ALFREDO MESQUITA

A RUA

DO OIRO

ROMANCE LISBOETA

LISBOA

LIVRARIA EDITORA VIUVA TAVARES CARDOSO

Largo de Camões, 5 e 6

1905

I

Já as Camaras estavam abertas, havia quasi dois mezes, quando cheguei a Lisboa, numa enevoada quarta-feira de Comadres, com grandes ameaços de chuva, e um vento fórte, ás lufadas, que já dos lados da Barra soprava e espalhava no céo as cinzas de um aguaceiro, e me levava o chapéo de côco de rebolão, pela ponte da Alfandega, onde desembarcámos, até á casa do Despacho, onde deviamos esperar as malas.

Tinhamos que esperar por essas malas!

Eu devia achar-me em Lisboa, segundo os meus calculos e os dos meus amigos politicos, desde os fins de dezembro, para comparecer nas Côrtes logo no dia da abertura, e acompanhar desde esse dia, com muita assiduidade e zelo, todos os trabalhos parlamentares.

Para isso havia eu recebido aquelle muito honroso mandato!

Era bem certo, porém, como sempre ouvira dizer a minha Tia Maria da Assumpção, senhora de amplas nadegas e de profundos conceitos -- que o homem punha e Deus dispunha. Uma inesperada angina pectoris surprehendera-me na vespera da partida, já com a roupa mettida nas malas e a passagem tomada no paquete.

Estive dez dias de cama, com febre de trinta e oito graus, cinco cobertores de papa, e duas tias á cabeceira: a minha querida Tia Genoveva Sampaio do Amaral d’um lado; e a minha presada Tia Maria da Assumpção Carneiro de Amarante, do outro.

Ao decimo dia tive alta, que me foi dada pelo complacente Doutor Tristão, o mais alegre facultativo que tem exercido clinica com a carta do curso da Escola Medica da Madeira, e que era o medico da nossa casa desde que eu me entendia -- mesmo já antes de eu me entender -- pois fôra elle quem assistira aos ultimos momentos de minha Mãe, que Deus haja, viuva ao Sexto mez de gravida, e victima, depois, de uma peritonite puerperal, sobrevinda ao parto infeliz de que eu vim ao mundo.

Mas se eu fizera mal em pedir alta, peor fizera o Doutor Tristão em m'a conceder promptamente -- sempre muito receioso de que o doente podesse suppôr ter elle empenho em demorar a doença para augmentar a conta das visitas.

Quiz abreviar a convalescença, sahi de casa ao segundo dia depois de deixar a cama, apanhei humidade e recahi com febre ainda mais intensa.

Minhas Tias, embora se guardassem bem de m'o dizer, tinham tido com essa recahida um muito intimo jubilo.

A Tia Genoveva, irmã de minha Mãe, e a quem minha Mãe pedira, á hora da morte, apertando-lhe muito ambas as mãos, e já com o vidro dos seus claros olhos azues embaciado -- que não me desamparasse e me amasse tanto como ella decerto me teria amado, se tivesse vivido-- a Tia Genoveva, dizia eu, fôra das quatro filhas do Desembargador Manoel Augusto Soares do Amaral, a unica que se conservara solteira, e que muito propositadamente quizera ficar para tia -- para minha tia, tendo sido a mais formosa das quatro irmãs, e a mais requestada de todas ellas, já pelas condições de excepcional encanto com que a natureza a dotara, já pelas condições de desusada fortuna com que a dotara João Maria Soares do Amaral, que tendo voltado do Brazil com uma riqueza e um ataque de béri-béri, apaixonára-se tambem por a sobrinha, mas guardara comsigo o segredo d'essa paixão, de que só se veiu a saber quando se lhe abriu o testamento, em que elle constituia minha Tia Genoveva sua universal herdeira...

Tanto a peito esta bondosa Tia tomou o meu triste caso de pequenino orfão desamparado, que só me não deu maminha porque não poude; pois de tudo o mais quanto sabe dar-nos em cuidados, caricias e cueiros sempre frescos, um verdadeiro amor de mãe, a Tia Genoveva foi prodiga, e só comparavel, nesses extremos por mim, áquella nossa velha gata maltêsa Mangerona, que d'uma vez creou e acarinhou com muito enleio materno, a um canto da estrebaria, uma ninhada de patinhos cinzentos, como se fosse uma ninhada de gatos.

Quando eu nasci, tinha a Tia Genoveva vinte annos, engrinaldados de purezas e de encantos simples, como de rosas brancas de toucar. O luto de que ella se cobriu por morte de minha mãe, ainda mais pôz em realce a formosura da sua pelle clara e dos seus cabellos loiros, e mais amavelmente contornou as maciesas redondinhas do seu busto.

A nossa casa, que ainda hoje é a mesma, ficava situada no caminho do historico castello de São João Baptista, onde se achava aquartelado o regimento; e como por ali transitasse, todos os dias, á ida e á volta do serviço, a briosa officialidade de Caçadores 10, era de vêr, segundo ainda hoje se conta na familia, a chamma que brilhava no olho dos alferes, quando passavam, arrastando e tilintando as espadas, por baixo das nossas janellas, e a Tia Genoveva assomava, descuidosamente, a alguma d'ellas.

Depois, quando se abriu o testamento do Tio João Maria, e a noticia da herança correu de serra em serra como corre uma levada, já não eram só os alferes, eram outros officiaes de patente superior, majores e coroneis, que chegavam a pedir transferencia de regimento, e vinham, todos empennachados, passar por baixo das nossas janellas, com um barulho guerreiro de esporas e de espadas, como nas cargas rutilantes dos grandes quadros de Détaille!

Houve um momento em que o espirito occulto da Tia Genoveva influiu poderosamente na Ordem do Exercito.

E num dia de grande gala, em que o regimento sahia do Castello para vir formar em frente da Sé, onde havia Te-Deum, ao passar por casa do Desembargador Amaral, ruidosamente a banda rompeu o Noivado do Sepulchro, que era a musica predilecta da Tia Genoveva.

Tia Genoveva, porém, apenas sorria, muito á flôr dos labios, da maluqueira amoruda em que a sua pessoa lançava tanto official superior.

Debalde as Primas Rochas e as Primas Noronhas, e o Primo Theodosio, secretario dos amantes e da Administração do Concelho, diligenciavam estimula-la ao amor, com aquelle empenho que tiveram sempre em arranjar casamentos, para sempre andarem mettidos em bodas e em baptisados.

Em vão lhe preparavam ciladas de namoro, combinando entrevistas, entregando lhe missivas perfumadas, levando-lhe declarações e amores perfeitos espalmados entre folhas de livros de missa.

Com um leve gesto de recusa, a Tia Genoveva sacudia-os a todos, galhofando; e eram para mim, só para mim, exxlusivamente para mim, a festa dos seus affectos e a prodigalidade dos seus mimos.

Tive sete amas, e todas ellas de freguezias diversas, porque desde que alguma se queixasse de uma dôrsinha no peito, ou acontecesse endefluxar-se nalguma corrente de ar, logo a Tia Genoveva a despedia, para que o leite perturbado não me contaminasse de algum mal, e contractava outra.

Corri tres collegios, e todos elles de meninas, antes de ser admittido a exame de instrucção primaria.

Todo o meu curso do Liceu o fiz com sentinella á vista, tendo sido necessario para a realisação d'este complicado desideratum da Tia Genoveva, que o Reitor auctorisasse a entrada nas aulas, como alumno livre, ao Manoel Ignacio, creado velho da casa de meu Avô, que andara com minha Mãe e minhas Tias ao collo, e agora me acompanhava á mathematica e á fisica, para tomar conta em mim, não perder de vista um unico dos meus movimentos.

Tinha quinze annos quando acabei o curso, e todo um anno mais se passou antes que a Tia Genoveva se decidisse a separar-se de mim e a mandar-me para Coimbra cursar Direito, que era o meu sonho doirado de bacharel embrionario. Ainda se fosse viavel a idéa, que a boa senhora chegou a expender, de mandar o Manoel Ignacio acompanhar-me durante a formatura!...

E como depois que me vira embarcar, muito recommendado ao capitão do navio e ao dispenseiro de bordo, nunca mais me tornara a ter junto de si senão durante o breve tempo de férias, agora, que eu regressara á Ilha, com o meu curso e com o meu diploma, feito doutor e homem feito, ella não se atrevia já a exercer sobre mim a mesma carinhosa vigilancia d'outros tempos, que era bem uma perseguição, mas uma dôce perseguição; e chegava então a rejubilar com os meus incommodos de saude, desde que esses incommodos me obrigassem a não sahir de casa, sem que todavia tomassem o mais leve aspecto de gravidade.

Quanto á Tia Maria da Assumpção, o motivo que a prendia á minha cabeceira, e o seu particular contentamento de me vêr assim prostrado no leito da dôr, eram bem outros.

A Tia Maria da Assumpção Carneiro de Amarante, viuva aos trinta e oito annos de idade e ao segundo anno de casada, de meu Tio Manoel Felisberto de Amarante, irmão de meu Pae, e grande exportador de laranja para a Inglaterra, nunca tivera por mim um decidido affecto, e bastas vezes me torcera beliscões em pequeno, para melhor demonstrar, por essa pratica facil e muito intuitiva, uma das suas ponderações favoritas: «que era de pequenino que se torcia o pepino.»

Sempre embirrara commigo, nunca eu soube porquê, e me achava insupportavel, chamando-me de continuo grande bicho fervedoiro e alma do diabo, e não sendo eu senhor de mexer um dedo, nem dizer uma palavra em sua augusta presença, sem que ella revirasse logo para mim o olho verde ameaçador, reprimindo um Impeto e mordendo o beiço de baixo se a Tia Genoveva estivesse, chegando me logo um sopapo se eu estivesse só com ella.

Tendo minha Mãe pedido á Tia Genoveva que na pia do baptismo me pozessem o nome de Joaquim (que era o nome de meu Pae) e tendo depois a Tia Genoveva decretado a toda a gente da casa, creadas e creados, quinteiros e quinteiras, que não queria que me tratassem por -- «Joaquimsinho», nem por -- «Menino Joaquim», mas por esta mimosa abreviatura de o Quinino», que ainda hoje familiarmente se emprega lá em casa, quando se fala de mim -- sempre a Tia Maria da Assumpção tirara d'esta simples coisa carinhosa, que era agradavel á Tia Genoveva, e de que eu gostava tambem, um estigma de ridiculo para lançar sobre a minha fraca pessoa: e quando a mim se referia, ou quando por mim chamava, tratando-me tambem por «Quinino», de tal modo transtornava, e tão propositadamente, o que naquelle diminuitivo havia de mimo e de bondade, tal intonação de dois sentidos lhe dava, que eu bem percebia querer ella dizer, na sua, que aquelle «Quinino» lhe era tão desagradavel e antipathico como o outro quinino que se toma para as febres, e cujo mau sabor lhe vinha á bocca, desde uma vez que, ainda em solteira, se lhe esborrachara na lingua uma hostia d'esse sulfato.

Só muito mais tarde, depois que conclui o meu curso do Liceu, e comecei a entrar, ás apalpadellas, no entendimento aproximado das coisas d’este mundo, é que me veiu á idéa, na conjectura retrospectiva de alguns factos e episodios que mais me haviam impressionado durante as primeiras lettras -- que o principio d’aquella atroz embirração de minha Tia por mim, coincidira justamente com o periodo agudo da sua desditosa viuvez, em que a pobre senhora soffrera de um permanente frenesi, frequentemente acompanhado de ataques de nervos que lhe davam para rasgar as mangas do roupão e morder o travesseiro. E cheguei então a pensar que, se a esse tempo eu já podesse saber o que depois vim a saber, talvez as coisas se tivessem harmonisado entre nós, a contento da Tia Maria da Assumpção e a meu contento, pois por mais d'uma vez eu pensara, contemplando a sua frescura, que muito devia ter custado ao Tio Manoel Felisberto separar-se d'ella tão cedo -- e para sempre!

Em Coimbra, com as noitadas e regabófes inherentes á Faculdade, prejudiquei tanto os meus bronchios, que, depois de concluir a formatura, e de voltar para a Ilha, continuei a soffrer d'elles amiudadas vezes; e sempre era o alegre Doutor Tristão que me prestava os seus soccorros medicos.

O meu escriptorio de advogado, ao voltar da Rua da Esperança para a Miragaia, ficava mesmo defronte da casa da Tia Maria da Assumpção; e de cada vez que eu não ia ao escriptorio, era sabido que logo apparecia em nossa casa a Gertrudes Gaga, sua creada de fóra, a perguntar, com a fala muito tarda e a expremer-se muito nos ques -- se o senhor Doutor Quinino estava doente… se já tinha sido preciso mandar chamar o medico...

E se lhe respondiam que sim, ahi largava ella a correr, a levar a noticia á Tia Maria da Assumpção, e ahi tinhamos nós, pouco depois, a Tia Maria da Assumpção, toda açodada, aos puxões na bórla de lã verde da campainha da porta, muito afflicta, a querer que lhe dissessem, ainda na escada, se já tinham mandado chamar o Doutor Tristão, e o que tinha elle dito, e se disséra que voltava.

Depois, sentava-se me á cabeceira, e dir-se-ía que toda ella se desfazia em cuidados e disvelos, como se quizesse penitenciar-se para commigo, e por esse modo, do muito que me torcera e retorcera em pequenino, como quem torce e retorce um pepino.

Eu nunca fui de guardar rancores, como certas creaturas que tenho conhecido em minha vida, ou como a mula do Papa, que sete annos guardou o formidavel coice; e depressa esquecera, com a ida para Coimbra, os beliscões, as reprimendas e os maus olhados da Tia Maria da Assumpção, que tanto me irritavam e me affligiam.

Mas de cada vez que a via apparecer á porta do meu quarto de doente, sorridente e affavel como uma irmã de caridade a consolar um triste, vinha me logo á lembrança o tempo em que ella me maltratava e me detestava, me chamava bicho fervedoiro, alma do diabo e Quinino... mas quinino -- sulfato! E attribuindo apenas a uma questão de tempo e de ausencia a profunda mudança que se havia operado nas nossas relações, que eram agora evidentemente cordeaes (como no Discurso da Corôa as relações de Portugal com as demais potencias), dava graças a Deus por ter cessado esse conflicto, e não pensava sequer em descobrir outras razões.

Bem longe estava eu, bacharel ingenuo em Direito, de suspeitar que andava sendo intrujado por tão sabida senhora!

Minha Tia Maria da Assumpção, vinte annos volvidos sobre o funeral de primeira classe de meu Tio Manoel Felisberto, não podera conformar-se com a pouca sorte de só ter estado casada dois annos (lapso bem curto, com effeito, quando os casados se entendem e de bom grado se submettem ás leis da Natureza no que respeita ás relações dos sexos); e todas as suas attenções de viuva inquieta e inconsolavel -- inconsolavel não pela perda do primeiro marido, mas por a falta de um outro -- se voltaram para quem? Para o Doutor Tristão!

Eu nunca teria dado por tal, se o Theodosio, ainda hoje secretario da Administração do Concelho, m'o não houvesse denunciado, declarando que era eu, em toda a Ilha, talvez em todo o Archipelago, a unica pessoa que o não sabia. Mas desde que o Theodosio m'o disse, e entrei a observar as attitudes de minha Tia quando e onde quer que estivesse em presença do Doutor Tristão, facilmente percebi que ella perseguia o nosso medico com o mais porfiante e descarado namoro que se possa imaginar. Porque não era só com os olhos, verdes e fixos, que ella procurava perturbar a invejavel tranquillidade de alma do Doutor Tristão, que tão sabiamente e parcamente regulava as necessidades do seu celibato pelos conselhos prudentes de Raspail: era com o pé, pisando o d'elle, de cada vez que podia; era com a perna, sempre que se sentava ao seu lado; era com o joelho, se lhe ficava na frente.

E auxiliando a acção d’estes meios mais directos, mas mais perigosos, de ataque, era com enormes travessas de fios d’ovos salpicados de confeitos, e levados a ponto pelas suas preciosas mãos; ou com magnificos cabazes de fructa da sua quinta de São Carlos; ou com soberbos ramos de dhalias colhidas no jardim da sua casa da cidade -- que ella se lhe declarava, se lhe escancarava...

Ella confessara uma vez á Tia Genoveva que fizera a promessa de andar vestida ao Carmo, com escapulario e correia, até ao dia em que Nossa Senhora lhe permittisse voltar aos pés do altar para ser recebida outra vez em casamento. Mas parecia que Nossa Senhora gostava mais de a vêr com aquelle habito, de escapulario e correia, e não a deixava mudar de figurino. O alegre Doutor Tristão ia comendo e saboreando, ás sobremezas, as travessas de fios d'ovos; devorava as peras e os pecegos de São Carlos, com a casca; enchia de dhalias sempre frescas as jarras da sua sala; e brandamente fugia á Tia Maria da Assumpção --com a perna e com o joelho por causa das conveniencias, e com o pé por causa dos callos, que os tinha impertinentes, um em cada dedo mindinho...

A minha eleição para deputado tinha-se feito limpamente, independentemente, sem violencia, sem atropelo, sem carneiro e sem batatas.

Eu sahira eleito pelo voto livre, e esta circumstancia anormal em actos eleitoraes, se por um lado era grata á minha vaidade ainda timida, e acariciava o meu amor proprio como a festa que se faz a um gato, passando-lhe a mão sobre o lombo, ao correr do pêlo, por outro lado impunha-me responsabilidades e enchia-me de inquietações.

Eleito deputado a sério, eu tinha de ser um deputado a sério; e esse caso intimidava-me, assustava-me quasi, porque o papel de um representante do povo a sério, no meio de cento e tantos que só o eram por troça, tinha de ser uma verdadeira creação.

Mal eu chegara de Coimbra com o meu curso, e começara a exercer a advocacia, com uma certa frescura de loquela a que já não estavam habituados o auditorio e os jurados das causas crimes da minha Ilha, logo as attenções da terra se haviam voltado para mim, e se pensara e se disséra, á bocca pequena, que eu devia dar um excellente deputado. Mas ninguem se atrevera ainda a dizê-lo em voz alta, porque o respeito da tradição, solidamente enraizado nos animos terceirenses, não admittia a tentativa de uma disputa eleitoral, emquanto fossem vivos o Conego Pinto e o Machado da Botica, progressistas, o Barão da Terra-Chã e o Pompeu, regeneradores, que ha vinte annos se davam a alternativa nas candidaturas por Angra.

Por isso, dobrado foi o espanto quando, uma vez, tendo chegado por uma mala inesperada a noticia de que haviam sido dissolvidas as Camaras, e em plena reunião do Centro regenerador, presidida pelo ferrenho Maia, grande amigo do Fontes, e cunhado e sustentaculo do Pompeu; e tendo sido dada para ordem da noite «a attitude do partido em face da ultima prepotencia do governo» -- o Doutor Tarquinio, pedindo a palavra, se assoara e tossira com estrondo, arrastara os pés, estabelecera uma silenciosa atmosfera de anciedade (porque a sua palavra era sempre esperada e ouvida como a ultima palavra) e depois de muito ponderar, muito considerar e muito fundamentar a necessidade de escolher novos elementos de combate para as luctas, cada vez mais alterosas, do Parlamento, abertamente e á queima-roupa alvitrara a minha candidatura nas proximas eleições!

O golpe era de mestre, e mestre de maráus.

Toda a gente sabia que o Doutor Tarquinio não podia vêr-me desde que eu abrira escriptorio e entrára a advogar -- porque advogado era elle, e para Angra elle bastava. E eu bem o sentia, sem lhe querer mal por isso, que Tarquinio era o meu grande inimigo!

Tarquinio exercia a advocacia desde os tempos remotos em que Tristão começara a exercer a clinica. Muito antes de mim, e muitos outros haviam tentado estabelecer na Ilha essa legitima concorrencia de jurisconsultos, a que se oppunham sempre, tão encarniçadamente, os interesses, aliás tambem legitimos, do açambarcante Doutor Tarquinio.

Acobardavam todos, porém, e succumbiam. Tarquinio, triumfador, tornou se facilmente Tarquinio despotico; e quando eu cheguei, e comecei, tive logo a minha sentença lavrada: Tarquinio esborrachar-me-ia como se esborracha uma pulga -- sob a pressão implacavel do seu muito saber e da sua unha muito crescida e muito suja.

Alguns amigos e parentes chegaram a aconselhar-me que pozesse de parte a idéa de advogar, e que pensasse noutra coisa. A Tia Genoveva, essa, foi mais longe: chegou a confessar-me o susto constante em que a trazia agora o receio de que Tarquinio exercesse sobre a minha fraca pessoa alguma forte violencia!

Por modo que, quando Tarquinio pediu a palavra no Centro regenerador para lembrar o meu nome, quasi para propôr a minha candidatura, e quando depois, no Club, nessa mesma noite, e em toda a cidade ao outro dia, tal se ouviu e se espalhou, a surpreza fôra geral, não atinando ninguem com a explicação que tão estranho caso poderia ter; e dos amigos e correliigonarios politicos do Doutor Tarquinio, os que não suppunham aquillo uma grande abnegação, diziam que o seu nobre amigo e correligionario perdera a mioleira.

Só eu e a Tia Genoveva não creámos illusões a tal respeito.

Evidentemente, para nós, Tarquinio lá tinha esta fisgada: preparar-me uma candidatura como se me preparasse uma embuscada; fazer-me eleger como se me fizesse amordaçar; e despenhar-me no Parlamento, como se me lançasse a um abismo.

Todas estas imagens, que faziam estremecer de terror a Tia Genoveva, me fizeram apenas sorrir a principio, achando divino esse Tarquinio em quem Tristão quizera vêr já um começo de mania de perseguição, quando aquillo só era, afinal, um pittoresco e fundo despeito pelo modesto exito que eu mal começava a disfructar no fôro.

Porém, franqueza, franqueza, a idéa da candidatura não me fôra desagradavel de todo em todo, antes determinara em mim um certo sobresalto, que não era outra coisa senão aquella vã cubiça do prestigio e da influencia politica, de que uma tão risonha noção eu tinha desde o segundo anno do meu curso de Direito.

Procurei o Doutor Tarquinio, resolutamente, depuz nas suas mãos todos os penhores da minha gratidão, e declarei-lhe que não deixava de me convir a candidatura, embora me sentisse mal provido de forças para corresponder honrosamente á sua tão espontanea quanto generosa iniciativa.

Elle rejubilou com a minha annuencia, abraçou me paternalmente, dissuadiu-me de pieguices, deu-me conselhos, veiu acompanhar-me até á porta, e chegou a sahir á rua, em chinelas de casimira bordadas.

-- «O meu amigo está novo, tem todo o sangue na guelra, talento não lhe falta, um largo futuro o espera na politica e na publica administração. Folgo muito em que acceite a minha idéa, porque a sua eleição não será só um grande bem para o meu amigo, será um grande bem para a patria!»

E como sentisse que era boa a frase, e lhe seria penoso encontrar outra melhor, ou pelo menos tão boa, para sellar com solemnidade essa nossa primeira conferencia, apertou me muito sacudidamente a mão, e metteu-se á pressa para dentro, sem querer ouvir mais nada.

Na Rua de Jesus, onde Tarquinio morava, não apparecia viv'alma a essa hora da tarde. Era tarde de toiros em São João de Deus, e a cidade parecia morta.

Olhei para o lado da Rocha, olhei para o lado da Rua da Sé, olhei para todas as casas e para todas as janellas, ninguem... Tinha ido tudo para os toiros!

Dominado então por um unico pensamento, que me absorvia e me obcecava nesse instante, parei a meio do passeio, carreguei o sobr'olho, estendi um braço para a frente, e disse, em voz alta:

-- «Senhor presidente, peço a palavra!»

Uma voz conhecida, diabolicamente occulta por detrás de mim, respondeu:

-- «Tem a palavra o illustre deputado...»

Voltei-me, como por um salto de móla. E uma grande risota correspondeu a esse meu movimento.

Era Theodosio, o Primo Theodosio, que de longe me vira entrar para casa do Doutor Tarquinio, no momento em que atravessava a Rua da Sé, indo para os toiros; mas, voltando-se para trás, e mettendo-se num portão, ahi se pozera á espera de que a conferencia acabasse, para d'ella saber, antes de mais ninguem, o resultado.

Perdera dois toiros, com certeza, e só Deus sabia quanto isso lhe custava; mas não seria a elle que eu poderia negar ter-me demorado cinco quartos de hora em casa do Doutor Tarquinio, a combinar a eleição.

-- «Agora, meu caro primo -- dizia me Theodosio -- passas a ter em mim um adversario politico de temer. No meu tempo, a verdadeira politica era servir os amigos, e d'esse nobre principio aproveitei eu ainda, que muito galopinei sempre ao lado do Maia, e pelo Maia fui servido... Hoje, está tudo mudado, e o nobre principio, em politica, é servir os inimigos antes de mais ninguem. Ora, tu sabes que a Administração do Concelho me dá uma miseria -- desoito mil e tresentos, a secco. Ando ha cinco annos a pedir que me nomeiem para a bibliotheca do Liceu, que está entregue a um contínuo, desde que morreu o João Horacio, e o mais que tenho conseguido é que ainda não nomeiassem outro, á espera, diz agora o Maia, de que os regeneradores cáiam e voltem os progressistas, que talvez então me nomeiem... Os progressistas, primo! Nomeado pelos progressistas, eu, Theodosio, que tenho sido toda a minha vida, e com muita honra, o grande inimigo dos progressistas!»

