URBANO LOUREIRO
A Infâmia de Frei Quintino
(ROMANCE DUMA FAMÍLIA)
LIVARIA CHARDRON, DE LÉLO & IRMÃO,
EDITORES. E. DAS CARMELITAS, 144. PORTO
PRIMEIRA PARTE
I
Pelas trevas
Era por 1830, uma noite carrancuda e tenebrosa, como tôdas as noites de janeiro, cm que espessas nuvens negras, impelidas por um forte vento sul, rolam pesadamente nos ares, não deixando entrever sequer a limida fosforecência duma estrêla.
O Douro, cujas águas, escuras e profundas, eram mais volumosas e mais rápidas do que de ordinário, marulhava, como que remordendo indecifráveis palavras de raiva e de impaciência, cachoando de encontro aos pequenos, estorvos, que se opunham à sua passagem nas proximidades das margens.
Não chovia, mas o terreno estava encharcado, o relâmpago iluminava fugitivamente, o vento gemia por entre os galhos nús das árvores e assobiava pelas cornijas das tôrres.
Adivinhava-se uma noite de temporal pegado.
Eram os prelúdios do terrível concêrto, que dentro em pouco a natureza principiaria de executar no espaço, desferindo não sei que estranha música nas cordas de água, que se precipitariam das nuvens, por entre o ribombo do trovôo e os formidáveis arrancos da borrasca.
Pouco mais seriam de seis horas da tarde -- ou da noite, para falarmos com mais verdade.
Na margem esquerda do Douro, completamente abandonada por aquele tempo e àquela hora, no logar onde vem abrir um beco estreito e sombrio, fronteiro ao monte em cujo cimo se alongam ainda hoje as vastas ruínas do Seminário, estava atracado um pequeno barco descoberto, dò prôa e pòpa aguçadas, em que as mulheres de Avintes costumam trazer as suas canastras acuculadas de bróas de milho «à cidade».
A todo o comprimento do barco estendiam-se dois remos.
Um barqueiro, de carapuça e camisola de lã, fumava plácidamente à ré, tendo o cuidado de tapar o lume, fazendo concha da mâo que segurava o cigarro, certamente para que de longe não se suspeitasse que estava ali alguêm.
Fumado o cigarro até onde era possível fumar-se, aquele homem arremessou a ponta ao rio, tirou a carapuça, coçou a nuca, tornou a cobrir-se, e com uma certa impaciência tentou mergulhar a vista nas trevas, em direcçào ao caminho de travessia, que desembocava ali perto.
Tinha decorrido meia hora.
E rosnava entretanto:
-- Ora o raio da minha vida !... Se eu agora tinha de passar aqui a noite por um raio de tempo assim ! Não ! dessa é que êles estáo livres ! Só com um raio de diabos ! Inda s'aquele raio do Neto viesse, sempre bordejávamos até casa ! mas nem êle nem o frete !... Má raios partam o diabo do inferno, que não hei-de ter d'oitras fortunas em lôda a minha vida !
Os relâmpagos, mais próximos, alumiavam de uma luz fantástica e azulada as nuvens espêssas e movediças, a escura massa granítica da margem direita com as suas pequenas casas brancas e os seus grandes despenhadeiros, e a água do rio, que, como uma enorme serpente negra com reflexos de aço polido, coleava inlerminávelmente na direcçáo do mar.
Era um espectáculo grande, majestoso, que inspiraria uma bela estrofe a qualquer poeta medíocre, mas que só conseguia arrancar pragas ao barqueiro, que apenas via em tudo aquilo prenúncios de um temporal medonho.
Daí a pouco, apurado o ouvido na direcçáo do beco escuro, que vinha dar á margem, punha-se de pé.
Efectivamente distinguia-se pelo rumor de passos, que alguém se avizinhava.
Um vulto apareceu.
-- És tu, Neto ? -- perguntou o barqueiro.
-- Há novidade?--disse de lá o outro com voz áspera e sem responder à pergunta, que o do barco lhe acabava de fazer.
-- não; mas avia-le, que daqui a pouco não sei como será isto. O frete veio ?
Do escuro do caminho saíram mais dois vultos.
-- não há novidade, meu fidalgo -- observou o Neto, o segundo barqueiro, dirigindo-se a um dêles, que mostrava ser ainda moço apesar da barba crescida, e que trajava grosseiramente, como os almocreves e recoveiros, chapéu de abas largas, encascado de poeira, jaquela de saragoça, camisa desabotoada no peito, faixa vermelha à cinta, pantalonas com alguns remendos, meias de lá até ao joelho e grossos sapatos ferrados.
O «fidalgo» vollou-se entáo para o companheiro, homem de meia idade, baixo, trajando como êle, e disse-lhe:
-- Tem a certeza de que estaráo da outra banda à nossa espera ?
-- Como dois e dois serem quatro -- respondeu o interrogado. -- Mas isso sabe-se já, meu amo.
E metendo dois dedos da mâo direita na bôca, despediu um silvo agudíssimo, que se reproduziu pelas quebradas alé se extinguir inteiramente.
Da outra banda respondeu um assobio igual.
-- Era mais que certo -- acrescentou o tal com um sorriso. -- Eu cá sei a gente que me serve, e bastava o tio de vossoria dizer-me a qualidade de negócio que..
-- Bem. Vamos lá então -- inlerrompeu com impaciência o mais moço dos quatro, que era evidentemente aquele por cuja causa se encontravam ali os outros.
O barqueiro, que viemos encontrar fumando à pôpa do barco, pegou num rêmo, apoiou-o no fundo do rio, que era ainda margem nos dias em que o volume da água não aumentava pelas grossas invernias, e fê-lo aproar ao tempo que o segundo barqueiro desamarrava a corda, que o prendia a uma grossa estaca enterrada no solo!
-- Queira entrar, patrício. Entre, seu Tôrres; o negócio inda nos vai dar um bocado d'água pela barba, mas num quarto d'hora estamos do outro lado. A noite é que está mesmo ao pintar.
Saltaram os dois homens para o barco, que oscilava um pouco; em seguida fez outro tanto o Neto; e os dois barqueiros principiaram, de remar rio-acima, não se afastando da margem. Depois, a uma determinada altura, aproaram à margem direita.
Sucedeu o que os barqueiros tinham previsto.
Apesar dos seus esforços vigorosos, a corrente impetuosa do rio começou de nrrnstar o barco e houve um instante em que quáse desesperaram de a vencer.
As palavras, que soltavam, entrecortadas pela fadiga, diziam bem que a operação era custosa.
-- É agora !
-- Rema p'ra o pêgo !
-- Alma, rapazes !
-- Rema sempre !
-- Falta pouco !
-- Agora!... Agora!...
O suor cata em bica pelas faces tostadas dos dois barqueiros. Os remos dobravam-se sob o impulso daqueles braços vigorosos, levantando grandes espadanas de água.
O relâmpago alumiava sempre, a espaços, para tornar mais espêssas as trevas ao apagar-se nelas.
Dir-se-ia que navegavam num abismo. O trovão rolava longinquo.
Aquele que ouvimos chamar fidalgo e patrão conservava-se sentado à pópa, vollado para a prõa do barco, de braços cruzados no peito, com o chapéu fora da cabeça e o olhar fixo não sei em que ponto fantástico. No que êle pensava, ignoro-o; no que não pensava, quáse posso afiançá-lo, era no perigo iminente que corria com os seus três companheiros, se partisse uma das pás ou o movimento compassado e frequente dos remos afrouxasse um instante. Estava pálido, mas duma palidez serena, como a que provêm de longas noites mal dormidas, de íntimos sofrimentos concentrados.
Num dado momento como que despertou.
-- Ainda falta muito ? -- perguntou êle, passando a mão pelos olhos.
-- Agora é um instante, meu amo. O pior já lá vai. não que nem vossoria sabe que estivemos por uma unha negra p'ra ir todos ao charco, co'um raio de diabos !
-- Importava pouco -- murmurou o da pópa num tom quáse imperceptível.
-- Olha lá -- disse o homem baixo e atarracado para o barqueiro mais próximo -- e que horas sáo isto ?
-- Isto... já deve passar das sete um bô bocado.
Inda o que valeu foi a chuva não começar a zimbrar e o sudoeste não apertar de mais, quando não, o remédio era a gente acolher-se por esta noite nalguma casa da povoação e fazer a travessia de madrugada.
-- Isso é bom de dizer; mas eu não havia de deixar o rapaz com os machos no caminho, p'ra os achar amanhã estalicados, e até quem sabe se a boiar pelo rio abaixo, levados no enxurro das águas!
-- Pois será assim, mas o que lhe protesto é que não havia de ser eu que o trouxesse cá p'ra acudir aos seus machos. E sabe porquê ? É porque não queria que me assucedesse a mim, o que estava p'ra lh'assuceder a êles: ir a boiar pelo rio abaixo; ora ai está ! E voltando-se para o companheiro, ordenou:
-- Atraca de ré, vira de bordo.
Tinham chegado n uma pequena língueta, nas fraldas do monte, em que hoje se vê ainda, como disse já, o derrocado edificio do «Seminário».
O barco atracou.
O moço almocreve pôs na cabeça o chapéu, ergueu-se e saltou a terra com o outro, o Tôrres.
Os barqueiros tinham levado as máos às carapuças e esperaram. O «fidalgo» tirou dentre a camisa e a faixa uma bôlsa de couro e entregou-a ao Neto.
-- Deve ter cinco pintos. Não trago mais comigo.
Estão satisfeitos ?
-- Muito obrigado a vossoria, patrão. Deus Nosso Senhor o livre de trabalhos, que é o que mais se topa hoje em dia, meu amo. Passe vossoria muito bem.
Adeus, seu Tôrres.
-- Adeus, rapaziada -- tornou aquele que dava por ésse apelido, seguindo adiante do seu companheiro por uma pequena rampa, que levava ao caminho marginal.
Chegados acima, o Tôrres buscou penetrar com a vista as trevas circunstantes, quando um relâmpago iluminou, como por um cspléiylido dia, o céu, a água, as quebradas de uma e outra banda e o estreito caminho em que estavam.
A pequena distância, Tôrres viu distintamente um vulto segurando pela arreata uma récua de machos.
-- Ele lá eslá -- disse baixo o Tôrres ao seu companheiro, que permanecia silencioso; e como as trevas, rasgadas pelo raio no lapso de dois segundos, envolveram de novo o céu, a água, as quebradas e o caminho, dirigirum-se ambos, quáse pelo tino, ao ponto que o primeiro dos dois homens apontara ao outro.
Uma voz de adolescente interrogou, revelando sobressalto:
-- Quem vem lá?
-- Sou eu, homem ! Que demónio ! Parece que estás assustado !
-- Eu mêdo, por mim, não tinha; o pior eram as bêstas...
-- não viste ninguém por'hi ?
-- Nem viv'alma. Estou aqui há bôs sete quartos d'hora, e ainda nem fôlego vivo.
-- Também a noite não é d'apetecer. Ora aqui tem, meu amo -- disse o Tôrres pegando na arreata das alimárias, que estavam carregadas como se viessem de jornada longa; e apresentando-a ao companheiro:
-- O sôr dr. põe-se à frente dos machos, com perdão de vossoria, e passa a corda do da frente por baixo do braço; os outros seguem atrás. E agora... que andas tu a fazer ? -- interrogou, voltando-se para o rapaz.
-- Estou a desamarrar as campainhas, que tinha atado p'ra não tocarem.
-- Fizeste bem, homem. Tens mais tino do que eu pensava.
O rapaz acabou definitivamente de desamarrar as campainhas e os chocalhos, que pendiam à volta da coleira de cada cavalgadura e deram logo sinal de si.
-- Agora, salta p'ra riba do macho da frente, e vossorin vá tirando nas bostas até à rua do Loureiro, que, em chegando á pousada, já lá devo estar. Ande, que assim não haverá novidade. O moço vai p'ra ensinar o caminho, sendo preciso.
O rapaz colocou-se entre os dois fardos, que compunham a carga da primeira cavalgadura, e o Tôrres, dando duns palmadas no anca da última, fez estalar três vezes a lingua no céu da bôca, de um modo particular aos almocreves e arrieiros quando querem fazer caminhar ou apressar a andadura aos muares.
Pôs-se o moço a caminho à frente das alimárias, que chocalhavam as suas coleiras de campainhas e guizos, tomando em direcção á cidade por aquela tenebrosa noite alumiada de quando em quando por clarões rápidos e deslumbrantes.
Tôrres ficou-se quieto por algum tempo a ver desfilar a récua, e, metendo súbito pernas á estrada, naquele passo largo e movimento de braços cadenciado, que caracleriza os homens afeitos às grandes jornadas, passou adiante do seu antigo companheiro, dizendo-lhe a meia voz:
-- Eu cá vou. Daqui a meia hora lá devo estar.
Corage, meu amo ! falta pouco !
E desapareceu no escuro.
II
O almocreve
A chuva começou de cair em grossas gotas, como acontece de ordinário no avizinhar-se uma grande trovoada.
O moço almocreve seguia vagarosamente, importando-lhe pouco os prelúdios do temporal. Murmurava consigo, repetindo us últimos palavras do companheiro:
-- Falta pouco!... Mas quem disse àquele homem que faltava pouco, se eu mesmo não sei quanto me falta? se apenas sei que principia agora?... -- E depois de alguns instantes de recolhimento intimo: -- Qual será o meu destino ?... e qual me valia mais: arrojar de mim êste fardo insuportável da vida, amolgar o crânio na cruzeta de ferro da primeira masmorra em que me fechassem, ou lançar-me no acaso das aventuras duma vida nómada, errante, sem futuro?... Morrer ! mas a morte é um beneficio quando...
O murmúrio da última silaba gelou-se-lhe nos lábios, -- recuou como horrorizado. O espaço acabava de iluminar-se, e o infeliz viu diante de si um abismo.
Dois passos mais na direcção que levava, e teria desaparecido num precipício talhado a pique, na rocha, e em cuja profundidade o rio fazia ouvir o marulhar confuso dos suas ondas escamosas.
E mudou de direcção, rentando pela base do monte, que murava de um lado o caminho marginal que seguia para o Pôrto.
Aquele caso parecia vir de molde para responder às suas consternadas ideias.
Instintivamente arredára-se da morte, cujos benefícios naquele instante mesmo reconhecia.
-- Que infame natureza esta! -- pensou êle pouco depois, revoltando-se contra si próprio. -- Como é covarde e miserável esta criatura, que se chama rei da criação !... Porque estremeci, porque recuei diante daquele precipício?... -- Depois dum breve silêncio, mudando-lho de expressão o rosto: -- E êles?... Egoista ! egoista é que sou ! porque nem sequer me lembravam os novos desgostos que lhes ia causar ! Egoista e ingrato !
Os grossos pingos de chuva caíam com mais frequência, rolando no chapéu desabado do pensativo recoveiro; o trovão ribombava mais perto, rolando pelas quebradas, o vento gemia com mais estranhos gemidos por entre os galhos nus das árvores e assobiava com mais agudos silvos nas arestas dos rochedos, o temporal estava iminente. O alheado caminheiro, todo recolhido consigo, nem por isso alargára o passo indolente e incerto.
Não parecia da mesma opinião o rapazola, que encavalgava nas cargas do macho dianteiro, porque principiou de chamar:
-- Ó snr. ! ó meu amo ! psiu ! não ouve ? Ó patrão !
Efectivamente êle não ouvia, tão profundo era o seu recolhimento. O outro continuou elevando a voz:
-- Ó patrão ! ó patrãosinho ! ó meu amo !
O pensativo condutor dos machos como que despertou.
-- Que é ? que queres ? -- interrogou êle surpreendido.
-- Com perdão de vocemecê, afoite o passo, quando não nem daqui a três horas estamos na pousada.
Só então é que o distraído almocrêve percebeu que a chuva caía já com tal frequência, que em breve o deixaria alagado.
Fez o que o rapaz lhe disse. Apressou o passo.
Dentro em pouco chegaram ao cais da Ribeira, uma parte do vélho burgo portuense, com a sua muralha negra dominada por edificações mais recentes de dois e três andares, com os seus espêssos arcos de cantaria, soturnos e misteriosos, e a sua ponte de barças, fronteira, a cuja história anda ligada a notícia do maior desastre, que enlutou o Pôrto, -- a pavorosa hecatombe de algumas centenas de homens e mulheres, vélhos e crianças, afogados no Douro, fugindo à sanha das tropas de Soult.
Entre dois arcos, o vento fazia bamboar uma lanterna aceza, cuja luz débil projectava uma frouxa claridade Indecisa, cortada de sombras hesitantes, sóbre um retábulo pintado a óleo, que era, e é ainda hoje, assunto de muita veneraçáo para grande parte da população portuense e arredores. A pintura representava e representa, apesar de já não ser a mesma, aquele mesmo local da Ribeira, e o povo, debandando na frente dos invasores franceses, que o atropelam com os seus cavalos, ou retalham com as suas espadas, ou fuzilam a tiros de espingarda; o povo, homens com trouxas, mulheres com crianças, vélhos de muletas, invade a ponte, que, rôla a mais de meia distância, para evitar a passagem da soldadesca, lhe abre a voragem, que o engole, até formar um cugulo de cadáveres.
Ao passarem pela frente do retábulo, cuja lanterna o vento agitava com fúria, o rapaz, que se instalára entre as duas cargas do primeiro macho, tirou reverentemente o seu chapéu, conservando-o algum tempo fora da cabeça.
O companheiro nem sequer deu pela lanterna e pelo retábulo, sempre abstracto e maquinal.
Subiram a ingreme ladeira da rua de S. João, atravessaram o largo de S. Domingos, entraram na rua das Flores...
Eram oito noras e meia da noite, e nem viva alma em todo êste trajécto, a não ser um ou outro vulto que recolhia pressuroso, rebuçado no seu capote, com o manifesto propósito de escapar ao temporal, que principiára de desencadear-se rebramindo por sôbre as habitações da cidade e esfusiando a todo o comprimento das ruas e travessas.
Percorreram a rua das Flores, e, apesar de ser, ao tempo em que principia esta narrativa, a rua mais comercial do Pôrto, àquela hora nada o fazia suspeitar; a escuridão era profunda; e apenus o chocalhar e tropear dos machos nas lages da calçada quebrava o silêncio, em que tóda estava mergulhada. Quando chegaram à extremidade da rua, que desemboca num largo, tendo quáse na sua frente, erguendo-se como uma grande mole escura, o gradeado e triste mosteiro de S. Bento das Freiras, o almocreve, na sua ignorância ou na sua abstracção, em vez de dobrar para a direita, para a rua do Loureiro, onde o estava esperando o Tôrres, seguiu para diante com os animais.
Chamou-o do seu êrro o moço, a quem já tardava a fumegante malga de caldo e a enxêrga remendada.
-- Ó senhor ! ó patrão ! não é p'r'aí! tome p'ra trás !
-- Entáo para onde é?... Quáse que não sei onde estou... -- disse o outro a meia voz, parando e buscando orientar-se nas trevas.
-- Aqui é o largo de S. Bento, meu amo; mas já agora tem de virar com os machos e ao depois rodear o convento...
-- Ah ! sim; já sei...
E meteu pela rua indicada, murmurando num tom de profunda tristeza:
-- Vou finalmente vê-los... e Deus sabe depois até quando !...
Para alêm dum oratório, que ainda hoje se vê na rua do loureiro, e em cujo interior bruxuleava a pequena luz de uma lftmpada, suspensa de um braço de ferro chumbado na parede, a rua fáz um cotovelo e era justamente ai que estava situado o albergue de que falára o Tôrres, e que, apesar de reformado, -- quáse diriamos aristocratizado -- ainda hoje é para tôda a gente a estalagem do cantinho.
Ali se recolhiam os forasteiros menos abustados para se darem o luxo duma hospedaria; na sua vasta cavalariço imunda recolhiam os almocreves as suas récuas e buscavam dormida os recoveiros que vinham do sul.
O rapaz ia dizer:
-- É aqui, patrão ! Pare lá.
Mas antes disso já um homem se havia aproximado do moço almocreve e lhe dizia em voz baixa:
-- O tio de vossoria está lá em muito cuidado, e já mandou aqui duas vezes perguntar por mim.
Era o Tôrres.
-- Que lhe respondeu ?
-- Da primeira vez ainda eu não testava cá; da segunda mandei-lhe dizer que vossoria não se podia demorar, e que tam depressa chegasse como corria logo a casa.
-- Bem; mande recolher os machos; eu vou só...
Daqui à rua Chã são dois passos, e a noite está escura e chuvosa para que andem por fora os espiões do paternal govêrno de el-Rei Nosso Senhor...-- e sublinhou estas palavras com um sorriso doloroso. -- Agora, adeus, snr. Tôrres; e mil agradecimentos por todos os seus serviços, que foram muitos e valiosos.
O mancebo apertava a mão do prestimoso homem.
Entretanto o rapaz tinha descavalgado e recolhia as alimárias.
-- Ora! vossoria tem coisas... -- redarguiu o Tôrres -- mas há-de vir molhado por dentro... apanhou uma bátega, que não era p'ra cristões. Se quer mudar de roupa antes de ir...
-- Não; mudo em casa... adeus...
-- Queira-me vossoria desculpar, mas eu é que não posso consentir que vá só. Não há nada mais fácil do que topar por 'hi um aguasil, que lhe dê a voz de preso por suspeitas, e é preciso haver quem lhe responda logo com meio palmo de aço pela barriga dentro.
O outro tentou replicar. Tôrres prosseguiu com modo resoluto:
-- Demais a mais eu prometi ao tio de vossoria, a quem devo muitas obrigações e que me faz a mercê de ser meu amigo, que lhe apresentaria o sobrinho livre de perigo, e não dormirei sossegudo em toda a noite, se o não vir entrar p'ra a sua casa dêle. Mas assossegue; irei cá de longe na alcateia, e em vendo que já não faço mingua, são dois saltos emquanto me apresento na pousada, e outros dois p'ra cair em cheio em vale de lençóis... seis léguas por dia e por mau tempo, quáse sempre de noite, cinco dias a fio sem parar, estafa um cadáver !... e eu, o que me admira mais, é vossoria ter agúentado todo o caminho, ai como qualquer recoveiro !
-- Quando se é novo... -- disse o outro encolhendo os ombros; e resolutamente: -- Bem, meu amigo; faça o que entender: até ámanhâ...
-- Até ámanhâ. Passe vossoria bem a noute, e nada de scismas !
O moço almocreve seguiu pela rua do Loureiro, e, tendo chegado a meio da rua Chã, orientou-se pelas casas, olhou em tômo, esforçando-se por devassar as trevas. Depois, empurrando rápidamente uma porta, que estava apenas encostada, entrou, fechando-a sôbre si.
Tôrres, que o tinha seguido muito na sombra, cosido com os prédios, articulou um monossílabo, que revelava a sua satisfação por haver conduzido a bom têrmo aquela emprésa, cujo risco mal nos é dado suspeitar, e voltou para a estalagem donde saíra ao encontro do companheiro.
Entretanto éste último, depois de seguir ao longo do portal, começou de subir as escadas do interior do prédio alumiadas pela indecisa luz de um candeeiro, pousado num degrau do segundo lanço.
-- És tu ? -- perguntaram de cima.
-- Sou eu, meu tio -- volveu o recêm-chegudo, apressando-se a subir.
Alguns segundos depois o moço almocreve, tendo arrojado o amplo chapéu para longe, estava nos braços de um homem de quarenta e quatro anos, de uma senhora por igual idosa, e de uma pálida e trémula menina de dezoito, que o rodeavam de soluços e o molhavam de lágrimas. Ao mesmo tempo dizia êle com a voz embargada pela comoção, esforçando-se por incutir-lhes ânimo:
-- Entáo, que é isso, meu tio ? Porque chora assim, minha tia ? Quem tem, Leonor ?
E abraçando-o de novo, o homem, a quem o recém-chegado chamára tio, soluçou a custo:
-- Ah ! Frederico ! meu pobre Frederico !
E, por algum tempo, foi impossível aos actores desta scena articular uma só palavra.
III
In vino veritas
Ia entrar na grande ampulheta do tempo o ano de 1830.
Coimbra, e mais particularmenle a academia sentia-se trabalhada por essa febre violenta, que tinha a sua origem na ânsia da liberdade e o seu fim provável nos ferros da prisão, no abandono do destêrro ou no laço armado na ponla duma corda suspensa do triângulo.
Como acontece em todas as febres, contava as suas horas de exaltação e de delírio, e nesse estado era terrível, medonha; clamava, estrebuchava, assassinava; -- depois vinham as denúncias, as devassas, as prisões, e sucedia umu nova fase, a do abatimento da prostração, e tramava e conspirava e tudo era mistério. Nesse estado, porém, como no outro, ou abatida ou exaltada, o Ídolo era sempre o mesmo, a adoração calorosa e fervente.
A data em que principia êste capitulo, Coimbra conservava-se ainda muda diante do terrível espectáculo que, trés meses antes, lhe oferecêra no Pôrto a alçada, arrojando para o vácuo, suspensos pelo gasnete, os corpos hirtos de alguns mártires da nova religião politica.
Alêm disto, às fechaduras das portas, nas mesas dos botequins, ao tabique das alcovas, em tôda a parte onde se encontrassem duas pessoas, havia a certeza de existir algures um ouvido a mais, com que não se contava, a receber as palavras, os projectos ou as confidências do adventício, do correligionário ou do amigo para as transmitir, nem sempre fielmente, ao respectivo juiz do crime.
Depois seguia-se o processo ordinário contra aquele ou aqueles de quem rezava a denúncia, -- a ordem de captura, a cadeia, o julgamento, a condenação -- o cárcere, o destêrro ou o patíbulo.
Acrescentemos ainda que êsses espiões não se limitavam à sua tareia, a escutar às portas. Êles possuiam artes de arrancar o segredo das suas convicções liberais àqueles mesmos que tinham sabido guardá-los como num cofre.
Para os espíritos concentrados tinham as inequívocas provas de simpatia, os bons serviços prestados, as atenções da amizade solicita, até chegarem ao capítulo das confidências mútuas, -- alvo das suas muquinaçôes.
Para os caracteres exaltados, ainda que precavidos, tinham a polémica violenta em que fervilhava, com a defesa das mais negras atrocidades, o insulto covarde à memória de homens que tinham o respeito de todo o coração lial e generoso; -- daí a explosão, o protesto.
Quando o infeliz caia do seu entusiasmo na realidade, era como se um abismo se lhe tivesse desmascarado aos pés.
Estava irremediávelmenle perdido.
Desde êsse momento não tinha a fazer senão uma destas coisas, fatais como as pontos diamantinas de um dilema terrível:
Esperar o cárcere; Apressar a fuga.
Digamos ao que vem tudo isto.
Frederico, o moço almocreve, que vimos atravessar o Pôrto em direcçáo à estalagem da rua do Loureiro, por uma noite aspérrima de janeiro, guiundo uma récua de machos, estudava então o 3.o ano jurídico na Universidade de Coimbra.
Era inteligente, dedicado e bom.
Isto bastará para que o leitor fique sabendo que no seu coração tinham deitado fundas raízes as novas idéas, que então fruleavuin frutos de perseguição e de sangue.
No entanto, graças aos reiterados conselhos de seu tio, abastado negociante portuense, aos pedidos de sua lia, que o estimava como filho, e á doce imagem de sua prima Leonor, Frederico tinha conseguido sofrear dos, de cálice em punho e os olhos fitos nos lábios do orador, esperavam a continuação do discurso.
Depois de uma pequena pausa, tendo traçado demosténicamente a sua longa capa, e, por um movimento sacudido de cabeça, desemburaçando a testa das negras madeixas de cabelo, que principiavam de lha afagar com tenacidade, prosseguiu:
-- Eu espero com verdadeira ânsia a duodécima badalada, que nos anunciará o último inslante dêste ano de 1829, fatal para quantos teem na consciência o culto sagrado da justiça, da razão e da liberdade ! Até êsse momento estarei debaixo duma pressão medonha, e considerar-me hei sob a influência nefasta duma estrêla maligna. Vejo-o daqui, esperando a sua hora, como um criminoso, ínclinando-se no vasto abismo dos séculos, com todo o seu cortejo de inocentes vitimas supliciadas, a sua alçada feroz e sanguinária, os seus patíbulos aos pares, e os seus póstes rematando por cabeças lívidas, com os lábios entreabertos. Meus srs...
-- e inlerrompendo-se, porque o relógio naquele instante batia compussadarnente a meia noite: -- Começam de soar as dôze badaladas fúnebres, que anunciam o desaparecimento da nuns fúnebre data !...
Depois, esperou que o martelo batesse a última pancada, e o rosto como que se lhe iluminou de súbito. Ergueu então o cális e exclamou com a voz desoprimida.
-- Finalmente !... Meus amigos ! Saúdemos o ano de 1830 ! que êle seja bemvindo !... Académicos ! bebamos ao futuro !
-- Ao futuro ! -- repetiram os estouvados moços, esvaziando os cálices, sem atentarem nos desconhecidos, que os observavam, trocando-se olhadas de inteligência.
-- In vino veritas -- disse por entre dentes o indivíduo de barba grisalha e aspecto severo para os seus dois comensais.
-- Não acha v. s.a prudente que nos retiremos ? -- observou-lhe o da direita, homem nédio, de morosas e poucas palavras, o mais completo exemplar do comodista.
-- Não ! -- volveu o outro com certa autoridade, e num relâmpago de cólera. -- Cumpre ver tudo ! Hoje são apenas estróinas, àmanhâ serão conspiradores !
A êste tempo já Frederico Veloso se tinha erguido com o cális a trasbordar. Tinha o olhar brilhante, os cabelos em desalinho, os lábios sêcos, a mão trémula.
-- Académicos: -- disse êle. -- Há um ano que a esta mesma hora, em tórno desta mesa, éramos os mesmos a saudar 1829... e mais Irés honrados moços, cheios de talento e de futuro, cuja sorte lembro com o coração trespassado de dór. Um diz-se que percorre a França, quâse mendigo; os outros esperam na cadeia a sentença que os deverá atirar para os sertóes de África... Condiscípulos ! liu bebo ao próximo regresso do primeiro, e à libertação completa dos segundos !
Acolheu eslas palavras um clamor entusiástico e os cálices esvaziaram-se de novo.
O dono da estalagem entrou na sala relanceando olhares consternados sôbre os moços académicos. O homem da barlia grisalha observava-o e bateu com a faca no prato para lhe chamar a atenção.
O dono da estalagem acudiu respeitoso.
-- Previno-te de que, se fazes o mfnimo sinal a êstes rapazes, dormes já hoje na cadeia -- disse êle baixo, mus com intimativa. -- Conhece-los?
-- Saiba vossa senhoria que sim...
-- Sáo todos estudantes?
-- Sáo, meu senhor.
-- Bem: ámanhã irás dar-me os seus nomes. Por hoje... -- e como se lhe acudisse uma idéa: -- Trazes-me tambêm uma garrafa de vinho e cálices.
Os dois comensais olhurnm-no com espanto.
-- Sim, meu senhor --disse o hospedeiro apressando-se a cumprir as ordens recebidas.
-- £ preciso que êles se declarem mais abertamente, se é possivel...
-- Mas corremos um grande risco, ilustríssimo snr... -- disse o comodista bastante inquieto. -- Eles são muitos e...
-- E estão bêbedos, sossegue, João Manuel. Se não aproveitássmos a ocasião, não se proporcionaria outra tam cedo, e é preciso acabar com êste núcleo de rebelião, que traz sobressaltados os espíritos dos bons e liais portugueses. Mas a justiça quer provas irrefragáveis paru a condenação dos réus, e eu obtê-las hei dêstes, por forma que a satistaçam a ela e tranquilizem a minha consciência de magistrado. Vai ver.
O desconhecido ergueu-se, -- tinha uma nobre presença,-- e dirigindo-se aos académicos, que prosseguiam na série não interrompida das suas libações, tendo passado da liberdade ao amor, disse com uma grande serenidade aparente:
-- Meus snrs.: Há quáse trinta anos que eu deixei os bancos da Universidade, e recordo saudoso o tempo feliz em que me reunia nesta mesma sala, com os meus condiscípulos; por forma que, voltando hoje a Coimbra, depois de uma tam longa ausência, o meu primeiro cuidado foi vir até aqui recordar-me; e ao ver-vos e ouvir-vos, o passado como que reviveu na minha alma, iluminado pela doce e meiga luz da saudade. Srs.; o académico de 1802 pede aos seus irmãos, os académicos de 1830, em nome da bôa camaradagem escolar nunca desmentida, a honra de o acompanharem num brinde patriótico, que, na época presente, quáse conslilue um dever nas mesas onde se levantam brindes...
Ouviram-se vozes de aprovação:
-- Troquemos ! -- disse o primeiro dos oradores, enchendo os cálices dos três novos convivas, ao passo que o homem da barba grisalha esvaziava a sua garrafa nos cálices dos académicos, que se conservavam de pé...
Ao cabo de alguns segundos, o orador prosseguiu:
-- Meus snrs., o brinde, que tenho a fazer, dispensa todo o exórdio e todo encarecimnto. O objecto dêle está no coração de quantos prezam sinceramenle a grandeza e a prosperidade do berço em que nasceram. Eu brindo, pois, ao legitimo rei de Portugal, o snr. D. Miguel I !
Um raio, que tivesse atravessado naquele momento o teto da sala, onde se tinham reunido aqueles moços estouvados com o único Um de saudarem o ano que despontava no horizonte, e eslalnssc no meio dêles, não teria produzido niais assombroso efeito.
Os cálices, que já quáse tocavam os lábios, pararam no caminho; o véu da embriaguez, què mais ou menos velava a razáo de todos, desfez-se como ao sopro dum tufáo; a palidez substituiu a côr alegre e radiante daqueles rostos juvenis, a língua paralizou-se-lhes, e cada um viu aos pés rasgar-se-lhe um abismo.
Os três comensais esgotaram os cálices.
-- Nunca ! -- bradou por último Frederico voltando a si do pasmo que o loniára, e esmigalhando O cálice cheio na parede fronteira. -- Nunca !
Então o sujeito, que propusera a saúde, arredou a cadeira, sem desviar os olhos dos circunstantes, talvez para lhes prevenir qualquer movimento agressivo, e disse com uma grande placidez na voz:
-- Noto que o meu brinde não teve a nprovaçáo de vv. s.as. Nós retiramo-nos.
E os três homens, que haviam abancado próximo da porta, sairam naturalmcnte.
Tudo isto foi sucessivo e rápido.
Alguns dos académicos sentiram dobrar os joelhos sob a violência daquele golpe, e sentaram-se para não cair; a maior parte, contudo, fleou de pé, como petrificada, c dois ou trés cálices estalaram apertados entre os dedos convulsos dos convivas.
Sobreveio a reacçáo. Quáse no mesmo tempo aqueles dez indivíduos como que despertaram, sacudidos pela mesma corrente eléctrica, c pela mesma voz bradaram:
-- São espiões !
Ainda os três adventícios não tinham desaparecido completamenle na penumbra do patamar da escada sôbre que abria a saleta, e já os académicos, empunhando as facas e arremeçando para trás as cadeiras, se precipitavam como furiosos para a porta, repetindo num rugido:
-- Sáo espióes ! matemo-los !
A embargar-lhes o passo, aflitíssimo, com os braços erguidos e com a voz lacrimosa, apareceu o estalajadeiro.
Pelo amor de Deus, senhores, não me desgracem ! Deixem-nos ir ! não lhes toquem ! não são espiões ! -- clamava êle atarantado e suplicante.
-- Mas quem é aquele homem ? quem é ? Dize já !
- intimou um dos académicos segurando o estalajadeiro pela gola da jaqueta.
-- Ê... é... mas, por quem são, não me desgracem !
eu quis preveni-los com tempo e...
-- Quem é êle? ou respondes ou... ! -- repetiu o outro abanando-o convulsivamente.
-- É o novo corregedor de Coimbra, snrs. ! Por quem são, não me percam !
Os braços, como fulminados por uma paralisia, penderam inertes, e as facas ao mesmo tempo caíram ao chão.
Uma voz, que traduzia um grande desalento, murmurou:
-- Estamos perdidos...
IV
Um refúgio
Entre os poucos académicos que, tendo assistido àquela ceia de ano bom, conseguiram escapar à sanha do corregedor, contava-se Frederico, a quem êle distinguia mui particularmente, reclamando a sua prisão a lodo o custo.
Mas o terceiranista contava uma valiosa protecção em Coimbra, quáse inteirnmcnte ignorada dos seus próprios condiscípulos, pois que nunca se tinha valido dela. Era um professor de Humanidades, natural do Pôrto como êle, o dr. Gustavo, e para cuja formatura seu pai havia contribuído, facultando-lhe os precisos meios pecuniários.
Lembrou-lhe, pois, naquele desesperado lance, o protegido de seu pai e os seus reiterados oferecimentos, que ambos estavam bem longe de supôr que um dia seriam utilizados de um modo tam extraordinário.
Para não darem tempo a que a estalagem fôsse cercada, os académicos saíram para a rua, e trocando um cordeal aperto de mâo, que para alguns devia ser o último, cada qual tralou de procurar um asilo, tendo carregado o gorro para a testa e rebuçando-se na larga capa até aos olhos.
A noite estava tenebrosa e como que os envolvia num segundo manto prelo, quase tam impenetrável como o primeiro.
Deslizaram silenciosos, cosendo-se com as paredes das casas e parando sobressaltados ao mínimo sussurro.
Frederico dirigiu-se para casa do protegido de seu pai. na rua do Cego, murmurando a espaços:
-- Perdido ! perdido !
Como acontece de ordinário nos prédios, onde há mais de um inquilino, a porta da casa do dr. Gustavo estava apenas cerrada.
Frederico empurrou-a, entrou no portal esguio e húmido, encostou-a de novo cuidadosamente, e, às apalpadelas, foi subindo no meio da mais completa cscu- ridfto até ao primeiro andar.
Era ai que habitava o amigo de seu pai.
Através do orifício da fechadura e das frestas da porta, que dava sôbre o patamar, coava-se a branda claridade de uma luz serena.
-- Está cá ! -- disse êle consigo mesmo, experimentando como um profundo alivio.
Aproximou-se recatadamente da porta para escutar.
Nenhum ruído interior.
Espreitou; a luz estava colocada em logar que não se via.
Contudo, aquele era o quarto de dormir do professor.
Estará no primeiro sono? -- mas para o acordar, terá de bater, e despertará também os outros moradores.
Esperará que êle acorde ? -- mas entretanto pode subir as escadas algum inquilino dos andares superiores, descobri-lo, gritar por socorro c ficaria cntáo irremissívelmenfe perdido...
Prolongavam-se já por minutos, que eram horas de cruel sofrimento, estas hesitações, repartidas entre o aplicar do ouvido sobressaltado á porta da saleta, onde brilhava a luz, e o escutar às escadas, onde as trevas eram profundas. O desventurado moço principiava de sentir trémulos os joelhos, a cabeça atordoada e um ruído de campainhas nos ouvidos. Alguns instantes mais o leria caído no chão.
De repente pressentiu o arrastar duma cadeira no interior do aposento. Cobrou Animo.
-- Estava a lêr sem dúvida ! Ainda não se deitou !
-- disse consigo.
E com os nós dos dedos bateu levemente á porta.
Depois de um instante de silêncio, uma voz entre espantada e duvidosa, perguntou:
-- Quem está aí?
Frederico aplicou os lábios à fechadura da porta, e segredou:
-- Por quem é, snr. dr., abra !
Novo instante de silêncio.
-- Mas abrir a quem ? -- tornou o mesmo indivíduo.
Frederico disse o seu nome.
-- não ouvi bem; repita -- insistiu o oculto interlocutor, querendo talvez reconhecer o acadêmico pelo metal da voz.
Ele repetiu o nome pelo buraco da fechadura, acentuando em cada silaba.
-- Ah ! sim ! conheço ! -- tornou o mesmo sujeito, o dr. Gustavo.
A porta abriu-se imediatamente. A luz avermelhada de um candeeiro de cobre bateu de chapa no rosto do académico.
Estava inteirnmenle desfigurado. O gorro tinha-lhe fugido para a nuca. Os negros cabelos anelados caíam-lhe sôbre a testa inundadn de um suor frio; o olhar parecia espantado, como do homem que, despertando dum pesadelo, fica por algum tempo sob a impressão dêle interrogando com a vista tudo o que o cerca; as faces, duma palidez mortal, estavam cobertas de um verniz húmido, os lábios eram da côr desmaiada de uma rosa de lodo o ano já murcha.
O doutor, homem dos seus trinta e oito anos, recuou de espanto.
Que tem o snr. ? que o traz aqui? ! -- perguntou Ale assombrado.
Cumpre observar que o dr. Gustavo consagrava a maior simpatia a Frederico, talento prometedor da Universidade, estudioso, cumprindo os seus deveres escolares com a máxima pontualidade, fazendo-se estimar de todos pela lhaneza do seu trato, pela nobreza do seu carácter e pelo seu exemplar comportamento.
Acrescia ainda para o caso presente que, tendo a certeza da protecçáo do dr. Gustavo, Frederico nunca o tinha ocupado, mesmo na hora solene dos exames.
-- Que tem o snr. ? ! -- repetiu êle.
-- Eu... -- redarguiu o moço estudante com voz quáse imperceptivet pelo cansaço e pela comoção, fechando a porta da sala. -- Desculpe-me v. exc.a.. eu venho pedir-lhe que me dá um asilo... que me salve !
E vendo que se apoiava num móvet para não cair, o dr. apresentou-lhe uma cadeira, dizendo-lhe com bondade:
-- Sente-se... e explique-se. Não o compreendo.
Que lhe aconteceu ?
Frederico deixou-se cair sem fôrças na cadeira, e, sorvendo um longo hausto de ar, murmurou:
-- Perdôe-me v. exc.»; mas preciso de coordenar as minhas ideas... Parece que se me parte a cabeça -- e apertava-a nas mãos, como receando que ela efectivamente lhe estalasse.
-- Pois sossegue -- tornou o doutor Gustavo -- e creia desde já, que, se é o que penso, esta casa lhe será asilo seguro, enquanto o julgar necessário. Perseguem-no ?
-- Eu conto a v. exc.a... -- disse Frederico mais animado e mais sereno de espírito.
E narrou, abreviando-os, os episódios daquela noite na estalagem do «Rubalo».
-- Que imprudentes ! -- exclamou o doutor ao ouvir o remate da história. -- Quando hoje até dos próprios amigos deve a gente precatar-se, dez rapazes cheios de fogo procuram a mesa duma estalagem para fazerem proflssáo de fé liberal, de copo na mâo. e em presença de homens desconhecidos ! Na verdade, não mc parece de académicos, e menos do snr., que eu tive sempre na conta de um moço exemplar e prudente !
-- O vinho estonteava-nos.
-- Creio isso. O mal, porém, está feito, e agora o que lhe resta é abandonar Coimbra, deixar mesmo Portugal, fugir á perseguiçáo, que necessáriamente se vai mover contra o snr. e contra os seus desditosos condiscípulos. Mas é Já tarde e eu vou arranjar-lhe uma cama. Àmanhá nos ocuparemos do que importa fazer.
Apesar dos protestos de Frederico, o dr. Gustavo montou sôbre um canapé e cadeiras um dos colchões da sua cama e deu-lhe metade da sua roupa.
Por volta das quatro horas da rnanhá, depois da mais trabalhada insónia, o académico cerrava as pálpebras para continuar, dormindo, o inferno do idoas, que o tinham perseguido acordado.
Antes das ? horas estava de pé.
V
Trabalhos
Bastára uma noite para lhe alterar inteiramente a fisionomia. Era um desenterrado. Tinha o rosto duma palidez baça, o olhar espasmódico, as faces cavadas, as órbitas fundas.
O viço dos vinte e dois anos tinha desaparecido inteiramente. Ninguém lhos daria com tôda a certeza.
Quando o dr. Gustavo acordou, viu o académico sentado a uma mesa com o rosto oculto nas mãos.
Abreviemos.
Frederico escreveu ao tio do Porto, seu segundo pai, -- porque ficára órfão de catorze anos, -- expondo-lhe a sua situação e rematando por estas palavras:
«Estou, pois, resolvido a seguir o caminho de tantos desgraçados, que, para não caírem em escuras masmorras ou subirem ao cadafalso, leem de abandonar a pátria, e de refugiar-se lá fora. Antes, porém, de deixar Portugal, eu queria poder dar-lhes um abraço, que talvez seja o último, a si, a minha querida tia e a Leonor, êsse anjo de candura e bondade, que eu entrevejo, como uma estréla de brilho azulado e meigo, no tenebroso firmamento da minha vida. Irei disfarçado em mendigo, em moleiro, seja no que fôr, e saberei afastar-me das povòaçõs para nAo despertar suspeitas. Será mais longa a jornada, mas não oferece tanto risco. Fico esperando uma palavra do meu bom tio para me pôr a caminho.» Antes das nove horas da manhá procurava o dr.
Gustavo um homem de sua plena confiança, um próprio, e encarregava-o da melindrosa missAo de ir no Pôrto entregar a Lufe Maria, o segundo pai de Frederico e seu tio, a missiva do sobrinho, na sua casa da rua Chá ou na sua loja da rua das Flores, e aguardar a resposta.
Partiu o recoveiro, levando a carta oculta entre dois remendos sobre-cosidos e com o seu alforje acavalado no ombro, como quem se propunha percorrer as aldeias próximas solicitando a caridade dos fiéis.
Dôze dias depois, durante os quais o novo corregedor de Coimbra conseguira meter em ferros oito dos estudantes, comensais do terceiranista portuense na estalagem do «Rubalo», e prometia recompensar a quem lhe apresentasse Frederico, o único que tinha protestado abertamente contra o brinde erguido por êle a el-rei D. Miguel; -- dôze dias depois, o moço académico recebia uma carta do tio, na qual, com as lástimas imagináveis, filhas da muita estima em que o tinha, lhe dizia que naquella mesma noite seria procurado pelo Tôrres, o intrépido arrieiro que tantas vezes o acompunhára do Pôrto para Coimbra, devendo combinar entre ambos o meio seguro da fuga.
Pelus oito horas da noite, efectivamente, insinuava-se no escuro portal do professor o vulto do almocreve e entrava para o quarto, que já conhecemos, onde estava Frederico e o seu protector.
