AUGUSTO LOUREIRO

A BRUXA

SCENAS AÇORIANAS

Com um prefacio de Armando da Silva

1901

Antiga Casa Bertrand -- JOSÉ BASTOS

73, Rua Garrett, 75

LISBOA

I

O immortal cantor da Primavera disse que a ilha de S. Miguel semelhava uma esmeralda engastada no Atlântico. Não foi uma hyperbole de poeta. A terra do archanjo tutelar é, realmente, um poema de verdura eterna.

Entre as suas povoações ruraes, uma das mais pittorescas é a Candelária, a três horas de jornada para oeste da cidade de Ponta Delgada.

Ora, como a Candelária foi o theatro onde se urdiram -- sem ser precisamente como a teia de Penélope -- as peripécias d'esta veridica historia, e alli se desenrolaram as scenas da sua acção, impõe-se-nos, como accessorio imprescindivel do quadro, um croquis como hoje se diz afrancezadamente.

Pois façamos o croquis.

E caprichoso o recorte do solo, que se abre em sulcos, fundos, paralellos, norte-sul, formando pequenos valles e uma sequencia de collinas, recostadas na falda das Cumieiras das Sete-cidades.

Estas collinas e estes valles são a resultante das enormes convulsões geológicas porque passou uma montanha alterosa, transformando-a em cratera de um vulcão, cuja lava deixou aquelles vestígios seculares, hoje soberbos, pela sua luxuriante vegetação.

Imagine-se umas telhas collocadas paralellamente, alterna-ndo-se uma com o concavo, outra com o convexo para cima.

Os concavos são os valles, no fundo dos quaes deslisam mansamente, originando, de espaço a espaço, catadupasitas, umas vertentes limpidas e frescas, que semelhantes a cobras de prata serpeando no seio da verdura, lá se vão escoar no grande oceano. Os convexos de cada telha são as collinas, onde os campos cerealiíeros se entremeiam com os pomares e os pinheiraes.

A estrada que atravessa a aldeia longitudinalmente, de leste para oeste, estende-se desde a Lomba da Cruz até á Lomba d' Agua, em forma de zigue-zagues. Só assim se consegue subir ao vórtice das collinas, depois de passar pelo vértice dos valles, contornando suavemente o accidentado terreno.

A povoação dissemina-se por toda a encosta. As casas, separadas umas das outras por hortos e pomares, são edificadas, no geral, ás orlas da estrada, quer nos visos dos outeiros, quer no seu pendor, quer lá no fundo dos valles, a cavalleiro das quebradas, sobre ravinas.

Aquelle tresmalhado das habitações, aqui e além, pontos alvejantes a contrastar com o verde-mar das cearas e o verde negro do arvoredo e dos inhamaes, faz lembrar o Minho, para não irmos buscar a assimillação mais longe, ás paizagens da Escossia ou da Suissa.

Dos tectos colmados dos albergues, e das chaminés das herdades, erguem-se espiraes de fumo alvissimo, que vão perder-se nos espaços infinitos, semelhantes a encaracolados véus de gaze ondeando ao sopro da viração, ou a nuvens do incenso espargido pelo grande thuribulo da Creação. As toldas de milho, destacando-se no ermo das eiras, são as sentinellas postadas alli contra a invasão da fome. A modesta igreja parochial no dorso da mais elevada das collinas, domina todo o povoado, como o anjo da guarda ensinando aos fieis o caminho da salvação.

Um verdadeiro quadro de Vatteau.

Estava-se em pleno outomno do anno de 18...

Na Candelária, como em toda a ilha, n'aquella quadra do anno. os labores agrícolas estavam na sua máxima actividade.

Os lavradores encastellavam nas toldas o milho desfolhado na véspera ; os carros chiavam monotonamente, vergados ao peso das maçarocas, que traziam dos campos visinhos ; as lavandeiras esfregavam as roupas nas margens das ribeiras, cantando alegremente ao som cadenciado do espadanar das correntes ; as tias velhas e as avós, sentadas no limiar das portas, fiavam as suas estrigas de linho e de estopa; as raparigas tasquinhavam o linho, ensaiando cantigas para o charamha próximo ; e as creanças e o rapazio também davam o seu contingente de bulicio, saltando na estrada, cabriolando pelas sebes, cavalgando cannas a fingir corcéis, vozeando alegremente como bandos de pássaros.

Mais acima, no matto, os carvoeiros ateavam as suas fogueiras, esbrazindo-as para o carvão que a cidade consumia. Recostados á sombra das toucas de tamugeiro, onde a paisagem é mais agreste, os pegureiros vigiavam os rebanhos que pasciam por entre as pastagens encrespadas de urzes, matisadas de malmequeres, rescendentes á hortelã-pimenta, ao rosmaninho, ao poejo, á macella, servindo-me da classificação plebêa.

No campanário da igreja, cuja invocação é -- Nossa Senhora das Candeias, -- o sacristão acabara de vibrar o toque do meio-dia, que se repercutiu em todas as sinuosidades da aldeia, annunciando a hora do descanço e do jantar.

Em uma eira na ourella da estrada que corta os campos em direcção ao sitio do Soccorro, levantara-se também mão do trabalho. Para se resguardarem do vento os trabalhadores acostaram-se ao muro que separa a eira da estrada. A refeição, de alguns, compunha-se de lascas de peixe salgado com pão ou bolo de milho, de outros, de pão ou bolo com o conducto de malaguetas de salmoura.

Ouviu-se por sobre as cabeças dos trabalhadores estalar esta phrase :

-- Olá! toca a jantar? Era a voz de um rapagão, que se abeirara do muro, debruçando-se nas pedras toscas, como se fora em um balcão.

-- Quem trabalha tem direito a comer, respondeu um dos trabalhadores.

-- Por essa regra, eu, que ando á boa vida, não devo manducar? obtemperou o interlocutor.

-- Certamente, replicou um dos do rancho, que parecia mais destravado de lingua e menos temeroso ; certamente. Para os vadios, o marmeleiro...

-- Isso fia-se mais delgado: cá o pellinho é sagrado, vocês bem n'o sabem, volveu o rapagão. Mas agora reparo : o Luiz não está ahi ! ...

-- Foi jantar a casa, como é de seu costume.

-- Dize antes que foi por causa da Ludovina.

-- Naturalmente, porque bem se diz, que quem tem amores vae vêl-os.

-- Queira Deus e mais os seus santos, aventurou com uma reticencia, o mirone.

-- Ora essa ! pois o que ha a dizer ao Luiz ? interrogou um dos camponezes. Ainda quererão melhor amparo para a rapariga? Sim, só se for algum morgado, que é o que lhe estava ao pintar! Ora não ha!

-- Não é isso, não é isso! E que parece que com a Ludovina ha mais e menos, dizem as más linguas...

-- Como a tua.

-- Como a minha, não senhores, que eu só digo o que vejo e o que ouço.

-- Mas que vês e ouves tu ?

-- Ahi começam vocês a puxarem-me pela lingua, e depois dizem que é má... Nunca ouviram rosnar, que um senhor lá da cidade, que apparece ás vezes cá pela freguezia, arrasta a aza á filha do tio Lourenço?

-- Eu por mim nunca ouvi semilhante aleive, disse um.

-- Nem eu, ajuntou outro.

-- E muito menos eu, confirmou um terceiro.

-- Pois bato-lhes fé, que isto é tão verdade como amanhã ser domingo. Assim cego seja eu. E eu que o digo, é porque tenho as minhas razões... Ora, como o fidalgo, por certo, não casará com a rapariga, está bem de ver o que pretenderá d'ella... Demais julgavam talvez a do Paraizo para ahi alguma santinha? Isso sim: só se for de pau de larangeira ... E, gargalhando alvarmente, retirou-se muito ancho por haver lançado aquella bixinha de rabiar, como o maldizente denominava as suas insidias.

-- Não tem emenda nenhuma o Tesoura ! objectou um dos camponezes com assentimento dos companheiros.

O que insinuara aquella infamante suspeita de uns amores impuros do fidalgo e da Ludovina era um rapazola, cuja única occupação consistia em comer, beber, e abocanhar a reputação de toda a gente. Na aldeia conheciam-n'o pela alcunha -- o Tesoura. Quando elle fallava os circumstantes exclamavam:

-- Lá começa a tesourar !

Com effeito José, -- é o nome recebido na pia baptismal -- era uma verdadeira tesoura de alfaiate : cortava, indistinctamente, sem dó nem consciência nas vidas de todo o fiel christâo, como se fora em macio panno. Na bocca d'este moderno Pasquino de carne e osso, não havia homem honrado, nem mulher honesta! Alem d'isso tinha a boca inventora.

Temiam-n'o os rapazes; aborreciam-n'o as raparigas.

Elles, porque José Tesoura lhes fizera sentir por mais de uma vez a valentia do seu pulso ou a infallibilidade do seu ca.jado. Elias, porque lhes propalava os verdadeiros e os suppostos namoros, com a aggravante de se gabar de ser por todas requestado. Para as raparigas dos campos não ha peior senão masculino.

Um verdadeiro Perrabraz da Andaluzia, este José Tesoura !

Desde creancinha que o seu maior prazer era experimentar forças e jogar o pau. Conquistou foros de valentão entre a rapaziada das aldeias em derredor da Candelária.

José Tesoura não enganava ninguém : defendia a sua poisada, no dizer da phrase popular. Era alto e apessoado : o cabello cahia-lhe desalinhadamente na testa; usava o chapéu inclinado para a nuca. Não encarava a gente com firmeza : olhava-nos de soslaio, traiçoeiramente. Tinha por companheiro inseparável nm cajado da sua altura, única arma de que se servia.

Quando alguém lhe dirigia ditos picantes, resmoneava :

-- Cautellinha, senão lá vae biscouto !

O biscouto era uma cacetada ou um pescoção. E com tal arte jogava o pau que em todos quantos combates entrou, se sahiu victorioso.

Ainda não contava doze annos, e já a lista das suas façanhas formava um bom rosário : tinha quebrado a§ pernas a muitos cães, matara vários gatos, esmurrara as pituitárias a grande numero de rapazinhos, sem contar os falsos testemunhos attribuidos aos seus companheiros da infância para se salvaguardar a si próprio.

Com quanto honestos e bem morigerados, os pães do Tesoura tinham grande quinhão de culpa n'aquelles feitos turbulentos. José era, como lá pelas aldeias se diz, o «ai Jesus» da casa: tudo quanto insanamente phantasiava aquelle tresloucado cérebro, tudo se permittia, á conta de meninice.

Um grande erro.

De pequenino se torce o yiminho, consoante o velho rifão. A experiência mostra o inconveniente de se torcer o vime depois de endurecido pelo gear da idade.

II

Na aldeia havia um ancião, cuja idade, nem elle próprio sabia contar. Inqeurido a este respeito, respondia:

-- O que sei dizer é que quando entraram aqui os da Terceira, eu não fui obrigado a pegar em armas e a marchar para a acção da Ladeira da Velha, por que havia muito que eu passara da idade.

De tão severa moral e firmeza de caracter, como de bondoso coração, este homem era por todos estimado:

iam consultal-o, não somente em assumptos agricolas, mas em negócios e pendências domesticas. Tratavamn'o sempre por tio Lourenço, nome pelo qual era geralmente conhecido.

O tio Lourenço estava invalido para todo o trabalho : alquebrara-lhe as forças, tolhera-lhe os membros, o maior inimigo dos velhos -- o rheumatismo gottoso, moléstia que muito tempo o havia prendido em casa, quasi sempre estatelado sobre o leito. Em quanto forças teve para lutar com tão implacável inimigo, mesmo já adoentado, labutava sempre. Enviuvara cedo ; e do matrimonio houvera uma única filha a quem dedicava todos os affectos do seu coração. Dizia elle que era a menina dos seus olhos ; e quando a via junto de si, a prodigalisar-lhe mil carinhos, mil cuidados, a cobril-o de beijos, jnlgava-se um monarcha, por ser pae d'uma filha inveja de todos os pães.

Fora o tio Lourenço um typo respeitável ; estatura alta, musculoso, a cabeça coberta de lustrosas cans, suissas a rivalisarem com ellas, olhos vivos e penetrantes, um sorriso constantemente a bailar-lhe nos lábios, como signal evidente da paz da consciência e da bondade do coração. Fallava pausadamente como quem costuma meditar no que diz, raras vezes se apaixonava, mas quando isso acontecia era então violento : tempestades que depressa se acalmavam, pois immediatamente vinha em seu auxilio a reflexão : dotára-o também a providencia com juizo prudencial.

Quantas penas amarguravam os derradeiros annos d'este venerando patriarcha, ao ver que a sua estremecida filha labutava dia e noite : ora trabalhando por casa de uns e outros, a tasquinhar linho, a respigar trigo, a desfolhar milho ; ora moendo em sua casa o milho, nos moinhos de pedra, de mão, trabalho violentíssimo para braços femininos, porém muito usado nas aldeias açorianas ; ora acarretando á cabeça talhas de agua ; ora indo buscar molhos de lenha ao mato !

Isto era muito para um extremoso coração de pae ; era pouco para a dedicação de uma boa filha. E comtudo Ludovina andava constantemente alegre como um dia de estio, cantando sempre como a avesinha que tem por património todo o espaço, todas as arvores para poisar, o sustento por toda a parte, e a festa da creação por sua própria festa. Tio Lourenço consolava-se com esta alegria, e dizia nas suas cogitações, lá de si para si : -- « ao menos vive alegre ; não tem abrolhos a ensanguentar-lhe os pés no caminho da vida».

Cerca de vinte e dois annos contava o arrimo do bom velho tio Lourenço. E a essa flor, brotada entre os vergéis da humanidade, por uma coincidência euphonica, puzeram-lhe o nome de Ludovina. Uma como luz divina, com effeito, se diífandia de seus esplendidos olhares !

Não era formosa, destas formosuras deslumbrantes, de formas irreprehensiveis que podem servir de modelo a uma Vénus de Murilo, ou de inspiração a uma virgem de Raphael ; todavia, era essencialmente sympathica, e a sua phisionomia, o verdadeiro espelho da sua alma cândida. Tinha os olhos azues, de um azul celeste e limpido, rasgados, longas pestanas, delgadas sobrancelhas que pareciam desenhadas a pincel : castanhos e sedosos os cabellos levemente ondeantes; a tez fina e branca refractária á ardentia dos raios solares, que não evitava ; lábios delgados e róseos ; faces carminadas ; nariz que um pintor chamaria romano ; um collo bem delineado ; mãos que ninguém diria estarem affeitas aos rudes trabalhos dos campos ; talhe esbelto, sorrindo ingenuamente para todos ; grave, modesta ; Ludovina era, em fim, o typo fino da camponeza.

Os mancebos da localidade não se descuidavam em requestai a; mas Ludovina era borboleta esquiva, diziam elles : levantava o vôo ao menor aceno d'aquelles Tytiros. Orphanada de mãe aos dez annos, vivera sempre recatada, com seu velho pae. Nenhuma outra rapariga possuia melhores créditos ; nenhuma era mais estimada. Tinha muita gravidade nos ademanes, sem descambar para acanhamento, ou para o artificio. Fallava aííavelmente com todos. Ludovina era, por tantos motivos, citada como exemplo, apontada como espelho em que sè deviam mirar donzellas.

Que ambiente de virtudes, de serena paz, de ternuras, era aquelle albergue, onde dois entes, um no começo da romaria da existência, outro no termo da peregrinação mundana, viviam um para o outro como a hera viçosa entrelaçada em vetusto roble !

III

Corria o mez de outubro, epocha em que nos campos da ilha de S. Miguel se está em plena colheita dos milhaes. O tempo já excellente, risonhos e soalheiros os dias, as noites serenas e de luar, a atmosphera tépida e as brisas acariciadoras.

A maior parte dos leitores não têem visto, por certo, uma esgalha de milho. Vou, pois, fazel-os assistir a uma das mais interessantes d'essas bucólicas scenas, passada na eira que defrontava com a casa de um dos mais abastados lavradores do sitio.

A eira, como supponho que ellas são em toda a parte, era circular, servindo-lhe de anteparo, em de redor, um peitoril de pedra solta. A um lado ficava a casa de habitação do lavrador. A direita d'esta via-se um monte de maçarocas de milho ainda com a sua folha, sobre o qual estavam assentadas varias pessoas de ambos os sexos, em diversas posições, umas no cimo outras a meio, outras no sopé; e todas occupadas em descamisar as maçarocas. A esquerda amontoava-se a folha, despojos da descamisada, servindo de coxim a algumas mulheres que fabricavam baracinhos de folha para amarrar os manchos na feitura dos quaes se occupavam homens e mulheres, ao centro da eira, sentados no folhedo. Ao fundo erguia-se um volumoso monte de milho prompto a ir para a tolda. Giravam no ar, em continuada contradança as maçarocas e os manches. Aquellas são atiradas para os que estão incumbidos de fazer os manchos; estes são arremessados para o logar da tarefa prompta; a folha lá vae caminho do seu monte; os baracinhos caem, em pequeninos feixes, junto dos amarradores.

Entre toda esta gente, e sem que o trabalho se interrompa, repetem-se os ditos com menor ou maior intenção maliciosa; trocam-se allusões, citam-se episódios, contam-se anecdotas, narram-se contos, e as gargalhadas, as palmas e os bravos succedém-se a cada dito, a cada anecdota, a cada conto. Um serão assim, é uma noite de completa alegria.

O realce, porém, d'estas scenas está nos cantares, porque são elles talvez o seu principal accessorio. Cantigas de amor, já se vê.

Ahi por essas aldeias, por esses campos, reinos de singela alegria e, sincera felicidade, é n'aquelles descantes, que, por via de regra, fazem as suas declarações os namorados. Não ha atavios, não ha adornos de phrases, não ha expressões alambicadas. Nas cidades e nas salas, para em tudo reinar o artificio, até o coração, o próprio coração se envasa na dialecta estudada, namimica de convenção ! Pelo contrario, onde a natureza é soberana do bom gosto, só ha franqueza, só ha expansões d'alma por tudo quanto nos rodeia! Ama-se uma mulher? os lábios dizem-lh'o francamente; abre-se-lhe o coração onde ella, como em livro aberto, lê: -- sou amada. A confissão é espontânea como expontâneo é o sentimento que a inspira. O amor ó somente amor.

Recostados no monte dos manchos já promptos, dois mancebos tocavam, viola e rebeca, acompanhando os rapazes e as raparigas que ao desafio cantavam, alternadamente.

N'esta esgalha, por ser em caza de um dos mais estimados lavradores, estava a lior da mocidade, do sitio, quer de um quer de outro sexo. Ludovina também ali se achava. Depois de dar a ceia ao enfermo pae, obteve licença para também ir áquelle serão em companhia da tia Anninhas, sua visinha e casada com um seu tio.

Ia o serão em noite velha, e a tareta quasi concluída, quando um dos circumstantes se lembrou de exclamar:

-- Então como é isto ? o nosso improvisador está hoje mudo como uma pedra?

-- É verdade! é verdade! repetiram algumas vozes.

-- Ainda não deu um ar da sua graça! interveiu outro dos da sociedade.

-- Estava á espera que saisse a lua lá por cima do Monte Gordo, accrescentou uma das raparigas.

Effectivamente a lua assomara nos cabeços das montanhas e os seus raios outoniços resvallando pela encosta da serra, allumiavam aquellas collinas, e batiam de chapa nos rostos de quantas pessoas estavam na eira.

O mancebo a quem foram dirigidas as amabilidades respondeu:

-- Sim, senhores, esperava pela lua. Hoje não estou de veia para o desafio. Como dizem que a lua ó a confidente dos amantes, vamos a ver se alguma das ingratas que para ahi estão se resolve a confessar-lhe que de mim se compadece...

-- Muito bem dito, Luiz, muito bem dito, obtemperou um dos rapazes.

-- Compaixão? quem dera! estamos mesmo a morrer por vocês! volveu uma rapariga mais falladora.

-- Olhem os coitadinhos ! estão mortinhos de penas do coração! accudiu outra.

-- Ah! ah! ah! corresponderam gargalhando em coro as filhas d'Eva alli presentes.

-- Riem-se? tornou o interlocutor. Tanto melhor, raparigas. Mas sempre lhes quero dizer que bem verdade é ter eu este pobre coração em brasa, sem que alguma das meninas se atreva a deitar-lhe a agua fria do bem querer! Pois não merece compaixão?

Novas gargalhadas, novas exclamações, estalaram de entre os circumstantes.

Fallára assim o improvisador, por que achando-se na flor da vida sentia a necessidade de ligar a existência a alguma alma que entendesse a sua, e, todavia, não lhe deparara ainda a sorte uma mulher que se lhe dedicasse, ou, pelo menos, nenhuma se lhe revelara. Na mocidade, o coração sem amor ó como a lâmpada a trasbordar de óleo, mas apagada.

Tinha elle foros de primeiro improvisador da aldeia e suas cercanias. Conforme declarara, não estava aquella noite com boca para desafios. Lá tinha as suas razões. Os descantes d'este género, teem por via de regra, assumptos obrigados, e o cantador precisava de cantar ad lihitum, como se diz em thechnologia lyrica, para poder levar agua ao seu moinho ; precisava de não perder tão azada occasião.

-- Então, cantas d'ahi, ó palrador? perguntou o senhor Josésinho, ao ver que havia mais parola que cantigas.

O improvisador começou :

Que lindos olhos eu vejo
Como estrellas a brilhar;
São a inveja dos mais olhos;
Quem m'os dera a mim roubar.

-- Bravo ! bravo ! viva o nosso cantador ! exclamaram os ouvintes batendo as palmas.

Este systema de acompanhar com palmas as expansões de alegria é muito da usança da gente rústica.

-- Ora ! vá, deixem cantar.

-- Leva rumor !

O improvisador proseguiu:

Da côr do ceu esses olhos
Trazem-me ha tempos captivo :
Vivessem elles p'ra mim,
Como para elles eu vivo.
Olhos azues sâo a esp'rança,
Sào os negros a paixãp.
Menina de olhos azues
Os vossos quero, outros não.

Novos applausos e novos commentarios. Começaram então os interrogatórios.

-- Quem é que tem olhos azues ?

-- Menina dos olhos azues appareça.

Uma dizia com magua :

-- Não sou eu.

Outra respondeu com zanga:

-- Nem eu !

Uma, porém, gritou:

-- É a Ludovina.

-- É verdade! A Ludovina tem os olhos azues.

-- A filha do tio Lourenço?

-- Essa mesma.

-- Veja lá quem havia de apanhar esta noite cantigas d'aquella laia ! E não soube responder !

Estava-se n'este dize tu direi eu inoffensivo, quando o dono da casa appareceu na eira dizendo :

-- Olá rapaziada, basta por hoje de tarefa. Amanhã também é dia, ou antes também é noite. Para favor é bastante.

Este favor referia-se ao que convém aqui mencionar. É costume coadjuvarem-se reciprocamente os amigos e os visinhos n'estes trabalhos, e por isso são sempre gratuitos. Amor com amor se paga.

-- Vamos, meus amigos, toca a fazer lugar, que ahi vem a panella do milho cosido, acrescentou o lavrador.

Fizeram todos roda á panella, e comeram á farta.

Houve o indispensável tiroteio de grãos de milho, que dava margem a episódios e a ditos mais ou menos picantes.

Concluida esta frugalissima refeição, o lavrador ordenou :

-- Agora façam campo para se armar uma rodinha .

Hoje é sabbado, e eu não desejo que vocemecês se retirem sem uma folga.

-- Viva o sr. Josésinho ! conclamaram todos.

-- Pois sim, rapaziada; mas poucas demoras. O gallo já cantou ha muito tempo. Vá, vá; e vocês, ó da viola e da rebeca, saltem-me cá para o terreiro. Assim, assim. Então que é lá isso, raparigas? vocês fazem-se de manto de seda? Safa d'ahi... Ora bem; está tudo prompto.

Durou o charamha em que se cantou muito ao desafio, cerca de uma hora ; depois do qual cada familia foi caminho de sua casa.

N'esta noite é que Ludovina se desenganou que era o alvo a que miravam as setas do travesso Cupido occulto no coração do improvisador. Fallando a sós com a sua memoria, recordou-se de certos encontros que tivera com o improvisador, da distincção com que elle a saudava, dos seus sorrisos, e olhares; e no fim de todo este exame de consciência, não poude deixar de concluir, que elle a amava.

Sentia-se um tanto lisonjeada com o que lhe succedêra n'aquella noite, não por vaidade, que era senão que ella não tinha, mas para comprazimento do próprio coração.

Nem por isso se enfeitou com as galas da presumpção, tão peculiares nas coquettes das cidades, quando triumphantes das suas companheiras ou rivaes vêem queimar pelos seus admiradores o vil incenso da lisonja ante o altar do seu amor próprio satisfeito.

Ludovina não deixou de dormir tranquillamente ; dormiu o somno do anjo velado pela virgem da candura, que é o Sinay dos corações innocentes. Teve sonhos encantadores, mas mysteriosos, e tanto que os não saberia revelar a ninguém. Conhece-se por ventura o paraizo? Sabe-se que deve ser bello : mais nada.

O nosso improvisador chamava-se Luiz : Luiz da Josepha, o tratavam na aldeia, por ser este o nome de sua mãe, uma excellente mulher que fora ama de leite da filha de um fidalgo da cidade.

Luiz contava cerca de vinte cinco annos. Tinha uma physionomia aberta, alegre, attrahente ; olhos vivos e brilhantes ; estatura regular e elegante ; musculoso sem ser nutrido ; tempera rija e animo varonil e decidido para as luctas da vida.

Era um excellente moço ; amante do trabalho, filho obediente, extremoso. Não se lhe conhecia vicios; não arranchava aos dislates dos rapazes estouvados. Cantava muito bem ao desafio ; e folguedo ou festa sem elle, era como a casa sem candeia, asseveravam as bailadeiras. Os seus bons créditos tornavam-n'o a tentação das raparigas, que se não esquivavam de borboletar em deredor daquella luz. Luiz era, no dizer d'ellas, pano de lavar e durar. O rapaz conhecia tudo isto, mas ainda assim não abusava. Com todas brincava e ria; a todas, porém, respeitava. Passava por entre ellas como por entre as boninas dos prados.

Desde mui creancinha a Ludovina merecia-lhe gabos de belleza e de bondade. Assistira ao desabrochar d'aquella flor embryonaria ; vira Ludovina tornar-se mulher com as elegantes curvas e contornos do seu gentil corpinho ; habituara-se a contemplal-a em secreto.

Assim brotou no seu seio a sympathia pela filha do tio Lourenço ; assim, pouco a pouco, com o decorrer do tempo se lhe ateou o fogo do amor.

N'aquella noite não pôde dominar-se, que nos seus cantares não rompesse com as reservas ; e destechou com a declaração que vimos, contra a menina dos olhos azues. Ao deitar-se, Luiz não pôde dormir. Tinha escandecida a mente ; estava profundamente apaixonado.

-- Quem sabe se commetti uma imprudência ? perguntava elle a si mesmo. Vá lá a gente conter o coração !

A conclusão era lógica: o coração é déspota indomável.

Durante algumas semanas subsequentes, Luiz e Ludovina encontraram-se, fallaram-se, sem comtudo pronunciarem uma única palavra reveladora dos seus íntimos sentimentos. E Ludovina, corresponderia ao amor de Luiz? Timida e recatada como era, a filha do tio Lourenço não o manifestava, mas sentia, desde muito tempo, que o amava. O amor, afinal, tornára-se reciproco. Não o revelavam lábios, mas nos olhares o bebiam, como a abelha haure o mel no cálice das flores, n'uma doce embriaguez.

Sim, o amor também embriaga. Rousseau, bom sabedor d'estes segredos, dizia que um ente profundamente enamorado bebia na taça dos sonhadores a ambrósia dos vergéis do éden, volúpia quásubstituia a razão pelos anhelos sensitivos do coração.

Um dia, occasionalmente, Ludovina encontrara- se com Luiz na fonte. As fontes nas aldeias são os sitios mais azados para idyllios. Luiz, que nunca ousara fallar do seu amor a Ludovina, vendo-se a sós com ella, fez um supremo esforço, e com toda a singeleza caracteristica d'aquella gente, acanhadamente lhe disse :

-- Ludovina, ha muito que tenho desejos de fazer-lhe uma confissão...

-- Quem lh'a vedava?

-- O meu acanhamento ...

Com effeito, Luiz, tão destemido, tão corajoso, sentia-se timido diante de Ludovina!

-- Um homem acanhado ! retorquiu a rapariga.

-- E que receiava que se zangasse commigo...

- Zangar-me ! pois tão feia é essa confissão?

-- Depende da maneira em que fôr tomada pela menina. Do que pôde desde já ter a certeza ó que a minha felicidade ou desventura estão dependentes do que vou dizer-lhe.

-- Se for a sua felicidade, sr. Luiz, prometto não me zangar, tornou a donzella com seductora voz : e conchegou a sua talha para a bica da fonte, cuja agua descia por entre os dois amantes, como uma fita de prata para cingir aquellas duas almas.

Luiz então aventurou :

-- Ha quanto tempo eu a amo, Ludovina! E este sentimento não o posso por mais tempo occultar : escalda-me o peito. A minha única felicidade consiste em ligar o meu ao seu destino. Diga-me, quer ser minha mulher ?

Ludovina baixou as suas lindas pálpebras, ruborisou-se e emmudeceu.

Luiz comprimiu o peito que lhe arfava n'um violento anceio, esperando receber a vida ou a morte daquelles adorados lábios, e proseguiu :

-- Não dizia eu que se havia de zangar?

-- Bem vê que não me zanguei, respondeu ella com voz docemente tremula.

- Então porque me não responde?

-- Parecia-me que já devia ter conhecido que me não era estranho nem indiíFerente o seu affecto ; e que se eu o não repelli, como a tantos outros fiz, foi por julgar sinceras as suas intenções. Bem sabe que não costumo fazer de um objecto tão grave e tão sério um simples passatempo.

-- Oh! Ludovina, quanto me torna feliz! prorompeu Luiz numa explosão de júbilos capaz de enlouquecer muitas virgens fracas. -- Perdõe-me se o duvidei um só momento. Sou feliz; bem feliz que sou agora. Ludovina, consente que vá pedir a sua mão, dentro de alguns dias, a seu pae?

-- Acho que é esse o primeiro passo que tem a dar.

Amo-o, Luiz; mas também amo muito e muito meu velho pae. Custar-me-ia que elle se oppozesse ao nosso casamento ; porque eu de certo não iria contra a sua vontade ; nunca desobedeceria a quem está á borda da sepultura.

-- Mas se o tio Lourenço não quizer o casamento faz a sua desgraça ; bem sabe que não tem mais ninguém no mundo ... continuou Luiz com visiveis signaes de receio.

-- Desgraçada ? isso o quereria elle, o meu querido pae ! Não se arreceie, Luiz. Se meu pae souber que d'este casamento depende a minha ventura, será elle, pobresinho, o primeiro a abençoar-nos.

Tranquillisou-se o apaixonado improvisador. E quem não seria improvisador apaixonado tendo uma musa como Ludovina? Feliz, enleiado, com o coração palpitante, Luiz teve tentações de dar um beijo n'aquella tentadora creatura.

E, fallando verdade, qUe impureza, que desacato á pudicícia encerra um puro beijo? Tudo está na intenção.

Um beijo pode ser a esponja molhada no fel que deram ao Christo, e pôde ser um favo do mel colhido no Hymetto.

Se o beijo é dado por lábios que são o rebordo de uma taça cheia nos tremedaes do vicio e da prevaricação, esse beijo corrompe, envenena, mata. Se, pelo contrario, o beijo é deposto por uns lábios que ainda não foram hervados pela crápula sensual, lábios puros como o crystal de rocha, meigos como as pétalas da orchydia, então o beijo é o sêllo da pureza e da lealdade dos sentimentos.

Ludovina, repentinamente, empallideceu; o seu corpo flexivel teve um estremecimento, como a vara do álamo saccudida por serena viração.

A donzella, ao relancear, por mero acaso, os olhos para uma eminenciasinha sobranceira á fonte, viu apparecer uma cabeça de homem entre a folhagem de uma espessa touca de louro e tamujeiro. Era José Tesoura, que ali, n'aquella espécie de guarita da maldade, ouvira todo o dialogo, colhendo mais assumptos para pasto da sua lingua.

O tremor e a mudança de cor não passaram desapercebidos de Luiz, que se apressou em perguntar.

-- Que tem Ludovina ?

-- Nada; não é nada; talvez esfriagem do tempo.

Não vê como os céos se cobrem de nuvens escuras ?

Vou-me embora. E pôz a sua talha á cabeça.

Trocaram ainda algumas palavras, despediram-se, disseram um afifectuoso adeus n'um derreiro olhar ; e a donzella tomou caminho de sua casa.

Luiz, cujo pote também se acabara de encher, preparava-se para se retirar, quando viu saltar do raato para a estrada José Tesoura, sorrindo ; e também por seu turno estremeceu como se o tocara corrente eléctrica ; lembrou-se que Ludovina demudara repentinamente a phisionomia, e a causa não podia ser outra senão a presença d'aquelle homem.

