravam veneração e respeito , e todos, e sobre tudo o capitão , olhavam -o com uma certa expressão de sentimento doloroso , que lheś reluzia fortemente nos rostos.

O capitão , mal o brigue fundeou , cobriu-se com um albornoz arabe, com o qual cobriu o corpo e parte do rosto , e foi sentar-se junto da bitácola, e ahi ficou com os braços encruzados e o rosto cahido sobre o peito . A tripulação espalhou-se pelo navio , uns sentados e outros deitados, mas todos com os olhos fitos no homem do bote, que de costas voltadas para elles, parecia não se lembrar de coisa alguma, todo embebido na sua contemplação .

Duas horas depois o capitão levantou a cabeça, olhou as estrellas, depois ergueu-se, e bateu com a mão duas pancadas na borda do bote .

-- Hadgi, é tempo -- disse em voz pausada e grave.

Hadgi ergueu-se e deu um salto para dentro do navio. Os marinheiros puzeram-se todos de pé, e rodearam-o ; elle lançou então sobre elles um olhar soberano mas triste.

Passaram-se assim alguns minutos.

-- Amigos -- disse elle por fim -- vamos separar-nos... e para sempre; ouvi pela ultima vez a minha vontade . Eis aqui o nosso capitão -- continuou tomando pela mão o moço que commandava o navio -- réspeitae-o, que ás ordens d 'elle, seréis sempre o que tendes sido commigo . Deixo-vos um homem capaz de commandar-vos; não sentireis a minha falta . Paolotti -- disse então voltando-se para o moço -- dou-te este navio, é teu . Preza-o , que bárco como éste nunca as ondas do mar sentiram sobre si.

Depois deu dois passos para a frente e exclamou em tom grave e imperioso:

-- Phineas Paolotti, ajoelha.

O moço capitão cahiu de joelhos.

-- Vós que me ouvides -- disse então Hadgi -- attendei. Quando sabimos da Tortuga, vós e todos os outros nossos irmãos rogaram-me que, antes de me separar de vós, elegesse successor. Eis aqui o chefe dos irmãos da costa -- disse solemnemente, pondo na cabeça do joven capitão a gorra que trazia na sua.

Tal é a minha vontade, dizei-o aos nossos irmãos.

Depois calou-se, e fitou-os com um olhar em que se reflectia a commoção com que estava luctando .

-- Paolotti -- disse depois de alguns segundos, e ainda com a voz notavelmente commovida -- vae á Martinica e entrega este papel ao banqueiro Fielding. Dar-te-ha cem mil duros; quarenta são para ti, o resto divide-o por estes valentes. Agora... adeus... para sempre.

E assim dizendo deu dois passos para o lado do bote. Os marinheiros cahiram soluçando aos pés d'elle, e o proprio commandante ajoelhou tambem , e tomou-lhe uma das mãos que comprimiu contra os labios, banhado em lagrimas. O pirata estremeceu como se recebesse uma descarga electrica; apertou com força a mão do joven commandante, e a tremer tocou com a outra mão a cabeça dos marinbeiros que lhe estavam mais proximos.

-- Adeus... adeus... -- balbuciou , e continuou a caminhar em direcção ao bote .

Paolotti susteve-o então pelo braço .

-- Hadgi -- disse elle -- em nome de nossos irmãos, uma ultima palavra . Vamos separar-nos para sempre , mas antes responde-me -- Homem mysterioso , quem és tu ?

Hadgi parou, e cravou n'elle os olhos scintillantes; depois respondeu com voz serena, mas soberana:

-- Um homem para quem morreu ha muito a felicidade. Já t'o disse ; que te importa saber mais ?

Assim dizendo saltou para dentro do bote, que já haviam arreado ao mar . Dois marinheiros saltaram logo apoz elle, e tomaram os remos.

-- Para terra -- disse serenamente o pirata .

Então o bote impellido pelos dois valentes remadores separou rapidamente do navio, da borda do qual o contemplavam o capitão e a marinhagem com os mais vivos signaes de afflicção. Alguns minutos de pois entrou na bahia de Carreiros e abicou junto do quebra-mar. Hadgi voltou -se então para os marinheiros que o contemplavam em doloroso silencio , e exclamou :

-- Adeus; dizei aos nossos irmãos que se lembrem algumas vezes de mim .

Assim dizendo, saltou do bote para cima do que bra-mar, e de la acenou com a mão aos marinheiros, que despediram em direcção ao návio.

Hadgi dirigiu-se á extremidade do quebra-mar, na aresta da qual ficou de pé, com os olhos fitos no brigue. A lua mostrava-lhe no espaço a figura esbelta e magestosa. Minutos depois do bote atracar ao navio , ouviu-se o ruido de alar a ancora para bordo , depois o rodizio disparou um tiro, e logo o brigue desfraldou as velas e desappareceu no horisonte ligeiro como um relampago.

Minutos depois Hadgi voltou-se , e dirigiu-se pelo quebra-mar para o lado de terra. E aqui Hadgi, o pirata , desligado, por esta forma, de tudo o que o prendia á vida aventurosa do mar , deixa tambem de existir, meu caro leitor , e cede o logar a Paulo Ribeiro, muito nosso conhecido, e por quem se está esperando tão anciosamente ha dez annos.

Paulo, mal desceu do quebra-mar, parou ao encontrar-se com os pés sobre o areal da praia . Olhou em de redor de si, e esteve a olhar por muito tempo ; depois deixou cahir os braços com desalento , e soltou uma gargalhada secca , estridente , e expressiva de zombaria verdadeiramente selvagem .

-- Como eu estou ! -- disse elle por fim -- Como eu estou!! Dizem que ao pisar-se, depois de uma longa ausencia , o solo da patria , é tal o sentimento da felicidade que se apodera do coração do homem, que quasi se vê obrigado a beijar por instincto a primeira terra onde põe os pés. E eu nada sinto... nada ... nada... nada! Nem mesmo estes logares que tantas recordações me despertam da infancia , que tantas memorias me avivam de uma juventude brilhante e feliz, nem mesmo elles me fazem sentir coisa alguma ! Nada, nada sinto . Depois de dez annos poiso n'ella os pés pela primeira vez , reconheço todos estes logares, todos estes sitios, e não me sinto commovido nem pelo coração nem pela cabeça. Estou aqui sem dôr nem prazer, sem tristeza nem alegria ! Como eu estou !... Como eu estou!...

E soltou então nova gargalhada , que se prolongou pelos echos dos rochedos da costa com toda a expressão de zombaria , com que lhe arrebentara dos labios.

-- E estou no Porto ... no Porto. Para quê? Para rehabilitar a memoria de meu pae, para amparar minha mãe, para fazer a felicidade de Adelaide, e para abraçar os homens generosos, os verdadeiros amigos, que tem velado pela familia do desgraçado Francisco Ribeiro, em memoria d'elle e por verdadeira amizade por seu filho. E nada d'isto me commove ... nada... nada ! Como eu estou ! Como me puzeram as agonias que n'estes ultimos dez annos recalquei por minuto a minuto dentro do coração ! Como me tornaram os perigos e as aventuras grosseiras e sanguinolentas da vida que tenho vivido ! Nada me resta do que fui hoje -- continuou, voltando a face para o lado do mar -- Só aquelles homens me comprehendem , só no meio d'elles é que sinto que vivo . Aqui... Mas se não me restam vestigios sequer dos sentimentos precisos para viver aqui. E comtudo elles lá vão ... desappareceram para sempre ; e eu tenho de viver e de morrer aqui ! Que vida esta ! que futuro o meu!... que futuro!...

Assim dizendo, Paulo subiu acima de um rochedo, sentou-se , e encostando a face ás mãos, fitou os olhos no horisonte , no logar onde tinha visto desapparecer os ultimos vestigios do seu ligeiro navio . A maré que enchia com toda a força , encrespava as ondas ao aproximarem-se da terra, e o vento do poente que principiava a repontar mais rijo , borrifava as faces de Paulo com a espuma que ellas arremessavam de si ao quebrar-se violentamente contra os rochedos da costa .

Paulo conservou-se assim , immovel e abstracto por quasi duas horas, por fim ergueu-se , e encaminhou-se a passo cheio para a Foz. Atravessou a povoação sem fazer caso dos differentes grupos, que passeavam gozando a noite, e que paravam , ao ver atravessar pelo meio d'elles aquella figura esbelta e imperiosa , que caminhava com passo decidido e altivo, e que trajava um vestuario de homem do povo.

Paulo caminhou ao longo do rio em direcção á cidade ; ao chegar a Lordello orientou-se , depois to mou pela calçada acima, e desappareceu. O relogio da egreja de Lordello batia então onze horas da noite.

II

A casa , onde morava a viuva e a filha de Francisco Ribeiro , não era um palacio , mas apezar de ter um só andar, era espaçosa e commoda , e estava adornada com luxo verdadeiramente oriental.

Antes de D.Manoela enlouquecer , aquelle luxo não existia. A casa tinha todas as commodidades precisas e estava fidalgamente adereçada, mas não tinha aquella superabundancia de luxo , que quasi tocava no ridiculo . Esta fora resultado da triste molestia d'ella . Luiz de Vermoim , para lhe prevenir ainda os menores caprichos da vaidade que lhe era natural, e sobre a qual gyravam todas as phantasias da sua loucura, fizera então preparar a casa com a maior riqueza possivel, e tornara o interior d'ella o prototypo da habitação de um mussulmano millionario.

Nos ultimos dois mezes a molestia da pobre senhora tinha tomado um caracter assustador. Havia-se declarado a consumpção, que é pela maior parte o desenlace da febre frenetica da loucura , quando a quietação da demencia a não substitue. Mal se declarou, começou a caminhar apressadamente, e de forma que em breve a medicina desesperou de salvar a doente .

D. Manoela tornara-se por fim louca furiosa; os ultimos quinze dias tinham sobretudo sido angustiosos para ella e para a sua familia . Não comia , não dormia, não tinha socego ; despedaçava tudo, espancava com rancor todos os que se aproximavam d'ella , e soltava gritos medonhos, arrancando os cabellos e mordendo-se como se estivesse hydrophoba .

O ultimo ataque fôra terrivel; por fim cahiu n'uma somnolencia, depois n'uma verdadeira modorra, e d'ella passou para um somno socegado e aprazivel. O ardor da febre foi pouco e pouco refrescando, a respiração tornou-se gradualmente natural, o pulso convulso, rijo e ardente, acalmou , retrahiu se e pouco e pouco foi-se fazendo mais pequeno a ponto de quasi se tornar insensivel. Estas melhoras subitas e tão notaveis deram a toda a familia as mais lisongeiras esperanças.

São onze horas e meia da noite. O medico acaba de sahir animando Adelaide, e promettendo-lhe a saude da mãe ; mas ao despedir-se do conde disse-lhe francamente que á doente restavam apenas algumas horas de vida.

O conde voltou para o quarto , e fez deitar Adelaide sobre um magnifico sofá. A pobre menina cansada de velar e fatigada pelas dolorosas commoções de tantos dias, cahiu por fim n'um somno profundo e reparador. Então o conde deu parte ao Pederneira da triste noticia que o medico lhe tinha prenunciado.