Falaram, discutiram, combinaram os três. E por volta das 11 horas da noite imediata subia a rua do Cego um almocreve com a sua récua de cavalgaduras, que se anunciavam ruidosamente a distância pelo estrugir dos chocalhos, e do porlal da casa, em que habitava o dr. Gustavo, safa a juntar-se ao recoveiro um vulto que, pelo traje, parecia igualmenle homem de estrada. Era Frederico, no disfarce em que o vimos ao abrir éste livro, na margem esquerda do Douro:
-- camisa de estôpa, jaqueta de saragoça, faixa à cinta, meias de lâ e grossos sapatos ferrados.
-- Vamos conversando -- disse-lhe o Tórres. -- Traz vossoria o par de pistolas ?
-- Trago.
-- Então, com mais duas, que vâo aqui, já bastam para os ter em respeito, caso nos saiam ao caminho a intrometer-se connosco.
E os dois almocreves deixaram a cidade sem que tos vultos suspeitos, que estacionavam em diversos pontos, se lembrassem de lhes meter â carn u lanterna de furta-fogo, que traziam debaixo dos capotes.
A meia légua de Coimbra esperava-os na estrada rial um homem, a quem o Tórres entregou a arreata das bêslas, e que voltou com elas para a cidade.
-- Bem -- disse o arrieiro, -- do primeiro perigo estamos nós livres. Daqui por diante, com sua licença, as béstas não faziam senão embaraçar-nos o passo.
Agora já um homem pode meter po b atalhos, esconder-se atrás dum muro, ou, caso sejain muitos, dar terra p'ra feijões. Pois não é assim, snr. dr. ?
Frederico eslava longe de ouvir o que lhe dizia o seu companheiro de jornada.
Pouco mais era do que um autómato. Sentia-se aniquilado, impotente.
Aquele inesperado revés prostrava-o.
Relanceava os olhos por fisse caminho além, menos tenebroso, do que o seu futuro, caminho que tantas vezes cruzára, já com o coração a palpitar de iinpaciéncia, já com a alma cortada de saúdades, e murmurava:
-- Nunca mais !
Ah ! Quem pode ai, com o espirito sereno, medir o imenso abismo de dôr e desânimo, que aquelas palavras representam, proferidas por um desgraçado como Frederico ?
Nunca mais -- diz o amante desditoso ao considerar o corpo hirto e frio daquela que tantas vezes o cingira num abraço febril.
Nunca mais -- diz o náufrago ao lembrar-se da mulher e dos fllhos, sentindo que as fôrças o abandonam, que os sentidos lhe fogem, que o abismo o chama, o atrái, o sorve com uma fôrça crescente, irresistível, fatal.
Nunca mais -- diz o vélho trabalhador alquebrado, ao ver num monte de ruínas o edifício de felicidade, que durante meio século estivera construindo para o resto dos seus dias.
Nunca mais -- murmurava igualmcnte Frederico, fugindo à perseguição, deixando atrás de si todo um futuro de esperanças, de amor, de felicidade, e quem sabe se de glória !
Nunca mais!
Ao cabo de seis dias de jornada, muitas vezes por atalhos e quáse sempre de noite, evitando os povoados e debaixo de água, chegaram os dois homens a um logarejo distante meia légua do Pôrto, conhecido pela «Madalena».
Aí ficou o académico numa casa de gente pobre, emquanto o Tôrres foi ao Pôrto combinar com o tio a conclusão do feito. O grande receio dos dois era se já teria chegado ordem de captura da parte do corregedor de Coimbra, e a casa do negociante estaria sendo vigiada de perto.
Voltou no dia imediato o almocreve e trouxe ao estudante a resposta seguinte:
«Que não tinha chegado ainda a denúncia ao Pôrto, e que, com as devidas reservas, poderia demorar-se em casa de seu tio um ou dois dias, partindo para a fronteira em seguitm. Que, mesmo dado o facto de chegar em antes o mandado de prisão, haveria meio de o reler na intendência de polícia durante êsse tempo. Assim o afiançara o melhor amigo de seu tio, o snr. frei Quintino...
-- Frei Quintino ! frei Quintino ! -- exclamou o moço académico sentindo uns assomos de cólera: -- mas quem me afiança a mim que êsse frade nfio será o meu denunciante ?
-- Oh! snr. dr., pois acha...? -- obtemperou Torres entre admirado e incrédulo.
-- Acho-os capazes de tudo 1 -- interrompeu Frederico, sobreexcitado.
-- Pois, quer vossoria me acredite quer não; eu nunca entrei nisto de política nem me importa, ainda que se tivesse de escolher, certamente que não séria dos que mandaram presentes de vinho ao Joâo Branco (1); mas que o tal frade pratique uma dessas, e juro-lhe pela minha salvação que lhe meto uma bala no estômago pelo caminho mais curto ! Olé ! e depois... o mundo é grande, e em tôda a parte se come pilo !
-- Ê um homem de bem e um coraçáo liai, Tôrres !
-- disse o académico, bastante comovido e apertando nas suas as mãos calosas do arrieiro. -- Obrigado, meu amigo.
Como as coisas se passaram até o momento de Frederico se lançar nos braços de seu tio, que o espe- (1) João Branco, célebre carrasco, que em 1829 executou na Praça Nova os dôze liberais condenados a morrerem na forca de morte natural para sempre. Depois de lhes decepar as eabeças diante dum limitado publico simpático e de um notável concurso de religiosos, que ao mesmo tempo se banqueteavam às janelas do convento de Santo António dos Congregados, que defrontava com os patíbulos, fazendo saúdes, João Branco esbofeteou as cabecas dos justiçados, que suspendia pelos cabelos ou pela nuca pingando sangue.
Nos dois dias. 7 de maio e 9 de outubro, em que tiveram logar essas execuções, foi o carrasco obsequiado com vários presentes de vinbo c com um lauto Jantar, recebendo mais alguns delirados mimos de senhoras nobremenle aparentadas de Braga e Guimarães.
rava ansioso com a mulher e a filha na sua casa da rua Chá, não o ignora o leitor, se acrescentarmos que os dois, ao cair da tarde, -- uma tarde lúgubre, de nuvens negras acasteladas e vento sul rijissimo -- deixaram a «Madalena» em companhia dum barqueiro, o Neto, que os guiou por caminhos mal trilhados olé à margem esquerda do Douro, em frente do «Seminário».
VI
Lágrimas
Não tentarei descrever a scena de pranto e soluços, arrancados do coraçáo e como estrangulados nos lábios dos qualro nctores dela. Seria além de difícil, monótono.
A dôr profunda e concentrada é assim. Desentranha-se em manifestações sempre as mesmas, invariáveis, silenciosas; e, parecendo que o cansaço deveria tomá-la afinal, cada vez requinta mais.
-- Bem -- disse Luís Maria, querendo dar o exemplo de ombridade; -- agora já não se remedeia nada... e consumir-se a gente por o que não tem remédio... acho que sâo dois prejuízos... Tu vais... e... -- a voz começou a achar dificuldade em formar-se-lhe na garganta -- e... nós cá te ficamos esperando, até... que Deus...
Foi-lhe impossível continuar. A comoção embargou-lhe a palavra, e o período terminou-o proferindo alguns monossílabos incoerentes.
Frederico tinha a jaqueta de saragoça ensopada em água.
-- Vai mudar de roupa. Tens lá tudo no teu quarto -- disse-lhe por último o negociante.
Daí a pouco o académico aparecia com o seu fato ordinário. Era inteiramente outro.
Foram para a sala de jantar, onde esperava o estudante uma suculenta refeição.
A mesa estava coberta com unm alvíssima loallia de linho adamascado, das que saem dos teares de Guimarães e teem a preferência em lodo o pais; à volta os talheres, os pratos e os copos; ao centro, além de um candeeiro de metal amarelo, de três pavios, iluminando o recinto com uma luz avermelhada e serena, uma garrafa de cristal com vinho e uma terrina, da qual se escapava uma fumarada branca e dum cheiro delicioso.
Abancaram...
Mal sucedido esfôrço.
Dez minutos depois erguiam-se da mesa, sem haverem tocado na ceia, que teria feito as delícias do mais pechoso gastrónomo.
Em seguida Frederico dava as bôas noites a seu tio, a sua tia Clara, a sua prima Leonor, e retirava-se com o espirito fatigado das comoções violentas daquela noite para o seu quarto.
E pôs-se a contemplar tudo o que o cercava, e a recordar-se...
Havia oito anos, desde que morrêra seu pai e o tio o chamára para a sua companhia, que habitava nquele pequeno recinto, testimunha silenciosa de tôdas as suas tristezas e alegrias de adolescente.
A cada móvel, a cada objecto, estava ligada uma reoordação, que lhe era lanto mais dolorosa quanto mais grata.
A pequena estante onde se viam alguns livros por que estudara preparatórios, a meia cómoda em que tinha a sua roupa mais tratada, a pequena banca-de estudo, confidente dos seus ensaios poéticos, tam depressa tentados como reduzidos a cinzas, o leito de pau preto e pés torneados, onde dormia noites sossegadas e felizes, embalado pelas mais risonhas esperanças, aquela janela solitária em que tnntas vezes se debruçára escutando o silêncio em que a cidade jazia mergulhada, por calmosas noites de estio... tudo lhe recordava -- e tudo o pungia dum modo atroz.
A saudade havia-se antecipado cruelmente. Frederico sofria e sofria muito.
Arremessou-se vestido para cima da cairm. ergueu os braços apertando a cabeça nas mãos enclavinhadas, fitou vagamente um ponto escuro do teto. e. pálido, imóvel, hirto, assim esteve por tempo esquecido.
Depois, como despertando daquela abstraeção, apagou a luz. Balia meia noite na próxima tôrre da Só.
Fora, a tempestade rugia desenfreada. O vento, a chuva e o trovão faziam um concórto medonho. O raio esialava pró.ximo; e o relâmpago iluminava com uma luz fosforecente e rápida, penetrando pelas fendas da janela, o quarto mergulhado em trevos espessas.
Era a primeira noite, depois de seis dias de jornada, em que Frederico encontrava o aconchógo dum pequeno quarto agasalhado e de um repouso cheio dc confiança.
Naturalmcnte os olhos cerrarnm-se-lhe... adormeceu.
Na manhã seguinte o académico ergueu-se e foi, como costumava dantes, beijar a mão a seu tio e a sua tia, e dar o bom-dia a Leonor. Depois pediu licença para se retirar de novo ao seu quarto.
-- Não, Frederico, não posso consentir... Daqui vamos para a mesa. Hás-de almoçar connosco. Ontem não ceaste coisa alguma; estás a cair de fraqueza. Basta de pièguices. Estas coisas não há remédio senão aceitá-las como elas veem. Tudo será pelo melhor.
E usando de uma frase consagrada no livro de filosofia prática, que tem por titulo «Provérbios e Sentenças», concluiu:
-- O que não tem remédio, remediado está.
Como sucede afinal tôdas as vezes que se empenha a luta entre o espirito, que se sustenta de ideas, e o músculo, que tira as suas fòrças da suculência dos alimentos, o estômago do terceiranista conseguiu por alguns minutos impôr silêncio à sua imaginação.
Com prévia recomendação de Luis Mara, e graças nos seus esforços, durante o almõço, sustentando que melhor devia ser assim -- retirar-se com tempo de Portugal, pois que mais cedo ou mais tarde se denunciaria, e em vez da liberdade no estrangeiro teria a cadeia no pais, -- não se repetiu a scena da véspera à noite, e Frederico mostrou-se nmis resignado e composto de ânimo.
Entretanto, se o mancebo, por um movimento rápido de cabeça, fitasse Clara e Leonor, mais de uma vez as teria surpreendido, olhando-o com os olhos rasos de água ou deixando cair nas chávenas as lágrimas, que se lhes desprendiam silenciosas das pálpebras.
-- Bem---disse Luís Maria, erguendo-se da mesa afinal; -- agora vamos tratar do que importa. A tua mala deve estar quáse pronta e eu vou escrever duas ou três carias. Logo virá o Tôrres e combinaremos tudo. Ah ! sim, o que urge também é falar com o snr. frei Quintino... Ele nos dirá se convêm apressar para quanto antes a partida. Devemos-lhe imensos favores, meu rapaz. Apesar de ser um absolutista exaltado, tem-se havido em tudo isto com verdadeira dedicação. Todos os dias vai à intendência iníormar-sc dos mandados de captura. E como tem a confiança daquela gente, fácil lhe é saber o que deseja.
-- Eu não duvido, meu caro tio, dos bons serviços do snr. frei Quintino... sómente, para saber os limites que deveria marcar à minha gratidáo, desejava adivinhar o fim próximo ou remoto, que o move a prestar êsses serviços.
-- Os reveses fazem-te injusto, Frederico. O snr. frei Quintino, se procede assim, é porque nos estima e se interessa por ti.
-- Por mim ? ! -- exclamou o académico, não podendo disfarçar um pálido sorriso de dúvida: -- interessa-se por mim sua reverendíssima!?...
-- Desgostas-me, sobrinho. Ser liberal não é ser ingrato -- disse Luis Maria com uma severidade triste.
-- Mas espero que te convencerás brevemenle do teu êrro. Quando mais não seja, é preciso abrir exropçáo à regra geral, e uma delas é indubitávelmente o snr. frei Quintino.
Frederico, sem dúvida por motivo de delicadeza, fácil de compreender, baixou os olhos e calou-se.
Então Luis Maria tomando-lhe uma das máos:
-- Ora vamos, meu rapaz; sê razoável. não te deixes levar pelo ódio, que ó péssimo conselheiro. Em tudo há bom e mau... Agora vou escrever algumas cartas de recomendação para ti e depois irei até à loja da rua das Flores para que nflo seja notada a minha ausência. Poderiam suspeitar.
O académico, protundamentc abalado, sacudiu a mão do tio com reconhecimento e dirigiu-se vagarosamente para o seu quarto.
Luís Maria entrou na sala, que lhe servia de escritório.
VII
Resignação
Seriam 11 horas da manhã dêsse mesmo dia. Clara, sentada numa pequena cadeira de palhinha fazia um pacote de lenços de bretanha de linho, e chorava silenciosamente.
Tinha uma bôa alma esta senhora. Admitida como noviça no convento de Santa Clara donde saíra para casar com Luís Maria, era de natureza tímida, e, por educação, religiosa, quáse devota. O padre para ela tinha o quer que fôsse de superior, de divino, a quem ouvia de cabeça baixa e olhar penitente, como um réu contrito, e cujas palavras, exortações, conselhos jàmais discutia.
Por frei Quintino, a visita habitual, o amigo da casa, tinha mais do que o respeito devoto, que lhe inspirava o hábito ou a sotaina em geral; tinha por êle a receosa veneração, que tributaria a um juiz implacável iluminado pela auréola da santidade,-- a idea vulgar de Deus inoculada pelos exploradores religiosos no espirito da turba ingénua ! Frei Quintino fácilmente havia conseguido insinuar-se-lhe no ânimo e dominar-lho.
Quanto a Luís Maria, educado na vida prática do comércio, ao balcão, para a qual entrára aos 11 anos, todo reserva e egoísmo mercantil, que Iralava de justificar por esta frase -- se eu o não ganhar, ninguém mo dará, -- e ainda por esta outra, quando o acusavam da sua indiferença pelo movimento que agitava o país -- o meu reino 6 a minha casa, -- era no Intimo, sem nunca o ler confessado a ninguém, sem mesmo o ler confessado a si próprio, sincero liberal, como por índole são, devem ser os, corações bons e generosos.
Resumia tôda a sua felicidade, tôda a sua vida, na filha que Deus lhe deu, Leonor, um anjo de meiguice e candura, que destinou com alvorôço para espôsa do sobrinho órfão, apenas, tocado o oiro puríssimo do coração de Frederico, reconheceu que enlrc os dois se havia estabelecido uma corrente natural de simpatia mútua.
Daí por dianle foi esta a sua idea, o seu sonho constante: acabada a formatura, casá-los.
A meio caminho, porém, da realização do seu sonho doirado, ergucu-se de súbito o espectro da fatalidade, e o futuro, que previa tam límpido e prometedor de intimas alegrias, turvou-se, escureceu-se, como se, diante dêle, se houvesse desdobrado uma larga cortina de crepes funerários.
Voltaria o sobrinho ? -- quem sabe !
E, mesmo se voltassse, que tempo demoraria por lá?
Depois, voltaria só?...
Estas e outras interrogações assaltavam-no de tempo a tempo, e obrigavain-no a meditar sériamente.
Mas uma cega confiança em dias melhores, o quer que era dc superior e inexplicável que lhe dizia ao coração -- espera, -- restabelecia-lhe a tranquilidade do espírito sôbre o futuro da sua querida Leonor.
Nisto mesmo se espelhava a bondade da sua alma, que acreditava sinceramente na providência dos bons, a doce quimera dos que não foram ainda provados tenaz e fortemente na desgraça.
Concluídas as cartas que estava escrevendo, Luís Maria dobrou-as metódicamente, e, preparando-se para as sobrescritar, ia dizendo:
-- Ao menos não lhe faltará tudo; pobre rapaz ! -- e atentando em Clara, que levava naquele momento o avental branco aos olhos: -- Então que é isso ? E preciso resignarmo-nos. Eu também lhe quero como se fôsse meu filho, e contudo...
Luís Maria começou de passear na sala a largos passos, com as mãos atrãs das costas e a vista no chão.
Clara tinha-se erguido com o pequeno embrulho dos lenços e atava-o cuidadosamente com uma fita de nastro. Ao mesmo tempo replicava:
-- Mas dize-me se não é triste educar a gente um rapaz, há perto de oito anos, afagá-lo, dirigi-lo, guiá-lo, chegar a ler-lhe uma amizade tam funda, que nem eu sei dizer, mandá-lo estudur para Coimbra, fazer todos os sacrifícios por êle, e no resto, quando está um homem, vê-lo partir por essas terras de Cristo além, fugindo à jusliça, como se fôsse um grande criminoso ! Oh ! é triste, muito triste, Luís !
E os soluços embargavam-lhe a voz. Luis Maria aproximou-se então da esposa, e, comovido, lomou-lhe as mãos ao tempo que procurava resigná-la, o mísero, que não carecia menos de resignação:
-- Mas se não há outro remédio, minha pobre Clara ! Cumpre esperar ! É impossível que estas coisas continuem assim por muito tempo, e então êle virá para a nossa companhia e acabará a sua formatura sossegadamente.
Houve um instante de silêncio, e o negociante prosseguiu, como continuando alto o curso das suas ideas:
-- ... E a nossa filha !... Como há-de sofrer êste golpe ! Eles, que se amam tanto e com um amor tam puro, sem mesmo o terem dito um ao outro ! Pobres crianças !
E mudando de tom:
-- Emfim, estava escrito; acabou-se ! Foi uma imprudência o que êle praticou, mas o resultado é que não podia ser outro: vir abraçar-nos e partir... sabe Deus até quando !
-- Dizes bem ! sabe Deus até quando ! -- repetiu Clara com um acento triste.
Neste lance do diálogo, entrava Leonor na sala, tam distraída que não se apercebeu dos dois.
-- Aí vem a pequena. Nada de lamentações -- disse o negociante à espôsa a meia voz.
Leonor deu alguns passos, e só então, erguendo os olhos, viu os actores da scena precedente.
-- Ah ! -- exclamou ela parando.
-- Que foi ? -- interrogou Luís Maria fingindo surprêsa. -- Estavas aí ?
-- Entrei agora; mas... eu retiro-me.
-- Não, não, fica. Teu primo ?
-- O primo Frederico... tem estado no quarto a escrever.
Clara aproximou-se da filha, e cravando-lhe o olhar, com um sorriso forçado:
-- E tu?
-- Eu, minha mãe?...-- repetiu, hesitando.
-- Sim, tu.
-- Estive no meu quarto a rezar.
Luís Maria atentou-lhe fixamente nos olhos, e disse-lhe num tom meigamente repreensivo:
-- Choraste, Leonor!... Que tens, filha ?
-- Nada; não tenho nada... meu querido pai...
-- Ora vamos, sossega -- interveio Clara passando-lhe o braço à volta da cintura e conduzindo-a a uma cadeira. -- Ele, com Deus, há-de voltar.
-- E então será para nunca mais sair da nossa beira, verás -- acrescentou Luís Maria.
-- Mas tu não provaste quase nada ao almõço, e ontem não comeste nada em todo o dia, Leonor! -- observou Clara, reparando na palidez da filha. -- Deves estar a cair de fraqueza...
-- Não estou, minha mãe; afianço-lhe que não estou. -- E, como se nada roais a preocupasse: -- Poderá êle ao menos escapar sem risco? Se o prendem...
-- Sossega - atalhou o negociante. -- Está tudo prevenido. De mais a mais em Coimbra julgam que ticou por lá oculto nalgumu trapeira, e ate agora ainda não apareceu denúncia na intendência da polícia, ou do contrário já leríamos sido prevenidos pelo snr. frei Quintino. A propósito, Clara. Vai-lhe passar uma vista de olhos peia mala, e que não lhe falte nada. Vê bem !
A bôa senhora tomou de cima da secretária o pacote de lenços, que estivera acamando.
-- Não tem dúvida, Luís -- disse ela; e acrescentou dirigindo-se para uma das portas de comunicação interior: -- Exactamente como todos os anos, quando ia para Coimbra !... E contudo, agora, que diferença !
Houve um instante de silêncio.
-- Não te quero ver assim, Leonor -- observou Luís Maria. -- A ausência de teu primo não há-de ser eterna... e ao menos resta-nos a certeza de que nenhum perigo o ameaçará. Antes isso, minha filha, do que termos àmanhã de o ir visitar á cadeia, que seria de tudo o mais provável.
-- Meu Deus ! -- disse ela; e em seguida arriscou timidamente: -- Se, ao menos pudesse escrever-nos...!
-- Há-de poder. Sossega que havemos de ler notícias suas. Dize a verdade: tu estima-lo muito ?
A filha de Luís Maria hesitou; depois, erguendo para o pai os olhos espelhados de lágrimas, respondeu:
-- É como se fôssemos irmãos...
-- Tens razão -- aplaudiu o negociante. -- Pelo menos quero-lhe tanto como se fôsse meu filho... e deixa estar que há-de ser. Pois quê ! Assim estas coisas serenem e êle volte a Portugal !
Palavras não estavam ditas, e a porta da sala abria-se no tempo que uma voz pausada e soturna entoava a fórmula sabida:
-- A paz de Deus seja nesta casa.
E na penumbra destacou um vulto esgrouviado, trajando o hábito prelo dos monges de S. Bento. Luis Maria apressou-se a sair-lhe no encontro, dizendo açodado:
-- Oh, snr. frei Quintino, por quem é ! queira entrar v. rev.ma !
VIII
Sua reverendíssima
Frei Quintino da Expectação, o novo personagem, que acabava de entrar em seena, era um homem alto, magro, de uma palidez térrea, feições duras, testa pequena, sobr'olho severo, nariz ósseo, um pouco exagerado, lábios finos, malares salientes e voz áspera, que se esforçava por tornar untuosa e grave. A sua corôa, irrepreensivelmente escanhoada e larga como a palma da mão, tinha a côr tostada e os reflexos baços do marfim antigo.
Ninguém lhe daria mais de quarenta anos, e contudo já passava dos quarenta e oito.
Professára novo, convencido de que o chamava para o claustro a sua vocação tôda propensa no misticismo.
Era de família mais que remediada. Seu pai tinha sido meirinho-mór, e naquele emprêgo, cujos proventos. de si medíocres, eram enormes explorados convenicnlemente, pôde amealhar algumas dezenas de mil cruzados.
Frei Quintino fôra único herdeiro daqueles haveres, tendo o cuidado de guardar grande maquia num falso da sua cela, depositando a mesquinha parte restante, com devota abncgaçáo e completo desprèzo dos bens terrestres, nas mãos do superior da ordem.
Era prègador e dos mais considerados. Violento, declamatório, cheio de trechos e citações teológicas, êle trovejava do púlpito fulminando ameaças e excomunhões, cujo epílogo era um chôro desfeito e a altos brados da parte feminina do auditório -- o seu grande triunfo !
No dia em que, ao terminar um sermão, fôsse êle apologético dus virtudes e milagres dalgum santo, não fizesse romper clamores de arrependimento. Irei Quintino abandonaria o púlpito para sempre.
S. rev.ma falava devagar, espaçando as palavras -- por cálculo; e tomava rapé... também por cálculo.
Nus consultas graves, nos trances difíceis, nas ocasiões em que precisava observar a fisionomia do interlocutor ou estudar uma resposta em assunto de melindre, a pitada pra-lhe infalível, e começava de arrastar a voz.
As suas ideas eram pelo mais puro e entranhado absolutismo.
Tinha sido condecorado com a medalha de prata, mandada cunhar pelo snr. D. Miguel com a sua rial efigie para galardoar aqueles dos seus vassalos mais devotados à causa do trono e do altar.
O seu rancor pelas novas ideas, que até êsse tempo não tinham produzido senão vitimas, era notório em tôda a diocese do Pôrto, e acentuava-o tôdas as vezes que se erguia a falar na cadeira da verdade.
Temos presente um dos sermões de Frei Quintino, impresso em 1831 -- com licença da Rial Comissão de Censura.
Algumas pequenas transcrições não prejudicam o seguimento desta história, e servem para acentuar o carácter da grande maioria dos humildes servos de Deus naquele tempo calamitoso.
Prègava frei Quintino trovejando do alto do púlpito de S. Bento da Vitória sôbre uma turba de fiéis de ambos os sexos e de tôdas as idades, mais curiosa talvez do que contrita:
«Só vos lembro o meio de que esta corja infernal, sempre tem procurado servir-se para lançar por terra o Trono e o Altar, acabar com os Reis e com a religiáo de Jesus Cristo, a quem tem ódio infernal, e é a soberania popular tanto in civilibus como in sacris.
«O povo é o soberano, a Soberania reside essencialmente em a naçáo, dizem estas bõcas Ímpias, e tam ímpias que chegaram a chamar ao contrário, sédiço Direito Divino. Daqui concluem que o rei não tem mais poder que aquele que o povo lhe quer dar; e como êles se intitulam representantes da naçáo, se arrogam todo o poder. Aqui assenta seu sistema ímpio e blasfemo, pois é inteiramente oposlo ao que Deus nos diz nas Sagradas Escritoras, cm qoe files não crêem, mas em que nos devemos fundamentar a nós mesmos e aos povos, paro que não se deixem levar com o vento de suas ímpias doutrinas.» Segue a refulação das sobreditas doutrinas pelas palavras de S. Paulo -- omnis anima poleslatibux ...-- e por estoulras, que se lêem no Livro da Sabedoria -- amlite, Reges, el intelligite... -- depois acrescenta da sua lavra o indignado orador:
«Deus é o Rei dos Reis, é o que tira e faz Reis, é o que constitue Reis. e é o que tira e dó Reinos a quem fi sua vontade. Esta fi a linguagem e a frase das Divinas Escrituras, e é o que nelas diz o mesmo Senhor, e não o que diz essa corja de ímpios blasfemos.» Referindo-se à então projectada instituição do júri cm Portugal, lendo insinuado que as suas- atribuições abrangiam não só as cousas civis mas as eclesidsUcas e espirituais -- louvável má fé num benemérito filho da Igreja -- exclama frei Quintino:
«Que impia blasfêmia ! Debaixo dêste impio e blasfemo principio, vós védes em suas infernais constituições e cartas constitucionais o desprfizo que fazem da Côrte Romana, dos Papas e suas Ruías e Decisões, dos Rispos e tôda a Igreja, sujeitando a mesma Santa Fé não só a êles, chamados representantes da nação, mas uté mesmo aos jurados, ou júris, que podem ser sapateiros, alfaiates e outros da mesma categoria !» E rematando a sua vigorosa argumentação contra «a influência do júri civil nas cousas ectesiãsticas e espirituais», interroga:
«Quem teem sido os que formaram e compuseram os Concilios, que sempre teem formado a Igreja e que verdadeiramenle a representam ? Teem sido os Papas e os Rispos, ou teem sido os júris e jurados de Inglaterra, França, ou Portugal moderno? Corja Ímpia saída ou abortada pelo inferno na face da terra !» Assim prègavam o evangelho de Cristo, pelos anos de 1829 e 1830, em quãsc todos os púlpitos de Portugal, uns homens rancorosos e fanáticos, que se diziam intérpretes da sua doutrina de liberdade e amor.
Frei Quintino era havido em tôda a diocese portuense como o mais esforçado compeáo da causa santa do trono e do altar.
Daí a consideração que lhe dispensavam não só os confrades de superior hierarquia, mas as principais autoridades eclesiásticas e civis, e as mais gradas familias do Pôrto, ligadas á causa do absolutismo.
Entre os que lhe celebravam o entranhado ódio às blasfemas doutrinas do liberalismo nascente, corria uma frase dôle, proferida na ocasião em que lhe davam a grata noticia de terem perneado nas- forcas da Praça Nova mais alguns maJhados , dos de pior casta.
Disse frei Quintino:
-- Ainda Bem. Morreram como judas, o discípulo traidor. Sómente Judas acabou como homem -- contrito, e êles morreram como cães -- impenitentes!
IX
O romance de frei Quintino
Frei Quintino tinha tido tambêm o seu pequeno romance, como qualquer pecador.
Tentaremos resumi-lo, posto que as variadas peripécias dêle nos fornecessem assunto para um volume à parte.
Foi por meado de 1811.
Dirigia-se frei Quintino, que, por esse tempo, ainda não contava trinta anos, em puro D. Basílio, de seu hábito preto e o seu amplo chapéu de abas revôltas, do largo dos Lóios para o convento, subindo a ingreme e suja ladeira da rua de Trás. Ao seu lado direito ia um secular de grave aparência, cabeleiru de rabicho, casaca de calção de briche, meia de sôda preta e sapatos com Avelas de prata.
Falavam de Napoleão, o temido conquistador, e incriminavam-lhe o proceder feroz e herético, que estava bradando ao céu por uma justa e assombrosa punição.
-- Que eu lhe digo a v. rev.ma: tantas coisas extraordinárias tem feito aquele homem, e lam bem se tem saído delas, continuando-se as vitórias umas atrás dns outras, que me tem lembrado se Deus o ajudará !
-- Credo ! Tal suposição é um insulto à divindade !
Êsse apregoado general é um ímpio, que nem mesmo respeitou a cadeira de S. Pedro !
-- Não tive a fortuna de me exprimir de modo que fôsse compreendido o meu pensamento -- volveu o homem do rabicho. -- Eu queria dizer, vendo a fortuna que cérca o tal Napoleão nas suas mais arriscadas empresas. se êle não será mais do que um castigo mandado por Deus para punir os homens de seus erros e pecados.
Ia responder frei Quintino, quando ouviu um chôro abafado atrás de si. Voltou-se.
Era uma rapariga de cabelos prelos e olhos rasgados e expressivos, airosa de porte, com um vestido de chita de ramagens talhado segundo a moda, um pequeno chaile ao pescoço e um lenço mal atado na cabeça, indicando a precipitaçáo com que saira de casa.
O pranto inundava-lhe as faces; os soluços embargavam-lhe a voz.
-- Que tem, minha fllha ? -- interrogou o frade parando.
-- Pelas divinas cinco chagas, queira v. rev.ma vir a nossa casa confessar a minha avósinha, que está a despedir !
-- Eu vou, eu vou -- tornou frei Quintino. -- Era mesmo desnecessário socorrer-se do valimento das divinas cinco chagas para isso. não é outro o meu dever. -- E voltando-se para o companheiro: -- V. s.a dá-me licença... ?
Frei Quintino desceu a rua alguns passos, acompanhado da chorosa rapariga, e, guiado por ela, entrou numa dessas vélhas edificações esguias, sem luz e sem ar, que ainda hoje se encontram naquela noutras ruas tortuosas do antigo burgo portuense.
Subiram a escada carunchosa e penetraram na saleta do primeiro andar, onde gemia uns gemidos prestes a extinguir-se, estendida num catre, tendo a roupa em desordem, uma velhinha tòda engilhada, com o olhar apagado e fundo, os lábios sumidos, dando à bôca entreaberta e sem dentes o aspecto de um buraco escuro; linha os braços fóra da roupa e o esqueleto das mãos afiladas era coberto duma pele rugosa e tisnada como a superfície dum velho pergaminho. Ansiava.
-- É esta a enfêrma ? -- interrogou frei Quintino parando aos pés do catre e contemplando a face macilenta da moribunda.
Era ociosa a interrogaçáo. A rapariga respondeu desatando em chôro mais aberto.
-- Etá bom, minha filha; sossegue. Deus é cheio de misericórdia -- tomou o religioso esforçando-se por aveludar numa expressão untuosa o áspero metal do sua voz, -- e em caso algum devemos desesperar dela.
Além disso repare que, com o espectáculo da sua dôr -- observou mais baixo, -- está lacerando o coração daquela cuja morte chora antecipadamente. Nestes momentos supremos, compreende-se, adivinha-se tudo.
Vamos: enxugue as lágrimas e reze... a oração infunde alivio e confiança nos corações atribulados.
A pobre moça, que tinha o nome de Isabel, voltando a face para o lado oposto àquele em que estava a enfêrma, enxugou disfarçadamente as lágrimas a uma das pontas do lenço que tinha na cabeça. Depois olhou novamente.
A vélha mexeu os lábios sem conseguir articular uma palavra e fez-lhe um quásc imperceptivel sinal com a mào descarnada aponlondo-lhe a porta.
-- Eu vou, minha avósinha, eu vou -- e voltando-se para o religioso: -- V. rev.ma não tem mais do que chamar quando fôr preciso... Estou ao fundo do corredor.
Saiu Isabel da sala, a porta cerrou-se, e quáse por espaço de meia hora se ouviu o sussurro da voz do confessor, com pequenos intervalos de silêncio, em que era de presumir, a decrépita criatura murmurava alguma resposta ou alguma oração.
Isabel, no fundo do corredor escuro, com os olhos fitos na claridade que dificilmente coava pelas fendas da poria, que se fechara nas suas cosias, escutava ansiosa o rumor da voz de frei Quintino e parecia-lhe a cada instante ouvir dizer:
-- Está morta !
Aquela meia hora pareceu-lhe inflnita.
Por último Isabel ouviu passos na sala dirigindo-se para a porta. Unia vertigem passou-lhe pela cabeça, a luz abandonou-lhe os olhos, um suor frio inundou-lhe a fronte...
Se efectivamente a sua avósinha tivesse morrido, emquanto a interrogava o religioso?...
Abriu-se a porta na extremidade do corredor e o vulto do frade destacou no fundo luminoso que o enquadrava.
-- Pode entrar--disse file a meia voz para fóra.
Isabel acudiu.
-- Sossegue, minha filha... A sua avósinha, que tanto parece estimar, nflo está Iam perigosa, como supunha... Acha-se no gôzo de tódas as suas faculdades:
bôa memória, bom ouvido, e eu ainda espero em Deus, por intervenção do meu bemuventurudo S. Bento, que ela há-de viver.
A moribunda, a estas palavras, enrugou levemente a bôca, talvez num sorriso de dúvida; Isabel, porém, ajoelhando aos pés do beneditino, beijou-lhe com efusão a manga do hábito, e levantando para êle os olhos suplicantes, exclamou numa voz comovida:
-- Que Deus nosso Senhor o oiça !
Frei Quintino pegou-lhe na mão e ergueu-a lentamente, encarando-a pela primeira vez.
-- Há-de ouvir, minha filha... Deus escuta as preces de quantos o imploram -- disse êle sem lhe ter deixado a mão; e, consigo mesmo, num urroubumento, acrescentava: -- Como é bonita !
-- Devo mandar chamar o Nosso Pai ?
-- Sem dúvida, e quanto antes. É preciso preparar para tôdas as eventualidades. Só Deus, Senhor nosso, lê no dia de àmanhã. Na dúvida, cumpre-nos prevenir.
Tem por quem mande aviso ao pároco?
-- Temos uma mulher. que nos foz os recados, mas ainda hoje não apareceu cá em casa.
-- Pois bem; nfto se aflija por isso. Eu vou à igreja prevenir as coisas, de modo que os saulos sacramentos estejam aqui dentro do mínimo espaço de tempo.
-- Muito obrigada n v. rev.ma -- disse Isabel sinceramente gruta por lanta bondade.
-- Não tem que me agradecer, minha filha. Cativaram-me os seus extremos de amor por essa pobre velha, que para si é como se fosse uma segunda mãe; e alêm de bôa, vejo que é religiosa e temente a Deus.
Conte comigo.
Frei Quintino aproximou-se da moribunda, chegou-lhe aos lábios frios a cruz de um bogalhudo rosário, e dirigindo-se gravemente para a porta, ia dizendo:
-- Vou cumprir com a possível diligencia a grata missão de que me encarreguei. Dentro em três quartos de hora a sua avósinha poderá adormecer neste mundo o sono eterno para acordar no outro cm meio de córos de anjos.
Chegado próximo da escada, a meio do escuro corredor, frei Quintino voltou-se para Isabel, que o seguia:
-- Escusa de vir mais adiante -- disse êle alongando o braço naturalmente com a mão espalmada, acontecendo receber o embate do seio rijo e, túmido da chorosa rapariga, que não previra aquela paragem repentina.-- Amanhã, quando passar por aqui, virei saber como está a enfêrma. E creia nisto, minha filha: Deus nunca abandona os bons.
Isabel ia ajoelhar. Frei Quintino ergueu-a pela cintura brandumente. murmurando com certa agitação na voz: -- Rasto, basta.
E desceu precipitadamente a escada.
No dia seguinte o frade apresentou-se em casa de Isabel, que rezava diante dum crucifixo de madeira, que tinha sôbre a meia cómoda, e cuja lamparina estava diante dêle apagada e sem óleo.
Ao ver entrar o religioso, anunciando-se por um -- louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, -- Isabel interrompeu as suas orações e foi-lhe ao encontro beijar a manga do hábito.
Frei Quintino relanceou-lhe um rápido olhar terno, e disse:
-- Vejo com prazer que a minhn filha se vai resignando com os altos juízos de Deus... Encontro-a mnis confiada... Milagres da oração ! Diga-me: como tem passado a enfêrma ?
-- Depois que tomou nosso Pai, parece que ficou mais sossegada. Já bebeu dois caldos, e tem-os conservado no estômago. Lembro-me se seráo as melhoras da morte...
E as lágrimas caíram em fio pelo rosto da pobre rapariga.
-- Não hâo-de ser, querendo Deus nosso Senhor.
Frei Quintino aproximou-se da enfêrma, e como ela indicasse querer dizer alguma cousa, o religioso achegou o ouvido daquela bôca entreaberta. Em seguida ergueu a cabeça e disse para Isabel:
-- Quer que a encostem para cima, nas travesseiras. Ajude-me.
E ambos, cada um pelo seu lado, conseguiram, depois de algum tempo, erguer a meio corpo o descarnado esqueleto da vélha, que respirava ainda. No rosto transluziu-lhe um certo bem estar. Em seguida, com um gesto, mandou retirar a neta.
Ela obedeceu.
Mas daí a dez minutos Isabel acudiu à voz de frei Quintino, que a chamava.
Entrou aflita, ansiada.
Nas braços do religioso, com os olhos cerrados, o queixo pendente c o corpo hirto, a vélha parecia cadáver.
Isabel soltou um grito e correu a ela, a apertá-la nos braços, a chamá-la, a abrir-lhe os lábios, como para lhe facilitar uma resposta.
Frei Quintino, entretanto, experimentava comoções de bem diversa natureza. Com os olhos sôfregos pousados no rosto da aflita rapariga, parecia devorá-la com a vista, alheio ao doloroso quadro de que êle era...
a sombra. Depois sôbre uma das suas mâos fradescas, de pele setinosa e bem tratada, caíram algumas lágrimas ardentes; essa estranha sensação coou-lhe no sangue um ardor febril, que lhe percorreu os membros, e perturbou os sentidos; depois, como ambos sustinham o corpo inanimado da vélha, uma das máos da pobre rupariga enlaçou-se numa das dêle, e o frade sentiu, a par dêste contacto, o calor da respiração apressada e a ondulação do seio ofegante dela.
Frei Quintino compreendeu que nfto podia estar ali por mais tempo. Tinha mudado de côr, as palpitações do roraçfto atropelavam-se-lhe e as fonles da cabeça batiam-lhe violentamente.
Assim, com a voz estrangulada na garganta, disse:
-- É melhor encostá-la para trás. não passa de um desmaio... Eu... vou chamar um médico... e já volto.
Isabel ficou só, banhada em lágrimas, chegando a face aos lábios da enfêrma, arregaçando-lhe as pálpebras, aquecendo-lhe as mãos entre as as suas.
Passado algum tempo, a vélha mexeu as sobrancelhas numa leve contracçáo nervosa, em seguida crispou os dedos das máos, e pareceu respirar.
Isabel, alvoroçada com êstes inesperados sinais de vida, deu em chamá-la pelos nomes mais ternos, -- e ela entreabria os olhos para os tornar a cerrar, quando frei Quintino entrava de novo na saleta da moribunda, acompanhado de um médico vizinho.
-- Vive ! está viva ! -- clamou ela ao aperceber o religioso.
O médico auscultou a vélha, que mais parecia múmia, fez um gesto indicativo de pouca ou nenhuma esperança, receitou uma tisana e saiu.
Frei Quintino aproximou-se de Isabel, para lhe dizer baixo:
-- Minha filha, sua avó deu-me a entender as circunstâncias pouco lisonjeiras a que estão reduzidas.
Era quáse exclusivamente do seu trabalho que a menina tirava para a subsistência de ambas. Hoje, as poucas economias que conseguiu amealhar, dispendeu-as com a doença da sua avó, e essa mesma doença a tern impedido de trabalhar. A minha presença aqui, pois, é providencial. Foi o Senhor ou algum dos seus santos, que a inspirou, quando ontem correu a chamar-me. Rogo-lhe, minha Dlha, que aceite esta peça de oiro para pagar a tisana, que o médico receitou, e satisfazer ainda outras necessidades... Vamos, entáo ?
-- Perdôe-me s. rev.ma. porêm... graças a Deus, nós ainda temos alguma coisa, e...
-- Que teem?... Não falte à verdade.
-- Não falto, meu snr.; temos ainda estas quatro cadeiras com...
-- Está bom -- interrompeu êle; e insistindo com branda autoridade. -- Aceite, repito... ou não tem confiança neste hábito em que eu ando amortalhado ?
Isabel recebeu trémula a peça de oiro, que o frade lhe oferecia. A prova de que não tinha um triste rial em casa -- é que estava sem gota de azeite a lamparina do crucifixo.
A bôa rapariga quis agradecer no seu bemfeitor beijando-lhe e regando-lhe as mãos de lágrimas. Êle.
porém, esquivou-se, dizendo que voltaria no dia imediato.
Voltou, e mais cedo, na manhã seguinte.
Ao chegar ao alto da escada, e tendo dado alguns passos no corredor, parou a escutar. Era profundo o silêncio.
Parecia que estava solitário o primeiro andar, ocupado pela moribunda e pela neta.
Entrou na saleta e estacou.
Sóbre o catre, com a face lívida, as pálpebras entreabertas, o olhar gelado e baço, os lábios roxos, quáse negros, com um liquido espumoso e sanguíneo aos cantos da bóca, as farripas do seu cabelo de estriga coladas ás fontes pelo suor viscoso da agonia, o peito descoberto, em cuja pele, ás manchas escuras, se desenhavam as mnis leves proeminências e as mais pequenas depressões dos ossos, com as mãos e os braços contorcidos, alongava-se inteiriçado, hirto, o cadáver da vélha.
No chão, pálida, com os olhos cerrados e o negro cabelo em desalinho, estava Isabel estendida sem acôrdo.
O frade percebeu o que se teria passado. Correu à inanimada rapariga, tomou-lhe unia das mãos. Era gélo.
Há quanto tempo estaria assim, perdida dos sentidos, fria como uma defunta, sem socorros de espécie alguma?...
-- Pobre pequena, coitada! -- balbuciou o religioso.
F. ergueu-a pelos sovacos, apertou-a brandamente contra si e foi levando-a com os pás a rastos até uma cadeira onde a sentou. A cabeça caiu-lhe sôbre o ombro, os braços penderam-lhe inertes ao longo do corpo.
Depois, o beneditino olhou á volta, suspeitoso, agitado... Estava apenas em presença dum cadáver, que o fitava sem o ver, e duma mulher desmaiada, que receberia as suas caricias sem protestar.
Então caiu de jolhos aos pés de Isabel, tomou-lhe de novo uma das mãos, e enroscou-lhe o braço ao pescoço, atraiu-a a si, docemente, cautSlosnmcnle, receoso de a despertar, e colou os seus lábios ardentes e lascivos nos lábios frios dela.
Uma nuvem côr de sangue passou-lhe rápida pela vista, como se a impelisse um vento impetuoso; e dispunha-se a imprimir novo beijo naquela face inanimada, quando Isabel, sacudindo inesperadamente a cabeça, abriu os olhos desvairados, ergueu-se de salto, e, não vendo o homem que tinha nos pés, depois de encarar em volta, correu como doida no catre da avó com os braços estendidos e chamando-a a grandes brados.
Frei Quintino, pálido, surpreendido por esta rápida mudança, ergueu-se cautelosamente, sem ruído, desdobrando-se como uma cobra, sem desfitar a pobre areada rapariga.
Esta, mesmo depois, não dera pelo reverendo. Tinha juntado as mãos, enclavinhado os dedos uns nos outros e erguia assim, pela nuca, servindo-lhe as palmas de travesseiro, a cabeça inerte da vélha.
-- Minha avó ! minha querida avósinhn ! fale-me !
responda-me ! diga-me que não morreu ! Diga ! sou eu que lho peço! Não vê? Mas fale!... -- e, deixando a cabeça, que fez um sinal negativo ao baler inerte no travesseiro, Isabel prosseguiu, agarrando os cabelos, no auge do desespêro: -- Morta ! morta ! e que será de mim agora, Maria purissima ? !...
Frei Quintino achou asado o ensejo de se mostrar, adiantou-se gravemente, e com a serenidade dum patriarca, disse-lhe:
-- Minore a sua dôr, minha filha... As lágrimas sfio para os que morrem em pecado, e sua avó está no seio de Deus. Era uma santa... que a não esqueceu um momento. Sim, minha filha, ela pediu-me, já quando a voz lhe era quáse imperceptivel, que a dirigisse, que a protegesse, que a não abandonasse, e eu prometi-lhe satisfazer a sua última vontade. Hoje mesmo sairá desta casa, minha filha...
Decorreram dez meses; -- Isabel era mãe.
Sem dúvida em cumprimento da promessa que fizera à velha moribunda, ao cabo dêsse tempo frei Quintino ainda ia diáriamente a casa de Isabel, que, sentada no leito, amamentava o filho.