-- Ora viva sr. Luiz, chacoteou o Tesoura.

-- Não estavas ali por bòm, José.

-- Que te importa se era por bom ou por mau?

-- É que melhor fôra, que em vez de andares espreitando o que os outros fazem, como o milhafre a gallinha descuidosa, te metesses com a tua vida e trabalhasses n'alguma coisa útil.

-- Que tens com a minha vida ?

-- Com a tua, nada, decerto ; importa-me tanto como a primeira camisa que eu vesti. Que te metas com a minha isso sim.

-- Ora vejam ! todo zangado por que eu o surprehendi a namorar ! namora, homem, á tua vontade, mas deixa cá a gente fazer a sua deligencia.. .

-- A sua deligencia! atalhou Luiz. Qual deligencia queres tu dizer? Porventura atreves-te a cruzar-te no meu caminho, ou a suppôr que Ludovina é d'essas raparigas das dúzias, que por ahi ha !

-- Cala-te bocca...

-- José, ouve bem o que te digo ; não te intrometas commigo e muito menos com a mulher que em breve hei de levar ao altar, senão...

-- Ameaças-me ?

-- Que duvida ! julgas que me mettes medo como aos outros poltrões que ahi temos na freguezia? enganas-te redondamente, t'o digo eu. Não temo nem o teu pulso nem o teu bordão : sou homem para o que mais homem fôr, se me appareceres de frente. A minima coisa que eu saiba, conta commigo. Fique-te isto bem de memoria, para teu governo. Temos conversado.

E Luiz desceu rapidamente a ladeira que conduzia ao povoado, e desappareceu. José Tesoura, que ficara a scismar nas palavras de Luiz, retirou-se pouco depois, dizendo com os seus botões:

-- Boa vae ella ! o Luiz toma a coisa a serio, e eu em se me mettendo qualquer asneira na cachimonia, não ha quem me faça mudar.

V

A Canada do Paraizo corta de norte a sul o vortice de uma d'aquellas collinas, de que o leitor já tem conhecimento, e desemboca na estrada principal.

Ludovina morava alli na Canada do Paraizo, e por isso tanto ella como a familia eram conhecidas pelas -- do Paraizo .

E noite, sem luar ; as estrellas é que levemente despedem um tibio fulgor que fende as trevas, como que ensinando as sinuosidades da estrada aos caminhantes. Um vulto de homem sobe a Canada : vamos-lhe nas pingadas.

A janella de uma casita desenhava-se muito a custo, na penumbra, uma figura de mulher. A noite tinha de tal arte cerrado sobre a terra as suas opacas cortinas, que ninguém, que o não esperasse, era capaz de adivinhar alli a presença de uma creatura.

Aquelle vulto dirigiu lentamente os passos em direcção á casita ; e, chegado junto d'ella, abeirou-se da janella.

-- Luiz ! murmurou a voz da mulher, mas tão suavevemente que pareceu o brando cicio da folhagem.

-- Ludovina ! respondeu o vulto que seguimos.

O leitor fica sabedor de quem se trata : elles se denunciaram.

-- Pensei que já não vinhas ! disse Ludovina.

-- Não é muito tarde ainda.

-- Tarde é sempre para quem com anciã espera. De mais, os meus receios continuam...

-- Descança, Ludovina ; nada receies, tenho juizo bastante para evitar desordens, prudência necessária para me sair bem d'ellas sem risco.

-- Mas dizem, que tu e aquelle maldito Tesoura andam sempre em questões de palavras ; e bem sabes que das palavras ás obras vae um nadinha.

-- Não é tanto como dizem, acredita na minha honrada palavra. Elle é que espalha essas tolices. Apenas duas ou três vezes lhe tenho aconselhado a que nos deixe em paz.

-- Pelo amor de Deus, Luiz, pelo nosso amor te peço que penses sempre assim. Se souberas como eu soffro por causa d'aquella alma mofina ! Deus me perdoe !

Olha, uma vez que tens confiança em mim, não te importe mais nada. Quem fallar ha de cançar.

-- Confiança em ti? como a tenho em mim próprio!

Este dialogo foi cortado por uma voz que do interior da casa perguntou :

-- Ludovina?

-- Senhor ? respondeu a rapariga.

-- Com quem conversas tu? volveu a mesma voz.

-- Com ... com ninguém tartamudeou Ludovina ...

-- Então fallas só?

-- Não fallava, meu pae; resava um pouco alto, contemplando as estrellas que estão tão lindas : o ceu está tão estrellado !

-- Está bom : reza um Padre Nosso e uma Ave Maria por alma de tua boa mãe, que Deus chamou á sua gloria, e também por mim, para que Nosso Senhor acabe cedo este meu martyrio.

E tudo caiu novamente em silencio. Aquella voz era a do tio Lourenço, que jazia no seu leito de dores, de onde mesmo vigiava a sua filha dilecta.

Ludovina balbuciou com voz tremente, e em tom quasi imperceptivel :

-- Perdoae-me, meu Deus, perdoae-me Virgem Santíssima, a mentira que acabo de proferir, e que, parece, me escaldou os beiços !

O mancebo comprehendeu a magua que ia na alma da sua amada, e, desconfiando que ella chorava, para se certificar, foi delicamente com a mão aos olhos de Ludovina, e murmurou :

-- Tu choras, meu amor?

-- E que eu não posso mentir como o fiz agora !

Mentir, e mentir a meu pobre pae ! oh ! vergonha ! De repente ella exclamou : Luiz, é necessário que quanto antes venhas pedir a minha mão ! Amo-te muito, mas não quero, não devo estar a illudir meu pae por mais tempo.

-- Pois sim: domingo cá venho. Tudo acabará, porque eu poderei entrar francamente em tua casa, em vez de estar aqui como um malfeitor que necessita vigiar-se e esconder-se de todos. Tens rasão. O promettido é devido ; adeus, até domingo.

E separaram-se.

Já a este tempo as visinhas, e especialmente as novas, matavam o seu pouco de tempo, discursando acerca dos amores da filha do tio Lourenço ; e asseveravam, a despeito da inveja que as remordia, que não havia que dizer do casamento, porque se Ludovina era uma rapariga bem reportada e trabalhadora, Luiz era a nata dos mancebos da aldeia; gosava de boa fama.

Ora o que é certo é que um casamento com o beneplácito da visinhança é negocio meio feito. E grande coisa é cair se para bem na bocca do mundo.

VI Não faltou Luiz á sua promessa. Mas, coincidência desagradável! no domingo aprasado, a folhinha, nem mais nem menos, resava de S. Judas! Mau presagio!

preliminares de noivado em dia do santo homonymo do falso discípulo !

Luiz entrajou-se com o seu fatinho de ver a Deus; e, com a gravidade de um senador romano, foi portas a dentro do albergue do tio Lourenço. O bom velho andava mais achacado, por causa de irem apertando os frios invernaes; e tanto, que por grande favor da moléstia, apenas se podia tirar de dentro dos lençoes para sobre a cama: erguer-se de todo é qne não havia licença. Em consequência do quê recebeu a visita de Luiz ali mesmo.

O tio Lourenço, com a sua proverbial affabilidade íicolheu o recem-chegado ; e, depois de permutadas as reciprocas phrases do estylo, perguntou :

-- A que devo o gosto de o ver aqui, Luizinho?

-- É grave, muito grave o motivo da minha visita, respondeu Luiz com voz tremula e o rosto annuviado, que sobresaltou o seu interlocutor.

-- Grave motivo, diz vocemecê ?

-- Sim, senhor.

-- Ó homem de Nosso Senhor, falle d'ahi que me assusta, volveu o velho insoffridamente, e como que a querer saltar do leito.

-- Isso, não; caso para sustos é que não é, tio Lourenço. Expliquei- me mal, já vejo. É negocio sério, isso sim; porque é natural que lhe custe... sim, é natural ! ... sempre é um golpe ... continuou Luiz sem saber como chegar ao fim.

Ainda mais assustado ficou o pae de Ludovina ao ouvir fallar em golpe ; e ancioso exclamou :

-- Cada vez me assusta mais, Luiz! Peço-lhe que acabe por uma vez com essas meias palavras.

Luiz, como quem vae atirar-se ao mar para mergulhar, conteve a respiração, fez um esforço e proseguiu :

-- Tio Lourenço, quando eu disse que o negocio era grave, não lhe menti, nem eu nunca minto. Parece-me que é negocio grave um casamento? Pois é do que se trata. Venho pedir-lhe a sua filha para minha esposa.

Ao ouvir estas palavras, que estava bem longe de esDerar, o tio Lourenço estremeceu; viu diante dos olhos volitar uns pyrilampos : se estivera de pé, teria oaido ; seccou-se-lhe a bocca, e a custo poude pronunciar :

-- A minha filha?... Com que então quer arrancar-me d'estes braços já velhos e descarnados a minha querida Ludovina? e enchugando com as costas da mão o suor que em bagas lhe escorria pela fronte, continuou : Quer privar-me do único ente que me ama, que me é o amparo da existência, a companheira dos meus pezares e alegrias, a estrella que me allumia nas minhas noites de inverno, o sol que me aquece nosgelos da velhice ? ...

-- Mas, tio Lourenço, escute-me por um momento, atalhou Luiz.

O velho sem attender, proseguiu:

-- Em boa verdade que não levo a mal, nem posso, nem mesmo devo levar, a sua pretensão, Luiz. E' natural, muito natural até, que se agradasse da minha filha, que procurasse para sua companheira uma rapariga tão trabalhadora, tão arranjadinha. um verdadeiro thesouro n'estas eras ; porém, eu, que sou seu pae, hei de perder o meu anjo da guarda? Hei de ficar n'este canto, esquecido, sósinho, para morrer á mingoa e ao desamparo ? Ficarei exposto á miséria, como arvore carcomida aos rigores do inverno no meio de um baldio deserto? Oh! por certo, que não haverá alma tão sem piedade ! Não ! a minha filha não quererá derribar este despido tronco, que, por mercê de Deus, ainda aqui vegeta...

-- Ora por quem é, tio Lourenço, interrompeu novamente o mancebo, queira ouvir-me; depois avaliará como entender o meu procedimento.

-- Tem razão, homem, respondeu o attribulado pae, com mais placidez de espirito, e como que caindo do alto da sua injustificável exaltação. É verdade é verdade ; devo primeiramente ouvil-o ... Perdôe-me ; não fui senhor de mim; mas não é de estranhar que um pobre pae, velho e achacado, sem alentos para nada, se deixe levar de taes excessos, quando o ameaçam na perda da sua própria vida. Falle, falle, Luiz.

Ninguém levava a palma ao improvisador no tocante a torneios poéticos ; para scenas d'estas em que se achava como principal personagem, é que não valia nada: a musa abandonava-o; sentia como que a sumir-se-lhe a lingua pela garganta abaixo !

Mas como o intróito da sua exposição fora mal feito, precisava acoudir a tempo para não perder a partida. Pediu inspiração a Nossa Senhora das Candeias, e começou n'estes termos :

-- Tio Lourenço, quando me resolvi a entrar a porta d'esta sua pobre mas honrada choupana, não foi minha tenção vir arrancar-lhe dos braços a sua filha a quem tão merecidamente adora, e muito menos deixal-o na penúria e no abandono Não tio Lourenço, três vezes não ! Sou pobre, o meu património é o meu trabalho ; sou filho de pães pobres também ; mas a honra e a caridade têem sido condão da minha familia , e para mim são como um evangelho. Ha um ditado que diz «antes que cases olha o que fazes»; pois eu segui-o á risca. Pensei muito n'este negocio, ao pensar na sua filha para minha mulher, lembrei-me de que ella tinha em casa um pae, cujo amparo e arrimo era: e para logo contei com duas pessoas. Se vocemecê me der a mão de Ludovina, ficará com dois filhos. Teremos as mesmas sopas, dormiremos debaixo do mesmo tecto, seremos em vez de um, dois enfermeiros...

O pae de Ludovina fez um movimento indicativo para fallar; Luiz impoz-lhe silencio com a mão, e continuou :

-- O meu património, como eu já disse, é a minha enxada; e nem por trabalhar para três pessoas em vez de duas, me correrá mais abudante o suor. O tio Lourenço bem sabe que não foi a ambição de haveres que me trouxe á sua presença: a formosura de Ludovina, ou antes a bondade d'aquelle anjo que a Providencia lhe deu por filha, inspirou-me ao principio ama certa sympathia, como a gente sente por as virgens que estão nos altares; e d'esta sympathia nasceu o amor, a que Ludovina, ao principio indifferente, depois correspondeu. Mas como este amor era puro, tornou-se para mim uma religião tão necessária ao bem da minha alma, como para a vida é a agua que bebo. Agora, tio Lourenço, depois de eu lhe haver aberto o meu coração, pôde avaliar o meu caracter.

Estava mui outro o bom do velho. As explicações de Luiz operaram-lhe no espirito como o rocio da noite nas plantas afogueadas pelas calmas do dia. Luzia-lhe nos olhos a alegria, como brilha no ceu o sol após ama tormenta serenada. Estendeu a convulsa mão para o mancebo, dizendo lhe commovido:

-- Dê-me a sua mão, Luiz; quero apertar na minha a mão do homem verde em annos, porém maduro no pensar. Tinha sempre ouvido fazer-lhe os maiores elogios : vejo que me não enganaram: tem nobres sentimentos. Quero ser seu pae.

Luiz por um ápice que esteve a saltar ao pescoço do velho. O coração parecia que no seu palpitar queria sair lhe fora da caixa do peito. Entreviu um futuro venturoso. Depois de apertar a mão que lhe fora estendida, como em signal de que se encerrara o seu contracto matrimonial, murmurou confundido de reconhemento :

-- Obrigado, tio Lourenço, obrigado. Deus lhe recompenserá esta felicidade.

-- Que seja feliz, é o meu maior desejo agora, porque assim dará também a felicidade á minha querida filha, que bem a merece, mal me fica a mim dizel-o, mas é a verdade. Resta-me agora fazer-lhe entrega do que me pediu... mas não serei eu quem a faça: será apropria interessada. E chamou: Ludovina, ó Ludovina, anda cá fora.

Accudiu a donzella toda jubilosa ao chamado. Tinha ouvido tudo. Soffrera também as torturas da anciedade e do receio. Quando assomou á porta do quarto, e que os seus olhos trocaram com os de Luiz um amoroso olhar, encarnou-se como as nuvens da aurora ao surgir o astro rei na fímbria do horisonte.

-- Com que então occultavas me um segredo? inqueriu o tio Lourenço para a filha. Tu bem devias saber que se d'este casamento dependia a tua felicidade, eu, tão teu amigo e desejando tanto o teu bem, não tinha que oppor-me a elle. Ora pois ; já que assim o queres, vem offerecer ali ao Luiz o que elle me pediu.

O improvisador e a menina de olhos cor do céo, confirmaram n'um tremulo aperto de mãos o affecto que se consagravam.

Agora eram um do outro. Agora julgavam se os mais felizes entes deste mundo sublunar. Viam-se todos os dias; viviam um pela vida do outro, como a arvore vive pela raiz. Adejavam em torno d'elles como um bando de encantadoras mariposas as mais risonhas esperanças; formavam projectos de existência futura:

consultavam a meudo o velho pae, feliz da felicidade d'elles; mas não se lembravam, ou talvez ignoravam que a desgraça ó a sombra nefasta e perseguidora da humanidade, e que portanto a segue passo a passo.

Sim, a felicidade é um no tranquillo e socegado nc qual os corações sobrenadam como cysnes. A desgraça é um grande seixo que lhe está sobrevindo, imminente.

Quando o vendaval da sorte allue o seixo, este despenha-se no rio, que se transforma em mar tempestuoso: e os cysnes, se escapam a submergir-se, vão de encontro ás fraguas.

VII

Estava-se já no mez de maio do anno seguinte.

Uma noite Luiz subiu a Canada do Paraizo e parou defronte de uma pequenina casa colmada.

-- Ó lá de dentro ! disse elle em voz alta e vibrante.

-- Quem é ? perguntou no interior da choupana uma voz de mulher.

-- Está por ahi o tio André ?

-- Ainda não chegou da cidade, onde foi vender o carvão, respondeu assomando á porta da rua uma mulher dos seus sessenta annos, corpulenta ainda, de saias curtas, chaile amarrado sobre as costas, cabello todo puchado á substancia para o alto da nuca, e ali atado á laia de estriga de linho. Esta mulher ao ver Luiz, exclamou :

-- Ah! é vocemecê, sr. Luizinho? quero dizer, meu futuro sobrinho; embora por afinidade seja, não importa, que de todo o modo o estimo já.

-- Sou eu em pessoa, tia Anninhas. Tenha muito boas noites em companhia de quem mais ama.

-- A Virgem Nossa Senhora lhe dê as mesmas. Então o que o traz por aqui, Luizinho ?

-- Cousa de pouca monta. Uma pessoa da cidade pediu-me uma carga de carvão : e vae dahi queria eu que o tio André m'a tornecesse. Como vou ser da família não devo dar a ganhar estes vinténs aos estranhos.

-- Sempre bom coração ! Pois. que duvida haverá n'isso?

-- É que eu tinha alguma pressa da encommendasinha.

-- Tudo se hade amanhar, com a ajuda de Deus.

Vá vocemecê descançado. Quando o meu homem vier o farei sciente do seu recado. O sr. Luisinho será servido primeiro do que ninguém, fique certo. Pudera !

não havia de servil-o !

-- Obrigado, tia Anninhas. Até mais ver.

-- Psio, ó Luisinho?

-- Chamou, tia Anninhas? perguntou Luiz, que já se ia retirando, e volveu atraz.

-- Diga-me cá: então para quando é o casório?

-- Logo que estejam concluidos uns arranjositos necessários, mas custosos para quem de fracos meioa dispõe.

-- É que eu estou tecendo uma teasinha para offerecer á Ludovina, e temo que não tenha tempo para a acabar.

-- Tem, deixe estar. Boas noites. E Luiz continuou a subir a Canada. Já se vê, ia visitar a noiva.

A sr.a Anninhas, esposa do tio André, irmão do pae de Ludovina, recolheu-se ao seu lar a concluir a ceia para quando chegasse o marido, que devia trazer bastante larica da viagem; e foi dizendo para comsigo:

«Vae agora ver a namorada. Deus os fade para bem, que o merecem são ambos umas jóias. Isto faz-me lembrar dos meus tempos». E suspirou.

As pessoas que entram no inverno da vida, mormente as do sexo frágil, lembram-se sempre da sua primavera com saudade, quando se lhes deparam scenas de Romeu e Julietta. São como as arvores velhas, já desataviadas de folhagem, se novas arvores são plantadas ao pé d'ellas. As velhas parece que esmorecem e amarellecem mais ao verem a luxuriante seiva das novas a viçarem para o ceu.

VIII

Corria, como se disse, o mez de maio. Em geral caem neste mez das flores as populares festas do Espirito Santo.

Durante esta risonha quadra o povo açoriano entrega-se a uma sequencia de folguedos por o espaço das sete semanas, que medeiam do domingo de Paschoa ao domingo da Trindade. As alegrias do povo têem uma completa expansão. E' a sua festa predilecta. Leva todo um anno a fazer economias nos seus parcos haveres, para cada qual nas suas domingas reunir a familia e dar -lhe pelo menos gallinha, carne de vacca e uns cangirões de vinho, coisas que durante todos os mais dias se não vêem em sua casa.

Até a indigência tem mais farto quinhão no banquete da caridade. Innumeras e abundantes são as esmolas que em louvor da divindade se repartem em bodo aos pobres.

Alliam-se assim os júbilos do povo com a abastança momentânea dos indigentes.

Nas aldeias differe um pouco o modo de celebrar estas festividades Formam- se umas espécies de irmandades, com seu mordomo, que é o encarregado de receber durante o anno os cereaes que os irmãos vào pagando, e de manter nas pastagens os bezerros para se criarem: ha também uma pequena quotisação monetária. No tempo próprio o mordomo manda reduzir todo o trigo a pãOj todas as rezes a carne, e algum dinheiro a vinho. O dia da festa é sempre em domingo, um dos sete citados -- Na antevéspera arma-se e enfeita-se uma casa, com o pão em medas, com a carne cortada em porções eguaes, dois ou três kilos, posta em pratos ; com o vinho encanteirado. O pão é todo matisado de flores.

Em uma espécie de altar ostenta-se a bandeira do Espirito Santo, pendente da respectiva haste, no meio de vasos de flores e luzes. A noite vem o cura da freguezia; e, ao som de um Te-Deum entoado a cantochão, procede á benção do pão, da carne e do vinho. A esta casa chama-se -- despensa: a cada quinhão de carne dois pães e uma jarra de vinho -- pensão.

Na véspera, sabbado, vários lavradores mandam para a porta da despensa carros de bois, todos entaiados com flores e fitas, bois e carros. Um dos carros recebe o pão, outro a carne, outro o vinho. D'ali seguem a levar pelas portas dos irmãos as respectivas pensões, ao som da guisalhada dos carros, dos toques de viola, rebeca e pandeiro, dos vivas do rapazio e do estourar das bombas dos foguetes e de tiros de espingarda.

Na noite d'esse dia, varias casas dão o seu charamba, e a casa depositaria da coroa do Espirito Santo, allumia, mais ou menos esplendidamente, o sagrado emblema; erigido em um altar, em forma de escada, cujos degraus são ornados de vasos de flores e luzes.

No domingo é a coroação. A' creança que tem de ir coroar á igreja, dão lhe o nome de imperador, se é da sexo masculino, e ds imperatriz se é do sexo feminino.

A sorte tirada de um para outro anno, é que indica a creança que tem de exercer estas funcções ; e em casa da qual fica depositada a coroa e a bandeira. A coroa tem exactamente o feitio das que ornam a cabeça das imagens das santas virgens.

A creança vae para a egreja, processionalmente acompanhada de outras creanças, todas vestidas de branco, o que é do estylo ; fazem-lhe séquito homens, e, n'algumas partes, também mulheres, com cirios em punho. Abre a procissão a folia. Denominam-se assim quatro homens entrajados de capas de chita, espécie de opas, geralmente muito enramalhetadas e da que se usa para cobertas de camas, levando nas cabeças uns barretes similhantes ás mitras dos bispos, mas cobertas da mesma chita. Um dos homens toca viola de cordas de arame, outro toca rebeca, outro toca pandeireta, e o quarto que vae no meio, conduz, fluctuando, uma bandeira de seda encarnada, tendo ao centro, bordada a branco, uma pombinha. No tope da haste da bandeira ha outra pomba esculpturada em madeira, dos pés da qual pendem fitas de varias cores.

A creança (imperador) leva na cabeça a coroa e na mão o sceptro ; e na volta da egreja abençoa com o sceptro as pessoas por quem passa. Adiante, outra creança conduz uma bandeira em tudo igual áquella, e que é a que figura na despensa e na igreja. Durante o trajecto, cujas ruas se enfeitam com arcos de verdura, de flores e de fitas, e o chão se atapeta de folhagem e de flores desfolhadas, sobem ao ar muitos foguetes, e o rapazio solta phreneticos vivas.

Na igreja, n'algumas partes, ha missa cantada a instrumental, e com sermão ; n'outras partes ha apenas missa rezada. A qualquer dos actos religiosos assistem as creanças, assentadas em logar próprio, junto ao altar-mór. Quando o sacerdote celebrante consagra a hóstia e o cálix, cinge a fronte da imperatriz com a coroa, que fora deposta sobre o altar, profere palavras sacramentaes, que nos não recordam agora, e com o thurybulo faz-lhe varias oblações. Findo o santo sacrifício da missa o préstito dirige-se ao império.

Império se chama a uma espécie de coreto ds madeira, portátil, que se arma em plena estrada, ou de pedra e cal, e por conseguinte fixo. Ali estão durante o resto do dia, as creanças, assentadas em derredor de uma meza, sobre a qual se deposita a coroa entre flores e cirios.

A folia fica então encarregada de ir acompanhar a casa do cura, do regedor, do juiz de paz, das pessoas mais qualificadas, as flórea do Espirito Santo, que são umas offertas constantes de carne, pão, vinho, argolas e pães de ló, offertas que são agradecidas com dinheiro.

Do que se passa de tarde, e que é o complementa da festa, diremos n'outro capitulo.

IX

Chegára-se á Trindade. A mordomia d'esta festa cahira em sorte ao sr. Victorino Feteira, lavrador dos mais abastados, e que timbrara em que ella fosse de truz. Na forma do estylo dava o seu charambaua véspera, para o qual convidara todos os seus visinhos amigos, não se esquecendo de Ludovina e do seu noivo.

Desde que seu pae enfermara, Ludovina esquivava-se sempre aos folguedos. D'esta vez, porém, o tio Lourenço, chamando por ella, disse-lhe :

-- A minha filha hoje não deve faltar. O Feteira veiu convidal-a; e eu sou muito obrigado a este amigo velho, amigo como já os não ha por ahi, homem honrado ás direitas. Vaes com tua tia Anninhas, sim, minha filha, precisas distrahir-te das tuas grandes canceiras ; e por te distraíres nem por isso se me aggravam os males.

A boa da rapariga limitou-se a responder :

-- Vou para lhe obedecer, que não por própria vontade.

A casa do mordomo era adjacente da egreja. Entremos n'ella.

Um dos quartos fora destinado para repositório do sagrado emblema da invocação da Divindade festejada, a coroa, a qual se achava no cimo de um elevado tlirono ou altar, todo ornamentado : fitas, flores, luzes, havia em profusão. As paredes do quarto estavam forradas de colchas de damasco carmezim. N'este quarto conversavam algumas mães e tias, que faziam lembrar os figos esquecidos na figueira ; e três ou quatro ginjas relembravam successos dos seus tempos da mocidade, todos os annos fielmente narrados a differente ou talvez ao mesmo auditório.

Os rapazes e as raparigas, que ao principio da noite também ali estiveram fazendo companhia ao Espirito Santo, haviam passado a um outro quarto, onde uns parolavam e outros bailavam e cantavam.

Como a casa fosse ao rez do chão, e as janellas estivessem abertas para que hoUvesse ventilação, e para que podesse ver a folga quem não fora convidado, ou por acaso passasse, segundo a velha usança, debruçavam-se e apinhavam-se a essas janellas muitos outros rapazes, que d'ali assistiam ao folguedo, fazendo cada qual os seus commentarios mais ou menos sarcásticos, para os convivas.

A noite adiantára-se. O dono da casa fez interromper o folguedo para offerecer uma refeição constante de especiones, pão de ló, argola e vinho da terra, que n'aquella epocha havia á farta, e á farta se bebia.

Concluída esta refeição, que nas nossas aldeias e n'estas festas substitue o cha das salas, recomeçou o baile e com mais enthusiasmo ainda, porque o vinho, no dizer das sagradas letras, alegra, o coração do homem (e o da mulher?) Uma das bailadeiras exclamou :

-- Lá chegou aquella ave de mau agouro !

Todos olharam para a janella que tinha sido objectivo dos olhos da rapariga. Encararam com a quisilenta verónica do José Tesoura, que se entremettera com os espectadores externos.

-- Quem é ? inquiriram algumas raparigas que estavam sentadas no lado opposto, e que por isso não viam a janella.

-- Ora quem ha de ser ? O José Tesoura.

-- T'arrenego !

José Tesoura para não perder o costume de tesourar, disse aos companheiros :

-- Aposto que vocês ainda não repararam na Ludovinar Está assim a modo que sem côr... Faz-me lembrar o melão que alforrou ...

-- Cala-te d'ahi, ó José ; bem vês que não estás em tua casa! atalhou um dos da janelia.

-- Eu estou mas é na rua, e a rua é do concelho !

José e os mirones callaram-se para ouvir cantar uma das bailadeiras encartadas no officio.

A senhora Anninhas estava no quarto da coroa, também, e conversava com a rubicunda esposa do mordomo, a qual esposa lhe perguntou :

-- Então quando casa a sobrinha do seu homem ?

-- Ó filha, eu não n'o sei bem ao certo. Pelos modos como que ainda terá sua demorazita. O rapaz não quer casar sem que todos os arranjosinhos estejam promptos.

Leva de systema em não querer pedir dinheiro emprestado para isso; e como apenas possue as economias do seu labutar, espera pela venda das favas e do trigo.

-- Bem pensado, sr. Anninhas, muito bem pensado, volveu a interlocutora. Sempre ouvi dizer que isto de dinheiros a juro arruina muita gente boa. A usura é grande por ahi. E' uma dor d'alma ver como aproveitam as necessidades do pobre ! Não ha nada como cada um ser mercador somente com os seus próprios teres, poucos ou muitos. O rapaz tem tino, isso lá tem. Foi feliz a Ludovina na escolha, vá dito sem inveja. Ainda bem. Olhe, vocemecê, outro tanto nãO' aconteceu á minha Maricas, que deu, como se costuma dizer, com as ventas n'um sedeiro. O marido o que quer é andar sempre em charambas e em comes e bebes com os amigos. Em elles dando n'isto estào perdidos ; não cuidam do arranjo da casa nem do trabalho das terrinhas, que ficam ao Deus dará. Isto do casamento ó como uma sorte que se tira n'uma rifa. O premio poucos o alcançam.

-- É como diz, senhora Mariinhas. Hoje em dia como tudo vae, sem temor a Deus nem dos pães, é um grande risco casar se a gente. Não haja homens como os do nosso tempo. O meu André leva sempre a dizer que emquanto não voltar aos reinos o senhor D. Miguel, as cousas não levam volta, porque só elle ó capaz de acabar com a praga dos maçarocos , que são a causa de tantos desatinos e tanta falta de religião ...

Volvamos ao quarto onde se baila.

Não faltava a estas folgas o tio André. Os annos não lhe haviam envelhecido o espirito. Teria os seus sessenta janeiros bem puchados ; mas ninguém lhe dava mais de cincoenta. Possuia ainda umas pernas rijas como ferro, e um pulso digno de Porthos. Ia á cidade quasi todos os dias, a pé, porque o seu burrinho conduzia o carvão para vender, e no regresso arranjava sempre frete de retorno.

No seu tempo fora bom jogador de pau. Mais de uma cabeça podia servir de corpo de delicto a esta pericia. Não recuava deante de quem quer que fosse, mesmo ainda hoje, já velhote. Bom homem era elle ; mas ninguém havia de mofar da sua pessoa ou de pessoa que lhe pertencesse.

Era de natural pendor mui jovial para com todos.

Gostaja de gracejar especialmente com as raparigas ; sabia, porém, guardar as conveniências. E o caso é que as raparigas tinham particular predilecção pelo bom do tio André.

Não se admirará, pois, o leitor, se encontrar o velhote entre a gente moça. Tinha já bailado o seu pouco; e agora tomava fresco, encostado no vão da janella, o que lhe deu occasião de ouvir as facécias dos mirones, as quaes o aborreciam de má maneira.

José Tesoura voltara á carga, como se diz no estylo bellico. Fallava assim:

-- Grande santarrona leva o Luiz ! Olhem para aquelle ar piedoso!

-- Não te calarás ? murmurou um dos companheiros.

-- Não sejas tolo ; a lingua á muito minha.

-- Mas está ali o tio d'ella...

-- Da lingua ?

-- Ora! da Ludovina ?

-- Tens medo? Quem tem medo compra um cão. O fidalgo é que soube o nome aos bois...

O tio André fitou o seu olhar expressivo em José Tesoura ; abeirou-se mais do peitoril da janella, e redarguiu :

-- Modera as tuas palavras, José. Olha que pela bocca morre o peixe.

-- E pelo gargalo a gallinha.

-- Zombas de tudo. Uma vez pode sair-te o anno bixesto ; e has-de arrepender-te...

-- Dos arrependidos é o reino dos ceos.

-- Tu sabes perfeitamente que a Ludovina é minha sobrinha; e que o não fosse, eu por mim não posso vêr desabonar ninguém, quanto mais uma pobre rapariga que tem o pae entrevado, e que por isso não pode ensinar os atrevidos ...

-- Atrevido, eu! Tio André, tio André! atalhou o Tesoura fulo de raiva ao vêr-se ameaçado por um velho.

Alguns dos companheiros tiveram o bom senso de o querer levar d'ali ; elle porém oppoz-se dizendo :

-- Não me vou, que não quero ; não vou. Vocês são todos uns poltrões ! Pois nós havemos de ir d'aqui sem bailar? para que vim eu cá?

-- Mas não te abrem a porta, obtemperou um dos da sucia.

-- Eu a farei abrir, volveu José Tesoura.

N'esta occasião cantava Luiz. Quando elle acabou, José soltou a voz assim :

Nasce a rosa na terra, Nasce o amor no coração, E já rosa desfolhada A que julgas em botão.

N'estes torneios cantantes é crime de lesa-usança a presença de campeões intrusos.

Por isso ao ouvir a cantiga de José Tesoura, para logo parou o tocador da viola, e de conseguinte cessou o baile.

A assembléa chocou-se de inquietação. Ninguém ignorava que taes occorrencias traziam sempre um cortejo de consequências desagradáveis e por vezes fataes.