O veterano não quiz acreditar ao principio. Reagiu com toda a força contra o prognostico fatal, e em nome de aquellas extraordinariasmelhoras mandou ao diabo a medicina e o medico , que apostrophou com epithetos pouco lisongeiros. Mas o conde não o deixou permanecer muito tempo só n'aquella convicção agradavel; vendo que precisava de toda a firmeza d'elle para a desgraçada occasião que se aproximaya, tratou de convencel-o, e conseguiu-o por fim . Apenas convencido, Pederneira ficou aniquilado; não era a morte de D. Manoela , a quem , a fallar a verdade, não tinha muita affeição , que o poz n'aquelle estado , era o desapontamento de ver que a morte lhe pregava a mangação de o não deixar entregar a Paulo que esperava em pouco , sans e salvas as duas mulheres que havia confiado aos cuidados e á vigilancia d'elle .

Amuou portanto , e sentou-se cabisbaixo e taciturno aos pés da cama, meditando cheio de raiva na pirraça que a sorte lhe pregava . Depois de muito meditar , tomou animo, porque encontrou finalmente uma razão que o desculpava de aquella imaginada responsabilidade.

-- Bem pensado o caso -- dizia elle com os seus botões -- a culpa é de Paulo , cem diabos! Se aquelle maroto tivesse cumprido á risca a palavra que me deu , já cá estava ha quatro mezes . Então achava a mãe viva, não estava morta , porque está tôla, raios de diabos ! Portanto a culpa é d'elle , tenho dito .

Assim dizendo, cruzou os braços com frenesi, e encostou-se na cadeira cada vez mais amuado e mais enfurecido .

O conde tinha ido sentar-se junto de Adelaide. A pobre menina , que adormecera com a ideia das melhoras da mãe, sonhava de certo sonhos felizes, porque sorria com um sorriso celestial. O conde sorriu tambem , mas os olhos banharam-se-lhe de lagrimas, porque se lembrou de que ao accordar, o seu pobre anjo já havia de achar-se no meio de toda a triste e medonha realidade que a aguardava .

Passou-se assim um quarto de hora. De repente D. Manoela ergueu-se, olhou de redor de si, passou a mão pela fronte, e deu vivos signaes de não reconbe cer o logar em que estava .

-- Adelaide, minha filha -- disse então com voz fraca e sumida.

-- Está alli, minha senhora -- disse então o conde, levantando-se e apontando para a pobre menina que dormia profundamente.

-- Dorme? -- disse D. Manoela , estendendo a cabeça para a vér -- Pobre anjo ! O que tem soffrido ! Deixe-a dormir... E comtudo -- accrescentou ella com voz cada vez mais fraca -- é preciso accordal-a d'aqui a pouco . .

-- E v. exc.a como se acha ? -- disse o conde aproximando-se do leito .

-- Com a morte aqui -- disse ella apontando para o peito .

-- Minha senhora... D. Manoela sorriu tristemente.

-- Conde -- disse ella -- chegue-se a mim .

Depois tomou-lhe uma das mãos entre as d'ella, e poz-se a olhar para elle com os olhos humidos de lagrimas.

-- Obrigado, oh! muito obrigado -- disse ella por fim -- Deus lhe pague tudo o que tem feito por mim , Luiz , que eu já não tenho vida para tanto . Desejava mostrar-lhe quanto o estimo, mas Deus não quer ; e demais que podia eu fazer até aqui? -- continuou sorrindo com a tristeza do orgulho impetente -- Agora morro, mas, juro-lhe por minha filha , que a maior dôr que me acompanha é não o poder chegar a vér feliz, unido com a minha Adelaide...

-- Minha mãe ! .. . -- balbuciou o conde, cahindo de joelhos junto da cama.

-- Sim , sim , tua mãe -- exclamou D. Manoela , tomando-lhe a cabeça entre as mãos, e beijando-o nas faces com verdadeiro amor materno -- sim, tua mãe, meu filho adorado. Não te peço que faças a felicidade d'ella ; seria um crime, porque seria mostrar que duvido do amor que lhe tens. Homem nobre, homem generoso , alma verdadeiramente de fidalgo...

Depois estendeu a cabeça para onde Adelaide dormia socegadamente , e continuou com voz cada vez mais surda e com expressão, de sentida tristeza:

-- Pobre Adelaide. .. Mas Deus não quer .. . não quer... Sinto que morro sem te ver feliz , nem tornal-o a vêr a elle, o meu Paulo... o meu filho.. Deus não o quer...

N'isto voltou os olhos para o veterano, que regougava cada vez mais amuado , e cada vez mais encolhido pela raiva do que se ia passar contra a sua vontade e sem que a sua apparição servisse de nada.

-- Pederneira -- disse D. Manoela.

-- Pelo inferno, Senhora D. Manoela ! -- disse elle levantando-se e chegando-se para junto d'ella -- Que diabo de nova mania é essa ? Pois agora dá-lhe...

Nos labios de D. Manoela assomou um sorriso tão triste e doloroso que gelou a palavra na lingua do veterano .

-- Pederneira -- disse ella então -- não devo morrer sem lhe dizer tudo o que sinto por si. Houve um tempo em que lhe tive odio ; mas hoje... Tive talvez todos os defeitos, mas ingrata nunca o fui. Hoje, se Deus me permittisse a felicidade de tornar a abraçar o meu Paulo , havia de dizer-lhe : Meu filho, ama Luiz como teu irmão; ama e respeita o Pederneira como o teu pae e o bemfeitor de tua familia .

-- Raios de demonios ! -- regougou o veterano, sacudindo a mão que a moribunda tinha entre as de ella .

-- Amigos como v.m.ce ha poucos, Pederneira -- continuou ella -- homens assim são raros. Desejava dizer-lhe tudo o que a gratidão me faz sentir por si, mas não posso . Qualidades como as suas ennobrecem um fidalgo, mas n'um homem do povo são a excellencia da virtude. Pederneira, diga a meu filho que eu, ao morrer, fiz isto .

Assim dizendo levou aos labios já frios a mão do veterano, e beijou-a.

-- Raios de diabos ! senhora D. Manoela ... -- bradou o veterano, batendo no pavimento uma patada violenta . E as lagrimas saltaram-lhe pelos olhos fóra .

-- Minha mãe ! -- exclamou Adelaide, erguendo-se de repente.

-- Filha... minha Adelaide -- disse D. Manoela , desviando o conde e o Pederneira de diante.

-- Minha mãe --- replicou Adelaide, saltando abaixo do sofá e correndo para ella .

-- Minha senhora -- balbuciou o conde, cravando em D. Manoela um olhar significativo.

D. Manoela correspondeu-lhe com um sorriso , e começou a passar uma das mãos pela cabeça e pelas faces de Adelaide, entretanto que com a outra apertava uma das d'ella .

Ao sentir o contacto de aquellas mãos, já frias como as de um cadaver , Adelaide soltou um grito doloroso , e cahiu de joelhos.

-- Minha mãe... minha mãe!...

-- Filha... minha Adelaide, minha filha -- disse a moribunda com voz cada vez mais sumida -- Tu vaes ser emfim muito feliz com elle, e nós seremos... Eu morro -- exclamou de repente, deixando cabir a cabeça para traz .

Adelaide soltou um grito angustioso e dilacerante .

N'isto ouviram-se duas violentas argoladas na porta , que se abriu , e logo sentiu-se tornar a fechar-se sobre a pessoa que entrara, e cujos passos se ouviam a subir a escada.

Ás duas pancadas, D. Manoela ergueu a cabeça e poz-se a escutar.

-- É Fernão -- disse ella -- Graças a Deus; não morro sem me despedir d'elle.

A porta do quarto abriu -se então, e Paulo Ribeiro entrou para dentro.

Ao dar com os olhos n'elle, D. Manoela ficou um momento suspensa ; depois sentou-se de um pulo na cama, deu um grito, e estendeu os braços para elle.

-- Filho... meu Paulo, meu filho!

-- Minha mãe -- replicou elle serenamente , e caminhou direito a ella.

D. Manoela abraçou-se n'elle com todo o frenesi do amor materno.

-- Filho... filho, torno a ver-te... Eu morro...

E a cabeça cahiu-lhe pesadamente sobre o hombro do filho. O rosto de Paulo não trahia a menor impressão ; estava frio e sereno, é como se aquella scena dolorosa lhe fosse completamente indifferente . Amparou o corpo da mãe com o braço esquerdo, e com a mão direita levantou-lhe a cabeça.

-- Morrer agora, minha mãe!... -- disse elle sempre com a mesma impassibilidade.

D. Manoela ergueu um pouco, mas já a custo, a cabeça .

-- Paulo , vens rico ... muito rico ? .. .

-- As minhas riquezas são tantas que não podem contar-se.

Um relampago de soberbo orgulho, rebrilhou momentaneo nos olhos da moribunda.

-- Oh ! sermos grandes. .. outra vez poderosos... Eu morro...

E resvalou dos braços do filho para sobre os travesseiros .

-- Eu morro -- disse então com voz quasi que sumida de todo morro... agora . Filhos... Paulo , faz-me um enterro digno da minha posição...

Assim dizendo estremeceu , e a cabeça resvalando de travesseiro em travesseiro, veio parar no colchão. Os olhos porém estavam abertos, e fitados com orgulho no filho.

Alguns segundos se passaram sem que D. Manoela desse signaes de vida. Então Paulo poz-lhe a mão sobre o coração ; já não palpitava.

-- Está morta -- disse elle , voltando- se impassivelmente para os seus dois amigos. E desceu as palpebras do cadaver.

Ao ouvir estas palavras, Adelaide deu um grito , e cahiu desmaiada aos pés do irmão . O conde e o Pederneira recuaram dois passos atraz, assombrados por aquella medonba serenidade.

Então Paulo tomou a mãe nos braços, e foi deital-a sobre o sophá ; depois voltou-se, e, encostando o cotovello ao marmore de uma commoda, perguntou, sempre com a mesma impassibilidade com que havia entrado:

-- Pederneira, cumpriste as minhas ordens?

-- Está tudo prompto.

-- O palacio de meu pae está preparado de modo que possa ir habitar n'elle um homem da minha for tuna? -- Está como mandou. -- Luiz -- disse elle, voltando-se para o conde -- lá em baixo está uma sege. Creio que será a tua.

Toma tua mulher , e vae com ella para o palacio onde habitou Francisco Ribeiro. Lá acharás o numero de criados e tudo o que é preciso ao esplendor da opulencia de um grande millionario. Pederneira , acompanha-os, e amanhã dá as ordens precisas para que o cadaver de minha mãe seja depositado n'um carneiro na Lapa... até que se lhe faça o seu mansoleu e o seu enterro de rainha.

Assim dizendo atravessou pelo meio d'elles, e dirigiu-se para junto da cabeceira da cama da mãe. O conde e o veterano olharam um para o outro , mas não se moveram . Elle parou de repente , e olhou-os com olhar sobranceiro. Então a voz imperiosa e soberana de Hadgi, o corsario , reappareceu nos labios de Paulo Ribeiro.

-- Parti -- disse elle --- quero ficar só.

Os dois moveram-se, e caminharam machinalmente em direcção a Adelaide.

-- Pederneira -- disse elle de novo -- leva comtigo todos os criados. Quero ficar só... só em casa .

E accentuou tão imperiosamente estas ultimas palavras, que o rude é valente veterano estremeceu, e sabiu apressado atraz do conde que já descia pela escada abaixo com Adelaide desmaiada nos braços.

D'ahi a pouco ouviu-se o rodar de uma sege, que despedia a galope, e minutos depois soaram nas escadas os passos de umas poucas de pessoas, que desciam apressadas e como a medo, depois o estrondo da porta da rua, impellida de repellão contra o batente , echoou na solidão d'aquella casa, onde Paulo ficára a sós com o cadaver da mãe .