Um foguete de tres respostas estalou no ar, ao longe, para os lados de São João de Deus. Devia ser o recolher do segundo toiro. Theodosio teve um sobresalto, apressou a conversa.

-- «...Sei que te propões a deputado independente. Não faço bem idéa do que seja um deputado independente, mas tu lá o sabes, e isso basta. Mas imagino que os deputados independentes se inventaram para contento de progressistas e regeneradores ao mesmo tempo, e eu preferia então que fosses tu quem me arranjasse o logar na bibliotheca. Era uma nomeação extrapartidaria, que me deixava os movimentos livres...»

-- «Pois está dito!» respondi eu, para responder alguma coisa.

Mas logo Theodosio tomou essas palavras ditas no ar, mais para me vêr livre d'elle do que para outra coisa, como um compromisso politico. E numa carreirinha, pela rua abaixo, raspou-se para os toiros.

Só mais tarde é que eu vim a saber que, em politica, muitas vezes uma simples palavra dita no ar vem a trazer-nos depois embaraços muito peores que os que pode crear-nos uma palavra de honra.

II

O meu primeiro cuidado, logo que tive as malas despachadas, me metti numa tipoia e cheguei ao Hotel, foi informar-me com precisão do estado das coisas publicas, e do que se fizera no Parlamento durante a minha angina pectoris.

O Hotel era o Borges, ao Chiado, no coração da metropole, em pleno fóco da civilisação, a dois passos da Havaneza e da missa do Loreto, que eram as primeiras e grandes emanações d'esse fóco.

O Borges reunia, já então, uma avultada e distincta clientela de deputados, e embora o Governo se achasse sempre em maioria entre os hospedes, era cordeal o convivio de todos, e estava-se ali perfeitamente, extra-parlamentarmente á vontade.

O meu quarto era lá em cima, no ultimo andar, numero 55, num dos angulos do predio, com pouco pé direito mas com muito ar, que me entrava por duas janellas -- uma para a Rua Serpa Pinto, outra para o Chiado.

Eu chegava a Lisboa quasi sem relações, porque a maior parte da colonia açoriana fugira da capital em agosto, com medo do cholera, e não se atrevera ainda a voltar das Ilhas, apesar do cholera nunca ter apparecido e já se estar em fevereiro, que não é tempo propicio a villegiatura de microbios; e das amisades de Coimbra pouco mais duradoiras que as rosas de Malherbe, que nunca chegaram a durar o espaço d'uma formatura, apenas me restavam o Fausto Guimarães, secretario do Presidente do Conselho, o poeta Chico Patrocinio, chefe da novissima escola nefelibata, e a Margarida Tricana, que o Fausto Guimarães tinha deitado a perder, e a quem todos nós, mais ou menos, naquella saudosa republica da Couraça dos Apostolos, tinhamos dado alguma coisa a ganhar...

No Hotel Borges, porém, as relações eram faceis.

Logo no primeiro dia, abrindo a janella que deitava para o Chiado, e abeirando-me do anteparo que corria em toda a volta da mansarda, ouvi ao lado um ligeiro trauteado do Boccacio, que então rejuvenescera na Trindade e andava muito em vóga.

Para o lado do trauteado olhei, e deparei com um cavalheiro idoso, que catava uns jacinthos lindamente creados num caixote, entre o parapeito da sua janella e o anteparo da mansarda.

Sem que désse pela minha presença, esse cavalheiro idoso, que eu logo percebi ser meu vizinho de quarto, continuava catando os seus jacinthos e trauteando a serenata dos tres maridos humilhados...

A' janella.

Minha bella,

Corre, corre,

Ligeira gazela!

E a miudo olhava para o quarto andar fronteiro, onde as janellas se conservavam fechadas e de cortinas corridas, como num luto, ou numa ausencia de inquilinos.

Uma certa curiosidade, e uma tal ou qual intuição dos pequeninos segredos da capital, por mais algum tempo me prenderam ao parapeito, na suspeita de que alguma das janellas d'aquella casa defronte não tardaria a abrir-se, e alguem, que o meu vizinho esperava, assomaria a ella.

Meu dito, meu feito, e quem appareceu vinha a ser, nem mais nem menos, uma grande mulher de magnifica estampa e de cabellos ruivos, amarfanhados e enrolados em volta da cabeça como um farto turbante. Vestia uma bata ás riscas, enviezadas e largas, azues e côr de grão. E por baixo da bata, bem denunciados, quadris, braços e seios de tempera rija e de primeira grandeza. Correspondendo a um respeitoso cumprimento de cabeça do meu vizinho de quarto, um complacente sorriso aflorou-lhe á face, e sobre o labio superior mais lhe pronunciou a escurinha penugem de um ligeiro buço.

Nesse momento espirrei, estranhando o clima; e o meu vizinho, apanhado de surpreza, pois provavelmente suppunha que o 55 ainda estivesse sem gente, voltou-se, deu de cara commigo, e córou de leve.

Discretamente, receiando tornar-me importuno, e constipar-me, metti-me para dentro, e fechei a vidraça. Ainda espirrei duas vezes, mandei preparar um banho morno, e tratei de passar para as gavetas d’uma commoda, que me atravancava metade do quarto, toda a roupa branca e o fato melhor que trazia nas malas. Puz a casaca a arejar nas costas d'uma cadeira, para perder as rugas que tomara na viajem; colloquei sobre a meza de cabeceira, e voltado para a minha cabeceira, o retrato da Tia Genoveva, que para esse fim m'o dera, e muito me recommendara o logar e a posição em que o queria, para ter a certeza de que assim, ao menos em efigie, podia continuar a velar por mim. Fiz a minha barba, tomei depois o meu banho morno com muito sabonete, vesti me de lavado, perfumei-me um pouco, e desci para o almoço.

A' meza do almoço fui encontrar, sentado na minha frente, o meu vizinho de quarto.

Reconhecemo-nos, baixámos a cabeça. Eu passei-lhe os rabanetes, elle offereceu-me palitos. Nas alturas de um arroz de marisco, fortemente temperado de pimenta que parecia polvora, entabolámos conversa, com o céo da bocca a arder e as lagrimas nos olhos. A' fructa estabelecera-se já entre nós uma certa corrente de simpathia. Durante o café, trocámos cigarros e algumas impressões.

A respeito das coisas publicas, que era o que eu queria saber, o meu vizinho do 55 offereceu-me logo impressões muito peores que os seus cigarros, da ironica marca -- Delicias, capa de papel. Elle não dizia: -- «As coisas publicas...» Singularisava, amesquinhava a expressão, dizendo simplesmente, depressivamente: -- «A coisa publica...» E teve uma grande satisfação quando eu lhe disse que era deputado. Porque eramos collegas! Porque tambem elle era representante da Nação.

-- «Ha vinte annos -- accrescentou. Tenho visto muito, sei muito, conheço tudo e todos. Não fale Vossa Excellencia a mais ninguem para lhe abrir os olhos. Aqui tem Vossa Excellencia o meu cartão.

Puxei tambem por a carteira, tirei um dos meus cartões, e entreguei-lh'o, agradecendo.

O cartão d'elle dizia:

LIBERATO POÇAS

Deputado da Nação

Conhecia-o muito bem de nome. A fama dos seus ápartes tinha chegado aos Açôres. Muitas vezes eu ouvira o Barão da Terra-Chã, que tinha uma grande memoria e agradavel conversa, referir varios d'esses ápartes, que eram a nota mais pittoresca e mordaz das sessões parlamentares nos ultimos vinte annos. Lembrei-me até de que o Primo Theodosio, tendo vindo uma vez ao Continente para se tratar em Faro de uma trabusana que lhe ficara de emenda -- para nunca mais! -- conhecera o senhor Poças em uma casa de hospedes do Ferregial de Baixo, e demorara-se dois mezes em Lisboa depois de curado, só para ouvir a Borghi-Mamo, porque era doido por operas, e para ouvir o senhor Poças, porque se pelava por piadas. E disse-lh'o.

O meu vizinho do 55 sorriu, lisongeado, e sem fingida modestia. De facto, o seu maior prazer -- logo a seguir áquelle que, acima de tudo, e em primeiro logar, lhe davam as mulheres -- era encontrar um bom dito, e mettê-lo bem a proposito. As Camaras prestavam-se excellentemente para isso. O caso era ir para lá sempre cedo, antes que abrisse a sessão, e estar sempre attento, para não perder uma só palavra do que elles dissessem. Por esse processo, e com uma certa pratica, como a que elle tinha, dos homens e dos ápartes, as piadas sahiam quasi sem a gente se sentir... Não considerava isto um privilegio seu: eu que experimentasse, e veria. Mas a verdade era que, ha vinte annos, disfructava na Camara esse exclusivo da piada, e a tal especie de condão attribuia a circumstancia, muito curiosa, de se achar sempre de bem com todos os Governos e com todas as Opposições...

-- «Quanto á coisa publica, dizia elle, tenho muito gosto em informar Vossa Excellencia de que algumas surprezas e muitas decepções o esperam se, como julgo deprehender das suas palavras, Vossa Excellencia crê na possibilidade de que portuguêses possam fazer alguma coisa boa de Portugal, ou em favor de Portugal. Ha uma grande verdade universal, que não carece de justificação metafisica para ser facilmente admittida: é que ninguem, nenhuma força póde oppôr resistencia á chamada e bem conhecida força do Destino. Ora, meu caro senhor... (e tornando a olhar o meu cartão de visita, após uma curta pausa...) meu caro senhor Joaquim Maria do Amaral Amarante, o destino dos portuguêses, desde que este reino se tornou, geograficamente, um retalho integral da Peninsula Iberica, tem sido o de dar cabo de Portugal. E em boa verdade ninguem poderá dizer que não tenhamos cumprido á risca esse nosso destino. Tem havido alguns discolos, sem duvida, pois outra coisa não foram os Gamas e os Albuquerques, e todos os grandes descobridores e conquistadores que Vossa Excellencia conhece. Dobrámos, é certo, o Cabo da Boa Esperança, navegámos até á India e Ceylão, torneámos o promontorio de Singapura, estabelecemo-nos em Macau, d'onde explorámos as costas da China e do Japão. Ainda, seguindo outro rumo, descobrimos e colonisámos o Brazil. Lisboa foi, toda a gente o sabe, e não serei eu que o conteste, num dado momento, o entreposto e o centro de distribuição dos productos do Oriente, e então attingiu um grau de riqueza e luxo de que não havia memoria desde a antiga Roma... Como sempre succede durante o periodo heroico da historia das Nações, a Litteratura e a Arte floresceram para nós. E ahi tem Vossa Excellencia outros discolos: Gil Vicente, Sá de Miranda, Camões... Mas foram poucos. E o destino cumpriu- se; e o destino cumpre-se. O Marquez de Pombal foi apenas uma sombra. Quem suppozer ainda que elle engrandeceu Portugal, leia o Camillo, e verá. O Pombal, meu caro senhor, não foi o nosso ultimo grande ministro; foi o primeiro dos nossos pequenos ministros. Encheu-se. Fez elle muito b em. Depois, veiu o Senhor D. Pedro Quarto e outorgou-nos a Carta..... Os senhores, lá em Angra, e na Praia da Victoria, sabem muito melhor do que eu como isso se passou. Nesse capitulo da Historia póde Vossa Excellencia dar-me quináu, se quizer... Mas a partir da implantação do regimen constitucional para cá, e até aos nossos dias, prézo-me de poder dizer que poucos sabem tanto da nossa coisa publica, como eu. Olhe Vossa Excellencia... (e foi contando peles dedos...) Eu assisti á fundação da Sociedade de Geografia. E viu fazer- se o pacto da Granja. Eu andei encorporado no cortejo civico do centenario de Camões... Na rotação dos partidos, vi o Braancamp succeder vinte vezes ao Fontes, e o Fontes, vinte vezes, succeder ao Braancamp. Nas finanças, vi contractar oito emprestimos em menos de oito annos, e vi gastar o dinheiro de cada um d’elles em menos de oito dias. Na economia, vi organisar o monopolio do tabaco, o monopolio do alcool, o monopolio da carne, o monopolio do pão, o monopolio do fosphoro, o monopolio do adubo, o monopolio da viação... Neste momento trata se de organisar o monopolio do exgôto. Deve ser excellente... O fomento agricola é uma coisa que só tem servido para arrotear o José Maria dos Santos. A Africa é uma villegiatura -- como agora se diz -- para funccionarios do Estado e administradores de Companhias, ou, na alternativa, vinte annos de Penitenciaria. A balança do commercio é uma especie de balança de talho, que não regula. Toda esta coisa tem durado assim ha muitos annos, e ha de durar por mais alguns. Mas não muitos. Isto desmorona-se. Quem viver verá. Talvez eu ainda veja!»

O meu vizinho de quarto, dizendo isto, e meneando a cabeça calva, reluzente, fazia um gesto de profecia, entendido e profundo, que por um instante annuviou a clara esperança, em que eu vinha, de chegar ainda a tempo para alguma coisa de bom em beneficio da Patria. Um resto de café, no fundo da chavena, que distraiidamente levei aos labios, deu-me nesse momento o amargo da duvida. Cuspinhei, repontei com o Poças:

-- «Mas o que pensa Vossa Excellencia do futuro?

-- «O Futuro, com F grande, a Deus pertence. O outro, o nosso, com f pequeno, pertence aos estrangeiros. E' uma questão de tempo, de pouco tempo. Podemos dizer até que já tudo isto é d'elles. O trigo é americano; a manteiga é inglêsa; a cerveja é allema; o queijo é flamengo; a mulher é hespanhola; o bacalhau é norueguez... O gallego, até o gallego, o proprio gallego -- é gallego! O porto de Lisboa é do Hersent; os caminhos de ferro, do Kergall; a Africa, do Cecil Rhodes; a opera, do José Paccini... A unica coisa verdadeiramente portuguêsa que ainda temos é -- a Divida Externa!»

Elle dizia estas coisas serenamente, convictamente, mas resignadamente, sob um grande peso de infortunio, como quem acceita e se conforma com alguma tremenda determinação fatidica. Tinha de ser. Deixa-lo ser!

Eu olhava-o, como se olhasse uma esfinge; e ouvia-o, todo ouvidos, como se a sua palavra fosse um evangelho.

O que, sobretudo, me surprehendia nesse Poças, era o contraste entre o seu devastador pessimismo de hospede do Borges, irritado de visceras pela cozinha picante do Hotel e o seu contemporisador optimismo de homem publico, estimado de todos os Governos, cultivando jacinthos num caixote, alimentando um namoro de janella, e sabendo de cór as coplas do Boccacio.

Não o percebi logo; levei algum tempo para o perceber; mas vim a percebê-lo.

Poças não era só um grande magico, como logo suppuz nesse dia, emquanto durou a conversa que entre nós se seguiu, e se prolongou, após esse primeiro almoço. Não era só um grande ratão, como depois o julguei, quando elle apparecia na Camara antes de mais ninguem, e da Camara sahia no fim de todos, para não perder uma palavra só, d'um só discurso, não se fiando nos extractos levianos dos jornaes, e menos ainda no texto official do Diario das Camaras... Poças era bem mais que um tipo: Poças era um simbolo!

Logo nessa tarde fui procurar ao Ministerio o meu amigo Fausto Guimarães, que era um outro simbolo.

Fui procura-lo ao Ministerio da Justiça, onde Poças me disséra que eu o devia encontrar, por andar em obras a secretaria do Reino, que o Ministro d'elle preferia.

O Presidente do Conselho accumulava as duas pastas: a do Reino e a da Justiça -- o que logo eu soube não ser trabalho de Hercules, porque os serviços do Ministerio do Reino alliviam muito depois de feitas as eleições, e o Ministerio da Justiça apenas alimenta, em tempos ordinarios, um debil movimento de transferencias de juizes e de beneficios ecclesiasticos. As eleições estavam feitas, os deputados a postos, os governadores civis em descanço, os administradores de concelho entregues aos cuidados do seu pomar ou do seu pedaço de horta. Agora, pelo Reino, apenas corriam alguns assumptos de Instrucção; e a Instrucçao, em Portugal, não é coisa que dê muito que fazer a um ministro.

Mesmo a chefia do Governo tornara-se com moda e suave.

O momento da grande crise passara, e havia-se entrado num grato periodo de repouso e de esperança. Tinha-se inaugurado, quasi de um dia para outro, apenas com alguns artigos de fundo e uma queda de ministerio, uma fase de prestigio politico a que se convencionara chamar -- de Vida Nova, e á sombra da qual se conseguira realisar um novo emprestimo, quando já toda a gente dizia, dentro e fóra do paiz, que não se arranjaria nem mais uma libra sem a intervenção de uma administração estrangeira.

Eram de fresca data os acontecimentos mais pungentes da patria.

Por muito tempo não se acreditara nos boatos que corriam a respeito de muitos directores de Bancos e de Companhias, gravemente compromettidos em transações íllicitas; e os accusados, de mãos dadas com todos os Governos, repoltreados nas suas cadeiras do Parlamento, ingerindo-se em todos os negocios do Estado, dando leis e distribuindo juros ficticios, desassombradamente continuavam transacionando, favorecidos pela cumplicidade dos indifferentes e dos Poças.

Não apparecia quem ousasse atirar a primeira pedra, como se todo esse formidavel escandalo se passasse em uma cidade inteiramente coberta de telhados de vidro. E todos esses estabelecimentos de credito, todas essss sociedades anonimas de responsabilidade limitada, haviam espalhado em volta de si um certo ruido de prosperidade, á sombra de nomes patrioticos, que inspiravam confiança, illudiam os incautos. Eram o Banco dos Luziadas, o Banco da Restauração de Portugal, o Banco 24 de Julho... Eram a Companhia Real das Vias Ferreas Luzitanas, a Real Companhia da Agricultura Patria, a Companhia de Credito Camoneano -- que nunca se soube o que era.

Cada uma d'essas Companhias e cada um d'esses Bancos tinha no seu conselho de administração, pelo menos, um ministro de Estado honorario, que era quasi sempre, por uma inexplicavel coincidencia, o ultimo ministro da Fazenda; e assim mantinham, todas ellas, e todos elles, Companhias e Bancos, as mais cordeaes relações com o Governo e, por intermedio do Governo, com o Thesouro.

Quando o Banco dos Luziadas suspendeu pagamentos, logo os outros se sentiram necessitados de longa moratoria.

Houve um grande sobresalto, seguido de um grande movimento de panico.

A corrida aos Monte-pios foi uma coisa pavorosa: eram os pães que salvavam o futuro de seus filhos! eram as mães que arrancavam, ás garras d'esses abutres, o dote de suas filhas! E o assalto, verdadeiro assalto, fazia-se a sôco, a empurrão, a coice...

Os accionistas, vendo o seu rico dinheiro a arder, reuniam-se em assembléas geraes, e pediam sindicancias em altos berros, como as creanças que pedem a Emulsão de Scott!

A policia interveiu. Chegou a ser preso, e mettido no calouço n.° 7, o presidente de um conselho de administração. Havia desfalques, havia falsificações, havia gazúas.

O Cara linda, o Gaiteiro, o Moita e o Carrasco, tão conhecidos do habil Antunes, eram anjos, ao lado d'aquella confraria!

Os Tribunaes, da primeira instancia ao Supremo, foram atulhados de processos crimes.

A Opinião, desvairada, gritou que Portugal estava sendo governado por ladrões!

Os Jornaes, furibundos, cobriam-se de tarjas negras e de improperios em normando.

Toda a gente prudente se abotoava, e não sahia de casa á noite.

Foi um terror!

Passou-se então esta coisa extraordinaria, funambulesca, unica: a debandada dos homens publicos, dando ás de Villa Diogo com medo da forca e do candieiro, que es jornaes republicanos queriam vêr funccionar no meio da praça, ferozmente, como no tempo em que os falsarios andavam menos seguros, mas mais seguros andavam os dinheiros no erario. Todos esses homens fugiam, positivamente fugiam, ás responsabilidades conhecidas do passado e ás contingencias tenebrosas do que ainda estava por vir.

Fôra um riso, e fôra uma vergonha!

Era necessario organisar um governo désse lá por onde désse; era urgente formar um gabinete fôsse lá como fôsse. Mas os partidos constitucionaes, desmantelados, abandonavam a Corôa. E até a Corôa se achou desamparada, quasi desequilibrada, atirada para trás, ás tres pancadas, sobre a primeira cabeça do paiz -- por ordem hierarchica.

Esteve o paiz sem governo por espaço de tres semanas! E na inquietação e no desespero d'esse mau bocado, foram chamados ao Paço todos os politicos que andavam, ha muito, tresmalhados da Constituição, a prégar no deserto, a apregoar virtudes, e a mostrar elixires.

Appareceram duzias d'elles, radiantes, cada qual sobraçando o seu prograrama de governo, cada qual desenrolando, aos olhos amortecidos do paiz, o seu plano de salvação, o seu projecto de reforma. Ao redor da chamada burra do Thesouro reuniu-se então uma especie de junta de alveitares. E só não foi ministro quem não quiz sê-lo.

Foi por essa occasião que voltou ao poder o Martiniano, o grande Martiniano, o incomparavel Martiniano!

Martiniano, que já tinha sido por tres vezes ministro da Fazenda, andava de mal com o Paço. Como toda a gente que anda de mal com o Paço, mas que com elle quer estar de bem, fundara um jornal satirico, a que dera o titulo de Piada Popular, e ahi começara a cultivar um genero muito apreciado de critica galhofeira, mas mordaz, a que elle chamou -- «a bisca politica» e que depois guardou esta designação alegre.

Esse jornal tinha uma divisa, e essa divisa era esta: -- «Arde? é pimenta.» E ardia, que tinha diabo! Cada artigo da Piada era um caustico; cada folhetim um sinapismo de mostarda; e as biscas, espalhadas pelo jornal, eram moscas de Milão.

O Paço torcia-se, os Ministros torciam-se, toda a gente se torcia -- uns com o ardor do topico sobre a propria pelle, outros com a risota que o caso provocava sobre a pelle alheia.

Declarada a crise dos Bancos e das Companhias, Martiniano, que do tempo de ministro levara tambem sua rasca na assadura, habilmente desviara de si as attenções, e iniciara no jornal uma série de artigos furibundos, primeiro de ataque ás Instituições que haviam acobertado tanto e tão grosso escandalo, em seguida de alvitre e de conselho sobre o que deveria fazer-se, sem demora, para remediar o mal e entrar no bom caminho.

Lembro-me que um d'esses artigos começava assim: -- «Bem fazem os que emigram, porque é um crime apodrecer na contemplação de semelhante espectaculo!»

Mas logo um outro, emendando a mão, exortava os novos d peleja, e dizia: -- «Sim! Porque os novos têm fé, porque os novos têm coragem para remar contra a corrente. Só falta um homem que lhes indique o norte, e em nome d'esta palavra -- Patria -- começará para nós o periodo das sublimes loucuras.»

O homem, estava-se a vêr, era elle.

De dia para dia, os artigos cresciam de interesse; a opinião alarmava-se. D'uma vez, em que elle dissera isto: -- «Não se sabe ao certo se este paiz é Guatemala, ou Chili, ou Uruguay...» e accrescentara, galhofeiramente: «A nosso vêr, uns dias parece Gerolstein, outros dias Pantana...» -- os estudantes do Liceu, onde Martiniano era professor de português, fizeram-lhe uma enthusiastica ovação defronte do jornal, com marcha aux flambeaux, vivas á Patria, á Grammatica portuguêsa e á Piada nacional!

Martiniano viera á janella agradecer. Tinham-se reunido muitos populares, arruaceiros e curiosos, ao grupo, já de si numeroso, dos estudantes. Uma voz juvenil, vocalisando em voz grossa, gritou para cima:

-- «Fale! Fale!»

E esse grito fôra uma chispa que tocara a extremidade de um rastilho. Todos gritaram:

-- «Fale! Fale!»

E Martiniano falara, e falara a sério.

-- «Quereis saber, meus amigos e meus concidadãos, qual é, neste momento, para Portugal, o desequilibrio entre a sua importação e a sua exportação?»

E os rapazes, por baixo da janella, respondiam em côro:

-- «Queremos, sim senhor!»

-- «... Quatorze mil contos!»

E um intenso ruido sublinhava, alastrando-se na multidão, aquella tremenda cifra.

-- «Quereis saber, meus senhores, quanto nos custam, no momento em que vos falo, só os coupons e os juros do Estado e das Companhias a pagar no Estrangeiro?»

E os rapazes, em baixo, outra vez em côro:

-- «Queremos, sim senhor!»

-- «... Quatorze mil contos!»

E outra vez o mesmo intenso ruido sublinhava aquella outra cifra...