Luiz, que percebera a allegoria da cantiga do Tesoura, empalideceu; e, com voz trémula de raiva, trovejou :

-- Se não fosse a consideração de que estou na casa alheia, eu saberia responder-te como mereces, grandíssimo tratante! Fica, porém, para melhor occasião, prometto-te. Não as perdes, deixa estar; bem me entendes.

-- Se não foras um joltrão já tinhas saltado cá para fóra: aqui é que se conhecem os homens, que não ahi entre as mulheres.

-- Deixem, deixem me ir dar uma lição n'aquelle patife, redargiu Luiz fora de si, tentando desembaraçar-se de algumas pessoas que o detinham.

Ludovina, enlaçando-se ao braço do noivo, supplicou-lhe :

-- Não vás, não saias. Sou eu que t'o peço. Deixal-o lá com a sua malcriação. A palavras loucas orelhas moucas.

-- Então, vens, ó Luiz?... Ah! não vens?... Bom:

metto a porta dentro, gritou José Tesoura, dirigindo-se para a porta. Vá, rapazes, vá dentro.

-- Jesus! murmuraram as mulheres em convulsões de susto.

-- Tenham juizo ! gritaram alguns homens prudentes.

A este tempo já o tio André, o dono da casa e mais dois ou três amigos, tinham lançado mão dos seus bordões e saido para o caminho.

Desordem por desordem, pois que ella se não podia evitar, antes fosse na rua. O campo de luta era mais largo, e menos gente se via n'ella envolvida.

Comprehendera José Tesoura a manobra dos da casa, e por isso vociferou :

-- Olá rapazes, ahi temos os homens pela proa. Contemos comnosco. Nada de acobardar. É dar-lhes a valer.

Pozeram-se na defensiva José Tesoura e os seus amigalhaços.

Defrontados os dois grupos, cruzaram-se os cajados, e a bordoada, de parte a parte, foi de cego.

O tio André tomara por objectivo o Tesoura. Para este convergiu o seu ataque.

A bulha da rua, obrigada á zunida dos bordões, tinha por acompanhamento o vozear das mulheres no interior da casa, cada uma a chamar e a gritar por seu marido ou por seu íilho, ou por um parente. Luiz estava desesperado por o não deixarem soccorrer os offendidos, elle que valia talvez por todos.

Depois de alguns momentos de lucta ouviu-se um forte gemido, e o estrondo de um corpo baqueando no chão. Era José Tesoura, que avergára ao peso de uma valente bordoada, que lhe fora direita á cabeça, amortecendo-lhe os sentidos. Baqueara o mais valente dos contendores.

O tio André, como se lá diz, trazia entre dentes o José Tesoura. Andava ha tempos desejoso de corrigir dignamente aquelle pimpão, que a ninguém respeitava, nem a velhos, nem a novos, nem a mulheres. Constava lhe, além d'isso, que o maldizente nem a Ludovina poupara, andando a propalar falsidades referentes a ella e ao fidalgo. Não quiz, por isso, perder esta occasião vinda tanto de molde.

Era, porém, homem de boa alma, o tio André: não aninhava em seu seio a vibora do ódio ou do rancor.

Quando o Tesoura caiu, correu para elle; ajudou-o a levantar e a conduzil-o para dentro de casa. Foi elle mesmo que lhe pensou a ferida da cabeça, e que depois, com outras pessoas o foi levar a casa da familia.

Imagine-se o desgosto que causaria nos convivas o desagradável incidente com que terminou o folguedo d'aquella noite.

Ludovina dava graças a Deus por haver obstado a que Luiz se envolvesse na briga. Luiz, por sua parte, lamentava que assim tivesse succedido, porque era a elle a quem competia tomar a desforra: elie é que devia ser o Magriço doeste torneio. Todavia, não poude deixar de agradecel-o ao tio André.

O pimpão do velho n'esta noite consolidara os seus legítimos créditos de consumado jogador de pau. Se elle levara de vencida o rei dos jogadores!

Scenas como a que o leitor acaba de ver eram outr'ora mui triviaes ; ainda peiores, porque muitas vezes havia a sua facada, e não raro o epilogo fora algum, enterro.

X

Na epocha em que se passaram estes acontecimentos estava muito em voga a emigração clandestina.

Era um louvar a Deus a maneira como ella se efíectuava ! Só por antiphrase se lhe podia chamar clandestina. Fazia-se com a maior semcerimonia d'este mundo, e á luz do meio dia ! Eu mesmo ainda fui testemunha presencial de algumas d'essas scenas ; e pasmei da imprevidência com que se pretendia obstar áquelle contrabando de carne humana.

De mim, entendia eu que era muito mais curial mais bonita a franqueza de se declarar que embarcasse quem quizesse, como, quando e em qualquer idade e condição, pois que eram negativos os meios adoptados para pôr diques á corrente em que iam sobrenadando tantas victimas incautas até se engolpharem no mortífero pélago d'esses paizes contaminados de epidemias, em vez de arvorarem em systema um simulacro de providencias, que de coisa alguma serviam, e para nada prestavam. Como se podia evitar o embarque clandestino, se as pedras que orlam as ilhas são outros tantos cães ? Quando as medidas policiaes ou fiscaes redundam em meros ridículos, o mais acertado é dispensal-as, do que vexar inutilmente os povos.

Os pobres dos regedores ruraes viara-se em calças pardas coitados!

Ao de Candellaria, a auctoridade superior, em officio-circular, recommendava-lhe :

«N'esta repartição consta confidencialmente, (toda a gente o sabia!) quenos mares que banham a costa do sul da ilha, bordeja ha dias uma galera, cujos intuitos miram a receber emigrantes clandestinamente. Tenho, pois, por muito recommendar a v. s. queira obstar, por todos os meios ao seu alcance, a que na sua freguezia se effectuem embarques ; porquanto, só pelo porto da cidade elles são permittidos, afim de se fiscalisarem.»

Concluida a leitura, o regedor exclamou :

-- É muito boa! Por todos os meios ao meu alcance devo obstar á emigração ! Quaes meios ? onde tenho a força? Os cabos de policia? Mando-os de noite rondar a costa; muito bem: mas que pode um homem, ou mesmo dois, contra tantos? mas que importa rondar de noite se os embarques se fazem de dia, amquanto os cabos estão nos seus trabalhos ; por que emfim, os cabos de policia também comem ; para comer é preciso ganhar o dinheiro com que elle se compra ; e para o ganhar é indispensável trabalhar. Ora elles não são como César, que estava em toda a parte ; não podem entregar-se aos seus trabalhos agrícolas, e ao mesmo tempo estar de sentmella ! Isto é lógico. Ninguém faz milagres. Lá que o embarque não é clandestino, isso não é ; é bem ás claras. Peguem-lhe, se podem ; eu cá fico-me a rir com estas sabias providencias. Tudo illusões, tudo farelorio.

Não se admire o leitor de ser tão bem fallante este regedor. Assas lido e instruído era elle ; mais instruído e lido do que o vulgar do fanccionalismo elevado ; era, além d'isso, dotado de um excellente caracter, e de muito senso-commum. Era um reportório vivo de quan tas anecdotas lia e ouvia, citando-as a propósito de tudo. Levava a gente a ouvil-o n'aquel]as narrações, e não nos enfastiávamos. Fora educado com os frades ; e como d'elles recebesse a iniciação politica, e fosse d'estes homens de antes quebrar do que torcer, não quiz abjurar os princípios que professara, retirando-se para o isolamento da aldeia, onde se dedicou á vida do magistério. Se não tivesse herdado ali alguns bemsitos, haveria morrido á fome, ou passado a broa e couves, pois que apenas para isto dá o ordenado dos professores de instrucção primaria.

Quando o regedor se levantou n'aquelle dia. o que succedia sempre com o raiar da aurora, a criada, que era uma espécie de serva de abbade, disse-Ihe:

-- Sabe vocemecê o que succedeu esta noite?

-- Como posso eu saber, se estive deitado a dormir? respondeu elle, recreando-se em vêr cabriolar um burrico de grande estimação sua, que andava solto no pateo. O que me a mim admira, Rosa, é vocemecê já saber o que por ahi houve esta noute, e ainda o sol mal nasceu !

-- A visinha Thomasia quando recolhia do charamba é que me bateu no postigo e me contou tudo.

-- Logo vi que tínhamos mecherico de saias.

-- Não é mecherico, salvo seja, atalhou a criada fazendo o signal da cruz.

-- Então que morte da bezerra foi essa? perguntou o regedor.

-- O José Tesoura, aquelle endemoninhado. Deus me perdôe se pecco, foi levado para casa em braços, com a cabeça partida.

-- Quem lhe fez essa esmola?

-- O tio André, da Canada do Paraizo. Foi o caso.

que o Tesoura, mesmo da rua dirigia uma cantiga ao noivo da Ludovina, pondo em duvida a virtude da rapariga! Não ha um tratante assim! enxovalhar uma donzella tào reportadinha, tão séria, tão amante de seu pae! Passa fora! O Tesoura está ali está no inferno Deus me perdoe se eu pecco ! Vae d'ahi, o tio André que é tio direito da Ludovina, o sr. Victorino Feteira, o mordomo em casa de quem havia o charamba, e mais outros, saem á rua e correm a pau os valdevinosque foram toliçar para ao pé da casa alheia; o tio André leva do cajado e abre a cabeça ao Tesoura. E' bem feito ...

-- Não é...

-- Não é! diz vocemecê! É sim, sim senhor; foi muito bem feito.

-- Ó mulher! digo que não é boa occasião para o André dar pauladas no Tesoura. Eu cá me entendo e mais os meus botões. Bem, estou inteirado.

A sr. Rosa foi deitar milho a umas gallinhas que piavam no quintal.

O regedor continuou em soliloquio :

-- O rapaz é das felpas do diabo: tem más entranhas.

Se ficou vencido ha de tirar a desforra; e temos por ahi tramóia de grosso calibre. Quem se vê em pancas sou eu. Ajuste de contas taes em occasião de navio a receber passageiros para o Brazil, é dispauterio certo.

Diziam os antigos, que antes prevenir do que remediar: vamos a ver se se evita nova desordem.

E como fosse dia santificado, vestiu se com o tato domingueiro, pegou no chapéo de sol, que mais parecia barraca de feira, e dirigiu-se para a egreja ou melhor para a sacristia.

-- Ouça, padre; temos que conversar.

-- Aposto que me vae fallar do successo d'esta noite?

Não se falla n'outra coisa !

-- Exactamente.

O regedor e o padre tomaram assento junto de uma grande meza que havia num dos ângulos da sacristia, e que servia para as sessões da junta de parochia e irmandades do santissimo.

-- Pois olhe, meu caro, eu cá por mim o que digo é que só se perderam as pauladas qua cairam no chão, volveu o cura.

-- Ó padre ! isso não lhe fica bem ! Um ministro do altar deve ser todo paz para com as suas ovelhas, objectou o regedor.

-- Por eu desejar a paz no meu rebanho ó que digo isto. Castigar os que erram é uma das obras de misericórdia. O José Tesoura é da laia de não sei que diga.

Se não houver quem o ensine, d'aqui a amanhã torna-se um lobo, do qual só se dará cabo a tiro.

-- Isso é verdade.

-- E a justiça vae proceder?

-- Qual. Cá por mim o que pretendo é vêr se evito um mal maior. Conheço perfeitamente quem é a tal peça do Tesoura ; e por o conhecer ó que julgo indispensável, antes que o mal cresça cortar-lhe a cabeça.

-- Com a breca ! você anda sempre a vêr coisas do arco da velha! Que mais haverá?

-- Meu amigo, a minha longa experiência leva me a encarar tudo pelo lado mais feio. Ora ouça, e depois diga-me o padre se tenho razão. O José, com o génio e inclinações que todos lhe conhecemos, não deixa de tirar a desforra e é muito capaz, logo que melhore, de dar cabo da pelle ao André.

-- Não lhe ponho muita duvida, atalhou o padre. Se elle o disser, melhor o fará.

-- Muito bem. A minha fraca opinião, pois, é que vamos nós ambos ter com o rapaz a ver se o mettemos a bom caminho. É cabeçudo; mas, em fim, não se perde nada em tentar. Elle tem-me algum respeito e também creio que é a única pessoa com quem isto succede ; e o padre sempre é o seu cura.

-- Pois sim, sim. Vou dizer missa ; em seguida hei-de almoçar alguma coisa, e depois iremos lá.

-- Está combinado ?

-- Está.

O padre chamou o sacristão, e disse-lhe :

-- O mestre António, abra aquella porta. Quando fôr a hora toque a campainha.

Executada a ordem, a sacristia foi invadida por varias pessoas, todas do sexo feio, que tomaram assento nos bancos que rodeavam as paredes, isto depois de se darem os bons dias, e de fazerem os cumprimentos do estylo ao cura e ao regedor.

Nas freguezias ruraes a sacristia é a sala commum, nos dias de missa, na qual se trata de negócios : é umas vezes praça do commercio ; e outras substitue a botica, não para fornecimento de remédios, mas para cavaco.

O cura puxou a caixa de rapé e offereceu do meio grosso aos circumstantes, depois do que fungou uma enorme pitada. Todos acceitaram, mesmo aquelles que não faziam uso de rapé nem tabaco. La para aquella boa gente é um acto incivil regeitar uma pitada, embora tenham ao depois de nos aturdir com uma salva de espirros, que obtém sempre um coro de differentes vozes : dominus tecum, com Deus viva, etc.

O rogedor é quem rompeu o silencio, na forma do ritual, perguntando:

-- O que ha de novo ?

Todos a seu turno, responderam que nada. D'ahi a pouco, porém, cada qual começou de coutar o que tinha ouvido ao visinho fulano, e ao compadre sicrano.

Já se vê, a assembléa compunha-se de lavradores e caseiros de alguns morgados.

Um, que tinha suas presumpções de bem fallante e de atilado, e que frequentava a miúdo a cidade, começou :

-- Dizia-se hontem lá na cidade que iamos ter novas eleições.

-- Outra vez ! exclamou o padre, que via em perspectiva uma nova massada.

-- Sim, sr. cura, é como lhe digo, outra vez eleições de deputados. Não fazemos outra coisa !

-- Ainda se tivéssemos somente de ir deitar o nosso voto, vá; mas os nossos senhorios querem que andemos a catar nos votantes que são seus rendeiros ! acudiu um outro da assembléa.

-- E então no fim de contas para que ? commentou o interlocutor.

-- São das regalias que ao povo confere o systema constitucional, obtemperou em tom sentencioso apparentemente, mas intencionalmente irónico, o regedor.

-- Olhe vocemecê, eu cá o que sei dizer é que tão bom é Sancho como é Martinho. Tanto se me dá como se me deu, que governe este ou governe aquelle.

Manda, porém, Deus que a verdade se diga: desde que entrou na ilha o governo dos da Terceira pagamos mais fintas.

-- Isso é verdade, clamou um dos circumstantes.

-- É verdade, é verdade, confirmaram muitos.

O interlocutor proseguiu:

-- Não faltava mais nada; agora até pagamos para as estradas de ferro lá do reino ! Estradas de ferro !

toda a vida se andou em caminhos de pedra e de terra.

Hoje precisam-n'as dé ferro, sem duvida para durarem mais ? Essa gente de lá, se as quer, que pague para ellas, que não nós, que as não gosamos : é boa pilhéria: Tudo são modernices ; e cá está o pobre povinho para aturar a carga !

Um outro lavrador também procurou brecha para introduzir a sua opinião, dizendo :

-- Querem saber o que eu ouvi contar, lá na cidade, em uma loja d« fazendas onde fui comprar uns covados de chita? Que o senhor governo ia acabar com Os dízimos.

-- Só se fôr isso !

O regedor interveiu :

-- Falla-se n'isso, é verdade; mas não julguem voceraecês que ficam alliviados de fintas. Em vez de dizimes teremos contribuições predial, industrial e pessoal.

-- Explique-nos vossa mercê isso pelos miúdos.

-- Contribuição predial, é a finta das terras, das quintas, das casas, etc. ; industrial é dos officios que cada um exerce; pessoal é dos criados, dos animaes, etc.

-- Dos criados e dos animaes ? então põem a par a gente com as bestas? Forte heresia, senhores! Isto ha de acabar de estouro algum dia. Sabem qual era a minha vontade? era agarrar no tal senhor governo, e torcer lhe o pescoço como a uma gallinha!

O toque da grande campainha do mestre António cortou os discursos. O cura, que já se achava resvestido, entrou para a igreja, que logo se encheu de fieis até á porta.

Reinou o mais profundo silencio.

E elevado, poético, attrahente, muito para ver se, o respeitoso recolhimento com que a gente do campo assiste á missa nos templos d'aquellas nossas aldeias.

É a perfeita anthitese do que succede nas cidades, cujos templos são transformados quasi que em casas de espectáculos! Não se ora n'elles ; conversa-se como em sala de baile ou como em praça publica ; ri-se como em theatro ou em circo ; e sobretudo, namora-se como no circo, no theatro, na praça, na sala!

XI Concluido o seu almoço, e bem frugal que elle era, pois para outra coisa não chegava nem chega a exigua côngrua de um parocho, o reverendo cura pôz o chapéo abeiro, pegou n'uma enorme bengala de buxo, que melhor se classificaria de cajado, mas indispensável arrimo para o transito d'aquelles caminhos tão azados a quedas e trambulhões, e saiu a encontrar se com o regedor, que o esjDerava no adro da egreja, onde é costume estabelecerem-se grupos de palestra, depois da missa.

-- Vamos lá? perguntou o cura.

-- Pensei que o padre ficava a almoçar todo o dia ! retorquiu o regedor.

E dirigiram-se a casa do José Tesoura. Era ella recolhida da estrada, e para se lá chegar tinha que atravessar-se um pateo, que em parte servia de possilga a um suino.

Iam os dois visitantes a entrar no pateo, quando saltou de lá de dentro um cãosarrão com as mais pronunciadas intenções arremettedoras e ferinas. Quedaram-se ao portal ; o regedor bradou :

-- O tio Ventura, chame para lá o cão, que parece querer engulir nos ! Forte mania é esta de terem cães ás portas como se estivéssemos em terra de ladroagem !

-- Tó manhoso ! tó manhoso ! Safa cá para dentro ! berrou a voz de um velho que assomara á soalheira da porta.

O cão obedeceu.

Ahi por esses povoados e por essas aldeias nâo ha habitação que não tenha pelo menos um companheiro canino. Por isso, ás vezes, lá pela calada da noite, se uma das taes sentinellas lhe dá para ladrar, as outras não têem mão em si que não façam acompanhamento!

E um coro infernalmente despertador!

E quando os cães vêem accommetter-nos á estrada?

Ainda ninguém se lembrou de fintar os cães ; pois era acertada medida, e a receita não seria das mais somenos.

O tio Ventura, pae do José Tesoura, perguntou:

-- Vossas senhorias servem-se d'esta humilde choupana?

-- Servimo-nos, respondeu o cura.

-- Vimos de propósito, accrescentou o regedor.

-- Oh! meus ricos senhores, a que devo esta honra? replicou o velho.

-- Queremos ver o rapaz. Como vae elle ?

-- Com a ajuda de Deus está quasi prompto : não foi coisa de cuidado ; ficou muito atordoado, mas a ferida ó pequena.

Entraram.

José estava encostado sobre o leito. Tinha a cabeça envolvida n'um lenço de Alcobaça. vermelho que lhe servia de percinta. Ao vêr o cura e o regedor, tentou sentar-se. Não lh'o permittiram.

Os únicos dois tamboretes que havia em casa foram offerecidos ás visitas. O tio Ventura esse sentou-se sobre uma caixa mais velha do que elle, a qual servia de deposito geral de todos os melhores haveres da família. A dona da casa foi buscar uma rasoura, e d'ella fez assento.

Tomou a palavra o regedor, moralisando o facto succedido, de que resultara enfermar o rapaz, e terminou dizendo:

-- Assim como vocemecê está ahi vivo, Josésinho dos meus peccados, podia estar a esta hora amortalhado na eça, se a mão que descarregou tão certeiramente a pancada empregasse toda a sua conhecida valentia. E' o que fazem amisades com peralvilhos. Quem a má arvore se encosta má sombra colhe. Vocemecê tem feito muitas que eu bem o sei; saiu- se sempre a salvo; mas quem vae á guerra dá e leva, d'esta vez levou. Eu, para fazer o que me cumpria e se não quizesse ser mais juiz de paz que das justiças, devia mettel-os a todos em processo, e depois lá se houvessem com a justiça da cidade, que bem sabem todos como ella é cega. Cesta vez ainda ponho pedra sobre o negocio. Desejo que se conciliem.

Vocemecê é verdade que é o pizado, mas os offendidos são todos os parentes de Ludovina, e o Feteira, homem de bem, que tem bons padrinhos na cidade. Portanto, deve contentar-se em não ter sido peior a lição. Além d'isso o sr. José está já em muito boa idade de ter juizo ; deve lembrar-se que estão ali seus velhos paes. Não sei como elles têem resistido a tantos desgostos do filho ingrato !... ingrato, sim senhor, porque vocemecê paga-lhes com desgostos os carinhos e o amor com que elles o tratam, fazendo-lhes todas as vontadinhas. E eu que não tenho nunca receio do dizer a verdade, também direi que, por sem duvida, são esses carinhos e vontades a causa da sua ruindade. O demasiado carinho faz mal criado o menino.

Os paes do rapaz enchugaram algumas lagrimas que lhes borbulharam nos olhos. Tocara-lhes direito no coração a catechese do regedor.

O cura, com as mãos uma sobre a outra, tapando o castão da bengala, e com o queixo apoiado sobre as mãos e o pingo de rapé pendente do nariz, ia approvando com meneios de cabeça o discurso do seu companheiro.

José Tesoura, que aos mais predicados já conhecidos reunia o de ser um refinado hypocrita, armara-se de um ar compungido, contricto, meditativo. O regedor proseguiu :

-- Ora bem. Prometto nada fazer ofificialmente. O que lá vae, lá vae. Ponho, porém, uma condição. Vem a ser, que o sr. José ha de dar-me a sua palavra de honra de que não cuidará em desforras ; assim como prometterá emendar-se, para o futuro, tornando-se homem de bem, trabalhador, e bom filho. Que diz a isto?

-- Digo que estou pelo que o sr. regedor quizer.

-- Aqui o nosso padre cura veiu commigo para este mesmo fim ...

-- É verdade, acudiu o reverendo, como acordando de uma soneca. Faço minhas as palavras do sr. regedor. Deus Nosso Senhor não ajuda a quem não honra pae e mãe nem respeita o. próximo. Para amar a Deus como se deve é indispensável amar os nossos similhantes também ... e...

O cura tentou dizer mais alguma coisa ; mas, não nascera para fallar, esta é que é verdade. Elle não era o culpado : cada um para o que nasceu. O regedor correu em seu auxilio, dizendo:

-- Agora, sr. José, sempre o quero prevenir de uma coisa. Já me conhecem. Sou franco e leal. Sou muito bom emquanto me nào fazem chegar a mostarda ao nariz, ou me não enganam. Quem me enganar engana-se a si. Tenho a faca e o queijo na mão. Piso sem pau nem pedra. Ouça bem, sr. José: se vocemecê por ventura faltar ao que nos prometteu, sabe o que farei?

Os pais trocaram entre si um olhar ancioso. O regedor, dirigindo-se a elles sentenciou:

-- Bem me ha de custar por causa do tio Ventura e de sua mulher, pois que sei avaliar quanta dôr não amargurará seus estremosos corações ; mas não terei outro remédio de que lançar mão. Enviarei o José para a cidade preso, a fim de ser mettido no batalhão como vadio.

-- Jesus !

-- Credo !

Exclamaram os velhos a tremer, figurando-se-lhes já vêr sair o filho entre soldados. Era a mais tremenda das ameaças que se podia proferir.

N'aquelle tempo fazia-se assentar praça aos vadios e aos incorregiveis. Para grandas males remédios heróicos. A gangrena social não se debella com anodynos : a amputação muitas vezes é indispensável.

O cura e o regedor sairam deixando os velhos e o filho sob aquella aterradora impressão. O José Tesoura porém, ao vel-os fechar a porta, sorrira com um riso mephistophelico !

XII

Consoante o ritual, o ponto de reunião nas festas do Espirito Santo, é na adjacência do império.

Toda a gente do logar estava no sitio da festa n'aquelJe domingo da Trindade, homens, mulheres, velhos, crianças. Dentro do império achava-se a menina que de manhã tinham coroado, com a sua corte de outras meninas, formando a corte angélica do Espirito Santo, symbolisado na coroa que se via sobre a mesa.

Em muitas das casas próximas bailava-se. Todas as janellas e portas regorgitavam de raparigas; outras apinhavam-se no caminho, sentadas em esteiras, outras em tamboretes e bancos. Os homens, uns estavam sentados em cestos, outros nas pedras dos muros derrocados; e outros formavam grupos aqui e ali, de pé, pelo meio da estrada, discutindo á sua guiza vários assumptos. O rapazio pulava e gritava agitando no ar ramos de verdura. Dois ou três pregoeiros andavam cá e lá, pondo em almoeda as offertas levadas ao império e a fogaça.

Aproximemo-nos de um dos grupos, d'aquelle em que se acha o nosso amigo regedor, que sempre honrava as festas com a sua presença, a convite dos festeiros, e para representar a auctoridade.

Tratava-se da questão do dia, a emigração.

-- Com perdão de vocemecê, sr. regedor, dizia um dos mais qualificados parochianos, eu cá por mim acho muito bem feito que a rapaziada fuja de penedo para a estranja. Pois não é assim? Crear a gente um filho, para, quando em idade de nos ajudar nos amanhos da vida, pespegarem com elle na cidade, de correias ás costas, rastilhando lá pelas tarimbas, ou embasbacado pelas ruas, tornado assim um perfeito madraço, e tudo a troco de quatro vinténs menos cinco réis ! É de ver que se era homem trabalhador ficou perdido. Quero dizer cá na minha, que perde o habito de trabalhar, e não pode voltar depois para estas canceiras do campo.

Isto assim vae muito torto, ou eu não vejo um palmo adiante do nariz ! E pois que os senhores do governo não sabem ter soldados senão roubando os filhos ao povo, então deixal-os ir, os rapazes, por ahi além, á fortuna.

-- É assim, é assim mesmo, obtemperou um dos do grupo.

-- Tão certo como estarmos aqui vivos e sãos, aquella é que é a pura verdade, confirmou o Rabiça.

-- Por outro lado, entendei, proseguiu o orador, cá estamos nós a mourejar nos tráfegos das terrinhas, para todo o sueco que ellas deitam, o irmos metter limpo e secco nas arcas dos senhorios.

-- É verdade, é verdade, volveu outro dos circumstantes.

-- Ora ouçam, continua o mesmo orador. O outro dia, quando eu estive na cidade, ouvi na casa do barbeiro ler uma gazeta em que diziam cobras e lagartos do senhor governo. Pelos modos este senhor governo, que agora nos governa, parece que é pessoa mal encarada, testa e não sei que mais. Mas dizia a gazeta que o povo d'esta terra era... era... que me não lembra! Elles lá estiveram a arengar, a arengar sobre o que era... mas são nomes arevesados, não me ficam de memoria... ah! já sei, era servo... ora esperem... servo... servo de não sei que...

-- Servo de gleba? atalhou o regedor a avivar a memoria do lavrador.

-- Exactamente, exactamente. Não percebi o que elles queriam dizer, nem o que isto significava; mas, pelos modos, a couza era de arromba, porque todas quantas pessoas lá estavam bateram as palmas.

-- Eu vou explicar o que é servo de gleba, redarguiu o regedor. Servos de gleba são os homens que na Rússia, -- a Russia é uma nação muito poderosa e rica -- explicou o regedor, lembrando-se que a geographia é pomo vedado para a gente dos campos, são os homens que trabalham as terras por conta dos senhorios, mas os senhorios sustentam os lavradores e suas íamilias, e no fim do anno, ainda lhes dão uma boa maquia. Já vêem vocemecês que vae uma grande distancia de taes servos a escravos, que é o que os periodiqueiros lhes querem chamar, mas alguns d elles não sabem também o que escrevem.

-- Ora d'essa forma queria eu ser servo, bradou um sujeito.

-- Até ja, tornou outro.

-- Certamente, porque assim o lavrador tem seguro o pão de sua familia, e ainda algum ganhosito. E quantas vezes nós temos de pôr ainda alguma coisa de nossas casas para pagar as rendas ?

-- Sempre lhes quero dizer, que isto a respeito de senhorios nem de todos ha razão de queixa. Não ó por defendel os, que assim fallo, graças a Deus não precisa de nenhum; mas é a verdade. E a verdade deve dizerse. Aponta-se mais de um exemplo, dos senhorios serem amigos e protectores dos seus rendeiros e foreiros. Ali o tio Bezerra, o José da Quitéria, o Bagetta e outros ,o que eram nos seus principios? Vocemecês bem se hão de lembrar, que é do seu tempo. Tudo quanta hoje possuem devem-n'o, abaixo de Deus, ao sr. morgado da Graça, ao sr. morgado da Conceição, e a outros mais, que nunca augmentaram um real na renda das terras desde o tempo dos seus avós. Augmentaram as suas casas arroteando os mattos e fazendo d'elles terras de pão, e aquellas mattas soberbas, cujas arvores valem, cada uma, pelo menos um cruzado. Vejam quantos mil cruzados não tem hoje? Esta é que é a grande sciencia de ser rico. O povo, por via de regra, descobre o mal e íulmina-o; porém, quasi nunca conhece o bem, nem o confessa. Grande serviço lhe presta quem, como aquelle regedor, lhe falia a linguagem da verdade. Esse é que é o verdadeiro amigo do povo E nós, qne só miramos á íiel narração dos factos, não devemos aqui esconder uma verdade que proferiu o lavrador com respeito aos senhorios. E' fora de duvida, que ha senhorios que arrendam as suas terras por preços tão altos que o agricultor, embora se mate para desentranhar d'ellas o máximo proveito, apenas chega a salvar as despezas, a renda e a contribuição, perdendo o seu afadigoso trabalho ! É esta uma das causas que concorrem para a emigração. Tocado o zenith do desespero por trabalharem sem proveito, sem ao menos alcançarem o pão dos seus filhos, preferem abandonar o seu lar, e ir procurar em terras alheias o que lhes nega a patria.

Mais adiante, no adro da egreja. que ladeia o império, estava n'outro grupo o tio André, paroleando.

Luiz ia passando pelo caminho que defronta com o adro; o tio André, ao velo, chamou:

-- Ó Luizinho, ó Luizinho, uma palavrita.

-- As ordens, tio André; e veiu á falia.

O tio André levou-o um pouco para de parte, e disse-lhe :

-- Sabe o meu amigo, que eu não estou para andar quebrando a cabeça a ninguém por sua conta?

-- Não lhe encommendei o sermão, atalhou Luiz.

-- Bem sei. Ludovina não tem parente próximo que a possa defender senão a mim ; o pae está entrevado ; portanto a mim compete-me tomar a parte d'ella. Foi o que fiz. Mas isto precisa acabar antes que tenhamos maior desgosto ; e o meio é vocemecê casar quanto antes. Para demoras já basta.

-- Tio André, eu fui sempre homem de honra e de brio. Prometti casar com a sua sobrinha, são essas as minhas tenções. Se tem havido demoras, sabe-se bem qual é a causa. Comtudo, tio André, devo confessar-lhe que já me não parece muito bem o que se rosna d'ella e do fidalgote da cidade...

-- Que dizes tu, homem? estás maluco?

-- Não estou.

-- Então que novidade é essa?

-- Não só o José Tesoura, que por si, á sua parte, levanta uma poeirada por ahi além ; mas alguém mais já falla nisto. E depois, é certo que Ludovina vae repetidas vezes á cidade a casa do morgado, e...

-- É o quê, meu pateta?

-- Ludovina é mulher, e como tal sujeita a escorregar...

-- Alto lá, senhor Luiz! bradou o tio André em tom reprehensivo. Isso agora mais devagar! Ludovina é minha sobrinha, é do meu sangue: se parti a cabeça ao Tesoura por duvidar da honestidade da rapariga não tenho escrúpulos em fazer o mesmo a vocemecê, e com mais motivo, porque é seu noivo, e tem franqueza na casa de portas a dentro. Julguei-o homem de juizo : vejo que me enganei. Mas tome tento em si. Se por causa d'esses aleives, que são aleives e falsos testemunhos, sim senhor, estou certo, certissimo d'isso, como de que encaro o sol que nos allumia, vocemecê não cumprir a sua palavra, saiba que é commigo que se ha de haver.

E separou-se.

Luiz, cabisbaixo, seguiu o seu caminho. O dialogo, em parte, foi ouvido por algumas pessoas, ás quaes não escapou que tinha sido em afinação de agastamento e de disputa, commentando cada qual a seu modo, mas sendo todos concordes em que era por causa do casamento.

O festejo seguiu as usuaes mutações. Tiraram -se as sortes para o anno seguinte; e saidas ellas, ao entardecer, a coroa e a bandeira foram em procissão levadas para casa da nova imperatriz levantando- se o arraial. Continuaram, porém, as danças e os cantares nas diversas casas.