Então elle ageitou-lhe a cabeça sobre os travesseiros, sentou -se defronte d' ella n'uma cadeira, fincou os cotovellos á cama, encostou a cabeça as mãos , e fitou os olhos no rosto do cadaver.

Esteve assim um quarto de hora, sereno, impassivel e sem mover-se. Ergueu então a cabeça de repente , bateu com os punhos cerrados no colchão, e exclamou em voz concentrada e com os olhos a luzirem de raiva ferina :

-- Nada... nada sinto . Acaso estarei morto tambem ?

E ficou assim alguns minutos mais com os olhos fitos no rosto do cadaver .

A porta abriu-se então, e Fernão de Aguiar entrou para dentro do quarto.

A figura d'estes dois homens contrastava singularmente uma com a outra. Eram a expressão das rentes especies da misanthropia , de que cada um les estava possuido. A de Paulo era elegante e morada pelos disvelos de quem cuida de si; o rosto era frio , sereno e impassivel: a de Fernão era desalinhada e rude, e o rosto contrahido e carregado pelas tintas de um continuado phrenesi colerico .

Ao ver entrar aquelle homem , Paulo ergueu-se, e disse serenamente com voz imperiosa e severa :

-- Quem é e que quer d'aqui ? -- Fernão parou um momento, depois , reconhecendo-o, replicou com a mesma severidade e a mesma soberania :

-- Sou um homem que, entretanto que tu contractavas em negros e pirateavas nos mares da India , fugia dos homens e odiava a humanidade em nome das virtudes e dos infortunios de Francisco Ribeiro.

-- És então Fernão de Aguiar ?

-- Sou.

-- Precisava de estar só , mas a tua presença é talvez providencial n'este momento .

-- Ainda crês n'isso ?

-- Creio nas necessidades que tenho, e respeito as que não posso comprar com o meu oiro. Por isso é que creio , que para o que pretendo saber de ti, a tua presença é para mim tão preciosa n'este momento , como a solidão em que pretendia passar esta noite. Senta-te e escuta .

Fernão de Aguiar tomou uma cadeira, e foi sentar-se junto de Paulo , em frente do cadaver.

-- Está morta ? -- disse elle apontando para D. Manoela.

-- Está -- respondeu serenamente Paulo .

Os dois moços fitaram-se então profundamente .

Paulo reconheceu em Fernão de Aguiar uma alma da tempera da sua.

-- Este cadaver -- disse elle por fim -- é o de minha mãe... E vê como eu estou ! Não sei se estou vivo, se estou morto . Entretanto que estava no mar, no meio d'aquelles homens, sentia que vivia ; e sentia-o, porque sentia bater-me o coração e inflammar-se-me a cabeça, no furor de uma abordagem , no revolver de um combate , no meio de uma tempestade, usando de todo o meu poder de chefe dos irmãos da costa . Depois que puz pé em terra , não sinto nada ... Nem isto me faz sentir -- continuou apontando para o cadaver da mãe -- nem isto!... Estou ha um quarto de hora com os olhos fitos n'aquelle rosto , a lembrar me de segundo a segundo, de instante a instante , que esse cadaver foi minha mãe, que morreu , que a perdi. .... E nem uma lagrima, nem uma dôr, nem o mais ligeiro aperto do coração , nem o mais leve signal de sentimento ! Não sinto nada... nada... nada ! Não sei se estou morto , se estou vivo. .

-- Estás louco , estás como eu -- replicou o poeta, em voz surda.

-- Estarei; seja como tu quizeres. O que me parece é que isto é a completa extincção da sensibilidade moral. Falta -me a ultima prova ; tu podes dar-m'a . E Luiza?

-- Tornou-se uma mulher infame; é uma prostituta de bordel.

-- Sim ? Conta-me tudo.

E Paulo recostou-se no encosto da cadeira , tão sereno e tão impassivel como estivera até então .

O misanthropo lançou sobre elle um olhar rapido e prescrutador. Depois contou-lhe tudo, desde a epocha em que Paulo deixara Portugal, até o dia em que Luiza foi procurar Francisco Tovar.

-- O casamento -- continuou elle -- não pôde fazer -se dentro dos quinze dias marcados por Nuno de Athayde, mas o prostibulo não deixou por isso de abrir-se . O casamento não se fez, ao principio porque houve difficuldade em reunir os documentos precisos; depois porque Nuno , avisado de que estava a morrer um primo seu, unico herdeiro do grande morgado de que é senhor o irmão de sua mãe, partiu para o Minho, para assistir à catastrophe, que o faria senhor de uma grande fortuna. Segundo me disseram , o rapaz não morreu , e Nuno , depois de se demorar quatro mezes, voltou com a esperança burlada e com todos os papeis necessarios para ultimar o casamento . De hoje a oito dias assignam-se as escripturas , por occasião das quaes dão um grande baile. Querem principiar a publicidade d'aquella mina futura.

-- Escripturas !...

-- É que Nuno ainda não perdeu de todo a esperança de vir a ser herdeiro do primo. E quer precaver-se para todas as eventualidades. É homem prudente e honradissimo. Ora aqui tens noticias da mulher que amaste, Paulo Ribeiro .

Paulo ouvira toda a historia impassivelmente e sem se mover. Depois que o poeta acabou de fallar ficou um momento silencioso, e em seguida rompeu a meia voz n'estas palavras:

-- Nada sinto... nada . É como se nunca a tivesse amado , como se não tivesse idolatrado essas mulher com todas as potencias da alma. Nada sinto... nada.

-- És mais feliz do que eu -- balbuciou em voz surda o poeta.

Depois ficaram calados por alguns minutos.

-- Vae-te embora, Fernão -- disse então Paulo Deixa-me ver se a continuação de olhar para este cadaver desperta em mim alguns signaes de sensibilidade. Vae-te embora, deixa-me só.

Fernão levantou-se, e sahiu.

Paulo tornou a fitar os olhos no rosto do cadaver.

Esteve assim uma, duas e trez horas, sempre sereno e sempre frio.

-- Nada!... nada!... disse elle por fim -- Tambem eu estou morto.

Quando ás oito horas do dia seguinte o Pederneira entrou no quarto de D. Manoela, achou Paulo a dormir profundamente com a cabeça repoisada sobre o travesseiro da cama onde jazia a mãe, e quasi a tocar na cabeça do cadaver.

III

Mal chegou a noite , o cadaver de D. Manoela foi conduzido para um carneiro particular no cemiterio da Lapa , e Paulo foi installar-se no palacio que fora de seu pae, e onde já o esperavam Adelaide e Luiz de Vermoim .

N'essa mesma noite chegou o paquete, e n'elle as bagagens do novo millionario . Eram conduzidas por um negro de cincoenta annos, pouco mais ou menos, alto , reforçado, mas secco de fallas e de maneiras.

Respondia em portuguez corrente a todas as perguntas que lhe fizeram concernentes ás malas e bahús de seu amo, mas precisamente, e usando só das palavras necessarias para exprimir a ideia que queria communicar. A tudo o mais não respondia ; por mais perguntas que lhe fizeram acerca do dono de aquella bagagem , não deu resposta, e ficou tão indifferente como se não fora com elle . Da mesma maneira o ficou a todas as meias palavras insolentes com que lhe epithetaram aquelle silencio descortez ; só quando do proceder d'elle começaram a tirar illações pouco favora veis para o amo, é que cravou nos guardas da alfandega, que o faziam , um olhar tão ferino e selvagem , que elles voltaram-se rosnando sempre, mas arredaram-se para longe d'elle . O resto da noite passou-o sentado á porta da casa da guarda na Foz , onde as bagagens tinham sido depositadas, e quando no dia seguinte foram conduzidas para a alfandega, acompanhou-as e só as deixou depois que as viu entrar para dentro do estabelecimento fiscal. Então partiu pela rua de Ferreira Borges acima, sem perguntar nada a pessoa alguma, e como plenamente conhecedor do terreno que pisava. Meia hora depois voltou acompanhado por um negociante inglez , quedeclarou que dois bahûs continham roupa branca , outros dois roupas e armas de differentes paizes da Asia e da América , um papeis, cartas, livros, e um outro joias, diamantes e pedras preciosas no valor de quinhentos contos de reis.

Corrido o despacho e verificada toda a bagagem , o preto chamou gallegos e em voz alta mandou-a conduzir para casa de Paulo Ribeiro.

N'um momento correu na praça a noticia da chegada do millionario ; o grande valor das joias que tinha despachado pasmou toda a gente que a frequenta , mas o pasmo redobrou quando, distribuido o correio , as casas mais ricas do Porto receberam ordens de todas as praças para onde commerciavam , annunciando-lhes que Paulo Ribeiro era portador de letras de cambio sobre ellas por sommas immensas, e quando sobre tudo se soube que o paquete tinha trazido para o banco dois mil contos de reis em moeda ingleza, deposito que o banco de Inglaterra fazia por ordem de Paulo , e que o mesmo estabelecimento portuguez tinha recebido tambem de todos os bancos da Europa, ordens que punham á disposição do millionario sommas verdadeiramente fabulosas.

Esta riqueza immensa fez na praça e em toda a cidade impressão extraordinaria. Ao mesmo passo que todos discutiam sobre os mil modos imaginados, a que attribuiam a fortuna do filho de Francisco Ribeiro , todos procuravam vel-o como verdadeiro prodigio , todos desejavam travar relações com elle , todos em fim fallavam d'elle. Quarenta e oito horas depois de ter posto os pés na terra , onde seu paemorreu infamado, Paulo era proclamado litteralmente heroe de todas as grandes virtudes e de todas as grandes qualidades, que a imaginação pode crear para divinisar um homem .

Paulo Ribeiro conseguira portanto um dos fins a que balisavam os seus desejos, quando abandonou o Porto, por occasião da desgraçada morte do pae ; a sua chegada era badalada pelas cem boccas da fama, e a sua enorme fortuna amordaçava os sabujos do dinheiro , e fazia-os rojar reptilmente diante de si.

Entretanto o heroe de todos estes rumores encerrava-se dentro do seu palacio, que tinha sido adereçado com riqueza para fazer inveja aos mais ricos homens do oriente , e recusava-se a communicar com o publico . Os mais ricos capitalistas, as familias mais nobres e as mais importantes da cidade, todas emfim que tinham frequentado os salões de Francisco Ribeiro , cuja memoria lhes era agora avivada pelas immensas riquezas do filho, correram a visital-o. Paulo recusou -se a receber pessoa alguma; ninguem conseguiu subir aquellas escadas, e mais de uma familia, que teve a imprudencia de apear antes de mandarin quirir o guarda-portão, passou pelo desapontamento de ter de tornar a entrar para dentro da sege, porque o cerbero agaloado e cuberto de velludos, dizia lhes com muita civilidade, mas muito peremptoria mente, que seu amo nem a senhora D. Adelaide não recebiam pessoa alguma.

A amabilidade sabuja esteve assim torturada quinze dias, mas nem por isso o nome de Paulo soffreu coisa alguma. Os mais insultados eram os que mais o preconisavam , justificando o insulto recebido com o epitheto de excentricidade ou outro ainda mais lisongeiro, é voltando uma, duas e tres vezes a carga sempre com o mesmo resultado.

Ao decimo dia , Paulo dera porém signal de si.