-- «Quereis saber, meus presados correligionarios -- e permitti que assim vos trate quem só tem, como vós, a mesma politica de dignidade nacional... -- quereis saber, vós, que detestaes as loterias e odiaes a taluda, quereis saber quanto vos leva em cada anno, para fóra da fronteira, por Villar Formoso e por Barca d' Alva, a loteria hespanhola?

-- «Queremos, sim senhor!»

-- «...Dois mil contos, meus amigos, dois mil contos!»

Martiniano, em começando a falar, tinha para horas. Falou, d'essa vez, cinco quartos de hora entrecortados de palmas, bravos e vivas. No fim, dirigindo-se especialmente aos estudantes do Liceu, disse ainda:

-- «Vamos a isto, meus amiguinhos. E não se diga que o budhismo invadiu a alma de todos nós. Ainda ha salvação possivel... Aproveitemos do passado apenas a lição... E a proposito de lição... é verdade! não se esqueçam de que temos ámanhã os pronomes e os verbos!»

Mettera-se para dentro, cumprimentando, e descendo a vidraça, que era de guilhotina. Ainda havia guilhotinas!

No dia seguinte, a Piada trazia um artigo decisivo. A epigrafe dizia: -- Si j’étais roi! e o artigo mostrava, num resumo habil, qual a verdadeira doença de que Portugal enfermava, e qual a verdadeira cura que havia para essa doença.

Já da epigrafe se deprehendia claramente o espirito d'esse artigo, que visava a Corôa, procurando bem indicar-lhe, numa linguagem metaforica, o que ella tinha de fazer, se realmente queria fazer alguma coisa...

... Martiniano voltara ao Paço, reconciliara-se com o Paço.

Ao outro dia, os leitores da Piada apenas notaram que ella vinha muito semsaborona. Houve uma suspeita. Poucas semanas depois, teve-se a confirmação d'essa suspeita: Martiniano entrava para o Ministerio da Fazenda.

Ninguem estranhou. Elle estava, naturalmente, indicado. Nem a Piada se fizera para outra coisa!

No dia em que Martiniano, chamado aos conselhos da Corôa, reappareceu na Arcada, todos os Partidos reunidos fizeram-lhe uma manifestação de simpathia sem precedentes na nossa historia tragico-financeira.

Foi um delirio.

Os amigos mais dedicados subiram-no ao cóIo pelas escadas do Ministerio. De todos os lados irrompiam os vivas:

-- «Viva o salvador da Patria!»

-- «Viva o credito do Paiz!»

E o paiz inteiro, a breve trecho, pinchava de regosijo, acreditando-se salvo.

Martiniano promettera mundos e fundos. O coupon externo pagar-se-ia integralmente. Os Bancos saldariam os seus encargos. As Companhias distribuiriam, como d'antes, os seus dividendos. Estabelecer-se-ia o equilibrio do Orçamento. Reduzir-se-iam as despezas. Reformar-se-iam as repartições do Estado. Modificar-se-iam os impostos. Consolidar-se-ia a situação economica. Desenvolver-se-iam a Agricultura e a Industria. Assignar-se-iam tratados de commercio. Aproveitar-se-iam as Colonias. O Estado apossar-se-ia de todos os Caminhos de ferro. Resgatar-se-iam os titulos da Divida de Dom Miguel. Experimentar-se-iam as vantagens do bimetalismo. Viria oiro de Manica. Viriam perolas de Bazaruto. E a respeito da intervenção estrangeira, interpelado nas Camaras, Martiniano dissera, peremptoriamente:

-- «Isso só se acceita debaixo da bocca dos canhões!»

Depois de tanta e tão risonha promessa, só faltava o dinheiro. E Martiniano, o maroto, arranjara o dinheiro, pondo em movimento todas as machinas litograficas do Banco da Restauração, fabricando cedulas de meio-tostão, de tostão, de dois tostões, de cinco tostões, de vinte e cinco tostões, derramando todo esse papel sobre o paiz, como numa prodigalidade de bodo.

Os Bancos e as Companhias receberam do Thesouro, em abonos e avales, quanto lhes foi preciso para livrar da cadeia os directores. As cotações da Bolsa entreabriram um sorriso para os lados de Portugal. Os cartazes de Reillac, diffamando nos a Patria nas ruas de Paris, foram arrancados pela diplomacia. Os jornaes de chantage que, ainda na vespera, nos lançavam á cara os exemplos vil pendiosos da Turquia e do Egypto em bancarrota, acharam que o nosso caso não era, afinal, tão desesperado como erradamente se suppozera, «como até nós mesmo tinhamos chegado a suppôr» e que muito havia ainda a esperar da riqueza de Portugal e do tacto administrativo dos estadistas que tanto honravam o nome d'esta pequenina, mas muito altiva nação!...

Foi neste feliz comenos, em que o pau, indo e vindo, deixava folgar as costas, que eu subi ao Ministerio da Justiça, em procura do meu amigo e contemporaneo de Coimbra, Fausto Guimarães.

-- «Nunca tinhas estado em Lisboa? perguntou-me Fausto.

-- «Já, mas com pouca demora. De cada vez que ia a férias, á Ilha. Apenas o tempo necessario para esperar aqui a saída dos paquetes.»

-- «Vaes gostar! asseverou-me. -- Lisboa é uma linda cidade. Eu adoro Lisboa. Um dos nossos peores defeitos é este, que todos temos, de dizer mal de tudo quanto é nosso -- «naquelle habito instinctivo de deprimir a patria» de que se fala no Mandarim do Eça de Queiroz, quando O General Camilloff pergunta a Theodoro: -- «Sabe chinez, Theodoro?» E Theodoro responde: -- «Sei duas palavras só: mandarim... e chá». O General passa a sua mão de fórtes cordoveias sobre a medonha cicatriz que lhe atravessa a calva, e observa: -- «Mandarim, meu amigo, não é uma palavra chinesa, e ninguem a entende na China. E' o nome que, no seculo XVI, os navegadores do seu bello paiz...» -- Quando nós tinhamos navegadores...» murmura Theodoro, suspirando; e o General, continua: -- «... Que os vossos navegadores deram aos funccionarios chinêses. Vem do seu verbo, do seu lindo verbo mandar...» E Theodoro rosna, no habito instinctivo de deprimir a patria: -- «Quando nós tinhamos verbos...» Ha quem diga que Lisboa é insupportavel. Eu acho-a magnifica!»

Tambem eu achava Lisboa magnifica. Mas um pouco ainda sob a impressão de enfado que me causara a impertinencia de trinta pobres andrajosos atravessando-se-me no caminho desde o Hotel até ao Ministerio, observei:

-- «Para quem não está habituado, o que aqui se torna desagradavel deveras é a impertinencia dos mendigos. Parece que toda gente pede esmola!»

-- «Ou, pelo menos, parece que toda a gente pede alguma coisa. Ha, porém, uma outra casta de pedintes muito peor, incomparavelmente peor do que esses que te perseguem na rua: são os mendigos dos Ministerios, os eternos pretendentes, os afilhados politicos, todo esse formigueiro espesso de cavalheiros de chapeu alto que viste lá em baixo, na Arcada, e que não abandonam a Arcada desde que o sol nasce até que alcançam despacho. O pobre da rua estende-te a mão, e passa, cobrindo-te de bençãos se lhe dás um, conformando-se com a sua sorte se tu apenas lhe recommendas que tenha paciencia. Mas o mendigo do Ministerio perseguir-te-ha, importunar-te-ha, seringar-te-ha, constranger-te-ha a fazer-lhe aquillo que te peça, porque desde o momento em que te entregou o seu memorial, que é a sua lamuria escripta, elle só deixará de sahir á tua frente, a embargar-te o passo para que te lembres d'elle, no dia em que o Diario do Governo tenha publicado o decreto que o nomeia, que o promove, ou que o transfere. Elle saberá a que horas tu saes habitualmente de casa, para que o vejas á tua porta. Elle acompanhará, a trote, os cavallos da tua carruagem, para que, de cada vez que a tua carruagem páre, seja elle quem te appareça a abrir a portinhola. Em seguida, galopando, tomará a deanteira, e quando fôres a entrar para a tua secretaria, será elle ainda quem, sollicitamente, te apparccerá a levantar o reposteiro.»

-- «E' um pesadelo!»

-- «E' uma carraça.»

-- «Mas é uma linda situação, a tua, de secretario de ministro...»

-- «Ha melhores, conforme os pontos de vista... Eu prefiro Buenos-Ayres... Mas concordo em que seja uma boa situação”

-- «Tu és tambem deputado, pois não és?»

-- «Claro! E' indispensavel. Nem ha outro meio de furar. Ter um voto nas Camaras, e fazer valer esse voto, é meio caminho andado para tudo o mais. Agora é que tu vaes vêr que precioso tempo andaste perdendo em Coimbra. O que todos nós, mais ou menos, aprendemos na Universidade, não nos serve aqui para nada. Tudo isto está bem longe de nos dizer como se applica um methodo scientifico ao governo das sociedades! De resto, que nos importa... Hoje, em Portugal, e tanto em politica, como em arte, como em sciencia, como em litteratura, ganha-se facilmente uma reputação de grande homem, apenas com alguma audacia e com algum pedantismo.»

Estas revelações -- porque para mim, ilhéo peludo e parvenu da politica, tudo quanto Fausto Guimarães acabava de me dizer eram verdadeiras revelações -- não me assustavam, nem sequer me intimidavam, perante a consciencia bem alta, em que eu vinha, do meu honroso mandato. Mas já nessa manha, ao almoço, o Poças se encarregara de começar o desbaste das minhas nobres illusões, nobres e cerradas; e comquanto eu bem houvesse percebido nelle, na sua frase hostil e no seu gesto amargo, um falso pessimismo, que elle devia envergar em cada manhã, e ao sahir do seu quarto numero 56 para a vida publica, como quem enverga um pardesus, não deixava de ser certo que a semente da desconfiança, lançada assim ás mãos ambas por Fausto Guimarães sob o terreno das rainhas falsas noções, encontrava esse terreno já um pouco revolvido á superficie...

Quiz ouvir mais, não por precavido sentimento de cautella e caldo de gallinha, que nunca fizeram mal a doente, mas por um natural desejo de me instruir depressa em materia que, de surpresa, se me afigurava inteiramente nova. E insisti:

-- «Em todo o caso, não é estadista quem quer, nem só porque o Rei o quer. Verdadeiro estadista era o Fontes. Verdadeiro estadista é hoje o teu Ministro!»

-- «Talvez, talvez podesse sê-lo. Mas não o é. Falta-lhe a envergadura!»

E chamando mais especialmente a minha attenção para uma estatueta que estava collocada sobre o marmore saliente do fogão mettido na parede, observou:

-- «Queres a melhor prova? Olha aquella pessima estatua. Conheces...»

Reparei, conheci.

-- «E' a estatua da Justiça...»

-- «Estás enganado! disse Fausto. E' a estatua da Injustiça. Eu te explico... No dia em que o meu Ministro aqui entrou pela primeira vez, possuido de uma verdadeira plethora de boas intenções, e sobraçando esse magnificente programma de governo que enterneceu a provincia, aquella figura, que tu ali vês, tinha a venda descahida de um lado, e via, por um olho, tudo quanto lhe convinha, ao mesmo tempo que um dos pratos da balança pendia mais para o lado do olho a descoberto. E sabes tu o que elle fez, mal aqui entrou? Foi-se á estatua, puxou-lhe a venda para cima, acertou o ponteiro da balança, e voltando-se para os chefes de repartição que tinham vindo cumprimenta-lo, disse: --«Fiat justicia!» Ora torna a olhar, fazes favor... Lá tens a venda outra vez deitada para baixo, e o ponteiro, outra vez, pendendo para o olho aberto... Emfim, tu vaes saber o que tudo isto é.»

Um dos coçados reposteiros de reps verde, que pendiam da parede alta aos lados do fogão, franziu-se devagarinho, como se alguem, que atrás estivesse escutando, se decidisse a apparecer-nos. E logo um nariz descommunal, de larga venta, e rombo, e cavalgado por uma luneta desusada de aros de tartaruga, atravessou-se na conversa, entre as maçãs de um rosto rosado e luzidio:

-- «Perdão... Peço perdão... Vinha saber se cá já estava o Ministro...»

Era o nariz impertinente de um cavalheiro exquisito, atarracado e sem barba, mettendo os pés para dentro e extremamente jovial. Vestia um casaco de astrakan com botões de madreperola, justo como uma luva, e muito curto, dando-lhe um grande relevo de formas, principalmente de formas posteriores. Calçava galochas de borracha e luvas amarellas, de camurça. Tinha pouco cabello; e esse pouco que tinha, e ralo, apartava o ao meio, com muita pomada, cheirando fórte a jasmim.

Mellifluamente, cumprimentou-me, inclinando a cabeça para o lado, esboçando um sorriso entre os labios grossos, baixando os olhos e arqueando um pouco os braços, em delicada mesura.

Fausto disse-lhe quem eu era. Teve logo muito gosto em me conhecer. Ai, Jesus! Parecia uma senhora... -- «A quem tinha eu tambem, já agora! o gosto de falar?»

-- «... Meleças, só Meleças, creado de Vossa Excellencia...»

E voltando se para Fausto, num reboliço:

-- «Como está o meu amigo? como está sua esposa? como estão os seus filhos?»

-- «Bem, tudo bem. E vossê? E a Opposição, como passa?»

-- «Ora, a Opposição! A Opposição só passa bem quando se acha no governo!»

-- «A Opposição é muito exigente! exclamou Fausto. Parece que Já não lhe basta o actual regimen de liberdade de imprensa!»

-- «A liberdade de imprensa, meu caro senhor, é uma liberdade tão cuidadosamente garantida, que não ha meio de a gosar devidamente...»

E dizendo isto, num risonho saracoteio de toda a sua pessoa, o pittoresco interlocutor de Fausto procurava lêr me nos olhos se eu já havia percebido que tinha na minha frente um espirito superior.

Fausto troçava-o, voltando-se para mim:

-- «Ouve isto e pasma, Joaquim do Amaral! Este homem, que tu aqui vês, o argucioso Meleças, redactor do Phantasma, ainda esta manhã publicava uma verrina tremenda contra o meu Ministro, attribuindo-lhe as peores infamias, arrastando-o pelas ruas da amargura, fustigando-o com o latego venenoso da sua satira, que é terrivel, e da qual te aconselho a que te livres... E aqui o tens agora, calcando com as suas formosissimas galochas de borracha, o tapete do gabinete d'esse mesmo Ministro, com a mesma semcerimonia com que ámanhã o verás calcar a propria consciencia, se elle o despachar segundo official! D'aqui a pouco vae chegar o Ministro, e tu, que mal conheces o teu paiz, poderás vêr então uma das coisas mais curiosas que ha para vêr em Portugal: o estadista sorrir ao jornalista que o desancou, e apertar a mão que lhe bateu até o deixar em sangue... Ha uma chamada brandura de costumes e uma liberdade de imprensa que consentem tudo isto, e Meleças ainda ousa achar pouco!»

Já de si aflautada, a voz do outro silvou em flautim:

-- «Ora os ministros! os ministros! Os ministros são todos como aquella grande cocotte que dizia: «O maior prazer que tenho tido na minha vida foi o de me sentir deshonrada!»

Era boa a piada. Rimos. E Fausto, applicando uma sonora palmada ao trazeiro do redactor do Phantasma, riu mais e disse:

-- «E vossê, ó Meleças, qual tem sido o maior prazer de toda a sua vida?

III

Era de boa politica, mesmo para um deputado independente, como eu, procurar ensejo de ser apresentado ao Presidente do Conselho antes de entrar na Camara e de prestar juramento.

Fausto sollicitaria para mim essa subida honra, e no dia seguinte, áquella mesma hora, quando o Ministro voltasse da assignatura regia, proporcionar-se-ia o ensejo.

Assim foi.

Eu nunca tinha tido occasião de falar com um ministro de Estado, a não ser com o Pimentel Gouveia, lente da Universidade, mas que apenas estivera no governo mez e meio, e só era ministro de Estado honorario quando andei na aula d'elle. E não era, por isso, sem um certo sobresalto, e uma tal ou qual intimidação, que eu aguardava, no gabinete de Fausto, o momento em que o meu amigo, correndo o coçado reposteiro de reps verde, me chamasse e me levasse até junto do seu Ministro...

Porque emfim, ser recebido no gabinete de um ministro, falar a um ministro, apertar a

mão de um ministro, mesmo quando se não tem de um ministro a errada noção que dos ministros tem o povo, considerando-os a todos, indifferentemente, capitães de ladrões ou grandes homens, segundo as necessidades do Orçamento os levaram a crear mais um addicional, ou as conveniencias da Politica os aconselharam a reduzir um imposto de barreira -- não era caso de todos os dias, nem dos que menos contam na vida de quem, como eu, julga imputar aos factos o seu exacto valor, e de tudo toma apontamento miudo nalgum canhenho de memorias.

E em vez de procurar desvanecer esse ligeiro sobresalto, aliás bem natural, emquanto não se franzia aquelle puido reposteiro de reps verde, a minha imaginação dava maior vulto, engrandecia de uma falsa importancia o simples caso, lançava perturbação nas minhas funcções psichicas, atrapalhava-me, em summa...

Para justificar, perante mim mesmo, a minha atrapalhação, imaginei-me transportado a uma extensa e doirada galeria onde se achassem reunidos, em desusado congresso, todos os ministros que tem tido Portugal nos ultimos sessenta annos -- e imaginei que todos elles, ao verem-me entrar, assim e sem mais nem menos, naquelle recinto que lhes era reservado como um pantheón, não occultavam surpreza e apenas procuravam dissimular, mas mal, como que uma certa suspeita receiosa pela minha inopinada presença de deputado independente, que vinha ali, sem duvida, para lhes pedir contas dos seus actos.

Avançando, porém, um passo para mim, cada um d' elles, e todos, por sua vez, me estendiam a mão.

Eu passava em revista essa immensa fileira de conselheiros da Corôa, e de todas as suas vozes, auctorisadas e convictas, ouvia o mesmo protesto: -- «Eis-nos offerecidos em holocausto no altar da Patria!» E eu pensava que, se os talentos abriam distancias entre tantos homens de Estado, aproximava-os, a todos, o sacrificio...

Mousinho da Silveira, informado de que eu vinha ás Côrtes com propositos terriveis de reforma, chamava-me de parte, deitava o rijo braço sobre o meu hombro debil, dizia-me ao ouvido: -- «Meu caro amigo, peço-lhe que me poupe... Olhe que isto da gente se deixar ser ministro, não é pequeno sacrificio. Afiguram-se marchetadas de estrellas as cadeiras do governo, e são entretecidas de espinhos! Poupe-me, poupe-me!»

José da Silva Carvalho e Agostinho José Freire, que cochichavam no vão de uma janella, vinham ao meu encontro, enleavam-me em blandicias; tinham ouvido já falar de mim, sabiam já que eu vinha disposto a metter tudo nos eixos, e appelavam para a minha clemencia: -- «Se Vossa Excellencia nos vê aqui, um na Fazenda outro na Marinha, é porque cedemos ante as obrigações que nos impunha a nossa qualidade de cidadãos portuguêses...»

Ainda estes illustres estadistas me não haviam largado, e já o Duque de Palmella e o Duque da Terceira me pediam desculpa, se não lhes fôra possivel reorganisar as finanças e consolidar o reino á medida dos meus desejos...

Joaquim Antonio de Aguiar, receiando ter-se tornado antipathico a minha Tia Genoveva, com o seu decreto de abolição das ordens religiosas, encarregava-me de expor áquella devota senhora as razões ponderosas que o haviam forçado a desferir esse golpe mortal na influencia dos miguelistas.

Adeantando-se, com delicadas maneiras, Costa Cabral desejou saber se eu me achava de accôrdo com a interpretação que elle dera á Carta, e se em meu entender fizera bem enfreando a liberdade de imprensa.

E eu procurava, atabalhoadamente, uma resposta amavel que lhe désse, sem muito me comprometter, quando Saldanha, intervindo, me livrou do embaraço: -- «Diga-lhe que sim, Amarante, diga-lhe que sim!» E lá foi seguindo, impavido, sobraçando as suas sete pastas dos seus sete Ministerios.

Perplexo e gauche, entre tanto espectro illustre, eu vi passar nessa galeria extensa, mais extensa, talvez, que a galeria dos Uffizi de Florença, todos os ministros de todos os ministerios, desde 1832 para cá: os da Restauração e os da Revolução de Setembro; os da Revolução de Abril e os da Reacção de Outubro; os da Maria da Fonte e os da Janeirinha; os da Revolta de Maio e os do Ultimatum de Janeiro... E todos esses ministros, de todos esses ministerios -- cartistas e setembristas, cabralistas e patuléas, granjolas e barjonaceos -- todos quantos implantaram, viciaram e desfructaram o sistema de governo parlamentar, em que eu agora intervinha, mettendo o meu bedelho e sobraçando o meu honroso mandato de representante do Povo, eleito pelo voto livre do Povo, se acercavam de mim com artes de sedução, lisonjeando a minha força para lhe quebrar os impetos, soprando a minha vaidade para me verem himpar e arrebentar como a rã de Hisopete; e todos elles, desde o Aguiar ao Fontes, e desde o Saldanha ao Bispo de Vizeu, tinham o ar de sollicitar, de implorar a minha indulgencia para os seus erros, lembrando-me, todos elles, que os homens que a Opinião precipitou hontem do poder, são sempre os mesmos que essa mesma Opinião, moderada já, irá buscar amanhã para lhes confiar os seus destinos...

...Uma porta rangeu, vi correr-se o reposteiro. A um aceno de Fausto, achei me introduzido no gabinete do Ministro. E o que immediatamente se passou, em realidade, foi o perfeito seguimento, quasi logico, d'aquella especie de allucinação patusca de que me saccudiam -- apenas com esta differença: é que já não era o Ministro que se amolgava perante a independencia do meu honroso mandato, como o Costa Cabral e como os outros; era eu, agora, que vergava o espinhaço na presença do Ministro, e mal me atrevia a avançar do limiar da porta:

-- «...Vossa Excellencia dá licença?...» disse.

-- «Entre, faça favor!»

E logo estendendo-me a mão com lhanesa, e como se já me conhecesse de ha muito, o Ministro continuou:

-- «Ainda bem que veiu! Já cá estava a fazer falta. Foi o diabo, essa angina... De mais a mais com recahida. E trinta e oito graus de febre, ein? Olhem que brincadeira... Já tinha estado em Lisboa?»

-- «Já, mas com pouca demora...»

-- «Vae gostar. Lisboa é uma linda cidade... E vem decidido a trabalhar devéras na politica? Parece-lhe que se adaptará bem a este meio?»

Eu já não sabia ao certo onde estava, nem de que terra era. Disse que sim, ao acaso.

-- «Creio que sim... Assim o desejo, pelo menos.»

-- «Ha-de adaptar-se! insistiu elle, achando mole, e carregando. -- Sei que possue excellentes qualidades de orador. Seja bemvindo, porque é justamente d'isso que nós mais precisamos na Camara. Mas ser orador não basta. Convirá que adopte qualquer especialidade... No Parlamento, como na Medicina, é necessario ser-se um pouco charlatão, para conquistar rapidamente uma boa vóga. Os especialistas têm sempre uma percentagem muito avultada para subir depressa. Nós temos, como sabe, os especialistas dos orçamentos, os especialistas dos pareceres, os especialistas dos ápartes, os especialistas dos apoiados... Temos até os especialistas de quebrar carteiras! E' necessario que o meu amigo comece desde já a tatear o terreno, para descobrir a especialidade que mais lhe possa convir...»

Esta desataviada franqueza de acolhimento, esta correntia, familiar maneira de dizer, que desde logo deviam pôr-me á vontade, mais me perturbavam, me amachucavam. Desconfiado sempre, ilhéo pelludo, neófito e inexperiente nas ronhas da politica, eu não atinava em distinguir o que podesse haver de sinceridade, ou o que podesse haver de intrujice, em recepção apparentemente tão affectuosa.

Depois, aquella miuda circumstancia de ter chegado ao conhecimento do Ministro a noticia da minha angina pectoris, e o facto, quasi enternecedor, d'ella não ter passado de lembrança a esse homem, que tantas e tão graves coisas devia ter em que pensar, chegando a precisar até, e depois de tanto tempo, o grau a que subira a intensidade da minha febre, e o caso da recahida, e os dotes de oratoria que me eram attribuidos... -- tudo isso me enchia de surpreza, me embrulhava e me engasgava em tão difficultoso lance.

Oscillei, vacillei um instante, encarei Fausto Guimarães, que observava de lado o meu estado de alma, e sorria.

Fausto, argucioso, rapidamente leu no meu olhar uma urgente consulta, e respondeu de prompto, com um gesto energico, muito d'elle: que me atirasse eu de cabeça!

Ao mesmo tempo, e sem me darem mais tempo para deliberar, uma fórte mão invisivel cravou-me nas costas os cinco dedos aduncos, empurrou-me para a frente. Senti que o chão me fugia debaixo dos pés, fechei os olhos, mergulhei no abysmo:

-- «Eu ponho-me, incondicionalmente, ao dispor de Vossa Excellencia.»

Era a mão miseravel do miseravel Tarquinio!