XIII

Quatro dias decorreram sem incidente digno d'esta chronica.

José Tesoura restabelecera-se depressa. Diziam todos: «não admira; vaso ruim não quebra.» Na quinta feira de Corpo de Deus, disse elle em casa:

-- Amanhã preciso ir á cidade.

Já se sabe, ninguém lhe fazia objecções. Com effeito depois do cantar do gallo, que é o relógio da gente das aldeias, José pôz-se a caminho da cidade.

Vejamos agora o que fora feito da nossa sympathica Ludovina.

A pobresita não parecia a mesma. O semblante estava vellado por umas sombras de tristeza. Não cantava, como era costume seu, emquanto se afadigava com a teia. Andava mal dormida ; comia como um passarinho. O pae, vendo-a triste, desbotada, chorava. Por mais que lhe perguntasse o que tinha ella, respondia-lhe sempre: «nada.»

-- Não trabalhes tanto, filha, que te matas, dizia o pobre velho.

-- O trabalho distrahe-me, volvia ella.

-- Não digo que não trabalhes, porque d'elle é que vivemos ambos ; mas trabalha em termos. Perdes as noites, comes mal ! isso não pôde ser.

-- Não se consuma, meu pae, descance, isto ha de passar.

-- Deus o permitta, minha filha, que é signal de que ouve as orações d'esta desgraçada creatura que de nada serve já n este mundo se não de te mortificar com rabugisses de velho. Mas tu não te zangas comigo, não é verdade?

-- Meu querido pae!

E ella beijava-lhe as mãos enrugadas e tremulas ; e o velho ao beijar-lhe os lindos cabellos, cobria-os de lagrimas, que similhavam aljôfares e pérolas.

Ludovina dias havia que notara uma certa frieza da parte do noivo, um como que contrafeito bem-querer, ou melhor, um tal ou qual desprendimento. Não lhe fazia elle as habituaes visitas, sobre pretextos frívolos.

Scismava, scismava a attribulada rapariga ; a sua consciência estava tranquilla.

-- Serão novos amores ? Elle era tão querido das raparigas ... quem sabe se alguma o enfeitiçou ? dizia ella para comsigo.

Agudíssimo espinho é a incerteza!

Aos primeiros alvores da aurora partiu o tio André para o matto, como costumava.

Ao passar pela casa da sobrinha, e vendo-a á janella exclamou :

-- Já levantada, sobrinha ! São pois duas estrellas d'alva que eu vejo hoje?

-- Como são duas ?

-- Uma no ceu, outra na terra.

-- Pois também ha estrellas cá na terra ?

-- Ha; a prova ó que te estou eu vendo a ti.

-- Sempre gracejador, tio André!

-- Hei de morrer assim; é o meu fraco.

-- Não sabe? esperava por si.

-- Por mim?

-- Tinha que lhe fazer uma pergunta ...

-- Dize lá, filha.

-- O tio tem fallado com o Luiz ?

-- Tenho, porque?

-- Não percebeu differença nenhuma n'elle ?

-- Estás-me com umas perguntas que me fazem, suspeitar... Desembucha d'ahi.

-- É que não sabe... parece-me que o Luiz já se não importa de mim... E baixou os formosos olhos, dos quaes se desprenderam dois fios de lagrimas.

O tio André para se não trahir, pois não queria revelar a conversa que tivera com o rapaz, mordeu os beiços e atalhou :

-- Qual historia ! Dizes cousas !

-- O meu coração não me engana. Porque é então que o Luiz já não vem ver-me como d'antes; e quando vem, a custo solta uma palavra, elle tão fallador? Conhece-se bem que tem cousa que o distrahe, por que está ás vezes a scismar, a scismar ! ...

Percebera o velho a reticencia; não sabia, porém, o que responder, porque era homem são da alma, e custava-lhe a mentir. Enguliu as palavras, como se estivesse comendo uma côdea de bolo duro; e para cortar explicaçães concluiu dizendo :

-- Então o que queria a sobrinha?

-- Que indagasse, ou que conversasse com elle, como quem o não faz de propósito ... Eu preciso descançar o meu coração que tão mortificado anda ...

-- Pois sim, minha filha, pois sim. Eu saberei o que ha a este respeito, que não ha de ser nada, se Deus quizer. Se o rapaz anda assim a modo de tristinho, é porque todos nós temos as nossas occasiões de andarmos com ataques de tristezas de alma. Adeus, sobrinha, que não posso demorar-me. Visitas ao pae.

E desappareceu.

Ludovina não ficou tranquilla. As palavras do tio não lhe desvaneceram as suas terriveis suspeitas. Via, comtudo, sem o saber explicar, como que entreluzir-lhe lá muito ao longe uma risonha esperança, a esperança do naufrago cheio de fé em Deus. Amava ella muito o seu promettido esposo ; custava-lhe a conceber a idéa que elle a abandonaria sem motivo. Mas ao mesmo tempo a sua alma adivinhava-lhe o que quer que fosse de extraordinário e fatal. E' que as almas arroubadas nos extasis do amor puro são quasi sempre oráculos ; participam um tanto de videntes.

E volveu-se a donzella ao seu trabalho. O trabalho é um lenitivo para quem sofifre penas do coração ; encurta as horas, o que já não é de pouca monta.

Luiz n'esse mesmo dia, e ainda muito cedo, dirigiu-se a casa de André. Ao perguntar por elle á sr.a Anninhas respondêra-lhe esta que o esposo havia já partido para o matto, a fim de acabar a tarefa do carvão encommendado por Luiz.

-- Bem; n'esse caso lá vou ter, disse elle.

-- Ao matto? perguntou a boa mulher, admirada da ancia do rapaz. Grave negocio deve de ser esse que leva vocemecê por ahi fora, tão longe.

-- É grave, é; e não admitte demoras: preciso ajustar umas certas continhas, respondeu Luiz.

E seguiu pelo caminho que dizia para o matto.

Uma visinha da sr. Anninhas, tendo ouvido a conversa, acercou-se da janella d'ella, e disse-lhe:

-- Ó visinha, o Luizinho disse que tinha umas continhas a ajustar com o seu homem ?

-- Fallou em contas, mas nào sei o ajuste com quem é. Por que faz a visinha essa pergunta com ares de espantadiça, que me assustou, que nem que eu fosse uma creança e vocemecê algum papão ?

-- Pois a visinha não sabe o que se diz ?

-- Elle diz-se tanta tolice por esse mundo de Christo!

-- É que o seu homem e o Luiz tiveram domingo seus quês, parece que por causa do casório da Ludovina ; e pelos modos não andam muito a bem um com o outro. Não vão elles pôr-se a brigar lá no matto.

-- Olhe, visinha, eu conheço bem o Luizinho, que é a flor dos rapazes cá da terra; e melhor conheço o meu André. As contas não são essas que vocemecê julga.

A visinha retirou-se ; mas a tia Anninhas ficou-se a pensar no caso.

Andara e subira muito o Luiz pelo matto ; por fim viu de entre as tamugeiras elevar-se no espaço uma espiral de alvo fumo. Encaminhou-se para aquelle sitio; e, abeirando-se d'elle, deu com o tio André, agachado junto de um enorme brazido, a fazer o seu carvão.

-- Bons dias, tio André.

-- Guarde-te Deus, rapaz ; Por aqui ! O que te traz a estes sitios?

-- Desejava muito fallar-lhe.

-- A cousa é de tanta pressa que não esperasses pela minha chegada á noite a casa?

-- É sim, tio André; vae ouvir.

-- Temos mais alguma tolice, estou vendo !

-- Antes fosse ... Tio André, as minhas suspeitas vão cada vez a mais, e com mais fundamento !

-- Bem dizia eu, Luiz. Ora sempre quero que me digas que motivos tens para desconfiar da pobre Ludovina, que está tão iunocente como uma santa, sou capaz de jural-o.

-- Não jure, não jure.

-- Homem dos meus peccados, que tu és ! não vaes direito ao fim; procuras sempre atalhos e rodeios!

-- Saiba, pois tio André, que já duas noites, quando eu me dirigia a casa de Ludovina, e mais não era tarde ainda, saltava do quintal para o caminho um vulto, cujas feições não pude conhecer, mas pelo trajo pareceu me, ou antes, o trajo era o do fidalgo...

-- Isso póde lá ser! atalhou o tio André espantado.

-- Affianço-lhe, tio André, que é a pura verdade.

-- Desculpa ó Luiz; mas era preciso que eu visse com os meus próprios olhos: ha cousas que se não acreditam sem se ver; esta é uma d'ellas. Ás vezes um equivoco, outras a imaginação faz nos de um argueiro um cavalleiro.

-- Tio André, quizera eu enganar-me, bem sabe quanto estimo a Ludovina. E para me não fiar só em mim, é que venho ter comsigo !

-- Que queres que eu faça ?

-- Que me acompanhe á noite, ou as noites que forem precisas, até vermos o homem; e como somos dois podemos mais facilmente, um ou outro, ficar-lhe na frente Quiz seguil-o hontem, mas escapou-se-me não sei por onde.

-- Valeu. Á noite lá irei comtigo. Havemos de acabar com esta entremezada por uma vez. Ninguém me tira da cabeça que aqui ha grande tramóia. Eu conheço a Ludovina como as palmas das minhas mãos. Era lá possivel ! A pobrinha que anda já magrizella e tristonha com as tuas carrancas, que é uma dor de alma o vêl-a!

Luiz voltou para Candelária ; e o bom do velho André continuou na sua tarefa.

XIV

Havia muito que tinha anoitecido.

A tia Anninhas, que nos arranjos da ceia se occupava, ia de quando em quando á janella, com visível propósito de espreitar alguém que ella esperava e tardava já. Volvia á cosinha a conchegar os tições na lareira; e, volta e meia, eil-a outra vez na janella.

Novamente assoprava o brazido; e á janella repetia a visita, dizendo:

-- Nunca tal elle fez ! Por força que alguma cousa lhe aconteceu!

Todo este afan era porque o tio André ainda não tinha regressado do matto, quando, de costume, o mais que elle tardava era uma meia hora passadas as Ave Marias.

Esperou, esperou, mas qual! Nem fumos do seu esposo! Desesperando já do caso, sem saber o que ajuizar, nem o que fazer, resolveu-se, como por satisfação á sua consciência, a ir até á casa de um visinho.

Estavam todos recolhidos na casa do tal visinho, gosando as meiguices de Morpheu; mas a tia Anninhas, que, com a sua grande anciã, não queria saber de historias, emparedou-se com a janella, e chamou:

-- Ó visinho?

Ninguém respondeu. Repetiu:

-- Ó visinho?

-- Que é la isso ? gritou uma voz estremunhada.

-- Sou eu, sr. Jacinto.

-- Ah... O que aconteceu?

-- Tenha paciência... custa me bastante incommodal-o ; mas estou tão afflicta... veja se me dá uma palavrinha.

A janella abriu-se, e a cabeça do sr. Jacinto appareceu.

-- Então o que ha? perguntou elle.

-- Ora imagine como não hei de eu estar! Ainda não veiu do matto o meu André, e são já estas horas, respondeu a pobre mulher.

-- Deveras? É exquisito !

-- Isto deve ser muito tarde.

-- Perto de meia noite, replicou o visinho, olhando para o ceu. Olhe, o sete estrellas vae bem alto. Se não deu, está a cair a meia noite.

-- Um caso d'estes ! sabe o que me tem lembrado até? é que não cahisse o pobrinho de Christo ahi por algum grotilhão, ou que tivesse algum ataque.

-- Os diabos me levem se eu também gosto da graça ! Mas espere ; não se consuma.

-- O que vae fazer !

-- Vou perguntar ali acima ao Thomé, que veiu do matto, ja de noite, se por acaso viu o tio André.

-- Deus lhe dará o pago, sr. Jacinto. Muito agradecida.

A tia Anninhas recolheu-se a sua casa. O homem tomou pela canada acima.

Decorrido um quarto de hora voltou. Se fora de dia, a tia Anninhas teria ficado mais morta do que viva, ao ver a cara do sr. Jacinto.

-- E d'ahi? perguntou a velha.

O visinho, coçando na cabeça, respondeu:

-- Não enchergou o André. O Thomé veiu das «cumieiras» ; e em todo o caminho não encontrou viv'alma.

-- Nem viu se ainda havia hime no sitio do carvão?

-- Não viu. E acrescentou elle, que muito antes do sol posto não havia fumo para aquelles lados. Quer um conselho, visinha? Va deitar-se. O seu marido teve de ir, sem esperar, a alguma parte ; e amanhã ahi o terá. E adeus.

-- Obrigada ao visinho pelo seu incommodo.

A tia Anninhas não se deitou: esperou, resando.

Rompera a manhã. Não appareceu o tio André ! Correu o dia; nem sombra d'elle.

Sabedor do occorrido, o regedor mandou do seu motu próprio ao matto procurar o tio André. Nada conseguiu ' No íitio onde costumava fabricar o carvão estavam cheios alguns saccos; a fogueira, conhecia-se bem, morrera de inanição, pois a cobria um monte de cinzas. Estavam ali os outros aprestos d'aquelle fabrico. Do que se não sabia era do fabricante.

O repentino e mysterioso desapparecimento do tio André commentava-se por diversas maneiras. Alguém avançou que o velho estava morto ; mas como, e porque modo, isso é que nenhum alvitre viera a lume.

Quando se soube que o tio André não tinha também apparecido na cidade, o regedor disse para comsigo :

-- Mau! Agora é que eu vejo enturvarem-se os ares!

Em baldadas pesquizas se passaram alguns dias.

A inconsolável tia Anninhas chorou como uma Magdalena, sem comtudo perder totalmente a esperança de ver, de um momento para o outro, entrar em casa o esposo.

XV

Teria já o sol escondido a sua rubra luz na fimbria do horisonte, havia umas duas horas.

Luiz, á espera do tio André, como havia com este combinado, pairava como ave de rapina sobre a presa, nas immediações da casa de Ludovina.

Corriam as horas, e o bom velhote não apparecia.

Dava isto que scismar a Luiz. Esteve para ir a casa d'elle ; mas não queria que se soubesse da embuscada.

De repente sentiu rumor entre umas toucas de sabugueiros que serviam de tapume ao quintal ; para que lhe não succedesse o mesmo que das outras vezes, que viu fugir a presa, saltou para a parte de dentro do muro fronteiro bem escondido ; e poz-se a espreitar.

Passado um momento, o vulto saltou para o caminho.

Luiz trepou-se ao muro e saltou também. O vulto ao sentir aquella operação deitou a correr pela Canada abaixo. Luiz segiu-o durante algum tempo, mas como a noite era escura, o vulto confundia-se com as arvores umas vezes, outras desapparecia onde as sombras da noite mais densas se tornavam nas reentrâncias dos tapumes e das barreiras.

O vulto parava de vez em quando para se certificar se era seguido. Luiz parava egualmente, sempre a distancia. Atravessaram assim parte da aldeia ; sairam mesmo d'ella ; até que já bem distante o vulto entrou para uma casa de boa apparencia, muito conhecida n'aquelles arredores por pertencer a um sr. morgado da cidade.

Luiz exclamou para comsigo :

-- Não ha mais que duvidar; é elle em carne e osso !

É o fidalgo ! O Tesoura tinha razão.

E regressou á aldeia com o desespero na alma, praguejando em solilóquio, elle que não tinha em seus lábios honrados senão palavras honestas ! O ciúme incendera-lhe no seio uma immensa labareda : o julgar-se ludribiado na sua honra por uma mulher que tanto amava, e tão pura parecia, accordára n'aquella alma instinctos ferozes e desconhecidos. Não pensava senão em vingar-se.

No dia seguinte foi Luiz a casa do tio Lourenço ; e, de modo que o velho não ouvisse, com a voz tremula o olhar um pouco espantado, o rosto mortalmente pallido, acercando-se de Ludouina que costurava, disse-lhe:

-- Onde foste tu aprender essa hypocrisia?

-- Hypocrisia? Perguntou a rapariga aturdida com a inesperada pergunta do seu noivo. Não te comprehendo, Luiz.

-- Não admira ; assim te convém. Dize-me cá : quem é um sujeito que quasi todas as noites sae do teu quintal?

Ludovina sentira no coração uma dor tão funda como se o houvera ferido a ponta do mais agudo punhal. Perdeu a cor do seu formoso rosto, e com as lagrimas nos olhos exclamou :

-- Estás doido !

-- Vi-o eu saltar por mais de uma vez.

-- Não pode ser !

-- Juro-te, e eu não juro em vão. Hontem á noite segui-o. Sabes para onde entrou? para casa do morgado.

Ludovina velou a cara com as mãos mormurando :

-- Oh ! que infâmia ! Como eu sou desgraçada !

-- Pela tua má cabeça.

-- Não blasphemes.

-- Ludovina, acredita que se o torno a encontrar aqui, ou eu ou elle, um de nós ha de morrer ás mãos do outro, horrivelmente estrangulado: não, eu ó que preciso viver para ser completa a vingança. Mato o a elle, a esse fidalgo que leva a deshonra ao lar de um pae honrado sempre ; depois a ti. Eu sustentarei o velho, que se ha de conformar, quando souber que eu fui o vingador da sua honra, porque deixa de ser filha quem enxovalha assim os respeitáveis cabeilos brancos de seu enfermo pae !

Luiz desvairava: Ludovina ia recuando espavorida por aquellas palavras e pelo transtornado semblante do noivo. Não cria acreditar no que ouvia: tal era a metamorphose operada no seu querido Luiz, que ella agora desconhecia e de quem se arreceiava cheia de pavor !

-- Luiz, balbuciou ella, por alma de minha mãe te juro que sou estranha a tudo quanto dizes. Poderá ser que alguém se tenha introduzido no quintal ; não sei quem é; nunca vi ninguém, porque nem fui ao quintal, nem entraram cá. Dizes que é o fidalgo; pode ser; mas admira-me muito, porque sempre que eu vou á sua casa na cidade, trata-me com as maiores attenções e respeito. Quando elle vem cá á freguezia raras vezes sae do seu casal, como toda a gente sabe ; e se alguma vez vem ver meu pae, é de dia.

-- Mas se eu lhe conheci o fato, e o vi sair do quintal, e entrar para o seu casal!

-- Nada mais sei dizer-te. Se queres confiar no meu juramento, confia; senão, resta me o chorar.

E com effeito dois ribeirinhos de lagrimas deslisaram por aquellas pallidas faces.

O mancebo estava aturdido. Nào sabia o que pensar, nem pelo que ficar. Queria que tudo fosse um sonho.

-- Bem, Ludovina, dizes que estás innocente ; oxalá, por ti e por mim, que assim seja. Hei de obter por força um desengano. Já sei o que devo fazer. Adeus.

Luiz seguira d'ali para casa do padre cura, que era caçador, a pedir-lhe emprestada a espingarda para matar um milhafre que lhe ia roubar as gallinhas á eira.

O cura teve sua repugnância, mas fez o empréstimo ; o Luiz era rapaz tão bemquisto, que ninguém se atrevia a recusar-lhe fosse o que fosse. Depois, o fim era de tanta utilidade: matar uma ave damninha!

Á noite, um pouco mais cedo do que o costume, Luiz foi para o seu posto de ronda á casa do tio Lourenço. Coseu-se muito com um muro próximo, e esperou. Ao cabo de uma hora ouviu ramalhar os sabugueiros, como na véspera, e um vulto saltar no meio do caminho. O coração de Luiz batia em violentissimas pulsações : nas fontes latejavam-lhe febrilmente as artérias ; uma nuvem de sangue passava-lhe ante os seus chamejantes olhos. Ouviram-se os estalidos do engatilhar de uma espingarda, e para logo a detonação de um tiro, que echoou pelos valados próximos. Ao mesmo tempo o vulto correu sobre Luiz, dizendo:

-- Erraste a pontaria: agora estás morto com esta foice.

-- Ainda não! A espingarda é de dois canos. Mais um passo e eu faço fogo. O primeiro tiro foi de propósito para o ar; o segundo será para ti.

O vulto crescia para Luiz, que é quem estava munido de espingarda, a do cura : Luiz apontou-a, bradando :

-- Quem quer que tu sejas da-te a conhecer, ou eu mato-te, como se mata um cão.

O vulto, á vista de tão cathegorica intimação, parou; foi então Luiz quem cresceu para elle, sempre com a espingarda em pontaria.

-- Dize quem és, ou morres.

A este tempo Ludovina, que acordara sobresaltada ao estrondo do tiro, vestira-se e fora evitar que o pobre pae se lançasse fora da cama, desorientado e assustado com tão eslíranho acontecimento. A donzella adivinhara tudo; e por isso, depois de serenar o pae, abriu a porta da rua, e com uma candeia accesa allumiou a scena que no caminho se passava.

A luz bateu de chapa no rosto do vulto ; e Ludovina e Luiz exclamaram :

-- José Tesoura!

Era elle com effito, vestido com fato estranho, e que desatou a rir, dizendo :

-- Escapei de boa, isso é verdade, porque nunca julguei que tu, Luiz, viesses armado de espingarda; mas preguei-te uma peça valente.

-- Infame que tu és, alma damnada, que fazes mal só pelo gosto de o fazer ! Nem uma innocente rapariga, nem um pobre velho, que ali está dentro, te apiedaram os preversos instinctos, andando assim a atassalhar a honra d'elles, que é cousa que tu não tens ! Retira-te malvado; segue o teu caminho, e não provoques outra vez o meu ódio, que não responderei por mim. Fica sabendo que só a tiro te matarei, se teimares em praticar d'estas ou que taes façanhas.

José Tesoura seguiu pela Canada; e Ludovina pediu a Luiz que entrasse. Sabedor do occorrido, o tio Lourenço, pondo as mãos, murmurou:

-- Graças a Deus que ainda tenho quem vele pela minha honra, já que a doença m'o não permitte.

A filha que deixara socegado o velho, perguntou :

-- Então, Luiz, ainda duvidas do meu juramento?

-- Não duvido; perdoa-me o haver duvidado; mas bem viste : as apparencias eram todas contra ti. Bem sabes que sou rude, que não aprendi nem tive creação para mais. Se eu te quero tanto de alma...

E affagava-lhe a mão.

Ludovina pagava-lhe o galanteio com um sorriso dizendo:

-- Estás perdoado. Agora o que eu queria é que abreviasses o nosso casamento. Toda a demora me penalisa; tenho sempre receios de perder-te. Deves ter comprehendido quanto eu te amo. Perder-te seria morrer. Não sei o que me vae cá no intimo : o coração anda-me sempre sobresaltado. E depois tenho sonhado com uvas pretas, que são agourentas !

-- Pois bem, amanhã parto para a cidade. Levarei uma cartinha do sr. regedor que é amigo do padre mestre Purificação ; e não volto de lá sem trazer os papeis desembaraçados. Tão depressa o estejam, trata-se do casamento. Ficas contente?

-- Fico, Luiz, oh! se fico!

Pudera! não ficar! Vira o noivo penitenciar-se-lhe aos pés ; a desgarrada ovelha arrependida voltara ao predilecto redil.

-- Agora quero a paga, disse elle.

-- A paga !

-- Escuta.

Ludovina ficou indecisa.

-- Escuta, insistiu Luiz.

A donzella aproximou-se do noivo com uma certa e pudica timidez.

Luiz chegou a sua bocca ao ouvido de Ludovina, como quem se armava para dizer-lhe um segredo ; mas os lábios em vez de soltarem palavras, erraram a direcção que levavam, e collaram-se sobre a face da rapariga. Ludovina de pallida que estava, ruborisou-se como o granito da romã. Nas faces desenharam-se-lhe duas formosíssimas rosas ; e o olhar, scintillante de amor, cravou-se-lhe no chão. Modesta e grave como era Ludovina, envergonhou-se com o beijo que inesperadamente recebeu. Mas, para que negal-o? aquelle beijo fizera bem á sua alma : foi como que o timbre com que Luiz sellára o seu amor.

XVI

José Tesoura não se esquecia de narrar o lance da Canada do Paraíso, com todos os pormenores. Classificava-o de «peça» pregada ao Luiz. Para este homem nem a honra era cousa seria!

Soube-se então que o demónio do rapaz, como tivesse entrada franca no casal do fidalgo, aproveitara a ausência d'este para se ir vestir com o seu fato, e vir á aldeia assim disfarçado, de noite ; mettendo-se por uns atalhos e uns terrenos que vinham confiuar com o quintal do tio Lourenço. Cesta forma ninguém o via entrar, e apenas e muito propositadamente saltava para o caminho quando sentia alguém que elle bem sabia ser o Luiz, para justificar os boatos que propalava acerca do tal fidalgo.

É no que o Tesoura passava a vida; n'estas ribaldarias !

A este tempo já o regedor havia recebido ordem de abrir devassa, em consequência de se rosuar na freguezia, que o tio André tinha sido assassinado; porque, dizia-se, se houvera fugido, daria noticias suas quanto mais que ninguém sabia de motivo que elle tivesse para tal fuga.

O regedor acomjanhado de outras pessoas foi fazer pesquisa geral ao sitio onde o tio André estivera carvoando. Correram tudo, e tudo prescrutaram.

Estavam já para dar por concluida a tarefa, quando um dos trabalhadores exclamou: «Terra fresca !>t Com effeito via-se ali o terreno cavado de poucos dias.

-- Cavem esse terreno, ordenou o regedor.

Assim se fez. Não teriam cavado mais de uns três palmos de profundidade, e começou a sentir-se um fétido, que incommodava.

-- Temos obra! disse o regedor tapando com o lenço as aberturas nasaes.

Mais algumas cavadellas e appareceu um cadáver.

Desaterrado o rosto, reconheceu-se o desgraçado tio André, cuja cabeça estava esquartejada por talhos de fouce.

Lavrado o auto de corpo de delicto, consoante a formula, o regedor fez conduzir o cadáver para o cemitério.

Divulgada a noticia na freguezia, não faltaram juízos acerca do auctor do homecidio.

Um dizia :

-- Deus me perdoe, mas não foi outro que nanja o José Tesoura, para se vingar das pauladas que o tio André lhe atiçou na cabeça.

O cura e o regedor quasi batiam fé que não ; e como argumento adduzido, contavam a promessa que lhes havia feito o Tesoura.

Outros aventavam :

-- Querem ver que foi o Luiz ?

-- Ora! só se o Luiz! elle, tão bom moço...

-- O que é certo é que no domingo da Trindade o Luiz e o tio André, que Deus haja, questionaram bastante no adro.

-- É verdade. E por signal que lhes ouvi fallar no casamento, a modo que o rapaz queria roer a corda...

A este comenos passava o José Tesoura. Acercou-se do grupo, e sem mais pormenores, disse:

-- Então, que me dizem a esta?

-- O que é ?

-- Pois não andam a espalhar que eu é que matei o tio André ? Para lhe dar uma pêra de cahir de vez não precisava ir ao matto. Além de que, prometti nada fazer ao velhote.

-- Eu cá por mim, o que ouvi dizer, foi que tinha sido o Luiz, acrescentou um dos do grupo, sem duvida para se justificar diante do valente Tesoura, cujo bordão ou pulso elle muito respeitava.

-- Não digo que sim, nem que não, redarguiu José Tesoura. O que sei é que vi, á boquinha da noite, o Luiz vir das bandas do matto.

-- Quem sabe ? Talvez te enganasses ...

-- Cego seja eu, se o não vi!

Repetiam-se os commentarios. A voz geral propendia para condemnar José Tesoura e absolver Luiz.

Mas todos os indícios levavam a julgar-se criminoso Luiz, e innocente José Tesoura ! Era motivo para grandes pasmos. Quem não conhecia a fundo os caracteres dos dois rapazes?

Correu o summario do processo. Testemunhas houve, que juraram ter visto o Tesoura na cidade no dia do assassinato; e outras, que tinham encontrado Luiz perto do sitio em que o tio André estivera carvoando.

Concorria muito para aggravar-lhe a situação o declarar a sr. Anninhas, que o Luiz fora procurar a sua casa ao rasgar da manhã o marido, e como o não encontrasse já em casa, fora para o matto, dizendo que tinha umas contas a ajustar.

Ignorava Luiz o que se passava em Candelária.

Achava-se na cidade a cuidar dos papeis para o seu próximo consorcio. Mas em uma das occasiões que fallava com o padre mestre, a quem fora recommendado, ouviu-lhe a narração das fataes noticias.

O padre disse-lhe :

-- Creio bem que o sr. Luiz está innocente; o que porém é fora de duvida ó que não podendo justificar a sua innocencia, não se poderá livrar. O advogado que eu já consultei, nào encontra remissão possivel. É uma fatalidade, bem o sei ; mas não ha remédio senão curvar a cabeça aos decretos da Providencia. A pronuncia deve estar a fazer se; feita ella, o mandado de captura vae logo atraz. Portanto, o meu conselho é que o senhor se ponha a seguro quanto antes. Anda ahi fora um navio a receber passageiros. Fallarei ao consignatário para lhe arranjar passagem clandestina. Ha de custar-lhe este passo; é isso natural, a um noivo especialmente. E' comtudo melhor do que ir para a Costa de Africa. Parta hoje mesmo para sua casa. Tenha a roupinha prompta para embarcar ao primeiro aviso, que não deve fazer se esperar. Toda a demora lhe póde ser fatal. Adeus.

Luiz ficou petrificado. Não soube articular palavras mais do que as indispensáveis para agradecer ao padre mestre.

O pobre rapaz julgava-se sonhando : estava como que caido ao fundo do mar. Ainda mal desperto, marchou para Candelária.

Pelo caminho monologava para comsigo :

-- Como é possivel que me julguem criminoso, a mim, que todos me conhecem e sabem qual o meu proceder; a mim que só estimava aquelle bom velho? Não pode ser. Hão de acreditar na minha innocencia... Mas o senhor padre mestre não era capaz de enganar-me, isso não era. De mais, logo por mal dos meus peccados fui n'aquelle dia fallar com o tio André ao matto!... O senhor padre que me aconselha a que embarque, é porque realmente estou em perigo... E Ludovina?... sim, o que será d'aquella inteliz rapariga? que será d'ella?... Enlouquecerá a pobresinha ! Oh! como os trabalhos nascem debaixo dos pés á gente!

E apertava a testa com a mão, como que a querer segurar a rasão, que elle julgava ia fugir-lhe. E cairá num profundo scismar, o desditoso mancebo, caminhando sempre.

XVII

Era já noite velha quando Luiz chegou á Lomba da Cruz. Em vez de tomar para sua casa, dirigiu-se á de Lud ovina.

Bateu de mansinho á porta. Esta abriu-se, e elle entrou. Dera signal conhecido. Dir se-hia que o esperavam. Ludovina, não obstante o adiantado da noite, velava ainda. E' que, desde que no logar se espalhara a noticia de que incriminavam o noivo, nunca mais teve somno, e por conseguinte não se deitava! Quer a leitora saber o que ella fazia? E-esava, resava as noites inteiras, ajoelhada ante um oratório, onde se via Nossa Senhora das Dores, aos pés da qual bruxuleava uma improvisada lâmpada.

Ludovina ao ver Luiz, caiu-lhe nos braços, quasi desfallecida. Por mais coragem que se impozesse não pôde reter as lagrimas. Sufíocava-a o pranto ; morriamIhe nos lábios as palavras.

Luiz, com ser homem e de boa tempera, não se envergonhou de misturar as suas com as lagrimas da mulher amada. E porque muito a amava é que a pranteava. O homem incapaz de chorar é também refractário a um verdadeiro amor.

Permaneceram assim, como a hera entrelaçada ao tronco do pinheiro.

Afinal Luiz rompeu o silencio:

-- Ludovina, murmurou elle, então? Queres assim tirar-me toda a coragem precisa para que eu não suecumba em tão inesperado e terrivel transe?

-- Luiz ! balbuciou apenas Ludovina : a commoção embargava-lhe a voz.

-- Tem animo, filha! Lembra-te que é Deus que assim o quer. Luctar contra o destino é um impossível.

Lagrimas não remedeiam coisa alguma.

-- Oh ! quanto eu soffro !

-- Soffres, bem o sei : eu também soffro. Havemos por isso de matar-nos ? Escuta. Dizem que fui eu que assassinei o tio André; acreditas nas vozes do mundo, embora todos os indícios do crime me compromettam?

-- Tu criminoso? oh! não! não pôde ser. Estás tão innocente como eu, que bem m'o diz o coração; e é por isso mesmo que eu mais padeço. Padeço por mim e por ti. Por ti, porque te esperam dissabores e trabalhos. O que será de nós ambos, minha mãe do ceu ?

-- Dize-me primeiramente: entendes que o homem que não é criminoso, mas que não òde provar a sua innocencia, deve expiar alheias culpas entre facínoras e ladrões?

-- Que queres dizer? observou Ludovina assustada com as palavras do amante.

-- Que vão prender-me, encerrar-me nos ferros de elrei, julgar-me depois como matador de teu tio, e, por sem duvida, condemnar-me a degredo perpetuo para a Costa d'Africa!

-- Meu Deus!

-- Achas que devo entregar-me á prisão?