Os credores de seu pae eram convocados para reunirem d'ahi a cinco dias em casa do general Tovar, a fim de receberem os seus creditos. Paulo mandou fazer a mesma convocação pelos jornaes, accrescentando en tão que apezar de não ser obrigado por lei a pagar aquellas dividas, não podia consentir que a memoria de seu pae, ficasse perpetuamente á merce de certa ordem demiseraveis , para quem a desgraça é assumpto de mofa e de escarneo, e para cujas boccas é sómente mordaça o dinheiro.

Nem mesmo este annuncio insultante alterou coisa alguma a admiração enthusiastica que Paulo havia produzido . Isto era nobreza de almà, grandeza de pensamentos, era tudo. Paulo ficou cada vez mais heroe , apezar de que o latego que havia empunhado fizesse escorrer sangue vivo do brio dos seus amaveis admiradores .

Durante aquelles quinze dias Paulo viveu apenas com a sua familia , com Fernão e com o general. A este foi visital-o ao quarto dia depois de chegar. A scena merece descripção especial.

Bernardo Tovar tinha sabido da chegada de Paulo logo no seguinte dia , mas persuadido pelo filho a fazer respeitar a sua dignidade, como dizia , tinha resistido , a muito custo, á tentação de correr a procural-o e abraçar a sua afilhada. Já se vê o que o pobre velho não soffreria durante aquelle tempo ; por mais de uma vez esteve em pontos de romper por todas as considerações, e ir lá , mas o espirito teimoso e casmurro foi como barreira que lheatravancava a porta da casa, e o fazia socegar.

Ninguem n'aquelles dias o pôde aturar ; andava rabujento e intratavel, chegando a tal ponto a exacerbação do seu genio , que passou das ameaças aos factos, e quebrou a cabeça a um dos criados por uma verdadeira ninharia Paulo e Adelaide vinham visital-o com Luiz de Vermoim no dia seguinte . Esta noticia foi confirmada por Fernão de Aguiar, que depois da chegada de Paulo , e depois de ter visto Adelaide tornara-se cada vez mais misanthropo e rabujento .

Ao saber que estava em vespera de ver realisado o seu mais querido desejo , o general ficou atrapalhado. Receiava o primeiro encontro , queria e não queria , daria emfim toda a sua fortuna para que os dez annos de ausencia não existissem , e elle poder encontrar os filhos de Francisco Ribeiro, e o filho de sua irmā com toda a semceremonia de quem os tinha visto ainda no dia antecedente .

O primeiro encontro, a lembrança d'elle , figurava-se-lhe bicha de sete cabeças, antolhava-se-lhe verdadeira hydra de Lerna. Não dormiu toda à noite nem deixou dormir o Pederneira , que foi incommodar vinte vezes ao quarto apparéntando futilissimos motivos. Quando raiou a aurora , o general fez por todos os criados a pé, e a lembrança de que era aquelle o dia do grande acontecimento , centuplicou n'elle a alegria e o receio , com que o desejava e temia ao mesmo tempo. Bernardo Tovar estava velho , bastante velho; por isso a exaltação febril d'estes dois sentimentos encontrados fez n'elle muito maior effeito do que em outro qualquer de outra idade.

Quando desceu para a mesa do almoço, vinha abstracto e quasi maluco . Rosnava e praguejava sem ninguem o entender ; despejou a chavena do café com leite dentro do assucareiro , imaginando deitar assucar na chichara; trincou duas ou tres vezes a lingua nos dois unicos queixaes que lhe restavam do lado direito , e por fim passou ao Pederneira o bule do chá, de que o filho se estava servindo, para que lhe temperasse outra chavena de café . Francisco Tovar que partilhava toda a alegria do pae sem partilhar o receio, e o veterano que estava frio e impassivel como quem não esperava novidade, sorriam á surrelfa dos enganos do pobre general. Elle raivava contra o sorriso, e apostrophava os escarnicadores com epithetos insultantes, com pragas e com ameaças.

Findou o almoço e o general entrou no capitulo da espera, com toda a impaciencia que o esperar é capaz de produzir em genios como o d'elle. Esperou meia hora , mas nada ; uma, nada ainda. Deram dez, deram onze, deu meio dia... e aqui a tempestade arrebentou. Bernardo Tovar persuadiu-se que o Pederneira o tinha enganado, e começou a injurial-o desesperado. O soldado, seguro da justiça da sua causa, respondeu ousadamente e com todo o desassombro . Puzeram-se a berrar como dois , toiros, fizeram um tal barulho de pragas e de gritos que a voz de Francisco Tovar e as gargalhadas com que acompanhava os esforços que fazia para os aquietar, perdiam -- se abafadas pelo vozear da tormenta .

Por fim , n'uma das occasiões em que a tempestade ensurdeceu , baixando de tom , sentiu-se o rodar de uma sege , depois a sege parou, e em seguida ou viram duas fortes aldrabadas na porta.

Pederneira correu como um gamo para a porta da sala, e desappareceu n'um momento ; Francisco Tovar ergueu-se machinalmente , e o general empallideceu , encolheu-se, ficou com os olhos cravados no caminho por onde o veterano sahira arrebatadamente.

Aquellas duas aldrabadas soaram nos ouvidos do general como a trombeta do juizo finál. Era chegado o momento solemne ; as feições contrahiram-se-lhe, os olhos espantaram-se-lhe, e o queixo de baixo tremia convulsivamente .

Minutos depois a porta abriu-se, e o Pederneira, cuja voz já se sentia trovejando pelo corredor, appareceu a ella , e disse em tom furioso e com cara de quem resentia ainda toda a raiva da recente polemica.

-- E' como lhe digo. Nem o diabo é capaz de o aturar. Eil-os ahi estão.

Adelaide, Paulo e o conde assomaram então á porta da sala . Bernardo Tovar ergueu-se como cadaver galvanisado .

Adelaide correu rapidamente para elle , e atirou-se-lhe aos braços ; o general, sem poder dar palavra, com as lagrimas a correrem-lhe pelas faces abaixo, e todo o corpo a tremer convulsivamente, apertou-a com o braço esquerdo contra o coração, depois pas sou-lhe a mão direita pela cabeça e pelo rosto umas poucas de vezes, e por fim poz-se a beijal-a, abafado em soluços convulsivos .

Paulo e o conde tinham-se tambem aproxima do d'elle. Luiz de Vermoim contemplava esta scena com os olhos humidos de lagrimas ; Paulo frio e impassivel, mas com os labios encrespados por um ligeiro sorriso .

O general reparou finalmente n'elles. Deu então ao rosto a expressão de grande colera, atravez da qual não podia dissimular toda a alegria que lhe ia na alma, e exclamou em voz temerosa:

-- Tornastes! Raios de diabos!

Assim dizendo, empunhou a terrivel clava, que lhe servia de bengala , e atirou um sexto, que felizmente parou a meio caminho, ficando em attitude ameaçadora , espada em punho e braço levantado.

Mas Adelaide levantou então o rosto para o fitar bem . Ao dar com os olhos nas feições venerandas de aquelle homem generoso, que fôra o amigo querido de seu pae, e que ella se habituara na infancia a olhar como uma pessoa toda de amor para a sua familia, as recordações pesaram-lhe de mais sobre o coração, e abafaram-a . Empallideceu , deu um gemido , e cahiu desmaiada nos braços do honrado velho.

Ao vêl-a pallida e como morta , Bernardo Tovar cahiu sem forças sobre a sua poltrona. Lançou em de redor de si um olhar vago e espantado , e por fim soltou um grito mudo e abafado.

-- Não é nada, não é nada, meu pae -- gritou Francisco Tovar -- é um desmaio , só um desmaio .

-- Não é nada, meu tio , não é nada -- exclamou tambem o conde de Vermoim, aproximando-se d'elle.

-- Não tenha cuidado, general, é um desmaio, coisas de mulheres -- disse friamente Paulo, tomando uma das mãos da irmã.

-- Bah ! pelo inferno ! -- rosnou o Pederneira, cravando no general um olhar de reprehensão severa. Bernardo Tovar. conheceu pelas feições de todos elles, que a coisa não era de perigo. A congestão cerebral que a ameaçara um momento , desvaneceu -se ; mas assim mesmo o pobre velho cingiu contra si a sua querida afilhada, começou a gritar com voz atroadora que lhe fossem chamar um medico, indicando ao mesmo tempo os nomes de todos aquelles de que tinha ouvido fallar.

Pederneira , atrapalhado pela vozeria, ia a sahir sem saber o que fazia , quando Adelaide voltou felizmente a si.

-- Meu pae... meu pae... -- balbuciou ella, cingindo-se com os braços ao pescoço do pobre velho e cobrindo-lhe de beijos a face enrugada.

-- Teu pae ... teu pae ... -- balbuciou elle , soluçando -- sim... sim... teu pae...

De repente sentou-a sobre os joelhos, cingiu-a com os braços a si, e o rosto incendiou-se-lhe com um accesso de raiva. Estendeu então o punho herculeo para Paulo , e exclamou em tom ameaçador:

-- Vem cá buscal-a agora, tunante ! Raios de diabos! Quebro-te a cabeça.

-- Agora vou eu, general -- replicou sorrindo Paulo Ribeiro, aproximando-se porém d'elle. -- Mas o que eu vou é buscar um abraço . Depois de dez annos...

-- Raios de diabos! Ainda te atreves... -- exclamou o general, procurando a bengala.

Mas Adelaide acariciou-o, Paulo e o conde aproximaram-se cada vez mais d'elle ; por fim a linda menina fugiu-lhe d'entre os braços, e os dois precipitaram-se-lhe n'elles. O general não pôde resistir; apertou-os com força sobre o coração , e poz-se a soluçar convulsivamente , como fizera abraçando Adelaide.

O rosto de Paulo não se animará como o de todos os outros personagens que compunham esta scena, mas o sorriso rasgava-se-lhe mais francamente nos labios, e dava a conhecer que tudo aquillo não tinha passado indifferentemente sobre elle . A amizade sincera e profunda do general, e à rudeza com que aquelle homem venerando a exprimia naturalmente , tinham conseguido fazer na alma d'elle, o que nem mesmo a vista do cadaver da mãe conseguira fazer .

Paulo achava-se bem alli, porque alli tinha presentido signaes ainda que leves, da sua antiga sensibilidade.

Passados os primeiros fervores do encontro, a conversa cahiu para onde naturalmente devia cahir -- as vicissitudes por que durante dez annos passaram os membros da familia . É escusado dizer que o general acompanhou a narração com pragas e ameaças a Paulo, a quem não podia perdoar o que tinha feito , mas a cujos argumentos de brio e de orgulho acabava sempre por achar razão por virem da parte d'elle entre as observações do filho e mesmo de Luiz de Vermoim.

Paulo narrou a sua vida aventurosa com a mais fria impassibilidade. Passou por cima de todos os factos sem mostrar a mais pequena alteração de semblante . Fernão de Aguiar fazia observações rescendentes de misanthropia insolente, Francisco Tovar e o conde calavam , Adelaide attendia com as lagrimas a correrem-lhe pelas faces abaixo, Pederneira rosnava, e Bernardo Tovar ora raivava diante do cynismo de uma expedição negreira, de uma especulação audaz de moeda falsa , ora desprendia-se em altas acclamações diante da descripção de uma batalha, ou de um perigo temeroso, cuja narração ouvia com os olhos brilhantes de anciedade e de coragem , e cujo desenlace final applaudia com altos brados de enthusiasmo.