-- «Muito obrigado!» disse o Ministro.

E eu fiquei sem saber se era a mim que elle agradecia o ter-me eu submettido, ou se era ao espirito do Doutor Tarquinio que o Ministro agradecia o ter-me elle empurrado...

Na marcação d'esta scena grotesca, entrava outra personagem, para quem o Ministro se voltou, tratando-o por -- Padre Eterno, e dizendo:

-- «Temos aqui (referia-se á minha pessoa) o vogal que nos faltava para a commissão do Codigo. E' necessario aggrega-lo, inicia-lo já. Não podemos perder mais tempo... E a proposito, diga-me, em que alturas vae a discussão do projecto?»

-- «Vamos agora no artigo 32...» informou Padre Eterno, pachorrentamente. -- A questão das provas foi muito demorada. O Manoel de Sá queria a todo o transe que se dispensassem as offensas corporaes... Toda a gente sabe que elle será um dos primeiros, se não o primeiro, a aproveitar- se da lei do divorcio, mas parece que não lhe chega o animo para bater na mulher! E quasi toda a sessão de hontem se passou a ouvi-lo... Não vejo meio de apressar a discussão...»

-- «Nem ha necessidade d'isso. Pelo contrario. Convem-me que o projecto se demore na commissão até ser votada a reforma dos parochos. Temos ainda uns quinze dias... Mas tambem me convém que as reuniões da commissão sejam mais frequentes, para que os jornaes falem, para que se veja que alguma coisa se faz...»

-- «Nesse caso, concordava o Padre Eterno, não cortarei a palavra ao Manoel de Sá!»

Este Padre Eterno era o director geral dos Negocios Ecclesiasticos desde 1847, nomeado ainda pelo Silva Ferrão -- Francisco Antonio Fernandes da Silva Ferrão, que fôra ministro com o Franzini, e com o Barão de Almofala. Reconheci-o logo, vendo-o entrar no gabinete, sobre uma caricatura soberba de Bordallo, no Album das Glorias.

Era aquillo mesmo: a mesma hipertrofia dos tecidos adiposos, a mesma proeminencia do mento sensualão; e a perna curta e cambando para fóra; e a larga venta atulhada de simonte, e o olho somnolento, de carneiro mal morto, ensopado na membrana volumosa dos bordos palpebraes; e todo elle eriçado de cerdas como um suino, nas sobrancelhas e nas fontes, nas ventas e nos ouvidos, nos pulsos e nos dedos... E aquella mesma faceira, e a cachaceira esparralhada transbordando da golilha rôxa de conego, como da bocca de um boião de gorduras...»

Mudando de tom, para um tom de enfado, o Ministro perguntou:

-- «Traz ahi muita coisa, Padre Eterno?»

-- «Trago só o mais urgente, o que não póde passar de hoje. -- E procurando um processo entre os dois grossos maços de processos, que os seus braços curtos abrangiam a custo, continuou, passando-o ás mãos do Ministro: -- Isto é o caso do Conego Boavidinha... O Bispo tem razão. Na ha meio de lhe valer. Está averiguado que os filhos do Administrador são todos d'elle. O ultimo tem dois mezes... E' um escandalo! O Administrador fechou a mulher num sotão, e tem-na, vae em tres semanas, a pão e laranjas. O Conego anda furioso, parece que armado de um bengalão de marmeleiro, á procura do Administrador por toda a parte, dizendo a toda a gente que o desanca, se elle não lhe solta a mulher!»

-- «E' espantoso! E o Administrador o que é que diz a isso?»

-- «O Administrador não apparece na rua, e vae de casa para a Administração por cima do muro do quintal, que é pegado. Ainda no domingo passado, que era dia de feira, e houve lá desordem, por mais que o chamassem não houve meio de o fazer sahir, e só appareceu á janella para dizer que não estava em casa! E foi o proprio Conego que se pôz á frente dos guardas e varreu a feira.»

-- «E' uma situação insustentavel... ponderou o Ministro. -- E o que diz o Bispo?»

-- «O Bispo ameaçou-o já de que lhe tirava a missa, e quer que nós o tiremos d'ali p'ra fóra.»

-- «Mas é o diabo, porque o circulo é d'elle! Havia uma revolução.»

-- «...Se Vossa Excellencia quizesse, talvez achassemos um meio: trazê-lo para Lisboa.»

-- «E como? em que situação?»

-- «Fazendo-o deão da Sé.»

-- «Mas elle não deixa a mulher!»

O Padre Eterno era o decano dos Directores geraes, e o prototipo, fidedigno, de todos eles. Era o homem de confiança dos Ministros, o alto funccionario entre os altos funccionarios, aquelle que, dentro dos complicados, tortuosos meandros da burocracia, tudo sabe, tudo resolve, tudo explica; centralisando sob o dominio da sua garra todos os negocios; fazendo depender do seu juizo todas as deliberações superiores; monopolisando no seu conselho todos os conselhos. E creando, e sustentando, e avolumando embaraços sempre que fosse necessario embaraçar; e admittindo, e patrocinando, e procurando facilidades sempre que fosse necessario facilitar...

-- «Traz-se tambem a mulher!» despachou elle. -- A mulher era professora de instrucção primaria, e Sua Excellencia podia, pelo Ministerio do Reino, transferi-la para Lisboa.

-- «Mas o marido, o Administrador?»

-- «Ora! o marido, se Vossa Excellencia lhe fizesse constar que o demittia, sob qualquer pretexto, largava mais depressa a mulher que a administração do concelho.»

O Ministro ainda hesitou um momento. Tolice! Não havia que hesitar. Mandassem vir o Conego; e elle trataria então, pelo Ministerio do Reino, de transferir essa pecora da mestra.

O Padre Eterno escolheu outro processo, metteu-o á cara do Ministro.

-- «Temos agora aqui um outro bico d'obra... E' o resultado do concurso para segundos officiaes. Tivémos de pôr em primeiro logar o Meleças...»

O Ministro deu um salto, empertigou se na cadeira:

-- «Qual Meleças?!»

-- «O Meleças... o do Phantasma.»

-- «Isso não póde ser! Não, lá isso, meu caro Padre Eterno, tenha paciencia... O Meleças! nomear eu o Meleças! Esse desavergonhado Meleças que me tem dito as ultimas... Não, lá isso, não!»

O Padre Eterno esclareceu:

-- «Assim o entendeu o jury. Se Vossa Excellencia o preterir, mais o exaspera... Se Vossa Excellencia o nomear, talvez elle se cale.»

-- «E as provas?» indagou o Ministro, já mais manso, tendendo já a uma possivel conciliação de coisas.

-- «As provas... não foram boas. Mas Vossa Excellencia bem sabe que isto agora não é uma questão de provas, é uma questão de conveniencia para o Governo.»

-- «Pois sim, tem vossê razão... Mas, ó meu caro Padre Eterno, diga-me com franquesa: se esse Meleças tivesse escripto a seu respeito o que de mim tem dito no Phantasma desde que eu entrei para o Ministerio, e se vossê tivesse de despacha-lo segundo official, mesmo num concurso, e com boas provas, vossê despachava-o, ó Padre Eterno? Olhe bem para mim, diga-me com franquesa...»

-- «Eu não o despachava, não senhor: eu mettia-o num processo!»

-- «Mas então...»

-- «Mas então... E' que o Meleças nunca escreveu uma linha contra Vossa Excellencia!

Aquelles artigos não são d'elle. Nem elle sabe escrever.»

-- «Em todo o caso, assigna-os. E se elle nem sabe escrever, mais uma razão para que eu não me ache de accordo com a classificação do concurso. Quem ficou em segundo logar?»

-- «Em segundo logar, ficou o filho do Conselheiro Paiva. Tem uma lettra magnifica.»

-- «E não tem mais nada? Para segundo official, é talvez pouco...»

-- «Tem o tio, que é presidente do Tribunal de Contas!»

Sahi d'ali aterrado. Eram então assim os ministros! Era então assim a Politica! Mas não deviam ficar por ahi as surprezas d'esse dia, já agora memoravel.

Fausto Guimarães descera comigo do Ministerio á Arcada, offerecera-me logar na carruagem que tinha á sua espera. Chuviscava. E como eu nada tivesse que fazer de urgente nesse resto da tarde, nem o tempo convidasse a um giro na Baixa, acompanha-lo-ia ao Salitre, onde precisava deixar uma encommenda, dariamos depois a volta lá por cima, e elle viria pôr-me á porta do Hotel á hora do jantar, não me dizendo que fosse eu jantar em sua casa, porque estavam sem cozinheiro.

Só o meu querido Fausto me não dava surpreza, depois de tanto que o não via, desde que nos tinhamos separado em Coimbra, na noite da recita do nosso quinto anno, e na balburdia final d'aquella ceia opipara, que coroara de espumas de Champagne o nosso curso de Direito. Estava o mesmo, era sempre o mesmo: expansivo, alegre, bom rapaz, mettendo-nos no coração!

Mas quando desciamos a larga escadaria do Ministerio da Justiça, Fausto deixou-me avançar tres degraus, e observou:

-- «O' Joaquim do Amaral! Olha que essa sobrecasaca não te está nada bem... Isso é sobrecasaca da Ilha, com certeza! Ein? Ora diz lá...»

-- «Pois está visto que é, e então?! que defeito lhe achas?»

-- «Não sei... não sei... Nem admira que o não saiba: eu não sou o Strauss! Mas vae-te mal, vae-te mesmo muito mal, muito curta e muito larga... E a góla a fugir do collarinho, e as abas que arreganham... E' um horror, Amaral, é um horror! Vossês, na Ilha, sabem fazer admiravelmente eleições, mas não sabem fazer sobrecasacas! desculpa que t'o diga.»

-- «Querias talvez que eu mandasse fazer a minha roupa a Londres!»

-- «Ora essa! e porque não?! Não manda Londres buscar laranjas á tua Ilha?»

Estava eu muito enganado se ainda julgava que essa coisa de mandar de Portugal fazer fatos a Londres era uma pura fantasia dos janotas que o Eça mettia nos seus romances. Em materia de «costumes», como diria o Poças rejubilando com o trocadilho, tudo nos vinha agora da Inglaterra, de Londres.

Esquecera-se Kionga, esquecera-se o Ultimatum, desembaraçara-se dos crepes d'esse passageiro lucto nacional a estatua de Camões. Em menos de seis mezes, coisa curiosa! operara-se no animo dos portuguêses uma singular transformação. Estávamos inglêses! Eramos inglêses! Queriamos morrer inglêses! Como se produzira este fenomeno? Como se operara esta transformação?

Ninguem o sabia!

Mas estava-se na presença de um facto, e de um facto perfeitamente assente, exacto, irremediavel, consummado. Tinhamos de acceita-lo, assignala-lo apenas, sem controversias.

E Fausto, empurrando-me para o fundo da sua carruagem, que logo rodou e metteu pela Rua do Oiro, foi dizendo em que consistira essa extraordinaria mudança de caracter nacional, e qual a influencia d'essa mudança no animo e nos costumes da gente portuguêsa...

Os amigos da Inglaterra faziam da alliança inglêsa o eixo de toda a historia de Portugal -- desde a conquista de Lisboa, assignando Dom Affonso Henriques o primeiro tratado. Não havia empreza nossa sem inglêses, e a honra de ser uma provincia da Inglaterra, como ficámos sendo depois do tratado de Metwen, não era pequena honra. A respeito d' esse tratado, agora, nenhum português de lei poderia deixar de condemnar a opinião do Oliveira Martins, que dissera reunir elle, á concisão epigrafica de um texto romano, a agudeza penetrante de um negociante carthaginês, ou judeu... Portugal daria fructas e vinho aos inglêses; os inglêses dariam a Portugal manufacturas e comer. Ficavamos sendo uma colonia vinicola da Inglaterra. E dizia-se agora, e escrevia-se nos jornaes, que esta era a tradição de toda a nossa historia!

Depois, em tres grandes momentos, essa alliança nos servira para mantermos a independencia: em 383, em 1660, em 1808... E ninguem lembrava que, da primeira vez, o que os inglêses quizeram foi garantir ao Duque de Lencaster a corôa de Hespanha; e consolidar, da segunda, o seu nascente imperio na India; e bater, da terceira, Napoleão, ateando em nós a raiva de termos perdido Olivença.

A Convenção, o Comité de Salvação Publica, o Directorio e o Junqueiro teimavam em considerar Portugal uma provincia de Inglaterra, e não estavam contentes com isso? Pois que tivessem paciencia!

E em cada manhã o Diario de Noticias offerecia, na sua secção de annuncios, tresentas mestras inglêsas, que se promptificavam a ensinar o inglês sem mestre em menos de quinze dias. E as livrarias reeditavam e vendiam milheiros do Novo Methodo de Ollendorf para aprender a lêr, escrever e falar a doce lingua inglêsa em menos de seis mezes...

As mercearias, que por occasião do Ultimatum tinham retirado das barricas de margarina o lettreiro de -- Manteiga inglêsa, legitima, reintegravam o lettreiro nas funcções do seu cargo.

O Ferrari, o Pucci e o Cócó expunham nas suas vitrines apetitosos exemplares de puding inglês -- traduzido!

A elegante camisaria do Augusto Ribeiro, ao Chiado, vendera numa só tarde doze duzias, uma grosa! de collarinhos Principe de Galles, 15 centímetros de altura, que existiam na loja desde a fundação da Monarchia.

Um grupo de homens de lettras e artistas, que tinham andado atrás do deputado Eduardo Abreu na noite de 11 de Janeiro, dando morras á Rainha Victoria e vivas a Camões, percorria agora as ruas da Baixa em bando precatorio, pedindo cinco tostões para uma manifestação de mesa redonda na Taberna Inglêsa.

Eduardo Costa, á Pampulha, lançava no mercado uma nova marca de bolachas denominadas -- Pic-pockets, de delicado sabor e perfume de baunilha.

Na lista das casas de pasto, as comidas mais vulgares recebiam nomes inglêses, deploraveis: peixe frito era --fried fish; uma costeleta de vitela era -- a veal cutlet; uma almondega era -- a forced-meat ball!

Os creados, se se lhes falava português, não respondiam. Para pedir um garfo, era necessario dizer:

-- Give me a fork!

E para pedir uma colher:

-- Give me a spoon!

A conversação familiar, a propria conversação familiar, isto a que se chama conversar cada um em sua casa, com a sua mulher e com os seus filhos, tornara-se uma verdadeira massada:

-- Tem V. o meu chapeu?

-- Have you my hat?

-- Tenho o seu chapeu...

-- I have your hat.

-- Não tenho o seu chapeu, mas tenho o lapis do rapaz do seu sapateiro.

-- I have not your hat, but I have the pencil of your shoemaker’s boy...

Levados nesta impetuosa corrente da Opinião, os jornaes tinham inaugurado plebiscitos sobre as probabilidades de uma nova alliança inglêsa, e por esse meio se averiguara, se patenteara á luz do nosso bello sol, que a fina flôr, o escol, a nata da intellectualidade de Portugal votava por unanimidade que se entrasse abertamente, immediatamente, nas negociações do tratado que devesse firmar a ambicionada alliança.

Respondendo a esse plebiscito, um alto funccionario do Estado dissera: -- «...Porque todos nós devemos compenetrar-nos d'isto: a alliança com a Inglaterra é o clarão de uma boa esperança -- a esperança de voltarmos a receber os nossos ordenados em libras!»

Uma illustre escriptora publica succintamente emittira, nestes termos, o seu voto na materia:

-- «Ah! não me perguntem nada... Estou com os Inglêses!»

Um diplomata e poeta, parafraseando a Portuguêsa, que fôra o canto de protesto inspirado pela humilhação do Ultimatum, compozera outro himno que começava assim:

Heroes do mar, nobre povo,

Nação valente, immortal!

Isto não é nada de novo

Entre Inglaterra e Portugal!

A's armas!

A's armas!

Sobre a terra, sobre o mar!

-- «Mas voltando á tua sobrecasaca, continuou Fausto, permitte-me que te aconselhe a que procures o meu alfaiate, e lhe encommendes uma outra. E desfaz-te d'essa. Presenteia com ella o guarda-portão do Borges, que saberá enverga-la com elegancia... O Parlamento é ainda um logar de exhibição. O deputado tem de andar bem vestido, com boas luvas... Olha o Jaurés, em França, na democratica França, como elle cahiu em ridiculo, por se apresentar no Parlamento de blusa socialista!»

Eu ainda tentei alguns argumentos em defesa dos meus principios e da minha sobrecasaca. Afigurava-se-me que o tempo não devia muito sobejar para semelhantes futilidades de vestuario e de elegancia a quem quizesse, deveras, preoccupar-se com as altas questões e com os altos assumptos que deviam absorver a vida parlamentar. Mas Fausto sahiu-se-me logo, e com furia, aos impedimentos. Estava eu muito enganado, redondamente enganado! E a nossa velha, e boa, e segura amizade não consentiria que elle me deixasse debater, espernear nesse engano, como uma mosca que se debate e esperneia na teia de uma aranha!

Em obediencia ao Regimento, eu devia ser introduzido na Camara por dois dos meus collegas, deputados. Convidara-o já a elle, Fausto Guimarães, para ser um d'esses meus padrinhos... (O outro seria o Poças, já convidado tambem). Pois ficasse eu sabendo que elle não limitaria esse seu grato papel á formalidade do Regimento; iria até onde a sua estima por mim lhe permittisse; e a sua estima por mim não só lhe permittia, impunha-lhe o dever de bem me encaminhar naquella senda tortuosa por onde eu queria tomar ás cegas, quando me era preciso, ao contrario, arregalar muito os olhos!

-- «Já tens assignatura em S. Carlos?» perguntou-me.

-- «Nem pensei nisso sequer...»

-- «Pois tu não gostas de musica, homem da fortuna? Uma coisa de que até os selvagens gostam!”

-- «Gosto, até gosto muito; mas ainda esta manhã, ao almoço, se discutiu deante de mim essa coisa de assignatura em S. Carlos. Parece que é uma formidavel burla. Os assignantes ouvem sempre a mesma opera, e quando ha opera nova a recita é extraordinaria. Disse-me um hospede do Borges que, segundo os seus calculos, o assignante virá a ter, nesta epoca lirica, setenta e cinco por cento de Huguenotes! Ora eu acho preferivel ouvir as operas que mais me agradem, a ouvir aquellas que mais agradem ao emprezario...»

-- «Joaquim do Amaral, o teu caso é outro! Não se trata de saber se a opera é sempre a mesma, nem se a empreza te intruja. Quem tem uma cadeira em São Bento precisa ter uma cadeira em São Carlos. E assim como para se estar em São Bento o que menos importa é fazer boa politica, assim para frequentar São Carlos o que menos importa é que seja boa a musica... Depois, quem não tem uma idéa para apresentar no Parlamento, tem sempre uma casaca para exhibir na Opera; e uma boa casaca é já, e só por si, uma excellente recommendação!»

Risonhamente, e com affavel malicia, declarei a Fausto que o achava insupportavel. Parecia-me uma personagem deslocada do theatro do Dumas filho, com a incumbencia de animar o dialogo d'essa comedia em que eu me via mettido, fazendo frases á minha custa... Que fim levara então o meu Fausto, aquelle grande, e são, e incorruptivel Fausto da Couraça dos Apostolos, inimigo rispido de todas as convenções e de todos os paradoxos?!

A carruagem parou.

Fausto abriu a portinhola, desceu, foi tocar no botão de uma campainha á porta da casa que naquella rua (que era a Rua do Salitre) tinha o numero 245.

Não teria demora. Apenas entregar uma encommenda, fazer uma pergunta, e mais nada. Cinco minutos, Amaral, só cinco minutos!

Um creado de gravata branca veiu abrir. E percebi que Fausto perguntava se a Senhora D. Claudia estava em casa... Entrou, fechou-se outra vez a porta, e eu esperei, esperei, fartei-me de esperar.

Quando me parecia que já era de mais e olhei o relogio, tinha passado meia hora. Eram cinco e vinte! Receei não chegar ao Hotel a horas de jantar...

Mas Fausto apparecia nesse mesmo instante, todo açodado:

-- «O' menino, perdôa! Não foi minha a culpa...»

A culpa fôra de D. Claudia, que o detivera todo esse tempo, com mil perguntas, mil recommendações, mil coisas; e não o deixara sahir antes, apesar de saber que elle tinha alguem a espera-lo, era baixo, no meio da rua. Era uma séca, uma verdadeira sarna! E depois, menino, absorvente, despotica, absoluta, quasi tirannica! Irra, que era demais!

Pois sim. Podia elle ter carradas de razão. Mas eu é que não sabia quem era D. Claudia.

-- «O quê, Amaral? Pois tu não sabes quem é a D. Claudia? Tu nunca ouviste falar da illustre D. Claudia? Mas isso é o mesmo que não saber quem foi Cleopatra, ou Agripina! O que sabes tu, afinal, meu desgraçado amigo, da eterna rotação da Terra em volta do grande Sol?»

Pois nada sabia, não. E era eu, agora, que lhe pedia desculpa... Elle tomava, porém, sobre si, e de motu-proprio, o bello encargo de ser meu farol e meu guia, meu roteiro e meu elucidario. Onde eu não soubesse, que lhe perguntasse! Não sabendo quem era D. Claudia, acceitava o favor, e perguntava...

Vim então no conhecimento de que essa D. Claudia, essa «sarna de D. Claudia» fôra a impulsora e era hoje a chefe do (para mim ignorado) movimento de propaganda feminista que se fazia em Lisboa, á semelhança das grandes capitães, com o complicado e perigoso fim de obter a declaração dos Direitos da Mulher, como consequencia logica da declaração dos Direitos do Homem!

Nem eu, nem Fausto -- nenhum de nós sabia, a par d' essa prerogativa maxima que a mulher moderna se arrogava, o que viria a ser de tudo aquillo a que, até então, nós chamavamos, talvez com demasiada vaidade -- os Direitos do Homem! Tanto se prégara que a causa da mu- lher era a grande causa do seculo; tanto se dissera que o homem era a força, e a mulher a graça; tanto se repetira que a escravidão das Evas se tornara indigna dos benevolos Adães -- que as coisas tinham chegado ao ponto de rebuçado em que eu as vinha encontrar.

Na discussão muito acesa dos doutrinarios modernos, entre Stuart Mill (que queria a mulher emancipada do seu triste papel de serva, ou da sua pouco invejavel situação de odalisca) e Schopenhauer (que, ao contrario do seu confrade inglês, apenas concedia á mulher, e quasi que por muito favor, as funcções domesticas, a sujeição e o trabalho no interior da casa) vencera Stuart Mill. A escrava fizera-se senhora: Senhora D. Claudia... A graça alargara com sorrisos as suas cadeias; a fascinação fizera cahir a seus pés os seus dominadores.

Os legisladores começaram então a preoccupar-se com o destino da mulher nas suas condições civis; os pedagogistas procuraram melhorar-lhe as condições de instrucção; os economistas alargaram-lhe as condições industriaes; os filosofos acabaram de encher-lhe o cerebro de minhocas; e assim se viu a mulher açambarcar todas as profissões e todos os ideaes do homem.

Ella foi, definitivamente, tudo quanto quiz ser. Ella foi advogado, ella foi medico, ella foi amanuense. Ella foi guarda livros, ella foi guarda-freios, ella foi guarda-fios. Ella foi telegrafista, ella foi ciclista, ella foi organista.

Ella vestiu calças e usou ceroulas. Ella fumou de cachimbo e poz chapeu de côco. Ella tocou pratos e foi clarinete.

Ella fez comicios, ella fez congressos, ella fez desordens.

Para alinhavar discursos, ella deixou de apontoar meias; para fazer frases, ella deixou de ter filhos.

Seccaram-se-lhe os peitos, cerraram-se-lhe os buracos para os brincos, cresceram-lhe pellos na barba e cabellos no coração.

Em presença d'esta revolução, attonito, o homem nem pensara em reagir. Conformara-se, tivera ao menos o criterio de acceitar sem reparo uma situação que tinha preparado pelas proprias mãos, submettera-se.

Quando a mulher veiu para a rua, metteu-se elle em casa. E varreu a casa, limpou o pó, lavou as vidraças, sacudiu os tapetes, fez a cama, despejou a bacia, chamou a varina á escada, bateu as palmas da janella ao carvoeiro, acendeu o lume, poz a panella a geito, abanou, abanou, abanou.

Foi, depois, sentar-se á machina e coseu, coseu a sua mágua comsigo mesmo, silenciosa Singer. Bordou a retroz, bordou a lãs, bordou a missanga. Passou a roupa a ferro, escovou as botas, deitou camfora nas roupas.

Depois, foi pôr a meza; e quando tudo estava prompto, antes que a senhora tivesse voltado para casa, teve elle tempo ainda de conceber um filho. A senhora, quando voltou, era pae! E elle foi depois, bondoso e amoravel, o verdadeiro modelo das mães... Só isto o salvava, e o desculpava, de todo o seu descuido e de toda a sua ignominia!