-- De modo algum!

-- Bem. Sabes qual é o único meio que me resta para me salvar? E' a fuga.

-- Fugires, Luiz!?

-- De duas uma; ou fugir ou a cadeia.

-- Oh! meu Deus, meu Deus! E os formosos olhos da rapariga banharam-se de abundantíssimas lagrimas.

-- Ludovina! coragem!

-- Vaes fugir... então eu... perco-te, perco-te, para sempre? para sempre, Luiz? Não posso, ai! nao posso!... E cingindo nos seus braços o collo do mancebo, como que prendendo-o para elle não fugir, continuou:

-- Irei comtigo...

-- O quê! fugires comigo? Louquinha! como podia isso ser! Sabes lá o que é embarcar de penedo!

-- Que me importa! Ha perigos? Arrostarei tudo por amor de ti. Morre-se? morrerei comtigo. A minha alma pertence-te. Se a sorte quer roubar-t'a, que me importa a mim com o meu corpo ...

-- Esqueces que tens ali dentro teu pae, que morreria de pesar se desses similhante passo?

-- Meu pobre pae, é verdade !

Ludovina desarmada com este incontroverso argumento não insistiu mais. Copioso pranto se deslisou por aquelle formoso rosto agora tão pallido pelas vigilias, tão desbotado pelas destruidoras lufadas da acerba dor.

Luiz também com o coração cruciado, proseguiu :

-- Acreditas na sinceridade do meu amor?

-- Porque não?

-- Pois n'este solemne momento, e diante d'aquella Nossa Senhora das Dores, te juro, que para onde quer que a sorte me levar, a tua imagem, querida Ludovina, me acompanhará noite e dia. A distancia por maior que ella seja, não apagará a chamma d'este amor. Não me perdes para sempre, como disseste ha pouco. Não ; será apenas uma separação de algum tempo. Trabalharei incessantemente, sem descanço ; e tão depressa me seja possivel, mandar te-hei então buscar.

-- Promettes isso ? perguntou de repente a donzella como que animada por esta esperança fagueira, que n'alma lhe luzia como o remoto lume ao perdido viajor.

-- Prometto... juro-t'o.

-- Luiz, já que o destino assim o quer, já que Deus nos chegou aos lábios este cálix de amargosissimo fel, curvemos a cabeça. Vae ; parte. Eu cá fico resando á minha querida Nossa Senhora, para que te leve a porto de salvamento, e te faça feliz. Choro; não faças caso. As lagrimas servem-me de bálsamo.

Dispensem, os leitores a descripção da despedida d'aquellas duas creaturas, que tanto se amavam; por que não sei, não posso assistir, a olhos enxutos, a taes scenas.

Luiz recolheu-se. a sua casa antes de raiar a aurora, para não ser visto, e occulto se conservou como prevenção contra qualquer denuncia, ou desconfiança de justiça.

XVIII

Próximo á costa, e na altura de Candellaria, via se, dois dias depois, velejar uma galera americana, que pelos bordos que dava, conhecia se que d'ali se não queria desviar.

O caminho, n'aquelle tempo, que conduzia do cimo da rocha á beira do mar, era sobre excessivamente alteroso, muito Íngreme, estreitíssimo, tortuoso, escalavrado, e mui pouco frequentado, por que se não descia sem risco de um despenhamento. Só o pescador, chamado da pedra, se atrevia a palmilhar a miúdo aquella via perigosa.

Mas no dia em que estamos, quem se abeirasse da rocha, veria descer por ali varias pessoas, distanciadas, e agruparem-se lá em baixo sobre os penedos : talvez se contassem umas trinta, entre homens, mulheres e rapazes.

Quem, n'aquelle momento, fitasse a galera, observaria que um barco se destacara d'ella, aproando á terra. Algum tempo depois o mesmo barco aportou exactamente no sitio onde se achava aquella gente.

Quando o barco chegou, houve permuta de abraços; oscularam-se algumas faces; misturaram- se muitas lagrimas, e os echos da rocha repetiram algumas exclamações de angustia e murmuraram alguns gemidos.

De entre o grupo destacaram-se alguns rapazes ainda imberbes, e alguns já adultos, mas no viço dos annos, levando pacotinhos de roupa, e saltaram para dentro do barco.

O barqueiro, que parecia dirigir esta operação, perguntou se mais alguém queria ir com elle.

N'este comenos surgiu de traz de uns penedos um homem, que veloz para o barco também saltou. Os demais, ao verem-n'o, pasmados, exclamaram:

-- É o Luiz !

O mancebo, pois era com efifèito Luiz, de pé, no leito do barco, voltou- se para os que ficavam em terra, e em tom prophetico disse :

-- É Luiz, sim! Sou eu! Não me vêem? Fujo, não por estar criminoso, que Deus é testemunha da minha innocencia; mas por que a justiça dos homens me condemna. Que cego seja o verdadeiro criminoso, já que tantas vezes tem pedido a cegueira O barco desprendeu- se da terra, e foi mar em fora.

Se alguém olhasse para um cannavial que se debruçava sobre a rocha, distinguiria ali, entre a rama das cannas, o vulto elegante de uma mulher, banhada em pranto, que acenava com um lenço em signal de despedida.

Era Ludovina. Tinha ido dar aquelle acerbo adeus ao desditoso noivo. Luiz, por sua parte, não desfitava os olhos do cannavial, em quanto o distinguiu.

O barco por fim atracou á galera : e ninguém mais soube dos passageiros.

Assim era a emigração clandestina : á plena luz do meio dia, e á vista de quem tinha olhos e a queria ver !

Quando a bóça do individuo é para embarcar ou emigrar, não ha desvial-o do seu destino.

Podem apostolar quanto quizerem contra a emigração, que nada conseguem. Emquanto o salário estiver em flagrante desproporção com o preço das subsistências, ha-de sempre haver quem procure em estranhos climas o pão quotidiano que lhe nega a pátria. Emquanto um ou outro emigrante regressar ao paiz natal .com um peculiosinho que lhe assegure a tranquillidade da velhice, muitos se hão de seduzir com o áureo esplendor da terra da promissão.

XIX

A «ribeira» nas aldeias, é o conclave, o club, o botequim das filhas de Eva.

Ali se urdem intrigas, e brigam as comadres; ali se roe na pelle do próximo, e se dão as novidades; ali nascem paixões, ajustam se entrevistas ; apalavram-se casamentos !

No fim de contas é um quadro bonito.

Nas margens da ribeira estão collocadas umas pedras, cujas taces lisas servem de esfregadores da roupa, junto dos quaes se ajoelham as lavandeiras, com as saias arregaçadas, fazendo exposição de pernas. Em vários pontos, enormes fogueiras aquecem a agua para as barrellas. Duas filas de lavandeiras esfregam e batem a roupa, umas cantando, outras conversando, outras questionando. A's vezes, para um lado, vê-se uma rapariga cochichando com o seu conversado.

E o murmurar da agua que se espadana por sobre os seixos, ou serpeia por entre a relva, forma o cadenciado acompanhamento d'aquelle borborinho.

Os exercicios linguisticos descambam ás vezes para exercícios de pugilato. É uma cambiante do quadro.

Desçamos â ribeira que entesta com a Lomba d'Agua.

O sol não ha muito que ergueu a sua esplendida fronte acima das montanhas do nascente. Alvas columnas de espesso fumo vão rarefazer-se no espaço; e as lavandeiras estão já nos seus postos. Algumas d'ellas conversam em voz alta. Ouçamos o que dizem.

-- Ó tia Narcisa?

-- Que é lá?

-- Não é verdade que o Luiz da Lomba da Cruz também embarcou hontem?

-- É verdade. Porque o perguntas?

-- Aqui a Victoria dizia que não.

-- E ainda digo.

- Forte teimosia! É mesmo como a nossa burrica, salvo seja a comparação !

-- Pois se a tia Josepha me disse, quando eu vim para baixo ha pouco, que o viu, ainda esta madrugada...

-- Credo ! abrenuncio ! Isso é que é mentir com quan tos dentes tem na bocca! conclamou a tia Narcisa.

Como pode ser isso ? O meu homem bem viu hontem, com os olhos que Deus lhe pôz na cara, o Luiz saltar para o barco, e ir-se por esses mares fora.

-- Coitado! sempre lhe aconteceu uma! Ninguém diga d'este pão não comerei... Pois é pena. Era um coração de pomba, replicou uma lavandeira.

-- Pomba? Boa pomba, não ha duvida! continuou a Yictoria. Rachar a cabeça do tio André, de meio a a meio, como se fora um toco de faia!

-- O que! pois também tu, Victoria, és d'aquellas que acreditam nas vozes do mundo? Lsso são aleives Olha que tens uma alminha para dar a Deus. Aqui estou eu, que era capaz de pôr as mãos no fogo, em como não foi o Luiz que fez similhante barbaridade. Não me entra cá. Era mais fácil ser aquella boa prenda do José Tesoura. Sabem vocês o que eu já ouvi dizer a uma pessoa capaz? que elle foi visto passar do caminho das «Cumieiras» para as Feteiras, no dia da morte do tio André.

-- O Tesoura ? cá para mim nem pintado n'um painel. O Luiz, esse sim, é bom rapaz, obtemperou outra lavandeira.

-- Sim, sim, as raparigas punem por Luiz, por que arrastava, a aza a todas, e não sei mesmo se havia mais alguma cousa...

-- Vocemecê é muito atrevida, sr.a Victoria ! Isso são parvoiçadas que se digam? Ora não ha!

-- Atrevida és tu, lambareira!

-- Eu serei lambareira, mas graças a Deus até hoje ainda não fui vender o mantimento ás escondidas. Puxe-me pela lingua, se quer ver o menino dos orphãos a cavallo !

-- Olha que sou capaz de te encher esse palmo de cara com bofetadas, ouviste ?

O apparecimento do padre cura, ao descer a ladeira, cortou a controvérsia, que ia já para passar a vias de facto.

-- Ó senhor padrinho, a sua benção, disseram as lavandeiras, levando a própria mão á bocca.

-- A benção de Deus as cubra e as faça umas santinhas, respondeu o cura fazendo menção de as abençoar.

Boas santinhas estavam ali, na verdade !

Nas aldeias os curas são os padrinhos natos de uma boa parte dos seus freguezes.

O cura continuou no seu passeio ; e a tempestade mulheril serenou.

XX

Decorreram muitos mezes, e Ludovina sem receber noticia alguma de Luiz!

-- Que lhe terá succedido, meu Deus ? perguntava ella repetidas vezes.

Ninguém mais ouvira fallar do fugitivo.

A única luz que houve em tantas trevas foi uma carta mandada á familia por um companheiro de Luiz, na qual carta dizia que tinham desembarcado em Boston, e que elle, o Luiz, achara logo arrumação a bordo de uma baleeira.

Depois d'esta noticia, via-se Ludovina ir muitas vezes á ermidinha de Nossa Senhora do Soccorro, onde levava horas a resar.

Aquella ermida fica situada ao poente do Jogar de Candelária, entre terrenos de semeadura. É histórica.

Conta-se, que achando-se um navio já perto da costa, sob furiosa tempestade, e em imminente perigo, a sua tripulação fizera o voto de mandar erigir uma ermida a Nossa Senhora do Soccorro, no local aonde fosse cair a bala de uma peça, que haviam de disparar, se a Virgem lhe valesse n'aquella terrível conjunctura, salvando a todos. Disparou-se a peça em direcção á terra; o navio veiu sobre a costa, e a tripulação salvou-se, E que soube cumprir a promessa, lá está a attestal-o a singela ermida no meio de um pittoresco e aprasivel ermo.

Ludovina quando soube que o seu Luiz sulcava as ondas do mar, enviava constantes preces á Virgem Santíssima que valera á tripulação do navio naufragado.

Tinha fé. Felizes dos que são illuminados por esse divino fanal !

A rapariga encurtava as suas longas horas de saudades pungentes, orando.

Ás vezes, á hora da reíeicâo, Ludovina, absorta na corrente dos seus pensamentos, esquecia-se de comer, e orvalhava de lagrimas as magras sopas, que mais lhe amargavam que alimentavam. O velho pae tentava distrahil-a, animando-a com esperanças sempre renovadas e nunca realisadas.

-- Pobre d'elle, dizia a filha, que anda sobre as aguas do mar. E quem sabe? talvez que o próprio mar lhe sirva de sepultura! Quem nos não diz a nós, que esta falta de noticias é porque Luiz já não existe?

-- Quem sabe, filha? Ouço dizer que n'aquella vida de embarcadiços das baleeiras, se leva annos sem nunca se ir a terra. Se assim é, como podia elle escrever te?

-- Mas uma carta deitada em qualquer correio, cedo ou tarde chega ao seu destino, porque é impossivel que uma ou outra vez as baleeiras não toquem em terra para receber comedorias.

-- E mudando de tom, soluçava: ou talvez se esquecesse de mim !

-- Não o julgo capaz d'isso. Luiz era pobre, mas rapaz de palavra.

-- Isso era.

E desprendiam-se-lhe as fontes lacrimaes.

-- Filha, quando quererá Deus que te eu não veja chorar? Como tu me despedaças a alma! Soffro por mim e por ti. Se tivéssemos commettido crimes não levaríamos mais tremenda expiação! Resigna-te, filha. Espera mais algum tempo. O meu coração de pae segreda-me, que, quando menos esperarmos, havemos receber boas noticias do teu noivo.

Um dia uma visinha chegando se ao peitoril da janella da casa do tio Lourenço, bateu uns toques com os dedos, e chamou:

-- Ó visinhos?

-- Quem me chama? perguntou a sr. Arminhas.

-- Sou eu.

-- Não entra, visinha?

-- Não posso demorar-me. Tenho o pão no forno. Quero dizer-lhe apenas duas palavras.

-- Então diga, retorquiu a tia de Ludovina indo á janella.

-- Não sabe ? chegou o filho da Luiza da Grota.

-- Qual? o que foi para o Brazil ha muitos annos ?

Deve vir um ricasso.

-- Não é esse. É o que embarcou juntamente com o Luiz.

-- Deveras? E vocemecê callada com isso ! exclamou a sr. Anninhas com alegria.

-- Pois elle ha nadinha é que chegou da cidade!

-- Vou ter com elle. A Ludovina tem hoje alegrão, olé ! E agora é que a rapariga foi para a fonte!

-- Adeus visinha. Oxalá que venham boas noticias.

-- Muito obrigada.

-- Nanja por isso.

N'um abrir e fechar de olhos a sr.a Anninhas envergou uma saia melhor, deitou outra sobre a cabeça, com o cós para cima, á similhança de manto, uso mui trivial nas mulheres do campo, e desceu a Canada.

Ia a dobrar o caminho do concelho, quando viu na sua frente um rapagão, que lhe disse:

-- Não se incommode, não se incommode, sr. Anninhas. Ia agora mesmo a sua casa. Eu ainda a conheço bem.

-- Ai ! o sr. Manolinho ! atalhou ella. Traz alguma cartinha ?

-- É como diz. Eil-a : manda-a o Luiz.

-- Bem teimava eu com a rapariga. E elle, o Luiz, como vae?

-- Ora! são como um pero, graças a Deus!

-- E onde ficou ?

-- No mesmo navio. Ganha alguma cousinha de geito, verdade seja que com muito trabalho e risco de vida. E tanto trabalho é, e tão grandes são os riscos e má vida e tratamento que larguei o cabo por mão; não estive para mais. Puz-me ao fresco assim que o navio aportou a Boston. O Luiz esse não pode por ora largar a vida; bem sabe o que succedeu...

-- Coitadinho d'elle ! exclamou a sr.a Anninhas, enxugando as lagrimas que lhe assomavam aos olhos.

-- Não se mortifique: é mal de mais algum tempo.

-- Para que estava o infeliz guardado!

-- Como o rapaz soubesse que eu vinha para aterra, pediu- me que trouxesse essa cartinha, e este embrulhinho.

-- O que é?

-- Dinheiro, me disse elle.

-- Vou a correr para casa. Ludovina ha de já ter voltado da fonte. Como ella vae ficar!

E quando se dispunha a partir bradou:

-- Olhem que cabeça a minha ! Ainda agora é que me lembra que nem pelo menos offereci ao sr. Manolinlio para descançar lá em casa.

-- Nada de incommodos. Eu lá irei com mais vagar ver a Ludovina. Dê-lhe uma visita.

-- Será entregue.

O rapaz retrocedeu para a Grota ; e a tia Arminhas picou o passo conforme os seus numerosos janeiros permittiam ás já cançadas pernas.

Ia dizendo de si para si :

-- Como ella vae ficar, a minha Ludovina!

O leitor admira-se de vêr a sr. Anninhas em casa do tio Lourenço? Preciso de explicar o caso.

A sr. Anninhas algumas semanas depois de enviuvar, como se visse sósinha e fosse muito amiga da sobrinha do seu esposo, propoz o ir viver juntamente com ella e com seu cunhado. Ajudaria a trabalhar para a sustentação de todos, e revesaria a Ludovina no mister de enfermeira do pae. A proposta é bem de ver, foi acolhida. A familia que até ali fora de duas, era agora de três pessoas.

XXI

-- Quero para cá as alviçaras, disse a senhora Anninlias á sobrinha; que, de talha á cabeça regressava da fonte.

Ludovina comprehendeu a phrase, com aquella presciência de coração apaixonado, tanto mais que a tia, apoz um mal fingido jogo, pois a trahia a própria alegria, lhe fez entrega da carta e do embrulhinho.

Ha sensações que se nào podem descrever. Como saberiamos lêr fundo na alma de Ludovina, n'aquelle momento para lhe aquilatarmos as vibrações ?

A filha do tio Lourenço, febril de contentamento, quasi fulminada pelo inesperado jubilo, ao pegar na carta, ajoelhou diante do seu oratório e orou antes de a ler. Quando se ergueu tinha demudada a phisionomia.

Para a mulher enamorada, uma carta do namorado ausente, é como o orvalho da noite para a planta mimosa após as calmas caniculares de um dia de agosto. Planta esmaecida pelos ardores da saudade, Ludovina bebera nova seiva no orvalho consolador que lhe trouxera aquella carta: era prova de que Luiz existia e se não esquecera da sua desposada ; e da vida d'elle e para elle, queria viver Ludovina.

Circulou immediatamente no logar a noticia do recebimento da carta. Factos d'estes são sempre sensacionaes nas aldeias. As irmãs, as tias, as cunhadas, as primas, as comadres, as amigas e as visinhas, congregaram-se logo para ouvir a leitura da suspirada missiva. Ouçamol-a também.

Ludovina leu:

«Desde que me vi obrigado a fagir da nossa terra, ainda não larguei o mar. Não encontrei outro modo de vida.

«E que vida não é esta do marinheiro, cheia de perigos, cheia de necessidades, com noites sem dormir, com dias passados ao sol que queima como lume, com invernos de frios de cortar a pelle !

«As vezes, a gente deita-se para tomar fôlego das canceiras, estando um mar de bonança, e accordâmos ao estourar dos vagalhões que querem engulir a pobrinha da embarcação.

«Aqui ha momentos alegres, para quem não traz a tristeza agarrada ao coração; mas ha outros em que se sente a morte tão pertinho de nós, que fechámos os olhos para a não ver. Então aperta-nos a saudade das pessoas que adoramos, da nossa casa, dos campos em que trabalhámos, das folgas de rapaz, dos pássaros que cantavam na faia do quintal, do toque dos sinos da igreja, dos cantares ao desafio, do presepe do sr. regedor, da missa do gallo, dos impérios do Espirito Santo!

«Ludovina, quando em noites de calmaria eu me encosto á amurada do navio, contemplando as estrellas do ceu, parece-me que estou vendo a luz dos teus olhos; e se por um momento fecho os meus, o teu semblante representa-se-me na imaginação tal qual como se tu estivesses ao pé de mim. É que tu estás sempre no men pensar de todos os dias e no meu somno de todas as noites.

«Ás vezes também tenho medo, quando o mar se ergue como picos, e que parece que o navio se vae afundar. Não é medo de morrer, que eu nunca tive medo da morte. E' medo de te perder sem ter podido cumprir a promessa que fiz ao partir. Tenho, porém, fé em Deus que heide cumpril-a. Assim que se acabar o contrato que fiz com o dono do navio, -- e já não falta muito tempo -- heide estabelecer-me em terra, com as economiasinhas que faço. Então poderemos reunir-nos. Até lá, reza por mim... etc, etc. » O resto da carfca eram expressões que devem ficar entre os namorados, e a costumada ladainha das visitas e saudades para parentes, adherentes e conhecidos.

Terminada a leitura, bisada n'alguns pontos, o auditório rompeu em exclamações:

-- Ah! consola ouvir aquellas coisas!

-- Oh! cabeça que tanto ajunta!

-- Coitadinho! que tristeza ver sempre ceu e agua!

-- Eu cá morria de aborrecimento !

-- E eu de medo !

-- O que posso jurar é que nunca, por nunca ser, ouvi ler uma carta assim! Sem a gente querer, sem ser nada comnosco, achamo-nos a chorar!

Com effeito, durante a leitura todos os olhos, por mais de uma vez, se marejaram de lagrimas, e mais de um suspiro foi abafado. Alguma menina e moça teve imminente um accesso nervoso. A nevrose não é somente apanágio das damas da alta sociedade: pelos campos também se generalisou o contagio.

Que de remordimentos do bicho da inveja não houve n'algumas d'aquellas creaturinhas por não receberem cartas similhantes!

-- Muito feliz é a Ludovina! murmuraram vários lábios vermelhos como os grânulos da romã.

O auditório dispersou-se. Ludovina foi colher quantas flores pôde encontrar no seu quintal e no quintal de algumas visinhas. Dirigindo-se ao enfermo pae, disse-lhe:

-- Vou enfeitar com estas flores o altar de Nossa Senhora do Soccorro, e accender-lhe dois cirios.

-- Vae filha, que dia de festa é hoje para nós todos, respondeu o tio Lourenço, em tom alegre, por ver a alegria de Ludovina.

-- Dizeis bem, Lourenço, dizeis bem. E com vossa licença vou deitar um boccado de focinheira de porco na panella, accudiu, lá da cosinha, a senhora Anninhas.

XXII

Volvâmos a saber de José Tesoura.

Este heroe, depois da pronuncia de Luiz, e do seu embarque, não cessara de dizer nos circulos onde se achava :

-- Vocês não queriam acreditar no que lhes eu dizia! Vejam agora lá o que diz a justiça. Pois se eu o tinha visto vir do matto! Ora tanto o Luiz de si para si se achava criminoso, e tanto com a pulga na orelha andava, que antes mesmo de sair o mandado de prisão pôz-se ao fresco. Pudera! O caso não era para graças : um degredo para as pedras negras, por toda a vida, não é sorte muito para invejar se, isso não é. Cego fosse eu, se não faria como elle.

Mas, a despeito do processo, e das affirmações do José Tesoura e quejandos, o publico não o olhava bem.

Pelo contrario, cada vez mais o detestava. Evitava-o muita gente; nenhuma casa de folga o recebia.

Desesperava-se o rapaz, e era então um nunca acabar de má lingua, ou tesouradellas.

Pois as raparigas? Essas nem pintado n'um painel queriam vel-o !

Protestava vingar-se. Mas como podia elle vingar se de uma população inteira? Só lançando lhe fogo, o que lhe não occorreu, em boa verdade se diga.

Se a sociedade praticasse sempre assim, por certo que o numero dos maus diminuiria. Não ha peior punição do que o despreso geral. Nem de outra forma se conhecem os escolhidos e os reprobos.

O que era fora de toda a duvida é que José, aparte mesmo o seu natural pendor para a maldade, mostrava nutrir de ha muito um ódio concentrado contra Luiz; e d'aqui nascia o desejo de o comprometter.

José Tesoura requestara, em tempo, Ludovina, que nunca correspondeu. Ora acontece aborrecermos o homem amado pela mulher que amamos, embora elle não seja a causa do nosso despreso.

Nunca o Tesoura perdeu o rasto á caça, como em termo venatorio se diz ; e espreitava occasião opportuna para fazer certeira pontaria.

E o que lhe havia segredar o demónio, depois da partida de Luiz? Tornar a fazer seu pé de alferes á Ludovina !

Quem passasse, de noite, pela Canada do Paraizo, encontraria um vulto de homem, com a carapuça abotoada debaixo do queixo, para esconder o rosto, de cajado na mão, ora passeiando vagarosamente, ora parando espequeado aos muros e ás sebes que orlam o caminho, com visíveis mostras de quem rondava aquelles sitios como espião, ou fazia horas para alguma entrevista secreta. Era elle !

Qual o seu intento, com todo este apparato amoroso, se tinha a previa certesa de ser baldado?

Devemos presumir que queria assim enxovalhar a reputação de Ludovina.

Sempre haveria alguém que acreditasse em relações occultas. E desbotada a honra da mulher, cedo ou tarde, como reparação, que mais não tosse, talvez elle obtivesse a sua posse.

Ludovina observára as rondas de José Tesoura : foi mais um espinho para a sua coroa de martyrio, porque bem comprehendêra os intentos d'aquelle malvado.

Mas, como reagir, ou castigar similhante insidia?

Occorreu-lhe o queixar-se ao cura, ou ao regedor, mas José Tesoura era porventura homem que respeitasse os conselhos do seu pastor espiritual ou temesse a força, aliás negativa, da auctoridade rural ?

Uma tarde, que Ludovina, á porta da sua casa, tasquinhava linho; e a senhora Anninhas, sentada sobre um cesto barreleiro, fiava uma farta estriga de estopa, passou o regedor.

-- Deus as ajude, disse elle.

-- Muito boas tardes, senhor regedor, responderam tia e sobrinha.

A sr.a Anninhas egueu-se, metteu o fuso na roca, tirou esta da cintura, pôl-a sobre o cesto, e foi dentro buscar um tamborete, que ofifereceu ao regedor.

-- Não precisava esses incómodos. Eu não me demoro .

-- E que se vossemecê não tivesse pressa...

-- Queria dizer-me alguma coisa? atalhou o regedor.

-- Sim senhor, queria.

Então vá dizendo para ahi, que eu sou todo ouvidos.

-- Como vossemecê sabe, a Ludovina está compromettida para casar com o Luiz. Elle acha-se ausente, sabe Deus aonde ; mas isso não faz nada ao caso. Seja a gente pobre de bens, mas rica de honra, não é verdade? Quando o rapaz torne a procurar Ludovina, ha de encontral-a pura, como de antes.

-- Mas quem é que duvida d'isso?

-- Não sei se alguém duvida: podem vir a duvidar; porque, saberá vossemecê, ha alguém que está empenhado nisso. Aquelle José Tesoura de má morte, que parece que veiu a este mundo só para dar trabalhos, ronda-nos todas as noites a porta, como a querer inculcar que é para fallar com Ludovina.

-- É um grande desaforo!

-- Lembrava-me que talvez o sr. regedor podesse mettel-o a bom caminho...

-- Que o mettessem no inferno é que elle merecia. Só assim deixaria de nos apoquentar. Emfim, verei o que faço ; fica por minha conta o sr. José de todos os demónios.

E levantando-se saudou as duas mulheres, e proseguiu no passeio.

Isto passou-se exactamente na véspera do dia em que chegou a carta do Luiz, cuja leitura ouvimos dos formosos lábios de Ludovina.

XXIII

Ao tempo em que se passa esta historia, ainda no logar não havia fonte. Mais claro, havia um arremedo de fonte na própria nascente, no interior do matto.

Uma pia de pedra tosca recebia a agua, que jorrava do pendor de uma collina ; e uma calhasinha de madeira substituía a bica ou torneira.

Preciso registrar aqui uma particularidade d'aquella agua. É de uma frieza glacial, e com propriedades tão digestivas, que basta beber-se uma vez da agua para ella abrir o fastio mais pertinaz.

Esta fonte era também ponto de cavaco, e muito azado para colloquios amorosos, á sombra de copadas arvores, que a taes idyllios convidavam.

Na mesma tarde em que a sr. Anninhas transmittiu ao regedor os seus receios acerca do procedimento de José Tesoura, este, por mera phantasia, que não para fazer serviço á família, tirou se dos seus cuidados, e foi para a fonte. Lembrou-se que ali devia encontrar algumas raparigas; e que, como a fonte era do domínio concelhio, não n'o podiam esbulhar do direito que tinha de permanecer n aquelle local.

José Tesoura calculara bem. Na fonte estavam algumas mocetonas, e um ou outro rapaz. Elias não lhe davam muita corda; mas no fim de contas elle sempre pertencia ao sexo másculo.

-- Ó Thomasinha, dizia elle a uma das cachopas que tinha a jarra á bica, não me dirás tu a razão de, nunca olhares para mim senão com esses olhos assim|de reve2?

-- Ora! eu mesmo estou morrendo por olhar para ti!

-- Tomaras tu que te eu quizesse ...

-- Não sei para quê ! Passo perfeitamente sem companhias d'essa laia.

-- Olha, acolá está a Francisca que já não diz outro tanto. Quando pode não perde occasião de me deixar ver uma migalhita da sua perna. E que perna de grossa que a magana tem!

-- Forte toleirão ! exclamou a rapariga a quem fora dirigido o motejo.

-- Ora o castigo que havia de vir esta tarde para aqui !

-- Ah ! vocês fazem se finas? Pois viro me então para a Narcisa, que ó boa rapariga.

-- Faça favor de não me gastar o nome, ouviu ? acudiu uma cachopa, d'estas de faca e calhau, que não precisam cuspir nas mãos para descarregarem um valente socco, seja em quem fôr.

-- Pois sim, meu amor, não te gastarei o nome; mas has de dar-me um beijo. E dispunha-se a traduzir a phrase em factos.

-- Esteja quieto! Se vem para cá com os seus atrevimentos dou-lhe com esta jarra na cabeça!

N'este comenos subiu a encosta um rapagão, bem apessoado, musculoso, com um barril ás costas.

O cão, um bom cão de íila, já nosso conhecido, de que José se fizera acompanhar, desconhecendo o recemvindo, avançou, ladrando para elle.

-- Chama para lá o cão, ó José, gritou o rapaz.

O cão continuou ladrando e a avançar, sem o Tesoura o reter. O rapaz repetiu :

-- Então, chamas ou não para lá o cão?... Ah! não chamas? Pois espera que eu já o sirvo.

Poisou o barril no chão, pegou n'uma pedra, e atirou-a tão certeiramente ao cão, que o animal retrocedeu, a bom ganir e a coxear de uma perna.

José Tesoura exclamou :

-- Cego seja eu se te não quebrar os ossos.

-- Anda para cá se queres que te faça o mesmo que fiz ao cão. Bem te preveni primeiro. Fica sabendo que te não temo.

José, correra sobre o rapaz, mas teve que parar e agachar-se para não receber em cheio na cabeça uma pedra que fendeu o ar impetuosamente.

Era bom atirador de pedras o rapaz, como o são muitos habitantes das aldeias, os quaes, em pequenos, fazem aturado estudo de tal jogo.

Acudiram as mulheres, para obstarem a que se originasse d'ali grave desordem; e tanto pediram, que a tempestade acalmou.

Quando o acontecimento chegou aos ouvidos do regedor, este disse comsigo :

-- O demónio não tem emenda! É preciso tiral-o d' aqui quanto antes.

Tinha rasão o regedor. Nem á mão de Deus Padre o rapaz se emendava. Já no cérebro lhe estavam em ebulição novas proesas!

XXIV

Em quanto duraram os cirios offertados a Nossa Senhora do Soccorro, Ludovina repetiu as suas visitas á ermida, umas vezes acompanhada pela tia, outras sósinha.

Achava élla poucas todas as acções de graças que dava pelo salvamento do seu noivo ; assim como se não cansava de implorar da Virgem a futura protecção para elle.

Uma tarde arranjou novo ramilhete de flores, e dirigiu-se para o Soccorro Se Ludovina fosse mulher que receiasse ciladas, e que por isso lançasse em redor de si olhares prescrutadores, teria, sem duvida, enxergado lá ao longe uma cabeça, que apparecia e desapparecia por detraz de um cômoro coberto de silvedo, n'um oiteirinho a cavalleiro da planicie onde se acha a ermida.

Aquelle cômoro dominava o caminho e a ermida. Os olhos pertencentes áquella cabeça movediça denotavam claramente a espionagem em que se occupavam.

Mas quem mal não tem, em mal não cuida, diz o rifão : Ludovina seguiu tranquillamente para a sua piedosa romagem.

N'este dia o parocho, já nosso conhecido, sairá para a caça. Era um amantíssimo devoto de Santo Huberto; e, honra lhe seja, não deslustrava a confraria. Destinara a caçada para o matto; mas, por causa de um coelho, que se transviara acossado pelos cães, e que, segundo a regra, elle não devia abandonar, o caçador descaiu para as bandas do Soccorro.

A tarde, de bella que estava, tornou-se repentinamente sombria, triste, ameaçando muita chuva.

Em breve as nuvens acastellaram-se no espaço ; o vento soprou rijo, e grossas gottas de agua cairam onde e onde, como prenuncio de farto chuveiro.