-- Eis aqui a minha vida -- rematou finalmente Paulo -- A esta grande tragi-comedia falta porém o desenlace final. Falta pagar aos crédores do meu pae; não quero que a memoria de Francisco Ribeiro esteja em divida para com pessoa alguma. Quéro pagar tudo...

Paulo soltou estas ultimas palavras já quasi que abstracto , depois ficou alguns minutos calado.

-- E comtudo -- continuou por fim -- se eu não fosse tão rico, se não possuisse tantos milhões de meu, ha ahi um homem , a quem eu nunca pensaria em pagar. Não, não pensaria , porque, juro-o pela minha honra, é o unico homem de quem receberia uma esmola sem córar. Pago-lhe, hei-de pagar-lhe, não por orgulho, não por lhe não querer acceitar os beneficios ; mas porque o dinheiro que lhe devo, em nome de meu pae, é uma ninharia para nós ambos, porque ambos somos ricos... eu millionario . É um beneficio materialmente inutil, seria um grande crime continuar a reter sem necessidade nas minhas mãos o que nas mãos d'aquelle homem generoso será a felicidade de muitas familias. Devo e quero restituir o dinheiro ; do beneficio que recebi não quero conservar senão a gratidão... e essa será eterna, durará toda a minha vida , porque toda a minha vida hei de confessar a minha divida a esse homem ... E esse homem é v.exc., general -- accrescentou elle , ajoelhando aos pés do velho e tomando-lhe uma das mãos entre as d'elle -- é v.exc., homem generoso, nobre, amigo sincero e leal, meu bemfeitor... meu pae.

Assim dizendo , Paulo curvou a cabeça e levou aos labios a mão do velho. A voz , com que dissera estas palavras, tinha uma intonação tão expressiva de grande sentimento e o rosto brilhava com uma luz tão pouco vulgar, que todos ficaram impressionados e como que tomados de respeito.

Bernardo Tovar ergueu-se, e tomando-o pelos braços, levantou-o em cheio , e perfilou-o quasi rosto a rosto comsigo. O rosto do velho general brilhou com o enthusiasmo de uma alegria verdadeiramente divina.

-- Teu pae! -- balbuciou elle por fim -- teu pae... sim, teu pae... Foi elle que me disse que o fosse, quando morreu... Sim , teu pae... e porque não ?. .. Raios de diabos !.. . teu pae ... sim, teu pae...

E o velho sem poder pronunciar uma palavra, tremia convulsivamente , com Paulo apertado contra o coração.

Minutos depois, Paulo puxou da carteira, e tirou um cheque de duzentos contos de reis .

-- Aqui está o dinheiro que nos emprestou ha dez annos, meu pae -- disse elle entregando-lh'o .

-- Como ! raios de diabos ! -- exclamou o general, que só agora comprehendera o que Paulo dissera ha pouco .

-- Aqui estão trezentos contos em notas do banco e em cheques -- continuou Paulo socegadamente -- Ha dez annos v. exc.a sacrificou esta quantia á salvação da honra de Francisco Ribeiro , e vingou-o com este nobre sacrificio , calando n'aquelles momentos o direito que aquelles miseraveis suppunham ter a insultar de face levantada a desgraça . Infelizmente porém a sua acção generosa não teve o resultado, que V. exc.a e todos presumimos. Um mez depois a liquidação da casa de Inglaterra tornou responsavel meu pae por uma quantia superior a esta, como v.exc.a verá. Assim aquelles infames que v.exc.a, meu querido amigo, tinha açaimado n'aquella occasião, ficaram outra vez credores da reputação de Francisco Ribeiro , e pozeram-se a despedaçar n'ella com toda a raiva que lhes inspirava a perca do dinheiro, e o desforço dos insultos com que v . exc.a os castigara n'aquelle dia . A providencia queria que fosse eu o vingador de meu pae -- continuou Paulo friamente, mas com certa intonação terrivel de voz -- O seu nobre sacrificio ficou grande para a minha gratidão, mas foi de resultados passageiros para a memoria de Francisco Ribeiro. É mais uma divida que aquelles infames me devem. Aqui tem v. exc.a os seus trezentos contos.

-- Pelo inferno! -- bradou o general com os olhos lampejantes e batendo sobre a meza uma punhada violenta.

-- General, depois da confissão sincera da minha gratidão, v. exc.a não deve recusar-se a receber este dinheiro.

-- Quebro-te a cabeça! -- gritou de novo Bernardo Tovar , arrancando-lhe das mãos a carteira e atirando com ella a distancia.

Paulo ficou um momento a olhar o velho general, depois ergueu-se, foi buscar a carteira, e veio sentar-se de novo junto d'elle.

-- General -- disse então -- para lhe provar que no meu procedimento não ha nem sequer vislumbre de soberba que o possa offender, acceito a sua dadiva generosa, recebo o seu beneficio com a mesma gratidão e com o mesmo desafogo com que receberia de v.exc.a uma esmola , se por ventura precisasse d'ella. Mas agora diga-me. Que valor suppoe v.exc.a que podem ter trezentos contos para um homem que possue cincoenta milhões de cruzados ?

O general espantou os olhos n'elle sem comprehender bem.

-- Nenhum -- continuou Paulo -- Para mim estes trezentos contos não tem valor, olho para elles como para uma quantia insignificante; para v. exc. são mais de metade da sua fortuna. Para que quer portanto v. exc . que eu fique com elles? O seu beneficio não tem valor para mim pela quantia , é insignificantissimo; é grande, immenso , é impagavel, mas pela generosidade do facto , mas pela nobreza do sentimento que o inspirou . O ficar eu com estes trezentos contos, com esta ninharia , não augmenta a minha gratidão para com v.exc.a que foi o bemfeitor de meu pae ; fique ou não com elles , o meu reconhecimento é sempre o mesmo.

-- Quebro-te a cabeça ! Mariola ! -- gritou o casmurro general, estendendo o punho cerrado para a face de Paulo .

Então este voltou-se para Francisco Tovar, e disse-lhe solemnemente :

-- Francisco , emprazo-te pela tua honra, para que declares se no meu procedimento ha algum sympto ma de soberba que possa offender teu pae, ou que apparente ingratidão para com o generoso sacrificio que elle fez á honra do meu .

-- Não ha -- respondeu o moço Tovar.

-- E julgas que depois da minha declaração teu pae tem direito a recusar este dinheiro ?

-- Meu pae, acceite -- replicou Francisco Tovar, voltando-se para o general.

O velho cravou os olhos espantados no filho, depois acudiu com elles à cara do Pederneira, que resmungava havia muito .

-- Raios de diabos! -- regougou o soldado com modo peremptorio -- acceite, não se faça tino. Falla com cabeça.

-- Pelo inferno! -- rosnou o velho general, tomando a carteira, que segundos depois deixou cahir machinalmente das mãos.

Paulo apanhou-a , e abraçando-se com elle metteu-lh'a n'um dos bolsos do casacão balbuciando:

-- Obrigado, meu pae... meu bom amigo...

O general, adoçado por estas palavras, deixou-se abraçar, e depois disse-lhe com modo rispido :

-- Mas, com todos os diabos ! que geringonça é esta ? Eu não entendo...:

-- E elle a dar-lhe ! -- retrucou o Pederneira -- A coisa é clara. Tenho dito... Quer dizer : esse dinheiro já lhe não serve de nada a elle, e a si de muito... Portanto receba-o . Comprehendeu?

-- Quebro-te a cabeça ! Mariola ! -- bradou o general, fazendo menção de metter a mão no bolso.

Mas Paulo embaraçou-o sorrindo-se , e desviou-lhe da carteira a attenção, dando um novo rumo à conversa .

-- Tenho agora a pedir-lhe um favor, meu general.

-- Hein ? Pelo inferno!...

-- Queria que v.exc.a se incumbisse de convocar para uma reunião em sua casa os credores de meu pae, a fim de virem receber de mim os seus creditos por inteiro.

-- Como!... Escavaco-os...

-- Não se trata agora d'isso, general. Trata-se de vingar a memoria de meu pae pelos unicos meios que se devem empregar para com aquelles miseraveis : pagar-lhes e desprezal-os.

-- Pelo inferno ! Não entendo... Mas emfim que queres tu ?

-- Quero que v .exc.a se preste a assignar umas cartas que hoje mesmo lhe mandarei. Por cada uma d'ellas é convidado um credor de meu pae, a vir a sua casa receber de mim o que lhes ficou a dever .

-- Então tu queres pagar-lhes ?...

-- De certo . Quero fazer calar a canalha, e obrigal-os a ir dizer por toda a parte que nada perderam com a confiança que depositaram no desgraçado Francisco Ribeiro .

-- Mas eu se os torno a pilhar, racho-os.

-- Seria sujar as mãos, general, seria deshonrar até os bicos das botas. Aquella canalha é indigna de que um homem honrado lhes de com um chicote.

-- Mas emfim, que queres?

-- Que v.exc.a me faça o favor que lhe pedi. Assigna as cartas?

-- Assigno. E por que não?

Doze dias depois d'esta scena nove ou dez homens, vestidos decentemente , e com caras, não de muita intelligencia, mas de muito dinheiro, de muita vaidade parvoa, e de muita soberba insolente e ridicula , estavam reunidos na ante-sala do general Tovar divididos em dous ou trez grupos, que cochichavam uns com outros. Entre elles via-se o visconde dos Carricos e o barão de Godim . Eram os credores de Francisco Ribeiro.

Á uma hora da tarde, o general entrou na sala apegado á bengala, e acompanhado de Paulo Ribeiro .

Este ia todo vestido de preto , e com as feições frias e serenas como as de uma estatua. O general fazia visagens nervosas, e rosnava inintelligivelmente .

Quando entraram na sala, os credores comprimentaram profundamente. O general não fez caso e foi sentar-se n'uma poltrona á cabeceira da mesa .

Paulo correspondeu com um ligeiro aceno de cabeça e collocou-se de pé junto a elle.

Depois de sentado, o general mexeu-se em trinta direcções, bateu duas ou trez vezes com a bengala no soalho, tossiu, enguliu em secco, rosnou e por fim principiou desabridamente um discurso d'esta laia:

-- Eu... pelo inferno !... mandei-os cá vir... Não fui eu, foi elle... Eu , raios de diabos ! quebro-te a cabeça ! escavaco-os... Mas emfim elle quer pagar-lhes... bem asno é!... sua alma, sua palma, lá se avenba. Tenho dito ; vocês são uns canalhas , mariolas!... Mas elle quer... emtim digam quanto se lhes deve, e pelo inferno ! raspem -se-me de casa...

O general deu aqui por findo o discurso de introducção. Os credores ficaram calados; por fim o visconde dos Carriços ergueu-se, fez uma profunda cortezia , e disse tartamudeando:

-- General, v . exc.a é injusto para comnosco. Quando recebemos o convite de v. exc.a em nome do snr. Paulo Ribeiro , pensamos que s. exc.a pretendia tentar alguma especulação para a qual queria associar-se alguns capitalistas ; mas não julgavamos que era...

-- Não julgavam que era para pagar as dividas de Francisco Ribeiro ? -- interrompeu-o Paulo friamente, mas fitando-o com um olhar severo -- Não pensavam que era para libertar a honra e a memoria de meu pae das garras dos miseraveis que o tem dilacerado até hoje , e que causaram a morte d'elle , insultando-lhe a desgraça , depois de lhe terem servilmente lisongeado a fortuna ?

O visconde não se atreveu a responder .