Tudo aquillo que d’antes constituia a feição simpathica e nobre da missão da mulher, e lhe dava um risonho realce ao lado do esforço e do sacrificio do homem, completando-se ambos na missão commum, era uma coisa que passara de moda, como a crinoline. Os Codigos modernos, querendo tudo aquilatar segundo a melhor filosofia da razão, haviam operado uma revolução assustadora, sanccionando conquistas pavorosas da egualdade civil dos sexos.

Obtida a conquista da egualdade civil, caminhava-se já, de fronte alta, para a conquista da egualdade politica.

A mulher fôra assim arrebatada ao meio em que a sua dedicação enchia de alegrias dôces a vida dos que ella amava -- irmãos, pães, esposo e filhos, quando toda ella se occupava nas mil e uma applicações amoraveis da sua actividade, bondosa de sua indole, contente do seu destino, vivendo para todos esses pequeninos sacrificios ignorados de que se compõe a vida de uma mulher dedicada: sacrificio do seu tempo, dos seus gostos, da sua pessoa; alimentando esse terno, luminoso poema do silencio do lar, das escolas, dos hospitaes, onde ella, mãe, educadora, enfermeira, inteiramente se consagrava ao bem-estar dos outros, numa lenta e benefica infiltração de bondade, de docilidade, de meiguice... A maternidade perdera os seus doces encantos de protecção, de vigilancia, de carinho, em volta de uma pequenina creatura a quem era preciso desenvolver o corpo, formar o coração, incutir o caracter, pelo leite, pela palavra, pelo exemplo; e ficara sendo, repulsivamente, um longo e doloroso trabalho fisiologico...

Indo dos pequeninos sacrificios aos grandes, aos ruidosos sacrificios, que sempre dotaram de mulheres celebres a historia de todos os povos, até esses eram amesquinhados, quasi mettidos a ridiculo, pelo movimento empolgante das recentes idéas, que arbitravam á mulher uma grande força e uma grande importancia, mas uma força e uma importancia toda de ordem puramente moral, apoiadas só na Opinião tolerante dos homens.

E só neste capitulo, que formosa era, e que arrogante, a tradicção das nossas guerreiras e ardilosas patricias!

Ahi tinhamos, por exemplo, aquella Deusadeu Martins, merecedora de que a sua municipalidade adoptasse por brazão uma mulher -- que fôra ella -- sobre as ameias de uma torre, com dois pães nas mãos, e em posição de os arremessar aos inimigos. Exhausta de mantimentos, ia a praça de Monsão render-se pela fome. E que ideou a portuguesinha valente? De uns restos de farinha fez aquelles pães, trepou á muralha, e atirou-os aos sitiantes, bradando que havia pão dentro da praça para dar e vender...

E a nossa Brites de Almeida, a graciosa padeira, que amassara dentro de um forno alguns castelhanos fugitivos?

E o caso de Margarida de Abreu, apunhalando o rosto de um cavalheiro que a ultrajara?

E aquellas que no memoravel cerco de Diu formavam um batalhão, e acarretavam pedras, e levavam os aprestes necessarios ao fogo, e arremessavam contra os inimigos tudo quanto lhes podia causar damno, «sempre promptas e opportunas?”

A perturbação que esse movimento feminista vinha trazer á doçura dos nossos costumes, ao socego dos nossos lares, ao regalo das nossas rotinas, ganhava terreno sobre o sentimento nacional, sempre propenso á benevolencia, á fantasia e á galhofa.

Esse golpe de audacia que a mulher portuguêsa, a nossa querida mulhersinha portuguêsa, tão recatada, tão séria, tão bananinha, e tão boa filha, tão boa mãe, tão boa dona de casa, vibrara na situação de invejavel garantia que disfructava -- tinha assarapantado o sexo fórte.

Ella queria ser eleitora e queria ser elegivel; queria ser deputada e queria ser ministra; queria ser administradora e queria ser juiza. Mas em vez de atroar os ares com um grande grito de guerra; e em vez de pegar em armas, em pedras e em pás do forno; e em vez de vir para a rua, de braço arregaçado, cabellos desgrenhados, e o peito aberto ás balas, disposta á renhida lucta que bem sabia ter de travar para obter a conquista dos seus direitos politicos -- a lambisgoia traçara outro plano, lançara mão de outras armas, gizara outros ardís.

Para desarmar os exercitos, fundara a Liga da Paz. Para reunir e concentrar energias, creara a Associação. Para acirrar os exaltados, annunciara o Meeting. Para estimular os simples, abrira a Conferencia. Para viciar a atmosfera, lançara o Jornal. Para subjugar os rebeldes, atirara-se ao Namoro. Para chamar a attenção dos indifferentes, emprehendera a Cocega! E, finalmente, para melhor trabalhar, intrigar, agitar, e ganhar a confiança dos governos, mettera-se na Politica.

Neste afan de disputar ao homem todas as funcções da vida social, e para isso de peito feito a empregar todos os meios, todos os recursos, todos os expedientes, a mulher portuguêsa facilmente encontrara do seu lado todos os grandes pensadores, todos os grandes filosofos, todos os grandes pedagogos, todos os grandes economistas, todos os grandes publicistas, todos os grandes oradores.

Fizera-se um movimento poderoso de vulgarisação das novas doutrinas, todo um apostolado se erguera prégando a bella causa, pozera-se em acção uma claque enthusiastica applaudindo todos os dispauterios que a propaganda feminista fazia circular, já pelo artigo, já pelo relatorio, já pelo discurso.

Quando chegou o momento de passar da theoria á pratica, e das palavras aos factos, a mulher portuguêsa, a nossa querida mulhersinha portuguêsa, que afinal não era tão simples como se suppunha, passou o pé aos pensadores e aos filosofos, aos pedagogos e aos economistas, aos publicistas e aos oradores -- e lançou-se nos braços dos ministros.

Ora os ministros são homens, para determinados effeitos, como os outros homens. E no momento em que eu chegava a Lisboa, e entrava na politica, a mulher do meu paiz, tendo subjugado os ministros do meu paiz, convertia em leis todos os seus projectos.

-- «Já tu vês, dizia-me Fausto, que não podias chegar em melhor occasião. E' claro que o bom jogo vae todo para os ministros, que levam as reformas á Camara. Mas somos nós que votamos as reformas, e, por tabella, sempre alguma coisa nos tóca...»

Mettido na commissão da reforma do Codigo, achava-me eu, sem o saber, ao serviço de D. Claudia, por amor de quem se tratava de reformar o Codigo. Tudo isso era, porém, um complicado enrêdo que levava muito tempo a contar, e ficava para depois.

Arranjasse eu uma sobrecasaca contemporanea, folheasse alguns capitulos da Arte de viver na sociedade, que adeantava já muito ao Manual da civilidade do João Felix Pereira, e quando estivesse prompto que lh'o dissesse, para elle me levar a casa de D. Claudia, e apresentar-me, lançar-me...

Chegavamos ao Hotel. Já não chuviscava, o céo aclarara um pouco, havia mais gente nas ruas. A' porta do Borges, aguardando o toque da sineta para o jantar, encontrámos o Poças.

Defronte do Hotel andava em obras a canalisação do gaz, e fôra lançada uma prancha de madeira sobre a valia aberta para dar passagem de um lado ao outro lado da rua. E como nos Martyres houvesse lausperenne, as pessoas devotas que sabiam da egreja e vinham para cima, chegavam ali e atravessavam a prancha. O chão revolvido e a chuva que cahira tinham espapaçado um lamaçal naquelle ponto de maior passagem; e as mulheres, resguardando da lama a roda dos vestidos e os folhos das saias de baixo, que arrepanhavam em fru-frus, mostravam muito a perna.

Todo embebido no exame d'esse mostruario, e perseguindo com o olhar um certo tornoselo que já ia longe, Poças nem déra pela nossa aproximação.

Da portinhola do coupé, Fausto gritou-lhe:

-- «O' Poças, guarda castidade!»

E só então é que o Poças nos viu, e sahiu ao passeio para nos vir falar.

Como não houvera Camaras, aproveitara a tarde para dar uma volta; mas o tempo transtornara-se, não havia mulheres na rua. Apenas agora, naquella estiagem, appareciam algumas.

-- «Mas poucas, e uns estafermos!»

IV

A chuva de mólha-tolos, que cahia sobre Lisboa desde a segunda-feira de Entrudo, envolvendo as collinas da cidade num panno de suja gaze, e cobrindo as casas da Baixa de uma humidade viscosa, a escorrer dos telhados como uma baba, resolvera-se por fim numa tremenda carga de agua que durara dois dias sem abrandar por instantes, precipitando pelo Chiado uma enxurrada ruidosa que tudo varria, e galgava em catadupas alterosas.

Fôra uma providencia, pois que o cheiro nauseabundo dos tremoços, que a fina flôr da Aristocracia despejara das janellas do Turf sobre os transeuntes, desde o sabbado gordo, e que revestia o passeio de uma camada espessa, fermentando, era um fedor que invadia tudo, insupportavel, e já chegara ao meu quarto, que todavia não ficava a uma pequena altitude!

Poças e eu não nos tinhamos atrevido a sahir do Hotel durante esses dois dias, que já julgavamos não terem fim, e me lembravam o Diluvio universal.

-- «Outra vez universal, não creio... dizia Poças. Isso foi tempo! Hoje, se Deus pensasse em decretar de novo o exterminio da especie humana, não o faria de animo leve, como então. A moderna estatistica das populações offerecer-lhe-ia motivo para muito meditar e para muito hesitar. Ha uma tendencia assustadora para o decrescimento; e se as coisas devessem passar-se, em caso d'um outro diluvio, como se passaram no primeiro, não se afigure a Vossa Excellencia que seria bastante metter numa arca apenas um casal de cada especie para resistir aos destroços do grande cataclismo... D'uma especie, pelo menos, sei eu em que um casal, só por si, não seria bastante...»

-- «Que especie é essa, ó senhor Poças?» quiz eu saber, intrigado.

-- «E' a especie humana de Lisboa. Está averiguado. Para a propagação d'esta especie, um casal, isto a que se chama em linguagem juridica, marido e mulher, não offerece garantia. E' preciso que haja sempre um marido supplente -- para as necessidades biblicas...»

Achei forte. Poças achou mais forte a pancada de agua que nesse momento batia no telhado, com estrondo, revolvendo as telhas.

Olhámos para cima, instinctivamente, num receio de que o tecto se fendesse, e nos despejasse no quarto a tempestade. Fóra, nas ruas, o vendaval soprava e assobiava. De vez em quando, alguma vidraça, sacudida, estilhaçava-se, e ouvia-se o tlintar dos cacos na calçada...

Para aproveitar o tempo, comecei a pôr em ordem os meus papeis e os meus livros.

Durante a minha estada na Ilha depois da formatura, e nos largos intervallos que a fama do Doutor Tarquinio abria, como largas bréchas, na minha advocacia, sempre desviando para elle as melhores causas, eu habituara-me ás longas e meditadas leituras, tendo principiado por devorar toda a livraria do Barão da Terra-Chã, que m'a facultara, e que era vasta e escolhida; passando depois á Bibliotheca da Camara, enriquecida com a herança de todos os livros de José Silvestre Ribeiro; embrenhando-me até no Flos Santorum da Tia Genoveva; e acabando na collecção do Diario das Camaras pertencente ao Pompeu, que a mandara encadernar em veludo azul com fechos e cantos de prata, como livros santos, e que «só por ser para mim» a deixava sahir de casa, um tomo por cada vez.

Depois, quando já não havia na Ilha um livro que eu não tivesse lido, incluindo o livro de versos do João Hermeto, arcade, que m'o levara a casa em mão propria, com dedicatoria passada a limpo por a filha, que tinha uma lettra magnifica, toda em grossos e finos -- entrei a fazer encommendas ruinosas á Livraria do Gil, que por cada paquete recebia de Lisboa, e me remettia para o escriptorio, duzias e duzias de volumes.

Frequentando pouco o Club, pouco me demorando na botica do Cunha, por onde fazia caminho para o Club, eu recolhia cedo e deitava-me habitualmente tarde, e assim enveredei e vagueei, durante quatro annos, nas Litteraturas cultas e nas Litteraturas populares; nas Religiões e nas Vidas dos Santos; na Theologia, na Filosofia e na Historia da Filosofia; na Moral, na Economia, no Direito; nas Sciencias fisicas e nas Sciencias naturaes; na Geografia e nas Viajens; na Historia Universal e na Historia Patria...

Inspirado no moderno e fecundo methodo da observação e da experiencia, acompanhei de longe, mas tanto quanto me foi possivel, o movimento catapultuoso das sciencias novas, que por todos os lados e em todas as direcções recolhiam e ordenavam os grandes factos positivos, comparando-os e classificando-os, e d'elles tirando todas as claras consequencias.

Conheci então, nesse campo vasto e uberrimo, resultados maravilhosos. Problemas que parecia deverem eternamente escapar ao conhecimento do homem, eram abordados, profundados, e em grande parte resolvidos luminosamente; e todo um immenso thesouro de factos novos não só renovava as sciencias já conhecidas, mas constituia materia de outras novas sciencias de empolgante interesse.

A Archeologia prehistorica reconquistava, para meu uso, na escavação paciente dos seculos desapparecidos, antepassados de que eu nem sequer suspeitava; e para meu uso reconstituia, á força de descobertas, as industrias, os costumes, os tipos do homem primitivo, apenas mal libertado ainda da animalidade.

A Anthropologia debuxava-me a historia natural do grupo humano no tempo e no espaço, convidava-me a segui-lo nas suas evoluções organicas, e a estuda-lo nas suas variedades, nas suas raças e nas suas especies, alumiava-me nessas immensas questões da origem da vida, da influencia dos meios, da hereditariedade, dos cruzamentos, das relações com os outros grupos animaes...

A Linguistica explicava -me, pelo estudo comparado dos idiomas, as successivas fórmas da linguagem, analisando as e preparando, por assim dizer, toda uma historia do Pensamento, seguida desde a sua origem e através de todas as edades.

A Mithologia comparada dava-me entrada no rutilante e matizado espectaculo da creação dos deuses, ensinava-me a classificar os mithos, permittia-me estudar as leis da sua origem e do seu desdobramento através das innumeraveis e pittorescas fórmas religiosas.

Todas as muitas outras sciencias -- a Biologia, a Astronomia, a Fisica, a Chimica, a Zoologia, a Geologia, a Geografia, a Botanica -- eu as vi, sob a influencia do mesmo methodo, amplificadas, enriquecidas, chamadas a prestarem-se um mutuo auxilio. E essa influencia alargava-se ás sciencias que a fantasia e o espirito de sistema haviam despojado de toda a precisão e de toda a realidade -- a Historia, a Filosofia, a Economia Politica...

Todas estas magnificas e surprehendentes acquisiçóes da livre investigação, dispersas numa multidão de compendios, memorias e tratados, eu podera condensa-las, para meu uso, num conjuncto elementar e methodico, obtendo de cada sabio a essencia da sua sciencia, sob essa fórma precisa, clara e accessivel dos Manuaes, limitado cada manual ao dominio em que a competencia do sabio me parecesse incontestavel. E ao mesmo tempo que, embebido nestas constantes e utilitarias leituras, mastigando bem para auxiliar a funcção digestiva, eu me familiarisava com as conquistas do espirito scientifico moderno e adquiria noções mais amplas d'estas coisas que já ninguem hoje póde ignorar com decencia -- Darwinismo, Atomismo, Theoria mecanica do Calor, Correlação das forças naturaes, Descendencia do homem, Previsão do tempo, Theorias cerebraes... E sempre, e cada vez mais, eu considerava que era pela sciencia universalisada, levada pelos sabios a todas as consciencias, como quem fizesse uma distribuição de alimento a domicilios -- que a humanidade poderia pôr um termo á tremenda anarchia intellectual do meu tempo!

Eu continuava arrumando os meus papeis e os meus livros. Poças persistia no seu monotono e habitual passeio, de mãos nas algibeiras das calças, dentro do limitado espaço que ficava livre entre a porta do meu quarto e a janella do lado do Chiado. E de cada vez que se approximava da janella, disfarçando, deitava olhares furtivos, inquietos, para as janellas defronte.

Mas desde a terça-feira gorda que as cortinas d'aquellas janellas se conservavam corridas, implacavelmente corridas, para desgosto do Poças, que não trauteava, que cantava já, em grande lamuria, e umas poucas de vezes ao dia, imitando o Leone, as suas coplas favoritas do Boccacio:

A' janella,

Minha bella,

Corre, corre,

Ligeira gazela!

Toda a gente, no Borges, sabia já do namoro, que entretinha a mexeriquice das creadas e divertia as hospedas dos quartos que deitavam para o Chiado.

A' meza do Hotel, ao almoço e ao jantar, as piadas e as allusões ferviam d'um lado e outro, como uma fuzilaria em volta de Liberato Poças, que fazia ouvidos de mercador, fingindo não perceber. Umas meninas brazileiras, que occupavam com a mamã os aposentos mais caros do Hotel, alegres como duas cotias, e que tinham começado a brincadeira do Entrudo quinze dias antes, tomavam o Poças á sua conta e não havia judiaria que lhe não fizessem, pregando-lhe rabos, pondo-lhe estalos tremendos por baixo da cadeira, encharcando-o com bisnagas, despejando-lhe no pescoço mãos cheias de papel picado; e entre outras partidas, que já não tinham conto, escreveram-lhe uma carta amorosa em nome da vizinha do quarto andar, e pagaram a um creado para que, á hora do jantar, quando todos estivessem á meza, a fosse entregar ao Poças, ali mesmo, a vêr a cara que o Poças faria. E Poças cahira na ariosca, como o mais fino melro cae numa armadilha.

A carta era escripta com lettra de mulher, não havia duvida, e as baldas eram certas. Falava-lhe do carinho que elle dava aos seus jacinthos; pedia-lhe desculpa de que sempre tão tarde se abrisse aquella janella a que apparecia alguem para quem elle não era indifferente (antes pelo contrario) mas a razão era porque essa pessoa soaria horrivelmente de insomnias, e só tambem muito tarde, pelas madrugadas, é que podia conciliar o somno; fazia amaveis referencias aos seus dotes de orador parlamentar, e ao seu bello espirito de piadista insigne. E acabava por dizer que, nessa noite de sabbado gordo, elle encontraria -- se quizesse... -- no baile de D. Maria, um certo dominó preto, «a quem seria grato poder fazer com o senhor Poças um tour de valse...»

Tão embebido andava elle com aquelle namoro, que nem sequer lhe passara pela idéa a suspeita de uma brincadeira de entrudo.

Poças, que de costume fazia todas as honras á cozinha do Hotel, servindo-se abundantemente de todos os pratos que viessem á meza, tendo merecido mesmo a fama de «comilão do Borges» por analogia patusca com o «comilão de Almada», estando-se ainda no segundo prato quando essa carta lhe chegou ás mãos, de pouco mais se serviu, e debicando apenas, a espaços lentos, o pouco mais de que se serviu...

Aquella inesperada missiva tivera artes de lhe tirar o apetite; e quando veiu a travessa de orelheira de porco com feijão, de que já havia noticia desde o almoço, noticia que Poças recebera com estrondosa manifestação de regosijo. Poças fez-lhe cara e arredou a travessa.

A mãe das meninas brazileiras, que lhe ficava ao lado, e que tanto reparava, das outras vezes, na «impossivel vontádi di cómêr qui sinhôr Pôças tinha sempre... já viu, ên?» -- chegara a perguntar-lhe se se sentia incommodado.

Um major da Administração Militar, que tinha quarto fóra, e só vinha ao Hotel para comer, e de facto só para comer, pois não fazia outra coisa desde que se sentava até que se levantava da meza, vendo que Poças não quizera servir-se da orelheira, desconfiara do caso, e perguntara-lhe ao ouvido, emquanto a travessa dava a volta para chegar á sua vez:

-- «Foi alguma barata que Vossa Excellencia encontrou?»

E como Poças lhe affirmasse que não, o Major insistia:

-- «Algum cabello, talvez?...»

E como Poças, já um pouco irritado, lhe declarasse, sob sua palavra de honra, que não vira baratas, nem cabellos na orelheira de porco com feijão, e que se não se servira fóra apenas pela simples razão de que não lhe apetecera servir-se, ainda o Major referira, cuspinhando no prato caroços de azeitonas, que já uma vez encontrara, no fundo de uma molheira de coelho á caçadora, a luneta da dona da casa de hospedes onde semelhante tragedia se passava; e que, por isso, e desde esse dia, já não havia surprezas para elle no fundo dos guizados. Mas tinha um grande nojo de cabellos e baratas na comida, e por isso perguntava...

O mais importante, porém, naquella partida de entrudo, era averiguar se Liberato Poças accedera ao convite e correra á entrevista com o dominó preto, para fazer-lhe depois uma ruidosa montaria.

Ora quiz o acaso, que é um grande brincalhão quando lhe dá na veneta para o ser, que fosse eu quem levasse ás meninas brazileiras a alegre noticia de que o Poças não só estivera no baile onde lhe fôra marcada a entrevista, mas andara mettido numa aventura de mil diabos, de que me fez confidente ao outro dia.

-- «Imagine o meu amigo, dizia-me Poças, que eu sabia poder encontrar hontem no baile de mascaras de Dona Maria uma certa senhora, a quem não sou indifferente, mas com quem não foi ainda possivel encontrar-me face a face, para lhe dizer meia duzia d' estas coisas que todas as mulheres gostam de ouvir, e a que quasi todas ellas cedem, se a gente sabe dizer-lh'as e a occasião se presta... A occasião não podia ser melhor, e, quanto ao resto, ficava isso por minha conta, pois não é debalde que uma pessoa, chegada á minha edade, tem dedicado metade da sua vida ao estudo aturado da psichologia feminina... Fui, e procurei. Essa senhora, sabia eu, devia vestir um dominó preto. Para signal, era mal escolhido, valha a verdade, porque em todos os bailes de mascaras apparecem sempre muitos dominós pretos. E logo que entrei me appareceu um d'elles, que me metteu o braço e me arrastou na onda, começando por me dizer: «Ainda bem que vieste!» Cahi logo como um pato, e não mais o larguei, e com elle valsei, vilipendiosamente, até de madrugada! Depois, meu amigo, que seio! e que perfume que me vinha d'esse seio! Por fim, já quasi sem poder comigo de tanto valsar, lembrei que fossemos comer alguma coisa, confortar nos, para maior empreza; e fugimos do baile, mettemo-nos num coupé, fomos para um gabinete do Tavares... Veiu uma sopa de queijo, que estava deliciosa, vieram camarões, veiu tudo! Mas o meu dominó, que já absorvera dois pratos de sopa e pedira segunda dóse de camarões, não consentia em levantar a viseira... Tres vezes lh'o pedi, tres vezes m'o recusou. Só então suspeitei de que estava sendo victima de um formidavel equivoco. Não era aquelle o dominó preto que eu procurava no baile! Deixara então escapar, assim, e tão estupidamente, o melhor ensejo da minha melhor aventura! E o desespero d'essa suspeita e o meu amor proprio mal ferido, ter-me-iam dictado nesse momento uma grossa violencia, se o Champagne me não houvesse lançado já num enternecido quebranto, que me deixava estar por tudo... Depois, se o dominó preto que eu chamara para meu conviva d'essa ceia do Tavares, não era bem aquelle dominó preto que me chamava ao baile do Theatro de Dona Maria, era em todo o caso um dominó condescendente em tudo o mais que não fosse levantar a mascara, e nessas alturasnão se me dava já trocar uma aventura por outra, fosse ella qual fosse... Passei-lhe um braço em volta, inutilisei-lhe toda a resistencia, segurei bem, e com a mão que me ficava livre arranquei-lhe a viseira... Deus meu, que não sei de nojo como o conte!... Estava abraçado ao Meleças, o Meleças do Phantasma! O que então se passou foi uma coisa pavorosa. Atirei-o, de borco, para cima d'uma chaise-longue que havia ali a um canto, deitei-lhe esta mão ao pescoço, assim aqui, com gana, levantei-lhe as saias (vinha de saias, o malandro! e calças de cambraia com muitissimas rendas) e com esta mão lhe ferrei tantas e tão energicas palmadas no sitio apropriado, que lh'o deixei da côr dos camarões que o maroto comera á minha custa!»

Referindo-me este caso extremamente alegre, e que uma nova surpreza me dava sobre os escandalos reconditos da capital, Poças mostrava-se convencido ainda de que a carta que lhe marcava a entrevista no baile devia ser, com effeito, da vizinha do Hotel; e se ella não lhe apparecera mais á janella depois d'aquelle dia, a culpa fôra d' esse viscoso Meleças, que o desviara, o intrujara.

E o meu caro Poças, cahindo então num pro- fundo desalento, começou a soffrer secretamente do mal de amôr.

Vi-o mergulhar nesse estado mental e fisico que Bourget define, e que tudo deprime, tudo aniquila na creatura humana que uma vez cessou de pensar, de sentir, de desejar, e abandonou deveres, e esqueceu ambições, e perdeu habitos -- para toda se dar, toda se votar á idéa fixa de um outro ser... E como certos doentes muito apprehensivos, que procuram nos tratados confusos da pathologia o conhecimento da origem, dos simptomas e da natureza da sua doença, e um morbido goso experimentam quando descobrem que alguma indicação dos tratados bate certo com a origem, com os simptomas e com a natureza do seu mal, elle se deitou aos tratadistas da pathologia do amôr.