Decorridos oito dias, disse-lhe o religioso:
-- Bem vê que não pode ficar aqui essa criança...
Era um comprometimento grande. Já mandei falar a uma ama sadia, do alto de Santo Ovidio, em Vila Nova, para tomar conta dela.
Isabel rompeu em lágrimas e aos beijos ao inocentinho, que, depois de a fitar com os olhos muito abertos, desatou a «fazer bicos» e por fim em chôro, como se tivesse compreendido de que se tratava.
Frei Quintino tomou carinhosamente o pequeno do colo da mãe, e passeou-o na sala, dirigindo-lhe palavras de muito mimo e beijando-o repetidas vezes na testa.
A criança foi para a ama, entre soluços e abraços da mãe, como se fósse dali para o cemitério. A ama, que a veio buscar, deixou o nome e a morada no logar que o beneditino dissera, alêm-Douro, a três quilómetros do Pôrto.
Desde essa ocasião, frei Quintino foi espaçando as suas visitas ao domicílio de Isabel; e quando esta pediu para ver o filho, o religioso tinha sempre palavras, que a desviavam do seu propósito. Frei Quintino tomou carinhosamente o pequeno Mas, um dia, pela manhã cedo, depois duma noite mal dormida, Isabel ergueu-se; chamou uma mulher, que lhe fazia as vezes de servente, e, dando-lhe a indicação da casa da ama, ordenou que fôsse lá e que lhe trouxesse o filho -- «senão que rebentava de saudades !» -- acrescentou.
A mulher partiu.
-- Meu Deus! -- murmurava Isabel, à janela, impaciente, alongando a vista até à extremidade da rua, ansiosa por ver chegar a recoveira com o «seu anjinho.» -- Êle que venha... êle que venha, e depois veremos quem mo há-de arrancar dos braços !
Era meio dia quando a mulher voltou desacompanhada.
-- Porque não o traz ? que tem êle ? Está doente ? Diga ! a ama vem aí ? onde ficou ?
Oh ! senhora ! eu não sei ! Venho estafadinha de perguntar e todos me dizem, que tal mulher não é dali... Sempre foi uma caminhada !
-- Não á dali !? Pois a ama do meu filho...?
-- Ao menos ninguém a conhece no logar.
Isabel correu a uma gaveta da meia cómoda, abriu-a, pegou num papel que estava cuidadosamenle dobrado a um canto, e leu:
«Alto de Santo Ovídio, em Vila Nova de Gaia, próximo da capela, Joana Maria.» Este bilhete estava pela letra de frei Quintino e fôra-lhe ditado pela ama na presença de Isabel.
Já vê que foi porque vocemecê não soube perguntar. Aqui eslá bem claro, «próximo da capela.» Mas não tem dúvida. Vou eu mesma lá.. Agora é que não posso esperar de modo nenhum ! Quero ver o meu filho ! Quero abraçá-lo ! Quero trazê-lo comigo ! É meu ! Ninguém mo pode roubar. Direi isto mesmo a êle. Pedir-lho-hei de joelhos... Vamos, vamos...
Emquanto dizia isto, desorientada, febril, Isabel apertava os colchetes do vestido, punha um chaile preto pelos ombros, atava um lenço na cabeça e descia a escada precipitadamente.
Chegou à Ribeira, passou a sinistra ponte de barras, dirigiu-se, por indicaçáo das pessoas a quem ia perguntando, ao alto de Santo Ovídio; indagou, interrogou todos os moradores do logar, bateu a Mdas as portas, percorreu, como doida, todos os caminhos, todos os bécos das imediações, chamando a gritos desesperados por Joana Maria, e ninguém lhe soube dizer quem fôsse.
Era já noite, quando Isabel, sem lenço na cabeça nem chaile pelos ombros, com o calielo em desalinho, se dirigia numa corrida vertiginosa para o cais como em perseguição duma idéa única...
E balbuciava, sòzinha:
-- O meu filho... o meu filho...
Ao outro dia, na maré vasa, o rio depositava brandamente nos lôdos da margem esquerda, como num leito fofo, babujando-o, o cadáver de uma mulher ainda nova. Vestia de luto, estava desmedidamente inchada, tinha os seios descobertos e os braços encruzados neles, como se aconchegasse alguma coisa invisível. Era Isabel.
Prevenido pela servente, frei Quintino mostrou-se a principio mais surpreendido que magoado.
-- E suicidar-se-ia a desgraçada ? -- interrogou o frade, alguns instantes depois.
-- Ouvi dizer que sim -- volveu a mulher compungida. -- Há mesmo quem a visse correr para o rio.
-- O que faz a falta de religião ! -- disse êle erguendo beatificamente os olhos para o céu; e acrescentou:
-- Que Deus nosso Senhor se amerceie da sua alma.
X
Uma declaração
Apresentado frei Quintino, sigamos com a história.
-- A paz de Deus seja nesta casa! -- dissera o religioso ao apresentar-se na sala onde eslava Luis Maria com a filha.
-- Oh ! snr. frei Quintino ! -- disse o negociante saindo-lhe ao encontro. -- Entre v. rev.ma.
-- Snr. frei Quintino... -- murumurou respeitosamente Leonor beijando-lhe a manga.
-- A bênção do Senhor baixe sôbre a tua cabeça.
-- E voltando-se para o negociante, ao passo que tomava a cadeira que Leonor lhe oferecia: -- Pois é verdade... Usando da liberdade, que o meu amigo imerecidamente concede a êste humilde servo de Deus, e sabendo que não havia visitas de cerimónia, dei-me ao trabalho de subir êstes dous andores para conversarmos um pouco. Mas, antes de mais nada, queira dizer-me o amigo e snr. Luis Maria, sempre veio o estudante ?
-- Ontem à noite, como tinha dito a v. rcv.ma.
-- Pois ó aviar, meu amigo, que todos os dias estão chegando 0 intendência novas denúncias, e dum instante para o outro pode aparecer na lista o nome dêle. Em Coimbra, dos que estavam à mesa nessa noite de orgia, já foram presos todos, excepto seu sobrinho e um outro valdevinos sem temor de Deus.
-- Hoje a sua partida é quáse impossível. Está fatigado de seis dias de jornada, a pé, e por maus caminhos. Se v. rpv.ma não acha urgente, abalará para Espanha àmanhá de noite, em companhia do Tôrres, que é homem seguro.
-- Pois sim; mas o essencial é que êle parta quanto antes. Oh ! êstes rapazes, êstes rapazes ! não sei em que leite maldito beberam scmelhanlcs idéas de destruição c de revolta contra o que tem o cunho da veneração de tantos séculos: o altar de Deus e o trono de el-rei nosso legítimo senhor. Emflm o mal é dêles.
porque a santa causa triunfará sempre, com a ajuda de Deus... Porlee inferi nnn prevalebunl. -- E, mudando de tom, interrogou: -- Mas onde está êle? Ainda não desesperei de o converter.
-- É escusado, snr. frei Quintino. Conheço bem as suas idéas e que fundas raízes leem, para caírem ao sôpro de alguns argumentos...
-- Bem sei... -- rosnou o religioso despeitado -- já não vai assim. -- Depois, em solilóquio, acrescentou, erguendo-se da cadeira, o agitando os braços: -- E ainda há quem se revolte contra a lógica da forca !
Leonor, pálida, soltou um grito abafado e recuou horrorizada.
Luís Maria levantou-se ao mesmo tempo, e quáse repreensivo:
-- Que diz, snr. frei Quintino ? !
-- Nada... valha-me Deus. Não era com referência no sobrinho do meu estimável antigo.. Ao contrário, estava até pensando numa coisa muito diversa. Depois lhe direi...
Luís Maria relanceou os olhos sóbre Leonor, que ficára trémula.
-- Quer v. rev.ma descer no primeiro andar? Estaremos aí mais á vontade -- alvitrou êle que receava nova explosão sanguinária do religioso.
-- Pois sim, é melhor -- concordou. E dirigiram-se ambos para uma das portas da sala.
Entretanto Leonor tinha-se deixado cair numa cadeira,-- sem fôrças, aniquilada.
Luís Maria, no chegar à porta, voltou-se, correu à filha, e erguendo-lhe o rosto para êle, disse carinhosamente:
-- Olha que eu não posso ver-te assim, meu anjo. Vamos: tu não hás-de querer afligir-me, pois não, Leonor ? -- e, beijando-a na face, saiu.
Ela, ao ficar só, encarou á volta um olhar de espanto, de terror.
-- Meu Deus ! a forca ! Oh ! como são cruéis êstes homens !... Levá-lo à forca, e porquê?... Um inocente !... Pois sim; e quantos não teem sofrido inocentes?... O pui diz bem. Ele não pode ficar. Um dia cercavam-nos a casa, e levavam-no preso, como teem feito por aí sem destino... depois... Oh ! mas é horrível ! ter de fugir de noite, a mêdo, como se fôsse um criminoso, e sem ler cometido crime algum !
Frederico havia entrado na sala, sem que Leonor tivesse dado por tal, e parou a contemplá-la um momento.
-- Em que pensa, Leonor ? -- perguntou o académico.
-- Ah! é o primo?.. -- exclamou ela sobressaltada.
-- Assustou-se?... Em que pensava?
-- Ainda o pergunta ! Não o sabe o primo até de mais? Tam pequena é a desgraça que nos fere a todos !
-- Tem razão. Desculpe se a magoei com a minha pergunta -- disse Frederico; e animando-se prosseguiu; -- Pensava no desterrado, não é assim?... Mas os momentos são preciosos. Amanhã terei abandonado esta casa, onde deixo tôda a minha felicidade. Há muito que eu esperava ocasião de lhe falar a só. Este momento, pois, é solene. Escute-me, Leonor. Vou usar uma linguagem, que deve estranhar, uma linguagem que eu nunca lhe falei, nem tam cedo falaria, se não fôssem as circunstâncias excepcionuis em que me vejo.
não sei quando voltarei, e --neste lance tomou-lhe febrilmente a mão -- morreria de dôr no meu destérro, se, antes de partir, não lhe tivesse aberto o coração.
Leonor, fitando no primo um olbar prescrutador e assustado ao mesmo tempo, retraíu-se tôda.
O mancebo prosseguiu:
-- Creio escusado lembrar-lhe os anos, que na juventude passamos um ao pé do outro, descuidosos, felizes, como sucede a todos nessa idade. Crescemos. A Leonor está quáse uma senhora, eu estou um homem. Não sei, se na prima, os sentimentos que nos ligavum em pequenos passaram por alguma transformação. Pelo meu lado posso dizer-lhe que sim, porque há muito que eu a amo ! No meu solitário divagar pelas margens do Mondego à hora do crepúsculo, ou no recesso do meu quarto de estudante, tam povoado de sombras, nos caprichos dos meus sonhos de rapaz, era a si que eu via, era em si que eu scismava. Agora que vou partir... não sei para onde, e que voltarei... não sei quando, agora preciso que me fale, como falaria aos pés do padre que a ouvisse de confissão. Diga-me, Leonor: ama-me?
Pequeno intervalo de silêncio. Ela fitou os olhos no chão; Frederico ansioso esperou alguns segundos uma resposta.
-- Cala-se ? ! -- exclamou por último; e deixando-lhe a mão: -- Enganei-me, nfio é assim ? Diga: foi uma vertigem, uma loucura, um sonho... a prima não me tem amor... é isto? Deu já talvez o coração a outro homem ? Oh ! mas fale ! não vê que o seu silêncio me tortura e esmaga? !...
Depois, serenando aparentemente:
-- Vamos, responda: ama outro ?
-- Oh ! não ! que pergunta !
-- Ama alguém ?
Houve novo instante de silêncio; por fim ela, escondendo nas maos o rosto lavado em lágrimas, exclamou num soluço:
-- O primo !...
E sem fôrças caiu numa cadeira, a que se havia apoiado.
Frederico soltou um monossilabo, de quem se vê repentinamente aliviado de um pêso enorme, e correndo á sucumbida criança:
-- Obrigado, Leonor -- disse êle. -- Era das suas palavras que estava pendente o meu futuro ! Ainda bem ! Assim, trabalharei, lutarei para um dia tornar a êste desgraçado pais a vê-la, a apertá-la contra o meu peito, a dar-lhe o nome de espôsa. Sem a certeza do seu amor, eu não voltaria a Portugal, juro-lho !
E como fóra ressoassem passos:
-- Aí vem meu tio -- acrescentou o académico, esforçando-se por conciliar a serenidade perdida -- e eu desejo falar-lhe. Até já, sim ?... e obrigado.
-- Até já... -- murmurou ela, saindo.
XI
O altar e o trono
Era efectivamente Luís Maria, só. Frei Quintino encontrára a mulher do negociante dispondo num baú de couro algumas peças de roupa, e no intuito de a consolar, porque lhe viu os olhos rasos de lágrimas, sentou-se a esquartejar com o seu afiado trinchador -- a língua -- os liberais pretéritos, presentes e futuros -- essa corja ! -- como êle evangélicamente lhes chamava.
Luís Maria vinha arrecadar as cartas de recomendação, que tinha estado a escrever e que lhe haviam esquecido em cima da secretaria. Uma só bastaria para o levar ao cárcere, ao tribunal, e quem sabe depois até onde.
Frederico esperava-o.
-- Julguei que não estavas só -- disse-lhe o tio, indagando á volta.
-- Não. Estava aqui também Leonor...
-- E retirou-se?
-- Pedi-lhe que nos deixasse alguns instantes para podermos falar sem testimunhas.
-- Tens que me dizer?
-- Tenho, sim, meu tio. E uma confidência, que nunca me atrevi a fazer a mim mesmo o que vai ouvir. Peço-lhe que me perdôe, se acaso o magoar com esta revelaçáo, mas não podia partir sem lhe confiar o mais precioso segrêdo da minha vida.
-- Fala, dize...
-- Meu tio -- arriscou Frederico, depois dum momento de hesitaçáo: -- eu amo Leonor!...
Seguiu-se uma pequena pausa, durante a qual Luís Maria encarou no sobrinho com o olhar cheio de ternura, e êle se conservou de cabeça baixa, como um criminoso que espera resignado a sentença.
-- Mas que tem isso ? -- perguntou a final o negociante, dando-se um tom de naturalidade, que a voz traia.
-- Que tem ? ! -- repetiu Frederico alvoroçado. -- Não leva a mal êste amor?
-- Eu ? ! pois se tôdas as minhas ambições se limitam a vê-los unidos para sempre, porque tenho a certeza de que os farei a ambos felizes ! ?
-- Oh ! meu tio ! -- exclamou Frederico esforçando-se por beijar-lhe as mãos. -- Oh ! meu bom tio !
Luís Maria, comovido a lágrimas, amparou-o nos braços.
-- Então que é isso ? -- interrogou êle, tam agitado como o sobrinho. -- Vamos, não sejas criança; tem juízo.
-- Mas é justamente agora que mais sinto o horror da minha situação ! porque eu... não «lhe» sou indiferente, o snr. não contraria êste amor, e tenho de partir, como se fugisse da felicidade !
-- Éstà bom, Frederico -- obtemperou Luís Maria com voz amigável. -- Exageras tudo. Não te quero assim. Hoje ou àmanhã pouco importa. Agora trata de apareceres tranquilo e sereno diante de frei Quintino, que te quer ver.
-- Ele está cá ?
-- Está. Deixei-o com tua tia. Repara como o tratas.
-- Eu não trato mal ninguém; mas repelirei quaisquer provocações. Amordaçar-me, só um !
-- Quem, Frederico?...
-- O carrasco !
-- Silêncio.
Entrava frei Quintino na sala.
-- Ora ainda bem que o encontro. Pensei que não teria hoje a satisfaçáo de o ver.
-- Creia v. rev.ma que, pela minha parte, senti-lo-ia também imensamente.
-- O que lhe posso afirmar é que jogou uma carta muito arriscada vindo ao Pôrto.
-- Então porque diz isso v. rev.ma ?
-- Ainda o pergunta ! -- replicou o beneditino com espanto. -- Que lho explique seu digníssimo tio, que sabe quanto a justiça de el-rei costuma ser inexorável para os míseros, que seguem o partido da «rebelião».
A esta palavra os olhos do académico fuzilaram; mas, dominando-se:
-- Diz bem o snr. frei Quintino -- apoiou êle; -- da rebelião contra o absolutismo, contra um poder despótico e bárbaro, contra a escravização dum povo inteiro.
-- Frederico ! -- observou Luís Maria admoestando-o brandamente.
-- Perdão, meu tio; mas eu quis apenas desenvolver o pensamento de s. rev.ma quando chamou ao partido, em cujas fileiras eu não vejo por ora senão mártires, o partido da rebelião. É, efectivamente, e eu não o pretendo negar; pelo contrário, orgulho-me com isso.
-- Não sabe quanto me entristece ouvi-lo falar assim, dessa maneira, snr. Frederico -- disse o final o religioso com grande mágoa na expressão. -- Mas o snr. não tem a culpa. Culpada é essa Coimbra, antro de Satanás, que tem perdido tanto moço de talento para si, para a pátria e para Deus ! centro de rebelião contra a paz dêstes reinos, contra os sagrados direitos da legitimidade e contra a religião católica-apostólica-romana.
-- O snr. frei Quintino engana-se -- replicou Frederico, que não via ou não queria ver os sinais que o bom do negociante lhe estava fazendo para que se calasse. -- Coimbra não é centro de rebelião. Por toda a parte se tramu independentemente, não contra a paz dêstes reinos, mas contra as algômas dum povo escravizado, não contra os sagrados direitos da legitimidade, mas contra a vontade absoluta, suprema, despótica dum homem, não contra a religião católica-romana, mas contra a hipocrisia dos falsos ministros de Deus, contra o fanatismo sanguinário e feroz ! O snr... !
O beneditino interrompeu-o:
-- Por quem é, peço-lhe que se modere. Bastará de imprudências. As paredes também teem ouvidos.
Mais baixo, mais baixo...
-- Frederico ! -- observou Luís Maria contrariado -- O snr. frei Quintino diz bem; esqueces-te de que ainda estás em Portugal, meu sobrinho.
-- Tem razão... Eu mesmo sinto que devo abandonar êste país o mais depressa possível, porque me denunciaria na primeira ocasião. Ainda não aprendi a disfarçar nem a mentir... e aqui não se pode pensar alto, não se pode falar alto ! por isso emigro; porque me afogariam a voz na garganta se eu tentasse falar, e não posso nem quero estar calado.
-- Nesse caso faz o snr. muito bem; posto que eu desejaria antes vê-lo abjurar os erros que tem proclamado, para maior triunfo e glória da santa religião e maior confusão do anjo das trevas, cujo instrumento é.
Luís Maria previu que estas palavras trariam dura réplica por parte do académico, e querendo obstar a maior sensaboria, atalhou, dirigindo-se ao beneditino:
-- Perdão; mas se v. rev.ma consente, eu precisava de dar algumas ordens... -- frei Quintino fez um gesto seráfico. -- Frederico, dize a tua tia que mande recado ao Tôrres para estar aqui á bôca da noite. Convêm assentar no que há a fazer...
-- Sim, meu tio -- anuiu o mancebo, e baixando levemente a cabeça a frei Quintino, retirou-se.
Ficaram a sós os dois.
-- Peço desculpu a v. rev.ma -- acudiu Luis Maria -- de algumas frases proferidas impensadamente por êsse rapaz, nas quais, posso-o afirmar, não havia o mínimo propósito de desatender a v. rev.ma. A febre dos vinte e dois anos, que a todos nos aqueceu o sangue mais ou menos e que èmanhã a reflexão acalmará decerto, é a única origem das suas palavras e dos seus entusiasmos.
-- Engana-se, se imagina que me podem ofender as palavras de seu infeliz sobrinho, meu muito católico snr. Luis Maria -- disse frei Quintino com uma pausa e compunção tôda eclesiástica. -- A santa religião, de que sou indigno ministro, manda-me perdoar as injúrias e aconselha-me a caridade. Seu sobrinho, meu amigo e snr., não conseguirá senão despertar-me um sentimento de profundo desgôsto e de uma grande pena, porque eu, em vez de ter nos meus ouvidos as suas expressões cheias do rancor de Satanás, tenho diante dos olhos o tristíssimo espectáculo, lamentabile visu, duma alma que se deixou empolgar pelo anjo das trevas. O snr. Luís Maria tinha-me dito a verdade. Não são as bôas razões nem as sãs doutrinas, que o hão-de chamar do caminho do êrro. A lepra tem feito grandes progressos no seu espirito, e a não ser um milagre do céu, que se amerceie daquela alma transviada, o mal, quanto a mim, não tem remédio !
E enxugando uma lágrima ausente:
-- Choremos seu sobrinho -- prosseguiu, -- porque está inteiramente perdido. Há muito que aquela Universidade de Coimbra devia ter sido arrasada e as suas ruinas benzidas em todos os sentidos. Longe de ser o que dantes era, o usilo privilegiado da sciência e da fé cristã, dirigido por doutos e virtuosos jesuítas, tornou-se quartel de impios e de jacobinos !... O mais que poderei fazer é pedir a Deus que opere o prodigioso milagre da sua conversão aos santos princípios do catolicismo e da legitimidade, sua filha primogénita.
«Mas dêmos tréguas -- prosseguiu instantes depois, tendo oferecido rapé ao negociante e servindo-se da sua caixa redonda com o retrato do padroeiro na tampa -- dêmos tréguas a êste doloroso acontecimento, que me enche de mágoa e confusão, e deixe que lhe fale de outro assunto, que me inspira sérios cuidados. São tais as provas de estima que tenho recebido do snr. Luís Maria e de sua exemplar família, que seria um ingrato se não me interessasse pela sua felicidade mais do que pela minha própria. -- E tendo fungado estrondosamente a pitada: -- Trata-se de sua carinhosa filha, meu prezado amigo -- acrescentou.
-- De Leonor ? ! que tem ?
-- Não se sobressalte. Meras apreensões. Achei-a ainda agora pálida, lacrimosa, abafada em soluços...
-- Mas isso é natural, e o contrário estranharia eu que sucedesse. Chora pelo primo, que nos vai deixar.
-- E não será aquele pranto mais do que uma simples expressão de mágoa?... Perdoe o meu religioso amigo se pretendo entrar nos refolhos do coração da sua virtuosa filha, mas, fazendo esta pergunta, cumpro o meu dever de amigo leal. Amará o primo por desgraça ?
Luís Maria recebeu de chofre a pergunta, fitou um olhar prescrutador no beneditino que, naturalmente, saboreava os restos da pitada, e tornou, havendo recalcado a primeira resposta que chegára a desfranzir-lhe os lábios: -- não o posso dizer a v. rev.ma.
-- É o mesmo -- redarguiu frei Quintino, mais para si do que para o seu interlocutor; -- ouvi-la-hemos de confissão... Entretanto sempre é bom prevenir. V. s.a, de cujos sentimentos religiosos, eu sou testemunha e trombeta, não pode, como pai e como católico, autorizar uma ligação que lhe traria sérios embaraços de consciência. Não quero dizer que o mal pudesse inquinar o espirito de menina de tantas virtudes, mas o tenlador espia o momento de aumentar o número das suas vitimas, e até os anjos chorariam nos pés do trono do Altíssimo, se êle conseguisse escravizar alma tam pura !
-- Mas, snr. frei Quintino...
-- Peço vénia para terminar. De tudo isto venho a concluir, agora que a ausência de seu sobrinho infelizmente lhe proporciona ensejo, que seria da máxima conveniência escolher um genro dócil, amante da igreja de Cristo e inimigo destas idens sanguinárias da revolução contra o nosso rei legítimo. A propósito...
Rrevemenle terei de lhe apresentar um afilhado meu, moço ainda, que terminou há pouco a sua educação nu companhia do reverendo padre-mestre frei Joaquim de Jesus-Maria-José, na vila de Barcelos.. Ah ! por êste fico eu, que não quer a destruição do trono do rei e do altar de Deus !...
Luís Maria, como num à-parte teatral, segredou a si mesmo:
-- Começo a suspeitar... ! -- e não concluiu a frase.
-- ...Mas a seu tempo O verá.
E erguendo-se:
-- Creio ter-lhe ouvido dizer que saía ?
-- É verdade. Vou à rua das Flores.
-- Podemos então ir conversando pelo caminho.
-- Não me demoro... um instante apenas.
Daí a pouco desciam a rua do Loureiro o negociante e frei Quintino.
XII
Uma lição ao mestre
Compareceu o Tôrres ao bater das Ave-Marias na casa da rua Chii e assentou com Luís Maria e Frederico na maneira de se efectuar a partida na noite do dia imediato.
Prevaleceu o mesmo plano da sua saída de Coimbra, com uma pequena alteração. Seguindo ate às proximidades da Carriça. com uma récua de três ou quatro machos, daí por diante continuaria na estrada com um macho apenas, que lhe levaria a bagagem, metendo por Vila Nova de Famalicão, Barcelos, Viana, Caminha, Valença, entrando por último em Tuy. Tôrres acompanhá-lo-ia até esta cidade da raia espanhola, voltando depois com o animal para o Pôrto.
Frederico naquela noite não conseguiu cerrar os olhos. Estava pressentindo o golpe de uma cruel separação por tempo indefinido.
Na manhã seguinte, frei Quintino apresentou-se em casa do negociante mais cedo que o costume, sendo tal madrugar motivo para sobressalto.
Não havia de quê.
Ele tinha sido chamado para ajudar a bem-morrer um enfêrmo, e como sabia que a familia do seu católico amigo estava precisada de quem a consolasse no doloroso transe da partida do académico, entrou ali no cumprimento do seu santo ministério, que o manda consolar os tristes.
E foi distribuindo pelo dono da casa e pelas duas Senhoras, as suag consolações, que não passavam de furiosas diatribes contra a impiedade do século, que a um tempo guerreia o altar e o trono.
-- É, porém, notável -- observou éle num lance da sua catilinária, quando já se tinham retirado da sala Clara e Leonor -- que o meu ilustre amigo, no meio dêste debaler de opiniões, se tenha conservado neutro, para não dizer indiferente, visto que as únicas provas, que tenho, de se opôr a essa torrente de impiedade, que debalde procura engolir-nos, silo os seus sentimentos religiosos... mas nem uma palavra, nem um gesto sequer de reprovaçáo... !
-- Olhe, snr. frei Quintino -- respondeu o negociante depois de alguns segundos de recolhimento: -- se eu fôsse novo e não tivesse uma mulher, uma filha e o meu negócio a tratar, não digo que não tivesse também como os outros a minha opinifto. Posso mesmo asseverar-lhe que a teria. Mas assim, não; nem a tenho, nem a quero ter. O que eu pretendo é o sosségo para mim e a felicidade para os meus, que é tôda a minha felicidade. Aí está porque não entro nem entrarei em política.
-- Mas quem fala ao meu amigo em política ? De política não sei nem quero saber também. Proíbe-mo Êste hábito, que me obriga à contemplação das glórias celestiais e ao desprêzo das misérias terrenas. Mas agora, quando se pretende derribar com o palácio dos nossos reis a igreja de Jesus Cristo, todos temos obrigação de erguer a nossa voz para protestar, opondo uma barreira invencível a essas legiões de demónios vomitados pelo inferno para fundarem o império da iniqúidade. Nesse caso a indiferença é mais do que mero egoísmo, é crime de lesa-divindade, ante o qual será nulo todo o nosso poder absolutório. Quem não é por mim é contra mim, disse Jesus. Queixam-se êsses exaltados loucos do rigor, que os enviados de S.
M. El-Rei, que Deus guarde, usam para êles, dando um salutar exemplo de cega obediência a futuros rebeldes. .
Neste ponto do discurso, Frederico que aparecera à porta da sala, estacou surpreendido.
Nem um nem outro dos interlocutores o viu.
-- Pois não é o rei legitimo um delegado de Deus no meio do seu povo ? --prosseguiu frei Quintino animado pelo silêncio de Luís Maria. -- Creio que é. Deus é o rei do cêu, como o rei é o Deus da terra. E sendo assim, o que fez Deus com os rebeldes no cêu, faça-o o rei com os rebeldes da terra.
Frederico tinha-se adiantado alguns passos, trémulo e pálido.
-- Gritam contra o absolutismo -- continuou trovejando o beneditino, -- chamam-lhe despotismo e tirania ! mas que entendem êsses desgraçados, a cujo grupo pertence o seu mísero sobrinho, que entendem êles «por absolutismo» ?
Não pôde conter-se mais o académico; era um replo que o frade acabava de lhe dirigir a êle, e tanto mais cobarde quanto o julgava ausente. Então, aparecendo-lhe de face, rompeu nesta declamaçáo indignada:
-- Quer v. rev.ma saber o que êles entendem por absolutismo ? Interrogue com a visla desempanadn as páginas da histéria de todos os povos e de todos os tempos ! Ai poderá conhecer essas duas espécies de poder humilhante, debaixo do qual tem vergado o povo português: o absolutismo dos nobres senhores feudais consubstanciado hoje na rialeza pessoal e despótica, e o absolutismo clerical representado pelos ministros cruéis de um Deus, que, ao expirar na sua cruz, perdoou aos que o mataram. Pergunta o que uns desgraçados. como eu, entendemos por absolutismo ? vai sabê-lo v. rev.ma ! Fala por mim o passado.. Absolutismo -- é impôr por meio da violência, da espada, do pôtro, idéas que a nossa inteligência repele, que o nosso espirito condena !
«Absolutismo -- é o cléro fanático privando Galileu da liberdade aos 70 anos, e obrigando-o a abjurar de joelhos as suas doutrinas de verdade e de luz !
«Absolutismo -- é D. Manuel expulsando a colónia judaica e empobrecendo Portugal em muitas dezenas de milhares de braços, incansáveis no trabalho e na riqueza desta nação !
«Absolutismo -- é Carlos IX atraindo à capital da França perto de cem mil dos seus vassalos para, numa só noite, os fazer assassinar vilmenle, covardemente !
«Absolutismo -- é o papa Inocêncio III, o fundador du Santa Inquisição, prègando em nome de Deus a bárbara carnificina dos albigenses !
«Absolutismo -- é o piedoso tribunal do Santo Oficio atirando Boeage para um cárcere infecto, e arremessando às labaredas purificadoras de um dos seus aulos, António José, dramaturgo e poeta.
«Absolutismo -- é êsso mesmo tribunal, queimando como heróiico, na própria capital da cristandade, Jordano Bruno, o distinto filósofo !
«Absolutismo -- é o papa Alexandre chamando perfidamente a um concílio João Huss e entregando-o depois á justiça secular para que o arremeçasse às chamas !
«Absolutismo -- é Luís xiv, o devasso e contrito inonnrea, obrigando a emigrar mais de oitocentas mil almas para escaparem fis galós, ao suplício e à morte !
«Absolutismo --... !» Da rua chegou à sala do 2.o andar, onde estavam os adores da scena, que vimos descrevendo, o rumor tumultuoso de vozes e alguns assobios; depois o rufo próximo de um lanibor destemperado.
Frederico e Luís Maria mostraram-se alvoroçados.
-- Que ó isto ? ! -- exclamaram ambos ao mesmo tempo.
E como o negociante tivesse corrido à janela e olhado através dos vidros, acrescentando quáse aterrado:
-- Muita gente aglomerada na rua... e soldados !
Ao mesmo tempo, o académico formulava para si esta pergunta, reveladora duma suspeita cruel:
-- Denunciar-me-ia?...
Então frei Quintino, que não se tinha mexido do logar, adivinhando talvez aquela interrogação no olhar obliquo do estudante, observou-lhe:
-- Sossegue o seu espirito; não é nada: é uma execução.
Fóra, na rua, uma voz nasal, como se estivesse lendo, recitava:, «Justiça que munda fazer El-Rei Nosso Senhor, que Deus guarde, na pessoa de Manuel Inocêncio da Costa, latoeiru, condenado pelo crinie de sedição, calunia e sacrilégio, a ser açoutado nas ruas públicas, a trabalhos de galés por tôda a vida e na conliscuçào e perdimento de todos os seus bens.» Seguiu-se novo rufo.
Na sala, aquelas palavras lúgubres, sucedeu um instante de silêncio em que os três se entreolharam.
-- Aí tem : -- irrompeu por ultimo o estudante de direito: -- E desnecessário lolhear a história, quando os exemplos se erguem aos nossos pés. Absolutismo...
e aquilo ! E esse arrastar de vitimas semi-nuas pela cidade, escoltadas pela fôrça pública e açoutadas pelo carrasco ao som dum tambor e aos apupos da gentalha !
«Absolutismo são todos esses actos de sunguinário rancor praticados ha meses sobre algumas inocentes vitimas, que a posteridade aclamara os mártires da liberdade !
E pergunta-me v. reverendissima o que é o absolutismo?
Pergunte-o o snr. frei Quentinoa a si mesmo, que deve ter tambêm uma consciência. Oh ! mas as perseguições não hão-de durar sempre, creia, e os patíbulos desubarão com medonho estridor, sepultando debuixo do seu madeiramento ensanguentado os grandes, os unicos, os verdadeiros criminosos ! E esse estridor, formidável, tremendo corno o derruir duma bustilha, será o último arranco do absolutismo !» Terminára o mancebo. A voz estrangulou-se-lhe por vezes na garganta, e os joelhos, trémulos, dobraram-se-lhe ao peso do corpo. Deixou-se cair numa cadeira.
Frei Quintino, que o ouvira de braços cruzados, voltou-se para fazer o sinal da cruz.
Luís Maria, ainda que bastante contrariado por êste incidente que o beneditino provocára, ouviu com interêsse, talvez maior do que as conveniências o permitiam, as violentas apóstrofes com que Frederico o esmagára. -- Não estivesse ali o religioso e tê-lo-ia abraçado.
Cheias de alvorôço e receosas, porque tinham ouvido como que altercar, entraram na sala as duas senhoras. Frei Quintino explicou-lhes com o sorriso nos lábios -- que não tinha sido nada; apenas o snr. doutor quisera mostrar a sua aptidão para o fôro, encarregando-se da defesa duma causa perdida, e dava-lhe os parabéns pela estreia'...
Ia o académico repelir o epigrama, quando Clara lhe travou do braço e o levou consigo dizendo-lhe algumas palavras conciliadoras.
-- Não há domá-lo! -- disse o negociante ao religioso. -- Desconheço-o. Ainda uma vez, snr. frei Quintino, desculpe-o...
-- Que o desculpe ? ! Mas, meu bondoso amigo, basta-me considerar o futuro que espera o desvairado mancebo para não ver nêle senão um mísero pecador, sõbre cuja cabeça Deus está fazendo pesar a sua justiça infinita. E a prova de que não guardo o mínimo ressentimento pelas suas palavras ímpias, é que voltarei esta noite para me despedir dêle.
E rematou mentalmente, preparando-se para sair:
«Ver e crêr, como S. Tomé...»
XIII
Adeus!
Eram sete horas da tarde.
Apesar de ter levantado o mau tempo, a noite estava bastante escura.
Na sala do primeiro andar, alumiada por um pesado candeeiro de metal amarelo, achavam-se os três personagens do capitulo precedente.
Frederico vestia o mesmo trajo de almocreve, com que o vimos entrar no Pôrto dois dias antes: a mesma jaqueta de saragoça, os mesmos calções remendados, os mesmos sapatos grossos. Sob a larga facha, com as coronhas ã mão, duas pistolas de cavalaria, e a mais um cinto recheado de peças.
Havia um silencio triste na sala.
Frei Quintino e Luís Maria estavam sentados, Frederico permanecia em pé, com os cotovelos apoiados na superfície lisa duma cómoda e o rosto oculto nas mãos.
De súbito à porta da sala alguém bateu com os nós dos dedos.
-- Ouviram ? -- exclamou o académico erguendo repentinamente a cabeça e fitando os dois homens presentes, como numa interrogação.
-- Há-de ser o Tôrres -- disse o negociante indo à porta.
Era efectivamente o arrieiro.
-- O snr. doutor está pronto?... -- interrogou.
-- Está. meu homem - respondeu Luis Muria.
-- Pois então, é fazer as despedidas, qu'inda temos que palmilhar um bocado esta noite, e os machos, com perdão de vossoria, não tardam ai... Entrementes, eu vou lá p'ra baixo, que não vá o moço passar com a récua sem dar lento da casa.
-- Pois vá, vá, que êle não se demora -- disse Luis Muria, com a voz presa na garganta.
-- Então, com sua licença -- tornou o arrieiro, desaparecendo.
-- É preciso partir, meu rapaz -- observou o negociante de-véras comovido; e entregando-lhe uma pequena saca de dinheiro, que fôra buscar a uma das gavetas da secretária:-- Toma; é para as primeiras despesas. E agora, coragem ! Eu vou chamar tua tia e já volto.
-- Diz bem o snr. seu tio -- apoiou o beneditino vendo sair Luís Maria. -- E preciso suportar com coragem as tristes consequências de um êrro, a que mais tarde renunciará, creio-o piamente.
Frederico aproximou-se do religioso até ficarem ombro com ombro, e disse-lhe a meia voz separundo bem as palavras:
-- Tenho a pedir ao snr. frei Quintino que não me incomode mais com as suas falsas lamúrias e as suas hipócritas expressões de conforto, que para mim são outros tantos insultos. Respeite ao menos a dôr sincera desta honrada familia... ouviu ?
O frade rosnou para consigo:
-- Quem te salva bem sei eu, jacobino !
Luís Maria apareceu.
-- Elas aí veem, coitadas ! Estavam ambas a rezar. Não lhes podermos poupar êste golpe !
Clara entrou na sala com os olhos vermelhos e húmidos; Leonor, com a cabeça pendida e o rosto mais pálido que o costume, apoiava-se no ombro da mãe.
Frederico adiantou-se e tomando as nulos de ambas, disse com firmeza:
-- Peço-lhes que não se aflijam. não é uma surprêsa a minha partida e é uma necessidade. Eu vou com o coração cheio da esperança de poder voltar e breve ! -- Depois, abraçando Clara, comovidíssimo: -- Minha tia, ou antes, minha máe, que o tem sido e carinhosa desde que me vi órfão no mundo, pedia-lhe...
peço-lhe que se lembre de mim nas suas orações. Deus há-de ouvi-las... porque é bôa !
Clara abraçou-o soluçando-lhe o nome. Passados segundos, desprendendo-se dos braços da tia, foi á aniquilada menina, e tomando-lhe a mão:
-- Leonor, -- disse êle -- minha companheira de tantos anos, minha doce amiga; seja qual fôr a distância que nos separe, lembre-se de que não poderei esquecê-la um instante sequer !
Leonor escondeu o rosto abafado em pranto. Então, querendo encurtar esta scena de soluços e de lágrimas, em que eru único e frio espectador o bom do religioso, Frederico voltou-se para o negociante:
-- Meu tio, -- exclamou, por um grande esforço -- meu segundo pai, dê-me licença que o abrace !
-- Meu filho! -- soluçou o honrado homem, e caíram nos braços um do outro.
Sucedeu um instante de silêncio; depois, erguendo-se e passando a mão pela lesta, murmurou consigo mesmo:
-- Vá ! sejamos homem !
E batendo no ombro do beneditino, com um sorriso dolorosamente irónico, acrescentou: -- Snr. frei Quintino, até à vista !
Seguidamente olhando indeciso para os três que choravam, disse com a voz estrangulada, num doloroso arranco:
-- E agora, adeus!... adeus!... .
Frederico deixou a sala precipitadamente. Leonor ergueu a cabeça, e estendendo os braços para a porta, chamou num grito de angústia:
-- Frederico !
E desmaiou nos braços da mãe.
A êsse tempo frei Quintino balouçava levemente a cabeça e repetia à-parte, voltado para a porta, com um sorriso indefinível:
-- Até à vista !
SEGUNDA PARTE A garra do abutre 1
O afilhado da sua reverendíssima
Num dos capítulos rctrospectivos, em que abunda a 1.a parte desta singela história, narramos o caso duma paixão de frei Quintino por uma pobre e ingénua rapariga, que ao fim de um ano, alucinada pelo desaparecimento do filho de ambos, achou termo ao seu martírio nas águas barrentas do Douro.
A criança não morrera, nem havia sido estrangulada por ordem do religioso, que se sentiu enternecer à vista do fruto das suas relações sacrílegas -- digamo-lo para descargo de consciência e honra da classe, que de ordinário é avêssa às doçuras da paternidade, posto que não enjeite as que lhe andam anexas...
O pequeno vivia na ocasião em que Isabel o chamava em desvarios de louca pelo alto de Santo Ovídio, mas numa aldeia distante, no Minho, secretamente, em casa de uma sadia e robusta ama, como ainda se encontram pelas nossas aldeias.
O motivo de falsa indieação dada à pobre mãe sôbre o destino do filho é de primeira intuição.
Usando por aquela forma, tendo afastado a criança, a prova viva, incontestável da sua fraqueza, que lho marearia os créditos dp religioso exemplaríssimo. a mãe não podaria acusá-lo, não podaria erguer-se um dia com o filho nos braços, e, apontando-o, dizer-lhe de modo a ser ouvida pela multidão:
-- Vês aquele homem que ali vai, de rosto sereno e olhos no céu, diante de quem todos dobram o joelho, como se fôsse um santo, que abençôa a uns e a outros como se fôsse Deus? Êsse homem, que representa na terra a infinita virtude, o infinito amor, a infinita misericórdia, é um perjuro, é um infame -- e é teu pai !
Assim, não haveria recaio da que tal acontecesse:
depois, mais tarde, ao cabo de alguns meses, a mãe receberia noticia de que o filho havia morrido, e tudo estaria acabado.
Esta última parte do projecto de frei Quintino é que não se realizou, porque a infeliz, tocada de não sei que pressentimento fatal, como só os teem as mães e as amantes, fôra em procura do filho, e não o encontrára.
Decorreram dezanove anos.
António de Pádua, o moço de quem o religioso fizera o elogio na presença de Luís Maria, em menospreço de Frederico, era esse filho, mudado com o andar dos tempos em afilhado, para não desmentir as tradições da classe.
Ouvindo-o tanto a miúdo, e com tam radiante aspecto, ocupar-se dêle, Luís Maria disse-lhe:
-- Vejo que v. reverendíssima estima bastante êsse rapaz...
-- Como se fôsse meu filho ! -- exclamou irreflectidamente; e corrigindo-se do entusiasmo impensado, acrescentou num acento compungido: -- Deus me perdôe se pequei...
-- Talvez filho dalguma irmã de v. reverendíssima, não ?
-- Nada, não... -- tomou o frade pouco seguro na resposta. -- Eu digo ao meu respeitável amigo... Misérias dêste mundo... O rapaz é órfão... ignora-se quem fôsse o pai, e a mãe era uma dessas infelizes, que tanto abundam nas cidades... até que um dia, talvez perseguida pelo remorso ou, que sei eu? procurou a morto deitando-se ao rio Douro, sem mesmo a conter o abandôno em que deixava o fllhinho de três meses.
-- Não era mãe, era um monstro essa mulher ! -- interrompeu o negociante.
-- Pois é verdade. Hoje o que mais abunda infelizmente é disso...
-- Ainda bem que v. reverendíssima tomou a seu cargo a educação do menino, e ei-lo agora um homem, graças à sua excelente alma e aos seus caridosos sentimentos.
Frei Quintino recebia com ar sereno e modesto êstes elogios, que deviam soar-lhe aos ouvidos da consciência como pungentissimo sarcasmo.
Oh ! a consciência ! Mas se frei Quintino ainda não tinha podido desquitar-se inteiramente desta divina impertinência, pelo menos havia conseguido desterrá-la para debaixo dos pés, aonde lhe era fácil esmagá-la com todo o pêso do seu cinismo hipócrita.l Um dia pela manhã, achavam-se o negociante, Clara e Leonor numa das salas do primeiro andar da sua casa na rua Chá, quando soaram passos nas escadas.
-- Quem será ? --perguntou com o olhar a espôso de Luís Maria.
Leonor correu à porta:
-- Ah! é o snr. frei Quintino -- disse ela a meia voz; e acrescentou pouco depois retirando-se -- com um homem ainda novo.
Há-de ser o afilhado -- observou Luís Maria.
Imediatamente se ouviu a voz pausada do religioso recitar as sacramentais palavras:
-- Que a bênção do Senhor seja nesta casa...
E ia entrando.
D. Clara e Leonor foram beijar-lhe a manga, ao passo que êle dizia:
-- Minha muito religiosa senhora .. minha muito estimável menina... e, apertando a mão de Luís Maria com ambas as mãos, acrescentava: -- meu partícularissimo amigo... Peço licença para apresentar a tam respeitável familia o meu afilhado António de Pádua, de quem tenho falado por vezes.
À porta, dando voltas ao chapéu braguês, estava um rapazola, com o cabelo cortado à escovinha, o rosto assombrado por uma penugem escura, um leve rubor a cobrir-lhe as faces apessegadas, e os olhos, velados por compridas pestanas, pregados no chão. Trajava um fato de saragoça.
-- Entra, podes entrar... -- disse-lhe frei Quintino.
Êle entrou, deu alguns passos miúdos na sala, baixou a cabeça num movimento rápido ás pessoas da casa, que o cumprimentaram, e ficou ainda mais enleado. Estava ali o genuino tipo do sacristão, familiar no trato dos santos, subindo aos altares e mexendo nas cousas sagradas sem a mínima hesitaçáo, resmungando confladamente o latim, em voz alta, encarando nos devotos emquanto ajuda á missa, mas sentindo-se deslocado, como que preso, fora dnquele ambiente impregnado de fumo de incenso e de morrão de tocheira.
Luís Maria dirigiu-se para o timido António de Pádua, e estendendo-lhe a mão:
-- Creia que as portas desta casa -- disse-lhe éle -- estarão abertas para o receber sempre, que se digne obsequiar-nos com a sua visita; bastava para isso a circunstância de nos ser apresentado pelo snr. frei Quintino, um dos nossos melhores amigos, quanto mais a de ser seu afilhado.
O moço erguia a espaços o olhar tímido para Luís Maria, haixando-o imediatamente e como corrido.. Frei Quintino não tirava os olhos dele e parecia rever-se no seu enleio, indicador de uma alma ainda virgem.
-- Muito agradecido por mim e por êle, snr. Luís Maria -- acudiu o religioso; -- chegou há uma semana de Barcelos, onde foi educado desde a idade dos dôze anos na companhia do doutíssimo padre - mestre frei Joaquim de Jesus-Maria-José. Desculpem o seu acanhamento, mas eu antes o quero assim, do que discutindo o que é indiscutível, e contradizendo os vélhos sem respeito pelos seus cabelos brancos.
-- Ainda não perdoou a Frederico! -- pensou consigo Luís Maria.