-- Enganaram-se -- continuou Paulo. -- Quando ha dez annos sahi de Portugal, impellia-me já o projecto d'esta vingança . Eu disse commigo : Estes miseraveis adulavam meu pae quando era rico , rojavam-se aos pés d'elle como cães, e vinham pedir-lhe para as ridiculas fortunas que possuem, as migalhas que cahissem da opulenta mesa das suas especulações. Mas a fortuna voltou as costas a meu pae, os infames aduladores, os cães que lhe lambiam as solas das botas, arreganharam os dentes, e dilaceraram-lhe a reputação , mataram-o. Para esta gente ignobil de dinheiro não ha senão um Deus respeitavel e venerando -- o dinheiro. A honra , o brio , está n'elle ; a desgraça é o grito de alarme que inspira a soberba na alma d'estes sevandijas. Quero ter dinheiro, muito dinheiro, para que a memoria de meu pae não fique perpetuamente á mercè d'esta canalha. Heide pagar as dividas d'elle.

Paulo interrompeu-se.

-- E realisei o meu plano, levei a cabo a empreza que intentei -- continuou elle então -- sou rico, muito rico. Sou senhor de cincoenta milhões de cruzados, e ganhei-os como cada um dos que chamavam ladrão a meu pae, que era um homem honrado, ganhou o mesquinho thesoiro que possue. Fui pirata , fui negreiro, fui moedeiro falso , fui tudo... Mas tenho cincoenta milhões de cruzados de meu. Qual dos senhores se atreve a recusar-me a sua mão?

E assim dizendo, Paulo estendeu a mão para elles. Todos machinalmente lh'a quizeram apertar; Paulo retirou-a sorrindo com desprezo.

-- Nenhum -- disse elle então -- E devéras nenhum tem direito a isso, porque os meios por que se fizeram ricos são os mesmos que eu empreguei para ser millionario . Ha porém uma differença entre nós -- eu fui infame para vingar meu pae , e para isso arrisquei a vida com coragem e como homem de coração. E os senhores ? Trabalharam nas trevas como reptis. Por isso é que eu tenho cincoenta milhões de cruzados, e os senhores possuem fortunas, as quaes, todas juntas, são um ceitil a par da minha . Eu é que recuso apertar-lhes a mão, porque por muito vil que me tornasse, ainda assim não o fiquei tanto que possa sem perigo de deshonra apertar a mão de homens como os que vejo diante de mim .

Paulo interrompeu-se aqui novamente ; minutos depois, accrescentou :

-- Apresentem os seus creditos e os titulos que os legalisam .

-- V. exc.a é injusto para comnosco. Nós fomos sempre intimos amigos do snr. Francisco Ribeiro.

-- Oh ! sim de Francisco Ribeiro, o millionario ; de Francisco Ribeiro , o fallido, foram os carrascos.

O visconde ainda quiz balbuciar algumas palavras mais, mas Paulo calou-o , dizendo em tom glacial, mas imperativo :

-- Os seus titulos.

O enfezado barão de Godim foi o primeiro que os apresentou.

-- Pois que v. exc.a o quer... Eu pela minha parte... -- balbuciou elle, entregando os papeis.

Paulo poz-se a examinal-os com minuciosidade affectada, e como quem examina papeis de cuja veracidade duvida. Depois entregou a cada um d'elles um cheque sobre o banco, pelas quantias de que eram crédores.

-- Estão pagos -- disse elle então -- agora vão dizer lá fóra que nada perderam com Francisco Ribeiro, com o qual fizeram uma especulação lucrativa. Receberam o capital e dez por cento de juros. Previno-os que o vou annunciar pelos jornaes .

-- O que pedimos a v. exc....

-- Agora raspem-se , pelo inferno ! --- gritou o general pondo-se de pé, e estendendo para elles o punho cerrado.

Os ex-credores voltaram-se .

-- Uma ultima palavra , meus senhores -- disse então Paulo -- Sou rico , e estou resolvido a empregar os meus capitaes. Se precisarem de dinheiro, estou ás suas ordens.

-- Agradecido a v . exc.a --. respondeu com soberba o visconde -- não preciso de dinheiro .

Os outros sorriram com ironia.

-- Nada de soberbas, meus senhores -- disse então Paulo -- o dito , dito . Eu bem sei que o dinheiro que lhes emprestar é dinheiro perdido. Os senhores não hãode fallir como falliu Francisco Ribeiro, são mais honrados. Mas á vingança de meu pae falta ainda uma pequena circumstancia necessaria. Comprei já o direito de lhes chamar infames e miseraveis, quero ter o de lhes chamar ladrões . Até quando me quizerem roubar, meus senhores, até breve.

A ironia , com que Paulo pronunciou estas palavras, era terrivel e ameaçadora. Os credores cortejaram friamente, e sahiram.

-- Ai, que eu arrebento! -- bradou então o general, fulo de colera -- Porque me não deixaste esmagar estes miseraveis?

-- E pensa que elles não vão bem fustigados, meu pae ?

-- Fustigados! Pelo inferno! Se n'esta gente só o chicote é que descobre a sensibilidade...

IV

Á uma hora da tarde do dia seguinte, o misanthropo entrou desabridamente no quarto de Francisco Tovar. Atirou-se para uma volteriana, e depois ficou alguns minutos com o rosto carregado, e sem dar uma só palavra. Por fim exclamou como fallando comsigo:

-- Mas para que me dei eu a conhecer? Para que sahi para fóra do meu tumulo ? Eu tinha morrido para esta sociedade ignobil, para que abandonei a paz do meu tumulo ? Que podia encontrar aqui? Isto ... isto ... E depois a felicidade... onde ... onde!... Oh! os homens são assim , e eu pensei que não era homem. Eu amal-a!... Se me convenço d'isso, dou um tiro na cabeça . Que imbecil!... que imbecil !...

E depois calou-se , e ficou mais de um quarto de hora abstracto, e rodeando a vista de quando em quando, como verdadeiramente allucinado. Por fim estremeceu , passou a mão pela testa , e fitou Francisco Tovar como se acordasse de um sonho.

-- Que diabo estive eu a dizer? -- disse elle rudemente .

-- Tu? Nada; sentaste-te para ahi casmurramente e para abi estás ha mais de meia hora, sem dares palavra e sem responder .

O misanthropo ficou mais alguns minutos calado, depois balbuciou a meia voz:

-- Fallo dentro da cabeça .. . Parece-me que já estou louco .

Depois voltando-se de novo para o amigo , disse-lhe rudemente:

-- Sabes a que venho cá hoje ?

-- Não .

-- Paulo foi desafiado.

-- Desafiado!.. . Por quem ?

-- Aconteceu o que eu suspeitava que havia de acontecer. Foi desafiado por Nuno de Athayde.

-- Pelo noivo de Luiza !

-- Elle não me disse nada. Mas que tenho eu com isso ? Que tenho eu com os negocios do pirata , do negreiro ? Não tenho nada com infames. Elle não me disse nada -- continuou dirigindo-se a Tovar -- não me disse nada, porque não diz nada. Ri-se com um sorriso parvo , e ri-se de tudo, fuma e cala-se .

Aqui o misanthropo interrompeu-se um momento , e depois continuou :

-- Hoje ao meio dia mandou-me chamar. Fui lá , e elle disse-me somente -- « Um tal Nuno de Athayde, o noivo de Luiza , desafiou-me; quero que sejas uma das testemunhas, e a outra hade ser Francisco Tovar. Vae ter com elle , e lá vos avinde com os padrinhos do outro acerca do duello . Eu estou por tudo. Não me disse mais nada, nem eu lh'o perguntei. Sahi, e vim para aqui direito . No caminho porém encontrei Estevão de Mendonça, aquelle agiota infame, que me contou tudo. Mas que tenho eu com isto ? --- exclamou então desabridamente -- que tenho eu com o pirata e com o negreiro e que tenho eu com o agiota ?

E aqui interrompeu-se novamente .

-- Segundo me disse -- continuou minutos depois -- Luiza escreveu a Paulo pedindo-lhe, em nome de quanto tivesse de sagrado , para lhe ir fallar a casa d'ella .

-- E Paulo ?... -- atalhou Francisco Tovar com inflexão de quem hesita em acreditar .

-- Paulo foi -- replicou o misanthropo com rude intimativa. -- Foi, como iria eu , como irias tu .. . Os homens são isto !... Mas tambem que pode ter de extraordinario que um pirata , um negreiro entre em casa de uma mulher perdida ? E a final, não foi elle que reduziu Luiza áquillo ? A crença no poder do oiro que o lançou na carreira do crime, não havia de apoderar-se tambem da alma de uma mulher impressionavel, explorada por um pae ignobil, vivendo no meio de uma sociedade em que todas as torpezas se lavam com dinheiro?

O poeta levantara-se. Deu uma volta agitado pelo quarto, e parando depois em frente do moço Tovar , continuou :

-- Luiza contou-lhe tudo. Infligiu-se como castigo dos seus erros, mostrar-se em toda a hediondez do que é hoje , ao unico homem a quem amara.

« -- Agora despreze-me, Paulo -- rematara ella. Accumule sobre mim todo o lodo das ruas. Mas fique bem certo : eu amei-o com toda a viveza e toda a candura de um primeiro e unico amor. Porque cheguei a isto ? Porque sou hoje um monstro de torpezas? Eu não quero sabel-o , nem quero que me perdoe. Mas não poderia morrer sem lhe dizer isto .

E quando concluiu as lagrimas arrebentaram-lhe pelos olhos fora. N'esse mesmo instante Nuno de Athayde abria a porta do quarto e ao ver Paulo Ribeiro, exclamou para Luiza:

-- Vejo que principias a cumprir o nosso contracto... Muito bem . Eu não quero interromper .

Então Paulo Ribeiro , que até alli se conservara de uma impassibilidade de estatua, sentiu borbulhar-lhe o sangue e travando do miseravel por um braço, disse-lhe :

-- Infame! Não avalies por ti todos os homens que se te deparam no caminho. Aquella senhora em breve será minha mulher, e tu , biltre, aprende desde já a respeital-a como tal.

E deixando-o como assombrado do raio , travou do braço de Luiza , que se deixou levar machinalmente e sahiu .

-- Sua mulher ? -- exclamou Francisco Tovar , dando mostras do mais profundo espanto. Sua...

-- Foi em virtude d'esta scena -- continuou o misanthropo sem o deixar concluir -- que aquelle miseravel se julgou com direito de desafiar Paulo. A bem dizer que tenho eu com isto ? -- exclamou Fernão de Aguiar com desabrimento. -- Que me importa Luiza ? que tenho eu com o negreiro , que tenho eu com esse infamissimo canalha , chamado Nuno de Athayde?...

-- Mas é o mesmo -- continuou depois de um instante de pausa -- Satisfaço o desejo de Paulo . Irei ter com os padrinhos d'esse biltre. E tu ? Acompanhas-me ?...

-- Porque não! Ainda que deploro similhante acontecimento , não serei eu que dissuada Paulo de se bater , nem que lhe recuse o serviço que me pede.

Francisco Tovar e o misanthropo metteram-se na sege em que o segundo tinha vindo, e partiram a encontrar-se com os padrinhos de Nuno de Athayde.

Ficou assentado que o duello livesse lugar no outro dia , as 4 horas da manhã , na Areosa, adiante da Cruz das Regateiras, á pistola e a distancia de trinta passes.