Mas de todos o que mais acirrava o seu mal era Bourget. E, segundo Bourget, Poças considerou-se em amôr – um excluido.

Pensando bem, recordando bem todos os incidentes amorosos em que se achara envolvido, elle reconhecia que atravessara já uma longa vida arida e triste de solteirão sem esperança, e sem nunca ter visto atear-se, ao contacto do seu ser esbraseado, o incendio calamitoso d'um coração de mulher.

-- «Mas excluido porquê? grande Deus do céo!...» exclamava, levantando para o céo, e para o grande Deus do céo, ambos os punhos cerrados, num desespero.

-- «Talvez por timidez...» aventava eu, recordando as causas d'essa exclusão irreparavel, tão espirituosamente encontradas no manuscripto posthumo de Claudio Larcher.

E, para consolar o Poças, invocava a memoria desditosa do grande Rousseau, que fôra tambem um timido. Para companheiro de desgraça não poderia elle encontrar melhor. Mas se esse não lhe bastava, e queria outro, ahi estava esse apaixonado e infeliz Sainte-Beuve, que tinha a mania das cozinheiras (á semelhança do proprio Poças que já me confessara ter a mania das varinas) e ao qual se attribuia aquelle dito tão profundo e tão revelador, em resposta a alguem que lhe perguntava o que teria elle querido ser, em vez do grande pensador que era: «Sargento de cavallaria!...»

Mas Poças protestava. Poças não era um timido. Isso sim! Antes pelo contrario. E logo referia dois ou tres casos, comprovando, em que arriscara a pelle por sua audacia romantica á Paulo de Koch, andando de gatas por cima de telhados, escondendo se em armarios de roupa, escorregando por chaminés... Timido elle, isso sim!

-- «Talvez por condição social...» tornava eu então. E citava-lhe as conclusões a que tinha chegado aquelle divertido psichologo que se comprazia na estatistica comparada das probabilidades que cada individuo tem para triumfar no amor, segundo as suas condições sociaes...

Entre os juizes, os procuradores, os escrivães, a percentagem dos felizes era apenas de cinco por cento; entre os medicos e os musicos, dez por cento; entre os romancistas e os poetas, quinze a trinta por cento; entre os jornalistas, os tenores, os caixeiros de modas, cincoenta, sessenta e noventa por cento; entre os actores comicos, noventa e nove por cento!

Ora Poças não era, e ainda bem para elle, nem comico, nem tenor, nem poeta. Poças era legislador; e a percentagem, entre os legisladores, era muito limitada, tão limitada como para os financeiros e para os agentes de cambio: uns tristes dois por cento. Mas havia peor, muito peor, pois que, segundo a estatistica, a percentagem para os chefes de Estado era de um -- por dez mil...

Estas desgraças alheias não o consolavam das proprias. E a olhos visto, Liberato Poças acabrunhava-se, entristecia, murchava. Houve um momento em que deveras cheguei a ter pena d'elle. Ninguem diria que estava ali o mais alegre espirito de Portugal!

Mas deixemos o Poças -- como se diz nos romances, quando alguma personagem começa a embaraçar o fio do enrêdo, e o auctor não acha outro meio de se ver livre d'elle. De resto, Poças, que entrara neste romance para animar com a sua piada e com o seu commentario as passagens a que faltasse a graça natural dos factos, cahira numa infinita tristeza, uma d’essas tristezas que os francezes comparam, não sei bem porquê, á tristeza d'um barrete de dormir. E todo aquelle que a si proprio priva da alegria difficilmente póde deseja-la aos outros.

Ao temporal succedera a bonança, como ao Entrudo se succedia a Quaresma.

Já então eu começara a occupar-me deveras, e com grande afan, da vida parlamentar.

Aquella nova atmosfera agradava-me, sobreexcitava-me com satisfação, e pouco a pouco me fazia crer que eu fôra talhado bem para aquelle meio, e que teria errado a vocação se persistisse em fazer carreira pela advocacia, na Ilha, disputando os clientes ao Doutor Tarquinio.

A Camara era composta de rapazes, na maior parte imberbes, cheios de saude e cheios de alegria, mal contidos no seu logar, e em compostura, pela tarracha do Regimento. Via-se que o sangue lhes pulava nas veias, e que deviam fazer os maximos esforços para conter os impetos d'uma mocidade irrequieta.

O Parlamento prolongava a Universidade; tinha o aspecto d'um outro curso. E ao passo que o Abreu Viegas, na presidencia, assumia a catadura de um lente, podia-se suppôr que, quando algum deputado fazia uso da palavra, respondia a uma lição.

A representação nacional estava sendo, positivamente, uma rapaziada comedida, com boas notas, comportamento exemplar.

O Parlamento era, com effeito, um outro curso, outro curso superior onde se professavam todas as disciplinas que constituem a formatura dos estadistas modernos. E eu verifiquei, não sem um certo receio pela responsabilidade que pesava sobre os meus hombros de deputado independente, que essas disciplinas eram: Velhacaria e Calculo integral. Filosofia e Cinismo, Principios de descaramento e Historia, Economia politica e Luvas, Colonisaçao e Sindicatos, Legislação e Bancos, etc, etc.

Nas sessões da Camara, recebiam os alumnos o ensino theorico. Fóra da Camara, era-lhes ministrado o ensino pratico. Para este fim se convocavam as reuniões da maioria e os conselhos de administração; se creavam as direcções geraes, e os commissariados régios junto das Companhias; se inventavam as concessões no Ultramar, e os Tabacos, e os Fosforos, e os Caminhos de ferro…

Quando se encerrasse a sessão parlamentar, terminaria o curso. E toda essa mocidade que então se sentava nos bancos escolares de São Bento se encontraria apta para se sentar nas cadeiras do poder -- bachareis formados, estadistas feitos.

Nestas condições de venturosa precocidade, na certeza de tão boas facilidades, e na prompta conquista de tantas regalias, a mocidade do meu tempo entrava na vida publica cheia de confiança, cheia de alegria, e cheia de descaro.

Da Universidade, trazia ella a idéa de que o bacharelato era uma blague, a competencia dos lentes uma mistificação, o ensino uma burla. O Parlamento é que era a verdadeira escola. O Orçamento é que era o verdadeiro livro da vida.

Quando essa mocidade assim preparada, assim educada, e assim investida no mandato da indifferença popular, entrava no seio da representação nacional, nenhuma surpreza a esperava, nem o menor sobresalto, nem o mais leve receio. Se algum mais timorato, como eu, hesitava um momento antes de transpôr o limiar d'aquella porta, logo dois o agarravam e o empurravam, e a esse empurrão se chamava o acto solemne de introduzir na sala o novo deputado.

Ora a verdade era que todos os novos deputados, quando entravam na Camara, já sabiam que eram obrigados a deixar á porta a sua bengala e o seu decoro.

Dentro do Parlamento, todas as questões se resolviam ou pelo sofisma, ou pelo socco. Aquillo a que noutros tempos se chamava, num sentido figurado -- a lucta parlamentar, chamava se agora, num sentido muito positivo -- a lucta pela vida.

A eleição de um deputado era um producto de mecanica.

Ao trabalho preparatorio da constituição das Côrtes chamava-se já, e com muita propriedade -- a montagem da machina eleitoral.

A designação exacta, o termo proprio adoptado pelas Academias, mettido nos diccionarios, explicado nas escolas, de toda essa complicada intriga de nomeações e transferencias, de beneficios e promessas, de chafarizes e estradas -- era a engrenagem do suffragio.

Quando se verificava a impossibilidade de conseguir, por meio d'esta mecanica, o resultado desejado de uma determinada eleição, a politica nacional encontrava outra variante. Onde não podia applicar a mecanica, empregava a culinaria. E havia então o prato do dia de eleições, que era o nacionalissimo -- carneiro com batatas.

Algumas vezes acontecia, porém, que onde a mecanica pouco ou nada podera, e onde a culinaria não muito mais avançara, a eleição se perdia. Mas a politica dos Governos é sempre fertil em expedientes, quando se trata de garantir a maioria dos Parlamentos; e se a mecanica falhava e a culinaria esturrava, vencia por fim, e infallivelmente, a prestidigitação. Tinha se a chapelada.

D'esta quasi infinita variedade de processos seguros e meios efficazes de fazer eleições, nasciam o desplante e a firmeza com que se annunciava, muitos dias antes do acto eleitoral, a vinda ás Camaras do Pompeu ou do Machado da Botica.

Candituras e accordos, combinações e machinações, tudo isso vinha minuciosamente contado, dia a dia, nos periodicos, que para esta reportage indecente abriam secções especiaes, e ou de caso pensado por conveniencias, ou em caso diverso por inconveniencias, assim se tornavam do dominio publico todos os detalhes da estrategia eleitoral.

A liberdade do voto tornara-se uma coisa desnecessaria. Para que queria o Povo a liberdade de voto, se de cada vez que pretendesse fazer uso d'elle tinha a certeza de ser preso?

Eu não sei já que pensador eminente disse, assoando-se -- que a grande força de uma nação é o pudor das suas mulheres. Mas por mais de uma vez pensei, no decurso d'aquella sessão legislativa -- que a verdadeira força de uma nação era o impudor dos seus politicos.

Viciado na sua origem e nos seus resultados, deshonrado por toda a parte, o sistema parlamentar era ainda uma instituição de muita utilidade e muito decorativa. Cahido no descredito publico muito embora, e fóco de corrupção, o parlamentarismo imprimia a sua influencia nas condições geraes, contaminava os espiritos, agitava a anciã das carreiras, alimentava a intriga dos partidos, e tornava-se, por uma especie de convenção tacita entre esses mesmos partidos, o disfarce ignominioso das peores dictaduras.

Mas eu não viera ao Parlamento nem para arranjar dinheiro, nem para chamar concorrencia ás galerias, nem para ser instrumento de ministros e de sindicatos. Eu viera ao Parlamento para fazer, interpretar, suspender e revogar leis; para velar na guarda dos preceitos constitucionaes e promover o bem geral da Nação; para fixar as despezas publicas e repartir as contribuições. Eu viera ao Parlamento para ser o censor dos actos do Governo; para estabelecer os meios convenientes ao pagamento da Divida; para regular a administração dos bens do Estado...

Mas, e acima de tudo, eu viera ao Parlamento para defender os interesses da minha Ilha, para promover a felicidade do meu Archipelago...

Por esse tempo realisava-se, entre as populações açorianas, um vivo movimento de confraternisação, que tendia a estabelecer, sobre uma solida base de sentimento, todo um amplo programma de independencia moral, economica, administrativa. E essa confraternisação affirmava-se numa boa e proficua realidade, que a intriga da metropole já não podia perturbar, que até ahi se conservara envolvida numa modesta aspiração platonica, mas que das palavras e dos desejos passava agora a uma propaganda activa e bem encaminhada, para que do accordo resultante de mutuas transigencias, d’uma legislação administrativa homogenea abraçando todas as Ilhas, a todas applicada sem repugnancia, não escravisando umas ao proveito das outras, resultasse uma vida nova de descentralisação.

Falava-se muito do direito que os açorianos tinham á sua independencia, fundamentando-o em muitas razões de desproporcionalidade de garantias, da injustiça e inconveniencia das leis, da ingratidão da metropole, da errada gerencia dos dinheiros publicos.

Na distribuição das garantias o favoritismo era flagrante, concedendo-se ao Continente do reino todos os melhoramentos e regalias superfluas, e negando-se aos Açores as de necessidade mais urgente, as estradas ordinarias, as docas, a melhoria das condições dos portos...

Atacando-nos em todos os direitos de liberdade e de propriedade, em favor gratuito do Continente, a ingratidão dos governos esquecia quantos assignalados serviços, quantos heroicos serviços a Nação recebera dos povos açorianos, e opprimia-nos cada dia com novas leis vexatorias. As garantias da Constituição, que tanto sangue nos custara, tinham sido violadas com perfidia; á liberdade antepunha-se a escravidão; ao direito da propriedade, a espoliação; á egualdade perante a lei, a mais aviltante desproporção e parcialidade.

Por tudo isto, e por muito mais, nos sorriam as vantagens que deviam resultar da independencia das nossas Ilhas. E não eram poucos os estranhos que, tendo-nos vizitado, admirado e estimado, advogavam perante as nações civilisadas o direito da nossa causa, quando os governantes de Portugal mais nos escravisavam.

Ah! que se as minhas queridas Ilhas dos Açores, situadas, como eram, a meio do Oceano Atlantico, entre os continentes do antigo e do novo mundo, e em linha recta de communicação para todos os navios que se dirigem á Europa, não só das duas Americas mas de todas as possessões da India, da China, e seus mares adjacentes, estivessem sob a influencia de uma actividade commercial, uma propriedade agricola, e uma geral industria, que naturalmente se levantam da concorrencia de genios e emprezas, entre os habitantes de um estado livre, quam importantes não seriam ellas, e inestimaveis os seus recursos!

Como nós veriamos aproveitadas ainda as mais diminutas parcellas do nosso grande territorio; e levantarem-se edificios sumptuosos; e crearem-se estabelecimentos, portos, docas, vias ferreas e até cidades, que em pouco tempo converteriam essas Ilhas, tão deploravelmente abandonadas, numa populosa scena de affluencia, de propriedade e de força... E o mesmo commercio, auspicioso protector da riqueza das Nações, ver-se-ia definitivamente plantar o seu estandarte nas praias açorianas, como em um dos grandes imperios do mundo!

Mas os governos de Lisboa queriam manter-nos numa situação aviltante, impedindo-nos de attingir o desenvolvimento a que nos davam direito as tradições historicas, a supremacia intellectual de muitos dos nossos, a pujança do solo, a salubridade do clima, a collocação geografica, o genio emprehendedor e aventureiro dos ilhéos, a tenacidade para o trabalho, e as avultadas sommas com que saciavamos, em cada anno, a voracidade dos cofres publicos.

Nas discussões dos Centros, nas cavaqueiras da botica do Cunha e nas palestras do Club, chegara-se á conclusão de que o nosso mal tinha uma etiologia unica -- o centralismo desmedido e absorvente; e um só remedio tambem, um só -- a descentralisação completa, estimulante e impulsionadora.

Lançada á terra a semente germinadora d'essa bella planta que nós quizemos ver crear-se e florescer na tepidez do nosso clima; assentada a primeira pedra d’esse edifício que nós quizemos construir como demonstração de capacidade mental e de civismo immaculado, iniciara-se então o movimento de propaganda, pedindo e obtendo a cooperação de todas as corporações e vultos importantes dos tres districtos do Archipelago, entrando nas luctas da imprensa, fazendo comicios e conferencias, elaborando um projecto de lei, que era publicado, e distribuido abundantemente. Queriamos a reforma do nosso sistema administrativo, que permittisse gastar-se em proveito exclusivo dos Açores o dinheiro dos açorianos, protegendo o nosso commercio, activando o progresso da nossa industria, fixando a remuneração do nosso trabalho, agitando, vivificando, fomentando!

Por modo que, na primeira opportunidade, que foi aquella de que eu sahí eleito, os regeneradores e os progressistas congraçaram-se, e resolveram apoiar as candidaturas independentes dos deputados autonomistas. Foi nessa occasião que o Doutor Tarquinio, interpretando um sentimento muito geral entre os meus conterraneos, lembrou o meu nome e propoz a minha candidatura, em sessão magna do Centro regenerador.

Emquanto esperava o propicio momento de levantar a minha debil voz nas Côrtes para fundamentar e mandar para a meza o projecto de lei da autonomia administrativa dos Açores, dediquei-me com empenho aos trabalhos da commissão do Codigo, a que o Ministro me aggregara.

Já então me viera de casa do Nunes Correia uma enorme caixa de fato novo, acompanhada de uma conta pavorosa, que eu paguei com lingua de palmo, e me deixou abalado de finanças para mais de um mez.

A sobrecasaca, de diagonal de duas libras, toda forrada de seda, cahía-me no corpo como uma luva. Fiz no Augusto Ribeiro um fornecimento de collarinhos direitos e punhos de bretanha finissima, tado o que havia de melhor. Escolhi vinte gravatas; quiz tres duzias de pares de piugas do mais caro fio da Escossia; encommendei tres chapeus: um chapeu alto, um de côco preto, e outro de côco côr de abobora, que era a côr da moda, trazida de Inglaterra por um ministro nosso, arbitro de elegancias, e amigo do Principe de Galles. No Serra, deixei a medida para muito calçado de verniz e pelica. No Godefroy, paguei vinte e tres mil réis de aguas para o cabello, de cosmeticos para a barba, de essencias para o lenço. E, de caminho, entrei na livraria do Gomes, e comprei a Arte de viver na sociedade -- que logo nessa noite serviu para me adormecer muito mais depressa, num somno muito solto.

Fausto Guimarães constatara que tudo estava «na afinação» e levara-me a casa de D. Claudia, onde agora eu era recebido e acolhido com demonstrações muito evidentes de simpathia -- por parte da dona da casa, que ia precisar dos meus serviços, e por parte de sua filha, «sua gentilissima filha», que era o superlativo com que sempre a distinguia o Illustrado no memorandum do seu high-life, e que em boa verdade não precisava d’esse favor do Illustrado para ser, com effeito, e como eu logo notei, muito gentil.

Chamava-se Clara. Na intimidade da casa, e dos amigos da casa, era -- a Clarinha.

Nesta grata intimidade dos amigos da casa entrara eu facilmente, e facilmente fôra deixando-me enlear no convivio e na corrente de curiosidade que, pouco a pouco, de dia para dia, de conversa em conversa, de pequenino incidente em pequenino incidente, se iniciava entre nós.

D. Claudia pareceu-me desde logo uma excellente creatura, mas despropositadamente voluntariosa, e tão despropositadamente voluntariosa, que a um capricho futil, a um desejo de coisa minima, a um apetite de nada, sacrificaria a melhor occasião de se mostrar transigente.

Não era uma d'estas creaturas extravagantes que muito procuram dissimular o seu feitio, e que dizem uma coisa quando pensam outra, e tanto se arreceiam do mundo qiie toda a sua grande preoccupação consiste em dar ao mundo uma idéa enganosa d'aquillo que realmente são. Não senhor.

A seu modo, muito a seu modo, D. Claudia era uma mulher de principios, e tinha-os seus, declarando bem alto para que quem quizesse ouvir a ouvisse -- que a vida sem aventuras e sem caprichos ruidosos seria d'um fastio mortal; e que só a si e a mais ninguem, devia contas das suas acções, dos seus disparates, dos seus modos de vêr...

Fausto conhecia toda a historia de D. Claudia, e d'ella me poz ao facto. Era de Lisboa, de muito boa gente, filha d'um Pimentel, que fôra juiz do Supremo e par do Reino, e d'uma senhora Medeiros, da illustre familia dos Arrudas de Medeiros, que eram tambem das Ilhas.

Esse Pimentel esbanjara duas fortunas de seguida, uma atrás da outra, a sua e a da mulher, e tratara depois de arranjar um casamento bom para a filha -- mas que fosse principalmente bom para elle, que já se enchera de dividas, e não via outro meio de poder livrar-se d'essas, para depois contrahir outras.

Claudia recebera de sua mãe uma educação primorosa, entre mil cuidados de virtude e advertencias de bom criterio; mas herdara antes, do pae, o temperamento fogoso e o leviano pensar. E no meio em que houve de medrar, e em que as suas graças floriam, mais propicia atmosfera teve para a desenvoltura a que a natureza a impellia, do que para o recato que lhe teriam aconselhado as lições e o exemplo d'aquella nobilissima senhora.

A esse tempo, no turbilhão de prazeres mundanos em que o imprudente Pimentel, juiz do Supremo e par do Reino, a iniciava e exhibia, com a premeditada astucia de lhe arranjar casamento, levando-a de vestidos ainda curtos a bailes e saraus, kermesses e corridas, já Claudia encontrara o seu primeiro homem. E o desplante com que esse homem perturbara e facilmente avassalara aquelle pequenino coração cubiçoso e movediço, fôra até ao requinte de assistir elle, a pé firme, e bem impregnado da solemnidade do acto, ao sacrificio que Claudia fizera do muito amor que lhe tinha, consentindo nesse casamento que o senador Pimentel, integro juiz do Supremo, considerava ultimo recurso, em ultima instancia, para o caso importante de pagar as suas dividas.

Poucas horas antes de se decidir a declarar que annuia a semelhante casamento, com aquelle mostrengo de suissas grisalhas e oculos defumados, que poderia ser seu avô, -- num repente de despeito por esse homem que ella vira com tão bons olhos e a quem se teria offerecido de tão bom grado, e num momento de piedade pela situação desesperada em que via o pae -- Claudia chegara quasi a implorar do namorado que a livrasse d'esse marido que lhe impunham, e que a livrasse fosse como fosse... E esse homem, o seu primeiro homem, afastara-a de si quando ella ia para se lhe deitar nos braços, dissuadira-a do leviano proposito, incitara-a, acirrara-a, tinha-a compellido a tomar a resolução que Claudia tomara, por fim, num desespero, numa debulha de lagrimas...

Depois, que reprehensivel audacia! vendo-a casada, continuara a persegui-la, a namora-la, a excita-la; e o seu atrevimento chegara ao ponto de ir bater á porta do quarto de um hotel de Cintra onde Claudia fôra vêr romper tristemente a sua lua de mel, informado de que o marido tivera de ir ficar noutro quarto, por não haver melhores acommodações de nupcias no hotel!

Mais tarde, vira-a mãe, mãe d'uma creança que não era filha d'elle, louvado Deus! mãe d'uma filha legitima; e nem esta circumstancia podera abrandar a furia da sua perseguição, nem desorganisar o plano da sua encarniçada batalha. Dir-se ia até que tal circumstancia mais o exasperara na impertinencia; e, por fim, tanto fizera, tanto andara, tanto rodara, que tinha acabado por aproveitar se d’essa pobre mania de archeologo que descobrira no marido de Claudia, levando-o a emprehender interminaveis viajens de estudo pelo paiz, viajens que não o deixavam repousar no seio da familia quinze dias seguidos em toda a volta do anno, muito convicto e tomando muito a sério o seu papel de vogal effectivo da commissão dos Monumentos Nacionaes.

E tão bem soubera conduzir o fio diabolico do seu diabolico plano que, á hora em que Fausto Guimarães me contava esta historia, Claudia teria já transposto o limiar fatal das portas do adulterio, se o dedo da Providencia lhe não houvesse apontado, num momento que, só por um tris, não fôra para ella o ápice da perdição, a sombra redemptora da mamã Medeiros, dos bons Arrudas de Medeiros, da Ilha!

-- «Mas quem foi esse bandalho?!» quiz eu saber, revoltado.

Fausto sorriu, acalmou a minha indignação. O bandalho fôra, e era, o actual Presidente do Conselho!

Entrou depois em minúcias, que recolhi com interesse. A' semelhança de Kéraban, o Cabeçudo, que não teria feito uma tão grande volta se o tivessem deixado, como elle queria, atravessar o Bosforo, o Ministro não desistira, não desanimara um momento, não desesperara um instante. Mettera-se em casa de Claudia, perseguira-a de perto, compromettera-a. Era um escandalo, de que até já, por meias palavras que bastavam aos bons entendedores, se falava nos jornaes -- emquanto o marido percorria o reino dos Algarves, por sol e por chuva, muito occupado nas suas comicas investigações acerca da queda do Califado de Córdova.

Habituado já á enxurrada de injurias e diffamações em frase impressa, o Ministro não fazia caso, dizendo que todo o homem superior devia libertar-se do medo tolo que tanta gente tem na presença de um ataque de jornal.

-- «Tornou-se necessario, dizia elle, que todo o homem de bem se adestre nessa nova forma de coragem. Já lá vae o tempo em que uma descompostura nos jornaes era o melhor memorial para o despacho dos ministros!»

Mas na diffamação do Ministro ia embrulhada a reputação de Claudia. Numa terra como é Lisboa, onde toda a gente se conhece e onde tudo se sabe, o Ministro ganhara, já muito antes de haver sido chamado aos conselhos da Corôa, a fama de grande femieiro. O fisico ajudava-o, a audacia secundava o fisico, era uma pouca-vergonha.

Transmontano, e solido, e bem arcaboiçado como um granadeiro, o olho vivo, a fronte alta, a sobrancelha espessa e aspera, o bigode farto e forte, a narina ampla, o labio saliente, respirando saude e garantindo energias, as mulheres estremeciam de o vêr, reviravam os olhos, cahiam em convulsões, como sibilas e pithonisas no seu delirio fatidico; ou quedavam-se em extase hipnotico, contemplando-lhe o nariz alentado e fumegante, como brahmanes abismados na contemplação do largo umbigo de Brahma. Que belleza de homem! pensavam. E essa «belleza de homem» era disputada, quasi que a dentes e unhas, como que numa bulha de gatas ciumentas, entre o eterno feminino das classes altas a que elle soubera guindar-se, da modesta condição de filho de um sapateiro de Bragança, que fôra o seu principio.