Entretanto Clara indicava ao mancebo um logar no canapé e dizia-lhe:
-- Tenha a bondade de sentar-se.
-- Muito obrigado... -- respondeu êle com as faces da côr duma romã, olhando a furto para frei Quintino como a consultá-lo; estou muito bem, minha senhora -- Contudo deve estar melhor sentado -- insistiu a espôsa do negociante.
- Acho-me perfeitamente bem... Louvores a Deus.
nfto me doem as pernas.
Frei Quintino, que, parecendo prestar atenção a Luís Maria, espreitava a scena que se estava dando a alguns passos, interveio dizendo ao moço num tom paternal e bondoso:
-- Podes sentar-te, senta-te; o snr. Luís Mana da licença.
-- Sem cerimónia -- acudiu o negociante.
-- Então... com sua licença.
E sentou-se na beira do canapé.
Leonor estava pensativa, com o cotovelo encostado a um móvel e a face apoiada na mão.
-- É isto! -- disse frei Quintino voltando-se risonho para Luís Maria.-- Nunca se sentou diante dos mais vélhos sem que o mandassem primeiro. Assim, é que era a educação de nossos pais. Agora já se não respeita ninguém, começando pelas coisas mais sagradas -- a nossa santa religião e a pessoa de sua majestade o nosso rei legítimo.
-- Há muito que não tinha vindo ao Porto ! -- interrogava entretanto Clara.
-- Desde que fui para Barcelos recomendado pelo meu padrinho ao snr. padre-mestre frei Joaquim de Jesus-Maria-José, que Deus Nosso Senhor guarde por muitos anos -- respondeu António de Pádua com grande timidez na voz e no gesto.
-- Naturalmente segue a carreira eclesiástica...?
-- Eu antes queria. Neste tempo, em que os pedreiros-livres querem acabar com Deus e com todos os santos da côrte do céu, quantos mais defensores houver, tanto melhor... o padrinho, porém, diz que não... que não vale a pena...
-- Que não vale a pena ? ! -- exclamou Clara surpreendida pelas últimas palavras do ingénuo António de Pádua. -- Mas, então, a que carreira o destina ?
-- Diz que me destina à carreira do matrimónio...
Continuavam as ingenuidades do moço, desta vez furtivamente comentadas com um olhar para Leonor.
Clara teve suspeitas de que o rapaz era idiota, e replicou apenas:
-- Ah ! nesse caso !...
Frei Quinfino, entretendo diálogo à-parte com Luís Maria, mostrava-se animado. Era ocioso perguntar o assunto do seu discurso. Dizia êle:
-- De dia para dia se está fazendo preciso mais rigor, creia nisto ! Até religiosos, snr. Luís Maria !
até religiosos ! Isto brada aos céus e clama por vingança !... Depois, nunca vi teimar assim ! Parece que um diabo maior não cessa de empurrar êsses malditos para diante ! Por mais que o paternal govêrno de el-rei os previna por meio de justos castigos, não fazem o menor caso ! Videntes non vident, et atidientes non intelligunt!
Mas a mocidade de hoje anda desvairada com umas falsas idéas de liberdade, que nos arrastariam ao caos, se não estivesse escrito que o anjo das trevos não vencerá nunca ! -- E tendo tomado fôlego, sorvendo umn pitada, prosseguiu baixando a voz discretamente: -- Quer ver agora justamente o contrário de tudo isso? Está ali.
É o meu afilhado. Muito temente a Deus, muito respeitador do seu soberano, odiando os inimigos do trono e do altar, como deve fazer todo o bom católico e fiel súbdito de S. M. El-Rei. Não é verdade, António ?
O moço, ouvindo o seu nome, ergueu-se assarapantado.
-- Meu padrinho ?
-- Vem cá. Quero que nos digas uma coisa...
O ingénuo educando de frei Joaquim de Jesus-Maria-José abeirou-se de frei Quintino e de Luís Maria.
Clara foi ter com a filha.
-- Que tens, Leonor ? Em que pensas, filha ?
-- Em que hei-de eu pensar, minha querida mãe ?
Lembro-me de que vai para dous meses que não temos noticias do primo Frederico... e parece que há já dous anos.
-- Mas não é ainda tarde. Bem vês que não faz mais do que cumprir uma ordem de teu pai não escrevendo tanto a miúdo... poderia levantar suspeitas, e... -- Clara tomou carinhosamente a mão de Leonor:
-- Ora vamos, não te quero ver assim, filha...
Frei Quintino estava sujeitando a uma prova de esperteza e de bons e sàos principias legitimistas o seu afilhado.
-- E então que te dizia êsse respeitável teólogo ?
-- O snr. padre-mestre, o que me dizia sempre era que, quem falava contra El-Rei Nosso Senhor, que Deus guarde, fazia um grande pecado, e até ia contra o 4.° mandamento da lei de Deus -- honora patrem luum...
-- Et malrem tuam, -- rematou frei Quintino radiante. -- Muito bem, muito bem. -- E tendo scismado um instante: -- Efectivamente... Mas vamos a saber porque é assim ?
-- Porque... porque o rei legitimo é o pai comum do seu povo, e se o 4.° mandamento nos diz -- honrarás pai e mãe -- o que se segue é que ninguém pode falar contra o rei, sem ir contra êsse mandamento.
Luís Maria com dificuldade disfarçava a sua impaciência, e pensava:
«Não mudaremos de assunto ?»
-- Chama-se a isso falar como um verdadeiro filósofo cristão -- acudiu frei Quintino. -- Por todos os lados que encaremos esta lamentável pendência suscitada polos maus portugueses, os argumentos surgem naturalmente a favor da santa causa. Digilus Del est hit, meu amigo. Em tudo isto se anuncia o dedo de Deus !
-- Antes de mais nada -- cortou Luís Maria, -- estou autorizado a convidar o snr. frei Quintino e o seu afilhado a jantarem connosco. A Clara já deu ordem para que não faltasse o seu prato favorito, a orelheira com o competente feijão branco.
-- A snr.a D. Clara é duma bondade extrema.
O afilhado de frei Quintino principiou de mostrar-se inquieto, olhando para o padrinho, fazendo executar ao chapéu um rápido movimento de rotaçáo e engulindo em sêco.
-- Perdão... mas, padrinho... v. reverendíssima...-- tartamudeou êle.
-- Que tens?
-- Mas... perdão...
-- Estás aflito ! Explica-te.
-- É que... em Barcelos, o dia de hoje... era dia de jejum...
-- E é, tanto em Barcelos como noutra qualquer parte. A religião católica é a mesma para todos os povos.
-- E a Clara que não se lembrou ! -- exclamou Luís Maria, não sei se verdadeira se falsamente contrariado.
-- Nesse caso peço que não lho lembre. A digna espôsa do meu amigo é escrupulosíssima em pontos de religiáo, louvores a Deus, e deveria incomodar-se muito se soubesse que linha faltado ao preceito, ainda que involuntariamente. Nem tam grave é o pecado, que não tcnhu absolvição aos pés do confessor. -- E erguendo-se: -- Agora, se me permite, retiro-me. São horas de entrar no convnto para a reza. Há trés dias que fazemos preces particulares ao Altíssimo porque sejam aniquilados os inimigos da religião e condenados aos tormentos eternos... et eant in supplicium.
-- Per omnia sxcula sxculorum... -- rematou desta vez o mancebo numa toada perfeitamente eclesiástica.
-- Então não nos dão o prazer de jantar connosco ? -- perguntou Clara adiantando-se.
-- E com a mais profunda mágoa que sou forçado a recusar tara distinta honra bem como igualmente o meu afilhado... Obrigações... deveres à cumprir... emfim, minha senhora, outro dia será.
-- V. rev.ma sabe que nos dá sempre muita satisfação sentando-se à nossa mesa -- acrescentou ela.
-- São favores... -- e despedindo-se: -- Meu caro snr.
Luis Maria, sem incómodo; minha snr.a D. Clara, minha querida menina...
António seguiu-o. Chegando à porta voltou-se, e cortejando com o mais profundo acanhamento:
-- Adeus, meu snr... Fiquem com Deus, minhas senhoras... -- E desceu atrás do padrinho.
II
Carta do destêrro
Como dissera Clara, Frederico, cedendo a uma prudente recomendação de seu tio, espaçava de dois e três meses as suas cartas para êle. É que a espionagem miguelista era terrível, e a-pesar de ter um excelente escudo a defendê-lo de suspeitas perigosas, a amizade de frei Quintino, Luls Maria não estava livre de ser encarcerado - para averiguações.
Pois alguns dias depois da apresentação do joven António de Pádua na casa da rua Chã, estavam Clara e Leonor costurando próximo da janela, quando o negociante entrou alvoroçado na sala.
-- Clara! fllha ! uma carta! uma carta! -- exclamou êle.
-- E de quem, Luis? de quem ?
-- Pois de quem há-de ser ? do teu sobrinho ! de teu primo, Leonor ! Mas deixem-me descansar um instante... que subi os degraus dois a dois.
Luís Maria sentou-se; depois tirou do bõlso uma carta.
-- E que diz êle ? onde está agora ?
-- Já vais saber tudo. Para te falar com franqueza, nem tempo tive para a lêr.
Leonor estava pálida, comovida, silenciosa.
Luís Maria abriu a missiva do emigrado e leu:
«Havre, 8 de dezembro de 1830.»
-- Vês ? -- atalhou êle. -- Está no Havre.
E prosseguiu:
«Meu tio. -- E com os olhos vidrados de lágrimas, com a alma a trasbordar de saudades pela pátria, com o coração em ânsias de morte por todos os que nos são caros, depois duma insónia de quarenta e oito horas, que eu principio esta carta, mil vezes mais feliz do que eu.
«Sim, porque ela partirá àmanhã e eu fico para aqui mudo, estático, sentado num penedo da praia, com a vista gelada no horizonte, onde julgo destacar um ponto negro -- Portugal; porque ela chegará brevemente ao seu destino, e eu nem mesmo posso dizer qual será o que me espera; porque... porque sou um grande desgraçado !» Neste lanço da carta houve um pequeno intervale do silèncio comovido. O negociante prosseguiu: «O destêrro ! o exilio ! Quem pôde jamais contar as longas horas de profunda mágoa, de mortal desalento e de tenebroso desespero, em que vive mergulhado aquele que a mão da fatalidade atirou para longe de tudo o que lhe era caro ! Oh ! o destêrro ! -- A solidão no meio dos grandes ajuntamentos, a invencível tristeza no meio das ruidosus alegrias, o luto constante de uma alma por aqueles que vivem ainda, o es curo céu do presente sulcado upenus, de longe u longe, por um ténue raio de esperança, a idéa dum passado luminoso apagando-se nus trevus profundas do insondável abismo do futuro, a família distante, os anugos dispersos, a pátria inacessível... O destêrro! -- a saudade, a nostalgia, a morte emfim !» -- Pobre rapaz ! -- cortou Luís Maria , devéras comovido.
-- Como deve ter sofrido, êle, que nos queria tanto ! -- disse Clara enxugando uma lágrima.
Leonor não tirava o lenço dos olhos.
«Há pouco mais dum ano -- prosseguiu o negociante lendo com voz pouco segura -- partiu eu para Coimbra, descuidoso, pensando muito em si, meu protector, em minha tia, a mais carinhosa das mâes, e em Leonor, o meu anjo bom, que não me desacompanha nunca. Ah ! como eu era então feliz ! como o futuro se me povoava das mais risonhas imagens e se me antolhava radiante ! Quem teria previsto que alguns meses depois, todo èsse encanto desapareceria a um acêno desta feiticeira, que todos conhecem mais ou menos pelo nome de «fatalidade», que andariu fugido, expatriado e que Portugal seria teatro dos mais horriveis crimes, das mais negras perseguições em nome do direito e da justiça ! ?
«Tudo isto me ocorre, me consome as noites, encerrado nas quatro paredes nuas da minha água-fur- lada !
«Ah ! mas emquanto êles pensam consolidar o seu poderio aviltante pelo terror, fazendo ostentação de novas vítimas, nós trabalhamos, nós lutamos e a hora fremenda do ajuste de contas há-de finalmente soar; e triunfaremos então, porque a nossa causa é a causa santa dos oprimidos, é a causa da justiça arrastada hoje aos pés do carrasco ! Tardará muito essa hora?...
«Comecei esta carta gelado pelo frio intensíssimo desta manhã de dezembro; termino-a ardendo em febre.
«Não posso mais.
«Lembranças a minha tia, uma saudade a Leonor, e a si, meu tio, o sincero reconhecimento do exilado Frederico.»
Sucederam à leitura dêstes períodos alguns instantes de silêncio, durante os quais os trás personagens desta scena enxugaram as lágrimas.
-- não se sabe, pois, quando voltará ainda ! -- exclamou finalmente Clara.
-- Por ora, não -- disse Luìs Maria, -- mas o que é certo é que os ares se vão toldando e que não passaremos talvez sem muito sangue derramado.
-- Mais ainda do que o que tem havido? -- perguntou Leonor aterrada.
-- Muito mais, filha. Deus permita que tal não aconteça; mas se chega a travar-se a guerra civil, oh ! então, será terrível ! não haverá quartel para ninguém ! As famílias dissolver-se não para se hostilizar, o ódio particular não será estranho a tudo isso, o luto invadirá tôdas as casas -- e ai dos vencidos! É sempre assim nestas guerras de irmãos com irmãos !
-- Que horror ! -- exclamou a filha do negociante.
-- Mas Deus é pai e há-de permitir que não cheguemos a ver semelhantes desgraças -- observou Clara. -- Tenhamos confiança na misericórdia divina.
-- Eu tambêm digo o mesmo. Entretanto o teu sobrinho anda emigrado, sofrendo toda a sorte de provações, todos os dias se prende gente a esmo por denúncias infames, e haverá um ano que se apearam dos postes as cabeços dos últimos justiçados...
-- Pelo amor de Deus, Luís ! -- atalhou a pobre senhora aterrada; -- quem te ouvisse falar dêsse modo, havia de dizer... !
-- Tens razão. Protestei não querer saber nada disto, e ia-me esquecendo. Mas esta carta ! esta carta ! Um homem não é nenhum santo, e lembrar-se de que tem um sobrinho, um filho vagabundo, lá por essas terras, sem poder voltar a Portugal... ! Emfim... ! -- E entregando a carta a Clara, Luís Maria acrescentou: -- Guarda-a pela tua mão e não a mostres a ninguém, ouviste ? a ninguém ! Estamos num tempo em que não há fiar do nosso melhor amigo...
III
A Snr.a Rosa
Um dos mais frequentes motivos de consiunição para Leonor, -- que, depois da partida de Frederico, ficára sabendo que o anuiva, pois que até aí não se dera conta do sentimento, que a alvoroçavn de alegria à aproximaçáo das férias, e a entristecia como a noite vendo que estavam a terminar por dias; -- um dos seus mais frequentes motivos de consumição, repito, era ouvir frei Quintino, cujos discursos contra os liberais cada vez reçumavam mais fel e desejos sanguinários não satisfeitos inteiramente, levando o ousio a fazer transparentes e ofensivas alusões ao estudante emigrado, contra quem parecia ter duplicado de rancor.
Numa dessas ocasiões, em que frei Quintino expectorára tôda a sua bílis sobre os infames malhados, que pretendiam acabar por uma vez com a religião e os seus ministros, lastimando terem eseapado tantos para o estrangeiro, depois da saída dêle, o negociante foi ter com a filha, que se tinha retirado, por já não poder conter as lágrimas.
-- Porque choras, Leonor ?
-- Ora ! porque há-de ser ! -- atalhou a mãe. -- Incomodou-se com ouvir o snr. frei Quintino falar daquele modo. Pensa que tudo se vai retlectir no Frederico.
Leonor enxugou furtivamente as lágrimas.
-- Quem sabe ! -- exclamou Luis Maria, pensativo.
-- Também tu!... Deixa falar teu pai, minha filha.
Sossega; teu primo está a salvo. Além de que, não há maior injustiça do que supôr o snr. frei Quintino capaz de nos dor o menor desgôsto !
-- Assim o julgo; dantes, porém, era mais moderado, mais indulgente; agora, creio que por ver aumentar o partido contrário, a paixão cega-o, tornou-se rancoroso... -- e voltando-se para a filha, amimando-a:
-- Mas o que êle diz não se escreve e o teu primo, Leonor, não há-de por lá ficar eternamente. Deixa esfriar os ânimos, e esquecer o motivo, que o obrigou a emigrar, porque, emflm, contra ôle há apenas a devassa instaurada em Coimbra, e vê-lo hemos entrar-nos pela porta dentro mais satisfeito... do que quando partiu, estou certo disso.
--- Oxalá, Luís!
-- Deus o permita ! -- disseram ao mesmo tempo mãe e filha.
Bateram nas escadas, ao passo que uma voz de mulher, dizia:
-- Dão licença ?
-- Quem é ? -- interrogou D. Clara, e, ao ver assomar à porta da sala uma mulher de capote e lenço, exclamou indo ao encontro da recém-vinda:
-- E a Rosa ! Entra ! há que tempos que não nos veris ver !
O novo personagem, que acaba de fazer a sua entrada na casa de Luis Maria e na presente história, indicava ser mulher do povo, contar trinta e oito anos de idade, ler um carácter expansivo e nenhum acanhamento nas maneiras e nos gestos. O olhar era franco, a expressão do rosto quáse inveriavelmenle risonha. Tinha criado Leonor e ficára-lhe com uma entranhada amizade, que ela retribuía em igual moeda.
-- Ai, a ama ! -- exclamou Leonor, correndo a ela.
-- Então como está ?
-- Eu, bem, minha menina. E a snr.a D. Clara e o snr. Luís Maria ?
-- Vai-se vivendo -- disse com bondade o negociante -- O seu homem está bom e os seus pequenos.
-- Muito obrigada; graças a Deus, por ora não há razão de queixa.
-- Até já pensava que se tinha esquecido de nós !
-- disse Leonor tirando-lhe o capote, e dobrando-lho nas costas duma cadeira. -- Há mais de quatro meses que não aparece.
-- Então eu podia lá esquecer-me da minha rica menina ? -- replicou cia contemplando-a amorosamente.
-- Ora já viram ! Quem a conheceu, um pegulhinho assim, do tamanho do châo, que não queria andur senão ao colo, e como está agora uma senhora ! não que nem quero que me lembre ! Sempre tomava cada perrice ! Isto, isto é que nos faz vélhas, minha senhora ! -- terminou voltando-se para Clara.
-- Mas sente-se. Rosa -- disse Leonor, trazendo-lhe uma cadeira; -- o pai dá licença. Entáo já se quer ir embora ?
-- Eu, não, minha menina.
-- Ah ! cuidei ! Era o que faltava !
-- Vês ? Ê isto ! -- observou alegremente Clara. -- Também só tu é que serias capaz de a distraíres. Mal te vê, muda logo.
-- E acertaste. Parece outra -- apoiou Luís Maria.
E tomando o chapéu, acrescentou: -- Eu desço à loja e não me demoro.
O negociante saiu. Ficaram as duas senhoras e Rosa.
-- É verdade -- interrogou a antiga criada de Clara: -- e que noticias há do snr. Frederico, vamos a saber ?
-- Êsse... por lá anda.
-- Quem no havia de dizer ! um moço daquele feitio, criado na abundância, lá por essas terras de Cristo a comer o pão que o diabo amassou, só porque não diz amen com essa corja, que não conhece outra lei senão a forca, o Senhor me perdoe !
-- Cala-te ! -- interrompeu Clara assustada. -- Sabes lá o que dizes !
-- Sei, minha senhora; oxalá não soubesse; mas desgraçadamente também me tocaram pela roupa.
-- Então bateram-lhe? -- perguntou Leonor.
-- Pouco faltou, minha menina. Aqueles magarefes não me bateram por um tris, mas rasgaram-me um lenço de sêda novinho, quando ia para a missa no dia de todos os santos ! O que lhes valeu foi não ir com o meu António ! Ah ! que sempre chorei mais lágrimas naquele dia !
-- E porque lhe rasgaram o lenço, ama ? Que mal fazia êle?
-- Mal, nenhum. Mas como era todo branco, às pintas azúis, pegaram-lhe por aí, começaram a chamar-me nomes, a dizer que o lenço era malhado, até que, por fim, um soldado à paisana botou-lhe a mão, tirou-mo da cabeça e fô-lo em tiras num pronto.
-- Pobre Rosa ! já viram ? !
-- Emquanto se não lembraram de te mandar para o cárcere, dá graças a Deus -- ponderou Clara. -- Foste de uma grande imprudência em saíres à rua com o tal lenço.
-- Mas eu sabia-o lá, minha senhora ? Depois foi que me disseram ! Forte desgraço ! Até por se trazer um lenço ao gôsto duma pessoa, mata que é danado !
Mas por quem eu perguntava, era pelo snr. Frederico.
Tem êle ao menos dado notícias suas lá do estrangeiro ?
-- Algumas tem dado; muito pouco animadoras por sinal.
-- Então que quer a snr.a ? A gente não sabe nunca para o que está talhada neste mundo ! As vezes, só de me lembrar que o vi crescer aos meus olhos tam meigo, que parecia mesmo uma donzela, e do que êle terá passado agora, até me dá vontade de chorar ! E a snr.a D. Leonor, se anda triste, já se sabe porque é ! também, ambos da mesma criaçào, por assim dizer, não era de esperar outra coisa ! Pois sossegue, minha filhinha, diz-me o coração que ainda o há-de tornar a ver. É um palpite que eu tenho.
-- Passas hoje cá o dia? -- perguntou D. Clara.
-- Passa, passa ! não se pergunta ! -- apressou-se a responder Leonor.
-- Agradeço muito, mas a gente não é senhora da sua vontade. Rle no meio dia vem do trabalho, e, se não me vé, é capaz de não comer nada e ficar em cuidados até à noite; além de quê, os pequenos...
-- Então vai, vai. Rosa. O dever em primeiro logar.
Dás-te tu bem com o teu homem ?
-- Como Deus com os anjos. De vez em quando lá me chega o seu bofetão... mas isso não vale nada.
-- não vale nada ? ! -- exclamou Leonor com naturalíssimo espanto.
-- Pois que vale agora um bofetáo ? Eu, por assim dizer, às vezes até gosto.
-- Ora essa, Rosa ! -- observou por seu turno a espôsa de Luís Maria.
-- Não que a snr.a não sabe ! -- tornou a bôa da mulher com ar de simplicidade velhaca: -- é porque êle no fim... pede-me sempre perdão !
Riram-se.
-- Vem até cá dentro -- disse-lhe Clara. -- Vais ver uns lindos quadros que tenho na sala da frente, representando D. Inês de Castro. Deram agora 11 horas, e como só tens de estar em casa ao meio dia...
-- Ande, venha daí, ama !
-- Pois, sim, minha senhora; mas não me poderei demorar muito.
IV
Um soneto e um desengano
Frei Quintino amiudára as visitas a casa rio negociante, quase sempre acompanhado do joven António de Pádua, cujos dotes e prendas fazia sobressair.
Mais de uma vez mesmo jantaram em familia, mostrando-se as pessoas da casa empenhadas em os obsequiar quanto possível.
Frei Quintino tratava Leonor com particular estima, revelada em adjectivos lisonjeiros e açucarados, e Clara e Luis Maria com a mesma exuberftncia de palavras seráficas: -- minha mui religiosa senhora,-- meu mui católico amigo...
António de Pádua, êsse, cheio de uma timidez fradesca, não falando senão quando o interrogavam, não se aproximando senão quando o chamavam, não se sentando senão quando teimavam, com a cabeça curvada, relanceava olhares rápidos e ardentes sôbre Leonor.
A filha de Luis Maria é que não dava por isso. -- Ou ocupada ou ociosa, estava sempre tam distraída, que raras vezes se lembrava de que tinha pessoas estranhas na sala.
Frei Quintino observava isto, e uma ligeira nuvem descia a assombrar-lhe o rosto. Em seguida, como consequência, espirrava a sua bilis represada contra os pedreiros-livres e ateus, cujo completo extermínio era o maior serviço, que se podia prestar à santa causa du religião e do trono.
Leonor empalidecia, esforçava-se porque não suspeitassem as comoções, que lhe agitavam o seio e apressavam a respiraçáo, mas o frade, que a espiava, bem viu em tudo aquilo o efeito salutar das suas palavras.
E deixava a casa de Luís Maria despeitado e de um mau humor apenas contido.
-- O que não padece a menor dúvida -- dizia numa dessas ocasiões consigo mesmo, -- é que a sonsa da rapariga tem lá tal ou qual afeiçôo ao malhado do priminho; e como tôda se incomoda, que lhe falem contra êle ! Pena é que o António não seja um pouco mais desembaraçado !... Mas isto de mulheres é para onde lhes venta. Hoje por um e amanhá por outro. E depois, ela é ainda uma criança ! Emfim a questão é de tempo... e não se pode perder.
Frei Quintino prosseguiu neste monólogo, que nada Unha de místico e levantava a ponta do véu, que encobria o motivo das suas assiduidades junto da família do negociante e do seu requintado ódio contra Frederico.
-- Ah ! que se eu tivesse adivinhado ! -- pensou êle um dia em que tinha lido mais um desengano cruel à vista da indiferença, quáse fastio, com que foram acolhidas algumas frases de elogio para o seu afilhado António. -- Ah ! que se eu tivesse adivinhado, não era êle que tinha passado a raia !... É bem certo que quem o seu inimigo poupa... Veremos !
O caso que motivára êste solilóquio, que envolvia um pensamento sanguinário, foi o seguinte:
Frei Quintino tinha aceitado para si mais para o afilhado o convite, que lhe fizera Clara, de irem lá jantar certo dia.
O religioso mostrava-se atencioso, delirado e afável como de costume, e, dirigindo-se a Leonor, não se cansava de elogiar o seu tino e sisudez, verdadeiramenle excepcionais na sua idade.
-- É o modêlo das filhas, deve ser o exemplo das mães -- terminou o religioso, afogueando com estas palavras o rubor do pejo nas faces da donzela.
À cabeceira da mesa, o logar de honra foi para frei Quintino; à direita e esquerda o negociante e a espôsa; em seguida, fronteiros, Leonor e o moço António de Pádua, cujo olhar não era já ronceiro e tímido, como no dia da sua apresentaçfto em casa de Luís Maria, o que, ainda assim, não lhe tirava o cunho de suino, que o caracterizava.
Leonor, ao ver ocupado nquele logar, que de ordinário ficava devoluto, lembrou-se de que era ali que seu primo costumava sentar-se, e como que se lhe confrangeu a alma. Vazio, aquele espaço parecia esperar por quem o ocupára invariavelmente durante alguns anos. Achando-se ocupado por outro homem, acudiu-lhe naturalmente ao espirito esta singela reflexão:
-- Nunca mais o verei sentado ali ?
Leonor passou, pois, aquela hora, perdida numa grande abstraoçáo, lalvez mergulhada num triste scismar, comendo à sobreposse e a instigações do pai e do religioso.
- Dou-lhe a minha palavra, snr. frei Quintino,-- dizia Luís Maria -- que não sei de que esta pequena se sustenta ! É um verdadeiro prodígio.
-- Pois, minha menina, sem comer é que ninguém vive ! O alimento é tam necessário para o sustento do corpo como a religião para a salvação da alma. São duas cousas que não se podem dispensar, uma para a prolongação dn vida terrena, a outra para a conquista da vida eterna.
-- Mas se lhe repugna a comida ! -- exclamou Clara. - - E depois, quando teima, veem-lhe engulhos.
-- Algum motivo terá para êsse fastio. Mágoa do coração, pena de alma, saudades, que sei eu ? A verdade é que só ela o poderia dizer -- aventurou o beneditino com reservada intenção.
-- Eu... não tenho nada. Sempre comi muito pouco. O pai e a mãe bem o sabem -- acrescentou pousando em ambos um olhar suplicante, como para implorar-lhes que mudassem de assunto.
Veio a sobremesa.
O frade entrou nela e no vinho fino de modo a tornar-se menos eloquente e mais loquaz, começando o vigésimo panegeririco do seu afilhado... -- não era por êle estar presente !
António de Pádua, ou porque para ai o chamasse a víscera da ternura ou porque lho tivesse insinuado particularmente o padrinho, fitava amiudadas vezes a filha do negociante, que, se tinha dado pela insistência, não o parecia.
Por último o bom do religioso convidou o afilhado a recitar o soneto, que êle tinha escrito e lido dias antes no refeitório de S. Bento.
-- Como verá o meu respeitável amigo, o soneto ó feito para comemorar o dia do feliz aniversário natalcio de S. M. El-rei Nosso Senhor. Ora dize lá.
O moço António de Pádua não se fez rogar. Tirou da algibeira da japona meia fôlha de papel manuscrita, desempediu a garganta de algum escarro impertinente, e leu com voz comovida, tomando a respiração no fim de cada verso:
«Sobe, Augusto Monarca, ao Trono Luso,Que livrára de Afonso a Espada Invita,Dispõe, ordena, manda e precipitaModernas luzes de clarão confuso.«Os antigos costumes já sem usoDo pó do esquecimento ressuscita,Á Santa inquisição, ao Jesuita,Entrega o «laço» de prender o abuso.«A paz, abrindoas suas asas d'ouroAnte a Corôa, que te adorna a frente,Risonha te abrirá fiel tesouro.Serás Pai, serás Rei de mansa genteSem que mais ouças revoltoso estouro.
Durante a leitura desta composição-poética, frei Quintino, passeando a vista pelos circunstantes, com um leve sorriso de intima satisfação, natural num padrinho extremoso, especialmente quando êsse padrinho é um eclesiástico, marcava o ritmo com a cabeça.
-- Hein ? que me diz aos versos ? -- interrogou êle voltando-se para Luís Maria, antes mesmo do poeta haver concluído.
-- Muito bons... -- Estão muito bonitos -- disseram ao mesmo tempo o negociante e Clara.
-- E que me diz àquilo a menina Leonor ?
-- Também gostei... -- respondeu ela contrangendo os lábios num sorriso, que era uma violência ao que êles queriam talvez exprimir.
António de Pádua estava rubro e confuso.
-- Houve até já quem dissesse, que eram do dr. Ferro, êste nosso talentoso e denodado correligionário !
Hei-de mandá-los botar ao Correio do Pôrto, que são dignos disso.
Bebido o último trago, frei Quintino ergueu-se, no que foi acompunhado pelos restantes comensais, e proferiu o Deo gratias sacramental, epílogo de tôdas as refeições fradescas, o qual, traduzido livremente, queria dizer: -- Estamos com as barrigas repletas. Deus nos castigue sempre com o mesmo. -- Ao que os presentes responderam -- amen.
Vieram para a sala das visitas.
Clara e Leonor faziam companhia ao joven António de Pádua; frei Quintino dirigia-se para o varanda com Luís Maria.
-- Onde passa melhor, -- perguntou ao afilhado do religioso a espôsa do negociante, forçada a fazer as despesas da conversação, como se diz em frase escolástica, -- no Pôrto ou em Barcelos?
-- Eu... a respeito de saúde, sempre passava melhor em Barcelos; agora, quanto ao resto... -- e fitava tímidamente Leonor, ao passo que um rubor súbito lhe invadia as faces -- passo melhor aqui.
-- Quanto ao resto, como ?
-- Sim... digo eu... quanto ao resto... -- tartamudeou êle, vermelho até ao branco dos olhos.
-- Ah! percebo... refere-se à companhia de seu padrinho; e, com tôda a razão..
Uma criada veio à porta da sala chamar Clara, para consulta de negócios caseiros.
Ficaram sós Leonor e o joven António de Pádua. Leonor, pouco preocupada, aparentemente pelo menos, em continuar no diálogo encetado por sua mãe, ficou silenciosa, esfolhando distraidamente uma flôr, que tinha tirado, na passagem, de uma jarra.
Ao vê-la, não era mesmo difícil perceber que a presença do afilhado de frei Quintino lhe era importuna.
Ele, pela sua parte, engolia em sêco, molhava os beiços com a ponta da Ungua e rolava o olhar em volta como espantado, à procura de assunto para entabolar meia dúzia de frases de mistura com uma amabilidade «a tam formosa menina» -- palavras suas.
Por último parece que tomou uma resolução heróica; compôs um sorriso modesto, abriu a bôca, sorveu um grande hausto de ar, soltou uma espécie de gemido, um som inarliculado, -- e não disse mais nada, porque nesse momento Clara acabava de entrar na sala.
Outro qualquer ficaria contrariado com esta interrupção. Ele achou-a providencial, porque, apesar de ter aberto a bôca e principiado mesmo o período por um pequeno rugido, ignorava ainda o que se propunha dizer.
Luís Maria deixou a varanda e entrou na sala. Frei Quintino seguiu-o continuando no diálogo interrompido.
Clara conheceu no rosto do marido uma sombra de contrariedade.
Vinha dizendo o frade:
-- Mas não acha que o céu galardoou aquele moço com talentos especiais?... Ao menos êste sabe-os aproveitar bem aproveitados em honra do trono e do altar! Agora quando êles estão às ordens de Satanás, e em vez de servirem para a salvação da nossa alma, não prestam senão para a sepultarem nos abismos infernais, tanto pior. Louvores, porém, devo a Deus, de que não se dá isso com o meu afilhado...
-- Os meus parabéns... -- disse Luís Maria, de modo que frei Quintino lhe relanceou os olhos, como para conhecer a intenção daquelas palavras, que tanto poderiam ser uma ironia mascarada como uma congratulação franca.
Parece, porêm, que o religioso, não saíu muito satisfeito do seu rápido exame, porque mordeu o lábio inferior, mudou de assunto, e logo depois despedia-se na companhia do mancebo António de Pádua, e monologava pelo caminho as frases sanguinárias que assinalamos numa das páginas anteriores.
-- Porque não mandei antes esperar o estudante ao caminho, pois que, mesmo longe, expatriado e vagabundo, é um tropêço para os meus planos? -- pensava o virtuoso frade, com os punhos fechados.
Cumpre saber-se que, a-pesar da tôda a confiança que o beneditino se criára em casa de Luís Maria, de parte a parte tinha sempre havido a delicada reserva de nunca se falar em Frederico, o que não impedia o bom do religioso de lhe espirrar na sombra o fel, que o ódio e o despeito lhe traziam aos lábios.
V
As manhas da raposa
Todavia, nem sempre assim pensava, e, mesmo pensando assim, nunca frei Quintino desesperára da empresa a que tinha metido ombros -- e cabeça.
Ele depositava demasiada confiança em si, nos seus meios de acção e no seu predomínio no ânimo das duas mulheres para duvidar do resultado próximo ou remoto das suas tentativas.
Sómente irritava-o a idéa de ser talvez Frederico, -- o homem cuja vida salvára... não o mandando assassinar, -- o único obstáculo à imediata realização dos seus cálculos ambiciosos.
Eis o que êle escrevia ao seu douto amigo frei Joaquim de Jesus-Maria-José, de Barcelos, relativamente ao negócio , que mais o preocupava por aquela ocasião:
«Porém, deixemos em bôa e santa paz êsses ladrões de herejes liberais, pura quem seriam poucas tôdas as cordas, que se fabricam nas cordoarias do reino capazes de segurur um homem pelo gasnete a dois palmos do chão, -- e passemos ao nosso rapaz.
«Permite-me que te diga: achei-o teólogo de mais para quem se destina às delícias do matrimónio.
«As idéas são bôas, como não podiam deixar de ser bebidas em tam pura fonte, o latim excelente como era de esperar dum latinista da tua fôrça, mas as palavras, especilmente diante de mulheres, é preciso estar a arrancar-lhas com uma tenaz.
«Esqueceste-te de mo tosquear, meu reverendo. Vêm com muito pêlo... Está melhor numa sacristia do que numa sala.
«Isto, quanto a mim. tem-o prejudicado um pouco junto da noiva, a quem é preciso fazer esquecer o priminho, um mariola que estudava direito em Coimbra e anda agora pelo estrangeiro a comer o pilo que êle mesmo amassou.
«Por mais lições que lhe dê, por mais recomendações que lhe faça, vai comigo multo animado, muito disposto para casa do sogro, que Deus há-de fazer, mas, chegando lá, fica lodo acanhado diante dn sogra e da noiva, e até quáse perde n faln, contentando-se em deitar olhadas furtivas para a rapariga.
«Não ajuda nada, e eu vejo-me obrigado a fazer tudo.
«Por emquanto, como o rapaz ainda está verde, apenas me tenho limitado n apalpar o terreno e a dispôr as coisas, de modo que não haja grandes atritos a vencer, quando chegue a ocasião própria.
«O pai da noiva é um negociante abastado, daqui, muito considerado, com loja de panos nn rua das Flores, mas hoje pouco entregue ao negócio, que está a cargo do primeiro caixeiro, que associou ao seu nome.
Bom fundo, cordato, muito amigo da família; quanto às idéas, posto que nunca lhe ouvisse proferir uma palavra de anlipatia pelo govêrno constituído, não me parece muito seguro. Emfim, veremos.
«A mãe é uma senhora estimável, virtuosa, muito temente a Deus e minha confessada. Por essa fico eu, bem como pela filha, uma graciosa menina de dezoito anos, um verdadeiro anjo de candura, educada nos sãos princípios dn mãe, e que tem, quanto a mim, um só mas grave «senão» -- gostar do primo. Isso, porém, não passa duma criancice, que não oporá resistência ás minhas exortações.
«O mais curioso de tudo é que, interrogando o teu discípulo sôbre o que lhe parecia a pequena, êle não pôde impedir um suspiro, e tornando-se muito vermelho, balbuciou estas palavras, que eu quáse só percebi pelo mexer dos beiços:
«-- Parece-me muito bem, muito bôa menina.
«O rapaz talvez fizesse tenção de acrescentar mais alguma coisa, mas eu é que não o deixei continuar «Remalorei por te dizer, meu reverendo, que, admitindo a fragilidade de que resultou o nascimento do rapaz, o que não se discute, não me arrependo de ter feito dêle um cidadão prestante à causa do aliar e do trono, e de contribuir para lhe assegurar um bom futuro casando-o rico.
«Adeus, vélho amigo. Vou para o côro. Só me resta o tempo preciso para te despjar tantos anos de vida, quantos sejam precisos para varrer da superfície da terra a herezia, que parece ter deitado raízes cm Portugal.
Do teu irmão em N. S. J. C.
Frei Quintino da Expeciação.»
«N. B. Abro esta carta para te dizer que umas práticas, que eu agora faço tôdas as sextas-feiras, estão dando um resultado excelente.
«Em dia de prédica, é sabido: os malhados teem recomendações minhas. Foi uma idêa inspirada, a das tais práticas. Vale.» Ninguém dirá, ao lêr esta carta, que o seu autor é o austero e grave frei Quintino, de maneiras seráficas e ares piedosos, que temos visto sempre.
A explicação é fácil. A máscara tolera-se durante horas, sofre-se uma noite de carnaval, mas, constantemente afivelada ao rosto, é incómoda, deve ser mesmo insuportável. Ora frei Quintino, de tempos a tempos, a sós com o seu amigo único frei Joaquim de Jesus-Maria-José, punha-se à vontade, e então era familiar e até brèjeiro.
Sómente num ponto não variava, era sempre o mesmo homem, -- quando se referia uos inimigos do altar e do trono. Naquele ódio entranhado e feroz contra a corja , nfto havia postiços. Era hem sincero p bem de raiz.
Por algum tempo ainda frei Quintino esperou pelo decurso dos acontecimentos, confiando talvez demasiado no coração de Leonor, ao qual concedia uma volubilidade própria dos seus dezoito anos, ou a natural tendência de certas organizações, sopeadas por uma educação perfeitamente claustral, para o amor visível e palpável, para o amor material, que, exaltando-as, as faz passar por ideais sensações desconhecidas.
E usava de certos meios diplomáticos para, sem grande reparo, poder chamar a atençáo de Leonor para o afilhado.
Assim, nos domingos, ao sairem da missa das 9 horas, na Sé, que era a sua missa habitual. Clara e Leonor encontravam de ordinário o religioso e o moço António de Pádua, que sobraçava um grosso missal, vindo ambos das suas devoções.
Naturalmenle frei Quintino entretinha-se a falar com D. Clara, e também naturalmente o mancebo colocava-se ao lado de Leonor.
Outras vezes era António de Pádua, que se apresentava só em casa de Luís Maria, portador de um recado de seu padrinho; e como sucedia àquela hora o negociante estar fóra de casa, pedia licença para esperar por êle...
Outras ainda era frei Quintino e o afilhado, que, tendo passado por ali vindo dos Grilos, onde tinham ido visitar frei Fulano, que estava enfêrmo ou despedir-se de frei Cicrano, que partia a missionar... para os subúrbios do Pôrto, entravam a informar-se da preciosa saúde da virtuosa senhora D. Clara e de sua estimável família.
Mas êstes meios estratégicos produziram talvez o efeito contrário no animo de Leonor, que se ateidiava a escutar as raras, frases piégas que António lhe desfechava trémulo, confuso, com voz quáse imperceptível, como se dissesse aquilo mais para cumprir um dever do que para se fazer ouvir.
Isto mesmo adivinhou por último frei Quintino, uma vez que observava a filha de Luís Maria, a quem o afilhado recitava uma sensaboria de aprendiz de clérigo, e resolveu, despeitado, mudar de objectivo.
VI
Um passo errado
-- Efectivamente, é assim. A quem devia ter ido direito desde o principio era ao pai e não à pequena.
Procedi como um leigo... Pois que me deve importar a mim que ela ganhe afeição ao rapaz, se consigo que o pai aprove o enlace? O essencial é ter pelo meu lado o negociante. Dê êle o seu consentimento, -- e hã-de-o dar, se Deus quiser, -- eu batalha estará ganha. Eu dispenso que ela o ame, contanto-que se faça o casamento. Depois, que remédio terá !... E mesmo, para a castigar de preferir um hereje, um rebelde, a um moço ornado das muis apreciáveis virtudes cristãs...
«Suponhamos que o primo chega a casar com ela, aqui ou no estrangeiro... Que daninha prole de perdidos, de ateus, combatendo pelas idéas do pai, propugando as suas infernais doutrinas liberastas, conspirando contra o altar e o trono !
«Por consequência... estou dentro dos meus princípios, trubalhundo pura que se efectue êste casamento com o rapaz, e presto um serviço relevante á causa da santa igreja e de el-rei... Até o maior serviço é para ambos; o enlace é apenas o resultado de essa obra prestantíssima, paru a qual eu contribuo... com o meu afilhado.
«Já agora não há tempo a perder. Basta o que desperdicei à espera de que a rapariguinha correspondesse aos olhares apaixonados do moço. Estão a dar 9 horas na tôrre... A esta hora ainda êle não tem saido de casa. Vumos lá.» Isto pensava frei Quintino, emquanto se preparava na sua cela, dispondo-se para sair, depois de ter engrolado as matinas no côro e o almôço no refeitório.
Havia mesmo ocasiões, em que falava alto e gesticulava dirigindo-se para um escabelo ou para um recanto.
E, forte com os seus novos argumentos, que explicariam dum modo louvável a tenaz interferência dôle no suspirado enlace do seu afilhado com a noiva do hereje, encaminhou-se para a rua Chá.
Luís Maria, efectivamente, achava-se ainda em casa e acabava de almoçar.
Ora convêm que o leitor saiba, se não é pai, porque sendo-o, deve-o já ter adivinhado, que o negociante havia concebido graves suspeitas com respeito ás frequentes visitas do religioso e do seu protegido, apesar da estudada reserva do primeiro e do acanhamento imbecil do segundo.
-- Quererá meter-me o rapaz u cara para genro ?
-- pensou êle; e sem comunicar as suas suspeitas à espôsa, que tinha pelo frade um quáse funutismo respeitoso, esperou.
Frei Quintino, cuja face, ao transpor a portariu do mosteiro indicava um vago contentamento, compôs a expressão da lisionomia ao entrar com us palavras sacrumentais -- Deus seja aqui -- na sala onde o negociante estava escrevendo, sentado à carteira.
Depois das perguntas e cumprimentos do estilo, e lendo Luis Maria acabado de tomar os seus apontamentos, voltou-se pura o religioso.
-- Que manda v. rev.ma deste seu criado ? -- perguntou êle.
-- São favores... -- disse frei Quintino baixando a cabeça. -- Como, porém, o meu bom amigo está ocupado com o seu negócio, e o assunto que me traz aqui é demasiado grave...
-- Perdão. Tenho concluido o meu trabalho. Estou inteiramente ao dispor de v. rev.ma.
-- Nesse caso, sempre me afoitarei -- disse frei Quintino tirando gravemente du sua caixa redondu eclesiástica. Depois, segurando-a na a mão direita, deu-lhe duas ou três leves pancadas com a esquerda, abriu-a, ofereceu rapé ao negociante,- e tomando uma pitada, sorveu-a sem ruido nem aparato, e com solenidade.
Tinham-se sentado. O religioso começou espaçando as palavras:
-- Saberá o meu respeitável amigo, que há meses penso muito em alguêm desta exemplar família, cuja bondade e candura, juntas a um arreigado sentimento religioso, são garantias seguras de um futuro coroado de bens celestiais...
-- Fala da minha Leonor?-- interrompeu Luís Maria.
-- Justamente.
E o negocianle pensou consigo:
«Nunca me tinha enganado.» -- Mas... antes de prosseguir -- disse o beneditino dando-se um tom leviano, -- creio não me afastar muito da verdade concedendo ao snr. Luis Maria, um dos mais acreditados negociantes desta praça, uma fortuna talvez superior a 100.000 cruzados...?
-- Vejo que v. rev.ma está bem informado nesse ponto - não pôde eximir-se a dizer o negociante com um imperceptível sorriso indefinido a enrugar-lhe o lábio superior.
-- Foi apenas um cálculo. Ora pois ! Mas, voltando no meu coso, o interesse, que a virtuosa e cândida filha do meu respeitável amigo soube despertar em mim, tem feito com que lhe consagre algumas vigílias, pensando no modo de lhe garantir a felicidade de que, por todos os motivos, se torna merecedora.
-- não sei como possa agradecer a v. rev.ma -- murmurou o negociante curvando-se; e de si para consigo acrescentou: -- Compreendo.