Na manhã do dia seguinte , cerca das 3 horas e meia, uma sege transpunha rapidamente a barreira da Aguardente e rodava pela estrada de Guimarães.

Essa sege conduzia Paulo , Francisco Tovar e o poeta.

Paulo era o mesmo homem frio e impassivel que temos visto nos lances mais violentos d'esta historia.

Dirieis que o sangue se lhe gelara nas veias, sem que a vida deixasse de o animar.

O rosto do misanthropo, esse , sim , que denunciava o tremendo combate que dentro de alma travavam os seus instinctos generosos, e a observação das miserias de uma sociedade que se recusava a reconhecer-lh'os como legitimos.

Francisco Tovar ia triste , mas sereno.

Os trez não trocaram uma palavra durante o caminho até á Cruz das Regateiras.

Ao chegar alli, o poeta rompeu abruptamente o silencio .

-- E se Nuno de Athayde te matar?

Paulo Ribeiro sitou o misanthropo com um sorriso , que revelava a profunda indifferença com que elle encarava as contingencias do duello .

-- Se me matar -- respondeu em seguida -- deixei os meus negocios dispostos por modo que ninguém soffrerá . A ti, e a Francisco Tovar, nomeei-vos para cumprirdes à minha vontade. Espero que vos deverei a ultima fineza de acceitardes o encargo e satisfazerdes fielmente a elle .

-- Duvidal-o é injuriar-nos -- disse Francisco Tovar. E os trez ficaram outra vez em silencio .

No fim de alguns minutos mais de caminho, Francisco Tovar metteu a cabeça pela portinhola da sege e disse ao cocheiro:

-- Pára.

O cocheiro susteve os cavallos, e Paulo , o poeta e Tovar apearam-se.

Á esquerda da estrada abria -se um atalho tortuoso , conduzindo por entre um pinheiral. Os trez metteram pelo atalho, sempre sem trocar palavra, e ao cabo de oito ou dez minutos chegaram a uma esplanada, onde pararam.

-- Aqui -- disse Francisco Tovar.

Logo depois que os trez havianı enfiado pelo atalho, parara no sitio onde elles tinham apeado, outra sege, da qual saltaram Nuno e os seus dois padrinhos. Um era um cirurgião militar, o outro um morgado do Douro que, depois de ter desbaratado uma casa opulenta de que era senhor, vivia no Porto, ainda rodeado de consideração e homenagens, como proprietario de uma casa de tabolagem .

Os recemchegados tomaram egualmente o atalho , e pouco depois achavam-se na esplanada, onde havia momentos esperavam a sua chegada, Paulo e os dois amigos que lhe serviam de padrinhos.

Carregaram-se as armas, mediram-se as distancias, e os dois combatentes situaram-se em posição.

Nuno de Athayde atirou primeiro. A bala passou por cima do hombro a Paulo Ribeiro, deixando-o illeso .

Nuno de Athayde, vendo o seu adversario tão firme e impassivel como se fòra uma rocha que surgisse da terra, empallideceu estranhamente.

Então Paulo Ribeiro, com uma expressão medo nha de desprezo e de nojo pintada no rosto, desfechou por sua vez. O tiro fôra certeiro ao peito. Nuno de Athayde ergueu os braços como n'uma crispação nervosa, contrahiu horrivelmente as feições, e cahiu de bruços com o peso de uma massa inerte.

Os padrinhos acudiram rapidamente, voltaram-o e solevantaram-lhe o corpo. O sangue jorrava-lhe em borbotões da ferida, alastrando o solo.

Um dos padrinhos de Nuno, o que era cirurgião militar , rasgou-lhe a camiza e tateou-lhe a ferida. A bala penetrara no coração.

Apoz um instante de exame, voltou-se para os espectadores d'esta scena e exclamou:

-- Está morto .

Paulo cortejou com a frieza que nunca o abandonara, as testemunhas do seu adversario , e dirigindo-se ao misanthropo e a Francisco Tovar, disse-lhes :

-- O meu dever aqui está cumprido. Retiro-me.

E dispoz-se a tomar o caminho por onde tinha vindo.

O moço Tovar e o poeta seguiram-o . Nos olhos d'este ultimo luzia um estranho fulgor de satisfação.

O filho do general ouviu-lhe murmurar:

-- Então será verdade que o acaso não é tão estupido como o fazem ?

São decorridas algumas semanas depois dos acontecimentos que acabo de narrar.

A sociedade do Porto está ainda debaixo da impressão fascinadora da mais esplendida das festas a que tem assistido .

Dois dias antes havia-se realisado o casamento do conde de Vermoim com a irmã de Paulo Ribeiro , o millionario .

Quanto havia de aristocrata e elegante, acudira pressuroso ao convite do argentario . A turba dos parasitas, que por mais obscuros não foram incluidos na lista dos convidados, accorrera affadigada a solicatar logar á mesa do opulentissimo festim .

Nunca se vira nada tão sumptuoso , tão deslumbrante , tão phantastico . Os salões dos condes de Vermoim regurgitavam de todas as riquezas que a imaginação pode phantasiar Dir-se-hia que se estava em pleno conto de fadas.

Paulo Ribeiro, animado de um ardor -- satanico, dera ordem para que no palacio donde seu pae sabira para o cemiterio , coberto de opprobrio , de insultos, vilipendiado, porque os revezes da fortuna o haviam apeado do pedestal da riqueza, se reunissem agora todos os esplendores do luxo e da opulencia , que podessem attrahir novamente os sabujos do dinheiro .

E nem um faltou.

Paulo observava-os e sorria-se com inexprimivel desprezo.

-- Que magnificencia! que esplendor! que sumptuosidade! -- diziam-lhe, rodeando-o e apertando-lhe soffregos a mão, alguns dos infames que annos antes tinham chamado ladrão ao negociante fallido.

-- Quem havia de dizer -- respondia elle -- que a filha de Francisco Ribeiro ainda veria reunidos n'esta casa , para festejarem o seu casamento , os mesmos homens que ha dez annos n'ella cobriram das maiores affrontas seu pae, pelo crime de ter empobrecido!

E ao dizer isto, brilhava-lhe nos olhos um clarão diabolico . Mas os sabujos de , nada se davam por offendidos. Adoradores do bezerro de oiro , o culto ao aureo idolo aniquilava n'elles outro qualquer sentimento.

Durava, pois, ainda a impressão da esplendurosa festa , quando outra, tanto ou mais sumptuosa, se annunciou.

Paulo Ribeiro ia casar com Luiza e, para festejar este casamento , dava um baile que devia exceder em magnificencia o dos condes de Vermoim.

Mas não era Luiza uma mulher perdida, uma prostituta , cujo contacto ennodoava ?

Não tinha sido a sua vida um tecido de torpezas, de indignidades , de vicios ?

Pois não atraiçoara ela o marido, lançando-se nos braços, ora de um , ora de outro amante ?

Viuva , e desbaratados todos os haveres domarido, não comprara a custo das maiores ignominias, da mais desfaçada devassidão, o luxo que continuara a sustentar ? ...

Não, não, não !

Para a sociedade, hoje era a noiva de Paulo Ribeiro, o homem que possuia cincoenta'milhões de cruzados, que ia dar bailes esplendidos, que ia chamar todos os que tivessem a dita de relacionar-se com elle a participar do gozo das suas riquezas, franqueando-lhes os seus salões, os seus trens, a sua bolsa.

Com relação ao seu passado, que tinha sido Luiza ? Uma mulher perdida, uma prostituta? Porque? Porque tivera alguns amantes?

Mas n'esse caso o templo da moral teria de fechar-se para ella e para muitas outras que n 'elle continuavam a fazer almoeda da sua honra. E como privar a sociedade de quem tanto ia contribuir para o seu esplendor, para o seu viver agradavel, para a sua fascinadora agitação ?

Luiza era a noiva do millionario . Déra Deus aos moralistas de tarracha que todas que, pelo seu viver, estavam no mesmo caso, resgatassem tão vantajosamente os seus erros!

Desgraçadamente , a esperança fagueira da deslumbrante festa dissipou-se n'um momento, pelo mais estranho caso que podéra imaginar-se. Esse caso extraordinario ouçamol-o da bocca do misanthropo , que acaba de o ir communicar a Francisco Tovar e ao general.

Os trez acham-se reunidos no quarto d'este ultimo. Ambos encaram o poeta com olhos espantados e como duvidando șe perceberam bem o que elle lhes disse.

-- Raios de diabos! Eu acho que não entendi ou és tu que estás doudo! Quebro-te a cabeça!

-- Não tem que entender, nem o caso é para espantos. O mundo é isto. Luiza suicidou-se. Que temisso ? Depois do viver infame a que o pae a sacrificara , o desenlace natural era isto . Morreu como devia morrer.

-- Mas como tomou ella essa funesta resolução, estando em vesperas de ser a mulher de Paulo?

-- Por isso mesmo.

-- Raios de diabos! Não percebo.

-- Luiza , desde a noite em que Paulo a tirara de casa , voltou a sua primitiva natureza. O rasgo generoso do homem que ella amara , calou-lhe na alma, endurecida pelo vicio, um sentimento estranho. O bem accordou n'ella com todas as nobilissimas aspirações de outr'ora. Então tentou medir a sua desgraça e achou-a incommensuravel. Tentou achar reparação para a sua infamia , e não a encontrou senão namorte. Quando Paulo positivamente the fallou no seu casamento com ella , Luiza sorriu-se tristemente e disse o que já uma vez me dissera a mim :

-- «Não , Paulo , o seu amor deve trajar eternamente luto por mim.

Paulo não desistiu . No seu espirito sombrio misturava-se talvez com as cinzas do antigo amor que consagrara a Luiza , um ultimo pensamento de vingança : á força dos seus milhões fazer acurvar diante de aquella mulher a sociedade que a pervertera e depois a vilipendiara, roubando-lh'a ao seu affecto puro. Luiza promettera dar em breve resposta que o havia de satisfazer . Hoje pela manhã apenas levantado, Paulo recebeu recado para acudir a casa de Luiza. Foi. Encontrou-a deitada sobre um sophá, morta . Tinha-se asphyxiado. Os criados nada presentiram . Uma criada é que tendo recebido recommendação para lhe ir ao quarto cedo, deu rebate das suspeitas que a assaltaram ao encontrar a porta fechada por dentro e depois de batera inutilmente. Foi então, que arrombando a porta do quarto , a encontraram n'aquelle estado. Em cima de um velador estava uma carta que Paulo me deu a ler e que eu machinalmente metti no bolso. Eil-a.

E Fernão de Aguiar , dizendo isto , tirou do bolso uma carta que leu.

A carta dizia isto:

Paulo

O nosso casamento é impossivel. Entre nós ha um abysmo, que toda a generosidade da sua alma não seria sufficiente para cumular. O meu passado!... Que de amarguras n'elle, mas tambem quantas torpezas, quantas infamias!... Eu amo-o, Paulo, bem o sinto. Amo-o com tanta, com mais intensidade do que quando eu era digna de si. Sei tambem que o seu amor é tão grande que esquece os meus erros. Mas devo eu dar-lhe uma furtiva ventura à troco de um prazer constante? Devo eu comprar a felicidade de um momento a troco de uma magoa perenne ? Não, Paulo , não. As faltas realisadas não deixam de existir. Tanto mais o nosso mutuo amor nos impellisse à libar a felicidade, mais ella nos fugiria . Não, não ! Os impossiveis não tem remedio ! Eu fui digna de si ; amei-o com a pureza de uma alma que só conhece o bem, com a força de um coração que ama pela primeira e ultima vez. Que resta em mim da mulher de outr'ora? Uma creatura ignobil que se vendeu , que se prostituiu , que se infamou, que se tornou indigna para sempre de um amor nobre e generoso como o seu.