Ludovina quando entrou na ermida, encostou a porta, por causa do vento. Depois de ornar o altar entregou-se ás suas orações do costume.

E tão profundo era o seu recolhimento, tão alheia estava das cousas mundanas, que não ouviu abrir-se subtilmente a porta e tornar a cerrar-se. Não ouviu também o quasi indistincto rumor de uns pós atravessando lenta e cautelosamente as lages da ermida ; não viu que um homem a contemplava entreabertos os lábios n'um sorriso cynico.

Ludovina acordara alfim do ascético extasi ; e quando ia a erguer-se para se retirar, pareceu lhe ver desenhada na parede uma sombra humana.

Estremeceu, ergueu-se resoluta e olhou para traz.

Qual não foi o seu pasmo ao ver ali, de pé, immovel como a estatua do escárneo, José Tesoura!

Coração de ha muito afFeito ás torturas da adversidade, alma retemperada para as lutas da vida, Ludovina não succumbiu, com quanto comprehendesse a cilada. Recuoa um pouco, para guardar a conveniente distancia ; e com voz levemente trémula, perguntou :

-- O que quer aqui?

-- Vel-a resar... respondeu ironicamente José.

-- Nem sequer respeita a casa de Deus!

-- Ora essa! pois que mal faço eu?

-- Não vem aqui por bom, de certo.

-- Vim com as melhores intenções ... Porque segue a borboleta a luz da candeia ?

-- Cale-se, e saia.

-- Tem sorte o Luiz ... Cá, tão longe, ainda ha quem reze por elle !

-- Que lhe importa ? Eu estou no meu direito de rezar por quem eu muito bem quizer.

-- Mas quem sabe? continuava o rapaz sem attender ao que lhe disse Ludovina. Talvez não seja por muito tempo ...

-- O senhor é um malvado ! Saia, saia immediatamente, que eu quero fechar a porta.

-- O Luiz, e tu, e todos, vão ver como se achavam ... enganados.

-- Então, não ouviu que saísse?

-- Ludovina, ha muito que deves conhecer-me. Eu não vim aqui por divertimento. Bem te vi tomar este caminho; e por isso te segui. E' desnecessário esse palavriado para mim.

-- O que pretende fazer? não se retira d'aqui?

-- Não!

-- Saio eu então.

E a rapariga dispunha-se a abandonar a ermida, mas José Tesoura collocou-se-lhe na passagem.

-- Deixe-me passar.

-- Perdes o tempo ! e avançou para Ludovina.

Ludovina correu para junto do altar como que a refugiar-se sob o manto de Nossa Senhora.

José Tesoura, parando ao pôr o pé no primeiro degrau do altar, disse :

-- De que te vale o resistir-me? Não pódes resistir-me, bem sabes. Agora és minha...

-- Oh ! infame que tu és !

-- Nem Luiz, nem o regedor, nem o cura, nem a própria Nossa Senhora te valerão.

Ludovina velou o rosto com as mãos e julgou-se perdida, ao ver que aquelle homem nem a própria divindade respeitava. A situação era horrivel, com effeito.

José Tesoura, com a physionomia incendida pelos mais abomináveis sentimentos, exaltava-se gradualmente. Quem o encarasse estremeceria de horror.

-- É hoje completa a minha vingança, proseguiu elle. Perdido por um, perdido por mil. Nunca quizeste ceder aos meus rogos; cederás á minha força. Esta ermida está aqui isolada, no meio d'estes descampados como sem affectos está a minha alma. Se gritas, ninguém te ouve ; se tentares fugir, os meus braços de ferro segurar-te-hão. Não resistas, pois, que o que por ora é paixão, e sede dos gôsos que me tens negado, dentro em pouco poderá ser furor. Não precisa muito para que uma nuvem de sangue me cegue a razão ; e, uma vez desvairado, não sOu mais senhor mim! Eu ardo como fogo em brasa. Treme do meu furor, treme Ludovina.

-- Não temo as suas ameaças. Quer matar-me?

-- Não me ateies o fogo!

-- Mate-me; embora! morrerei, já que o seu anjo mau assim o quer, mas não lhe hei-de pertencer nunca, juro-lh'o por a Virgem Santa que me ouve. O senhor matou o meu tio André, que muito é que me mate a mim !

E a filha do tio Lourenço, disposta, com effeito, para a consummação do sacrifício, olhou para a imagem de Nossa Senhora, como a rogar-lhe misericórdia, e continuou:

-- Mas não o fará aqui dentro, qae seria o maior dos sacrilégios. Deixe-me sahir, e descarregue então o golpe.

-- Não deixo.

-- Sahirei á força.

E ao dar os primeiros passos para fagir, os dois vigorosos braços de José Tesoura a detiveram, como se fossem duas correntes de ferro.

-- Não has de sahir ! vociferou elle, com os olhos injectados de sangue, a voz cavernosa, e com a soffreguidão do abutre assenhoreado da presa.

-- Ah ! ... Um grito dilacerante foi a exclamação de Ludovina.

De repente a porta abriu- se de par em par, e o cura appareceu com a espingarda apontada para José Tesoura, dizendo :

-- Larga, infame, ou morres!

O malvado não teve remédio senão capitular. Não podia reagir contra uma arma, e em mão de caçador mestre. Deixou Ludovina, que cahiu de joelhos, e mãos postas, murmurando uma prece á Virgem, que a salvara em tão arriscada conjunctura. Tão desvairado estava José, que se quedou á intimação do cura, como que chumbado ás lages da ermida. Ficara sem consciência do que era e do que fazia.

Sahira lhe tão pelo avesso o seu plano, tão de súbito lhe falhou, que atravez da sua paixão entrevia como que uma mão providencial a salvar Ludovina.

O cura continuou:

-- Não preciso explicações nenhumas. Sei tudo. Casualmente abriguei-me da chuva aqui á porta. Pareceu-me ouvir fallar cá dentro ; ao principio julguei enganar-me, porque não esperava que estivesse aqui gente ; mas como o tom de vozes foi por fim mais alto, appliquei o ouvido e percebi que se questionava. Estranho logar para questões, na verdade! continuei a escutar, conheci a tua voz, José, e a de Ludovina, e comprehendi todo o horror da situação. Esperava o momento asado para apparecer: eis-me aqui! Foi Deus que me enviou, para evitar um crime. Alma perdida que tu és ! Nem a presença da Santa Virgem te atemorisou! Que pretendias tu? Deshonrar aquella infeliz á viva força, ou matal-a se necessário fosse ! E não pedes a Deus, que te suma por esse chão abaixo ! Ou terás ainda cara de apparecer na freguezia ?... Vamos, sae d'este santo logar, que profanaste, excommungado por Deus que tu és, José, e por mim agora! E toma bem sentido no que te digo: eu vou acompanhar a casa esta rapariga; se o demónio te tentar para que nos sigas, e para nos fazeres qualquer partida de que és capaz, deixarei então de ser sacerdote para ser o instrumento com que Deus castigará a tua ousadia. Bem percebes, José?

José Tesoura sahiu da ermida, cabisbaixo.

O cura approximando-se de Ludovina, que de joelhos jazia ainda, suffocada em pranto, meigamente lhe disse:

-- Ergue-te minha filha. Nada tens agora a receiar.

-- Obrigada, senhor padre cura, murmurou Ludovina, levantando se. O senhor foi a Providencia que me appareceu.

-- Enganas-te. Não fui a Providencia ; fui o seu enviado apenas. As creaturas verdadeiramente religiosas como tu, Ludovina, jamais Deus as desampara nos maiores perigos... Já não chove: podemos partir.

Ludovina fechou a porta da ermida; e, ao lado do parocho, tomou o caminho de casa.

José Tesoura não lhes appareceu mais.

XXV

Precisamos volver atraz algumas horas antes dos acontecimentos que se acabaram de ler.

Na manhã d'aquelle mesmo dia, José fora chamado á presença do pae, que, com a voz repassada de sentimento e os olhos marejados de lagrimas, lhe disse :

-- Tantas fizeste, José, que afinal vaes pagar o novo e o velho. O pucarinho tantas vezes á fonte vae, que de alguma por fim lá cae.

-- Ora ! só se for pagar ! pagar o quê ? replicou José em afinação de zombaria.

-- Não zombes, José, que o negocio é para seriedade.

-- Temos a morte da bezerra, talvez?

-- Sim, levas tudo em mar de rosas! Olha que d'esta vez te sae o gado mosqueiro. Nunca attendeste aos conselhos de teu pae, nem aos prantos de tua pobre mãe. Mas eu não tenho a queixar-me senão de mim mesmo! Oh! que ninguém tal faça, ninguém! Criei-te com tanto mimo, que perdeste o severo respeito ao pae. Quem dá o pão dá o ensino: dei-te o pão, e não te dei o ensino ! castigou-me Deus pelas minhas próprias mãos ... Agora só me resta resignar-me arrependido. Mas não me dirás tu: a quem foste sahir assim tão mau? Tinhas a amizade, até o extremo, de teus pães, trabalhavas se querias; não te faltava que comer e vestir, graças a Deus ; que mais querias ? Sabes que já deram parte de ti para as auctoridades da cidade ? A cada quando deve apparecer ahi a escolta para te agarrar, e sentar praça por incorrigivel!!

-- Isso é o que havemos de ver! atalhou José.

-- José, José ! com os particulares saiste-te sempre a salvo. Não te mettas com quem governa, porque lá diz o ditado «com teu amo não jogues as peras.» Chamei-te para te prevenir d'isto, e para te pedir, quem sabe? Talvez seja a ultima coisa que eu te peça! que tenhas prudência. Tem-n'a uma vez pelo menos na tua vida. Se não querias ser lobo não lhe vestisses a pelle.

-- Deixe meu pae estar ; eu bem sei o que tenho a fazer.

E José sahiu do quarto do pae, com maus modos.

O mal aventurado pae é que mais uma vez se desenganou que não tinha império algum sobre o filho.

Chorou, coitado !

Era a consequência da vida de libertinagem em que impensadamente deixara tornar-se homem o filho!

Chegou a hora do jantar e José não appareceu. Á ceia repetiu-se a mesma ausência.

Ao notal-a, a mãe, por presentimento, lembrou-se de ir á caixa em que o filho arrecadava a roupa, e obteve um desengano terrivel. Ali só estava roupa velha. Não restava duvida de que José abandonara a casa paterna.

Mas fugir assim, sem ao menos receber a benção de seus pães, sem lhes dizer um adeus! Que desnaturado filho era este ?

O tio Ventura e a sua velha esposa sentiram partir-se-lhes o mais poderoso élo da cadeia dos seus dias.

Pobres paes! quantas vezes os filhos é que erguem a enxada que lhes cava a sepultura!

José Tesoura traçara um plano soberbo, lá no seu modo de ver as cousas pelo prisma fatal por onde as costumava ver sempre, e vinha a ser, que tendo de fugir para não ser preso, porque n'essa ratoeira é que elle nào cahia, era melhor ir acompanhado do que sosmho. Quer dizer, na queda arrastaria mais alguma victima, cruenta ou incruentamente, isso pouco lhe importava.

Sabia que Ludovina fazia repetidas visitas á ermida do Soccorro, e algumas vezes desacompanhada. Procurou sitio próprio para espreitar, como caçador matreiro, a occasião em que podesse impunemente lançarse á presa incauta e assenhorear-se d'ella, para a subjugar aos seus insanos caprichos, se nem mesmo á força o quizesse seguir.

Já vimos que nem sempre o vento é de feição para os malvados: e que José perdera a partida, com quanto suppozesse jogar com cartas seguras.

Depois das intimações do cura, desappareceu.

Ninguém no logar soube que destino tivera o rapaz ; mas a noticia do seu desapparecimento, longe de magoar, tranquilisou muitos espirites ; porque elle, com efíeito, como na phrase rústica se diz, era o rabo do demónio que andava entre aquella boa gente a urdir intrigas e a provocar questões.

As scenas da ermida ficaram ignoradas ; pois quem teria empenho em divulgal-as, abandonara, de vez, a freguezia.

Ludovina não as referiu a ninguém, para evitar mais este cruel golpe á familia. O cura asseverou-lhe que a casa seria vigiada, a occultas, para prevenir se qualquer tentativa sinistra do seu perseguidor, se bem que era natural elle não voltar á Candelária para não ser preso.

Sómente quem entrou no segredo foi o regedor, que ao ouvir a narração exclamou :

-- Felizmente que estamos livres d'aquella praga, peior que a do Egypto ! Sabe, padre, o que eu admiro? é como vocemecê teve deliberação para toda essa africanada!

-- Oh ! homem ! nas occasiões é que as pessoas se conhecem.

Tinha rasão o parocho.

Nos lances arriscados parece que a scentelha divina da inspiração allumia as mais apoucadas intelligencias, dando-lhes uma eloquência sublime. E é forçoso confessar; o cura fora sublime e eloquente na sua objurgatoria ao José Tesoura.

XXVI

São decorridos quatro annos sobre os acontecimentos descriptos no anterior capitulo.

Quem, n'aquella epocha, passava pela embocadura da rua da alfandega, na cidade, via ahi, constantemente, um pobre cego encostado na esquina da loja do Perone. Era ainda novo; não teria trinta annos.

Junto d'elle estacionava também um rapazito, o seu companheiro e guia das peregrinações que fazia quando o cáes estava sem movimento e era preciso n'outros pontos explorar a caridade publica.

Além dos indeléveis traços que a enfermidade imprime nas feições aos cegos, este apresentava uns ares pronunciadamente pesarosos, a testa avincada, sobreolhos franzidos n'uma perpetua contracção, como quem concentra os pensamentos, como quem vive mal com a sua própria consciência.

Seria um desgraçado, ou seria um malvado?

É o que mais adiante saberemos.

Um dia, no porto de Ponta Delgada, ancorou uma barca americana. Era uma baleeira, que precisava refrescar e reparar algumas avarias.

A sua tripulação, comquanto fosse, na sua maioria, composta de americanos e de inglezes, contava alguns marinheiros açorianos.

Vários d'estes marinheiros saltaram em terra, e tomaram direcções oppostas. Parecia que a cidade lhes não era estranha. Os que dobraram a esquina do Perone fallavam portuguez, em voz alta.

O cego, ao ouvil-os, exclamou:

-- Oh ! meu Deus ! eu conheço esta voz !

Os marinheiros pararam n'aquella altura, O cego prestando toda a attenção ao que elles diziam, repetiu comsigo mesmo:

-- É a sua voz, conheço-a perfeitamente: é elle, não ha que ver! Mas como se acha aqui? E dirindo-se ao seu guia:

-- Chico?

-- Senhor?

-- Quem é que está fallando ?

-- Eu sei lá! são uns homens... respondeu com certo enfado o pequeno.

-- Tens rasão. O que eu quero saber é que casta de gente é essa; insistiu o cego, muito nervosamente.

-- Parecem me assim como que a modos de marujos: trazem uns chapéus de oleado e umas botas, ai! que botas !

-- Viste se desembarcaram ?

-- Isso vi. Vieram n'um barco muito estreito... Se me não enganei chamaram-lhe canoa ...

-- É o que eu digo: não ha que duvidar; não é outro que não elle. Ia apostar que sei o rumo que elle leva. Pois irei na sua pista.

Assim monologara o cego.

A tarde ia já declinando. As nuvens percursoras da noite começavam de toucar a Serra d' Agua de Pau.

Os marujos metteram-se pelas tavernas, excepto um d'elles, que seguiu avante, cortando a Praça Velha.

-- Chico, disse o cego para o rapasito, os marinheiros foram todos juntos beber?

-- Não senhor, nem todos. Acolá vae um para os lados da cadeia.

Para esclarecimento direi que, n'aquella epocha, ainda as nossas prisões civis estavam nos paços do Concelho.

-- Vamos lá, Chico, atraz d'elle. Não o percas de vista, ordenou o cego ao seu pequeno companheiro.

O marinheiro, que dos outros se separara, tomou pela rua da Cadeia, rua da Cruz, rua da Canada, Santa Catharina e Ramalho fora. Via-se que tinha perfeito conhecimento da topographia da ilha, porque seguia o seu caminho sem inquerir de ninguém a orientação que devia levar. Nas pingadas lhe ia o cego e o guia.

O sol, com a sua rubra claridade dos formosos occasos do estio, desapparecêra além, na fímbria do horizonte. As aves, nos silvedos floridos, entoavam os harmoniosos trillos com que celebram a despedida do dia. O firmamento, sem luar, recamára-se de myriades de estrellas, que, embora dubiamente, projectavam uma certa claridade, a sufficiente para se distinguirem das arvores que bordam a estrada os viandantes que por ella transitavam. As auras nocturnas, tépidas e travessas, estavam perfumadas pelas hervas e pelos milhaes.

Uma esplendida noite !

O marinheiro atravessou os povoados -- E-elva e Feteiras -- , e, quando chegou á desembocadura da Canada dos Cabraes, em Candelária, virou para o norte, seguiu essa estrada e internou- se no caminho do cemiterio. Ao passar em frente do Campo Santo, consoante a denominação dos italianos, o marinheiro paroa junto da tosca porta de madeira gradada, atravez da qual mergulhou o olhar prescrutador. Ali se quedou n'um scismar profundo: tinha ficado como suggestionado.

Não ha, como aquelle, um lugar mais convidativo para meditações, mormente se lá jazem as cinzas dos nossos antepassados Sim, quem poderia, a taes horas e em tal lugar, dizer-lhe se das pessoas que ao partir deixara vivas, alguma ali dormiria o somno eterno? Não era medroso:

aquelle homem arrostara e defrontára-se muitas vezes com a morte, e todavia sentia se como que tomado de um certo pavor ao contemplar as cruzes que mal se viam por entre a relva que escondia o leito dos mortos!

O homem mais corajoso nos perigos do mar ou nosriscos da guerra, sente curvarem-se-lhe os joelhos ante aquelle silencioso e incomprehensivel mysterio da morte, sente como que alar-se lhe a alma para as regiões do desconhecido.

Depois, a imaginação voejando-lhe dos mortos para os vivos, o marinheiro, em solilóquio, murmurou :

-- E ella? Ainda esperará por mim?... esperar! não ! não podia ser !... Pelo menos não me terá esquecido ? é possivel. Amava-me tanto! -- E, como levado de uma resolução, continuou :

-- Vamos! Deus nunca me desamparou, por que nunca perdi a fé.

Metteu-se novamente a caminho, e enfiou-se pela Canada do Paraizo. Abeirado da casita do tio Lourenço, estacou, tremendo n'uma indizível convulsão. Olhou em redor de si, como que a observar se alguém o seguira ou o via ; e sentou-se nos degraus que precediam a porta da casa, appendice d'aquellas pobríssimas habitações aldeans. Tinha andado mais de quatro léguas; estava extenuado de fadiga.

Então, novas duvidas, novas incertezas lhe salteavam o espirito ! O coração palpitava-lhe tão acceleradamente, que, dir-se-ia, estava a ponto de saltar-lhe da caixa do peito !

-- Cheguei, finalmente ! monologava elle. Mas, deverei bater, tão tarde? .. Não, não vamos darás pobres creaturas um tamanho sobresalto... Sim, é melhor es perar que amanheça... Que amanheça! não pode ser: não posso apparecer de dia aqui, que me reconheceriam ! E se me reconhecessem, não faltaria quem me fosse denunciar. . O melhor é bater: o susto do primeiro momento hade passar... Mas, quem me aíiiança que elles ainda aqui moram?... É horrivel isto ! não sei o que deva fazer ! ...

E soltou um pungente gemido, tão pungente, que faria vibrar de enternecimento o mais insensivel coração. Com a cabeça appoiada nas mãos, e os cotovellos descançados nos joelhos, ali se quedou o marinheiro profundamente absorto na corrente dos seus desencontrados pensamentos.

XXVII

Não perdêra Ludovina o habito de seroar até deshoras; porque, dizia ella, o somno a abandonara, e, sem dormir, não podia estar no leito.

Quando o marinheiro se sentara á sua porta, instantes havia que a saudosa rapariga se recolhera á cama; mas ainda se não tinha reconciliado com o somno. Por isso, não lhe escapara aquelle gemido que o marinheiro soltara ; e para logo ergueu a cabeça do travesseiro a fim de melhor se certificar do que ouvira. Caindo tudo outra vez em silencio, julgou ter-se enganado ; mas por um secreto presentimento, por um d'estes incomprehensiveis mysterios, que ao espirito humano não é dado prescrutar, disse Ludovina de si para si :

-- Por força que foi um gemido de pessoa afflicta, o que eu ouvi. Diz-m'o o coração.

Saltou cautelosamente para fora do leito, e acercou-se da porta para escutar.

Como o mais leve, o mais imperceptível rumor, quebra a mudez da noite, Ludovina percebeu o aspirar e o respirar de alguém.

-- Não me enganei, disse ella.

Dirigiu-se ao leito da tia e murmurou:

-- Minha tia?

-- O que é, filha? interrogou a tia Anninhas, sobresaltada por a sobrinha a ter accordado assim, sem ser seu costume.

-- Não se assuste ...

-- Mas o que é, dize?

-- Está por força alguém ali sentado á nossa porta, alguém que soffre...

-- Tens coisas! atalhou a tia. Como é que sabes isso?

-- Ouvi um gemido, e chegando-me á porta distingui perfeitamente o resfolegar de uma pessoa. Quem sabe se é por doença?

-- Pois espera, que eu vou saber o que é.

E vestindo-se, abriu subtilmente a janella, á qual assomou.

Foi então que o marinheiro despertara do seu longo scismar, pondo se em pé, e exclamando :

-- Ludovina !

O som d'esta voz fora direito ao coração de Ludovina, que, julgando sonhar, ficou perplexa, e como que aturdida.

A sr. Anninhas, sabendo melhor dominar a sua commoção, correu á porta.

A este tempo já a lua banhava o ambiente com o seu explendor, e por isso foi a única luz, que, ao principio, allumiou esta scena.

O marinheiro, aberta a porta, precipitou se no interior da casa.

Ludovina então, certa de que era uma realidade e não sonho o que ante seus olhos se passava, voou a lançar-se nos braços do recemvindo, que era Luiz, como o leitor, por sem duvida, já conheceu de ha muito Os primeiros minutos decorreram sem que nenhum dos personagens ousasse quebrar o silencio.

Cingiram-se n'um tríplice amplexo ; e as lagrimas de alegria, que tão doces são, misturaram-se em fervorosas expansões.

São estas também das taes commoções que se sentem, mas que se não sabem transmittir ao papel.

A tia Anninhas foi quem primeiro rompeu aquella commovente mudez, perguntando :

-- Mas como é que se acha aqui, Luizinho? Mal pensava eu, ao deitar-me ha pouco, que despertaria para o ver!

-- Isso são contos largos.

-- Luiz, és tu Luiz; és tu emfim ! Oh! sim, tenho-te em meus braços! não n'o posso duvidar!

O tio Lourenço ao ouvir todo aquelle barulho, aliás de jubilo, por mais que indagasse o que era, não obti nha uma resposta: tentou sair do leito, mas ia sendo victima da sua anciã. Afinal foram todos ter com o bom do velho enfermo, que chorou de alegria quando foi abraçado por Luiz, a quem estimava como seu próprio filho.

Depois, ajoelhando ante Nossa Senhora das Dores, á qual a tia Anninhas tinha já accendido um cyrio, Ludovina proferiu uma grata e jubilosa prece.

Luiz e a sr. Anninhas imitaram n'a.

Concluidas que foram aquelias acções de graças rendidas com a mais entranhada fé á Virgem das Dores, Luiz perguntou :

-- Agora vamos cá a saber uma coisa, Ludovina... Nunca recebeste carta minha?

-- Uma apenas, respondeu ella, ainda mais senhora de si, porque a pozera em excitação febril a inesperada alegria que lhe aureolava a alma, ha tanto tempo cruciada de magnas e saudades.

-- Uma só? oh! mas ainda assim foste mais feliz do que eu, nunca me foi ter á mão carta tua.

-- Nenhuma! Como póde isso ser? Escrevi-te tantas, que nem sei atinar com a conta.

-- É por isso que eu vinha /com o coração attribulado, pelas mais cruéis incertezas. Se souberas o que eu tenho passado ! Nem me quero lembrar de tal!... E tu, Ludovina, tu, meu amor, como tens vivido? e a sr.a Anninhas?

Derramaram ainda algumas lagrimas, silenciosa mente, as duas mulheres.

-- Deus sabe como, não é verdade? continuou Luiz..

-- Se é!

-- Querem que lhes diga o que eu mais receiava? o que me apparecia sempre, qual phantasma a perturbar me o somno ou a amargurar-me as vigilias? Era a malvadez do endiabrado José Tesoura! Figurava-se-me vel-o, como sombra ruim, a perseguil-as a ambas!

A sr. Anninhas trocou um significativo olhar com Ludovina ; e esta respondeu :

-- Não nos fez mal.

-- Ha muito que não sabemos d'elle. Desappareceu da freguezia vae para quatro annos.

-- Que Deus lhe perdoe. Não eu, que não posso...

O dialogo foi interrompido por uns toques mysteriosos, que deram na porta.

Estremeceram todos, permutando entre si olhares anciosos. As mulheres não sabiam o que ajuisar. Luiz lembrou-se das garras da policia, interrogando-se, mentalmente, se o teriam reconhecido quando desembarcou, e se viriam em seu seguimento.

Tornaram a bater.

A indecisão geral continuava. A falta de melhor expediente, a sr. Anninhas, por mimica, dispunha-se a abrir a janella. Ludovina, fazendo-lhe signal para que esperasse, murmurou baixinho para Luiz:

-- Esconde te primeiro: depois apagarei a luz.

Antes, porém, de executarem estas cautelas, ouviu-se uma voz, coada pela fenda da porta, dizer:

-- Luiz, abre; não tenhas receio.

-- É a voz de José Tesoura! exclamou em surdina Luiz, empallidecendo. Oh! é bem elle, que a sua voz feriu-me a alma como folha de uma faca!

-- Meu Deus! balbuciou Ludovina, abeirando-se do noivo.

-- Parece o demónio ! sentenciou a tia Anninhas.

Revestindo-se de todo o seu valor, e dominando as primeiras impressões, Luiz poz-se em pé, affagou a sua faca de marinheiro, e em voz alta e segura disse:

-- Abra a porta, sr.a Anna. Eu sei ser homem. Para mim não ha já perigos. Os maiores da vida experimentei os eu.

Ludovina tremia como a vara de um álamo açoutado por lufadas de rijo nordeste.

-- Não sei se deva... objectou a tia, dominada por visiveis convulsões de susto.

-- Abra, já lhe disse; abra a porta, repetiu Luiz, pondo-se em guarda para todas as eventualidades.

XXVIII

Com effeito a porta abriu-se, e a figura de José Tesoura assomou no limiar, tateando os umbraes, como quem marchava por entre trevas.

Recuaram todos aterrados. Dir-se-hia que a mão do acaso inopinadamente lhes deparara no regaço de Íntimos júbilos, o génio do mal, encarnado em José Tesoura ! A impressão que lhes causou foi de repulsão, em consequência do transtornado das suas feições : haviam-lhe encanecido os cabellos, crescido as barbas, descarnado os contornos maxilares; o rosto tornárase-lhe livido; as orbitas eram dois circulos denegridos, e os olhos, embaciados como a lua empanada por opaca nuvem, não tinham brilho: havia perdido a vista.

O cego da esquina do cães era o José Tesoura.

Bem avaliava elle a situação em que fora collocar aquella gente; por isso, ao conhecer que estava dentro de casa, apressou-se em dizer:

-- Não se assustem. Já não posso fazer mal; não foi o anjo mau que me aconselhou a que viesse aqui. Oh! não sou já o mesmo homem...

E todos continuavam perplexos. Não se atreviam a articular uma palavra. Julgavam que teriam de encarar, e porventura de luctar, com um terrível algoz, e viam diante de si o homem ferido pelo dedo vingador da Providencia que havia estampado n'aquelle cadavérico rosto, o stygma do castigo!

-- Não fujam de mim! proseguia o cego. Reparem nos meus olhos. Não têem luz ! Levei na mocidade a invocar a cegueira: com ella me castigou Deus. Ah! e tanto mais desgraçado sou eu, quanto é certo que os meus olhos, que nunca tiveram lagrimas de compaixão para as desgraças alheias, também não têem hoje lagrimas de resignação que me sejam conforto na própria desgraça. E chamando por acenos, continuou:

Luiz, Ludovina, sr. Anninhas, tio Lourenço, digam-me alguma coisa, fallem-me, tenham compaixão de mim... eu bem sei que a não tive para com vocemecês ; mas não ó compaixão de José Tesoura que têem agora, é do pobre cego ...

Ludovina, cujo coração não aninhava ódios, approximou-se de José, e, pegando-lhe na mão, tentou fazel-o sentar em um tamborete.

-- Sente-se aqui, sr. José, disse ella com inflexão de voz que denotava profunda commoção, originada por tantas e tão desencontradas sensações.

José Tesoura, ao sentir o contacto d'aquella mão tão pura, quanto era manchada a sua, agarrou-a com phrenesi, e deixou-se cair de joelhos, dizendo:

-- Perdão, Ludovina, perdão! Deixe-me de joelhos agradecer-lhe o haver se compadecido da minha des graça, que eu bem conheço que se compadeceu... Oh! não receie o contacto do criminoso. Os anjos não se maculam. Diga que me perdoa; quero primeiro ouvir da sua bocca o meu perdão, para depois pedir aos outros que também me queiram perdoar. Bem vê que estou castigado por Deus... Castiguem-me embora tambem os homens, que isso pedirei eu; mas não me negue o seu perdão, Ludovina...

Ludovina tentara desviar a sua, das mãos do cego; este não lh'o consentiu.

Luiz possuia egualmente uma alma sensivel. Na fortuna ou bem estar de qualquer malvado, repulsa-o-ia, repugnando ao sea coração de homem de bem a minima transigência com aquelle ; todavia, quando esse malvado era ferido pela adversidade, e fora tocado tão fatalmente com a mão vingadora da justiça divina, e que chegava a conhecer õ toque como merecido castigo dos seus erros e dos seus crimes, como acontecia com José Tesoura, então Luiz, condoido e compassivo por Índole, não se dedignava de perdoar também.

Approximou-se do cego e disse-lhe:

-- Ergue-te, José. Ludovina perdôa-te, como eu te perdoo.

O cego cobriu de beijos as mãos dos dois amantes.

A sr. Anninhas, e o tio Lourenço sentiram as faces banharem-se-lhes por algumas bagas de pranto durante esta commovedora scena. Ludovina e Luiz ajudaram José a sentar- se.

O cego chorava. Eram talvez as primeiras lagrimas que elle vertia !

-- Agora sim! exclamou elle. Agora já choro. Deus louvado ! Oh ! como fazem bem estas lagrimas ! Parece que uma agua divina me acalma o fogo em que eu ardia... e... possa emfim dizer que ha um Pae do Ceu misericordioso ; porque vejo a luz do arrependimento alumiar a minha alma...

Luiz, Ludovina, a tia Anninhas e o tio Lourenço que conheceram tão de perto José Tesoura, tinham, como vulgarmente se diz, cabido das nuvens ao ouvirem aquella inopinada contricção. Custava lhes a acreditar na sinceridade d'ella.

-- Mas como adivinhaste que eu tinha chegado á ilha, se a pessoa alguma eu fallei ou me dei a conhecer? indagou o marinheiro.

-- Não adivinhei. Estava no meu posto, ao canto do Cães, esperando que as almas bemfazejas me dessem alguma esmola para matar a fome de amanhã...

-- E não tendo tu vista, como podeste conhecer me ?

-- Quando passaste por ao pé de mim ias fallando, e eu conheci a tua voz. Tão poucas vezes a tinha eu ouvido !

-- E o sr. José logo desconfiou que elle vinha ver-me, e seguiu-o, não é verdade? accudiu Ludovina, como que rejubilando-se porque o cego tivera uma idéa tão lisongeira ao seu amor de mulher constante.

-- Havia lá que duvidar! Pois aonde iria elle primeiro ? Ora eu, que de ha muito andava sob a pressão de um pensamento, logo que se offereceu ensejo para o realisar, não o perdi, e caminhei sem demora para aqui, auxiliado pelo meu guia, que por cautella mandei aífastar mal topei com a casa.

-- Esse teu pensamento, José, era o nosso perdão? replicou Luiz. É louvável...

-- Não era esse o meu pensamento principal, atalhou José. Um negocio mais importante me traz a presença de vocemecês, se bem que eu precisava do seu perdão ...

-- O que será? murmurou a tia Anninhas ao ouvido da sobrinha.

-- Escutemos, correspodeu Ludovina.

As duas mulheres perturbaram-se novamente. Desconfiavam de tudo e de todos, tão acostumadas estavam a encontrar espinhos onde julgavam vêr somente flores.

-- Luiz, continuou o cego, eu venho salvar-te...

-- Salvar-me ! repetiu Luiz admirado.

-- Sim, salvar-te. Por que não ?

-- Mas ...

-- Pois não fugiste como criminoso?

-- É verdade!

-- Não pesa sobre ti uma terrivel accusação, que te obriga a não apparecer n'esta terra, senão assim disfarçado, se não assim a occultas?