-- Cumpro unicamente o meu dever, como director espiritual desta casa -- disse frei Quintino com um gesto seráfico. -- Promovo o bem-estar dos meus similhantes na limitadíssima órbita, a que aprouve à divina providência circunscrever a minha humildade. Deus Nosso Senhor sabe que, se não faço mais, é porque não posso. Uma das cousas que me lembrou imediatamente, foi a triste e dolorosa situação em que se acharia aquela inocente donzela, se um dia lhe viessem a faltar os seus protectores naturais. Só, sem prática do mundo, rodeada de homens sem princípios nem religião, que fazem do santo sacramento do matrimónio uma especulação vil, é-nos dado imaginar que futuro de lágrimas seria o seu, tendo dado a mâo de espôsa àquele que primeiro tivesse sabido cativá-la com as suas mentirosas pnlaVrus. Se, porém, não casa, se resiste às mil seduções, que a serpe da cobiça desenrolará diante dela, pior, muito pior. Os tempos vão revoltos, como sabe o meu respeitável amigo, a impiedade lavra, o partido da rebelião, longe de esmorecer diante dos avisos de paternal severidade, com que o governo de Sun Majestade pretende adverti-lo, está-se tornando cada vez mais petulante; e, se por desgraça desta pobre nação e castigo dos nossos pecados, se declara uma guerra civil, do que Deus Nosso Senhor nos defenda, que será de essa infeliz donzela, sem um braço que a proteja, sem um nome que a faça respeilar?... Creia que estas e outras considerações, relativas ao futuro de tam interessante menina, me teem preocupado sériamente, porque sei o rico tesouro de singulares virtudes, com que a divina providência a dotou, e também porque dedico a seu excelente pai tõda a afeição a que teem direito os homens honrados e bons.
-- De novo agradeço... -- tornou Luís Maria curvando-se.
-- Não tem de quê. Vox populi vox Deli. Digo unicamente a verdade, reconhecida e afirmada por todos, meu amigo. Em conclusão, depois de bem ponderadas as circunstâncias, e sabendo quanto o snr. Luis Maria estremece aquele querubim, com que Nosso Senhor o galardoou, lembrei-me de lhe falar neste assunto, visto que ninguém pode contar com o dia de àmanhã.
Cuido, pois, não o surpreender dizendo ao meu particular amigo o único meio, que naturulmente se oferece, para atalhar a tam aterradora perspectiva. Um pai, e sobretudo um pai extremoso, como o snr. Luis Maria, é, antes de tudo, previdente, e deve ler também pensado nisto...
-- Com certeza, snr. frei Quintino -- disse o negociante gravemente; -- tenho pensado muito.
-- Tantum melior, meu amigo; calculei isso mesmo, e vejo que não me enganei. Dispensa-me, por conseguinte, de me espraiar sobre o muitíssimo escrúpulo que um pai deve ter na escolha do homem, que destina para inseparável companheiro e protector de sua filha. Que êle seja dócil, bondoso, dedicado, respeitador dos princípios estabelecidos, e amante da nossa santa religião, tais as qualidades que devem concorrer, ab ínitio , no indivíduo que um pai destine para seu genro. Sem elas, creia o meu bom amigo, não há, não pode haver felicidade possível no interior da família.
Ora êsse homem, a quem não falta uma só dessas qualidades, que eu mencionei, infelizmente bem raras nesta época de corrupçáo moral, achei-o eu, louvores a Deus, e...
-- Já sei -- atalhou o negociante, esforçando-se por conservar a voz, na afinaçáo cerimoniosa, que lhe era habitual, mas que, desta vez, quando outra cousa não fôsse, um sorriso forçado traia à primeira vista. -- Já sei; é o afilhado de v. rev.ma...
O beneditino mostrou-se surpreendido; -- e dizemos simplesmente «mostrou-se», porque na verdade ignoro se êle o estava.
-- Quem lho disse?! --perguntou filando Luís Maria.
-- Depois da exposição, que eu acabo de ouvir, não era muito difícil adivinhá-lo. Não me tenho na conta de perspicaz mas há muito que eu estava prevendo o alvo dos imensamente sensatos e aproveitáveis conselhos, de que v. rcv.ma fez preceder a sua proposta.
Frei Quintino, que prestava tôda a atençáo às palavras do negociante, tirou a caixa do bolso e dispôs-se a saborear nova pitada. O honrado homem prosseguiu depois de alguns instantes de concentraçáo:
-- Agora, e em ..resposta, tenho a dizer ao snr. frei Quintino, que me penhora muitíssimo o interesse que liga ao futuro da minha Leonor, que me considero extremamente honrado com a proposta que me acaba de fazer, mas que julgo minha filha muito nova ainda e que tenho na conta de indispensável para a harmonia e felicidade dum casal a dedicaçáo e o amor entre os noivos.
-- Ora ! o amor ! o amor ! -- exclamou frei Quintino com um expressivo movimento de ombros. -- Criancices, meu estimável amigo ! Quem é que toma essas coisas a sério ? Um pai é o único responsável pelo futuro de seus filhos e a êle só pertence decidir o que melhor lhe convêm. A obrigaçáo dêles é obedecerem cegamente; o amor, êsse virá depois pela intimidade, pelo trato, pela convivência. Quanto à idade de sua digna filha, longe de me parecer um inconveniente, acho que é uma razão poderosíssima para se efectuar quanto antes esta ligaçáo, abençoada por Deus. Em primeiro logar. a sr.a D. Leonor é ainda muito nova para ter entregado o coraçáo a quem quer que seja; tudo vai do principio: com a alma a trasbordar de doces e angélicos sentimentos, afeiçoar-se-ia de-pressa àquele que seu pai, a sua providência visível, lhe tivesse destinado para seu companheiro e amparo durante a vida. Isto, meu inclito amigo, sem contar...
Lufs Maria interrompeu o beneditino. A insistência dêle enchera-o de enfado, que já mal podia ou queria dissimular. Por isso, e sem rodeios, disse-lhe gravemente, sêcamente, com o tom do homem que não admite réplica:
-- Eu rogo a v. rev.ma para adiarmos a discussão dêste melindroso assunto, visto que não estou por emquanto disposto a dar marido a minha filha.
Depois, erguendo-se, -- que o mesmo era dizer que dava a entrevista por concluída:
-- E agora -- disse êle -- se o snr. frei Quintino mo permite, antes que passe a hora do correio, vou ainda responder a esta carta de negócio, que recebi quando v. rev.ma entrava. Eu chamo minha mulher..
-- Por quem é, peço-lhe que não incomode a snr.a D. Clara tôda entregue à lida da sua casa. Eu mesmo não me posso demorar, porque deveres a meu cargo me chamam a outras partes. Entretanto espero que o meu bondoso amigo, pesando melhor as minhas palavras, há-de achar que eu tenho tôda a razão e procedo como um amigo lial. Sem incómodo... Os meus respeitos à snr.a D. Clarn e à menina Leonor... Até um dia breve.
Frei Quintino desceu lentamente as escadas, lendo-se voltado ao cabo do primeiro lanço para cortejar Luís Maria, que flrára no patamar superior esperando a vénia do religioso.
A fisionomia do negociante, ao voltar para a sala, mudára completamente. Trazia a fronte avincada, o olhar duro, as narinas dilatadas, os lábios trémulos, a face contraída. Bastava relancear-lhe a vista para conhecer que aquele homem acabava de fazer um violento esfôrço por se conter durante a scena precedente, cujo alvo previra desde o começo.
Luís Maria sentou-se de novo ú carteira, apoiou nela os cotovelos, encostou a cabeça aos punhos e conservou-se imóvel por muito tempo.
Depois, como despertando, ergueu-se e murmurou com dolorosa expressão:
-- Queira Deus !
Entretanto, pensava frei Quintino, descendo a rua do Loureiro com as mfios nas mangas do hábito e os olhos nas lages da calçada:
-- Não me resta a menor dúvida ! a frieza com que me ouviu, a maneira quáse desabrida por que me interrompeu, tudo vem confirmar as minhas suspeitas.
«É isso... destina a filha a êsse hereje, que anda fugido lá por longe eomo criminoso que é.
«Não me tinha enganado nos meus cálculos; guarda n rapariga para o sobrinho; espera que éle volte.
«Pois nós veremos!
«E que volte ! Será ocasião de ajustarmos umas contas, que datam do dia da sua partida.
«Depois, cem mil cruzados não são cem mil réis.
Com êles terei assegurado o futuro do... de... do meu rapaz, a quem não posso dar um património importante. .
«Oh ! mas não serão para o outro, isso lho juro !
«Antes de mais nada, convêm destruir êsse estôrvo, arredar êsse homem para sempre, trancar-lhe as portas da pátria !
E como naquele instante passava em frente da porta principal da Igreja das freiras de S. Bento, e o som grave e arrastado do órgão lhe chegasse aos ouvidos, dirigiu-se para o templo, murmurando com as mãos postas:
-- Deus, por cuja honra e glória trabalho e trabalharei até ao último alento; que, pela sua infinita presciência, vê os perigos de uma tal união para a santa causa do trono e do altar. Deus me inspirará !
VII
Uma torpeza seráfica
Ignoramos se Deus inspirou o beneditino como Ele havia mister para honra e glória Sua, mas o que é certo é que, passados alguns dias da entrevista com Luís Maria, frei Quintino transpunha o portal da casa da rua Chã à hora a que o negociante costumava achar-se na sua loja da rua das Flores, -- por volta das 11 horas da manhã.
Recebeu-o Clara.
Depois dos cumprimentos do estilo, e tendo perguntado pelo seu estimável amigo Luíss Maria, pela cândida menina Leonor, e sem dar tempo a que a espôsa do negociante pudesse encetar palestra inoportuna ao motivo da sua visita, frei Quintino prosseguiu:
-- Já agora, aproveito a ocasião de estarmos sós para lhe falar num objecto, a que eu, por delicadeza, me tenho mostrado alheio, e do qual tencionava ocupar-me a primeira vez que a minha exemplar penitente ajoelhasse ao raro do conflssionário.
Aqui o beneditino fez a pausa, que lhe era habitual, quando tratava de assuntos, a que pretendia dar um certo carácter de gruvidade.
Clara mostrou-se inquieta com o exórdio.
-- Verdadeiramente -- continuou êle -- o caso não diz sómente respeito à snr.a D. Clara, mas envolve a todos. Apesar da extrema confiança com que sou honrado neste lar hospitaleiro, ia afirmar que ela, ainda assim, não é completa, o que me levará a resignar o cargo com que nfio podem os meus débeis ombros, o de director espiritual desta virtuosa família.
Frei Quintino dera ao rosto uns toques de profunda compunção. O seu olhar era baixo e a sua voz áspera, a que pretendia dar tôda a solenidade, era por vezes trémula.
-- Pelo amor de Deus, snr. frei Quintino ! -- exclamou aterrada a pobre senhora. -- V. rev.ma está completamente enganado ! nós não temos segredos... !
-- Queira perdoar-me a espôsa do meu ilustre amigo snr. Luís Maria. Há mais de ano e melo deixou esta casa, para não dar contas das ímpias doutrinas, de que se fizera eco, o seu infeliz sobrinho. Desde então até hoje ainda aqui ninguém proferiu o seu nome diante de mim. Isto, não o posso ocultar, tem-me desgostado profundamente. Será porventura que eu seja considerado um espião?
-- Não ! nunca!... Jesus! Quem se lembraria de tal? !
-- Creio-a piamente, porque sei quanto é religiosa.
Nem tam pouco me atrevo a culpá-la dêste silêncio, que tanto fere a minha dignidade de amigo e de sacerdote. A snr.a D. Clara não faz mais do que obedecer às ordens do seu digníssimo espôso.
«Cumpre um dever.
«Mas que motivos terá o snr. Luís Maria, carácter probo e vassalo fiel, para me ocultar as suas esperanças ou as suas penas com relação a êsse desventurado moço ?
«Não sei; tremo de o saber.
«Mas a divina providência não dorme, e o dever de todo o bom católico é investigar-lhe os desígnios.
Ela, que proporcionou esta entrevista, foi, sem dúvida, para que a snr.a D. Claru emendasse o passo errado de seu exemplar marido, contando-me tudo...
-- Mas... -- murmurou aflita a pobre senhora -- se eu não sei cousa alguma ? se...
-- Compreendo-lhe os escrúpulos -- tornou com bondade o beneditino -- e, repito, não a censuro.
«Peço-lhe sómente que serene o seu espírito. Ouvi-la-hei debaixo de sigilo. Não eslá aqui frei Quintino, o amigo desta casa, está o seu confessor, minha senhora.
«Queira dizer-me: seu sobrinho tem escrito?
-- Meu sobrinho... -- murmuprou ela em tortura -- meu... sobrinho...
-- Nem mesmo assim ? ! -- disse o religioso com postiça serenidade; e despedindo um suspiro ao tempo que se erguia da cadeira onde estava: - Então queira a snr.a D. Clara desculpar-me. Vejo com grande sentimeto da minha alma que depositei uma excessiva confiança na amizade, com que era recebido nesta casa, e que mu enganei quanto aos sentimentos religiosos de...
-- Snr. frei Quintino! -- exclamou suplicante a mísera senhora.
-- Não direi mais -- disse o beneditino depois dum breve intervalo. -- Antes, porêm, de transpôr os humbrais daquela porta, cumpre-me declarar que sáio tranquilo, porque a consciência diz-me que pratiquei sempre o meu dever; e que, se de algum crime sou réu, felix culpa! é de ter consagrado à snr.a, a seu espôso e a sua filha uma dedicação, de que, invoco o meu santo padroeiro por testimunha, me não arrependo.
E dirigindo-se para a porta:
-- Eu retiro-me...
Clara tomou-lho febrilmente a mão:
Pelo amor, de Deus, snr. frei Quintino, fique ! -- bradou ela. - Eu não tenho, não devo ter segredos para v. rev.ma, que tam nosso amigo tem sido ! Perdoe-me !
-- Ainda bem ! ainda bem, snr.a D. Clara, e com isso se expande a minha alma em louvores à divina providência ! ainda bem que o arrependimento baixou como raio de luz celeste sôbre o seu espirito obsecado pelo anjo das trevas.
E erguendo as mãos aos céus, postas em adoração, exclamou:
-- Graças ! Graças, meu Deus ! que vollou ao rebanho uma das vossas mais queridas ovelhas !
Depois, baixando a voz e em tom familiar, disse:
-- Ora vejamos, minha senhora e mui devota serva de Deus: seu sobrinho acha-se escondido em Portugal ?
-- Não, snr. frei Quintino; as últimas noticias ainda estava em França, no Havre.
-- Já se vê; tem escrito...
-- Sim... tem...
-- Nesse caso -- disse frei Quintino com autoridade, sêcamente -- dê-me as suas cartas.
-- Mas... as cartas...
-- Há pouco a snr.a duvidou de mim, ferindo não só o homem, o amigo, mas -- ó desvario duma alma religiosa, -- o confessor. Depois mostrou-se arrependida, acreditei-a. Agora exijo as provas dêsse arrependimento, as cartas de seu sobrinho. Negar-mas-há ? Recuará pela segunda vez diante do dever a minha penitente?
-- Não! não !- exclamou Clara em cujo espírito a voz já untuosa já intimativa daquele homem exercia um poder irresistível. -- Eu vou buscá-las.
E saiu para voltar pouco lempo depois com um masso de cartas, dez ou dôze, atadas com uma fita de nastro.
-- Estáo aqui -- disse ela entregando-as.
Um lampejo, instantâneo como o relâmpago, iluminou o olhar de frei Quintino ao apossar-se daqueles valiosos documentos.
-- E se elas se extraviam, o que será daquele pobre rapaz?.. -- interrogou a mêdo a pobre senhora.
-- A êsse respeito pode a snr.a D. Clara estar tranquila -- disse o beneditino. -- não se extraviarão. E, se mais alguns escrúpulos restam ainda a ferir-lhe a consciência, não foi debalde que Deus nos concedeu o privilégio de julgarmos dos actos e intenções do próximo. Queira ajoelhar.
Clara ajoelhou quáse maquinalmente. Entáo frei Quintino, estendendo o braço direito e com a mão descarnada aberta sôbre a cabeça da sua penitente, emquanto cerrava na esquerda os papeis, disse com voz solene:
-- Absolvo te in nomine Patris, et Filii et Spiriti Sancti. Amen.
VIII
Uma amostra de pano... azul e vermelho
As perseguições e violências por motivos políticos, já acumulando-se em cárceres infectos, já perseguindo-se a cacetadas pelas ruas todos os indivíduos suspeitos ou acoimados de liberais, tinham tocado o delírio.
O primeiro miserável, que se adornasse com um tope azul e vermelho, tinha o direito livre de maltratar um vélho, de insultar uma senhora, de invadir a casa do cidadão, de revolvêr todos os seus papeis, de devassar todos os seus segredos, contanto-que fizesse preceder qualquer acto dèstes da seguinte voz: -- É malhado.
A populaçáo portuense, acusada na sua grande maioria de tal mancha, era sem dúvida aquela que, dentre as de várias cidades do reino, estava sendo mais vèxada pela tirania dos grandes e pequenos vilões, dos que empunhavam a vara do poder e dos que manobravam o cacete de cerquinho.
Ouçamos sôbre o caso um cronista do tempo, que se nos afigura insuspeito, pois que o não desvaira a paixão partidária e limita-se a narrar o que viu e ouviu.
O cronista é a snr.a Rosa, que tem ido visitar a sua menina a casa de Luis Maria.
Já não chegamos ao princípio do diálogo, mas entramos ainda a tempo de ouvir o mais interessante dêle. Exclamava:
-- Ah ! minha rica senhora ! não faz uma pequena idéa ! A snr.a está muito bem entregue aos arranjos de sua casa e não dá fé do que vai pelo mundo ! -- Não é tanto assim, Rosa; eu também estava persuadida disso, mas o snr. frei Quintino é que me explicou os motivos...
-- Bem digo eu que a snra não sabe nada ! Olha quem !... Os motivos !... Os motivos é haver quem queira mal a uma pessoa. Manda-se uma denúncia ao snr. corregedor ou à alçada, e disse ! foi alma que caiu no inferno. Vai-se logo fazer companhia aos outros desgraçados, que estão ntrancados na Relação...
pelo mesmo crime.
-- E se prendem o pai ? -- interrogou Leonor, inesperadamente, e com o susto estampado no rosto.
-- Estás doida, filha! -- exclamou Clara sobressaltada; -- que idéa !
-- Não; pelo snr. Luís Maria fico eu. Tem bons amigos e sabe viver com todos. Demais a mnis lá estava o snr. frei Quintino em caso de necessidade...
-- Sim, dizes bem... o snr. frei Quintino...
-- Pois que dúvida ! Também, se os antigos não servem para as ocasiões, então arrenego de semelhante gente. Apesar de que, a falar a verdade, eu não vou lá muito com os frades; mas einfim, como excepção, acho que não haverá motivo para desfazer neste...
E como Clara guardasse silêncio, Rosa acrescentou admirada:
-- Ou há ?
-- Motivo, nenhum ! Ora essa !
-- Parece que a snr.a D. Clara ficou assim um pouco pensativa quando falei no snr. frei Quintino...
-- Enganaste-te. Já viram ? ! Então porque havia de ficar pensativa?... Um homem tam bom. Tam virtuoso...
-- Lá isso é... se não fôsse o resto!
-- Que resto ?
-- Ser dos tais. Sempre ouvi dizer que de mouro...
-- Isso não se diz, Rosa. Deves lembrar-le no menos de que é um religioso.
-- Peço perdão, mas tenho visto tanta cousa, que já perdi a fé com semelhante gente. Emfim, enganarei-me, mas duvido.
-- Faz-me tanta pena quando o ouço falar contra o partido do primo Frederico ! Tem-lhe tanto ódio ! -- observou Leonor, que se tinha conservado silenciosa.
-- Minha querida menina ! -- disse Rosa acariciativa. -- E que tem que fale ? Ora ! Deixe-os falar ! O que êle diz não se escreve. Quer a snr.a saber um caso sucedido lá na minha vizinhança ?
-- Com o snr. frei Quintino ? !
-- Com êsse, não; mas com outro da mesma côr, Deus me perdôe se peco !
-- Então que foi ? Ó ama, conte, conte ! -- apressou-se a dizer Leonor preparando-se para ouvir.
-- Vivia lá ao pé de nós, na rua Escura, -- começou Rosa -- um pobre encadernador com mulher e cinco filhos, que todos êles juntos cabiam debaixo dum cêsto. Aquilo, bastava a gente olhar para as crianças, p'ra ver logo a miséria que havia naquela casa.
O pai, consumido, trabalhando quando lhe davam que fazer, com o seu pouco e algumas esmolas dos vizinhos, que se eondoinm daquela familia, lá ia sustentando aquele ranchinho como Deus era servido. A mulher, essa há oito meses que está na cama com uma queixa de peito e não irá muito longe, coítadinha !
«Pois, snr.a; no fim da semana passada, numa ocasião em que o encadernador tinha saldo, entrou-lhe na loja um frade bento, que era freguês da casa, e começou a ver os alfarrábios que êle tinha. Em fim tanto vasculhou, tanto mexeu, tanto andou, que foi dar com um livro, que estava lá p'ra encadernar em segrêdo e que, pelos modos, era desta seita nova que há, dos pedreiros-livres.
«Sabe o que aconteceu, minha senhora ? Foi o maroto do frade ir logo dali, como um raio, denunciar o homem à justiça, e êle ser preso quando vinha a entrar p'ra casa. Não que nem mesmo lhe deram tempo de se despedir da mulher e das crianças, que faziam um chôro de partir o coração. Ora aqui está um caso bonito !
-- Mas se o livro não era do homem -- observou Clara -- com certeza que o mandaram embora.
-- Qual mandaram, minha senhora ! Mandavam se êle quisesse delatar quem lho deu p'ra encadernar; mas pelos modos o homem tinha dado a sua palavra de que o não dizia a ninguém, e aí está aquele desgraçado na Relação sem ter feito crime nenhum, a pobre mulher vendo chegar a hora da morte sem poder despedir-se dêle, e aquelas criancinhas, órfãs, por assim dizer, de pai e mãe, a viverem da caridade dos vizinhos !... E tudo porque ? Por amor daquele frade bento, a quem Deus dará o pago das suas bôas obras, não tem dúvida ! E ainda quer a snr.a D. Clara, que eu tenha devoção por similhante gente, com aquele painel diante dos olhos ? Não, que era preciso não ter entranhas, minha senhora.
-- Mas o que um faz não deve ser deitado à conta de todos -- observou Clara. -- Sabes o que te digo, Rosa ?
É que deves ter mais tento na língua ou ainda passas por algum desgosto.
-- Também, o que faltava, era a ama ir para a cadeia ! - exclamou Leonor segurando-a por um braço, como se efectivamente lha quisessem arrebatar.
-- E porquê? -- replicou a desempenada mulher.-- O que eu digo é tudo verdade; e mais ainda não digo tudo !
-- Mas nem tôdas as verdades se dizem. Sabes o que deves fazer ? Meteres-te com a tua vida, cuidares dos teus arranjos, tratares da roupa do teu homem, deitares a tua teia, e não quereres saber o que vai por êsse mundo. Assim como assim, não o melhoras, e tu é que podes piorar. Ê verdade... -- e dizendo, Clara procurava na algibeira; depois, entregando dinheiro a Rosa: -- Toma lá éstes dous pintos para dares à mulher do encadernador. Não é tanto como eu tinha na vontade, mas... para pão sempre chega.
A bôa mulher tomou a mão, que lhe dava o socorro para aqueles desventurados, e quis beijá-la, cheia de reconhecimento.
-- Ó minha senhora -- exclamou ela sensibilizada a ponto de a voz lhe tremer nos lábios, -- muito e muito agradecida em nome de tamanhos infelizes ! Não que ninguém imagina a pena que faz a pobrezinha da doente, ali, para um canto, numa enxêrga, com a cara que parece uma caveira, a perguntar se já lhe mataram o marido, e as criancinhas a chorarem com fome à volta da cama ! Ai, Senhor! nem quero que me lembre ! é de estarrecer uma pessoa !
-- Que desgraça ! -- exclamou Leonor estremecendo.
-- E diz bem, minha menina; que desgraça !
Assim corriam aqueles ditosos tempos, em que o trono e o altar se mutuavam os bons serviços, combatendo, perseguindo, derrubando o inimigo comum.
Quem dissesse «liberal» dizia hereje; um inimigo do trono absoluto era um inimigo do altar católico. Dal as excitações sanguinárias declamadas no púlpito, as denúncias obtidas pelo confessionário, a obra dum clero numeroso e fanático auxiliando a prepotência e o rancor disfarçado sob as cândidas vestes da justiça e do direito.
Consequência -- as cadeias pejadas de infelizes, os cadafalsos manchados de sangue, as perseguições decretadas como garantias de segurança para o altar e para o trono, a vida e a propriedade do cidadão em risco iminente, numa palavra -- o terror.
IX
A negra teia
Frei Quintino deixára de amiudar as suas visitas a casa do negociante, que, depois da scena em que lhe insinuára o afilhado para genro, se sentira esfriar muito da sua consideraçáo por êle.
O religioso, porêm, é que era sempre o mesmo, atencioso, cheio de extremos de gratidão, abundante de adjectívos corteses, dedicado e bom, como se nada tivesse havido a contrariar-lhe os legítimos desejos.
Sómente o afilhado já não estava no Pôrto. Recambiára-o para o virtuoso padre-mestre frei Joaquim de Jesus-Maria-José, em Barcelos, precedendo-o du seguinte epistola:
«Meu reverendo padre-mestre:
«Saúde e apetite, com a graça de Deus. Quando esta receberes já o António irá a caminho para essa vila. Achei dificuldades na realização imediata do meu projecto, com as quais não contava, e o rapaz ia-se-me apaixonando pela noiva mais do que convinha. Por algumas vezes o encontrei a chorar sózinho e outras vezes a fazer odes, em que se queixava da fereza do coraçáo de Leonilda (a filha do negociante é Leonor), chegando mesmo a perder o apetite.
«Como vês, a cousa principiava a tomar um carácter grave, e tanto mais que o negócio tem ainda suas estações, até que chegue á conclusão, que te prometo há-de ser em tudo conforme aos meus desejos.
Ora convém mesmo fazer esquecer por emquanto o rapaz, dando a supõr que o meu projecto nada tinha de firme propósito, e que desisti dêle fácilmente, não pensando em renová-lo. Depois, a seu tempo falaremos.
«O pai da rapariga, que eu supunha um pobre homem inofensivo e condescendente, saíu-me um perfeito malhado, e para mim é fóra de dúvida que êle destina a filha ao tratante do sobrinho, cuja fuga para o estrangeiro eu protegi, julgando que lá estaria seguro; donde conclúo que todo o hem que façamos a estes enviados de Belzebuth é um pecado de que mais cedo ou mais tarde teremos de nos arrepender.
«Felizmente consegui haver à mão a correspondência do sobrinho para o tio, e ela só é garantia mais que suficiente do hom ôxito da projectada união. O energúmeno estorce-se naquelas latidas proferindo blasfémias e infâmias contra o altar e o trono, como se o estivessem exorcismando de estola e hissope. Eu, assim que li aquilo, fiquei mais satisfeito do que se tivesse tido uma herança de dez mil cruzados. Do que se trata agora é de banir para sempre do reino o tal bacharel in minoribus. Dêsse modo desaparecerão tôdas as esperanças, todos os cálculos do negociante e ficarei eu senhor do terreno, certo da vitória.
«O que desde já te afianço é que a rapariga não é para o ímpio do primo, que nas cartas lhe dirige os mais descarados galanteios. Custa mesmo a crêr que o pai consinta naquilo.
Mas o mundo está assim, e poucos rumos lhe vejo de emenda, emquanto por cá tivermos dessa raça daninha, que tudo discute e tudo perverte, e que só o carrasco, um dos homens mais prestantes da sociedade de hoje, faz caiar.
«Emfim, aí te mando o rapaz, que eu nunca pensei susceptível da fragilidade de uma paixão, e espero que êle, na volta para o Pôrto, já não traga mazela de cuidado.
«Adeus; visitas á velhola, e quando se lembrar de li com algum caixáo de garrafas de vinho, lembra-te tu de mim com meia dúzia. Eu pago o frete.
«Deseja-te mil venturas e outros tantos anos de vida satisfeita o teu confrade o pai consinta naquilo.
Frei Quintino da Expectação.»
N. B. não me torças a vocação ao rapaz. Fá-lo tratar mais com gente e ajudar menos à missa. Nunca pensei fazer dêle um sacristão; o que eu quero é vê-lo capitalista.»
Quando António de Pádua foi despedir-se de Clara e de Leonor, desatou a chorar na sala.
-- E demora-se lá muito tempo? -- perguntára a espôsa do negociante.
-- Disse o meu padrinho que vou para acabar a minha educaçào. Disse que eu estava ainda muito verde...
-- Então volta para os seus estudos ?
-- Creio que sim, minha senhora.
-- O que admira é que o snr. frei Quintino o não destine para a vida eclesiástica !
-- Eu também, falo com franqueza, já tive mais tendência para ela do que sinto agora -- e relanceava um olhar furtivo para Leonor. -- Um homem, quando não pode ser um religioso como o snr. padre-mestre frei Joaquim de Jesus-Maria-José ou como meu padrinho, então melhor é para êle e para a religião, que não se ordene. Maus padres não faltam, que infelizmente até os há no partido dos traidores.
- Mas o snr. António de Pádua não seria dêsse número; e então ..
-- É que... emfim, minha senhora, nem todos os homens são bastante fortes para se saberem dominar e vencer. E eu...
António interrompeu-se, córando até às meninas dos olhos.
As duas senhoras olharam para file, esperando a conclusão da frase.
Êle continuava embaraçado.
-- E o snr... ? -- auxiliou Clara.
-- E eu não sei se já iria com o meu espirito tranqùilo -- rematou o moço com a voz trémula de comoção.
Clara pensou descobrir naquelas palavras referência a algum caso particular do afilhado com o padrinho, e guardou um discreto silêncio. António fazia girar na extremidade dos dedos o chapéu braguês. De tempo a tempo erguia timidamente a cabeça ora para uma ora para outra senhora, e baixava-a imediatamente. Estava-se conhecendo no rapaz quanto lhe era custoso ter de se retirar, de se ir embora -- para não tornar tam cedo.
E sentia-se preso à cadeira, e não sentia fôrças que o levantassem, e a bôca secava-se-lhe e êle não tinha nada que dizer.
Durára alguns segundos o silêncio. Clara lembrou-se então de lhe perguntar:
-- Leva algumas saúdades do Pôrto ?...
O moço, como se o surpreendesse aquela pergunta, fitou por um instante a vista espantada no rosto de Clara, abriu os lábios para responder, mas, tendo sufocado, rompeu num chôro desfeito e escondeu a face no chapéu para não lhe verem as lágrimas.
As duas senhoras ficaram admiradas por aquele desabafo imprevisto, e cercaram-no de atenções e palavras animadoras, dizendo-lhe que não se afligisse, que voltaria dentro cm pouco, que pediriam ao snr. frei Quintino para que o não deixasse ficar muito tempo em Barcelos.
António de Pádua serenou, ergueu-se, despediu-se de Clara e de Leonor -- com palavras devotas, -- desejando que Deus Nosso Senhor as tivesse sempre na sua santa guarda, -- e desceu as escadas lentamente, como se as pernas ainda o estivessem tirando para trás.
No entanto a espósa de Luís Maria explicava mui naturalmente o flato do chôro, que tinha acometido o afilhado do beneditino, atribuindo a castigo imposto pelo padrinho o seu exílio para Barcelos, e ela ter-lho recordado com a inocente pergunta, que lhe dirigira.
-- Vê-se que é um rapaz de sentimentos -- rematou Clara, para quem a explicaçáo do caso não tinha contestação.
Um dia o negociante entrou em casa triste, preocupado, e às perguntas sobressaltadas da espôsa e da filha, respondeu com evasivas.
-- Não tenho nada... Estou bom... Pois que hei-de ter?... Nada me preocupa.
-- Alguma cousa é, que não me queres dizer -- teimava Clara. -- Que te aconteceu, Luis ?
-- Mas se eu te digo que não foi nada !
-- Talvez más notícias de teu sobrinho? Anda, fala; eu, assim como assim, já pouco espero daquele rapaz. Ah ! parece-me que acertei. É por causa dêle que estás triste !
-- Justamente... é por causa dêle.
-- Hás-de contar-me tudo o que há a seu respeito.
-- Pois sim; logo.
Q negociante não dizia a verdade. A tristeza e a preocupaçáo de que vinha possuído tinham uma origem mui diversa.
Achava-se á porta do seu estabelecimento na rua das Flores com alguns amigos, e ao grupo juntou-se o escrivão da alçada, sujeito estimável, que Luís Maria em tempo havia protegido com o seu valimento.
fiste homem, a quem um propósito firme parecia demorar uii, pois que pouco o interessava a conversa travadaentre os indivíduos presentes, esperou que se retirasse o último, para enfiar o braço no de Luís Maria e levá-lo o um canto menos devassado da loja.
O negociante, silencioso, interrogava-o com o olhar.
-- Que há ? -- disse êle por fim.
O escrivão da alçada, sem lhe responder à pergunta, formulou esta outra:
-- Frei Quintino continua a ir por sua casa ?
-- Mas...
-- Responda, que não posso demorar-me aqui muito tempo.
-- Continua.
-- Na sua ausência ?
-- Às vezes.
-- Pois bem; evite que êle entre lá, quando o snr. lá não estiver.
-- Porque ?
-- É quanto lhe posso dizer.
-- Mas...
-- Nada de reflexões; o beneditino é um homem perigoso, convença-se disto. Cautela, pois, meu amigo; muita cautela com êle ! Não lhe recomendo discrição, porque é desnecessário. Está avisado. Adeus.
E retirou-se á pressa, depois de um apêrto de mâo expressivo.
Luís Maria ficou meditabundo e aterrado.
X
Uma sentença da alçada
Nos dias seguintes o negociante não saiu de casa, pretextando um leve incómodo de saúde; porém, a verdade é que êle não ousava deixar sós as duas senhoras.
-- Mas que haverá de exacto neste aviso ? -- pensava consigo. -- Ninguém melhor do que êle deve estar ao facto do que se passa lá na justiça ! Basta ser o escrivão da alçada ! E vir-me prevenir assim, com tanto empenho e a mêdo ! Oh!... -- e depois de uma pequena pausa, mudando de tom, influenciado sem dúvida por nova corrente de idéas: -- Ainda se fôsse com outro... mas logo com frei Quintino ! Nada, não é possível. Frei Quintino é incapaz de invocar o meu nome com o propósito de me comprometer !... E contudo, a maneira por que o escrivão me disse: -- Cautela com o beneditino; muita cautela ! -- fez-me estremecer. Lá se eu lhe tivesse dado causa... !
Certa manhã em que o negociante, medindo a largos passos a sala do primeiro andar, onde tinha a sua carteira, fazia estas ou idênticas considerações, sem nunca poder chegar a uma conclusão qualquer, ouviu passos fôfos subindo as escadas e ao mesmo tempo a tosse discreta de frei Quintino.
-- É êle ! -- exclamou Luís Maria, sentindo uma pancada violenta no coraçfto. -- Vou saber tudo.
E dirigiu-se para a porta a receber o beneditino, tratando de dominar a comoção.
-- Venho penitente diante do meu bondoso amigo -- disse o religioso, depois das contumélias usuais, -- pedir humildemente perdão...
-- Perdão, de quê? -- exclamou o negociante surpreendido.
-- De ter faltado a esta casa há dezasseis dias, faltando assim aos deveres de amizade, para com tam católica família. Todavia rogo que não me julgue sem primeiro ser ouvido.
-- Ó snr. frei Quintino ! a mim basta saber que nâo foi por motivo de doença. E o afilhado de v. reverendíssima ?
-- Chegou a Barcelos de perfeita saúde, e pede-me na carta, que escreveu, para apresentar os seus respeitos a v. s.a, à snr.a D. Clara e a interessante filha do meu amigo. Também quáse que foram as únicas pessoas, estranhas ao hábito, com quem êle viveu aqui no Pórto.
E depois de um breve e recolhido silêncio:
-- Não foi, porém, isso o que me trouxe aqui -- acrescentou êle dando à face a compunção das solenidades da semana santa, -- mas um motivo bem mais sério e doloroso bastante, meu digno amigo.
Luís disfarçou a sua inquietação, indo buscar uma cadeira, que ofereceu ao religioso, ao passo que lhe dizia:
-- Peço a v. rev.ma que se explique.
-- Acha que não seremos interrompidos, nem escutados?
-- Sem dúvida.
-- É que eu desejaria poupar talvez um grande golpe àquelas pobres senhoras...
-- Então que sucede ? Devo confessar que estou ansioso por que v. rev.ma diga o que se oferece.
-- Meu amigo; a resignação é uma das virtudes que mais distinguem o homem verdadeiramente religioso, que considera esta vida mortal como um pequeno período transitório para a vida eterna. Sem resignação, snr. Luís Maria, o mundo ser-nos hã um verdadeiro inferno e porta por onde entraremos para o outro, que tem o ringir dos dentes e o arrastar de cadeias.
O negociante impacientava-se com o exórdio.
-- Peço encarecidamente a v. rev.ma que me explique o motivo da sua visita. Estou resignado.
-- Ora vamos; sossegue um pouco -- tornou o religioso com uma inalterabilidade desesperadora. -- Felizmente não é caso de chamarmos com os olhos no céu -- vide abominationes péssimas, quas isti faciunt hic!
«A exemplar família do meu respeitável amigo estará a salvo de qualquer provação, emquanto trilhar o caminho da virtude e as minhas fracas orações forem ouvidas pelo meu bemaventurado S. Bento.
«Se, porêm, não se trata do meu particular amigo, e menos de sua digna espòsa ou de sua cândida filha, nem por isso o golpe será menos doloroso, sabendo que se trata...
-- De meu sobrinho, não? -- atalhou Luis Maria.
-- De seu infeliz sobrinho -- repetiu com unia grande mágoa estampada no rosto frei Quintino.
-- Mas então que lhe aconteceu ?
-- A justiça de el-rei, que Deus guarda, é inexorável. Diante dela não há ricos nem pobres, grandes nem pequenos. O rebelde será sempre e igualmente punido como rebelde, ou seja um grande da terra ou um humilde operário. O seu dever é punir os culpados onde quer que êles estejam, quem quer que êles sejam...
O negociante estorcia-se de impaciência.
Ele prosseguiu:
-- Tambêm, se não fôsse assim, meu bom amigo, que teria sido de nós?... Entregues a um punhado de homens sem crenças nem religião, famintos de ouro e ávidos de mandar Portugal...
-- Emílm, snr. frei Quintino? -- atalhou Luis Maria, a quem aquela voz, monótona e cadenciada, enchia de desespêro.
-- Peço desculpa ao snr. Luís Maria por esta pequena divagação. Não continuarei. O meu ilustre amigo mede bem o estado lastimável, a que ficaríamos reduzidos, se porventura... digo, se por desgraça nossa triunfasse a revolução. Faz-se, pois, mister usar de tóda a energia para extirpar essa hidra bem mais terrível do que a da fábula; nesta por cada cabeço decepada, nascia outra; naquela, por cada uma que se lhe corte, nascem vinte !... Por êsse motivo, como bom católico e vassalo flel, deve conformar-se com a sentença...
-- O que?! Pois meu sobrinho foi julgado? 1 -- exclamou o negociante fazendo recuar a cadeira.
-- Ontem mesmo -- volveu frei Quintino cabisbaixo.
-- E impossível, snr. ! é impossível! -- bradou êle.
-- Por si, meu excelente amigo e por aquelas pobres senhoras, que deverão sofrer muito com êste golpe, sinto dizer-lhe que não...
E tirando da manga um papel dobrado:
-- Aqui tem -- disse êle, -- queira lêr.
Luis Maria pegou convulso no papel, e, abrindo-o, leu a espaços, porque uma nuvem lhe passava de tempo a tempo pelos olhos:
Sentença (Cópia)
«Por acórdão da alçada se julgou o processo sumário do riu Frederico de Morais Veloso, estudante de Coimbra, ausente, e foi condenado a 20 anos de degrôdo para Benguela, na confiscação e perdimento da metade de seus bens para a rial câmara e em 200$000 réis para despesas da alçada...»
-- Que infâmia ! -- interrompeu Luls Maria, não podendo conter-se.
Passado um instante de amarga concentração, prosseguiu:
«E porque o mesmo réu se acha ausente, o pronunciam e hão por banido, e mandam às justiças de S. Majestade el-Rei, que Deus guarda, que apelidem contra êle tôda a terra para ser preso ou para que todo e qualquer do povo o possa malar livremente, sabendo que é o próprio e não sendo seu inimigo.»
Luís Maria convulso, pálido, com o olhar desvairado, amarfanhou o papel nas mãos, e dirigindo-se a frei Quintino, que o observava num recolhimento dolorido, abriu com esta apóstrofe a caudal da sua indignação:
-- Mas como, depois de quase dous anos de ausência, se lembraram dêsse infeliz moço, que um imprudente e generoso entusiasmo obrigára a emigrar? -- Que motivos alegaram êsses juízes implacáveis para o condenarem assim ao degrêdo e à miséria, a êle, que no exílio tem expiado cruamentc a sua nobre dedicação?... Porque motivo a alçada aniquila o futuro de um rapaz de 23 anos, quebra para sempre os laços, que o prendiam à família, bane da pátria um coração que palpita por ela, condena ao degrêdo, ou antes, à morte, um desventurado, cujo crime, snr. frei Quintino, é... a indignação das almas nobres diante désse poder, que de dia a dia se vai tornando mais odioso ?
Frei Quintino ouvia as apóstrofes do honrado negociante com uma verdadeira cara de réu. Disse êle:
-- Mas, meu muito benemérito snr. Luis Maria, a paixão cega-o. Entretanto respeito-lhe a dôr e desculpo-lhe as palavras. Ê o seu pobre coração magoado que fala. Se, porém, houvesse um meio...
-- De o fazer voltar ?
-- Não; isso é impossível; de tornar menos sensível a sua falta.
-- Como ?
-- Eu sei que o snr. Frederico, que Deus ilumine com um raio da sua divina graça, era mais do que seu sobrinho, porque era o prometido espôso da cândida filha do meu honrado amigo...
Luís Maria relanceou sôbre o religioso um olhar investigador.
-- E que mais ? -- perguntou êle com a voz alterada.
-- Ora... -- prosseguiu o religioso hesitando, talvez mesmo arrependido de ter encetado o período -- se, para o seu logar se pudesse escolher um outro, que, pelas suas qualidades, nos autorizasse a crê-lo digno de possuir tam invejável tesouro de virtudes, a perde, coino vê, não era até certo ponto irreparável...
Frei Quintino arrastava as palavras e acusava-se de imprudente.
Luís Maria, -- como se naquele instante um clarão imenso lhe iluminasse as trevas do mistério, que cercava aquela sentença de destêrro, -- pálido, com os olhos pregados no rosto macilento do frade, soltou um grito:
-- Ah ! o aviso !... agora compreendo tudo !
E dirigindo-se ao beneditino, terrível, ameaçador, de modo a fazê-lo recuar, ia-lhe dizendo com os dentes cerrados:
-- Malvado ! impostor ! denunciante !
-- Mas... Deus de Misericórdia!
-- Sim ! -- chamou Luís Maria, baixando e elevando a voz alternadamente, em cólera concentrada, e olhando para as portas, receoso de ver acudir a espôsa. -- Sim! foi o snr. que o denunciou !... E eu a perguntar quem teria sido o infame, tendo-o aqui diante de mim ! Mas diga-me: que mal lhe fazia lá, tam longe, êsse pobre rapaz?... Eu sei! Quis exercer uma vingança tam miserável como o senhor mesmo, e arrastou-se até ao estrado da justiça ! Cobiçou o meu dinheiro para o seu... afilhado, e fez-se denunciante ! A sombra daquele honrado moço incomodava-o a tantas léguas de distância; via nêle um obstáculo á realizaçã dos seus sonhos de previdente padrinho, e... tratou de o perder !...
Luís Maria estava a dois passos do beneditino, que, de cabeça baixa e as mãos encruzadas nas mangas, guardava uma atitude resignada. Ao ver aquele cinismo hipócrita, o negociante, completamente desnorteado, com os olhos injeclados de sangue, tomou frei Quintino pela gola do hábito:
-- Ah ! frade ! -- resmuneou êle sacudindo-o -- que eu bem sei qual seria a paga da tua negra intriga, se quisesse manchar aquela parede com os teus miolos perversos !
E arremessou-o a distância.
Frei Quintino enfiou um pouco, e mordeu o lábio inferior; depois disse com a voz um pouco alterada, e que se forçou por tornar solene:
-- Jesus Cristo também sofreu inocente. Não serei eu que retire o cálice, que êle, pela sua divina Misericórdia, me faz chegar aos lábios !
-- Cale-se ! e sáia já ! -- disse o negociante, apontando-lhe para a porta; e, tendo-lhe voltado as costas, rompeu neste desafôgo: -- E sôb êstes homens, com o coração a trasbordar de fel, de ódio, de peçonha, que se apresentam como defensores da religião, como prègadores da doutrina de Jesus ! Eles, os hipócritas ! êtes, os denunciantes! êles, os sanguinários! E eu tam cego, que lhe abri a minha porta, que lhe franqueei a minha casa, que o sentei á minha mesa, que lhe confiei os meus segredos, que fiz ajoelhar aos seus pés minha mulher e minha filha !... E queixam-se de que se faz guerra aberta à religião ! mas se é a êles sómente que é feita guerra ?!...
Depois, como visse frei Quintino, que se aproximava dêle com o rosto contrito:
-- Que faz o snr. ainda aqui ? -- perguntou.
-- Espero que o snr. Luís Maria reconsidere, e se arrependa.
-- Eu ?! Quer entáo que o mande pôr fóra desta casa por algum dos meus caixeiros ?
-- Não será preciso tanto -- replicou o beneditino pousando um olhar sereno e firme no negociante. -- Eu retiro-me. Deixe-me, porém, dizer-lhe que não levo a menor animosidade pelas ofensas, com que deu largas à sua cólera injusta contra mim. Lastimo-o e perdôo-lhe. Mas outro tanto não poderei dizer pelo que respeita às injúrias, com que tentou manchar a santa instituição das ordens religiosas. Foi a Deus que o snr. injuriou. Responderá por isso.
Frei Quintino dizia estas palavras próximo da porta. O seu gesto era severo; a sua voz grave.
-- E quem me acusará ? -- interrogou o negociante cruzando os braços no peito.
O religioso estava já no patamar da escada; voltando-se, disse distintamente:
-- Eu !
Luís Maria ficou por um momento alheado; depois soltou um rugido e correu à porta. O beneditino transpunha os últimos degraus da escada no seu passo habitual e solene.