Mato-me, Paulo , para o não tornar infeliz . A minha resolução é inalteravel. Quando ler esta carta , já não lhe poderá pôr estorvo . Não vacillo , não titubèo diante da ideia da morte. E'-me grata a lembrança de que assim o liberto de futuras magoas. Se tiver lagrimas para a memoria da infeliz que lhe escreve, que ellas e não as que tantas vezes e ainda n'este instante derramo, possam lavar as culpas da que foi e quizera ser eternamente sua,

Luiza.

A leitura d'esta carta commoveu extremamente o general e Francisco Tovar.

O primeiro , limpando as lagrimas que a seu pezar lhe arrebentaram pelos olhos fóra, exclamou ba tendo irado com a bengala no chão :

-- Raios de diabos ! Eu sempre disse que os amores da filha de Vasco de Noronha com Paulo haviam de vir a parar em desgraça. Meu dito , meu feito . Raios de demonios !

-- E agora ? -- perguntou o moço Toval, dirigindo-se ao misanthropo -- Que tenciona fazer Paulo Ribeiro?

-- Eu que sei ? --- respondeu Fernão de Aguiar.

E depois de dar alguns passos pelo quarto, como revolvendo alguma resolução grave, accrescentou :

-- E que me importa a mim Paulo Ribeiro, que me importam as desgraças do pirata ? Acaso não é no mundo cada um por si ? Que tem ninguem que se matasse Luiza ? Não podia viver, acabou comsigo. Isso que tem ? de que hade a sociedade pedir-lhe contas ? Do seu viver ? Se ella não lhe proporcionou outro. Se o mesmo viver é o de muitas que por ahimais hombreiam na consideração e na estima publica, uma vez que se involvam em manto de oiro. Se ella já não incommoda com os seus escandalos os moralistas que só olham para baixo, que só, lobrigam a torpeza nos pequenos e não a vêem mais impudente e immoral nos grandes.

Apoz esta verrina, o misanthropo pegara no chapeu com gesto arrebatado e encaminhando-se para o general, disse-lhe em tom desabrido:

-- General, adeus . .. adeus para sempre!

-- Quebro-te a cabeça! Mariola ! Ahi temos outra. Que diabo queres tu dizer com o teu -- Adeus, general, adéus para sempre ? Raios, de demonios. Então, tu tambem não tens juizo ?

-- Tenho, mas receio que elle me abandone, se continuo a viver no meio d'esta sociedade depravada, em que o vicio campéa, com o nome de virtude, e a virtude é espesinhada aos pés de todos.

-- És injusto , Fernão -- disse Francisco Tovar. -- Não está ainda o mundo tão corrompido, que n'elle escassèem totalmente os corações generosos e os caracteres austeros. Tu mesmo és argumento contra o teu modo de pensar.

-- Seja o que tu quizeres, que eu já não me que ro dar ao trabalho de convencer ninguem . Quem me mandou sahir do meu tumulo ? Para que voltei eu ao meio da sociedade que não me entende e com que eu me não entendo? Fui louco . Volto ao meu sepulchro . Mas d'esta vez, eu lhes protesto , que nada me fará revocar d 'elle , a não ser a trombeta do archanjo no dia do juizo final. Adeus, meus amigos, adeus para sempre. Fernão de Aguiar morreu, ou antes, esta proterva sociedade, ao meio da qual a providencia ou o acaso o atirou , enterrou-o vivo. Adeus, para sempre, adeus !

E apertando com modo sacudido e violento a mão ao general e ao moço Tovar , sahiu precipitadamente a porta, deixando os dois tomados de um sentimento que participava da surprezale da compaixão .

-- Raios de demonios! Está doudo, doudo varrido! -- prorompeu o general.

-- Nobre caracter! -- disse Francisco Tovar -- Tu és como uma planta exotica no meio da sociedade em que vives !

-- Cem diabos ! -- exclamou o Pederneira , que tendo encontrado o poeta na escada, acabava de assomar á porta do quarto que elle , na precipitação com que sahira, deixara aberta -- Aquelle parece que tem medo de encontrar as portas de Rilhafolles, fechadas, se não fôr depressa!...

EPILOGO

São decorridos quatro annos depois dos successos que deixamos narrados.

N'esses quatro annos, periodo aliás bem curto, precipitaram-se estranhamente os acontecimentos que prendem com o desenlace da nossa historia.

O general, contra quem durante algum tempo a gota affrouxara as suas investidas, entrou de ser mais e mais torturado pela renovação dos seus antigos padecimentos, até que nos braços de seu filho e com as mãos entre as do Pederneira e as de Paulo Ribeiro, que o desvelara constante á cabeceira do leito , exhalou ao cabo de algunsmezes o ultimo suspiro .

Mas atė final aquella rija tempera de soldado , que bem se podera chamar sem pavor, mostrou-se tal qual era. A sua morte foi a do homem de bem que, ao transpor a raia que separa o mundo da eternidade, pode sentir o corpo alanceado de dores, mas conserva a consciencia tranquilla e isenta ao pungir do remorso.

O seu funeral foi pomposissimo: Declarara elle que não queria esplendores em volta do seu ataúde. Mas empenhou-se a prestar-lh'os a gratidão de Paulo Ribeiro , que com isso julgava apenas saldar uma diminutissima parcella da immensa divida, em que a sua gratidão o constituia para com aquelle nobre caracter .

O viver de Francisco Tovar foi durante muito tempo triste e isolado. A sociedade não lhe offerecia distracções que sequer attenuassem as sombras que a morte do velho militar fizera em torno d'elle. A final n'elle , como em todas as coisas d'este mundo, o tempo exerceu a sua acção. Francisco Tovar, sem esquecer a memoria do pae, veio a sentir menos excruciante a perda que soffrera , e por último a saudade cedeu o passo ao amor, que teve o desenlace mais vulgar. Francisco Tovar casou .

O Pederneira , desde a morte do seu amigo, o general, nem um só dia deixara de ir dizer-lhe algumas palavras á beira do mausoleu que cerrava os seus restos. Porém depois que a união de Francisco Ribeiro foi aditada com um filho, Pederneira entrou de rárear as suas visitas, porque outros cuidados o preoccupavam já . Tornara-se a ama secca do menino! Não estava bem senão tendo-o no collo , senão imaginando mil brinquedos para o vêr satisfeito e contente. Era commovedor e ao mesmo tempo causava riso vêr aquelle rude caracter, todo suavidade, todo blandicias -- elle casmurro por indole e por educação -- para uma creança que contava apenas alguns mezes de idade .

Mas um dia a doença salteou-o. Oppoz-lhe elle toda a rudeza do seu genio , toda a robustez da sua constituição , toda a energia da sua tempera. Mas ella foi mais poderosa ; tudo baldou, e o bom e nobre sol dado seguiu no tumulo, volvidos tres annos, aquelle de quem fôra camarada, commensal, e amigo.

E o misanthropo? E o pirata?

Do primeiro francamente digo ao leitor que não sei, nem as indagações que fiz me informam de qual foi o seu destino. Em seguida á scena em que o vimos sahir precipitadamente de casa do general, Fernão de Aguiar dirigiu-se a Lisboa. Ahi tomou passagem a bordo de um vapor inglez que seguia para a India, e eis tudo quanto d'elle se pôde saber. Nunca ninguem ouviu fallar n'elle ou d'elle teve noticias. Fez-se chefe de tribu ? Aventurou-se à descoberta de novas regiões? Tornou-se apostolo de nova seita ? Tudo mysterio. Quiçá terá voltado á patria . Mas então não é na sociedade em que tu , leitor, e eu convivemos, que o devemos procurar. Aquella natureza , onde quer que esteja, formará sempre um mundo á parte.

Paulo Ribeiro durante alguns annos assombrou a todos com o seu luxo asiatico . Os bailes succediam-se aos bailes, as festas não tinham tregua. Em volta d'elle choviam as homenagens, diante da sua influencia acurvava-se tudo. Porque elle não era um homem ; era EL-REI DINHEIRO!

O filho do fallido e vilipendiado negociante tornou-se indispensavel para tudo e para todos. Nenhuma empreza , nenhum commettimento ja por diante sem o seu concurso . Por isso em volta d' elle agrupavam -se de dia a dia os adoradores, que digo eu ? os sabujos que só vêem no dinheiro o supremo dos merecimentos.

A ameaça ou, se antes querem , a profecia que elle fizera aos credores de seu pae, quando lhes pagou os seus creditos , sahira verdadeira .

O visconde dos Carriços , o barão de Godim e outros não foram dos ultimos na adoração do bezerro de ouro , e um apoz outro , em seguida a quebras fraudulentas, desappareceram da scena, levando ao filho de Francisco Ribeiro o melhor de duzentos contos.

O pirata sentiu-se um dia enojado das adulações dos seus bajuladores . A sua vingança estava satisfeita. Que lhe restava, pois ?

Mandou construir em Inglaterra um vapor que, passados trez mezes depois de ordenada a sua construcção , entrava a barra do Porto e cortava airosamente as aguas do Douro .

Havia resolvido seguir n'elle, sem destino, á ventura, ao acaso , para onde quer que lhe sorrisse um prazer, para onde quer que lhe entreluzisse a esperança de um gozo.

E assim o fez.

A noticia da sua partida foi como um raio que cahisse sobre a cidade. Voltando a si do seu doloroso pasmo, todos pensaram em ir prestar a Paulo Ribeiro a ultima homenagem .

Assim foi que no dia designado para a partida, Paulo Ribeiro viu-se rodeado de um cortejo , tão numeroso e luzido como o de um monarchia .

O antigo pirata sorria com um sorriso diabolico , cuja significação só estariam no caso de comprehender os que conhecessem a fundo o seu passado.

Elle estava emfim vingado. Quando, pobre e honrado , sahira da sua patria , ninguem o acompanhara, ninguem lamentara a sua falta , ninguem sequer attentara n 'ella. Depois de dez annos -- dez annos de crimes e de torpezas, é verdade -- sahia d'ella venerado , estimado , adulado, por aquelles mesmos, que antes o tinham olhado com desprezo . Porque? Por se ter distinguido com algum feito nobre? Por ter dado provas de um privilegiado talento? Por ter contra provado em acerbos infortunios a honradez do seu caracter ?

Não!

Porque era possuidor de cincoenta milhões de cruzados!

Grande parte dos que acudiram pressurosos a saudal-o na sua partida, acompanharam-o até fóra da barra.

Ahi, no instante em que se despediam d'elle para tomar lugar nas catraias que os aguardavam, perguntaram-lhe alguns:

-- É verdade. Mas que nome tem este formoso barco que vae conduzir as regiões do prazer o mais feliz e o mais nobre dos mortaes ?

-- Chama-se « EL-REI DINHEIRO» -- respondeu o antigo pirata , apontando para o lugar em que na proa luzia em letras de oiro aquelle titulo , e acompanhando este gesto de um sorriso , que consubstanciava a suprema das amarguras e o mais profundo dos desprezos.

Appendix A

Note:

A estupidez. CANTO IV


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TextGrid Repository (2022). Portuguese Novel Corpus (ELTeC-por). El-rei dinheiro: Edição para o ELTeC. El-rei dinheiro: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001B-D8B1-7