-- É também verdade!

Sentiram-se todos gelar com a recordação de tão sangrenta historia.

Nenhum d'elles se havia ainda lembrado de que era ephemera, como o meteoro, a felicidade que gosavam ; por que ao marinheiro, criminoso perante as justiças do paiz, era-lhe vedado pisar o solo natal, sob pena de naufragar nos escolhos dos beleguins e da prisão.

Pensaram de si para si que podia muito bem succeder, que José Tesoura houvesse inventado todo aquelle apparato de arrependimento e contricção, para mais fácil ser o embuste e a insidia ; e, uma vez senhor do segredo do regresso de Luiz, denuncial-o á justiça, exercendo assim de todos plena vingança, que é o apanágio das almas perdidas e condemnadas, como a possuirá Tesoura.

Mas Luiz, que via mais ao longe do que as mulheres, se foi assaltado também por igual pensamento de desconfiança, para logo o desviou da mente, lembrando-se que tinha José Tesoura em seu poder ; e que mais depressa o faria cahir feito pedaços a seus pés, do que o deixaria ser denunciante. Era assas desigual a lucta entre um cego e elle. Cortando as vacillantes conjecturas, objectou :

-- Então que pretendes fazer, José?

-- Vaes sabel-o. A isso cá vim, repito. Comprehendo as desconfianças. Descancem. Por Deus, que nos ouve e que decerto me inspirou, lhes juro que hei de salvar Luiz. Em breve poderás apparecer por toda a parte com a fronte erguida, e lavada de toda a mancha impura. Pui eu o causador das tuas infelicidades, dos baldões que soffreste ; é a mim que compete a tua rehabilitacão.

Estas palavras foram proferidas em tom de tanta verdade, que não houve mais duvidar d'ellas.

O arrependimento em um malvado não é caso virgem. Ás vezes uma fatalidade insanável converte o coração mais refractário aos bons sentimentos. E que a Providencia serve-se d'este meio para accordar os instinctos do bem na alma, que os recebera da natureza, mas que estavam dormindo o somno da inconsciência ou da ignorância.

XXIX

Dois dias depois na Praça Velha da cidade, estacionavam vários grupos de curiosos, sem duvida attrahidos por algum notável successo, pois que taes ajuntamentos não eram normaes. Assim succedêra: um cego, andrajoso, comquanto novo ainda, acabara de entrar na cadeia.

-- Um cego nos ferros de el-rei !

-- Nunca tal se viu !

-- O que aconteceria ?

Exclamava toda a gente. A explicação porém, só mais tarde se obteve.

O nosso conhecido José Tesoura começara de cumprir a promessa feita em casa do tio Lourenço. Largando, n'aquella noite, Candelária, tomara o caminho da cidade, e logo que foram horas apresentou-se em casa do juiz de direito, a quem narrou fielmente toda a historia do assassinato do tio André. Aíigurou-se ao magistrado ser o caso um tanto extraordinário ; mas como prova das suas affirmações o cego pedia-lhe que tomasse nota dos nomes das testemunhas presenciaes de alguns dos factos que se ligavam com o da morte.

Jurára-lhe que Luiz estava innocente.

Observados os preceitos da lei, José Tesoura foi recolhido á cadeia e Luiz despronunciado.

O noivo de Ludovina, por tanto, não precisava de regressar ao navio, á sua vida do mar: podia apparecer na aldeia, em toda a parte, de fronte erguida, com satisfação dos homens, gáudio das mulheres e um indisivel jubilo da sua noiva.

Facilmente se imagina o alvoroço que este inexperado acontecimento causou na pequena povoação de Candelária.

O americano, como por antonomásia o vulgo designava Luiz, na sua proverbial tendência de estrangeirar as pessoas embarcadiças, foi alvo de milhares de perguntas com que o indigena desejava pascer a sua innata curiosidade.

-- O sr. Luizinho também foi engulido por qualquer baleia? perguntou uma senhora visinha, tão feia do corpo como do espirito.

-- Ora essa tinha que ver ! engulido por uma baleia, eu que estou aqui tão vivo, graças a Deus !

-- É que eu tenho ouvido contar, que já uma baleia enguliu um marinheiro, e quando a abriram encontraram-n'o vivo e são como um pêro, lá dentro...

-- Isso são historias da caroxinha. Também as pedras e as arvores fallaram...

-- Fallaram? Olhe, é coisa que eu ignorava.

-- Fallaram tanto como as baleias servem de morada a gente viva.

-- Diga-me cá, ó compadre : a America é muito longe? perguntou outra mulher.

-- Oh! se é!

-- Ahi está por que se levam annos para lá chegar.

-- E o navio em que o compadre navegava era muito grande?

-- Muito.

-- Assim, do tamanho de um boi?

O idolo da divindade egypcia, entre aquelle povo, serve de comparação para tudo que é de tamanho não vulgar.

-- Ó sr. Luiz, perguntou a seu turno um velho sapateiro da íreguezia, tenho ouvido dizer, que lá n'essa terra por onde vocemecê andou, as creancinhas não faliam como nós ; é verdade ?

-- Certamente.

-- É uma admiração! Logo de pequeninas... E os homens são como nós ?

-- Então como haviam de ser ?

-- É que lá a pequena esteve a ler um livro em que se dizia, que na America os homens tinham só um olho ...

-- Historias! ...

O que se vê d'este cavaco é que tão bons geographos, e tão versados em historia eram uns como os outros.

O marinheiro, inquieto, para se descartar de tantos naipes baldos ao critério de tantas perguntas, como remate do seu kalendario noticioso, disse:

-- Ora bem, eu tenho que fazer, mas lá vae por hoje ainda uma novidade que os fará ficar de boca aberta.

-- O que é ? o que é ? informaram-se anciosamente alguns curiosos.

-- Fiquem vocemecês sabendo que quando n'esta nossa terra é dia claro, lá na America ó noite escura.

-- Pois o sol não é o mesmo, e não allumia a um tempo por toda a parte ?

-- Qual historia ! Eu vou explicar o caso, para o comprehenderem. O saber não occupa logar. Imaginem que o sol é como um espelho. Quem está por diante vê-se n'elle ; quem se põe por detraz, vê o aço, em que nada se reflecte. Ora o sol nasce da banda da cidade. Nós que estamos aqui ficamos-lhe pela frente e por conseguinte do lado do lume do espelho, que nos dá luz. Vem o sol andando, andando ; e logo que passa para a banda dos Mosteiros, ficâmos nós pelo lado do aço, quer dizer, ás escuras. Assim, pois, para os que o sol vae apanhando na sua frente, é dia; para os que vão ficando na rectaguarda é noite.

Com respeito ao systema de Cupernic estavam todos na mais plena ignorância. Ainda ninguém lhes havia explicado os movimentos de rotação e de translação da terra.

Não menos ignorante das sciencias naturaes era Luiz, com quanto elle tivesse a ousadia de dizer aos demais circumstantes, que era bom o saber.

Como parenthesis direi que não ha mais parvo pedantismo do que aquelle que se apossa dos ignorantes que foram viajar. Julgam elles que o maré a agua lustral da sabedoria! E quando regressam á terra natal, os compatriotas entendem também, que pelo facto de uma pessoa se metter em um navio, fica logo contaminada do fogo sagrado. D'aqui provém o questionário em que entalam um pobre viajante.

Concluída a tarefa pedagógica, Luiz pôz-se a caminho da cidade, onde tinha deveres a cumprir.

XXX

As prisões da antiga cadeia eram mais propriamente jaulas para feras indomitas do que uns cárceres para seres humanos.

Aquella a que vou conduzir o leitor, pertencia ao pavimento inferior. O chão era térreo e húmido; as paredes denegridas e a claridade do dia a custo se coava pelas ferrugentas grades de uma esguia e microscópica janella. E,espirava-se ali um ar asqueroso, nauseabundo, mephitico.

Os quatro ângulos d'este compartimento estavam mobilados por tarimbas, resuúiando immundicie, onde sobre despojos de camas, e aos dois e aos três em cada tarimba, se viam estatelados vários presos.

Junto ao vão da janella havia uma espécie de officina, na qual trabalhavam dois dos presos fabricando pentes e botões de pontas de rez.

Acabara de abrir-se a porta de gradaria de ferro que dava ingresso para esta enxovia, e penetrou n'ella Luiz, que se horrorisou ao ver aquelle pestilento antro de homens.

Os presos não se moveram. Julgaram que mais um companheiro lhes mandava a justiça. Um criminoso de mais ou de menos, era para elles coisa de nenhuma importância.

Luiz procurou reconhecer um dos presos; mas sendo-lhe isso tarefa difíicil, por causa da penumbra do cárcere, perguntou :

-- Aonde estás, ó José ?

-- Aqui, aqui, acudiu o cego, que estava sentado na beira de uma das tarimbas.

-- Ah! já vejo.

-- Senta-te ao pé de mim. Nào temos outras cadeiras.

-- Como isto é pavoroso e horrivel! exclamou Luiz. E vive-se aqui? Oh! meu Deus, antes a morte!

-- Menos isso! atalhou um dos presos, em aparte. Na cadeia também se come e bebe. O que decididamente não tem graça nenhuma é a gente levar na cabeça com a maca do coveiro.

Que desgraçado! E era duplamente desgraçado, porque estava perdido para a sociedade e perdido para si.

Nem os horrores repellentes da prisão lhe tinham acordado n'alma os remorsos dos seus crimes!

Aquelle viver de communidade entre criminosos não fazia senão embotar mais os sentimentos, senão desenvolver os instinctos da perversão.

José Tesoura, pegando na mão de Luiz, disse-lhe :

-- Ha desgraças que vem para bem. A cegueira faz com que eu não veja o logar que tanto te impressiona. Mas dize-me: para que vieste aqui?

-- Para ouvir cousas que ainda ignoro, e que preciso saber. E para ver te.

-- Pois deveras, não me ficaste querendo mal? Tornou José, com visiveis mostras de contentamento. Fui a causa de levares tamanhos trambulhões !

-- Odiar-te? não. Lamento a tua sorte, que é peior do que ha sido a minha, porque é bem para lamentar a cegueira que te venda os olhos, e a cegueira do teu espirito quando te arremessaste na estrada do crime. E, além d'isso, nào te arrependeste tu? não me salvaste a mim? Se no fundo do coração ainda assim me restassem alguns laivos de resentimento, devias taxar-me de perverso, e com rasão. O passado, passado.

-- Oh! quanto essas palavras consolam! E o cego estreitava entre as suas a mão de Luiz !

-- Agora conta-me a razão que te levou a denunciar-te, salvando-me.

-- É que ao ouvir-te fallar quando desembarcaste, senti no coração um toque, segredou-me uma voz cá no intimo: «vae salvar aquelle innocente que tu perdeste». Foi sem duvida uma inspiração do céo, para, pelo caminho da expiação, chegar ao do arrependimento. E depois, disse eu commigo: «A liberdade de nada me serve, pois já agora eu não sou mais do que um cárcere. A vida ser-me-ha um enorme peso; porque, para não morrer de fome, preciso mendigar de porta em porta as migalhas do pão de cada dia. Emquanto que Luiz, innocente, sorrindo-lhe um futuro esperançoso, será feliz com a mulher que ama, e que é digna de ser amada.

Pouco a pouco os presos foram-se sentando uns, e outros approximando-se dos dois interlocutores. Havia-lhes chegado o faro de historia; tinham percebido que o recemvindo não era companheiro d'elles.

Luiz, admirando os raciocínios de José, retorquiu-lhe:

-- Mas sabes tu, que serás condemnado á morte ou ao degredo?

-- Sei, sabia-o. Por isso mesmo. Que me importa? Será mais completa a expiação ; e quanto mais depressa chegar a morte, mais se apiedará Deus de mim. Só a morte porá termo aos meus soffrimentos.

-- E dize-me : não te offenderás se te eu fornecer melhor cama, se te proporcionar melhor comida ?

-- Pois queres? Olha que vaes casar; pôde fazer-te transtorno... Offender-me, perguntas tu? Não me offenderei. Pelo contrario, é uma prova de que foi completo o perdão. Porém eu é que não devo acceitar, não devo consentir que faças sacrifícios.

-- Não é sacrifício, acredita. Quiz Deus que eu ganhasse alguma coisa e fosse feliz na vida que adoptei; e ainda estou rijo para o trabalho. Do pouco também se reparte. Não m'o acceites como esmola. Faze de conta que é de teu pae ...

José Tesoura não lhe deixou concluir a phrase. Agarrou-se ao pescoço de Luiz, a soluçar, dizendo :

-- Que feliz que eu podia ter sido com a tua amisade. Oh ! para que havia eu ter tão má cabeça ?

Luiz, commovido, encarou os demais presos ; e vendo-os boquiabertos ante aquella scena, porventura nova para elles! dirigiu-lhes a palavra assim:

-- Vêem vocemecês ? Eis o que é do agrado de Deus : o arrependimento dos nossos erros. Castigou Deus este homem, cegando- o ; Deus lhe perdoará, por que se arrependeu ; e dos arrependidos é a bemaventurança, diz a Sagrada Escriptura, como nol-o tem ensinado o senhor padre cura.

Depois de fazer sentar o cego, Luiz proseguiu :

-- Socega. Falta-me ainda saber o resto da tua historia, que todos ignoram. Lá no lugar ninguém mais soube de ti.

-- É verdade: desappareci por uma vez de Candelária. Escuta.

E fez a descripção d'aquella parte da sua vida, que é também ignorada do leitor, e por isso se vae narrar.

XXXI

Remontemos atrás uns annos, que assim é necessário, para sabermos o que fez n'este intervallo o José Tesoura.

Ha de o leitor lembrar se que o demónio do rapaz, quando melhorou das pauladas com que o tio André o mimoseára, dissera um dia á familia que partiria em certa madrugada para a cidade.

Com effeito, sob pretexto de ir á cidade, saiu de casa ainda noite escura, mas em vez de tomar pela estrada real, abicou para o caminho do matto, por onde se embrenhou, conservando-se bem occulto nas immediações do sitio em que o tio André costumava carvoar.

Raiara o dia ; viu chegar o pobre velho e começar a sua tarefa. Quando o Tesoura ia a sair do seu esconderijo enchergou ao longe, n'uma eminência do caminho, um vulto que, quando mais perto, reconheceu ser Luiz. Escondeu-se novamente.

Terminado o dialogo que o leitor conhece já, e logo que Luiz se retirou. José Tesoura saiu de entre os tamujaes e dirigiu- se para o tio André, pé ante pé.

As folhas secas, estalando debaixo dos pés, trahiram-lhe, porém, a cautella com que tentava marchar. O tio André ao aperceber-se do rumor, ergueu-se e disse para si :

-- Temos moiro na costa!

Como precaução para qualquer eventualidade o tio André ia a lançar mão do seu cajado, quando José Tesoura, dando um salto para ficar mais próximo, e com o intuito de surprehender o tio André no seu movimento, lhe atirou tão puchado talho de fouce, que logo abriu em duas a cabeça do pobre velho, que caiu, alagado de sangue, sem vida, sobre o carvão, fructo de tanto trabalho.

E o peverso Tesoura não recuou horrorisado ante aquelle cadáver; e teve animo de abrir, por suas próprias mãos, uma cova e de o sepultar ali, como quem enterra um cão !

Concluído o enterramento, fez desaparecer ainda o menor vestigio sanguíneo, e concertou bem os tamu jaes, e o solo que arvorara em cemitério. Em seguida retirou-se. José Tesoura conhecia perfeitamente todas as veredas, ainda as menos trilhadas d'aquelles mattos; foi tomando pelas mais occultas, andando sempre baixo para não ser visto ; e seguiu para a banda das Feteiras, cujos mattos entestam com os mattos das Cumieiras Ao saltar para uns pastas, viu, quasi ao pé de si, e sem o poder evitar, um rapazelho, filho do José Bezerra, o qual se achava encostado a um grande silvedo, onde se resguardava dos calores solares, e vigiava um rebanho de cabras, que mais abaixo pastavam.

José Tesoura, que não era homem de se acovardar ás primeiras, dirigiu-se para o rapaz, dizendo lhe :

-- Olá, por aqui hoje?

-- Viva o sr. Josésinho ...

-- Sabes de onde venho? perguntou, como estratégia, o Tesoura, para se certificar se o rapaz lhe podia vir a ser fatal.

-- D'aquellas bandas do carvoeiral. Bem vi vocemecê trepar o oiteiro.

-- Ah! viste?

-- Vi, sim senhor... Mas vocemecê diz isso com uns modos!...

-- É que eu não quero que me visses...

-- Se eu estava com os olhos abertos !

-- É preciso que faças de conta que os tinhas fechados.

-- Bem sei; é o mesmo que dizer que não devo dizer que vi a vocemecê, não é assim?

-- Exactamente. E toma muito sentido : se me constar que dizes a alguém que tinhas os olhos abertos para mim, dou-te cabo da pelle: bem sabes se eu sou capaz de o fazer ou não.

-- É capaz, é, sim senhor, confirmou o rapazelho a tremer, e com a convicção profundissima de que o Tesoura o mataria como quem mata um morcego, tal era a nomeada, n'estes assumptos, que elle gosava na freguezia.

Com effeito, o filho do José Bezerra nunca tugiu nem mugiu a tal respeito; e foi uma providencia aquelle encontro, porque depois o rapaz foi uma das testemunhas para o livramento de Luiz.

José Tesoura desceu ás Feteiras e tomou para a cidade; por isso lhe foi fácil provar que na cidade estivera aquelle dia.

XXXII

O que o nosso heroe fez e passou depois, sabe-se também.

Sigamos-lhe a pista quando, no dia do encontro e scenas da Ermida, elle, corrido, escorraçado, fixo o pensamento na fugida á prisão para o serviço militar, deixou proseguir seu caminho o cura e Ludovina, e se enfiou, passado o aguaceiro, pela estrada que de Candellaria conduz á Bretanha.

José Tesoura tinha uma tia, já entrada em annos, e viuva, n'aquelle logar: procurou a sua casa; mas a fama do heroe chegara até lá, e de conseguinte a recepção foi fria.

Pouco se demorou alli. Da Bretanha passou aos Fenaes de Vera Cruz, que distam cerca de setenta e cinco kilometros. Procurou este logar assim arredado de Candellaria para que a familia ficasse ignorando o seu viver futuro, e poder melhor escapar á hospedagem do quartel com que elle pouquíssimo ou nada S3anpathisava.

Não se sabe como chegou ao conhecimento de José Tesoura que n'aquelle sitio existia ainda um pequeno convento habitado por um egresso franciscano, parocho da freguezia.

Lembrou-lhe ir offerecer-se-lhe para servente; e o caso é que aconteceu o padre estar com falta de um servo e admittil-o sem repugnância : questão do acaso ; sympathisára com o rapaz Insinuou-se de tal arte o Tesoura nas boas graças do parocho, que a breve trecho depositava n'elle a maior confiança. E, ou porque desviado das más companhias, ou porque vendo-se entre gente estranha se distrahia com o trabalho, ou porque emfim acordassem n'elle alguns bons sentimentos que n'aquella alma perversa se não haviam totalmente apagado, mas sim adormecido, o que é um facto, um caso pathologico talvez a estudar, é que o rapaz achava-se como que bem comsigo mesmo ; vivia vida alegre e satisfeita n'aquella tranquillidade de um extincto claustro.

Todavia, bem depressa o aborrecimento lhe assaltou o espirito, e começou a desgostar-se por não ter um divertimento, uma distracção. Oh ! é que a sua alma, cedendo ao natural cançasso de tantas libertinagens, insensivelmente, como que adormecera n'uma espécie de torpor. Restauradas as forças, acordou e sentiu então, necessariamente, fatalmente, crucial-a o agudo espinho do remorso dos seus crimes. D'aqui o desassocego ; do desassocego o aborrecimento.

A este tempo uma outra embarcação pairava, como ave de rapina, nas proximidades da costa ; e uns indivíduos mal encarados, mas com boas palavras, apregoavam nos adros das egrejas, nas tavernas, nas casas dos barbeiros, por toda a parte onde havia ajuntamentos, que a ilha estava insuportável, que tudo encarecia espantosamente, que os salários eram cada vez mais mesquinhos, que os senhorios augmentavam as rendas das terras, que as fintas engordavam ; que o recrutamento ia ser cada vez mais apertado. Por outro lado citavam nomes de pessoas ricas que tinham vindo do Brazil e America, e as de muitas outras que por aquelles paizes estavam no goso das maiores fortunas.

E bem de ver; faziam propaganda de emigração; e o navio andava na colheita de passageiros clandestinos.

José Tesoura ao ouvir uma d'aquellas catecheses disse comsigo :

-- Com os demónios! que faço eu aqui n esta terra? Vou embarcar-me também. Ainda poderei vir a ser rico.

Quando á noite se recolheu ao seu pequeno dormitório a matutar n'esta idéa, atirou comsigo, mesmo vestido, para cima do leito ; e mirando todo o entravamento do tecto, como quem não tem somno, dizia:

-- O peior é que não tenho dinheiro para as despezas, e eu não quero ir como vão tantos outros pobres, que nem que sejam cães!... Não conheço aqui ninguém... O padre, esse coitado se lhe fallo zanga-se, porque já me era affeiçoado...

Cahiu outra vez em meditação durante algum tempo, sem se atrever, nem a apagar a candeia, que, pendurada de um prego, defumava a parede, nem a deitar-se entre a roupa da cama. De repente saltou no meio da casa, com visíveis signaes do contentamento que experimenta quem descobriu uma idéa luminosa, e murmurou baixinho :

-- Sim, pode ser; é mais crime ou menos crime. Perdido por um, perdido por mil. Não vejo outro meio de salvar-me.

Abriu um pequeno armário, tirou uma lata que continha pólvora; depois foi á dispensa buscar uma garrafa com aguardante ; poz-se a fazer um cordão bem comprido ; em seguida deitou uma porção de pólvora em uma tijella, foi-lhe deitando algumas gotas de aguardente, diluindo n'ella a pólvora, até fazer uma massa branda quasi liquida. Mergulhou n'esta massa o cordão, e foi-o pouco a pouco tirando e collocando solto sobre a mesa Não tem que explicar, isto era um rastilho.

Que pretenderia fazer aquelle improvisado pyrotechnico? Que planos alimentava aquella malfazeja imaginação ?

É o que vamos ver.

José Tesoura habitava no pavimento superior do conventinho. A porta da sua cella deitava para o estreito corredor, na extremidade do qual era a cella do reverendo. No pavimento ao rez do chão era a cosinha, a adega, o refeitório e um palheiro onde se guardava a comida da mullinha preta do padre.

O rapaz, conclaido o rastilho, abriu de mansinho a porta do seu dormi toriosinho, sahiu para o corredor, atravessou-o pé ante pé até ao dormitório do amo, a cuja porta escutou e espreitou pelo buraco da fechadura, depois do que disse comsigo :

-- Dorme a somno solto.

Em seguida voltou para o seu quarto, pegou na candeia com uma mão, e na outra tomou o rastilho, sahiu, atravessou o corredor em direcção á porta que dizia para o pavimento inferior e desceu a escada. Quando chegou ao pequeno claustro, dirigiu-se ao palheiro; e passou a candeia para a mão esquerca, da qual em um dos dedos, metteu o rolinho do rastilho ainda húmido da aguardente. Empregava a máxima cautella para abrir a porta d'aquelle compartimento, que ficava exactamente por baixo da cella do cura, quando ouviu rumor em cima, afigurando-se-lhe que eram passos.

-- O sr. padre acordou; julga que são ladrões. O mais acertado é que me não veja, raciocinou José Tesoura.

E chegando a candeia á altura da cara, para apagal-a, deu-lhe um forte sopro. Mas, o que é o destino ! Do morrão da candeia espirrou uma faisca que batendo no rastilho, o incendiou immediatamente. As chammas saltaram para a cara de José, que, com a dôr, não pôde suster um grito, deixando cair a candeia, e sacudindo o rastilho, para, com as mãos tapar o rosto inflammado.

N'este comenos abriu-se a janella do reverendo, o qual, julgando com effeito, ser algum ratoneiro, que pretendia dizimar-lhe o recheiosito da dispensa, se debruçou pela janella fora, de espingarda caçadeira em punho, exclamando.

-- Ó maroto, ó patife! espera que eu te arranjo... lá vae chumbo!

José Tesoura de toda a forma estava mal. Não tinha remédio se não dar-se a conhecer, para não levar uma chumbada e para obter soccorros.

-- Sou eu, senhor padre, sou eu, disse elle.

-- Tu José! exclamou atónito o cura.

-- Pelo amor de Deus venha o sr. padre cá abaixo com uma luz.

-- Que diacho terá acontecido ao rapaz ? disse comsigo o padre. E entrajando-se com uma japona comprida, accendeu uma vela, e desceu ao claustro.

Quando chegou junto do Tesoura perguntou-lhe :

-- Mas não me dirás tu o que fazes aqui a estas horas moitas da noite ?

-- Eu... eu... balbuciou o rapaz; sem saber o que respondesse.

-- Que tens nos olhos para os tapares... olha! a cara está negra ! ... Mas que cheiro a pólvora queimada... aventou o cura cheirando o ambiente e correndo com os olhos o claustro.

-- É pólvora, ó verdade, senhor padre ; e não posso abrir os olhos.

-- Tira lá as mãos... Com a breca! tens a cara toda queimada! Mas o que foi? o que fazias tu com pólvora aqui?

- Era uma experiência para matar os ratos que costumam vir á dispensa ...

-- Valha-te um burrico aos pinotes!... Que juizo ! que juiz o ! Anda lá para cima. Estás arranjado agora, meu palerma ! Uma queimadura nos olhos, com pólvora, pode ser a tua cegueira ...

-- Cego ! atalhou estremecendo José Tesoura.

E o padre guiou o rapaz para dentro de casa, onde lhe fez algumas aplicações, se bem que todas baldadamente. A inílammação e as dores augmentavam progressivamente.

No dia seguinte o reverendo fez conduzir José Tesoura a cavallo ao hospital da villa da Ribeira Grande, afim de ali ser convenientemente tratado. A pedido e recommendaçào do padre, no hospital cuidaram muito empenhadamente do enfermo. Curaram- lhe as feridas do rosto; mas não poderam dar lhe a vista. As pupillas e a córnea dos olhos ficaram inteiramente estragadas. Realisára-se a prophecia do padre.

Quando no hospital deram alta ao José Tesoura, foi que elle comprehendeu todo o horror da sua desesperada situação.

Como viver d'ali em diante ?

Não podia trabalhar, porque estava cego ; não se atrevia a regressar á casa paterna, porque havia saido d'ella sem a benção dos velhos pães, e porque não queria dar a satisfação de o verem assim, na sua freguezia. Preferiu, pois, esmolar o pão de cada dia, em logares estranhos.

Quer agora o leitor saber o fim com que José Tesoura fabricara o rastilho ?

N'aquelle mal formado coração não se haviam ainda apagado os instinctos da malvadez : aquelle cérebro não era capaz senão de conceber planos perversos !

Projectara lançar fogo ao palheiro para fazer fugir o cura, e aproveitar-se da confusão do incêndio para roubar o peculiosinho que elle arrumara n'aquèlle dia, em uma commoda !

Mas por suas próprias mãos castigou o premeditado crime.

Eis a phase da existência d'este heroe que ainda era ignorada.

Prosigamos agora na outra parte da historia.

XXXIII

Reatemos o fio á narração.

A sociedade rural, a despeito dos seus despretenciosos costumes, também possue e se regula j)or códigos de etiqueta, cuja observância não dispensa, sem embargo de taes códigos serem feitos nos moldes da singeleza. E as regras são tão seguidas, que se transmittem de pães a filhos, de geração a geração, sem a esponja do tempo as obliterar. O ritual nas visitas de casamentos, de pêsames, etc, etc; e nas demonstrações de amisade e consideração em outros actos da vida, é uma como que religião para os habitantes dos campos ; e aquelle que a menospresa não é menos censurado do que o cortezão que posterga as leis da sociedade palaciana.

Havendo o regedor felicitado Luiz pelo seu regresso á pátria, e pelo seu livramento, aliás de toda a justiça, o mancebo foi uma tarde visital-o.

O regedor, com aquella peculiar semceremonia das aldeias, recebeu a visita no balcão, que lhe ladeava a casa, transformando em sophás os parapeitos que o circundavam. Verdade seja que d'ali se descortinava um bello panorama. Ao nascente erguia- se alteroso o Monte Gordo, revestido do seu manto de verdura eterna: ao poente, estendia-se uma immensa planície, onde e onde matisada de arvoredo : ao sul espreguiçava- se o oceano, magestoso, estanhado, sereno, leão indomável muitas vezes, mas n'aquella hora tranquillamente adormecido.

Com proa de oeste, e velas alvas e enfunadas pela fresca brisa da tarde, singrava uma elegante barca sulcando as bonançosas ondas, como donairoso cysne.

Ao vel-a, Luiz cravara n'ella o seu olhar por alguns momentos, distrahindo-se da conversação com o rege dor. Duas lagrimas lhe assomaram aos olhos e lhe desceram vagarosamente pelas faces.

O regedor ao surprehender-lhe aquellas furtivas lagrimas, perguntou :

-- Tu choras, Luiz?

-- Chorar, eu? não senhor! respondeu o mancebo como que despertando de um leve somno.

-- Olha que as tuas faces molhadas desmentem essas palavras, volveu o regedor.

-- E verdade! tornou Luiz enchugando com a mão, como para se certificar, os olhos cujas ramas continham ainda uns pequeninos glóbulos lacrimaes, e proseguiu :

-- Chorava. É que o senhor não sabe : n'aquelle navio, que acolá se faz ao largo, e o qual reconheço perfeitamente, passei eu uma parte da minha vida...

-- Não comprehendo ! redarguiu o regedor. Pois acabas de me narrar os trabalhos que tiveste, os perigos que correste, as saudades que curtiste, e tens saudades d'essa vida? É uma contradiccão !

-- O senhor engana-se. Não é saudade d'aquella vida trabalhosa e arriscada o que eu sinto. Aborrecia a, detestava-a; porque a adoptara constrangido. O destino obrigára-me a abandonar esta terra, como se eu fora um facínora ; e se o corpo foi mar em fora, a alma cá me ficara com a mulher que eu tanto idolatrava. Porém, a convivência de annos com os meus companheiros de fadigas e perigos, fez-me encontrar, entre alguns d'elles, amigos sinceros e dedicados, os quaes lá vão outra vez, sabe Deus para onde; e, por certo os não tornarei mais a ver. A amizade contrahida no seio das tempestades, e em face da morte, é uma amizade fraternal. Não se apaga não se deve apagar esta doce luz no coração do verdadeiro amigo, que seria uma ingratidão. Ao vel-os, com os olhos do espirito, acolá, mas ainda relativamente perto de mim pela ultima vez, devia pagar-lhes o meu tributo de uma intima e muda despedida. Eis o que significavam estas lagrimas.

-- Dá-me cá um abraço, rapaz ! exclamou o regedor cingindo-o nos seus braços. Gosto d'isso ; gosto. Tens a nobreza de alma, que é a mais apreciável das nobrezas. A Ludovina apanha um marido de truz !

N'este comenos a porta do pateo sobre o qual se debruçava o balcão, abriu-se repentinamente, entrando por ella ima mulher, que pelo seu todo se conhecia ser uma pedinte. Vinha entrajada de farrapos. Os cabellos curtos, desgrenhados, hispidos, eram quasi brancos. Tinha a tez crestada pelos frios e soes, e enrugada pelos annos e magresa. Conservava as pálpebras quasi constantemente descerradas ; e os olhos n'uma immobilidade espasmódica. Arrimava-se a um pequeno cajado.

Quando entrou no pateo, quedou se, silenciosa, a olhar para o regedor.

-- Já lhe mando a esmolinha, disse elle entrando em casa.

Emquanto o regedor foi ordenar que levassem a esmola promettida, Luiz, machinalmente, examinou a pedinte, cuja andrajosa pobreza e fealdade de rosto sobremodo o impressionaram.

Monologava elle :

-- Estou como que a recordar-me das feições d'esta mulher, se bem que estão demudadas. Não me lembra quem seja; todavia, ia apostar que já a vi algures. Talvez que ella me conheça a mim ; vou perguntar-lh'o. Se esta mulher me está impressionando!...

E descendo a escada, abeirou-se da velha, encarou-a, e em tom amigável, perguntou-lhe:

-- A tiasinha conhece-me?

A pedinte depois de mirar Luiz, tez com a cabeça um sigual negativo.

-- A tiasinha diz-me quem é?

-- Que te importa ? redarguiu ella com o sobrecenho carregado.

-- Não se zangue por isso. Parece-me que a conheço, e não me recordo do seu nome..

-- O meu nome ! ...

-- Não tenho nome ! Sou a bruxa.

-- Bruxa! murmurou Luiz, pasmado por aquella recepção.

-- Viste o meu filho?

-- Não sei quem é o seu filho.

-- Não sabes?... não?... não?... Mentes!... mentes !

-- Mas quem é o seu filho ? diga-me !