O Phantasma chegara a publicar uma vez, com iniciaes em que logo se pozera o dedo, adivinhando os nomes por inteiro, a lista das amantes conhecidas do Presidente do Conselho. Eram trinta e seis. Trez duzias! Um serralho! E achara-se-lhe graça, e achara-se natural.

As amantes constituiam já a esse tempo, na população da capital, uma das parcellas mais avultadas, pelo seu numero, pelo seu preço, pela sua influencia perniciosa nos destinos da patria. Sem profundar as causas, limitando-me apenas a constatar os factos, deixando aos especialistas e aos estudiosos do genero a busca das razões climatericas, atavicas, fisiologico-recreativas do fenomeno, eu verificava que as amantes em Lisboa occupavam sempre as primeiras filas onde quer que uma multidão feminina se agglomerasse, se acotovelasse, se agitasse: nas primeiras filas de São Carlos, nas primeiras filas da galeria das Camaras, nas primeiras filas das batalhas de flôres, e em todas as festas, e em todos os espectaculos, e em todos os bazares.

Existia já, cultivava-se já, positivamente, o sport das amantes, tendo-se uma amante como se poderia ter um cavallo, apenas com esta differença: ser o dono que estava á mangedoura, e andava pela arreata. E havia algumas tão celebres como certos cavallos da Historia. Citava-se a amante loira do fallecido Conde da L... como se poderia falar do cavallo branco de Napoleão. A velha amante, já então honoraria, de um outro ministro de Estado, tambem muito falado e tambem só honorario, era tão conhecida em Lisboa como o cavallo de Troia.

Quando uma amante aturada não significava a natural satisfação de uma necessidade fisiologica d'aquelle que a aturava, facilmente e sem escrupulos se admittia, para explicação do facto, qualquer d'estas hipotheses: por necessidade financeira, por medida economica, por conveniencia politica. Muitas vezes, a razão de ser de uma amante era uma poderosa razão de estado

Lisboa benevola acceitava facilmente, de animo leve e coração á larga, os peores escandalos no genero. Nunca a cidade ousaria rir de uma mulher que cahisse. E quando a Opinião publica era sollicitada a manifestar-se sobre o caso de um ministro que acommodara no seu ministerio o marido da sua amante, o filho da sua amante, o irmão da sua amante; ou quando a justiça dos Tribunaes era forçada a pronunciar-se sobre o caso de um recebedor de bairro que esvasiara no regaço da sua amante os cofres da recebedoria; ou quando um marido ultrajado ia queixar-se á Policia de que entrando em sua casa, a uma hora em que não era esperado, se encontrara substituido nas prerogativas do seu proprio leito -- a Opinião sorria, a justiça dos Tribunaes abrandava, e a propria Policia, o proprio 321! se tornavam benevolentes.

Para os menos felizes que não podiam ter uma amante só para si, havia um proverbio que dizia:

-- «As amantes dos nossos amigos, nossas amantes são!»

Entre as trinta e seis amantes do Ministro, de que o Phantasma dera a lista por ordem alfabetica, tinham apparecido as iniciaes de um nome que, a julgar pelas apparencias, e por aquellas iniciaes, bem podia ser o nome de D. Claudia.

As apparencias, pelo menos, eram muito compromettedoras.

Lançada a suspeita de ser ella, nesse momento, a favorita do Ministro, tudo concorria para que a diffamação se propalasse e alastrasse como uma nodoa gordurosa, de azeite.

A primeira celebridade de D. Claudia viera-lhe da sua belleza, que era grande, e muito notavel num meio restricto e deploravelmente marcado pela fealdade das suas mulheres, como é Lisboa, onde parece até que, quanto mais altas são as classes a que pertencem, mais as mulheres se obstinam em ser feias.

Não lhe perdoava o seu sexo que, aos quarenta annos quasi galgados, nem um fio dos seus cabellos, negros como azeviche e finos como setim, branqueasse entre as dobras do seu penteado alto; nem que o mais leve indicio de flacidez ameaçasse a elegancia suprema do seu seio pouco desenvolvido e erecto; nem que um pequenino sulco, uma pequenina vesicula, uma pequenina mancha de herpes lhe prejudicasse a perfeição cutanea. Não podia o seu sexo levar á paciencia que, entre D. Claudia e Clarinha, entre a mãe e a filha, a differença apparente das idades fosse tão pouco sensivel, que a estranhos acontecesse supporem-nas irmãs.

E quando a celebridade de D. Claudia se alargara dos dominios da plastica ás preponderancias da politica, onde a sua influencia foi julgada decisiva, a onda da inveja, engrossada na corrente das intrigas e dos despeitos, tinha subido, escumosa e revolta, até áquella casa da Rua do Salitre, onde o Presidente do Conselho ousadamente e condemnavelmente alçara a tenda e fixara o seu quartel general, para a campanha amorosa que ha tanto tempo emprehendera, mas de que só agora parecia possuir um seguro e definitivo traçado estrategico.

Não era, pois, sem alguma razão que os bons creditos de D. Claudia andavam na bocca dos rafeiros da Politica e das cadelas felpudas do Bom Tom.

V

Os trabalhos da commissão do Codigo iam seguindo lentamente, sob a presidencia pachorrenta e acommodaticia do Padre Eterno, que para isso recebia instrucções reservadas do Presidente do Conselho.

Reuniamo-nos no Ministerio do Reino, na sala grande contigua ao gabinete do Ministro. As reuniões eram agora frequentes e demoradas, mas a maior parte do tempo passava-se em conversa e de galhofa, discutindo-se muito para se chegar sempre ás conclusões que mais convinham ao Governo.

Tinha-se entrado no capitulo do casamento, que era o ponto culminante da reforma. Tratava-se de introduzir no Direito portuguez uma innovação magnanima: ia-se decretar o divorcio!

E estavamos, um dia, numa d'essas reuniões, quando fomos interrompidos pela brusca entrada de D. Claudia.

-- «Bem, meus senhores... dizia-nos ella -- eu não vim aqui para interromper os trabalhos da Commissão... Peço-lhes que continuem, e permittam me mesmo que censure a sua negligencia na discussão do projecto.»

Fausto desculpou-se e desculpou-nos. A senhora D. Claudia era muito injusta. Ninguem poderia accusar-nos de negligencia -- nem mesmo aquelles que estivessem á espera de que o projecto de lei passasse nas Camaras para requerer o proprio divorcio...

D. Claudia empallideceu ligeiramente. Fausto continuou:

-- «Vossa Excellencia dá provas de uma admiravel dedicação pelo Governo, tomando tanto a peito a abundancia de trabalho que elle possa produzir em côrtes, mas esquece que para todo o trabalho é preciso tempo...»

-- «Pois sim! pois sim! Eu conheço bem a actividade das commissões parlamentares... Quer o senhor persuadir-me, talvez, de que se em vez da reforma do Codigo se tratasse de alguma concessão de terrenos no Ultramar, com interessados no seio da Commissão, não estaria já tudo concluido?!»

-- «Vossa Excellencia exagera, minha senhora! intervinha o Padre Eterno. Asseguro a Vossa Excellencia que não nos seria possivel fazer mais em tão pouco tempo... Eu tenho chegado a trazer para aqui o lunch!»

D.Claudia, vivo demonio, soltando uma fresca risada, ironicou:

-- «Nobilissimo procedimento o seu, meu caro Padre Eterno! O Governo tomará tudo isso na devida consideração...»

Depois, mudando de conversa, e voltando-se para mim:

-- «Estou muito zangada comsigo, sabe? E a Clarinha tambem... Porque não tem apparecido?»

Gaguejei uma escusa atarantada, pedi mil perdões. Tinha tido nesses ultimos dias uns afazeres de urgencia que me absorviam, me tomavam todo o tempo. Zangado?! E porquê? se não tinha recebido da senhora D. Claudia e da senhora D. Clara senão demonstrações de estima, que tanto me penhoravam, tanto me enterneciam...

D. Claudia e o Ministro pouco mais se demoraram; e quando sahiram da sala, o Padre Eterno, cruzando os braços e arregalando muito os olhos papalhudos e injectados de ira, voltou-se para nós, rouquejando:

-- «Que me dizem os senhores a isto, ein? Achar-se uma commissão parlamentar assim ás ordens da amante de um ministro! Eu peço a minha demissão!»

Uma tal attitude no Padre Eterno, que todos tinhamos por demasiado cordato e transigente, surprehendeu-nos. Mas logo Fausto oppoz áquelle rompante grotesco a sua costumada troça ironica, que elle espetava na papeira do Conego como quem criva de alfinetes uma pregadeira:

-- «Não faça isso. Padre Eterno, por quem é... Tome um pouco mais, para seu uso, d'essa mesma resignação christã que tanto préga aos outros! Dê-nos, sobretudo, o exemplo da sua cordura e da sua paciencia evangelica... O meu amigo bem sabe que nós não estamos aqui para servir os caprichos, nem as conveniencias d'uma mulher! Estamos cumprindo um mandato que muito nos honra, estamos attendendo a uma necessidade do Governo!»

Eu quiz tambem metter o meu bedelho, carreguei nos tropos:

-- «Estamos servindo o paiz!»

-- «Ora o paiz! o paiz! continuou o Padre Eterno, mais irado ainda... O' santa ingenuidade! Bem se vê que Vossa Excellencia chegou agora da Ilha! O paiz... o paiz! Mas o que entende o senhor por servir o paiz? Imagina o senhor que é servir o paiz esta coisa de lhe reformar o Codigo uma vez por anno? Imagina o senhor que servir o paiz é isto, que nós andamos a fazer, levados como carneiros, de apoiar nas Camaras quantos projectos de lei quer o Governo para defender as pessoas e os bens dos seus amigos politicos?... Imagina o senhor que servir o paiz é isto... isto que nós estamos aqui a praticar, sentados nestas cadeiras, á roda d'esta mesa, conscientes, ainda por cima, como eu e como Vossa Excellencia, do nosso triste papel, que seria o cumulo do ridiculo se estas paredes tivessem ouvidos para ouvir as nossas discussões... E para quê, meus senhores? E afinal para quê? E no fim de contas para quê?... Para introduzir no Codigo Civil Português um artigo que permitta a essa senhora divorciar-se do marido, que já lhe não serve, e poder casar com o seu amante!»

-- «Oh! Oh!»

-- «Ah! os senhores dizem «oh!» Querem talvez fazer-me acreditar que eu lhes estou dando uma grande novidade? Querem talvez dizer que isto não seja assim? Querem talvez convencer-me de que andavam nesta manobra como Pilatos no Credo?! Pois tenham santa paciencia, que os não acredito eu... Os senhores sabem tudo isto tão bem, estão tão fartos de o saber, como eu o sei e estou!»

-- «Meu caro Padre Eterno, voltou Fausto -- estou a desconhecê-lo... Essa sua attitude de hostilidade, assim de subito, assim de repente, sem que se saiba porque, e desusada em pessoa do alto criterio de Vossa Reverendissima, deixa-nos estupefactos! Uma bomba, d’estas modernas, de dinamite e bicos de prégos, que houvesse rebentado aqui, no meio de nós; ou um raio, fabricado nas forjas de Vulcano e despedido pela mão do proprio Jupiter sobre as nossas pobres cabeças, não nos teria causado um tão grande assombro! Nunca, ninguem, em transes bem mais difficeis, d'uma tão longa e accidentada carreira politica como a sua, o viu indignado a tal ponto... O meu amigo, que foi o braço esquerdo do Sá da Bandeira e o braço direito do Fontes! O meu amigo, a quem as lagrimas correram em fio pela face quando um outro ministro, seu amigo de infancia, veiu penitenciar-se perante as Camaras da protecção que dispensara, pelos cofres do Estado, a varias sociedades anonimas de que era accionista! O meu amigo, commissario régio junto de quantas Companhias concessionarias têm passado o nosso territorio de Africa para mãos alheias!... O meu amigo, que é ao mesmo tempo conego da Sé e grão-mestre da Maçonaria portugueza... O meu amigo a insurgir-se assim, com toda essa furia, contra uma minuscula irregularidade conjugal d'essa respeitavel senhora, a quem o animo não chega para enganar o marido, e procura, muito legitimamente, um meio airoso de se vêr livre d'elle! Não, não... Com franqueza, meu caro Padre Eterno, a sua attitude põe-nos a dois passos do fim do mundo!»

Desvairado, desembolado, espicaçado, como um toiro numa praça, o Padre Eterno, que ouvira tudo isto sem responder palavra, bufando e raspando com a pata o chão da arena, avançou para nós, estacou um momento na frente de Fausto como se esperasse uma péga, enterrou o chapéo na cabeça, e disse:

-- «Bem, meus senhores! Eu não costumo voltar atrás... A minha resolução está tomada. Quem quizer que me siga!»

Metteu a pasta dos despachos debaixo do braço, deu meia volta á direita, e sahiu, em passos largos, tão largos quanto lh'o permittiam as pernas muito curtas e o ventre enorme, cahindo como um ôdre.

Levantada assim a sessão, da qual com muita propriedade se poderia dizer que correra agitada, e deveras agitada, Manuel de Sá e Gonçalinho Palha (que era tambem rapaz do meu tempo de Coimbra, e tambem deputado pela primeira vez naquella legislatura, e tambem vogal da Commissão do Codigo) despediram-se, deixando-me só com Fausto, que ainda saboreava o mau bocado por que fizera passar o Padre Eterno.

Chegou então a minha vez de falar a sério. Todo aquelle episodio em que eu vira envolvidos, sob aquelle mesmo tecto, e respirando aquella mesma atmosfera de secretaria de Estado, communicando por uma porta secreta com o gabinete do Ministro -- todo aquelle episodio, que me divertira, me irritava agora e me lançava num desanimo, m.e descoroçoava...

-- «Se aquillo a que vossês por cá chamam politica não é alguma coisa de melhor e mais alto do que isto, deve haver mais de um desilludido entre os que para ella entram, como eu... Pela parte que me tóca, com franqueza te declaro que me sinto desilludido! A noção de politica, com que sahimos de Coimbra, é uma coisa muito diversa...»

Mas aquelle marôto do Fausto não tomava nada a sério, positivamente, cortava-me logo as vasas:

-- «Bem sei... Dizes muito bem! A sciencia politica!... Parte da sciencia social que trata dos fundamentos do Estado e dos principios do Governo... Isso foi tempo, homem pre-historico, e da Ilha!»

-- «Mas ouve cá, ó Fausto, dize-me cá... Tu acreditas que o teu Ministro seja homem que se preste a uma tão estupenda combinação como essa de que parece convicto o Padre Eterno, e que para salvar as apparencias de um adulterio seja capaz de levar ás Camaras uma reforma do Codigo?!»

-- «Acredito. A minha unica duvida está em saber se o adulterio se deu... Creio que não, porque se se houvesse dado, já elle teria passado o pé a D. Claudia, como o tem feito ás outras... Quanto á depravação dos usos e costumes, esse Padre Eterno falou e fala sempre como um Evangelho! Mas não imagines que elle fosse d'aqui pedir a demissão, se não tivesse a certeza antecipada de que o Ministro lh'a não dava. Com esta, é já a terceira vez que elle representa a mesma comedia, e volta sempre atrás, e onde diz que disse diz que não disse -- mas só depois de ter obtido algum novo beneficio que trouxesse de olho. Não mette prégo sem estopa. E’ um malandro da peor especie! Se vens disposto a ser um grande homem na Politica, pódes abandonar ás traças da tua livraria o teu Royer-Gollard, o teu Benjamin Constant e o teu Comte. Bastará que te dês ao trabalho de folhear este Conego. E' um magnifico tomo! E' um tratado completo! Comparado com a sciencia que elle encerra, tudo quanto até agora se tem dito haver de boa lição, para a gloria dos soberanos e para o bem-estar dos povos, no Principe do Machiavello, póde considerar-se lettra morta...»

Assumi um grande ar de gravidade, endireitei-me nos chumaços da minha sobrecasaca de diagonal de duas libras, protestei, serenamente, mas resolutamente:

-- «Estás redondamente enganado a meu respeito, Fausto. Eu bem sinto, porque bem me conheço, que nunca poderei chegar a ser o grande-homem de que tantos outros julgam ter em si o germen... Mas se algum dia me visses subir alto na Politica, ficarias sabendo que alguem podera vencer, sem indignidade, toda essa formidavel barricada de ignominias que terias acabado de levantar neste momento deante de uma ambição, se eu porventura trouxesse commigo essa ambição!...»

-- «Nesse caso, não tens tempo a perder. Corre ao teu hotel, mette na tua mala essa imponente sobrecasaca com que te paramentavas para bem servir a tua patria, e volta, pelo primeiro paquete, para a tua Ilha. Não te resta nada de melhor a fazer. Esquece Lisboa, esquece a Politica, e esquece-te de mim, como deves, porque eu tive a desgraça de cahir no atoleiro e já para mim não ha salvação possivel!»

-- «Estou quasi a dar-te a razão... Mas não parto ainda! Uma vez que cá estou, quero aproveitar quanto possa, observando. Mas de fóra, mas de longe! Conheci-te tão diverso, encontro-te agora tão outro, que receio muito deixar-me tambem contaminar do mal... Isso é coisa que se péga, com certeza! Parece-me que estou ainda a vêr-te nas festas do Centenario, á frente do curso, de gaforinha ao vento, o olhar illuminado, a capa deitada para trás, dando a Coimbra uma idéa do que seria Robespierre na aurora da Revolução... barafustando e gesticulando contra todos os poderes constituidos, insurgindo-te com a fórma do governo, com a tirannia dos lentes, com a imbecilidade dos compendios!...»

-- «E agora, que me vês apaziguado, domesticado, conformado com a mesma ordem de coisas que então me exasperavam, desconheces-me. Pois olha: sou o mesmo... peor ainda do que nesse tempo -- porque tenho visto e aprendido muito mais. Em todo o caso, vou fazendo o meu jogo, como os outros, mas sem querer vacca com elles. E' mais difficil, é mais demorado, mas é mais seguro.»

Talvez eu tivesse feito as minhas malas, e voltado para a Ilha pelo primeiro paquete -- talvez! se uma outra razão, que nada tinha que vêr com o meu mandato politico, me não houvesse já determinado a demorar-me em Lisboa... E se é certo, como já disse não me lembra agora quem, que a vida de cada um de nós, bem contada, é só por si um romance, poderia eu dizer que o meu romance entrava então num dos seus capitulos mais interessantes.

A desculpa, que eu déra a D. Claudia, de não ter apparecido ultimamente em sua casa, fôra uma desculpa de pura invenção. O verdadeiro motivo era outro; mas esse não podia eu dizer-lh'o, não o dissera a ninguem, nem sequer ao Fausto, para quem, aliás, não tinha outros segredos.

Evitando a assiduidade das minhas visitas á Rua do Salitre, procurava eu escapulir-me aos perigos de uma seducção que logo nos primeiros dias da minha ida ali começava a tecer os seus fios de ferro em volta do meu animo fraco e predisposto ás influencias perturbadoras do fatal feminino.

Um dos grandes cuidados que a Tia Genoveva não deixara jámais esmorecer na vigilancia do meu desabrochar juvenil, fôra o de me incutir noções preventivas muito exageradas contra o facil commercio das mulheres.

Afigurava-se á boa Tia Genoveva que Deus, encarregando-a da minha educação christã, lhe dirigira aquellas mesmas palavras que outr'ora dirigira ao seu profeta: -- «Dou-te poder para arrancar e plantar, para derrubar e edificar». E assim investida de taes poderes, ella tratou de me desviar do mal e encaminhar ao bem, combatendo em mim os germens instinctivos e originaes do peccado, cultivando em mim as sementes de virtude e graça infundidas pelo baptismo, mondando na minha alma pequenina o joio damnoso, e ajudando a crescer o bom grão, que mais tarde haveria de fructificar na vida eterna, pois bem sabia ella ser tal a natureza humana, que temos desde o berço de desaprender o vicio, cuja sciencia nefasta é como que innata em nossos corações, e de aprender o bem á custa de muitos e continuos esforços...

Dividiu portanto a Tia Genoveva a minha educação em duas e bem distinctas partes: uma, a que se poderia chamar negativa, consistiu em destruir a obra antiga do Demonio -- opera Diaboli; a outra, que era a positiva, consistia em conservar e cimentar a obra regeneradora de Deus -- opera Dei. E começando pela primeira como que para limpar o terreno, ella emprehendera, antes de tudo, o trabalho preliminar de me inspirar um horror intenso pelo peccado -- como só Tobias soubera inspira-lo aos filhos.

-- «Foge do peccado. Quinino! foge do peccado, como se fugisses da mais perigosa e mais venenosa serpente!»

Esse era o maior, o mais terrivel de todos os males! Mal perante Deus, mal perante os homens, mal do corpo, mal da alma, do tempo, da eternidade -- o unico mal verdadeiro; porque dos outros, muitos até vinham ás vezes por bens, e não raro eram mercês da graça divina para proveito das nossas almas e fomento da perfeição christã.

Depois de me haver inspirado a aversão contra o peccado em geral, a Tia Genoveva tratava de precaver-me contra cada peccado em particular.

Da Soberba, que avultava entre todos, e de todos elles vinha sempre á cabeça do rol, se originavam todos os mais. Não havia outro mais grave, nem mais tristemente fecundo.

-- «A Soberba, dizia-me a Tia Genoveva, é a mãe de todos os peccados!»

Tanto bastava dizer-me, para logo querer eu saber quem era então o pae. E ainda me lembro -- pois ha certas e remotas minucias da vida que não mais esquecem -- do embaraço com que ella me explicava terem os peccados vindo ao mundo sem pae... E como eu insistisse, intrigado, e com essa natural curiosidade insaciavel da infancia, que não admitte misterios, que quer logo tudo para ali em pratos limpos, a Tia Genoveva, já com as faces vermelhas como as maçãs camoesas que perfumavam as gavetas da sua roupa branca, acabara por me confessar que todos os peccados, filhos da Soberba, tinham vindo ao mundo, effectivamente, como eu suppunha, por obra e graça do divino Espirito Santo!

No encalço da Soberba vinha logo a Avareza; e, neste ponto, todo o cuidado da Tia Genoveva consistia em me dar o exemplo do seu nobre desinteresse, evitando que na minha presença a Tia Maria da Assumpção, maniaca de grandesas, exaltasse a importancia do Dinheiro no destino das gentes, e só considerasse os bens do mundo como simbolo da felicidade. Para o céo, para o céo, é que era mister aferrolhar, enthesourar, não para a vida caduca... E ao sabbado, dia de esmolas, era a mim que ella imcumbia a doce tarefa de despejar o saquinho de vintens na palma das trinta mãos sujas e mirradas, que outros tantos pobres, enchendo o portão da nossa casa da Boa Nova, estendiam para mim, sorrindo me e abençoando-me.

A' Soberba e á Avareza, intimamente se ligava a Inveja, que aos meus olhos se pintou como tristeza malvada e esverdeado rancôr em face dos bens e das venturas alheias. Movido pela Inveja, introduzira o Demonio neste mundo a desobediencia e a morte. Ella assassinara o meigo Abel, perseguira David, crucificara apropria Divindade. E para melhor me compenetrar da hediondez d'este mal, a Tia Genoveva me explicava que o invejoso era para si mesmo o mais inexoravel verdugo, pois o seu peccado era como o abutre encarniçado, cujas garras lhe desfibram o proprio coração.

Combatendo a desarasoada tendencia que eu, desde os mais tenros annos, manifestava para os acepipes e guloseimas, dando frequentes assaltos ás travessas de croquetes de gallinha e presunto, que a nossa creada Conceição Velha aviava por uma receita divina, e obrigando a Tia Genoveva a guardar a sete chaves as latas de biscoitos, as tijelas de dôce e os bandos de pombas de alfenim que todos os annos nos vinham, em revoadas, do imperio dos Quatro Cantos -- um dos exemplos de temperança e sobriedade que a Tia Genoveva me citava, e que muito me divertia, era aquelle do pequenino e ladino São Nicolau, que, ainda menino de cólo, espontaneamente se abstinha de mamar ás sextas-feiras, «a não ser depois do anoitecer, e ainda assim uma vez só!».

A Ira, fugaz loucura, que assalta ás vezes as almas ainda as mais placidas, não era em mim essa natural condição do temperamento infantil, de que fala o Abbade Pichenot, vigario geral da diocese de Sens. Eu nunca fui irrascivel, antes me mostrei sempre soffredor paciente de reprimendas e contrariedades, propenso sempre a perdoar offensas, e facil em reconciliações. Por isso não dava á Tia Genoveva o trabalho (que teria sido tambem para ella um vivo desgosto) de reprimir nem o meu mau genio, nem as minhas violencias, que não me foram precisas á energia do caracter, nem á impetuosidade propria e inseparavel das virtudes viris, de que me prézo.

Tambem não era o receio da Preguiça que affligia, a meu respeito, a Tia Genoveva. Eu nunca fui preguiçoso, e com isto lhe proporcionei contentamento e alegria desde as primeiras lettras, em que a nota da minha applicação foi invariavelmente excelente, e até á conclusão do meu curso de Direito, nemine discrepante.