O negociante, deixando-se cair sôbre uma cadeira, repetia com desespêro:
-- E lembrar-me eu de que tenho uma filha !
XI
Consuma-se a infâmia
Passaram-se alguns dias sem que Luís Maria tivesse tido notícias de frei Quintino; e apesar de não o supôr capaz de ir delatar as suas palavras naquela hora de exaltadn indignaçáo, em que tivera conhecimento da sentença do sobrinho, andava inquieto e comia pouco.
Isto era o suficiente para as duas senhoras estarem num completo desassossêgo. O honrado homem não tinha mesmo comunicado à mulher a ausência obrigada de frei Quintino naquela casa.
Rosa, que viera trazer os agradecimentos e as bênçãos du mulher do livreiro, preso na Relação, consolava como podia Clara e Leonor, combatendo-lhes os pressentimentos, quando a porta da sala se abriu e entrou um rapaz, caixeiro da casa, todo esbaforido, com um papel na mão.
-- Que é, Joaquim ? -- perguntou Clara.
-- Minha senhora, vieram trazer esta carta a tôda a pressa p'ra o patrão.
-- E êle não está na loja ?
-- Não, minha senhora...
-- De mando de quem, não disseram?
-- Também não; mas o homem que a trouxe vinha alagado em água.
-- E foi há muito ?
-- Agora mesmo.
-- Bem; eu lha entregarei.
O rapaz saiu.
-- Uma carta... urgente... -- disse Clara olhando para o sobrescrito, -- e êle que não me deixou dito para onde ia!
-- Talvez seja cousa de negócio -- aventou Rosa.
-- Não me parece. Aqui há um grande segrêdo, que se trata de me esconder por têdas as formas. Não o tenho visto senão preocupado, incomodando-se com as minhas perguntas, -- disse ela bgixando a voz, tôda trémula -- e num estado como nunca o vi. Meu Deus !
Se pertencesse tambêm a algum dêsses clubs, em que se conspira contra o governo!?
-- Então, que tinha lá isso, minha senhora ?... -- exclamou Rosa. -- Pois cu cá, juro-lhe pela bôa sorte dos meus filhos, que, se fôsse homem, havia de ser dos primeiros !... Então isto há-de ser sempre assim ?
Êle, quando me lembra de que me rasgaram um lenço de sêda novinho, aqueles malditos, até me dáo ganas !...
-- Cala-te, mulher ! -- interrompeu' a espòsa do negociante com severidade. -- Eu agora nem me parecia estar a ouvir uma mâe ! Era preciso que o meu Luís não me tivesse já nenhuma afeiçào nem à filha, que estivesse aborrecido da vida e que se não importasse com a sua casa para ir arriscar os seus dias numa carta, que era como se fosse uma sentença de morte ou de degredo. O que eu não quero. Rosa, é que me suceda o que sucedeu ainda há dous anos As famílias daqueles desgraçados, que a alçada mandou à força ir um dia a abrir a minha janela, e dar defronte com a cabeça do meu homem espetada num poste !
Clara terminou, escondendo o rosto nas mãos, entre soluços.
Leonor correu a abraçá-la.
Rosa tomou-lhe a mâo.
-- ó minha senhora -- disse a pobre mulher comovida,-- perdôe-me ! Eu não a queria afligir.
Clara, impressionada, não abandonava a sua idéa.
-- Mas... é impossível!- prosseguiu ela, depois de ter olhado ainda uma vez para o sobrescrito da carta: -- ôle, que tem sabido conservar-se há tantos anos separado dos partidos e estimado de todos, não ia agora jogar a vida para deixar a pobre mulher viúva e a filha órfã ! não !... Olha, Rosa, eu ainda não acuso aquele que é só no mundo e se deixa levar pelo calor dos partidos até lhe cliegar o triste desengano, que é o que tem acontecido ! não se deve a mais ninguém, acabou-se ! Agora, quando um homem não pertence só a si, quando á vida dêle andam ligadas outras vidas, entáo não tem desculpa !-- E voltando-se para a filha:
-- Mas eu conheço bem o teu pai e não o acho capaz disso.
-- Pois não, não, minha senhora; e por êle fico eu.
O snr. Luís Maria é um homem muito prudente.
Ouviram-se passos na escada; era Luís Maria. Clara saiu-lhe ao encontro.
-- Ah ! até que chegaste finalmente !
-- Porquê ?
-- Estava ansiosa por ti. Vé esta carta.
Clara entregou o papel e ficou de parte observando o marido, como se quisesse lêr na sua fisionomia, nos seus gestos, o conteúdo da missiva.
-- «Urgente» ? I-- exclamou êle, lendo o sobrescrito -- e não conheço esta letra ! que será ?
Luís Maria, depois dum instante de hesitação em que um terrível pressentimento lhe segredava desgraça, abriu a carta e leu para si:
«Meu caro amigo.
«Para evitar comprometimentos não me assino.
Vou, portou, previni-lo de que frei Quintino da Expectação, da ordem de S. Bento, acaba de dar uma grave denúncia contra si. Trate imediatamente de pôr-se a salvo, pois ameaça-o grande risco.» Lufs Maria deu largas à sua indignaçflo.
-- Ah! cumpriu a promessa, o malvado!... Esconder-me, eu ? Porque ? De quem ? Qual é o meu crime? ... Não ! esperarei aqui a justiça ! serei eu que interrogarei o juiz !
-- Mas o que foi, homem ? Dize, querem prender-te ?
-- Querem prender o pai ? !
-- Querem.
-- Mas porquê ? que mal fizeste, Luís ? Oh ! os meus pressentimentos !
-- Não sei... Olha; vai perguntá-lo ao snr. frei Quintino.
-- Pois êle sabia-o, e nfto te preveniu ?
-- Nfto... Esse santo homem, que nós acolhemos, a bem dizer, como um irmfio mais vélho, e cujo hábito beijáveis ambas, êsse santo homem antes quis prevenir a policia ! Foi denunciar-me !
-- A ti?!
-- O snr. frei Quintino ? !
-- Esse mesmo -- confirmou Luís Maria entregando a carta a Clara, que a leu ávidamenle. -- Oh ! mas não me esconderei ! Seria o único documento que êsses miseráveis teriam contra mim, seria culpar-me aos seus olhos ! Esconde-se o culpado; o inocente não foge, espera !
-- Luís ! Luis ! -- exclamou Clara suplicante, tendo concluído a leitura; -- pela lua vida, pelo futuro da nossa filha, por tudo o que há de mais sagrado, foge, esconde-te, não apareças, Luis, que te prendem !
-- Fuja, meu pai ! -- soluçava também Leonor, caindo-lhe aos pés.
Pelo amor de Deus, fuja ! Olhe que o podem matar !
Rosa, a distância, com os olhos a nadar em lágrimas, conlemplava aquela scena dolorosa, e murmurava:
-- Que desgraça !...
-- Mas se nada disto pode ser ! --bradava Luís Maria bracejando. -- Se não há uma única prova ! -- E como se esta última palavra lhe despertasse no espirito a idéa da existência de alguns papeis comprometedores, dir-se-ia que o sangue lhe refluiu no coração e uma palidez súbita lhe desmaiou a côr afogueada do rosto. -- Ah ! as cartas ! Onde estão as cartas do Frederico ? Que é das cartas de teu sobrinho ? Vai buscá-las ! Quero vê-las !
-- As cartas, -- murmurou Clara depois de um instante de hesitação, apoiando-se a um móvel para não cair -- pediu-mas o snr. frei Quintino.
-- E tu... dêste-Ihas ?
-- Eu... dei.
Luís Maria sentiu como que a lâmina fria dum punhal atravessar-lhe o coração. A energia, que não o tinha abandonado, desapareceu inleirnmente. Naquele instante mediu a profundeza do abismo, que tinha a percorrer na queda; e exclamou, apertando a cabeça nas mfios, com grande acento de dôr:
-- Ah! mulher! mulher! agora sim, que me perdeste !
-- Mas fuja ! -- não cessava de bradar Leonor. -- Fuja quanto antes, meu querido pai !
O mesmo rapaz, que tinha trazido a carta, entrou de novo, esbaforido, quáse sem fala.
-- Patrão, patrão ! disse êle a custo. Pararam à porta uns soldados e vem af atrás de mim um homem da justiça !
-- Bem -- murmurou Luís Maria esforçando-se por aparentar serenidade, que não linha. - Já não há tempo de fugir. Ao menos vê-se que o snr. frei Quintino é um homem de palavra !
À porta da sala apareceu um oficial de justiça seguido de quadrilheiros. Estes tomaram as emradas da sala u uma indicação do primeiro, que se adiantou petulante, com o chapéu na cabeça, adornado com um tope azul e encarnado; do pulso pendia-lhe, suspenso dum cordão, um pequeno.cacete de sobreiro.
Tendo dado ura empurrão ao caixeiro, que lhe ficara no caminho e relanceado a vista para Luis Maria, o patrazana -- copio então chamavam a êstes fieis servidores das justiças do seu tempo -- tirou um papel du algibeira e desdobrando-o, leu:
-- «Luis Maria Veloso...» -- E dirigindo-se ao negociante, num tom desabrido: -- «Está preso ! Venha comigo.» Durante êste rápido lance, Clara e Leonor como que tinham ficado alheias ao que se passava. Clara estava quáse desfalecida; Leonor mal podia crêr o que presenciava; mas apenas ouviu a terrível ordem, soltou um grito e correu a lançar-se de joelhos aos pés do aguasil.
-- Oh ! snr. ! mas meu pai está inocente, - clamava a infeliz juntando as mãos meu pai não fez mal a ninguém !
-- Isso é lá com êles ! volveu o homem do cacete.
Luis Maria iiuhu-se dirigido a Clara, pálido, abatido. Ela caiu-lhe nos braços sufocada em chôro.
- Clara, abraça-me- disse-lhe o marido. -- Eu sei que não és culpada, não. Crédula e bôa, são supunhas tanta maldade junta. Depositaste, como eu depositei, uma cega confiança num mulvado, que se embuscou no seu hábito de religioso paru nos roubar a alegria, o sossego, a felicidade, denunciando teu sobrinho e atirando-me para o fundo dum cárcere !
Clara soluçava sempre.
Entretanto Leonor arrustuva-se aos pés do patrazana, e tomando-lhe a mão:
-- Por quem é, snr. ! não leve preso o meu pai !
-- Deixe-me, criatura ! -- exclamou o agente da lei, arremessando de-bruços, por um movimento rude, a chorosa menina; depois voltou-se para o negociante:
-- Olá ! -- bradou-lhe -- toca a aviar que eu lenho mais que fazer.
Luís Maria correu a levantar a filha:
-- Anda ca, meu amor -- disse-lhe êle, quáse sufocado pela comoçáo profunda que lhe embargava a voz.
-- Busta de humilhações aos pés de miseráveis ! não chores ! Eu tenho fé que ainda hei-de voltar ! Olha, Leonor; faze muito por seres uma mulher de juízo...
e segue sempre os conselhos de tua mãe, minha filha !...
Snr.a Rosa, não se esqueça de as vir ver. É agora que elas mais precisam da sua companhia. -- E cingindo as duas num abraço, mãe e filha, murmurou sufocado:
-- Adeus ! adeus !
Depois, quando já se retirava a passos vagarosos, correu a tomar uma das mãos da espôsa, que desfalecia, e disse-lhe ainda:
-- Clara, minha pobre vitima... desde já te perdôo.
se um dia subir as escadas da iorca !
E de arremetida, por um esforço desesperado, partiu seguido dos quadrilheiros.
Clara soltou um grito, deu um passo pura a porta, e caiu como fulminada.
TERCEIRA PARTE Martírios I
No cárcere - Uma visita à cadeia
Acusado de se conservar em correspondência acliva, na qual se faziam as mais criminosas referências «ao paternal govêrno de Sua Majestade el-Rei», com um traidor, e como tal julgado e condenado, Luis Maria entrou nas cadeias da Relação no meio de seis quadrilheiros, comandados pelo aguazil que efectuou a prisão.
Tinha-se juntado algum povo pelo caminho e os comentários, de quantos conheciam o negociante, eram-lhe em extremo honrosos e unânimamente se atribuiu a vingança particular o motivo da sua prisão.
Entretanto, Luis Maria, atirado para o fundo duma sombria masmorra, em companhia de alguns desgraçados e de verdadeiros facinoras, entregava-se aos mais dolorosos e confusos pensamentos.
E via-se perdido, quáse irremediávelmente perdido, entre quatro paredes com grandes nódoas escuras de limo, formando desenhos caprichosos, como grandes mapas, recebendo luz por dous postigos gradeados de ferro, numa atmosfera de ar viciado, -- mais para sufocar do que para respirar, diziam os que de lá saiam.
À noite atirava-se para uma enxêrga, cuja palha já moída e usada tresandava a môfo, e cobria-se com uma vélha manta cheia de buracos.
O alimento, um caldo desenxabido e requentado, vinha-lhe para êle e para os companheiros, da Santa casa da Misericórdia duas vezes por dia.
Debalde Clara tentou fazer chegar até êle um colchão, um cobertor, uma sôpa. Não havia ordem de receber cousa alguma para os malhados.
Seria tentativa sem resultado satisfatório descrever o estudo de espirito de Lufs Maria naquela masmorra, convivendo com homens depravados, ouvindo a cada momento as frases mais torpes, as expressões mais rasteiras, e, quando pretendia extremar-se demasiado dêsses miseráveis, as ameaças mais ferozes.
Os desgraçados, a quem a infâmia duma denúncia, obtida por meio de sugestões ou extorquido pelo confissíonârio, também huvia arremessado para ali, viam-se igualmente forçados a confraternizar com os facinoras, muito mais considerados na prisão do que êles, e para quem nfto havia os refinamentos de crueza com que os distinguiam particularmente.
Entre as vítimas do rancor político, que então predominava, encontrou o honrado negociante o infeliz livreiro, cuja prisão Rosa tinha referido, e que se efectuára por denúncia dum piedoso frade, que lhe encontrou na loja, para encadernar, um Manual do Mação.
Luis Maria ouviu-lhe a história, e julgou-o ainda mais infeliz do que a si próprio.
-- A esta hora, que será feito da minha pobre Maria, tisica, e dos meus cinco filhos, sem pão para comer !...
E há já três meses que me teem aqui, sem esperanças de sair tam cedo !
-- Mas que exigem êles do snr. ?
-- Que lhes diga o nome do freguês que me deu o Manual a encadernar.
-- Porque o não diz ?
-- Entendo que não o devo dizer. A pessoa que me levou êsse livro a minha casa fez-me conhecer o perigo que eu corria, se êle fòsse enconlrado; respondi-lhe que nfto linha dúvida.
«-- Mas se o livro fôr descoberto e o snr. fôr preso, dirá quem lho deu» -- perguntou-me êle pouco resolvido a entregar-mo.
«--Juro-lhe pela bôa sorte dêsles meninos, que a minha bôca nôo se abrirá para lhe dizer o nome» -- tornei-lhe eu.
«Êle entregou-me a brochura. Um desleixo meu foi o causador de tôda esta desgraça. Agora acha que devo perder quem me trazia o pâo para a mulher e para os filhos, e usou de tanta lialdade comigo ?» -- O snr. é um homem honrado, -- volveu Luís Maria cheio de indignaçáo -- mas êstes miseráveis é que não podem nem sabem compreender a nobreza da sua alma, e o snr. ainda tem muito que sofrer.
-- Paciência. Deus se compadecerá daquela infeliz e daqueles inocentes, que não leem culpa de nada.
não me dói a consciência por ler feito uma acçâo má.
Clara vivia no maior desespêro, ignorando noticias do marido, não sabendo se era vivo, ou se era morto, se residia ainda na Relaçáo ou sc o tinham mandado nalguma leva de presos para outra cadela do reino, como às vezes acontecia.
Chorava, definhava-se por isso, e Leonor, em quem era igual a pena, esquecia as próprias dores para consolar a pobre mãe, dando-lhe palavras de resignação e confôrto.
Um dia veio Rosa visitar as duas senhoras e achou-as lavadas em lágrimas.
Completava quarenta e dous anos o negociante, e havia um que tinha tido à sua mesa frei Quintino e o afilhado.
Que recordações !
-- E não saber nada dêle ! -- soluçou Clara.
-- Mas vou lá eu saber. Quer a snr.a que eu vá lá ? -- disse a corajosa mulher.
-- Não ! não ! faziam-te o mesmo que me fizeram a mim.
-- Não tenha mêdo ! Não que eu havia de usar de outra maneira que a snr.» usou.
-- E depois ?
-- Depois falava com o snr. Luís Maria.
- Seria capaz disso, ama?...
-- Tanlo era que vou lá -- disse Rosa pondo o capote. -- A gente é p'ra as ocasiões. Ora as minhas senhoras vão ver como dou conla do recado sem aquela nenhuma.
Clara, ao mesmo tempo que sentia o alvorôço do contentamento, experimentava o retraimento do mêdo, o receio.
-- Pois sim, vai... mas não... podem prender-te; não quero...
-- Qual prender ! O que fôr, soará. A snr.a quer que lhe dê algum recado ? E a minha menina ?
-- Diz'-lhe... diz'-lhe... Espera...
Meu Deus! não me acode nada de tanto que tinha para lhe dizer...
Olha... diz'-lhc quanto nós temos sofrido... conta-lhe tudo... a minha visita à cadeia... tudo... Ah ! espera !
-- exclamou Clara correndo à antiga secretária do marido-- aqui tens; guarda êste lápis e êste papel... pode ser que êle queira escrever algumas palavras... mas cautela à saída, que não te revistem... Anda, vai...
fico em ânsias.
-- Vou já. E a minha menina ? -- Eu... sim, diga-lhe que lhe mando muitos abraços... e que... -- as lágrimas sufocaram-na.
Rosa desceu apressada para a rua.
Clara e Leonor ficaram outra vez sós.
Expliquemos uma referência de Clara, no decurso do diálogo precedente -- a sua visita à cadeia.
Um dia de manhã. Clara preparou-se para sair.
Vestiu a sua saia preta, deitou sôbre os ombros o seu chale com flores bordadas, pôs a sua mantilha de lapim. Em todos os seus movimentos denunciava uma resolução premedilada e assente; tinham-lhe secado os olhos, em que havia uns lampejos de febre.
-- Onde vai, minha mâe ? -- perguntou-lhe Leonor quáse assustada.
-- Vou à loja da rua das Flores; preciso de falar com o Francisco, mas não me demoro.
O Francisco era o sócio e ex-caixeiro de Luís Maria.
Clara saiu. Ia apressada, o que não era seu costume, e não reparava em ninguém, como pessoa que vai possuída de uma idéa fixa e não pensa senflo em executâ-la.
Desceu a rua do Loureiro, atravessou a praça de S. Bento em direcçâo aos Congregados, seguiu paralelamente à Praça Nova, de triste recordação, meteu à calçada dos Clérigos e apontou para a Porta do Olival...
Evidentemente não ia falar com Francisco, à loja da rua das Flores, como dissera.
E disso mesmo teve o certeza Leonor, que, vendo demorar-se a. mâe, mandára ao cabo de uma hora a criada ao antigo estabelecimento de Luls Maria.
Nem mesmo tinha aparecido lá.
Imagine-se o desespêro da infeliz criança.
O pai sabia ela que estava preso; mas a mâe?
tê-la-iam prendido também ?
No fim de duas horas Leonor ouviu passos e voses confusas no portal. Correu abaixo, dominada por um pressentimento horrível.
Pálida como uma defunta, com os olhos cerrados, a face ensangúentada, um grande ferimento na testa com curativo de pano adesivado, os cabelos empastados, a saia rasgada, imóvel, assim Leonor viu a mâe estendida sôbre uma maca de lona, que uns homens lhe tinham trazido a casa, e que muito povo acompanhára, comentando o caso e vociferando.
Leonor sollou um grito agudíssimo, lançando-se sôbre o corpo de Clara, supondo-a morta, e ergueu-a nos braços.
Veio um cirurgião, que tinham ido chamar.
Mandou conduzir a maca para o quarto de Clara, fez com que deitassem a enfôrma cuidadosamente na cama, e afiançou, que nSo oferecia gravidade o golpe que ela tinha na lesta; recomendou também que não lhe fizessem perguntas, que no caso de não se lembrar da origem do ferimento, lho explicassem da maneira mais natural c simples, terminando por anunciar uma nova visita para mais tarde.
Leonor, chorosa, atribulada, esperou à cabeceira da mãe, que ela abrisse os olhos.
Fê-lo daí a pouco. mas. como o previra o facultativo, não se lembrava de coisa alguma. Eis o que tinha ocorrido:
Clara, triste, abandonada, sem noticias do marido, havia tomado uma resolução heróica, de que nunca se julgára capaz, ela timida, irresoluta, medrosa, com tôdas as hesitações duma educação claustral: -- ir ver o homem à Relação.
Foi naquele dia.
Ao encarar com o enorme e sombrio edifício, que lhe guardava o marido. Clara sentiu vergarem-lhe os joelhos e a luz fugir-lhe dos olhos.
-- É ali ! -- murmurou ela, parando; depois, como se lhe tivesse renascido uma nova coragem, ao cabo de alguns instantes de contcmplaçfto muda, disse com viril energia: -- Vamos !
E entrou pela porta de serviço para as prisões.
Ignoramos se o leitor penetrou alguma vez naquele medonho casarão, -- devido à iniciativa de D. José de Almada; mas se não entrou lá nunca, evite transpôr-Ihe os humbrais, mesmo como visitante, porque se poupa às mais desagradáveis sensações, que necessáriamente desperta a contemplação de tudo o que há de ignóbil, de sujo, de imundo e que se aglomera ali dentro.
Um inocente, sob aquelas abóbadas, deve julgar-se criminoso aos seus próprios olhos. A atmosféra naquele recinto é pesada, espêssa, os corredores escuros, as enxòvias húmidas, fétidas, o aspecto dos vários compartimentos gélido, em tudo aquilo há uma grande repelência, e ansiamos pela franca luz do sol, pelo bom ar livre.
Ah ! quando deixamos aqueles muros, parece que retomamos uma vida nova, respiramos a largos haustos, e inslintivamente nos afastamos dêsse edificio lúgubre, só porque nos demoramos lá dentro numa rápida visita de cincoenta minutos.
Lembremo-nos agora de que há quem demore ali anos, recebendo aquela luz escassa e triste, inundando os pulmões de aquele ar estagnado e corrupto, contemplando aquelas espêssas paredes húmidas e rachadas, e dêmo-nos por felizes em vivermos num tempo em que, para ser arremessado a um tal antro, se faz mister que um homem tenha a responder -- por um crime.
Clara transpôs o pequeno pátio lamacento da entrada, sem mesmo reparar na sentinela, subiu os dois lanços da escadaria de pedra, cujos degráus estão já gastos da passagem constante de quem sai e de quem entra, e chegou a uma porta feita de grossas cruzetas de ferro.
Um homem, que estava por dentro, tomou uma enorme chave que trazia com outras á cinta, meteu-a na fechadura e tendo-lhe dado uma volta, fez rodar pesadamente a porta sôbre os gonzos.
-- Que quer vocemecê ? -- interogou êle.
-- Desejava falar com o preso Lufs Maria Veloso.
-- Onde está ?
-- Aqui, preso.
-- Não lhe pergunto isso. Em que enxóvia?...
Neste momento sobreveio um homem de longas barbas, sobrancelhas espêssas e péssima catadura. Era o carcereiro das cadeias da Relação, condigno instrumento nas mãos dos inquisidores daquela época.
À vista dêsse homem, que ela não conhecia mas cujn presença aterrava como a do carrasco, a infeliz espôsa do negociante sentiu percorrer-lhe o corpo um vago calafrio.
-- Que é isso? -- perguntou ao chaveiro com desabriraento.
-- Esta santinha quer falar com um preso.
-- Que preso é ? como se chama ?
Clara repeliu o nome do marido.
-- Ah ! bem sei ! um mariola de malhado, que conspirava contra el-rei Nosso Senhor e contra a Santa Religião com outros patifes da igualha dêle, que estão no estrangeiro ! O que eu tenho pena é de os não agarrar também cá. Um dia havia de ir tudo raso, a golpes de machado, que é o que merecem todos !
-- Mas, senhor, meu marido está inocente ! -- disse com voz humilde Clara, por entre lágrimas.
-- Qual inocente ! É tudo uma canalha ! e então êsse tal Luís, que maroto !
-- Por quem é, meu snr. ! -- insistiu Clara, caindo de joelhos e tomando-lhe suplicante a aba do casaco de grosseira saragoça.
O carcereiro, num gesto de arremésso, empurrou de si a pobre senhora. Ela eslava à beira da escada, e perdendo o equilíbrio, foi cair de rosto, sôbre a aresta de um dos degraus, rolando depois até ao primeiro patamar, onde ficou estendida e sem acôrdo.
O carcereiror ao ver a desastrosa queda, encolheu os ombros e resmungou:
-- Vai-te c'os diabos !
Depois, voltando as costas, mandou ao chaveiro, que corresse a lingueta da fechadura à porta gradeada.
Mais tarde umas mulheres, que saíam de ver alguns presos, encontrando aquele corpo inerte com a testa ensanguentada e a mantilha e a saia com grandes rasgões, ergueram-no, e com o auxílio de mais alguém lá o conduziram à Santa Casa, até lhe fazerem o primeiro curativo, sem contudo voltar do desmaio; e como aparecesse, quem Indicasse a habitação da Infeliz senhora, deitnram-a numa maca e assim a conduziram para casa.
Ora, a pequena distância da scena que descrevemos, na cadeia, Luís Maria, sentado na sua enxérga, com a face apoiada nas mãos, perguntava a si mesmo, cheio de amargura e desânimo:
-- E Clara ? e Leonor ? que será feito daquelas infelizes, meu Deus?...
II
Mulher corajosa
Decorreu uma hora e mais, sem que Rosa voltasse.
-- Jesus ! que sucederia à pobre mulher ? se foi sacrificar-se por nossa causa !
-- Tenha mais confiança, minha querida mãe.
-- Confiança... em que, Leonor?
-- Em Deus, que é bom. Quer que lhe diga ? Eu nem um momento só perdi a esperança de tornar a ver o pai.
-- Na tua idade, é tam fácil viver-se de esperanças ! Oxalá que assim fôsse !... Ainda agora scismava nisso mesmo.
-- E então ?
-- Pensava que. para o desengano não ser tam cruel, era melhor trocarmos a esperança pela resignação. Aquela gente, filha, não sabe perdoar.
-- Mas se o pai não é criminoso !...
-- Que importa isso ? Bem mo tinham dito. O que êles querem é um pretexto. Os juízes bem hão-de saber que teu pai não conspirava, sabe-o perfeitamente Asse maldito frade, o Senhor me perdôe... e contudo, mandaram-no já sollar ? Pelo contrário: há todo o rigor com êle, nem que fòsse um salteador de estrada.
Lembra-te do que me aconteceu há seis semanas, quando fui para o visitar. Injuriaram-no, injuriaram-me a mim, e ao cabo, como teimasse em o querer ver, empurraram-me, e eu cai pelas escadas...
-- Minha querida mãe !
-- E aqui tens como foi a minha primeira e última visita á Relação para ver o teu infeliz pai. não me atrevi a ir lá segunda vez.
-- Para que? Para a tornarem a insultar e bateram-lhe ainda em cima ? Ah ! o primo Frederico linha bem razão em odiar semelhante gente !
-- Contudo -- obtemperou Clara --se não fôsse êle...
-- Não o vá acusar tambêm, minha mãe.
-- Quem te disse que ou ia acusá-lo ? Havia de ser assim por fôrça. Estava escrito. Demais disso, êle nfto o adivinhava. Da nossa parte é que foi uma imprudência não lhe queimarmos as carias. E a Rosa, que se demora !
-- Foi porque sempre conseguiu falar com o pai.
Quanto mais tempo se demorar, melhor.
-- E se não volta ?
-- Meu Deus ! não será isso ! Veremos.
-- Sim. filha, veremos, se nfio lhe aconteceu o mesmo que me sucedeu há mês e meio; se nfto a deitaram por alguma escada abaixo !
-- Não diga isso. minha mãe ! Pois seriam capazes... ?
-- Não mo fizeram já a mim ?
-- É verdade!... Pobre Rosa ! se vinha a ser vitida sua dedicação !
-- Depois, é tam desprecatada ! tam imprudente !
A porta da sala abriu-se. As duas senhoras volla- ram-se em sobressalto.
Era Rosa.
Uma exclamação de alegria acolheu a bôa mulher.
-- Ora aqui me teem as snr.as ! -- disse ela radiante de contentamento e ofegante de cansaço.
-- E então ? sempre falaste com êle ? -- perguntou Clara ansiosa.
-- Falei, sim. minha senhora. Pois não havia de falar ?
-- Que fortuna! -- exclamou Leonor. -- Ainda bem.
ama.
-- Louvado seja Deus! E como está o meu homem ? Parece outro, não é assim ?
-- Outro, não parece. Mas está muito mais abatido e tem o cabelo quáse todo branco, minha senhora.
-- Em cinco meses ! Quanto deve ter sofrido aquela alma. Deus do céu !... Mas conta, conta. Diz-me o que se passou. Estou lôda trémula.
-- Foi assim -- encetou a bôa mulher desembaraçando-se do capote: -- Como a snr.a D. Clara me tinha dito que êles nfto deixavam falar com o snr. Luís Maria, vai eu então indaguei cá por fóra quem era o preso, que estava assim mais em harmonia com o carcereiro. Era um homem de apelido o Rebôxo, que tinha não sei quantas mortes e um roubo de igreja.
«Vai eu entrei pela Relação dentro, subi muito resoluta a escada de pedra, e quando cheguei ao cimo, eis que me apareceu a uma porta gradeuda um barbaças com mais de trinta chaves, a perguntar o que eu queria; disse-lhe o nome daquele mau homem, e enlâo êle a resmungar abriu-me a grade e guiou-me por onde eu havia de ir.
«Ah ! minha senhora ! que medonho é aquilo tudo lá por dentro ! umas abóbadas muito altas e muito defumadas, umas paredes muito negras, uma luz muito escussa e um cheiro, oh ! minha senhora ! um cheiro que fazia andar a cabeça á roda; e depois, ao fundo de cada corredor, uma janela só com varões de ferro da grossura do meu braço !
«Que susto, meu Deus ! até cheguei a imaginar se estaria também presa ! Na minha salvação que, se não fôsse por amor das senhoras, tinha logo tornado p'ra trás ! Fiquei mesmo em suores frios.
-- Como te hei-de agradecer I -- exclamou Clara tomando a mão da prestimosa criatura.
-- Ó minha senhora ! oxalá nfto fõsse preciso nada disto.
-- E depois ? -- cortou Leonor.
-- Depois, minha menina, comecei a perguntar pelo snr. Luis Maria a uns homens que me pareciam guardas e a dar os sinais dêle. Vai eu tanto andei, lanto perguntei, que por fim acertei ! Já era tempo !
«Foram-no chamar.
«Quando me viu pelo grades, disse o meu nome.
e largou num chôro, como se fôsse uma criança pequena...
Clara e Leonor soluçavam; Rosa enxugou com a ponta do lenço da cabeça uma lágrima, e prosseguiu:
-- Só se lhe destacavam as barbas quáse brancas naquela quáse escuridão. Parecia um vélho.
«Depois, perguntou-me pelas senhoras, como passavam, se u snr.a D. Leonor estava animada, se a snr.a D. Clara já não chorava tanto; emfim, não me falou doutra coisa emquanto lá estive. Eram as perguntas umas atrás das outras, que nem me dava tempo de lhe responder: e confiou-me um recado p'ra a senhora...
-- Sim ? que é ?
-- Eu disse-lhe que a senhora me tinha dado uma pena de lápis e um papel para o caso em que lhe quisesse escrever duas regras,.
-- E êle escreveu ? Onde está o papel ?
-- Está aqui, minha senhora -- tornou a ama tirando um bilhete do seio, e prosseguiu: -- Emquanto o guarda ia até no fundo do corredor, eu passei-lhe pelas grades o papel e o lápis. Depois êle escreveu êste bilhete... Mas antes preciso de explicar à senhora uma coisa. O snr. Luis Maria perguntou-me se tinha cá tornado a casa o maroto do beneditino; eu disse-lhe que não, e então êle recomendou-me que, se aparecesse, as senhoras não lhe dessem ouvidos; que não estava contente de o ter desgraçado a êle, e queria também desgraçar a menina.
-- A mim ?! -- exclamou Leonor, assustada.
-- Como?
-- Pelos modos a idéa de sua reverendíssima era que a snr.a D. Leonor lhe casasse com o gêbo do afilhado por amor do dinheiro.
-- Bem me quis parecer ! -- murmurou Clura.
-- E foi por o snr. Luis Maria recusar, que êle o denunciou à justiça -- acrescentou Rosa baixando a voz e debruçando-se para a espOsa do negociante em ar de confidência.
-- Que malvado !
Leonor tinha empalidecido.
-- Agora faça favor de lêr o bilhete -- rematou a bôa mulher.
-- Mal se percebe -- disse Clara esforçando-se por decifrar o conteúdo. Por fim, a espaços, foi lendo:
«Minha bôa Clara. Estou inocente como sabes, e diz-me a consciência que serei absolvido. É esperar mais algum tempo...» Deus permita ! Oh ! se ainda chego a abraçá-lo !
-- Pois porque não, minha senhora ?
-- Que lhe tenho eu dito, minha mãe ?
-- Quem sabe ainda ? O futuro a Deus pertence. -- E prosseguiu na leitura: -- «Tenho sofrido muito, minha pobre Clara ! Aqui é quáse sempre noite e mal se respira nestas enxòvias. Quando sair, temo asfixiar com tanto ar e cegar com tanta luz. Já estou desacostumado.
«não te queria falar num homem, mas não há remédio. Se ai aparecer frei Quintino a renovar umn proposta, que me fez poucos dias antes da minha prisão, manda-o embora. Eu não aceitaria a liberdade que me viesse dum semelhante comércio. Confia na minha inocência e nada receies.
«Um abraço para ti e outro para a nossa Leonor.
Cá fico esperando. Luís.» Que resignação a sua !...
-- Lá resignado esta êle, minha senhora !
-- Ai, Rosa ! que nem tu sabes o bem que me fizeste ! -- exclamou Clara tomando cheia de reconhecimento uma das mãos da criada e com os olhos a nadar-lhe em lágrimas. -- Metade da minha vida, que tu me pedisses por esta hora de satisfação, era tua, dava-ta eu, que não há dinheiro que a possa pagar.
-- A sua vida, minha senhora?... Guarde-a, que tòda ela, pouca é para a gastar ao pé dêste anjo, que ainda ontem começou a ubrir os olhos paru o mundo.
disse Rosa apertando nos bruços Leonor. - Mas eu não acabei. Depois...
-- É verdade; e depois ?
-- Passou-me o bilhete, que tinha escrito, e perguntou-me se o snr. Frederico... -- outro infeliz, louvado seja Deus ! -- tinha continuado a escrever.
-- E tu que lhe disseste ?
-- Disse-lhe que não. Acho que acertei.
-- Acertaste; parece que adivinhou esta desgraça.
Nunca mais tomou a dar notícias suas !
-- Isso lá, quem sabe o que está para acontecer !
Eu ouço contar tanta coisa, minha senhora ! Até já me disseram que êsses emigrados, que andam fugidos lá pelo estrangeiro, como o snr. Frederico, se juntaram todos ai numa ilha longe, para virem depois sôbre estes homens do govêrno e porem-nos daqui p'ra fóra ! -- E o primo também virá, Rosa ? -- perguntou Leonor, cheia de alvoróço e com os olhos brilhantes por uma alegria súbita.
-- Não creias em nada, filha -- atalhou Clara, a quem as repetidas provações tinham tirado tôda a esperança num futuro melhor. -- Deus não há-de permitir que vejamos tamanhu desgraça.
-- Desgraça, minha senhora ? !
-- Sim; que dúvida! Não escaparia nenhum. - Seria um espectáculo mil vezes muis horrível do que em maio de há dois anos. Matá-los-iam a todos ! Olha que matavam ! E quem sabe até se teu pai escaparia !
-- Jesus, senhora ! Eu nunca vi quem fôsse mais desanimado ! Mal de nós se estas coisas não mudassem, fôsse lá de que maneira fôsse !. .. Quanto ao snr.
Luis Maria, èsse, como disse, mandou muitas saudades às senhoras, pediu-me que tornasse lá cedo, e assim que me vim embora, começou a soluçar agurrado As grades de ferro, que eu já descia as escadas de pedra, e ainda o ouvia gemer lá dentro.
Clara e Leonor não cessavam de enxugar os olhos.
-- Que tormentos !
-- Meu pobre pai!
-- Emfim, minha senhora, quando me pilhei cá fora, parece que me tiraram oito arróbus de cima do peito ! E mais não vinha de estar presu ! que fará aqueles que a suu desgraça atirou para o fundo dessas enxòvias !
-- É verdade!... Mus tu hás-de lá tornar, sim?
-- Torno, minha senhora; de hoje a oito dias vou lá outra vez.
-- Agradecida ! muito agradecida ! conto contigo !
-- É muito nossa amiga, pois não é, Rosa ?
-- Ó minha menina ! o que eu não fizer ás senhoras, é porque o não faço a mim mesma, podem ter a certeza ! Mas isto hão-de ser horas de meter as couves na panela, e eu não queria faltar com o caldo ao meu António.
E tendo posto o capote.
-- A snr.a D. Clara não quer mais nada ?
-- Quero que continues a lembrar-te de nós e não te esqueças do que me prometeste, de voltares à Relação a veres como êle está.
-- Fica ao meu cuidado.
As duas senhoras acompanharam a bôa mulher até á porta da sala. Aí Rosa voltou-se a beijar Leonor como lhe fazia em pequena.
-- Adeus, minha querida menina -- disse ela.
-- Adeus, ama.
-- Vai, Rosa, vai. Deus te dará o pago de tanta dedicação.
III
O Pôrto nos felizes tempos
Era por principio de março de 1832, e ao Pôrto havia chegado a noticia, que Rosa tinha transmitido a Clara e a Leonor, -- de que os emigrados se haviam retinido na Ilha Terceira e formavam um corpo de exército, com que viriam a Portugal combater pela liberdade da pátria e contra o usurpador.
A noticia dêste ousado cometimento por parte dos foragidos, exasperou os defensores do trono e do altar, que levaram ao requinte da malvadez e da covardia a sua perseguição contra tudo o que se lhes afigurava professar idéas contrárias.
A grande malta dos caceteiros tinha ampla liberdade de perseguir a bordoadas ou de deixar estendidos nas ruas e becos, por mortos, os indivíduos em quem enxergavam suspeitas de liberalismo: o mais leve indicio, o mais insignificante descuido bastava.
Dois botões do colete desapertados; Um objecto qualquer azul e branco, um lenço, uma flor; A demorada contemplação do mar, de qualquer eminência da cidade, -- da alameda da Lapa ou do sitio da Tôrre da Marca...
«Ah ! o malvado tinha a petulância de se esquecer a olhar para o Oceano, como quem espera ver assomar na linha do horizonte os rebeldes, que andam a conspirar no estrangeiro contra o aliar e o trono?
«Ah ! o miserável linha o descoco de se ficar embebido na contemplação do torpe elemento, que, altaneiro e rebelde como êles, se dava a impudência de ter ondas azúis franjadas de branco ?
«Pois que sofra ! que apanhe ! E o Oceano, êsse atrevido, que se dê por muito feliz em não apanhar também, como nos bons tempos de Xerxes.» E não era tudo: caso inacreditável, mas infelizmente verdadeiro, que dá a medida do fanatismo e da malvadez dos fieis vassalos: tnais de um cidadáo sofreu -- por ter os olhos azúis !
-- Emfim, por tudo se espancava, por tudo se acusava, por tudo se perseguia.
E ai daquele que tivesse um inimigo perverso, que não poderia eximir-se a todo êsse cortejo de infâmias, que pesavam sôbre os caracteres mais ilibados e pelas quais teria de responder num tribunal !
Comandava a quadrilha dos caceteiros, que irazia em sobressalto a cidade, composta de gente essencialmente pacifica, um capitão de infantaria 12. por êsse tempo de guarniçáo no Pôrto. de nome Pita Bezerra.
Êste homem, dotado de instintos baixos e ferinos, representava, na sua acanhada órbita de acção, tudo o que o despotismo encerra de odioso e de vexatório para um povo.
As justiças de el-rei, que fingiam ignorar as suas correrias e perseguições, aplaudiam táctilmente os seus feitos. Tambêm, quando havia presos políticos a remover de prisão, era êle de ordinário o encarregado de comandar a escolta.. Depois, nunca o total dos presos, que chegavam ao seu destino, acordava com o número dos que tinham partido. £ que, durante o caminho, pela estrada, ficavam sempre alguns a quem uma bala compassiva ou uma caridosa bordoada fazia o favor da morte.
Era um benemérito da causa santa do trono e do altar, Pita Bezerra. Por isso êle com os do seu bando tinham a animadversào de todo o Porto liberal, animad versão surda, reservada, tácita, que se ia acumulando de novos ódios com os novos vèxames a que diariamente sujeitava na praça póblica e nas encruzilhados cidadões honestos e bemquistos; e por isso tambêm possuía a prata consideraçAo das autoridades e a amizade entusiástica dos vassalos fiéis.
Entre os desta categoria avultava frei Quintino, que, intolerante com o partido contrário emquanto se cpnservára nas relações de Luís Maria, se tornára inexorável desde que viu parte dos seus cálculos em descaminho dum feliz resultado.
Estamos na terceira dominga de quaresma, e frei Quintino espera na sacristia da igreja de S. Bento, no meio de um grupo dos admiradores dá sua oratória sagrada, a hora de subir ao púlpito.
Entre os que o cercam vêem-se o secretário particular do snr. bispo do Pôrto, D. João de Avelar, o superior dos crilzios da serra, dois cónegos da colegiada de Cedofeita, o abade da Sé, e ainda outras personagens gradas sem esquecer um certo juiz do crime, cuja prole, devorando hoje à mesa do orçamento liberal, não faz por isso menos honra às idéas, que levavam o avò a continuar no tribunal a encetada obra dos espiões assalariados a bem do altar e do trono.
Falava-se do assunto palpitante: o desembarque dos emigrados na Ilha Terceira e a simpatia que os habitantes da ilha manifestavam pela nova causa.
-- Que importa isso ? -- dizia o bojudo abade du Sé, com um sorriso escancarado. -- O que nós queremos é que êles se juntem todos, para acabarmos a fa- china mais de-pressa.
-- Eu nunca vi canalha, que désse mais que fazer -- observava o juiz do crime. -- Pois não é por eu os não despachar para logar seguro ! O ponto está em êles me caírem cá debaixo da vara da justiça.
--...Que não é vara, é fueiro -- observou um dos cónegos, aspirante a gracioso.
-- Amen -- aprovou o secretário do snr. bispo.
-- Efectivamente -- observou o juiz -- a vara da lei tonto pode ser uma vergasta como um arrocho; o caso está em considerar o mínimo ou o máximo da pena, Agora para os meus amigos pedreiros-livres estou sempre...
-- Do lado do arrôcho -- concluiu festivnmcnte o abade da Sé.
-- Justamente -- apoiou o juiz.
Todos riram. Frei Quintino conservava-se silencioso, como recolhido, coordenando as idéas.
Abriu-se a porta dá sacristia e aproximou-se do grupo um homem reforçado, de barba preta, olhar esquadrinhador e feroz, vestindo uma espécie de jaquetão de pano grosso abotoado até acima, e com um pequeno caceie pendente do pulso por uma corrèia.
Era Pita Bezerra, que de ordinário substituía a farda por um fato qualquer, dando para isso as duas razões seguintes: Estar mais à vontade; não ser tam conhecido.
O grupo abriu praça ao temível caudilho, fazendo-lhe uma recepção simpática.
Pita Bezerra beijou a manga a frei Quintino.
Um dos circunstantes perguntou-lhe o que havia de novo.
-- Por emquanto nada -- respondeu o façanhoso capitão, -- mas logo espero que não perderei o meu dia.
-- Algum malhado fresco ? -- perguntou o abade da Sé com o seu sorriso alvar.
-- Se não me enganam os meus rafeiros. É preciso ensinar esta corja. Eu, palavra de honra que já me sinto cansado de desancar tanto maroto; mas vejo que não tomam emenda !
-- Nunca as mãos lhe dôam ! -- observou o superior dos cruzios, cerrando as pálpebras com beatitude.
-- Estáo aqui três beneméritos da santa causa, sem desfazer nos restantes: é o nosso reverendo prègador frei Quintino, cuja eloquência bebida nas sãs doutrinas do Evangelho, desperta nos povos o santo ódio por êsses perdidos, sem fé e sem princípios; é o snr.
capitão, que lhes recorda o seu êrro por meio de correetivos, fazendo-os arrepender a tempo do seu alucinado propósito, e é o snr. juiz do crime, que, na aplicação austera da lei, ac empenb» em limpar a sociedade dessa cáfila de ímpios e rebeldes. Bem hajam todos.
-- Amen -- repetiram os circunstantes.
-- Quem eu queria pilhar cá, eram os tais esfomeados da Ilha Terceira ! -- disse Pita Bezerra fazendo um gesto ameaçador com o cacete. -- A êsses é que eu havia de pôr o sal na moleira !
-- Dizem que se batem como leões -- observou tímidamente do lado um dos cónegos de Cedofeita.
-- Pudéra não ! Eles bem sabem a sorte que os espera !
-- Mesmo assim, não acredito -- replicou da banda o capitão do 12 quáse desabridamente. -- Se fôsse outro que o dissesse e não o snr. cónego, já lhe ficava com a vista em cima. Desculpe, mas aí anda dedo de malhado.
- Em que, snr. capitão ? -- interrogou o cónego enfiando.
-- Nessa noticia. Pois é lá possível que uma reles paizanada, que nem sabe como se pega numa arma, se bata como cá os militares, que teem disciplina e tudo?
Ora ! ora ! isso, quanto a mim, é mentira graúda, que êsses marotos fazem espalhar p'ra se darem coragem !
Pois que venham ! que venham p'ra cá, e nós veremos os tais leões, que a final de contas saem p'ra ai uns borregos !
«Mas não tenha mêdo v. rev.ma, que não háo-de ser êles que hâo-de pôr cá os pés. Por essa fico eu ! não que as forcas ainda estáo no mesmo sítio, e o João Branco mostrou bem que sabia da poda!
Palavras de aprovaçáo receberam a tirada de Pita Bezerra, cujos olhos despediam lampejos sinistros.