-- O meu filho ?... o meu filho ! ... todos o conhecem... era muito mau! Fugiu um dia. Pois não viste o meu José !

-- José! atalhou Luiz como ferido por uma idéa repentina. E pensou : Será possível ? A mãe do José Tesoura!

-- Sim, o meu José, viste-o?

-- Ainda hontem.

-- Ah! então vou ter com elle... Já não sou bruxa ... Ah ! ah ! ah !.. .

E soltando uma estridente gargalhada, sahiu do pateo e desatou a bom fugir pela estrada abaixo, sem attender ao chamamento de Luiz e do regedor, que, n'aquelle momento, reapparecêra no balcão.

Quando Luiz, attonito, scismando, subiu a escada, o regedor perguntou-lhe :

-- Que succedeu?

-- Impressionou-me aquella mulher, cujas transtornadas feições julguei reconhecer; e fui perguntar lhe quem era. Porém, a pobrinha está louca !

-- Enlouqueceu com effeito a desgraçada!

-- E a mãe do José Tesoura, não é?

-- Sim, é.

-- Pensava eu que ella e o marido tinham já morrido.

-- O marido morreu ha dois annos definhado pelos desgostos continuados que lhe deu o filho. A pobre mãe, essa, coitada! perdeu a rasâo, quando José fugiu de casa, sem mais se importar dos pães.

-- Oh! meu Deus ! quantas victimas não fez aquelle infeliz !

-- A viuva do tio Ventura ficando sem parente algum que velasse por ella, vagueia por ahi, de estrada em estrada, de canada em canada, comendo as migalhas que lhe dão pelo amor de Deus, sem ella as pedir, e dormindo ao relento, ou quando muito, por caridade, n' algum palheiro. Além d'isso tem a monomania de ser bruxa; e o facto é que já todos a conhecem como tal. É inoffensiva, a pobre de Christo. Deus perdoe ao José, Deus lhe perdoe.

-- Diga-me o senhor: aquella mulher não poderia ser recolhida ao hospital?

-- Não.

-- Não! porque?

-- É que o nosso hospital é só de misericórdia para a gente de juizo. Se a doidice é incurável, põem o doido na rua, e a sociedade que o ature. Isto são modos de entender a caridade. E eu como não tenho a louca pretensão de endireitar o mundo, deixo correr as cousas, e limito-me a dar áquella desgraçada creatura as esmolinhas que posso, já que não estou em circumstancias de fazer mais nada.

-- N'esse caso, para não abandonar a mãe, que é victima, e cuidar do filho, que foi algoz, levai a-hei para minha casa. ...

-- Pois vaes fazer isso? acudiu o regedor.

-- Vou, sim senhor. Umas sopas mais para ella não diminuirão por certo o meu humilde celleiro. Mãe e filho, que só têem no mundo a sua infinita desgraça, ficam pertencendo á minha familia.

O regedor abraçou novamente Luiz; e, bastante commovido, não se envergonhou de enxugar as lagrimas que lhe borbulharam pelas nédias faces.

Ao ver o mancebo transpor os humbraes da porta da rua, disse elle de si para si:

-- Ah! que se os homens comprehendessem como este rapaz comprehende a vida e o mundo, por sem duvida que não teria tantas paginas negras a historia da humanidade !

E é bem verdade.

Cada vez mais se me arreiga a convicção de que os primeiros cuidados, e a máxima attenção da sociedade devem convergir para a educação da infância.

Não basta instruir, é indispensável educar.

Eu quizera ver exigir-se aos mestres e aos parochos diplomas da sua capacidade moral, como primeiro quesito para o bom desempenho d'esta sacratissima missão de mentores espirituaes da puericia.

XXXIV

No dia seguinte deu- se Luiz á procura da bruxa.

Ludovina e a tia Anninhas, ás quaes elle havia communicado o seu projecto, gostosamente por ambas applaudido, foram também em auxilio das pesquisas.

Andaram, procuraram, indagaram por toda a parte; ninguém lhes soube dar noticia satisfatória. Obtinham por única resposta: «A bruxa não tem poiso certo».

Depois de muito correrem, encontraram-se os pesquisadores á bocca da Canada do Paraiso, quando já regressavam a casa.

-- Souberam alguma coisa? perguntou Luiz.

-- A pobrinha não está na freguezia. Um homem, que veiu da cidade, disse-nos que a vira perto das Feteiras, esta manhã, respondeu a sr. Anninhas.

-- Vamos nós lá? propoz Ludovina.

-- O que? pois queres ir? replicou Luiz.

-- Porque não? Interessas-te pela sorte d'aquella infeliz; é quanto basta para que eu egualmente me interesse por ella.

-- Sempre generosa! sempre boa que tu és! Pois sim, sim, vamos por ahi fora. Na tua companhia parecer me-ha mais curta a estrada.

Meia hora depois estavam a caminho. A quem quer que encontravam iam pedindo informações.

Chegados ás primeiras casas das Feteiras, interrogaram uns pedreiros que trabalhavam n'uma construcção.

-- Sabem vocemecês dizer-nos se viram passar por aqui uma velhinha maltrapilha, que é conhecida pela bruxa? perguntou-lhes Luiz.

-- Sim, senhores, passou esta manhã ahi para a banda da cidade, respondeu um dos pedreiros.

Continuaram na sua marcha.

Perto da egreja repetiram a pergunta a um aleijadinho que costumava estar sentado a uma porta pedindo esmola aos transeuntes.

O aleijadinho informou :

-- Desde que amanheceu com a divina graça do Senhor, estou eu aqui n'este meu posto, e afianço que não vi a desgraçadinha. Pois a mim não me escapa vêr qualquer alminha de Deus que passe.

Luiz conferenciou com as companheiras.

-- Esta agora é que não é má! Os pedreiros viramn'a passar; o aleijadinho não viu! Como desappareceria ella no intervallo de um aos outros?

-- Talvez fosse por aquella Canada dos Vinte-e-Quatro abaixo, objectou a sr. Anninhas.

-- Não é provável ; no entanto vamos lá.

A meio da Canada havia uma palhoça, á porta da qual assomou uma mulher a quem Luiz perguntou pela bruxa.

-- Não é a viuva do tio Ventura, de Candellaria? se certificou a mulher.

-- Exactamente.

-- Sei aonde ella deve estar.

-- Ah ! sabe ? tornou Luiz com alegria, por obter emfim noticias certas.

-- Olhem, vocemecês vão por aquelle atalho ; passam aquellas terras de tremoços ; depois saltam um tapume a esta mão (era a direita); e perto da rocha, encostada a um combro de silvas, ha uma cafuasinha de palha. Lá hade estar a velhinha. Via-a passar hontem á noitinha e ainda não voltou, que eu saiba ou visse. N'essa cafúa é que ella tem por costume dormir e passar a maior parte do tempo.

Os pesquisadores agradeceram as informações e seguiram o itinerário indicado.

Quando chegaram ás visinhanças da cafúa, pararam; Luiz disse:

-- Ludovina, vae ver se a mulher está lá dentro. Se estiver, falla-lhe tu. As tuas palavras e maneiras hão de mais facilmente convencel-a a vir comnosco. Para a não assustar ficamos nós aqui desviados.

Era pequenina a cafúa ; mal lhe cabia dentro uma pessoa ; e não tinha porta, propriamente dita. Uma abertura dava entrada para ella.

Ludovina approximou-se, inclinou a cabeça, e viu ali deitada, mas com os olhos abertos, a mulher que procuravam, o que, por mimica, communicou aos companheiros.

A bruxa (tratemol-a assim, já que era por esta designação que o povo a conhecia) ao ver uma cara estranha, assustou-se e quiz sair. A donzella appareceu então diante da simulada porta, e imprimindo na voz um tom de ternura e carinho, disse :

-- Deixe-se estar, tiasinha; não saia. Não lhe faço mal. Quero somente fallar-lhe. Já me não conhece?

-- Não! regougou a bruxa.

-- Conheço-a eu muito bem. Quer escutar-me por um pouco? E Ludovina, para melhor fallar com a desgraçada inquilina de tão misero e acanhado albergue, poz-se meio de joelhos.

A bruxa quedou-se.

Sentira-se como que magnetisada por a donzella, que, n'aquella attitude, e com o seu rosto angélico, lhe pareceu a imagem de alguma santa, da qual não podia o olhar desprender.

-- Diga me: isto aqui é muito frio, não é verdade? continuou Ludovina.

A bruxa encolheu os hombros em signal de que não lhe importava o frio.

-- Não gostava mais de dormir n'uma caminha?... Olhe, eu sou muito sua amiga. Se quizesse vir comigo para minha casa, eu dava-lhe uma roupinha melhor, umas sopinhas quentes, uma cama... Não quer?... Faz mal. Nosso Senhor não fica contente se a tiasinha despresar o meu sincero ofFerecimento. Venha comigo, que encontrará em mim uma filha...

-- Uma filha ? não tenho filha ; o que eu tinha era um filho ... Aonde está elle ? atalhou a bruxa com um rapido lampejo de jubilo.

-- Ah! quer ver o seu filho?

-- Quero, quero.

-- Pois venha comigo.

-- Promettes que hei de ver o meu José?

-- Prometto.

-- Então vou comtigo, vou.

Ludovina, no maior contentamento, fez signal para a tia e para Luiz, de que tudo estava conseguido.

Saiu da cafúa a bruxa; porém, ao encarar com os outros dois personagens d'esta scena, desconfiou que lhe armavam alguma cilada, e, recuando espantada, deitou a fugir para o lado da rocha.

Ludovina indo atraz d'ella, chamava-a meigamente:

-- Venha cá, venha cá, não fuja; não lhe fazem mal. É minha tia e o meu noivo, que também são muito seus amigos, tiasinha. O' tiasinha.. .

A bruxa continuava a fugir na direcção da rocha; e tão abeirada estava já d'ella que Ludovina parou exclamando :

-- Oh ! meu Deus ! que vae ella fazer?

Tinha o nosso bom marinheiro previsto um desastre, por isso se dera pressa em correr, n' outra direcção, a fim de ir tomar a dianteira da velha, e de evitar algum desatino. A tia Anninhas seguiu para Ludovina.

Era mui alterosa a rocha; e no sopé lhe rebentav-a espumante o mar. Um despenhamento d'ali era inevitavelmente mortal. Ninguém chegaria inteiro ao fundo do abysmo.

E a louca continuava a fugir para elle!

-- Valei-lhe Pae do Céo! A desgraçadinha vae procurar a morte por suas próprias mãos ! supplicou Ludovina.

-- Luiz está quasi lá chegando... lá chega, terminou a sr.a Anninhas; mas não vae a tempo, não vae ! ... A bruxa cáe ...

A estas palavras as mulheres, vendando os olhos com as mãos, soltaram um grito afflictivo:

-- Ah!... Ludovina cairia no chão se a tia a não amparasse.

Luiz fechara os olhos para não presenciar o despenhamento, que por um triz não evitou.

Dirigiu-se depois para o sitio onde estavam as mulheres, porque se lembrou do assombro que isto lhes causaria.

As frias azas da viração que ali corria encarregaram-se de recuperar os sentidos a Ludovina.

-- Então, Ludovina! ó necessário animo, disse Luiz. O que não tem remédio, remediado está. Da nossa parte fizemos quanto pudemos para salvar aquella infeliz. Não foi da vontade de Deus; paciência. Devemos ter as consciências tranquillas.

-- Coitadinha! murmurava Ludovina.

-- Que morte tão horrível! secundou a tia.

-- E esta scena estava reservada para nós ! tornou aquella.

-- Não ha tempo a perder, é quasi noite, e, em pedaços ou inteira, não ha de a pobrinha ficar ali. Vão vocemecês andando para casa, e de caminho fallem a alguns homens que venham ajudar-me na tarefa que vou emprehender, qual é a de tirar da rocha o cadáver.

-- É melhor que nos vamos embora. Não tenho coragem de ver isso.

E as duas mulheres retrocederam no caminho de casa.

Luiz dirigiu-se para a rocha, que, felizmente, tinha uma vereda pela qual se descia para as vinhas, e que dava passagem até ao mar.

XXXV

Em casa das do Paraíso, no próprio leito da sr. Anninhas, via-se deitada uma mulher, cujo semblante era a fiel expressão do soffrimento, inculcando a completa ausência da saúde.

De um lado da cabeceira do leito estava um cirurgião, e junto d'este, de pé, Luiz. Do outro lado, Ludovina, com o maior cuidado, enxotava alguma mosca que indiscretamente tentava poisar no rosto da enferma. A tia Anninhas, sentada perto da janella, preparava fios de linho.

-- Então como acha v. s. hoje a doente? perguntou Luiz ao cirurgião.

-- Fraca, muito fraca, respondeu o interrogado.

-- Mas não escapará? balbuciou Ludovina, visivelmente perturbada.

-- Isso pertence a Deus, e a Deus nada é impossível. De mim, faço a diligencia, emprego os meios, pois a minha obrigação é luctar até final. Não vale desesperar por ora. O que de peior tem a doente contra si são os muitos annos, que são outros tantos inimigos do nosso corpo. Felizmente as feridas não são de cuidado ; e a febre não tem sobrevindo com grande força. Amanhã, terceiro dia, faz crise. Se for para declinar a febre, bem vae o negocio ; poderei então assegurar que a não levará Deus para si d'esta vez ainda.

Aquellas palavras eram pouco animadoras; e confrangeram os corações dos demais circumstantes.

O cirurgião continuou:

-- A queda devia ser mortal; mas a Providencia, estendendo a sua mão valedora, soube encurtar a distancia. Tenhamos fé. O que recommendo é o maior repouso. Continue a dar-se aquelle cordial; e nos intervallos as outras colheres.

Feitas as despedidas do estylo, o cirurgião saiu.

O leitor (estou a adivinhal-o), ficou lá dizendo de si para si. «Aquella mulher é a bruxa! pois escapa-se com vida de tão perigosissimo trambulhão, qual v. nol-o descreveu?» É justa a exclamação do leitor.

De feito, aquella enferma era a bruxa.

Só um milagre a poderia salvar, mas o facto é que escapou. Entre mil não se daria um caso similhante, como se vae ver.

O pendor da rocha era de alto a baixo entremeado de cannaviaes, e por isso aquella se chama a «rocha das canninhas».

Ora, quando a louca se despenhou d'ali, teve a felicidade de cahir sobre o primeiro taboleiro dos cannaviaes, ficando perfeitamente entalada entre as cannas.

Se bem que na queda ella percorresse uma altura nunca inferior a quinze metros, o choque não foi assaz violento; porquanto, estando a força impulsora na rasão directa do peso, e sendo extremamente descarnada a mulher, o seu corpo encontrou menos resistência ao bater no solo, e de conseguinte menor foi o choque que recebeu, attenuado além disso pelo quebramento do impulso, nas cannas.

Accudíra Luiz a tempo de prestar os soccorros que urgiam, já fazendo conduzir a bruxa para casa, já chamando o facultativo, que declarou não ter sido percuciente o desastre.

Ao ferceiro dia, conforme o cirurgião dissera, pronunciou-se a crise.

A febre começou a declinar : pouco a pouco as forças loram-se restaurando; e ao cabo de poucos dias entrou a enferma em convalescença.

Logo que o cirurgião a achou restabelecida, e conhecendo que as faculdades intellectuaes lhe tendiam a dilucidar-se gradualmente, aconselhou que experimentassem levarem-n'a a um encontro com o filho, pois não raro se colhe bom resultado de taes sensações, que a therapeutica recommenda.

O cirurgião e Luiz fizeram conduzir á cadeia a louca, obtendo a permissão de deixarem sahir para uma das salas o preso.

-- O senhor espere aqui com a doente emquanto eu vou buscar o José, disse Luiz ao ouvido do cirurgião.

-- Pois sim, vá. A mulher está socegada.

Luiz entrou no cárcere onde estava José Tesoura.

Depois de breve circumlocução preparatória, começou:

-- Dize-me cá, ó José, tens tido noticias de tua mãe ?

-- De minha mãe? suspirou o preso.

-- Sim, de tua mãe.

-- Estás brincando?

-- Fallo serio.

-- Queres endoudecer-me? Minha pobre mãe morreu.

-- Não ha tal.

-- Não morreu? asseveraram-m'o.

-- Enganaram-te.

-- Para quê?

-- Para te poupar um golpe ainda maior.

-- Maior! não entendo!

-- Ouve...

-- Mas...

-- Ouve-me, homem de Deus. É que tua infeliz mãe tinha enlouquecido...

-- Oh ! meu Deus ! prerompeu o cego convulsivamente.

-- Queres tu vel-a ?

-- Vel-a! Tenho eu porventura vista?

-- Desculpa. Não me lembrava. Quero dizer; desejas fallar-lhe?

-- E de que serve fallar com uma louca? Será maior o tormento para mim.

-- Não sabes? ella está lá em cima.

-- Aqui, na cadeia?

-- Sim. Eu e o cirurgião trouxemol-a de propósito para tentar um remédio. O cirurgião diz que se tua mãe te fallar e poder reconhecer-te, é possivel que uma sensação violenta lhe restitua o juiso.

-- Oh! se assim fosse... E permittem que eu saia d'aqui?

-- Permittem.

-- Então vamos lá. Como todo eu tremo !

Luiz chamou o carcereiro, que abriu a porta de gradaria de ferro e acompanhou o preso, guiado por Luiz, á sala aonde era esperado.

-- Tem prudência: trata-se da salvação de tua mãe, murmurou Luiz, fazendo sentar José Tesoura.

O cirurgião, que estava junto da mulher, pegou- lhe meigamente na mão e disse-lhe :

-- Sempre quer ver seu filho?

-- Quero, quero! retorquiu ella com vivacidade.

-- Vamos fallar-lhe.

-- Onde está elle?

-- A senhora naturalmente ha de desconhecel-o. Ha muitos annos que o não vê. Olhe, eil-o acolá.

-- Acolá? não é aquelle !

O cirurgião accenou a Luiz para que se desviasse.

-- Olhe bem: é o que está sentado.

A mulher levantou se, approximou-se de José, mediu-o com a vista, e por fim exclamou :

-- Não ... não é o meu filho ...

-- Veja bem, repare,

-- O meu filho tinha outra cara... tinha olhos... e este... não é o meu filho...

-- Falle-lhe, segredou o cirurgião ao cego.

José Tesoura cahindo de joelhos e pondo as mãos em attitude de supplica, balbuciou :

-- Minha mãe...

A bruxa estremeceu convulcionada, murmurando indecisamente :

-- Esta voz ! esta voz ! ...

-- Sou eu, sim, minha mãe... é a voz de seu filho que lhe falia... d'aquelle filho...

-- Não recorde o passado, recommendou o cirurgião ao ouvido de José Tesoura.

Os olhos da mãe illuminaram-se de uma celeste alegria. Aquella voz acordára-lhe a intelligencia ha tanto adormecida.

E palpando com as suas descarnadas mãos o macerado rosto do filho, como quem queria reconhecel-o pelos contornos, já que as feições não eram as mesmas, a bruxa disse :

-- Sim... sim... a voz é a sua, é a do meu filho, é... mas as feições? ai! as feições são estranhas ! ...

-- Parece-me que a curamos, commentou baixinho o cirurgião.

-- É porque eu envelheci muito... muito.

-- Falla, falla... oh ! consola-me ouvir-te fallar!

-- Sabe porque me desconhece ? ... Pois não vê estes olhos sem luz ? ... Estou cego ...

O cirurgião tossiu para recordar prudência.

-- Cego? atalhou a mãe, e encarando bem o filho, e cravando, como raios de luz, o seu olhar prescrutador nos mortos olhos do filho, bradou: -- É verdade, Deus da minh'alma cego ! ... Cego ! Mas, com vista ou sem ella, tu és o meu filho, não és?

E enlaçando com os braços o pescoço de José Tesoura, assim permaneceu momentos, que se não sabem descrever.

-- Que lhe parece ? perguntou Luiz ao cirurgião.

-- Está salva.

Foi, realmente, uma scena muito para commover até ás lagrimas.

XXXVI

Que alguns mezes mais se haviam engolphado na voragem dos tempos sabiam-n'o os camponezes pelo succeder de mais algumas luas novas, que outro kalendario não n'o possuem elles para os seus rústicos labores.

Estava-se no dia mais festivo para toda a cliristandade, o de Natal de Jesus.

Como que contrariando o adagio popular «Natal, atraz do lar» um sol esplendido banhava a terra com aquelle benéfico e suave calor, que tanto nos consola e anima em pleno inverno sobretudo quando um ar húmido, uma atmosphera constantemente nublada, um vento aspérrimo, nos tem enregelado os membros durante semanas consecutivas.

Um firmamento azul, sereno, limpido, como que até mais lúcido torna o espirito, mais exuberante a vida.

Os sinos da egreja repicavam alegremente, acordando os echos das devezas.

Entremos na casa das do Paraiso. Está desconhecida. Em vez de um único pavimento tem hoje dois; a família tinha de crescer. A mobilia também fora reformada consoante a mediania dos seus moradores.

Esta casa apresentava um aspecto festivo. Assim o aununciava o anormal movimento de pessoas que entravam e saiam, o vozear animado. Os ares jubilosos de todos os rostos, a folhagem e verdura que se alastrava na rua á entrada da porta; os ramos de flores por todos os cantos dos quartos, e umas colchas estendidas nas janellas.

A visinhança, em trajos domingueiros, debruçandose nas janellas e sentando-se ás portas dás suas habitações, dava evidentes mostras de que aguardava promettido successo. Os olhares de todos tinham por objectivo o lado da estrada que dizia para o sitio da egreja.

De repente varias vozes exclamaram :

-- Lá vem elles!

Com effeito, no ponto em que a estrada fazia uma espécie de cotovello, viu-se assomar um rancho de pessoas de ambos os sexos.

Outras vozes disseram :

-- São os noivos.

Eram Ludovina e Luiz, que vinham da egreja, onde haviam recebido o quinto sacramento em presença de um numeroso concurso de curiosos. Em certas aldeias o casamento de pessoas bemquistas é um acontecimento que sempre chama a attenção dos convisinhos, especialmente da parte terna do género humano, cujo desembargo do paço é o matrimonio.

Numeroso era o acompanhamento que vinha fazendo a corte aos noivos. Na frente caminhava a noiva, radiante de alegria e de formosura. As rosas do rosto tinham readquirido a sua antiga frescura; os lábios, o seu meigo sorriso; os olhos o seu habitual fulgor. Ludovina dava a direita á madrinha, uma rechonchuda esposa de um dos mais abastados lavradores da freguezia ; logo atraz Luiz conversava e ria com os padrinhos, apuradamente vestidos de panno preto ; um bom numero de individuos fechava o préstito.

A noiva trajava vestido de cassa de lã, listrado de cor de rosa e verde em chão cinzento claro, com um folho estreito orlando a saia, que tinha uma farta roda, que mal tocava no chão. Um lenço de três pontas, branco, de cambraia mui transparente e delicadamente bordado, lhe cingia o pescoço, cruzando se no cóllo, e rematado por um ramo de flores de pennas, feitas com grande pericia no mosteiro da Esperança. Na cabeça em vez de véo, tinha um pequeno lenço de filó branco bordado, formando laçada debaixo do queixo, mas passando por detraz das orelhas. Apertava-lhe a cintura uma larga fita de seda verde assetinada, em lavores, atada sobre o bico do corpo do vestido, e cujas pontas compridas ora cahiam por entre os canudos da saia, ora fluctuavam a sabor da viração. Calcava sapatos de pellinha doirada, presos com um nastro de seda cor de violeta, de pequeno salto, baixos, deixando ver uma meia tão bordada, que através d'ella se percebia perfeitamente a cútis rosada. Nas orelhas balanceavam-se umas grandes arrecadas de ouro, de mui trabalhada filagrana. Pendente de um grosso cordão de ouro, enlaçado em umas poucas de voltas ao pescoço, cahia-lhe sobre o formoso seio, entre a abertura do lenço, um rosicler também de ouro de lei. Em uma das mãos trazia um ramo de florinhas naturaes ; na outra um lenço bordado, com as pontas cabidas.

O noivo vestia calça e casaco, ao qual n'aquelle tempo davam o nome de quinzena, tudo de panno preto; collete de fastão branco ; camisa de dianteira bordada por Ludovina ; gravata feita de estofo do vestido da noiva, como era estylo ; chapéo de Braga, abeiro ; e um valente guarda-chuva de seda verde- garrafa, tendo por castão uma mão de osso fino. O guarda-chuva é um atavio indispensável n'estas solemnidades.

Os demais personagens trajavam similhantemente.

De todas as casas por onde passava o acompanhamento caia uma chuva de flores desfolhadas ; e soitava-se a saudação :

-- Vivam os noivos!

Cada visinha vinha á rua trazer á noiva um pires ou taça com trigo, que a madrinha e os padrinhos iam guardando.

Chegados a casa, os noivos viram-se assoberbados por um diluvio de flores.

A noiva teve um formidável assalto de abraços e de beijos, dos parentes, amigas, e visinhas. O noivo ia ficando com o braço deslocado, pelos innumeros apertos de mão.

A casa foi invadida por muitas pessoas que davam parabéns, e levavam offertasinhas de trigo.

Este ceremonial de trigo é o augmento dos bens de fortuna com que a sorte ha de mimosear os cônjuges.

Por isso toda a gente porfia em augmentar o celleiro nupcial.

Passada a azáfama dos cumprimentos, a voz da sr.a Anninhas abafou o borburinho da conversa dizendo :

-- Meus senhores, para a mesa. Quem for servido de jantar comnosco que entre para aquelle quarto.

Entraram effectivamente, mesmo algumas pessoas que não estavam a coberto do rifão: «a boda e a baptisado não vás sem ser convidado», e tomaram assento em volta de uma comprida mesa, sobre a qual um abundante jantar provocava os irriquietos appetites, os cubiçosos olhares dos gulosos commensaes. E manda Deus que a verdade toda se «diga : as gallinhas guisadas, os perus recheados, os gordos leitões, as alcatras rosadas, os enormes pratos de arroz doce, os cangirões de vinho, tudo, sofíreu uma tal derrota, que uem ceara pela qual houvesse arrastado a sua aza devastadora o matta-vaccas , que é no dizer da gente dos campos, o vento rijo do quadrante do noroeste.

Como era natural, o nosso bom regedor e não peior sujeito, o padre cura, alli estavam occupando os logares de honra, que de jure lhes pertenciam n'aquelles convívios.

Emquanto a primeira auctoridade do sitio não ergue brindes, ninguém mais deve fazel-o. O regedor, por isso, ergueu-se, empunhou o copo, e bradou :

-- Bebo á saúde dos noivos, em nome nos quaes aqui hoje nos achamos reunidos.

-- Viva ! responderam todas as vozes.

O ragedor proseguiu :

-- Faço os mais sinceros votos para que a nossa Ludovina e o nosso Luiz tenham tantas venturas como as que para mim eu poderia desejar, são dignos d'ellas, e Deus que sabe premiar os bons, ha de abençoar esta união.

O cura ergueu-se, e por sua vez, proferiu:

-- De novo os abençoo, mens filhos. E com a destra fez a cruz do ritual.

Todos beijaram a sua própria mão como que recebendo a benção transmittida pela mão do sacerdote.

-- Oxalá que vocês tenham tantos filhos quantas são as pessoas que estão, a esta mesa, terminou jovialmente o regedor.

-- Appello eu ! acudiu uma chronica tia, que tendo contado os convivas, encontrara exactamente a fatídica somma de quatorze.

-- Para a serra similhante agouro! accrescentou um convidado.

-- Crédo ! eu te esconjuro ! a Virgem Maria os livre de tal desgraça ! O sr. regedor sempre tem idéas ! diziam em coro vários dos circumstantes.

O regedor, que não era homem de preconceitos, riu á tripa forra, emquanto o cura fingia sorrisos por entre um chuveiro de colheres de arroz doce com que se se atarefava.

Ora é preconceito muito enraizado entre o povo d'aquellas terras, que quando uma mulher dá á luz quatorze filhos varões, o decimo quarto é necessariamente lobishomem!

E em ditos galhofeiros continuou o banquete, terminado o qual, todos se ergueram e rosaram mentalmente. O cura pronunciou :

-- Seja pelo amor de Deus.

-- Amen, responderam todos em coro.

Diz o rifão : «Comida feita, companhia desfeita.» Foi o que succedeu depois do banquete.

CONCLUSÃO

O tio Lourenço, coitado, entrevecera completamente.

Tolhidos os membros, hirtos os músculos, acorrentara-o o rheumatismo ao leito como se fora com grilhões chumbados á lage sepulchral.

-- Pelo menos, dizia elle evangelicamente resignado, resta-me a consolação de que, já agora, estou prompto para a minha derradeira romaria. Não me apavora a idóa da morte, porque deixo a minha querida filha bem amparada, louvado seja Deus ! Quando o Altissimo for servido julgar os actos da minha vida, pôde chamar-me á sua misericordiosa presença. No fim de contas, de que serve a vida a um entrevado? Só para martyrio dos que o cercam e estimam ; nada mais. Eu já não sou senão um tronco podrido e carunchoso. E a velha arvore rouba o sueco ao terreno que devia ser occupado pela arvore nova. A nova ó a esperança. A velha nem para carvão serve. O que ó uma grande fortuna ó a paz da consciência ; e essa, louvores ao Senhor, não me escasseia.

Assim era.

Poucas semanas decorridas, cerram-se ao tio Lourenço as pálpebras para o seu somno eterno, com a serenidade do justo.

A morte d'este honrado e bemquisto camponez causou uma geral consternação : foi o seu melhor epitaphio.

Os corações de Ludovina e de Luiz soffreram dilacerante golpe ; todavia, o pungir da saudade que lhes ia n'alma, era compensado pelos gosos ineffaveis do devotado amor que um ao outro consagravam.

Podemos dizer que viviam felizes. Bem o mereciam.

A mãe de José Tesoura nunca mais deixara de ser a bruxa para o povo. Os baptismos e as crismas populares são indeléveis.

E-ecuperada a rasão, a bruxa quiz recolher-se á cadeia, para acompanhar o filho ; e seguiu-o depois para um dos nossos presidies africanos, onde, não muitos annos decorridos, a morte encerrou a ambos o derradeiro capitulo da sua atribuladissima existência.

Não houve rasões, nem rogos que demovessem a pobre mulher, a bruxa de Candelária, como a sua infelicidade a tornara celebremente conhecida por aquellas terras, de ser a companheira inseparável do desditoso filho.

Seres gerados n'um laço santo, inquebravel, eterno, o pó do mesmo campo mortuário os quiz confundir para sempre.

É que para as mães não ha sacrifícios, nem martyrios: ha somente dedicação espontânea, desinteressada, inimitável, única : ha o dever sagrado innato ao seu amantissimo coração.

O amor de mãe consubstancia todos os sentimentos nobres, generosos, sublimes.

FIM

POST-SCRIPTUM

Do casulo das hypotheses ainda não havia saido o projecto da visita régia ás nossas possessões insulares do Atlântico, quando aprouve á Augusta Soberana, a Senhora D. Amélia, acolher complacentemente a dedicatória d'este livro.

Á mingua de outros merecimentos, o meu trabalho tem o da originalidade na idéa e na forma, porque, no seu género, é o primeiro que se publica em referencia aos Açores, se excluirmos alguns contos e algumas impressões de viagens, publicadas posteriormente á sua factura. Sem ser moldado no romantismo de Carlota Brante, a celebre escriptora ingleza, a Bruxa é positivamente um romance de costumes michaelenses copiados do natural.

A offerenda, sem embargo de ser modesta, teve então uma significação patriótica sob o ponto de vista local: -- proporcionar a Sua Magestade o ensejo de conhecer pela tela descriptiva algo da ethnologia de uma das formosas plagas, que, como verdadeiros oásis, o viajante encontra a meia derrota entre o velho e o novo mundo. Mas, como que antecipando- se á leitura do livro, Sua Magestade, impulsionada pelo sen alevantado espirito e íinissimo tacto de Soberana da sua epocha, vae a breve trecho, mar em fora, certificar-se de visa da existência das preconisadas bellezas com que a natureza tão prodigamente dotou os dois archipelagos dos Açores e Madeira, cuja verdadeira descoberta parece realisar se agora, ensinando assim Sua Magestade aos continentaes portuguezes aquelle caminho já tão conhecido de... estrangeiros: um eloquentissimo exemplo, em boa verdade, que hade ficar insculpido a lettras de ouro nos fastos insulanos.

Se este livro poderia considerar- se um preito de documentada informação, antes da visita da excelsa Soberana á ilha de S. Miguel, agora, depois de effectuada essa visita anciosamente esperada, servirá de recordação, afíirmará que n'aquelles rochedos, que se alteiam florescentes, orgulhosos e impávidos, em pleno Oceano, pulsam hoje, como pulsavam outr'ora, como pulsaram sempre, uns corações leaes de lidimos portuguezes amantes da mãe pátria e dos seus Reis.


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TextGrid Repository (2022). Portuguese Novel Corpus (ELTeC-por). A bruxa : Edição para o ELTeC. A bruxa : Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001B-D8BA-E