Na sacristia entraram em fila os religiosos beneditinos, que vinham buscar o prègador.
Frei Quintino com gesto humilde baixou a cabeça aos circunstantes, que lhe abriram caminho respeitosos.
-- Vá, vá -- disse-lhe o abade da Sé na passagem -- e que a sua palavra autorizada fulmine ainda uma vez da cadeira da verdade a mais infame praga, que o inferno vomitou contra nós.
Frei Quintino encorporou-se ao cortejo, e entrou no templo de fronte baixa, olhos no chão e braços em cruz sôbre o peito.
Ao seu aparecimento houve um rumor simpático no auditório, que pejava o corpo da igreja.
Tôdas as vezes que frei Quintino subia ao púlpito, o concurso dos fiéis era numeroso. Gozava fama de bom prègador, e a sua eloquência arrebatada, cheia de actualidade , vibrando golpes terríveis sôbre essa corja, enchia de contentamento os corações dos honestos defensores do trono e do altar, ao inesmo tempo que lhes acordava uma santa indignaçáo.
Frei Quintino atravessou as duns renques de religiosos na postura que fica descrita, e subiu lentamente as escadas do púlpito.
Os indivíduos, que o acompanhavam na sacristia, incluindo o capitão, entraram após êle na igreja.
O dia estava triste, húmido, e conva pelas vidraças embaciadas da frontaria e das tribunas uma difusa claridade, que sepultava na penumbra o audtório, composto na máxima parte de mulherio devoto; mas uma janela, aberta em frente do púlpito, deixando cair nêle tôda a sua luz, fuzia destacar a figura esguia e macilenta do prêgador, que passou um .qlhar vago e frio por sôbre aquela aglomernçáo movediça de cabeças, antes de proferir as primeiras palavras. O padrinho de António de Pádua escolheu para tema do seu discurso o texto -- Quod est Dei Deo , quod est Caesaris Caesari -- e aplicando aos sucessos da ocasião êste mandamento de Cristo, deu em invectivar os liberais:
«-- êsses foragidos da religiáo e da pátria, que negavam a César o que era de César e a Deus o que era de Deus; êsses desgraçados, em quem o anjo das trevas insuflára o seu sôpro maldito de rebelião contra tudo o que linha uma origem divina, o altar e o trono; que, como êle, seriam precipitados nos negros abismos infernais.» E prosseguiu clamando que:
«Êles tinham sido arremessados a êste mundo, como em tempo o haviam sido as. pragas do Egipto, para castigo do povo português, em quem parecia ir acabando o respeito pela religião e pelos seus ministros, representantes de Deus no espiritual como eram no temporal os reis legitimos.
«Que o facto, porém, de èles terem sido enviados como punição aos nossos delitos, não impedia, antes reclamava o exterminio urgente de tal praga, pois que nisso estava a absolvição dos nossos, pecados como serviço prestado à igreja de Roma.
«Que emquanto vivesse um só dêsses rebeldes filiados nas seitas infames dos carbonários. Deus não estariu contente na sua morada celestial nem tam pouco os reis legítimos se considerariam seguros nos seus tronos de origem divina.
«Que Deus perguntaria a cada alma, que se lhe apresentasse' a dar contas: -- Que fizeste em meu favor na terra ? -- porque era essa a obra mais meritória, que uma pessoa temente a Deus lhe podia prestar em quanto neste mundo.» «O ímpio, meus amados ouvintes, -- clamou êle neste lance da sua oração -- é pior do que a bêsta féra, que nos espreita na espessura das matas virgens da América ou nas florestas da África. Porque ésse animal, de instintos sanguinários, caindo sôbre nós, que faz ? rasga-nos e devora-nos as carnes, êste invólucro miserável, que, mais cedo ou mais tarde, os bichos da terra nos comerão; mas a alma, essa parte divina de todo o sêr humano, vôa intacta ao seio de Deus. E entretanto, qual é a obra do Ímpio? Ele não vos rasga nem devora as carnes, que são mortais; êle pretende, por seus conselhos depravados e torpes doutrinas, roubar-vos a alma, que é imortal, e arrojá-la para todo o sempre nos horrores do inferno !
«É por isso que o ímpio, meus amados filhos, é mais perigoso que um lôbo, ao qual se fazem montarias, e o seu castigo deve exceder tudo que a lei marca para os mais infames assassinos !» Neste lance do verrinoso discurso, o juiz do crime fez um gesto de aprovação para a direita e para a esquerda, aos circunstantes, que tinham fitado nêle olhares interrogativos e curiosos.
Frei Quintino rematou o sermão aconselhando os seus amados ouvintes «n darem a Deus o que é de Deus e a César o que é de César», fechando os ouvidos às práticas dessas serpentes enganadoras, Olhas da que perdeu Eva no paraíso com os seus conselhos, e que querem perder a humanidade, remida pelo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo e pelo sacrifício de tantos mártires.
«E se no vosso caminho -- foram as suas últimas palavras -- topardes uma dessas víboras, esmagai-a com o pé ou chamai quem a esmague, pois que prestais assim um relevantissimo serviço ao vosso Deus, que não o esquecerá no dia em que fôrdes chamados à sua divina presença. Amen.» Seguiram-se as três avè-marias do estilo; a primeira pelo triunfo pleno da Igreja e extinção completa da impiedade; a segunda pelo prolongamento da preciosa vida de S. M. El-Rei, Nosso Senhor, e do seu feliz reinado; a terceira por quantos tiveram a paciência de o ouvir.
Ajoelhou tudo, e após um breve murmúrio de rezas, começaram a sair os fiéis, comentando de um modo assaz lisonjeiro para o prègador aquele novo produto da sua oratória sagrada.
-- Isto é que se pode ver prègar ! -- diziam.
-- Eu só queria que os malhados o ouvissem !
-- Ele até deu a entender que quem estripar ou denunciar um malhado, apanhava indulgências ! não acha?
-- Tem uma lógica de ferro ! -- exclamou o abade da Sé, com os olhos brilhantes da satisfação intima.
-- Que vigorosa argumentação ! -- apoiava o superior dos crúzios.
-- A gente até cria novas ganas contra êsses ladrões ! -- regougou Pita Bezerra, empunhando inslintivarnente o cacete, que lhe pendia do pulso.
E no resto daquela tarde e noite imediata, pacíficos e honrados portuenses, que não faziam alardo dos seus sentimentos rialistas, foram acossados com mais ardor pela quadrilha do benemérito capitão. Em mais de um sitio, pela manhá seguinte, foram levantados corpos exânimes.
Não tinham caido em saco roto as palavras de frei Quintino. Foram acossados com mais ardor I. F. Q.
Tal era o lamentável espectáculo que o Pôrto oferecia em começos de 1832: -- o beatério excitado ao fanatismo, o caceie arvorado em lei suprema, a vingança brandindo o gládio da justiça, e por trás de tudo isto, e superior a tudo isto, como numa glória -- o esqueleto das forcas da Praça Nova, conservadas desde as últimas execuções para escarmento e liçáo a futuros rebeldes !
IV
Surge frei Quintino
Clara e Leonor costuram próximo duma janela donde lhes vem uma réstea de sol primaveral.
O rosto de Clara está pálido, cavado; o cabelo, onde começam de aparecer alguns fios brancos, reúne-se-lhe atrás em desleixado monelho; tem o olhar apagado pela permanência das lágrimas. De quando em quando o peito ergue-se-lhe num doloroso suspiro e a mão descai-lhe, mal sustendo a agulha.
Leonor oferece o meigo viço dos seus vinte anos, posto que os transes, que tem atravessado durante o periodo da prisáo de seu pai, lhe tenham impresso no rosto abatido, cansado, sinais da sua passagem. Entretanto di-la-iam ainda mais angélica, mais formosa e simpática, assim.
De uma das vezes, em que a espósa de Luís Maria, fatigada mais do espirito que do corpo, deixou pender o braço, os olharès de ambas encontraram-se.
-- Que lições que nos traz a adversidade ! -- disse Clara, como se continuasse alto o pensamento, que naquele instante lhe trabalhava o espírito. -- Vês tu, minha filha ? De tantas pessoas, que nos visitavam, que pareciam interessar-se por nós, estamos reduzidas à nossa antiga criada Rosa ! Quando mais precisávamos de quem nos consolasse, é que nos achamos sós com essa dedicada mulher, que chega a esquecer a sua rasa, os seus filhos e o seu homem, para nos dar uma hora de satisfação, de bem triste satisfação atinai.
-- Oh ! mas quem se atreveria a fazer o que ela faz ?!
-- Ê verdade; ninguém !... Espera... e se eu fôsse com ela... ? Não ! não ! Denunciar-me-ia logo ! Não me poderia arrancar de ao pé das grades do seu cárcere, e aqueles homens talvez me arrastassem para fóra, mesmo aos seus olhos !
-- Não hô-de tornar lã, pois não ? -- implorou Leonor, juntando as mãos.
-- Não; não tornarei.
-- Promete ?
-- Prometo... Sei que viria de lá doida; e custa-me a crêr que já o não esteja há muito.
-- Minha mãe !
-- Ah ! mas havemos de ir esperar teu pai no dia em que êle sair da cadeia, sim ?
-- Quem dera que fôsse àmanhã !
-- Tam tarde; àmanhã ! quem dera que fôsse já, neste momento, Leonor ! Mas nem hoje nefn àmanhã !
Quem sabe para quando estará o julgamento; e depois, ainda, qual será o seu resultado !... Se mentiam as suas esperanças !... Oh ! mas não será demasiada confiança, meu pobre Luís, fiares-te sómente na tua inocência? !.. A justiça! a justiça ! Pois não vês como ela deu ouvidos a ésse frade, tam religioso e tam nosso amigo, e como te mandou prender sem se importar de muis cousa nenhuma ?
Clara, alheada da presença da filha, como que estava falando com o vulto do marido, que entrevia na penumbra do seu desvairamento. Mas uma voz conhecida, e que havia muito lhe não tinha soado aos ouvidos, veio chamá-la à triste realidade.
-- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo para sempre -- disse frei Quintino à porta da sala.
É indizível o que passou, com a celeridade do relâmpago, pelo espirito daquelas duas criaturas.
Clara, que estava de costas para a porta, -- com as órbitas dilatadas e o espanto no rosto, como se tivesse escutado uma voz do outro mundo, -- voltando-se num relance, perguntou alterada:
-- Quem é?! quem... está aí?
Leonor, linha visto aparecer a figura esguia do beneditino, mas o medo, o terror, haviam-lhe afogado a voz na garganta, e só depois da interrogação de Clara é que correu a refugiar-se atrás dela, exclamando:
-- Êle aí está, minha mãe !
Clara tinha-se erguido. A costura havia-lhe escapado do regaço. A face conlraíra-se-lhe numa expressão indignada. Os olhos faiscavam-lhe. Os lábios tremiam-lhe. Estava hirta, terrível, nobre. Como que a tinha transfigurado a presença daquele homem funesto e odiado; Era Outra.
-- Não me esperavam, bem sei -- disse frei Quintino, adiantando-se. -- Ê naturalíssima a surprêsa.
-- É mais do que surprêsa, snr.!-- exclamou Clara com a voz quáse estrangulada na garganta. -- É indignação em mim e é mêdo nesta criança ! -- e voltando-se para Leonor: -- Vamos; não tenhas receio, minha filha -- disse ela. -- Êste snr. não sabe ferir senão pelas costas !
Depois, moderando um pouco o entôno, interrogou:
-- Que vem s. rev.ma fazer aqui ? Presenciar a sua obra ? avivar a nossa dôr com a sua presença ? É escusado, bem o deve saber, porque nos conhece bem.
Tenha a bondade de nos deixar em paz. -- E, com a voz abalada pela comoção, rematou escondendo uma lágrima: não está cá o dono da casa para o receber !
-- Eu sei, minha mui religiosa senhora -- redarguiu seráficamente frei Quintino. -- Eu sei o doloroso golpe que a punge; e só Deus é testimunha do quanto me tem magoado...
Clara interrompeu-o. O cinismo daquele homem tinha-a como assombrada. Custava-lhe a crèr o que via p ouvia.
-- O snr. vem disposto a zombar da nossa desgraça, ou que pretende de nós? -- exclamou.
-- A minha Santa Religião impõe-me o dever de consolar os que sofrem -- disse fréi. Quintino, que não parecia o mesmo que ouvimos em S. Joáo Novo incitando o povo no assassínio e à denúncia dos liberais. -- Eu era incapaz de zombar da desgraça de ninguém, e ainda menos duma senhora cujo abundante pecúlio de virtudes cristãs pede para si o respeito de tôdas as pessoas iluminadas por Deus com um raio da sua divina graça.
Clara tomou Leonor pelo braço, e fazendo menção de sair, disse com gesto digno:
-- Peço licença para me retirar com minha filha.
-- Apenas dois minutos de atenção, e, pelas minhas palavras, espero que a snr.» D. Clara me fará a justiça, que tanto mereço. Não quero dizer que seja isento de pecar... -- e voltando o rosto e os olhos para o firmamento... da sala, interrompeu-se: -- Ao contrário, meu divino pai do céu, -- disse êle com lágrimas na voz -- serei eu o maior pecador de quantos peregrinam neste vale impuro, serei; mas o manto da vossa graça é infinito, Senhor, e êle me abrigará contrito na hora extrema. Amen.
E prosseguindo:
-- Não quero dizer que não peque. Desta vez porém, de nada me acusa a consciência. E... apesar do modo insólito porque fui tratado por seu marido, minha senhora, apesar de ter escutado de seus lábios expressões, que ainda hoje ecôam aos meus ouvidos com sonido infernal; apesar de ter sido ameaçado e expulso desta casa como um criado inflei, ainda assim, perdoadas as injúrias em desconto dos meus pecados, não posso esquecer a gratidão, que devo a tnm exemplar família, nem deixar de olhar para ela com paternal solicitude, solicitudo magna. .
-- Obrigada a v. rev.ma -- disse Clara com frieza, e acrescentou com mal disfarçada ironia: -- Talvez nos fôsse melhor que não se tivesse interessado tanto por nós. Peço-lhe pela segunda ou terceira vez que se explique imediatamente, que eu mesma nem sei se o deveria estar ouvindo.
-- A snr.a D. Clara parece impaciente -- volveu o beneditino -- e a impaciência, como diz o grande doutor da igreja S. Bernardo, é a perdição das almas...
-- Acabemos com isto ! -- exclamou resolutamente Clara.
-- Não quero que a minha ex-penitenle se agaste.
Dous são os motivos da minha visita, podendo contudo resinnir-se num só. Em primeiro logar trata-se do snr.
Luís Maria...
-- Do pai?
-- De meu marido? -- exclamaram as duas senhoras esquecendo já a repugnância, que lhes despertava aquele homem, para se aproximarem dêle.
-- Sim, minha senhora. Depois de àmanhã deve ser julgado.
-- Depois... de àmanhã ?! -- repeliu Clara, sufocada, apoiando-se no braço de Leonor.
-- Justamente.
-- Oh ! meu Deus !
-- Contudo o caso não é para desesperar.
-- Pois há algum meio...?
-- Falemos do segundo motivo que me trouxe aqui. Conheço um rapaz, que viu por vezes uma donzela, cuja educação dirigida por uma senhora virtuosa -- os rostos da mâe e da filha iam passando gradualmente para a expressão do mído -- a torna modêlo das meninas da sua idade. Viu-a, e apaixonou-se tam cegamenle por ela que morre se a não desposar. Êsse moço é o meu afilhado António de Pádua; a donzela é a menina Leonor.
-- Eu ?! -- exclamou ela, pálida, escudando-se com a mfte.
-- Nunca ! -- protestou Clara. -- Mas a que propósito vem o casamento de minha filha para o julgamento de meu marido?
-- É simples. Nas mãos da snr.a está o futuro de meu afilhado, que se fina de amores pela menina Leonor; nas minhas mãos está o futuro de seu marido, que...
-- Mente! -- bradou Clara, tremendo de indignação.
-- Minha mãe ! -- soluçou Leonor, abraçando-a suplicante.
-- Sentirei muito ver-me obrigado a provar o contrário nos tribunais -- redarguiu frei Quintino inalterável.
-- E qual é o seu crime ? diga, snr. !
-- Crave, muito grave. Estar em comunicação directa com os rebeldes emigrados, e portanto ser um membro secreto da nova conspiração.
-- É falso ! O snr. sabe-o perfeitamente !
-- Há provas.
-- Quais ? As cartas de meu sobrinho ?
-- Mais as que êle já escreveu depois disso, e que teem sido interceptadas.
-- Pois... ?
-- Era bem de ver, minha senhora. A justiça não dorme.
-- Mas o snr. vai declarar...
-- Se quiser...
E lendo olhado à volta, baixando a voz, prosseguiu:
-- Declaro tudo quanto julgar necessário, e o snr. Luís Maria sairá imediatamente da sua prisão para os braços da sua família, se essa união se efectuar. Do contrário...
-- Mas isso é... infame !
-- Jesus Cristo recomenda o perdão dos ofensas.
-- Não é ofensa ! O snr. frei Quintino é um malvado !
-- Sou um religioso... Creio, porém, que, antes duma resposta definitiva sôbre assunto de tanto melindre, seria conveniente falar com seu digno marido.
-- Meu marido escreve-me isto.
E tirando da algibeira o bilhete, que Luís Maria lhe havia escrito tempo antes, entregou-o ao beneditino. Este leu-o com dificuldade, e o seu rosto, de ordinário impassível, traiu-se num gesto de enfado.
-- Muito bem -- disse éle, entregando o papel -- vejo que me posso retirar. Levo a consciência tranqúila por ter praticado o meu dever e o coração escorrendo sangue por ver até onde pode levar um mero capricho.
-- Capricho?! Não ! não é capricho negarmos o sacrifício de uma filha, que é a luz dos nossos olhos, -- e cingia Leonor contra o peito -- aos desejos ambiciosos de um homem !
-- Mero capricho, repito, dianto das consequências, que necessáriamente deverá acarretar semelhante resolução a uma família criada na paz e na abundância! Porque depois de àmanhã, todos os seus bens lhe serão confiscados, a miséria e a fome invadirão esta casa, emquanto que seu marido, minha senhora, partirá para o degrêdo a buscar na morte remédio para uma hora dc pecaminosa soberba.
Ao acabar de proferir estas palavras, frei Quintino dirigiu-se gravemente para a poria.
Leonor caiu aos pés da mãe, lavada em lágrimas.
-- Pelo amor de Deus, salve o pai ! -- bradou ela num arranco de dedicação sublime. -- Diga-lhe que... Eu sacrifico-me ! eu caso !
-- Não ! não ! -- repetiu Clara, lutando consigo mesma. -- Aquele homem não diz a verdade ! Ele não será condenado !
-- Vê-lo hemos... -- volveu frei Quintino, parando junto da porta.
-- Deus é pai, e perdoa ! -- disse a pobre senhora, tendo erguido a filha do chão.
-- Deus é juiz, e castiga ! -- replicou o frade com acento austero.
Leonor desfalecia.
Clara amparando-a nos braços, cingindo-a ao peito, soluçou:
-- Filha ! minha filha !
O religioso desceu as escadas sereno, imperturbável, solene.
V
Infâmia sôbre infâmia
Frei Quintino dissera a verdade. Estava por dous o julgamento de Luís Maria.
O honrado negociante, cumpre dizê-lo, tinha entre as suas relações bons amigos, sinceros, dedicados; mas por tal forma se tinha inocutado em todos os espíritos o mêdo de poderem parecer liberais aos olhos dos espiões rialistas, que imediatamente se viu isolado, só, Ole, a mulher e a fllha, valendo-lhes apenas a bôa Rosa. nas horas escassas, que podia furtar às suas ocupações caseiras.
O mesmo sócio de Luís Maria, seu antigo caixeiro, apesar de tôda a gratidaa de que lhe era crèdor, tratou de liquidar o negócio sem a mínima consulta, de seu molu próprio receoso, a conselho de alguns amigos prudentes, fazendo bem pública a noticia da dissolução duma sociedade, que lhe podia trazer sírios desgostos.
A liquidação, feita à pressa e sem a mínima fiscalização por parte de um dos interessados, na ausência forçada dêle, rendeu para Luís Maria, sem mêdo de reclamações ou protestos, a sexta parte do que lhe poderia ter dado, se presidissem a ela o escrúpulo, a eqúidade, a honradez.
Acrescentemos que o snr. Francisco não comungava as idéas do seu antigo patrfto, ou pelo menos as do sobrinho -- que é tudo o mesmo -- dizia êle, e não faltava a uma exposição do Senhor, em chinelos que fôsse, na fgreja da Misericórdia ou dos Congregados, as duas mais próximas do estabelecimento.
Assim, pois. Luís Maria viu-se abandonado de quantos podiam prestar-lhe algum serviço, já empenhando-se com os magistrados criminais para se lhe tomar menos duro o cárcere, removendo-o de um logar infecto e da companhia de facínoras; já aliviando-o das acusações, a que avergava, com o seu testimunho importante.
Uns retiravam-se, porque, pertencendo ao partido rialista, nfto queriam entrar em relações com um conspirador, com um malhado; outros fingiam indiferença, porque, sendo liberais as suas idéas, receavam que os suspeitassem de cumplicidade.
Luís Maria apenas tinha de quando em quando as visitas de Rosa, e essas mesmas a mêdo, porque a bôa da mulher nunca se introduzia na cadeia, dizendo que era ao negociante que desejava falar.
Uma vez, porêm, dias antes da scena, que esboçamos no capitulo anterior, a pesada porta da sua enxòvia rodou sòbre os gonzos para dar passagem a um ajudante do carcereiro, que perguntou do alto das estreitas escadas, que desciam àquele escuro antro:
-- Quem é aí Luís Maria ?
-- Sou eu -- disse o negociante alvoroçado.
-- Venha p'ra falar com uma pessoa que o procura.
Luís Maria sentiu o coração bater-lhe apressado no peito.
-- Quem serã ? -- perguntou para si, abotoando o casaco jà descosido nalgumas costuras, e apressando-se a subir as escadas da enxòvia.
Num momento atruvessurain-lhe o espirito us mais opostas idéas:
-- Seia Clara ? -- Irão julgar-me ? -- Estarei já condenado sem mesmo ter sido ouvido ? -- Chamar-me hão a perguntas ? - Conseguiriam prender o Frederico e quererão apresenlar-nos em presença um do outro ?
- Que será ?
E caia na mesma interrogação vaga, que lhe tinha servido de ponto de partida.
Entretanto o ajudante do carcereiro tinha de novo fechado a porta da enxòvia e caminhava adiante.
Descerum alguns degruus de pedra, e dirigiram-se para a sala de enlrudu, que estã em frente do portão de ferro, onde passeia o chuveiro, como ja indicamos.
A impressão, que Luís Maria experimentava ao seguir aquele homem, era indescritível. O sangue afluia-lhe ao coração; tinha tonturas, faltava-lhe a vista; sentia percorrer-lhe a espinha dorsal uma desagradável sensação de frio, e as pernas vacilavam-lhe. Estava pálido como um defunto, e mais de uma vez se arrimou ã parede para não ajoelhar.
Entraram na sala.
Supondo as coisas mais extravagantes, ele não tinha mesmo suspeitado, quem poderia desejar falar-lhe.
A sua surpresa, portanto, ao dar de rosto com frei Quintino, foi quase fulminante, digamo-lo assim, porque pouco faltou para cair redondo no chão. Uma nuvem de sangue desdobrou-se-lhe diante dos olhos, um sonido metálico estrugiu-lhe no cérebro, a bôca abriu-se-lhe como se a respircão lhe faltasse de súbito, recurvaram-se-lhe os dedos como garras, e soltou um rugido gutural...
Frei Quintino recuou aterrado.
O ajudante do carcereiro cingiu Luís Maria pelas costas, ao ver o movimento do frade e notando a transição rápida por que passára a fisionomia do preso.
Luís Maria não fez movimento algum para desprender-se. Passado o primeiro instante, os braços penderam-lhe inertes, os olhos cerraram-se-lhe para se abrirem pouco depois turvos de lágrimas, e sorveu um longo hausto de ar puríssimo, que lhe vinha de uma das janelas abertas sôbre o vasto largo da antiga Cordoaria.
-- Para que me prende assim ? -- disse êle com voz rouca mas serena, voltando um pouco o rosto para o lado e falando ao homem que o segurava. -- Acha que eu ainda não estou bem preso ?
-- O snr. queria-se deitar ao snr. frei Quintino, que eu bem vi !
-- Deixe-me ! -- tomou Luís Maria impaciente, mas alquebrado pela comoção violenta por que vinha de passar. -- Se tivesse querido deitar-me a êste... snr., não o faria aqui. Tive ocasião de o estrangular, e contentei-me em o pôr fóra de minha casa.
O ajudante do carcereiro largou-o.
Frei Quintino adiantou-se gravemente, humilde e contrito.
-- Snr. Luís Maria, eu vim...
Luís Maria voltando as costas ao beneditino, dirigiu-se para o empregado que o tinha ido chamar ao cárcere.
-- O snr. disse-me que alguém me desejava falar. Quem é ? -- perguntou com secura.
-- É s. rev.ma... -- respondeu o outro indicando respeitosamente o frade.
-- Nesse caso, não tenho nada que fazer aqui. Queira tornar-me a acompanhar à enxòvia, onde estou melhor entre assassinos. Vamos.
E dirigia-se para a porta com as máos nos bolsos.
Frei Quintino saiu-lhe ao encontro, sem todavia lhe ficar ao alcance das mãos.
-- A cólera desvaira-o -- disse êle. -- Perdôo-lhe tudo.
Ouça-me. É a salvação que lhe venho propôr, meu bom...
-- Seu bom amigo... não? -- cortou Luís Maria, em cujos veias a indignação começava de novo a acachoar o sangue; depois voltou-se para o ajudante do carcereiro: -- Já disse que me quero retirar. Não posso mais ! Este homem quer fazer de mim um facínora ! Venha daí comigo.
E saiu para o patamar de pedra.
Frei Quintino fez um geslo seráfico de resignada comiseração uo empregado du cadeia e murmurou:
-- Está perdido, irremediavelmente perdido ! Deus se amerceie do seu espírito desvairado.
A visita de Irei Quintino à cadeia tinha por motivo a proposta que êle fizera depois a Clara, na ante-véspera do julgamento de Luís Maria.
Convêm saber que o religioso, denunciando Luis Maria á policia, fazendo com que o pronunciassem, que o reconmessem a um dêsses covis da cadeia da Remção cliamauos enxovias, e ua fosse bem humanado, mu» uana outro Um senão deslumbra-lo com a sua proposta de liberdade,-- o aconchego da família, a estima dos amigos, a consideração dos estranhos, a sua reabilitação, enfim, -- em troca dos cem mil cruzados, que a filha levaria em dote ao seu afilhado no dia das escrituras nupciais.
O contraste das desgraças por que êle estava passando e a perspeetiva doutras maiores auida, com a promessa de um futuro plácido, risonho e feliz, não deixava em frei Quintino a menor duvida sôbre o resitado do seu infamissimo plano.
O religioso, calculando tudo, prevendo tudo, não tinha contado com a ombridade e a nobreza de carácter dos dous mártires do seu escuro trama, Luís Mana e Clara.
Dai o resultado imprevisto.
Frei Quintino, despeitado, protestou deixar correr o julgamento sem atenuar num ápice a grave acusação formulada contra o negociante.
Forque êle podia, se quisesse, obter a absolvição de Luis Maria, apresentando ao tribunal:
1. ° o seu forte testimunho de tantos anos de convivência no seio daquela família; 2. ° duas cartas de Frederico, que s. rev.ma Unha subtraído ao masso, que mandára para o tribunal, e nas quais o emigrado académico punha a evidência o propósito firme do negociante em se abster de tudo quanto respeitasse à política.
Mas não quis.
Depois pensou:
«A todo o tempo é tempo. O que faz com que êles rejeitem a minha proposta é a confiança na absolvição.
Desenganados, lavrada a sentença, esmagados sob o pêso da adversidade, perdida tóda a esperança de salvação, e além disso pobres, confiscados os seus bens, há-de quebrar-se-lhes a soberba, e o que rejeitam agora com desdêm háo-de pedi-lo então de mãos erguidas.
Restará depois anular a sentença... Como? Irei falar aos desembargadores da casa da suplicação, aos ministros, ao próprio rei, em nome da justiça, baseando o meu pleito no aparecimento de papeis, que destroem a acusação, no meu próprio LesUmunho insuspeito.
Marcar-se há dia para novo julgamento, e eu triunfarei. Sim I é isto ! E entretanto, êle que sofra as consequências da sua teimosia inconsiderada.» A 6 de maio daquele memorável ano de 1832 era Luís Maria julgado e condenado a degrêdo perpétuo para Angola e na confiscação e perdimento de todos os seus bens.
Não tentaremos descrever o que se passou no espírito do negociante ao ouvir lêr a sentença, que o segregava para sempre do que lhe era mais caro no mundo -- a família. Foi uma vertigem, um atordoamento, como se lhe tivessem descarregado na cabeça o pêso duma clava.
Ficou aniquilado, impotente. Dous oficiais de justiça conduziram-no em braços para fóra do tribunal.
Quem levou a triste notícia a Clara e Leonor, que tinham passudo tóda aquela manhá do julgamento de Luís Maria, em joelhos diante do oratório que estava no seu quarto, foi Rosa, que havia partido a informar-se do resultado.
Era esperada com Ânsia mortal a bôa mulher, e quando ela apareceu no patamar da escada, enxugando os olhos com uma das pontas do seu avental, as duas senhoras romperam num choro desfeito. Não precisavam de mais nada para se convpncerem da triste realidade.
Meu pobre homem !
-- Meu querido pai !
E as vozes entrecortadas, e os soluços, e o pranto era tal, que não seria maior a desolação naquela casa, se o corpo de Luís Maria jazesse ali inteiriçado e frio no caixão mortuário.
Frei Quintino, ao ter conhecimento da sentença, que vinhp coroar a sua obra, exultou.
-- Degrédo por tõda a vida ? Confiscação de todos os bens ? Quanto mais terrível fôr a condenaçáo, e esta é-o inteiramente, maior certeza tenho de ser ouvido, de ser mesmo procurado, de se me fazerem tôdas as concessões. E eu serei louvado por quantos tiverem conhecimento da minha dedieaçáo, pois que subirei os degraus do paço e me rojarei aos pés do trono, pedindo justiça.
Três dias depois. Clara recebia a intimação, como principio de execução da sentença, para fazer entrega de todos os títulos comprovativos da posse dos seis ou sete prédios, que Luís Maria tinha no Pôrto e de algumas propriedades rurais, que possuía nas imediacões de Santo Tirso, terra da sua naturalidade.
Clara entregou tudo lavada em lágrimas, salvando apenas, por lhos haver guardado Rosa, uns 800$000 réis, produto da liquidação da sua loja da rua das Flores.
Uma semana adiante, a espôsa de Luís Maria era intimada a evacuar para o S. Miguel a casa. em que havia mais de vinte anos moravam, -- desde o seu casamento, -- e êste foi novo motivo para lástimas e consumições.
Os que estão ao facto da história do Pôrto nessa época sabem que tal ordem não devia ter final execução.
Entretanto Clara, irresoluta, medrosa, sem saber mesmo o que faria, se o homem lhe partisse para o degrêdo, alugou antecipadamente um segundo andar numa rua próxima. Triste, sombria. íngreme, tortuosa, chamada de Cima de Vila, -- nome que ainda hoje conserva.
VI
Uma leva de presos
Foi um viver de luta, de sobressaltos, de inferno para a mulher e filha de Luís Maria, o que se seguiu à condenação dêste honrado homem.
Se o removiam de cadeia sem elas saberem ?
Se o mandavam para o degrêdo, sem o menor aviso ?
Se um dia ao procurá-lo Rosa, lhe dissessem da enxòvia: -- Quem ? o negociante ? -- Era assim que o apelidavam os seus companheiros de prisão. -- Já cá não está-- ?
E ralavam-se e consumiam-se e mortificavam-se.
Um dia Rosa lembrou-se:
-- Quer a snr.a? -- disse ela. -- Defronte da Relação, no passeio, desde pela manhã até à noite, está sentada a fiar estôpa uma pobre mulher casada com um preso, que vive no mesmo cárcere do snr. Luís Maria.
Quer a snr.a que eu a ponha de espia e quando houver alguma novidade, venha a correr dar-lhe conta ? Dá-se-lhe alguma coisa, e, alêm da paga, é uma esmola bem empregadinha.
Clara aceitou o alvitre.
Daí em diante a mulher do preso ia diáriamente informar-se por meios indirectos, que a sua astúcia lhe ditava, do movimento da cadeia. Em seguida partia a avisar a esposa do negociante do que apurara, trazendo-lhe uma certa tranquilidade para o resto de cada dia.
Mas dentro em pouco a infeliz senhora conheceu o inconveniente dc tal espionagem.
Um dia, mais cedo que de costume, açodada, quáse sem fala do muito que tinha corrido, entrou a mulher do preso na casa da rua Chã.
-- Senhora ! minha senhora ! -- disse ela respirando rortemente nos intervalos das palavras. -- Hoje... às 10 horas... vai uma leva de presos... para o degredo !
-- E... o meu homem? -- gritou Clara, aflitíssima.
-- Não sei, minha senhora ! Eles, nestas ocasiões, não deixam entrar... lá dentro. Foi um soldado que mo disse...
-- Quero ir... Quero ir ver se êle vai... -- disse Clara desvairada, perdida. -- Leonor, anda daí... a minha saia preta, o meu chale... a minha mantilha... Vão levar teu pai... Não chores... Arranja-te; ou vou só.
Clara dizia isto com a voz entrecortada, por pequenos períodos; estava muito pálida, sem verter uma lágrima, pegando nos objectos com as mãos trémulas, para os pousar depois, molhando os beiços com a ponta da língua, vestindo-se com frenesi. Leonor pelo contrário debulhava-se em lágrimas, soluçando alto.
Clara repetia, pondo o chale, automáticamente:
-- Ou vou eu só...
A mulher do preso lembrou a Leonor que não era conveniente deixar sair a mãe desacompanhada. Ela não cessava um instante de falar. Ia dizendo:
-- Eu lá vou já, Luis... Espera... nôo tenhas tanta pressa. . Eles querem levar-te... sem eu te ver? Maus homens... Havemos de ir ambos... Eu também quero ir... e a tua filha também. Então, Leonor ! apronta-te de-pressa. Vamos para o degrêdo com o teu pai... Anda, filha... Até, mais vale assim; depois ninguém nos separará... Ninguém ! Vês tu? que fortuna!
E cascalhava um riso monótono, como o som que produziriam algumas cabaças ôcas sacudidas dentro dum saco.
Leonor vestia-se chorando e sem poder dar-se a explicação daquele extravagante monólogo da mãe. A mulher do preso, a alviçareira da triste nova, tinha descido a escada correndo, e fóra a casa de Rosa informá-la do sucedido.
Rosa põs o lenço na cabeça, deitou o capote aos ombros, pediu a uma vizinha que olhasse pelos pequenos. e seguiu para a casa da rua Chã, murmurando:
-- Que desgraça, meu Deus! que desgraça!
Quando assomava à entrada da rua pela banda da Sê. Clara, com a mantilha pela cabeça, mas lombada para um lado, apanhada em porções desiguais, mostrando em tudo a desordem que lhe ia no espírito, sala de casa encaminhando-se para a rua do Loureiro, seguida pela filha com os olhos vermelhos e mal enxutos.
Rosa estugou o passo e dentro em pouco achava-se ao lado da espôsa de Luís Maria.
-- Minha senhora ! minha senhora ! -- disse-lhe ela com o coração profundamente constrangido -- onde vai assim ?
-- És tu ? aí, és tu?... Vamos depressa, que êles podem mandá-lo adiante... para eu o não ver... -- E quáse corria. -- Não imaginas como êles são maus ! Queriam mandá-lo só para o degrêdo... mas havemos de ir tôdas... Vou eu, vais tu, vai a Leonor... Tôdas.. E eu que o não vi há onze meses... o meu Luís, o meu homem !... Tu, sim; tu tem-l'o visto... tu é que me hás-de dizer... «É aquele...» Porque... talvez o não conheça... Oh ! conheço, conheço.. Entre mil que fôsse ! conhecia-o logo ! «Ele ali vai !» Verás que não me escapa o meu querido homem !
E o seu passo era miúdo, frequente, desembaraçado, como o duma rapariga de vinte anos; falava com vivacidade, em voz. alta, sem atentar em ninguém, e os seus gestos eram sacudidos, resolutos.
Pela feira de S. Bento, por todo o caminho, assomavam às portas dos estabelecimentos cabeças curiosas e na rua paravam os transeuntes, espantados daquele triste espectáculo. Alguns riam.
A pobre Rosa acompanhava-a perplexa, nfto sabendo o que fazer. Impedi-la-ia de seguir para a porta da cadeia ? Pediria auxilio para que a conduzissem de novo a casa ? E se lhe sobrevinha a fúria pela contrariedade. e agravava involuntariamente a situação da pobre senhora, exacerbando-lhe o desespero? Mas também. se via o homem na leva dos presos que seguiam para África?...
E, nesta coalisão, a devotada mulher não afrouxava o passo, medindo-o pelo de Clara.
Leonor seguia atrás, custando-lhe a acompanhar a máe, trémula e soluçante, com a côca da mantilha para os olhos.
Assim foram até A Porta do Olival. Ai a vista espraiava-se pela Cordoaria, vasto descampado irregular. fronteiro a uma das fachadas principais da cadeia, campo destinado às execuções dos grandes facínoras. e onde trabalhavam diáriamente, estendendo e torcendo inúmeras cordas de linho, ou- dando à manivela de grossas rodas de madeira, dezenas de homens e rapazes, mestres, oficiais e aprendizes de cordoeiro.
A primeira vista, quem da Porta do Olival olhasse para o largo, percebia que alguma cousa de extraordinário sejiassava para as bandas da cadeia. Os rodeiros tinham parado o seu movimento automático, sem abandonarem a manivela: os que, com grandes feixes de linho enrolados á cinta recuavam, deixando na sua esteira uma corda já torcida e pronta, haviam estacado:
os homens e mulheres do povo, que naquela ocasiáo passavam ali, também não se mexiam, e todos voltados para o lúgubre edifício, faziam convergir as suas vistas sôbre um ponto único.
Efectivamente, acabava de se desdobrar em duas alas, desde a porta até A rua das Taipas, uma fôrça de linha com as baionetas armadas no tôpo das espingardas.
Clara, que ao chegar à porta do Olival, falava mais desordenadamente ainda que ao principio, ao ver téda aquela gente parada.-como que adivinhou o que se estava passando, e gritou:
-- Ah ! Lá estáo êles ! Esperem ! Eu vou ! eu vou !
E começou a correr, levando a mantilha a rastos, desorientada, louca. Rosa gritou a um individuo, que passava naquele momenlo ao lado de Clara, que a segurasse. Ele reteve-a. Clara tentou lutar, debateu-se.
-- Deixe-me ! deixe-me ! -- dizia ela. -- Vão levar o meu marido... Quero ir com êle; não me prenda.
Chegou Rosa e Leonor.
-- Minha mãe ! minha querida mãe !
-- Minha senhora! -- dizia a criada compondo-lhe o chale, a mantilha suja da poeira e já rasgada em sítios.
-- Que tem esta senhora ? -- perguntou o indivíduo, que a segurava sem esfôrço.
E eraquanto Rosa abrangia nalgumas palavras , a causa daquele desvairamento. Clara exausta, ofegante, respondia também, mas baixo, quáse em tom confidencial:
-- Pois não sabe ? querem-no levar p'ra o degrêdo sem mim, sem a minha filha, e sem esta... sem a ama... Ora nAo há ! Vamos lodos... Deixe-me!
Tinha-se juntado alguma gente, que fazia os seus comentários, e se apiedava soltando interjeições magoadas.
-- Foi uma imprudência deixarem sair esta senhora num tam lastimoso estado ! -- disse o indivíduo, que tinha segurado Clara.
-- Quer o snr. ? -- disse-lhe ela.-- Venha tambêm connosco.
-- Pois eu vou lambém -- volveu o sujeito com afabilidade e como se tratasse com uma criança -- mas a snr.a há-de prometer-me não ir depressa, nem gritar, sim ?
-- Pois sim; mas vamos, vamos: quando não...!
O desconhecido, com uma verdadeira paciência evangélica, segurou no seu o braço de Clara, e acompanhou-a, tentando desviá-la da porta fatal; mas todos os seus esforços eram para êsse ponto e êle julgou mais acertado fazer-lhe a vontade. Alêm disso, Rosa tinha-lhe dito que não havia a certeza do marido da snr.a ir naquele dia.
Cousa notável ! O frenesi de Clara tinha abrandado; falava baixo com o bom homem que o acaso lhe deparára no caminho, tinha-lhe respeito. Era muito de crêr que a superioridade de fôrças, que lhe havia mostrado, segurando-a por algum tempo, imobilizando-a, lhe tivesse incutido êsse sentimento, lacto comum nos idiotas.
Leonor encostára-se no ombro de Rosa, e extenuada lá ia seguindo a mãe.
Pararam a alguns passos da escolta, onde era licito estacionar.
Os presos ainda não tinham saído.
Rastante povo, quáse tudo mulheres da ínfima camada, descalças, de chalés de algodfto traçados no seio e lenços de chita na cabeça, com os cabelos penteados e luzidios, algumas com crianças ao colo, demorava por ali.
-- Ainda não foram embora, pois não ? Ainda lá estão dentro, não estão ? -- perguntou Clara inquieta.
-- Estilo... ainda não saiu nenhum... mas o seu marido não vai... Foi um engano -- disse o adventício.
-- Como, não vai !? Há-de ir ! Quem o manda é o snr. frei Quintino ! Não conhece o snr. frei Quintino?... Queria que a minha Leonor casasse com o sobrinho dêle. Já viu que disparate? Pois não há-de casar ! não casa ! e não casa !
-- Mas, se o marido da snr.a não fôsse ?
-- Quem? O meu Luís? Se êle não fôsse?... Ah !
Se êle não fôsse... -- disse Clara esfregando a testa com a mão, como a procurar uma idéa.
Nisto ouviu-se a voz de «sentido !» dada pelo comandante da escolta; e logo depois os soldados, a uma segunda voz, executavam a manobra conhecida de «braço armas !» Assomaram à porta da cadeia os primeiros presos.
Ê uma triste cousa uma leva de degredados !
Os que deviam seguir para África naquele dia eram trinta e quatro.
Vinham com os pulsos algemados e ligados dois a dois.
Caminhavam devagar por entre as filas da escolta.
Havia ali rostos patibulares, e fisionomias abertas, serenas. E cru ver uns voltando a cara para não serem conhecidos, outros rindo com cinismo para a pente aglomerada, êste chorando cabisbaixo, aquele dirigindo uma chufa às meretrizes, que se tinham agrupado nomeando e apontando os conhecidos, e promiscuamente, rotos e limpamente vestidos, em cabelo ou com o chapéu derrubado para os olhos, novos e vélhos !
Entre os degredados iam tambêm três mulheres, algemadas como etes: uma não poderia ter mais de vinte e dois anos.
Os espectadores daquela scena comentavam-na a seu modo mais ou menos contristados. Alguns soluços e vozes chorosas cortavam o sussurro do ajuntamento:
-- O meu querido homem, que não torno a ver !
-- Ai o meu rico irmão !
-- José, adeus! -- soluçava uma aldeã, lavada em pranto e retirando o lenço dos olhos para acenar com êle a um dos. presos, ainda moço. e que parecia sucumbido; o seu noivo talvez.
-- António ! -- gritava, chorosa e aflita, uma vélha mirrada, posta em cima duma pedra e agitando os braços para um homem de pele tisnada, com um grande gilvás na face e a sobrancelha espêssa, que voltou a cara para o lado oposto àquele donde lhe soára a voz: -- António ! diz ao menos adeus à tua mãe !
E uma outra:
-- Deus te leve a salvamento, Francisco !
Entretanto Clara, que o adventício mais que nunca segurava pelo braço, estudando-lhe no rosto as impressões por que passava, prevenido para o momento em que ela reconhecesse o marido. Clara ia dizendo, ao mesmo tempo que apareciam os presos por entre as espingardas e as cabeças imóveis dos soldados:
-- Não é êste... nem êste nem aquele... nem o outro... nem este...
Haviam desfilado os trinta e quatro condenados e Clara repetindo sempre:
-- Também não e aquele nem êste... nem o outro...
A leva tinha parado a pequena distancia da cadeia, a escolta tinha formado aos lados, na frente e na rectaguarda; a uma voz, o tambor rufou e tudo se pôs em marcha, pesadamente, fazendo ressoar as passadas pela íngreme rua das Taipas, em direcção ao rio.
-- E o meu homem ? que é do meu homem ? -- perguntou Clara, com a respiração difícil e os olhos brilhantes, ao desconhecido, a Rosa, a Leonor, que choravam de contentamento.
-- Não foi, minha senhora !
-- Não foi, minha mãe! -- disseram quáse a um tempo.
-- Eu bem disse que êle não ia -- observou o adventício, sem retirar a vista de Clara, cujo rosto se iluminou; e logo abriu-se-lhe a bôca, o peito arfou-lhe, soltou alguns monossilubos, e rompeu numa gargalharia nervosa, sacudida, prolongada, estridente, que por fim a sufocou, tirando-lhe o acôrdo, ao tempo que duas grossas lágrimas lhe rolavam nas faces contraidas pela convulsão do riso.
Levaram-na para uma botica próxima, no meio de grande ajuntamento de povo, que estacionava ainda por ali.
O desconhecido era o dr. Silveira, médico do hospital de Santo António, um dos raros que faziam da sua bela profissão um sacerdócio, -- como acontece ainda hoje.
Foram prestados a Clara os socorros precisos, e como tardasse em voltar a si do desmaio, foi recolhida a uma cama, que o boticário ofereceu de boamente, e a cuja cabeceira se postaram as snr.a da casa.
-- Não chore, menina; vamos, não chorem -- dizia o médico a Leonor e a Rosa. -- Esta síncope assim prolongada pode ser-lhe de um grande alívio. O pulso vai-se percebendo distintamente e não acusa grande alteração...
Em seguida trocou algumas palavras com o boticário, e acrescentou, depois de consultar o relógio de ouro:
-- Bem; sào dez horas e meia; vou passar a minha visita ao hospital e torno por aqui. Sossêgo em todo o caso; o maior sossêgo possível.
Uma hora depois. Clara abria os olhos e lixava as pessoas presentes, como se quisesse certiliear-se rio que via. Por último, descansando a vista na filha, balbuciou:
-- Água.
Trouxeram-lhe água. Sentara-na no colchão; -- bebeu um grande trago; pareceu ficar satisfeita e quis deitar-se outra vez. Deitaram-na.
Cerrou os olhos. Adormeceu.
Quando o dr. voltou, flcou satisfeito, e, tendo tomado o pulso a Clara, disse para Leonor:
-- Isto já não é nada, minha menina. Agora do que precisa é de descanso, muito descanso; o abalo foi violento, e podia ter sido fatal. O menos que lhe podia ter acontecido era ficar doida.
-- E não poderá ir para casa ? -- interrompeu Leonor timidamente.
-- Veremos. Eu volto cá de tarde.
O sono de Clara foi plácido; apenas de quando em quando um estremecimento nervoso lhe percorria os membros. Eram quatro horus da tarde quando acordou.
Depois de ter olhado, primeiro vagamente, e em seguida com mais atenção para tudo o que a cercava, para as pessoas que via próximo do leito, para as paredes, para o teto da alcova, perguntou com voz débil -- onde estava.
-- Em casa de gente honrada, minha senhora -- respondeu com imensa bondade uma dus improvisadas enfermeiras -- e aqui está a sua menina -- acrescentou ela mostrando-lhe Leonor.
-- Ah ! sim ! já vejo... mas... que fortes dores de cabeça !
Clara levou as mãos à lesta; tinha-lhe sobrevindo uma violenta nevralgia; entretanto a excituçáo daquela manhã havia desaparecido inteiramente, e ela mal se lembrava, como em sonho, através dum espesso nevoeiro, -- do que se tinha passado.
Era grande a sua prostração. Deram-lhe um caldo.
Depois de nova visita do médico, e por conselho dêle. Clara foi conduzida à sua casa da rua Chã, numa cadeirinha.
Ardia em febre.
VII
Uma paixão infeliz
Entretanto, porque não executava frei Quintino a última parte do seu plano, propondo á sua vitima a soltura, a liberdade, os bens perdidos, a doce companhia da espôsa e da filha, tôdas as felicidades, a que ela devia ter dito um último adeus, em troca do que s. rev.ma achava tam simples, tam fácil, tam... natural, a mão de Leonor para o afilhado?...
Tinha apenas decorrido uma semana ou pouco mais, depois que Luís Maria fôra sentenciado a degrêdo com perdi mento e conflscaçôo de todos os bens.
Resolvera o beneditino não dar o ousado passo antes de executada a última parte da sentença, para que o contraste da sua proposta redentora naquele imenso desespêro, em que estaria mergulhado o negociante, fôsse ainda mais sensível.
Emquanto, porém, esperava a ocasião de se mostrar como anjo salvador à desolada família, recebeu de Barcelos, do seu amigo e padre-mestre frei Joaquim de Jesus-Maria-José, uma carta, que o encheu de consternação.
Dizia-lhe êle:
«No pouco tempo, que tiveste aí o António, conseguiste perdê-lo.
«Tenho-te dito por diversas vezes que a sua tristeza aumenta, que tem fastio de morte, emmagrece a olhos vistos, procura os logares retirados, aborrece a leitura e fecha-se para chorar. Pensei que o achaque passaria com o tempo, mas enganei-me. Está cada vez pior. Com quem êle se tem desabotoado é lá com a vélhota , a quem diz que ama doidamente uma menina do Pôrto, que julgo ser a noiva que tu lhe destinavas. Fizeste-la bonita contando com o ovo...
«Ontem, porém, a coisa esteve pura ler mais sérias consequências, e eu não quero responsabildiades que me não pertencem. Creio que me percebes.
«Ora, pois ! Aí vai o que sucedeu.
«Depois de ter recebido a tua carta última, fui a casa da patrôa, e precisei de tirar uns papeis do bôlso; pousei-os em cima da cómoda, e nunca mais me lembrei dêles. Tinha-me eu retirado quando o António entrou na sala e viu a tua carta, que lá me tinha ficado também. Conheceu a letra, e como o papel estivesse quase desdobrado, pôde lêr a passagem em que me dizias que o pai da rapariga tinha sido condenado a degredo e não sei se mais alguma coisa. O caso e que, segundo ela me disse depois, o rapaz tornou-se muito enfiado e saiu, dizendo que tinha falta de ar.
«Esperou-se para jantar e não apareceu. Mandaram-me prevenir, sai apressado, ainda coni o estômago cheio, em perigo de me dar «alguma», e dirigia-me a casa do morgado a ver se o teriam agarrado para a mesa, quando vejo muita gente lá longe, na margem do Cávado, e um homem, que me lobrigou, a correr acenando-me com o chapéu.
«Isto diz-se em duas palavras: aquele povo estava ali, porque tinham pescado o teu rapaz do fundo do rio, onde se tinha lançado para acabar com a vida.
Felizmente salvaram-no a tempo duma morte certa, pois, quando o tiraram da água, vinha já sem sentidos.
«Fez-se-lhe tudo o que era possível na ocasião e acha-se livre de perigo. Ainda assim, está de cama e eu não me responsabiliso por êle. Arde em febre, não prova nada, está de contínuo a suspirar e tem flatos de chôro; a meu juizo, é preciso que venhas a Barcelos quanto antes.
«O rapaz faz pena de-veras, dói-me o seu estudo porque tem bôas qualidades. Adeus. Conto contigo.»
Os olhos de frei Quintino, ao lêr as últimus frases da carta, arrasaram-se-lhe de lágrimas, talvez as primeiras da sua vida; reagiu, porém, como quem se revolta contra a sua fraqueza; teve-os por algum tempo fechados, concentrando-se, e quando os abriu de novo, estavam secos.
-- Pobre moço ! -- disse êle.
E foi logo ter com o superior; daí mandou tomar um macho e criado a uma alquilaria do Carmo, e uma hora depois partia escarranchado na alimária agasalhado na longa capa preta, com o seu chapéu de abas revôltas, e um par de bôas pistolas escorvadas nos coldres.
Êle ia dizendo:
-- Cousa notável! Se não lhe acodem, tinha a morte da mãe ! Que tentação de rapaz ! É bem certo o rifão -- quem sai aos seus... !
Pernoitaram a meio caminho, n'uma estalagem solitária. Ao outro dia pela manha entravam em Barcelos, e não foi sem comoção que frei Quintino se apeou á porta da caso, onde estava aquartelado o filho da suicida.
Saiu-lhe às escadas o padre-mestre, anafado religioso, vermelho e rotundo, com os braços abertos e as mãos espalmadas.
-- Ora venham de lá êsses ossos!, que só um caso assim é que era capaz de o trazer a esta bôa vila de Barcelos !
Abraçaram-se, e após os primeiras expressões, que o beneditino tratou de encurtar quanto possível:
-- E o rapaz ? -- perguntou êle.
-- Vais vê-lo. Está na cama. Tem ocasiões que parece idiota. Podes limpar a máo à parede com o tal casamento ! Mataste um ornamento do púlpito, e para isso bastava que saisse ao pai...
-- Chíu ! -- impôs frei Quintino olhando para os lados: iam nessa ocasião no primeiro patamar.
-- Não tem dúvida -- disse êle; prosseguiu:-- e por fim quáse que o matas de vez. fazendo-lhe conceber esperanças, que não se realizam.
-- Mas quem to disse, frei Joaquim ? -- perguntou o beneditino com um sorriso. -- Valha-te S. Bento! Nunca elas estiveram tanto a caminho de se realizar, padre-mestre !
Chegaram ao primeiro andar.
-- Entra -- disse o padre-mestre, a quem parecia familiar a habitação, indicando uma porta quáse cerrada e que empurrou. -- Cá a patrôa não lhe tem deixando a cabeceira. Agora é que eu sei quanto é amiga dêle.
Era uma saleta insignificante com algumas cadeiras antigas de pau preto, de assentos largos de palhinha amarela. Nas paredes uns péssimos retratos a óleo de uma abadessa, um capitão-mór, uma menina, que podia bem ser a dona da casa na sua juventude, e um vélho eclesiástico já quáse apagado da tela.
-- É aqui -- disse o padre-mestre entrando num pequeno aposento.
Numa cama de pernas torneadas e cabeceira lavrada, sentado no colcháo e encostado a uma travesseira. estava o afilhado de frei Quintino, amarelo, definhado, com os olhos quáse no fundo das órbitas, as orelhas transparentes, o nariz esguio, como se tivesse passado por uma perigosa enfermidade. A roupa da cama cobria-o até meio corpo. Tinha vestida uma camisa de linho, que, desabotoada no coleirinho e nos punhos, deixava ver um pescoço fino, as clavículas salientes e esburgadas, e uns pulsos esqueléticos.
Alêm do leito, o quarto tinha mais uma cómoda de pau preto, antiga, pesado, com fechaduras e puxadores de metal branco: sóbre a cómoda um santuário com uma imagem de Cristo crucificado, em que o judeu do escultor tinha feifo uma carniça horrível, atando-lhe depois à cintura uma pequena toalha de bobinete; aos pés da cruz havia uma Senhora das Dores com o seio trespassado de punhais de prata e em cada face, paradas, duas lágrimas de cristal do tamanho dos olhos. Aos cantos do santuário umas jarras pretas continham pequenos ciprestes artificiais adornados de moeis prateadas.
Mais quatro cadeiras, iguais às da saleta, um baú forrado de couro com tachas amarelas e umas gravuras baratas de Santa Joana. Santo António. S. José e do Bom Jesus do Monte em molduras pouco mais caras que as estampas.
A cabeceira do leito de António estava uma cheia matrona, passante do meio século, mas bem conservada. e. no parecer, mordida de presunçóes pecaminosas. Era a snr. D. Joana, a patrôa , a vèlhota.
O beneditino entrou no quarto, dizendo com voz pouco firme o «Deus seja aqui» habitual, e os seus olhos foram logo para o leito, apesar de lhe sair no encontro a repolhuda enfermeira.
-- Ora viva o snr. frei Quintino, que bem pensei rido nos tornarmos a ver ! -- disse ela em tom quáse festivo, beijando-lhe a manga do hábito.
-- Como tem passado a minha bôa snr.a D.Joana ? -- interrogou êle com o seu modo atencioso mas visivelmente distraído.
-- Ê ociosa a pergunta ! -- disse o padre-mestre. -- Não vês as belas côres que tem ? Esta senhora remoça com o tempo; é o contrário do resto do género humano.
-- O snr. padre-mestre tem coisas que... na verdade... para tudo tem uma graça! -- disse a flamante patroa tôda dengosa. -- O que é pena é o motivo que traz aqui o snr. frei Quintino ! -- acrescentou ela passando do delambido ao magoado.
O frade tinha-se já acercado do leito do rapaz, que, tomando-lhe a máo, titubiou, beijando-a respeitosamente:
-- Dê-me a sua bênçáo, meu padrinho...
-- Deus te abençôe, António -- disse êle solenemente impondo-lhe a dextra espalmada sôbre a cabeça, -- e permita que eu não me arrependa de ter amparado e protegido um ingrato, que, dominado pelo espirito maligno, póde esquecer os sáos príncipios, que bebeu de lábios autorizados, para se arremessar no fogo eterno, em que ardem os suicidas !
António de Pádua ergueu uns grandes olhos espantados para o tio, e acompanhou a pausada objurgalória dêle com o anseio crescente do peito; depois, á última palavra, a mais pungente, segurou-lhe a máo, trémulo, confuso, e rompeu num chôro rasgado, imenso.
-- Perdão, meu padrinho ! perdão ! -- soluçou o rapaz.
Frei Quintino teve de fazer não pequeno esforço para retirar a mão das do afilhado, que lha banhava de lágrimas copiosas, e um esfôrço igual, se não maior, para esconder a comoção, que lhe estava causando aquele desenlace inesperado.
-- É isto ! não se lhe pode dizer nada ! -- acudiu o padre-mestre encolhendo os ombros, ao passo que a snr.a D. Joana corria ao doente a enxugar-lhe o pranto e a dizer-lhe palavras meigas e bôas.
O beneditino pôde convencer-se, durante os três primeiros dias de residência em Barcelos, que não podia, sem responsabilidade imediata pela vida de António, abandoná-lo assim. Por isso resolveu demorar-se ali até o seu completo restabelecimento, voltando com êle para o Pôrto.
Daí, o adiamento na execução do seu audacioso plano. Mas nem uma nem outra coisa estava escrito que sucederia.
VIII
Eles aí véem
Depois da última visita de Rosa às duas solitárias senhoras. Clara, restabelecida já mas convalescente, não se ocupava senão das esperanças, que ela lhe inoculára de isto levar uma volta, e as cousas tomarem aos seus eixos...
-- Porque isto, minha senhora -- acrescentou a ama na sua prosa viva e chá -- não há dúvida que anda há muito fóra dos eixos ! Ora agora, dentro em pouco veremos quem canta o fíei-Chegou! Eu que lho digo é porque o sei !
Era por uma tépida manhá de julho. Clara linha-se erguido, Leonor dispunha as cadeiras na sala e espanava o pó dos móveis, tarefa sua habitual de tôdas as manhãs.
-- Ainda me custa a crêr -- dizia entretanto Clara.
-- Desconfio de tudo, e sobretudo da felicidade. Não, filha, até hoje nada há que nos tenha atraiçoado tanto... se exeptuarmos o snr. frei Quintino.
-- E eu acredito nela, minha querida máe. Há não sei o que, que me diz: «não estejas triste. Alegra-te. Deus Nosso Senhor ouviu as luas orações e compadeceu-se de li.» E Leonor dizia isto cheia de convicção, revendo inocência e candura; depois, abraçando Clara:
-- Ó minha mãe, deixe que vamos ainda ser muito felizes ! Verá !
-- Felizes. Sim; é a tua idade. Nem sequer le lembras de que teu pai está condenado a degrêdo e...
-- Mas êles que o não mandaram até agora... !
-- Criança ! Não o poderão mandar quando lhes parecer ? Tu bem sabes que não costumam prevenir para a viagem. É como estão. Assim os atiram para o fundo dum navio, assim os levam amontoados sem ver sol nem lua, e assim os despejam lá nesses areais. Oh ! o meu pobre Luís !... -- E dai, quem sabe? A voz dum anjo deve chegar sempre ao trono de Deus; e quan'os como tu, minha filha, com o pai na cadeia ou no degredo, não terão juntado as suas orações às tuas, pedindo misericórdia?... Sim... fala-se que véem ai os companheiros de teu primo... Virão?... Ah ! se fósse... Hei-de estar a vê-lo, ao meu querido homem, e ainda me há-de cusiar a crêr !... -- e, encolhendo os ombros: -- Doida ! quantas vezes tenho sonhado nisto para afinal acordar mais desesperada ! ? Há tanto tempo que eu espero !... Depois, parece-me estar ainda a ouvir as últimas palavras daquele frude muu: «Deus é juiz e castiga.» Mas porque nos há-de castigar? qual é o nosso crime ? Jesus ! como se me baralham as idéas !
-- Mãe !
-- Perdoa-me. As vezes chego a ser desagradecida ! Não me lembro que estás ainda ao meu lado para me consolares, e que leu pai, filha, ainda está alí na Relação ! não ! eu não sou tam desgraçada... como o poderia ser !
Clara terminou por soluçar, escondendo o rosto nas mãos.
Mas na escada ouviram-se passos apressados, e uma voz conhecida que chamava a espaços, entrecor- luda pelo cansaço:
-- Minha senhora ! minha senhora !
-- É a Rosa ! -- disseram quáse a um tempo Clara e Leonor, entreolhando-se como a formularem uma intorrogação, em que se podia lêr o espanto e o susto.
Leonor correu à porta da sala.
-- Minha menina ! minha senhora ! -- arfava Rosa nos últimos degraus da escada; e entrando -- Chegaram ! estilo ai ! êles ai estão !
-- Que dizes, Rosa ! Assustas-nos !
-- Ao contrário!-- e deixava-se cair extenuada, coberta de suor, numa cadeira próxima. -- Ah ! não posso mais ! Vim a correr... lodo o caminho ! deixem-me respirar.
-- Pois descansa, descansa... Que será, meu Deus!
-- Mas que foi ? que sucedeu, ama ?
-- Pois não sabem ? não lho disseram já ! Então lá vai: acabou-se a tristeza no Pôrto, acabaram-se as forcas na Praça Nova, acabou-se tudo finalmente !
-- Endoudeceste, mulher? ! -- exclamou Clara, como querendo lêr-lhe no rosto o contrário do que diziam as suas palavras.
-- Não endoudeci, não, minha senhora; apesar de que, o caso não era p'ra menos ! Pois é verdade ! Estava em casa a mourejar na minha vida, e a pensar nesta família, assim Deus salve a minha alma... quando o meu António me entra pela porta dentro todo esbaforido, a dizer que os emigrados não tardavam a entrar pelo Carvalhido...
-- Os emigrados ?! que dizes ?
-- Digo-lhe isto, minha senhora.
-- E o primo Frederico também ?
-- Todos ! todos ! desembarcaram ontem com muita tropa !
Clara estava ansiosa. Queria e receava acreditar no que ouvia.
-- Oh! meu Deus! será possível? -- disse ela com o olhar inquieto, gesticulando e proferindo monossílabos incoerentes, como se procurasse uma objecção, uma dúvida a opôr, e rematou finalmente: -- Mas, sim... dize-me: que véem êles cá fazer?
-- Que véem cá fazer? Véem pôr êstes... êsses malditos todos daqui p'ra fóra, o Senhor me perdôe ! Véem dar-lhe o seu marido, que êsses déspotas lhe tinham sentenciado ao degrêdo, véem trazer-lhe o seu sobrinho, que estava condenado a não tornar cá, véem restituir-lhe a sua fortuna, que Csses ladrões lhe tinham roubado!... Ainda acha pouco, minha senhora?
-- Não ! não ! O que eu acho -- disse ela com riso e lágrimas a um tempo -- é que é muita felicidade junta... que não posso nem quero acreditar nisso ! -- e excitada, nervosa, prosseguia, elevando a voz: -- Não ! é uma história ! E o desengano vai ser a minha morte ! É impossível ! não quero crêr ! não e não ! Querem matar-me ! -- e caiu extenuada numa cadeira.
Leonor correu a abraçá-la.
-- Minha senhora, então porque se aflige? Acredite que não é mentira, sossegue; o meu António lá foi esperar a tropa, e, quer saber mais? ouvi dizer no caminho que iam abrir a Relação p'ra soltar os presos, coítadinhos !
-- Mas juras-me ? juras-me que não mentes ? que é verdade tudo isso ? -- exclamou Clara, erguendo-se da cadeira, ansiada.
-- Juro, sim, minha senhora.
-- Vem cá -- acrescentou ela, lomando-a pela mão e levando-a defronte dum crucifixo, que tinha na parede: -- Juras por êste Senhor ? -- interrogou fitando-a. -- Olha o que dizes !
-- Juro !
-- Ah ! agora sim ! Agora acredito ! Mas... falta-me o ar, abram-me a janela... -- Rosa correu a abrir a janela. -- Meu Deus ! Se fôsse um sonho ! Não é, pois não? Diz tu, Leonor, diz tu, Rosa; é verdade tudo, tudo, não é assim ? o Frederico chega aí; o teu pai vai sair da cadeia, nós ainda vamos ser felizes... É verdade isto ?
Depois, interrompendo-se, com explosão, cheia de dúvida:
-- Mas digam ! não falam ?! Desenganem-me ! Eu estarei douda ?
-- Douda?! Pois se é tudo assim, minha mãe!
-- Sossegue, minha senhora, sossegue ! -- disse a ama; e voltando-se para Leonor, num tom que julgava não ser ouvido de Clara, observou:
-- Ora queira Deus, que tanta fortuna junta não traga desgraça maior.
-- Que dizes. Rosa ? ! -- apostrofou Clara, em quem as noticias daquele dia, recebidas de chofre, inesperadamente, haviam desprfado uma certa desconfiança, naturalíssima em tais casos. -- Pois ainda elle não chegou e já estás p'ra aí a falar em desgraça ?
-- Não era isso, meu Deus ! O que eu dizia era que a senhora deve estar mais sossegada, que lhe pode fazer mal tamanho alvorôço; basta-lhe não estar ainda restabelecida inteiramente.
-- Sim. Tens razão... Até porque me sinto atordoada, e as fontes da cabeça batem-me com muita fôrça...
-- Então, já vê, minha senhora... Mas adeusinho: ia-me esquecendo de que prometi ao meu homem de ir ter com êle à Ramada Alta e já me tenho demorado bastante.
-- Se nós fôssemos também... ! -- observou Leonor, timida, còrando levemente.
-- E teu pai, filha?... Não. Olha; a Rosa que indague se vem o teu primo... E depois, nós ainda vivemos na mesma casa, e não deixará de correr aqui. Vai, Rosa, não te demores -- e ao mesmo tempo, apertando a fronte com as mâos ambas, murmurava: -- A minha cabeça ! a minha cabeça ! a minha cabeça !
-- Pergunte por êle a todos, sim? -- dizia ao mesmo tempo Leonor à bôa mulher, escondidamente, a meia voz. -- Alguém por fôrça o há-de conhecer.
-- Farei todo o possível -- tornou a outra; e a caminho da porta já, ia-se despedindo: -- Adeus, minha senhora, adeus, menina. Talvez até êles estejam aí a chegar.
-- Adeus, adeus.
Saiu.
Leonor, que tinha acompanhado a ama até à porta, voltou a abraçar a mâe.
-- Que lhe dizia eu, minha querida mãe ? Ah ! que me não enganava o coração !
-- O teu coração, Leonor ! -- disse Clara com um triste sorriso, abanando a cabeça. -- O teu inocente coração nunca chegou a suspeitar o abismo, que tinha- mos a nossos pés ! Oh ! horrorizo-me só de o pensar !... Espera; ouço gente na rua; vai ver... Eu não tenho fôrças.
Leonor foi à janela.
-- É povo que vai a correr, minha mãe; homens e mulheres.
-- A correr ? ! -- repetiu Clara levando a mão à testa com uma expressão de angústia -- a fugir, talvez ?
-- Nada, não. O que êles não teem é cara de mêdo -- tornou Leonor debruçando-se na janela. -- Parece que vão mas é para uma festa...
IX
Calas e crépes
Amanhecera o dia 9 de julho, memorável nos fastos da história liberal portuguesa.
Em tôda a noite que precedera aquela formosa madrugada, atravessaram n ponte de barças pousada sôbre o Douro para a outra banda, apressados, confusos, em tumulto, grupos de indivíduos de ambos os sexos, famílias numerosas, autoridades civis e militares, empregados públicos, frades de tódas as ordens, diversas récuas de machos carregados de baús e ainda entre as cargas mulheres e crianças chorosas, homens de tódas as condições soltando pragas e ameaças, além da guarnição da cidade, fugindo tudo nos malhados, que, segundo se dizia, tinham desembarcado muita tropa ai perto de Vila do Conde, no vasto areal do Mindelo.
Por último, como ainda não se reputavam em segurança, as autoridades fugitivas ordenaram a destruição da ponte.
Pela manhã do dia 9 o Pôrto estava limpo de rialistas, e a notícia da chegada das fôrças libertadoras, tendo circuludo com rapidez, alvoroçou a população da cidade liberal por excelência, e fez afluir à Ramada Alia e ao Carvalhido, ponlos por onde o exército devia fazer a sua entrada, imenso concurso do povo alegre, cantador, satisfeito como se fôsse para uma grande romaria.
Os edifícios das ruas por onde deviam passar as forças, e ainda muitos outros, estavam adornados de colxas, c nas varandas e janelas aglomeravam-se as senhoras portuenses, ostentando nos láços de fita, que lhes adornavam o peitilho do vestido afogado, os côres azul e branca, até àquele dia uma provocaçôo, um atentado, um crime.
Era um borborinho, uma vida, uma animação por aquela rua de Cedofeita e confluentes, de que não havia memória. Quando, porém, o entusiasmo tocou as raias do dilirio, foi ao atravessar a cidade pelas 8 horas da manhã, em direcção à Praça Nova, a vanguarda de caçadores 2 e 3, comandada pelo tenente-coronel Shwalbach, ao som do hino liberal. Os vivas cruzavam-se de tôda a parte, as senhoras acenavam com os seus lenços, e por muitas faces tisnadas pelo sol do exílio e vincadas pelo sofrimento, correram, como um refrigério, lágrimas de uma comoção feliz.
Na Praça Nova, onde formou a fôrça, ergueram-se novos e entusiásticos vivas à Liberdade, à Rainha e á Carta, correspondidos pelos intrépidos soldados e pelo imenso povo que tinha acorrido; e como ainda estivessem ali, ao alto, como um insulto de pungente memória, os postes e os estrados manchados de sangue, onde homens de bem tinham expiado o crime das suas idéas generosas, alguém de entre a turba gritou:
-- Abaixo as forcas !
E mil vozes repetiram:
-- Abaixo ! Abaixo as forcas !
Num momento, as forcas, o único legado de um govêmo, que não existia já, e que na véspera ainda se apoiava nelas, como garantia da sua popularidude, desapareceram da praça não restando mais do que um monte de lenha.
Depois, como a faina de acabar com aquela recordação do passado estivesse no fim, alguém lembrou-se de gritar:
-- À cadeia ! à cadeia ! Viva a liberdade !
A turba repetiu, frenética. E logo se destacaram grupos numerosos de populares, que, no meio de aclamações e vivas, correram à Relação.
Não havia guardas às portas.
E o carcereiro desde a véspera que tinha desaparecido.
Havia, porém, fechado os cárceres e sumido as chaves.
Arrombaram-se as portas, e os presos políticos, que, tanto ali como nas restantes cadeias de Portugal, consituiam o maior número dos criminosos, saíram para o ar puro, para o sol vivificante, para a liberdade emfim. As aclamações eram frenéticas, e conhecidos e desconhecidos abraçavam-se como irmáos.
Foi tam inesperado êste desenlace para Luís Maria, que por muito tempo lhe custou a acreditar no que estava presenciando.
De repente acudiu-lhe uma idéa horrivel.
-- E se tudo isto é uma cilada, e ao transpormos a porta nos fuzilam desapiedadámente ?
Alimentando esta desconfiança, que o procedimento dos bons defensores do trono e do alar autorizava, deixou seguir os seus companheiros adiante de si. Por fim, pensando na mulher e na filha, animou-se a sair.
A porta da cadeia, espiando, silenciosos, de espingardas aperradas,- no meio da turba, estavam alguns populares, três ou quatro seriam.
Tinha Luís Maria dado alguns passos fóra do edifício, quando ouviu súbito esta voz:
-- Êle lá vem !
E três ou quatro tiros partiram ao mesmo tempo.
Voltou-se, por um movimento rápido.
Acabavam de matar o carrasco Joáo Branco, o mesmo que em 1829 tinha enforcado os infelizes liberais nos patíbulos da Praça Nova, e decepado as cabeças, dirigindo-lhes a elas, mornas, lívidas, espasmódicas, gestos de escárnio e de desprêzo supremo.
«Esta acção de tanto tempo premeditada -- escreve um cronista da época -- e agora levada a eleito com tanto sangue frio, uma vez executada, os seus autores apressadamente se retiraram, e uão houve mais bofetão.» Quem eram êles ? -- Pais, filhos, irmãos ou amigos das vítimas torpemente insultadas? -- Ninguém o soube dizer.
Entretanto, convencido já de que era livre, completamente livre, Luís Maria, mugro, de olhos fundos, com a barba crescida, irregular, branca, e o cabelo emmaranhado, sem chapéu, com um vélho casaco rólo nos cotovelos, apertado até cima, escondendo a camisa suja, e com uns sapatos esburacados nos pés, correu a casa, pensando na felicidade imensa que aqueles dous entes queridos, a mulher e a filha, iam experimentar ao cabo de tam prolongados sofrimentos. O seu aspecto era de um doudo fugido ao hospital.
Nas ruas que percorreu, encontrou a alegria, o contentamento, a intima satisfação desenhada em todos os rostos. Muitas pessoas, que o reconheceram, paravam. Ele não as via.
Quando chegou ã porta de casa, antes de entrar, encostou-se à umbreira de pedra. O coração batia-lhe com tal violência que parecia querer saltar-lhe do peito; larduva-lhe a respiração e um crepe negro esvoaçou-lhe por diante dos olhos.
Só passados instantes recobrou as fôrças perdidas.
Atravessou o portal, apressado, quáse a correr.
Clara, sentada, com os olhos meio fechados, dizia à filha:
-- Leonor, cerra um pouco essas janelas. A luz do sol faz-me dobrar estas horríveis dores de cabeça.
-- E porque não se deita, minha mãe? -- interrogou Leonor, obedecendo.
-- Depois... depois... Deixa vir teu pai; depois irei para a cama, porque...
Clara susteve-se. Subiam rápidamente a escada, galgando os degraus dous a dous.
-- Quem será, meu Deus ?!
-- Clara! Leonor! minha filha ! -- bradava uma voz.
E logo irrompeu na sala a figura transtornada de Luís Maria.
-- Meu pai ! -- gritou Leonor, correndo a êle.
Clara ergueu-se de salto, num ímpeto, com os olhos esbogalhados, os braços para diante, a bôca aberta; quis andar, faltaram-lhe as pernas, quis falar e apenas articulou numa voz gutural, entrecortada:
-- Lu...u...ís !
E cafu pesadamente no chão, como um móvel que se desequilibra.
Luis Maria correu a erguer a mulher, e, com ela nos braços, recuou.
Clara linha os olhos abertos, imóveis, baços, a face congestionada, de uma côr vermelha, cambiando para rôxo, as maxilas unidas por um esfôrço violento, os braços e as pernas inteiriçados, na garganta um pequeno estertor: depois -- uma convulsão, um suspiro...
Luis Maria sentou-a no canapé, chamando-a pelo nome, beijando-a; Leonor abraçava-a, em alto chóro. A cabeça inerte caiu-lhe sôbre o ombro esquerdo. O corpo, obedecendo àquele movimnto, pendeu também para essa banda.
Estava morta.
Algumas horas passadas, por volta do meio dia, sob os raios ardentes de um sol esplêndido, entrava o grosso do exército liberal na cidade -- um punhado de homens -- e dispersava pouco depois de ter formado nu Praça Nova. enlre as aclamações do povo.
Lá vinha também Frederico.
Denunciando no avincado e na magreza do rosto sofrimento e privações, no tostado da pele a inclemência de sóis ardentíssimos, no desalinho completo dos cabelos compridos e das barbas crescidas o abandôno, conservava ainda as suas feições acentuadamente viris e simpáticas; o seu porte eru distinto, e dos olhos, rasgados e negros, irradiava-lhe entusiasmo, inteligência e lialdade.
Tôda aquela marcha pausada, regular, em passo ordinário, como se diz nas vozes de comando, e em seguida a parada, chegaram a impacientá-lo. Sentia, é certo, as profundas comoções, os grandes abalos que experimenta o desterrado de anos ao pisar o terra dn sua mocidade, ao reconhecer os logares, as ruas, os edifícios, que tinha deixado sem esperanças de tornar a ver, mas, dominando tõdas essas sensações veementes, estava a ânsia de abraçar Luís Maria, de beijar a mfio de Clara, de ver Leonor, a sua noiva prometida.
Por isso, apenas os deveres militares lhe deram a desejada liberdade, correu a casa de seu tio.
A porta estava cerrada, triste prenúncio; mas Frederico nem alentou nisso; empurrou-a precipitadamente e subiu o primeiro lanço de escadas.
Era tudo silêncio.
Parou repentinamente e pôs-se à escuta, suspensa a respiraçáo.
Apenas do primeiro andar lhe veio o som abafado de pequenas marteladas freqúentes.
Subiu alguns degraus com a fronte a rever-lhe um suor frio.
Da porta da sala, meia aberta, saía um clarão avermelhado, como duma forja. As pequenas marteladas surdas continuavam a ouvir-se.
Subiu trémulo, arquejante.
Ao fundo da sala, entre as duas janelas e sôbre uns mochos de pau, eslava um esquife e nêle o cadáver de Clara, amortalhada no seu hábito de noviça do convento onde tinham deslisado os primeiros anos da sua' juventude piedosa e serena. Um lenço cobria-lhe o rosto, vedando-o ao enxame de moscas, que lhe zumbiam à volta, adivinhando a podridôo.
À cabeceira, sôbre uma banqueta adornada com uma toalha de rendas, estava um crucifixo alumiado por duas velas de cera. Aos cautos do esquife ardiam, com uma chama fumosa e desigual, quatro grossas to- cheiras.
Um homem, sem chapéu, em mangas de camisa, com as costas pura a porta, sôbre uma escada de mão, forrava a sala de baetas pretas, segurando-as com alfinetes e taxas, que pregava na cornija de madeira.
Frederico ao assomar à porta, diante daquele funebre espectáculo recuou sufocado; mas ocorreu-lhe se se teria enganado na porta... Havia tanto tempo que não entrava em casa !...
O armador; ao ouvir passos, voltou-se sôbre a escada.
-- Queria alguma coisa ? -- disse-lhe êle.
-- Mora aqui... o snr. Luís Maria? -- interrogou o emigrado confuso, trémulo.
-- O snr. Luís Maria ? Não há um quarto de hora que o levaram daqui mais à menina.
-- E... a mulher dêle ? -- interrogou ainda Frederico sem ousar descer os olhos para o caixão mortuário.
-- Essa é a defunta -- respondeu o armador do não da escada, apontando para o corpo amortalhado.
O académico despediu um som gutural, um gemido rouco, abafado, e correu a erguer o lenço que cobria o rosto do cadáver. Clara tinha os olhos meio cerrados, a face opada, lívida, o nariz afilado, os lábios entreabertos, mostrando os dentes.
Frederico empalideceu horrivelmente, retirou a vista do cadáver, passou a máo pelos olhos, voltou depois a contemplá-lo, e balbuciou:
-- Mas... parece um sonho !...
Por fim ajoelhou ft beira do esquife, onde permanecia estirada, na gélida impassibilidade da morte, a que lhe tinha sido máe pelos extremos de amor e carinho; tomou-lhe uma das mâos enclavinhadas sôbre o peito e heijou-a com fervor, inundando-a de lágrimas silenciosas. Por fim ergueu-se, contemplou ainda por instantes aquele rosto desfigurado, sem expressáo, e disse consigo:
-- Vamos... Vamos aonde serei mais preciso.
E informou-se da casa para onde tinham levado Luís Maria e a filha. A porta da sala fitou ainda no cadáver um húmido olhar de despedida, e desceu as escadas lentamente.
Fóra as músicas atroavam os ares com os seus hinos, as torres de algumas igrejas repicavam alegremente e os populares nas ruas erguiam vivas ruidosos.
Na Sé dobrava a finado.
EPÍLOGO
Lutas civis
A entrada do exército libertador no Pôrto, como é sabido de todos, seguiu-se, com pequeno intervalo, o longo cérco de catorze meses, que as fôrças absolutistas de D. Miguel puseram à cidade.
não traremos para aqui a menção, quáse fabulosa, dos heroísmos praticados pela mito cheia de homens, que escassamente gunrneeiam as trincheiras liberais, e dos arrojos patrióticos juntos ti perseverança inabalável dos seus habitantes em os coadjuvar e socorrer, fazendo causa comum e única. O nosso propósito entrando nesle assunto, 6 referir o episódio com que fecharemos a presente nnrrativn mais histórica do que romântica.
Antes, porém:
O golpe, que tam rudemente feriu Luís Maria, enchendo-lhe de noute o espirito, que o primeiro arrebol da liberdade havia inundado de luz, prostrou-o por muito tempo, mergulhando-o numa profunda tristeza.
Leonur tratava de consolar o pai, cercando-o de caricias, de mimos, de atenções, como querendo aliviá-lo do pesado fardo de tristeza, que o oprimia.
Frederico envergava a farda gloriosa de caçadores 5, e tinha conquistado na acção de Ponte Ferreira -- catorze dias depois de terem entrado no Pórto êle e os seus camaradus do exilio -- com as divisas de sargento, menção especial na ordem do dia.
Entretanto o seu amor, que o triste sucesso da morte de Clara como que havia encerrado num parêntesis lutuoso, tendo aumentado com a ausência redobrara na volta; mas nunca perturbou a mágoa que pungia o coração do antigo negociante da rua das Flores, lembrando-lhe a promessa teita no momento em que partira para o exílio, e que nunca mais esquecéra.
«Todas as minhas ambições se limitam a vê-los unidos paru sempre -- tinha-lhe êle dito -- porque estou certo de que os farei a ambos felizes.» Mas uma vez que Frederico tinha de entrar em togo, foi Luís Maria que lhe disse, ao ver a comoção com que se despedia de sua prima, em cujos olhos bailava uma lágrima.
-- Vem cá.
E levou-o para a saleta próxima.
-- Duas palavras somente, Frederico -- prosseguiu.
-- Sei que não deixaste nunca de amar tua prima, e por amor dela e de ti, foi que eu passei treze meses num cárcere e tua tia morreu. Se tivesse transigido com êsse frade ambicioso, cedendo para o alilhado, o preço da minha tranquilidade, u mão de tuu prima, nada teria acontecido, nem estaríamos quáse pobres. Não se trata, porém, disso. O passado passado -- acrescentou Luís Maria despedindo um suspiro. -- O que eu te queriu dizer é que resolvi que o teu casamento com a Leonor se fizesse só depois destas cousas serenadas. Compreendes, meu rapaz, que, estando diáriumente sujeito a uma bala ou ao caco de uma granada inimiga, seria demasiado cruel fazeres uma viúva no dia seguinte ao das tuas bõdas. Isto, como vês, não impedirá que se amem ou que tenham igual esperança no futuro. Que pensas, Frederico?
-- Penso que o tio tem tôda a razão; e agradeço-lhe do fundo da alma as bóas palavras que lhe acabo de ouvir.
Mas ao longe ribombava a artilharia e os sinos tocavam a rebate, sinal de que as fôrças inimigas atacavam as trincheiras. Frederico tomou a espingarda e abraçou Luís Maria, dziendo-lhe:
-- Até logo.
E desceu as escadas correndo.
Quando voltou da refrega trazia um braço ao peito e o hábito de Cristo na farda. Condecorára-o nas trincheiras, depois do ferimento, o imperador, coronel do seu batalhão.
-- O que eu sinto -- disse o valente moço -- é não poder entrar em fogo tam cedo !
-- Que tem ? não te aflijas. Irei eu em teu logar. Ainda posso com uma espingarda. Quero também bater-me um dia.
-- Isso é que não, meu tio ! Nem eu o consentiria, nem o snr. o deve fazer.
-- Tens mêdo que me acabem de matar? Mas se assim fôsse, não faziam mais do que levar até final a tarefa que tinham principiado. E porque não a acabaram êles!? Que faço eu no mundo?...
-- Vejo que não se lembra de que é pai de um anjo, que Deus lhe deu para o acompanhar e fortalecer nestas horas de desânimo.
-- Tens razão; o desgôsto profundo de nós mesmos leva-nos até a ser ingratos com a Providência. Mas, se eu faltar, não lhe faltarás tu, que é o essencial. O meu braço já não pode proteger ninguém, e o teu é forte e vigoroso. Sim ! Preciso de saldar a minha divida com a liberdade. Quero dar-lhe éste pouco de vida que me pertence, e que de nada vale. Irei para as trincheiras.
Neste lance do diálogo entrou Leonor, que se dirigiu naturalmente para o pai.
-- Vamos. E é capaz de repetir diante dela o que neste momento acaba de me dizer?... -- perguntou Frederico, acentuando nestas palavras um tom de censura amorável.
Luís Maria abraçou-se na filha e soluçou:
-- Perdoa-me !
Quinze dias depois, -- na memorável defesa da cidade, a 29 de setembro daquele ano de 1832, em que não houve soldado liberal, que não se fizesse um herói, tam porfiada e desigual foi a luta de um para dez --, já Frederico, ainda convalescente, se empenhava, como um leão, no combate e merecia de novo o elogio dos seus superiores.
Havia uma só ocasiáo, em que se lhe varria do espírito a idéa da prometida felicidade: -- era diante dos que representavam os princípios, que o tinham arremessado a file para o destêrro, ao tio para o cárcere e a Clara para a sepultura, deixando Leonor órfá dos carinhos de mãe.
-- És arrojado, Frederico -- disse-lhe Luís Maria, depois de lêr na ordem do dia, entre os nomes dos que se tinham distinguido na refrega, o do sobrinho. -- Convêm todavia que não sejas temerário. Não deves esquecer que eu estou vélho e que trouxe da cadeia a minha saúde perdida. Posso faltar dum instante para outro, e tens sóbre os teus ombros vim grande encargo, o futuro dn tua prima. Nfto quero insinuar-te com isto -- Deus me defenda, -- que fujas ao perigo, se o acaso to deparar; nunca te aconseihurei uma covardia; lembro-te apenas que é uma loucura desafiá-lo correndo ao seu encontro. Ora pois; promete-me não desperdiçares o teu valor, arriscando a vida em arrojos de todo o ponto inúteis, e cujo têrmo seria necessáriamente fatal.
Invertiam-se os papeis, e era Luís Maria quem agora invocava Leonor.
-- Cumpro com o meu dever e com o juramento que prestei, meu tio.
-- Nem um nem outro podem exigir de ti um crime, Frederico. Ninguém te diz que não combatas; peço-te que não te faças matar; e esse pedido não é só em meu nome e no da tua noiva, já que tam pouco valemos -- o mancebo fez um gesto negativo, -- é também em nome da liberdade, à qual prestarás decerto mais serviços manejando a espingarda até final, do que fazendo-te precipitar num fôsso, varado por uma bala mais dia menos dia. Agora, se tôdas estas razões não te levam a ser menos imprudente em face do inimigo, diz-mo com franqueza para ir dispondo tua prima a tomar o véu num convento.
Luís Maria era solene e triste ao dizer eslas palavras.
Daí em diante, Frederico foi bravo, sem temeridade, foi prudente sem covardia, e as balas tanto nas trincheiras como em campo razo dir-se-ia que respeitavam aquele moço firme e resoluto.
Mas o cêrco apertava-se, como um cinto de ferro e de fogo erriçado de baionetas, em volta da cidade, onde havia oitenta mil famintos, -- e então começaram as sortidas frequentes sôbre o campo inimigo com o duplo fim de destruir os seus trabalhos de sitio e abrir caminho aos viveres com que temporáriamente se abasteciam os mercados vazios.
Assim, o dia 17 de novembro foi um dos destinados para tam arrojada empresa.
A sortida fez-se sôbre tôda a linha inimiga da parte do norte.
Caçadores 5. saindo da sua posição, teve ordem de ocupar a altura das Antas, desalojando o piquete inimigo que ali estava, ao tempo que outras fôrças ocupavam a respectivas posições de ataque, alongando-se desde a estrada de Valongo, na ourela do monte, até no forte do Covêlo, na linha de Paranhos.
Foi um dos belos feitos êste da campanha liberal, entre tantos de que é fértil a sua história durante o cêrco do Pôrto.
As fôrças da cidade, convenientemente dispostas, atacaram o inimigo, muito mais avantajado em número e em posições excelentes, com uma disciplina e intrepidez dignas da causa que defendiam, -- por tal forma que dentro em pouco, depois de uma breve resistência, elas incendiavam os seus acampamentos e destruíam, arrasavam os seus redutos, as suas baterias, os muros e as casas, que podiam mascarar-lhe os movimentos ou os futuros trabalhos.
Frederico foi digno da distinção que lhe ornava o lado esquerdo da farda, tornando-se notável entre os seus bravos camaradas pela palavra e pelo exemplo.
Sucedeu, porém, que, transpondo uma parede, já dentro do acampamento realista, estacou pálido, indeciso, ficando à reetaguarda por alguns segundos.
A dous passos, de costas sôbre o pedregulho, com uma ferida no peito, molhado de sangue, eslava o corpo de um homem na posiçõo contorcida do agonizante, que luta desesperadamente com a morte. Tinhn espuma aos cantos da bóca, e as pálpebras arregaçadas deixavam ver umas pupilas imóveis, sem brilho.
Vestia um hábito negro apanhado nn cinta, e do pescoço pendia-lhe um crucifixo de metal, que o sangue havia tingido. Ao lado, caída, estava uma clavina aperrada.
Aquele homem era frei Quintino.
Frederico reconheceu-o logo. Passado o momento de surprêsa, debruçou-se para o observar melhor, apoiando-se no cano da espingarda, cuja coronha apoiou no monturo; mas a cometa deu o sinal de reùnir, e êle, vibrando-lhe um derradeiro olhar de asco, disse por entre os dentes:
-- Morreu como um herói, o infame !
E partiu a juntar-se aos camaradas.
No têrmo da luta com a opressão, Frederico tinhna mais duas cicatrizes, uma outra medalha e o galão de tenente nos punhos da farda.
Casou com Leonor -- emfim !
Luís Maria, ao regresso dos noivos, abraçando-os, dizia entre riso e lágrimas de satisfação:
-- Vi quanto queria: a guerra civil terminada, o meu pais livre e vós dous unidos; agora sim ! posso morrer descansado.
Na verdade, parecia esperar por aquele tríplice desenlace para se despedir dêste mundo.
No ano seguinte Luís Maria expirava sem luta, sem esfôrço, como uma luz que se apaga á mingua de óleo, minado de saudades pela mártir, que a alegria de o ver tinha fulminado de morte.
Frederico tem hoje uma patente superior no exército.
António de Pádua, o quáse suicida por amor, tratou de escapar-se para o Brasil por um dos portos de Espanha ao tempo em que andava mais acesa a guerra civil, e conseguiu amontoar algumas centenas de contos de réis. Hoje é um dos mais ardentes caudilhos da democracia brasileira, ocupa um logar eminente na maçonaria -- elle, o afilhado de frei Quintino da Expectação. -- e, apesar dos seus cabelos brancos, combate com o vigor e a lucidez dos vinte anos o nefasto império dos padres.
Quem falta mais?... Ah!
Meus senhores: tenho a honra de lhes apresentar a snr.a Rosa Joaquina -- a ama de Leonor, -- bôa vélhinha dos seus oitenta e cinco janeiros, tôda engelhada e risonha, a quem devo a crónica dos seus sucessos, que venho de pór em escritura.
-- Por outros tantos ainda, snr.a Rosa, e nós que lhos contemos.
Appendix A
(1) Vid. Correio do Pôrto, folha rialista da época.
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- TextGrid Repository (2023). Portuguese ELTeC Novel Corpus (ELTeC-por). A infâmia de Frei Quintino: Edição para o ELTeC. A infâmia de Frei Quintino: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001D-44C2-9