O peor, o mais grave, o grande busilis estava em preservar-me, e instruir-me de modo a eu proprio me preservar do mais nefando de todos os peccados, do maior de todos os males da alma (e que ás vezes redundava num dos peores males do corpo) conservando o mais precioso e o mais fragil entre todos os meus bens...

Não ignorava a Tia Genoveva aquellas energicas palavras com que o apostolo São João resumia todos os maus instinctos da natureza corrompida pelo peccado original: -- «Quanto no mundo existe é concupiscencia da carne, concupiscencia dos olhos, soberba da vida!» Bem sabia ella que do peccado odioso da Luxuria existe o germen em cada um dos desgraçados filhos de Eva; e, mais cedo ou mais tarde, em cada um de nós desperta esse sentido reprovado, que a somno solto e ditoso dorme na infancia innocente e descuidada.

Mas aquillo com que ella, coitadinha, não podia atinar, e com o que tanto se inquietava e affligia desde que eu deixei a escola das Senhoras Araujos, para me matricular no Liceu -- era a maneira mais segura de estabelecer em volta da minha innocencia uma especie de cordão sanitario que me preservasse do contagio d'aquelle mal que tão subtilmente se insinúa por todos os nossos póros...

Todo o seu cuidado era evitar que uma palavra imprudente, uma reticencia malevola podesse despertar a minha curiosidade, acender a minha imaginação, comprometter a minha innocencia. E que nem os meus olhos pousassem sobre alguma estampa má -- como aquella que ainda cheguei a vêr na casa de jantar da Tia Maria da Assumpção antes que ella a retirasse para o sotão a instantes pedidos da Tia Genoveva, e em que um frade barbadinho, com a cabeça perdida, agarrava pela cintura uma hespanhola toda engommada e de manton de Manilla, e lá iam ambos a saracotear-se como na zarzuela...

Por esas calles

Va la gracia y Dios!

E que nem a minha attenção se demorasse no reparo do mais simples incidente de que podesse resultar sugestão de acto prohibido -- como, por exemplo, o encontro fortuito, na rua, por baixo das nossas janellas, de um cãosinho galanteador com alguma cadela das suas relações...

E todos os dias (era sabido!) quando eu sahia de casa para ir ao Liceu, acompanhado pelo Manoel Ignacio, ella vinha ao bota-fóra na escada , deitando-me a benção do patamar e recommendando ao Manoel Ignacio que tivesse sempre muito cuidado commigo, e não me perdesse de vista, de cada vez avivando a lembrança d'aquella sabia indicação dos antigos, que mandavam usar para com a infancia a maxima reverencia. Maxima debetur puero reverentia!

Mas, ai! Um dia, dia de meus annos, que já eram quatorze, e propositadamente escolhido para tão solemne fim, a Tia Genoveva, depois de me haver presenteado, de surpreza, com o meu primeiro fato de calça até baixo, de flanella azul, á maruja, chamou-me ao oratorio, para onde se passava pela sala grande dos Retratos, e onde se podia dizer missa com licença de Roma; prostrou-se deante do altar onde havia um grupo da Sagrada Familia que era o enlevo do Doutor Tristão, grande entendedor de obras de arte, e disse-me que me ajoelhasse eu a seu lado, e com ella resasse, a meia voz, a Salvé Rainha...

Era uma terça-feira, 22 de Julho. O velho relogio de pesos, no corredor, acabava de dar as duas horas da tarde.

De costume, o oratorio só se abria aos sabbados, depois das Avé-Marias,para as longas resas em que a Tia Genoveva, a Tia Maria da Assumpção, a Conceição Velha, a Gertrudes Gaga, a Barbara, filha do Manoel Ignacio, e tambem nossa creada, o Manoel Ignacio, e eu -- nos afundávamos durante tres quartos de hora, que eu já começava a achar interminaveis quando ainda o primeiro não chegara ao fim.

E não foi sem estranhesa que segui a Tia, e me ajoelhei ao seu lado, e com ella resei, a meia voz, a Salvé-Rainha...

Mas nesse dia, e em seguida áquella incommensuravel satisfação das minhas primeiras calças compridas, eu teria resado o Terço, se preciso fosse, sem oppôr a menor objecção, sem que me doessem os joelhos. Obedeci, aguardei os acontecimentos.

Como se quizesse que Nossa Senhora, o Senhor São José e o Menino Jesus, deante do qual se podia falar á vontade (pois já Elle estivera entre os Doutores, e mais coisas sabia que Pico de Mirandola em sua tenra idade) fossem testemunhas da sua grande vontade de acertar, a Tia Genoveva, agora de pé, e tendo-me eu posto de pé tambem, julgou chegado o momento de não mais applicar ao estado inferior do meu desenvolvimento mental, aquelle dito do Divino Mestre aos seus amados discipulos: -- «Muitas coisas tenho ainda que vos dizer, mas por ora não podeis arcar com ellas». E o seu espirito tentou descer sobre mim, como um espirito santo, com suas graças e seus dons, para communicar-me a intelligencia necessaria ao entendimento do que ainda faltava ensinar-me.

Tu não o sabias bem ao certo, boa e santa Tia Genoveva! Mas lá te queria parecer que aos quatorze annos, espigadinho como eu já estava, e com um anno de Liceu para mais ajuda, não havia muito mais tempo a perder, não havia muito mais tempo a esperar.

E, a não serem as paixões, nada era, em teu criterioso entender, tão nocivo á infancia como a ignorancia, ou um conhecimento incompleto e superficial das coisas.

Para eu poder resistir aos perigos que por todos os lados sabias ameaçarem-me, era preciso que me desses conhecimento da existencia d'esses perigos; era preciso que eu entrasse na comprehensão, tanto quanto possivel aproximada d'elles, para d'elles aprender a livrar me por mim mesmo -- porque nem eu teria de andar por toda a vida agarrado ás tuas saias, nem seria possivel que o Manoel Ignacio me não perdesse de vista tambem por toda a vida...

Foi então um supplicio para ella, e um supplicio para mim, esse momento solemne. Por que aquillo mesmo sobre que a Tia Genoveva se esforçava por me elucidar, entrando em complicados rodeios, perdendo se em embrulhados circumloquios, emaranhando-se em obscuras metaforas -- eu o sabia já, ai de mim! ai de ti! ai meu bem! ai de nós todos!...

E tudo aquillo de que ella me falava tão obscuramente, sem conhecimento de causa, apenas por informações, e voltando amiudadas vezes os seus olhos limpidos e ingenuos para Nossa Senhora, para o Senhor São José e para o Menino Jesus, como que a pedir-lhes desculpa, o conhecia eu como conhecia os meus dedos: pois não era debalde que a Barbara, filha do Manoel Ignacio, de vinte e seis annos de idade, fresca como uma alface, robusta como uma bezerra, tendo estado a servir em casa do Major Elias antes de vir para nossa casa, me atracava nos corredores ás escondidas, me ferrava grandes beijocas, e á noite, emquanto a Conceição Velha resonava, de braços cruzados, encostada á mesa da cozinha, e a Tia Genoveva passava pelo seu somno reparador antes da hora do chá, e o Manoel Ignacio sahia para ir á loja do Gaiato, ou do Francisquinho das Flôres, que era no fim da Rua da Sé, a buscar assucar, ou vélas, ou algum bôlo de massa sovada, demorando-se tempos infinitos em cada um d'esses recados -- me puxava para o quarto dos bahús e muito se divertia commigo, numa brincadeira a que ella chamava «instrucção de recrutas» e que aprendera na perfeição com o impedido do Major!

Toda a ruina peccaminosa e irreparavel da felicidade na Terra, que o Creador sonhara e quizera realisar tão magnanimamente, dando o Paraiso ao primeiro Homem e á primeira Mulher, fôra devida á cubiça nefanda d'essa primeira Mulher...

Depois, em todos os tempos e em todas as historias, onde quer que se assignalasse alguma grande catastrofe, alguma grande desventura, algum grande mal, quem procurasse bem, quem rebuscasse bem, lá iria encontrar, na escavação paciente dos factos e das lendas, conduzindo á origem, o sulco pernicioso d’uma maldita mulher!

E para d'isto me certificar, e me convencer, a boa Tia Genoveva empregava o seu melhor engenho, os seus melhores argumentos, compulsando a sua Biblia e a sua Vida dos Santos.

Ella teria querido que eu fosse como o José do Egypto, casto e arisco, para sempre me saber arredado dos ardis perigosos da mulher de Putifar.

Ella teria querido que uma fonte de misericordia, nascendo do céo, gottejasse sobre mim, tornando-me forte, como Santo Antão, para resistir a quantas perturbadoras e enternecedoras tentações me viesse offerecer alguma outra Rainha de Sabá... -- «Estende os teus labios, meu amor, para que nelles recebas os meus beijos, que têm o sabor e o perfume do mais saboroso e perfumado fructo! Desprende os meus vestidos, querido eremita, e em mim descobrirás os infinitos misterios do goso que nunca sonhaste! Toca a carne do meu hombro com a ponta de um dedo teu, e sentirás a chispa doirada do amôr percorrer o rastilho que ha de incendiar o sangue nas tuas veias!...»

Ella teria querido que eu vivesse, crescesse, me desenvolvesse, tirasse o meu curso do Liceu, adquirisse a minha carta de bacharel, voltasse para junto d'ella e junto d'ella passasse o resto da minha vida, sempre puro e virgem como São Luiz de Gonzaga!

Mas nunca ella teria ousado pedir á Senhora do Livramento, minha madrinha, que me livrasse inteiramente de taes tentações -- não só porque o pedido, concebido em tão apenados termos, iria collocar a Senhora do Livramento na contingencia de não poder fazer-lhe essa vontade, mas ainda porque a Tia Genoveva queria-me muito, era muito minha amiga, e não lhe chegaria o animo para assim me privar, tão despoticamente, dos rasgados offerecimentos da Rainha de Sabá, e assim obstar a que eu, algum dia, viesse a experimentar, nessa mesma ordem de assumptos, outras coisas boas que São Luiz de Gonzaga, coitadinho, não chegara a conhecer.

Agora, lá com respeito á mulher de Putifar, isso não senhor! Pelo menos, com o seu consentimento, isso nunca!... Porque essa era uma mulher casada, e eu incorreria assim, logo d'uma cajadada, no desrespeito de dois graves mandamentos: o sexto e o nono!

Emfim, do mal o menos. Se não fui casto, fui cauto. E assim me livrei, por mais de uma vez, das armadilhas que me preparavam as Primas Rochas e as Primas Noronhas, nos primeiros tempos que se seguiram ao meu regresso de Coimbra.

Queriam por força, e á viva força, casar-me, na certeza, diziam ellas, de que presenteariam a noiva com uma riquissima joia, que era eu.

Mas eu resistia, sorrindo; e quanto mais resistia, mais ellas se exasperavam e se encarniçavam no seu diabolico proposito de engatadeiras...

-- «Não me engatem, primas! Não me engatem!»

-- «Ora, deixe-se d'isso. Quinino! Isso é uma tolice. Toda a gente casa... Porque não hade o primo casar tambem?»

-- «Porque não quero, que é a melhor das razões! Porque me sinto bem solteiro...»

E ellas? Ellas porque não tinham casado? Porque tambem não tinham querido, muito naturalmente, e estavam no seu direito. Não porque lhes tivesse faltado occasião para o fazerem com acerto.

A esta idéa de casamento, que ainda lhes sorria, ellas sorriam ainda. A mais nova de todas, que era a Prima Aldegundes, andava quasi a saltar os trinta e oito, e essa mesma já estava condemnada ao celibato pela vida inteira. Mas não perdiam a esperança...

-- «Ninguem diga: d'esta agua não beberei...»

E fervorosamente se encommendavam, todas ellas em fila, de joelhos e mãos postas, e o olhar em alvo, a São Gonçalo de Amarante, casamenteiro de durázias.

Emquanto lhes não chegava a sua vez, iam entretendo o tempo e a cobiça com arranjar namoros e casamentos para os outros, e com isso se consolavam. Coadjuvadas pelo Primo Theodosio, que as acompanhava na desdita, constituiam como que uma agencia de matrimonios já acreditada e bem afreguesada. E regalavam-se em dizê-lo.

Pois quem tinha arranjado o casamento do Manoel Torquato com a Zulmirinha Franco, se não ellas? E o do Barão da Terra-Chã com a D. Elvira Meyrelles, naquella idade, mais velha do que elle, que já era velho? E a filha do Conselheiro Brito, filha unica, herdeira de tresentos contos em aguias, com o Jaymesinho Silva que, não desfazendo em quem se achasse presente, era a flôr dos rapazes finos da Ilha? E não eram felizes, todos esses? E não lh'o tinham agradecido?

Oh! se eram... Oh! se tinham...

Então, como quem lhes abrisse a torneira de um banho frio de chuva sobre os penteados de pôpa, muito complicados e lustrosos, eu perguntava-lhes:

-- «E quem arranjou o casamento do José Victorino com a Magdalena Avelar? E o casamento do General Ayres com a Maria Demetilia?»

Quem tinha sido, quem?

O José Victorino e o General Ayres eram os dois grandes bodes expiatorios d’umas intrigas amorosas em que aquellas minhas primas tinham andado envolvidas, com flagrante registo na chronica escandalosa da Ilha.

Mal eu lhes tocava na ferida, iam aos ares, furiosas. A sua responsabilidade, nesses casamentos que promoviam, acabava aos pés do altar, no momento em que o padre, lançando sobre os noivos a benção da Egreja, pronunciava o irremissivel: -- «Eu vos conjugo!» Era uma responsabilidade limitada.

D'ahi por deante, o resto era com elles -- não com ellas. Se os casados se davam bem, se se julgavam e eram considerados felizes, muito gosto tinham em declarar bem alto que a ellas o deviam. Se não, não! E d'ahi varriam, muito peremptoriamente, a sua testada.

Depois, já mais serenadas, acrescentavam:

-- «...Que afinal de contas, nem o General se queixa, nem o José Victorino está arrependido...»

-- «Ora... Ora!... Pois a quem queriam as primas que o General se queixasse? Ao Ministerio da Guerra, talvez? Faz elle muito bem, que um general nunca deve dar-se por vencido... Quanto ao José Victorino, claro que não é elle quem deve mostrar-se arrependido: quem deveria mostrar-se arrependida era a Magdalena!»

-- «O primo é um vivo diabo!» concluiam ellas, rindo.

Riamos todos, riamos muito, muito riamos! E o Primo Theodosio, que já desistira de me chamar para o bom caminho, aconselhava ás Primas Rochas e ás Primas Noronhas que desistissem tambem de me procurar casamento, porque perderiam commigo o seu tempo, como já o tinham perdido com a Tia Genoveva:

-- «Com este, primas, não fazemos nós farinha.»

E abandonavam-me á teimosia do meu celibato, cujas tristezas eu desvanecia, a esse tempo, com uma rapariguinha de São Matheus que trouxera para a cidade sem escandalo, e a quem pozera casa numa d'aquellas ruasinhas discretas de Santa Luzia, onde o meu peccado se foi anichar com recato, entre as virtudes familiares e tranquillas do alegre bairro.

Mas a Prima Aldegundes, voltando atrás, e como o Theodosio e as outras já não podessem ouvi-la, embicava commigo afoitamente, entre portas:

-- «Olhe, Quinino, sabe que mais? Está-me a parecer que o primo não foi fadado para o amôr...»

Eu agarrava-lhe então ambos os punhos, puxava a para mim com força, sentia-a toda estremecer-me nas mãos, dizia-lhe entre dentes:

-- «Quer experimentar, prima? Quer experimentar?»

-- «Não! Não!»

E emquanto ella, um momento, fingidamente se debatia para desenvencilhar-se de mim, eu pespegava-lhe dois grandes beijos na face esbraseada.

Clandestinamente, por distração, de brincadeira, sim, minhas senhoras, e com immenso gosto. A sério, porém, e á face da Egreja, mudava o caso, e muito, de figura, fiava muito mais fino. Mulheres, para casar, eram todas o mesmo! E eu generalisava esta observação, não admittia excepções.

Chegado a Lisboa, uma das primeiras recommendações que me fizera Fausto Guimarães, amigo certo, fôra esta:

-- «Sobretudo, Amaral, livra-te das ratoeiras para noivos, que são um dos maiores perigos que aqui pôde correr um rapaz na tua idade e nas tuas condições. Toda a cautela é pouca. Algumas d'essas ratoeiras são habilmente armadas por pães sem escrupulos, que muitas vezes sacrificam os seus parcos vencimentos de primeiro official ou de guarda-livros á mise-en-scène das filhas, passando penurias de portas a dentro, em casa... Depois, ha mistificações d'este genero: um pae consente no casamento da filha, estipulando-lhe um dote de trinta contos, nominaes. Na occasião de se passar o contracto, entrega elle ao noivo, muito bem embrulhados e atados com uma fita côr de rosa, trinta contos em acções da Companhia Promotora da Agricultura ou do Banco Lusitano... Quando o noivo abre o embrulho, já o casamento está feito, e nunca mais as acções voltam ao par!»

Depois, não era só Fausto que me punha de pé atrás. Era o muito que eu tinha lido e ouvido em desprestigio das mulheres de Lisboa.

Afigurava-se me a capital uma estranha estufa onde a precocidade feminina faz da creança recemnascida uma rapariguinha espevitada, da rapariguinha espevitada uma mulher sabida, e da mulher sabida um monstro de perfidia. E eu sabia que, em volta d'essa mulher, só havia estratagemas subtis e profundas malicias, cujo segredo era só d'ella, e onde ella se mexia e remexia com a subtileza perigosa da serpente que mórde e se esgueira para o seu esconderijo, sem que ninguem a adivinhe...

E tanto eu estava nesta idéa, e tão aferrado a ella, que logo no primeiro dia considerei D. Claudia uma vibora e Clarinha uma vibora pequenina.

Mas não fôra preciso muito para que eu perdesse o medo, e me sentisse attraído para aquelle ninho de viboras, d'onde Clarinha se desenroscava agora, e se transmudava aos meus olhos, como numa doce e luminosa magica, em princezinha de Perrault, que sete fadas houvessem dotado com o melhor que tivessem: a formosura, a intelligencia, a graça, o bom-senso, a meiguice, a candura, o amôr...

No meio em que eu a encontrava, em que ella vivia, e ao qual eu, agora, procurava adaptar-me, não sem renitencia e sem quebra de enraizados propositos de dignidade e de intransigencia, o convivio de Clarinha offerecia-me um suave parenthesis de encanto honesto, de grato repouso e de refugio amavel, intercalando um pouco de poesia na grosseira e prosaica mixordia politica que o Presidente do Conselho e o Padre Eterno mexiam e remexiam.

Por modo que, depois d'aquelle encontro inesperado com D. Claudia no Ministerio, em que ella me dissera que já Clarinha estranhara a minha ausencia de tantos dias, comecei a correr, todos os dias, com uma viva pressa, para a Rua do Salitre.

E entrei então a sentir, a ver, a observar em mim, nos meus movimentos, nas minhas idéas, nas minhas hesitações, nos meus actos, uma mudança exquisita do meu estado de alma -- uma coisa nova, absolutamente nova, que eu não sabia precisar, que não me era possivel definir, mas que me dava muita alegria, muita vivacidade, muito bom humor, muito estimulo.

VI

Numa terça-feira, que era dia de grande gala e não havia Camaras, fui, depois do almoço, com todo o meu vagar, até ao Campo de Santa Clara, para vêr a Feira da Ladra, de que tanto ouvira falar e não conhecia ainda.

Estava um dia lindo, de fins de março, azul e desanuviado.

-- «Um dia creador!» me dissera o Poças, á porta do Hotel, onde o deixei, espécado, na persistencia do seu namoro com a mulher da bata ás riscas.

Eu começara então a percorrer a capital, que até ahi se tinha limitado para mim ás ruas da Baixa, ao Salitre, e a São Bento.

Afastava-me já para os bairros novos, d'onde uma nova cidade surgia, em ligeiras e breves construcções, de ripas e tijolo, recobertas de estuques claros e alegres azulejos.

Procedia-se a um plano geral de melhoramentos que abrangia ruas, praças, jardins, edificios publicos e particulares, organisando-se projectos que deviam obedecer a todas as condições modernas e rigorosas de higiene, decoração, commodidade, bom gosto.

Queria-se uma cidade cheia de luz, bem ventilada, abastecida de aguas, modelar de exgotos. E na execução do amplo e magnifico programma, a que presidia um Conselho de summidades diplomadas, engenheiros, architectos, vogaes do Conselho de Saude Publica, todos com opiparos ordenados, gratificações á larga, generosas ajudas de custo, deveria attender-se aos melhores sistemas de deposito, desinfecção, despejo, remoção de liquidos e solidos; á drenagem do solo, quando paludoso ou carregado de substancias organicas; aos melhores processos de encanamentos de aguas e tubagem de illuminação; á amplidão e declividade das ruas; á conducção das aguas dos telhados; á altura das edificações em harmonia com a larguêsa das vias; aos chanfrados dos angulos das esquinas.

Eram declaradas de utilidade publica, e urgentes, grandiosas expropriações, pagas sem regateio, a olhos fechados, pelo preço que os expropriados quizessem. Fixavam-se alinhamentos e davam-se cotas de nivel, tudo admiravelmente estudado e calculado.

Além do Governo, precedendo auctorisações legislativas, e da Camara Municipal, nos termos do Codigo Administrativo, grandes empresas que o Estado subvencionava, isemptava de impostos e favorecia ainda com garantias de juros, metiiam hombros titanicos á execução do maravilhoso plano, que se afigurava de proporções e molde a surprehender o proprio Marquez de Pombal, se elle resuscitasse.

Quem pretendesse construir novos edificios e reconstruir os antigos, era obrigado a observar disposições e regulamentos apertadissimos, no proveito do conjuncto magnificente que se pretendia dar á capital. Se os terrenos particulares confinavam com as vias publicas, eram os donos constrangidos a nelles realisar as edificações que mais conviessem ao embellezamento das vias, e intimados a não demorarem o cumprimento d'esta determinação absoluta além de um certo praso, que lhes era dado. Se nos novos alinhamentos o proprietario era obrigado a recuar, o Estado indemnisava-o, e como o Estado é sempre «grand seigneur» quando se trata de indemnisações, houve um momento em que todos os proprietarios quizeram recuar... Se um predio ameaçava ruina, e o senhorio teimava em não o demolir, a Camara Municipal munia-se de picarêta, arremcttia com o predio, e deitava-o abaixo á custa do senhorio.

Para obter a purêsa do ar atmosferico, subsidiar emprêsas constructoras, agitar os capitaes, evitar sarrasfuscas dos operarios sem trabalho, que todos os dias percorriam a Baixa em bandos precatorios, com estandartes vermelhos e ameaças socialistas, o Estado mandava traçar novas ruas, rasgar avenidas, fazer aterros, plantar jardins.

Como a cidade não fôra primitivamente construida sobre um plano regular, que previamente se houvesse fixado, e que lhe desse configuração tambem regular e arruamentos simetricos, devendo ao acaso, depois da reconstrucção pombalina, as principaes direcções das massas edificadas, havia então necessidade de alterar, beneficiar, alindar o que já existia feito, e que não era possivel deitar a terra.

Para modificar os effeitos da impetuosidade dos ventos, recorria-se ás curvas de grande raio. Para facilitar o escoamento das aguas, dava-se ás ruas outra inclinação, augmentava-se o numero das sargêtas. Para tornar suave o rodar das carruagens e o piso dos peões, reformavam-se as calçadas, introduziam-se novos sistemas de empedramento, derramava-se um mar de asfalto nos passeios. Para attenuar os grandes calores de agosto, e alegrar a cidade, plantavam-se arvores de folha caduca ao longo das ruas, cobriam-se de accacias as avenidas.

As encostas revestidas de vegetação transmudavam-se, enchiam-se de fabricas, armazens, estancias.

Assignado o fabuloso contracto com Hersent para as obras do porto de Lisboa, começava agora a realisação d'esse plano, que promettia um sonho de riquêsas, garantidas pela posição geografica e pelas excellencias da barra e da bahia do Tejo. Em todos os sentidos se cruzavam as vias ferreas interiores; um immenso tunnel abria as fauces no meio da cidade e recebia a população que o atravessava e se alastrava pelos arrabaldes.

Das antigas e abandonadas cêrcas dos conventos, arrancadas as laranjeiras e as amendoeiras, irrompiam jardins talhados á inglêsa, toda uma nova flora, colorida e decorativa, rebentava e crescia em opulentos macissos, entre farturas de relvas e de trepadeiras. Onde alguma velha casa historica, abalada pelos ventos e roída pelos carunchos, se aluía e desmoronava, com o ruido cavo de traves e caliças, logo um palacio de nova arte se erguia, em cantarias brancas e madeiras frescas, ao som matinal e cantante dos escopros e dos martelos.

Nos seus aspectos mais tipicos, na sua feição topografica e esthetica, Lisboa transformava se vigorosamente, sem que nessa evolução apressada e nervosa attendesse um pouco á sua propria tradição, nem ás suas recordações piedosas, nem á veneração dos seus archeologos e dos seus antiquarios, nem ao seu inventario historico, nem ao respeito devido aos seus archivos.

O Poças observara-me:

-- «Se o Amaral quer conhecer ainda a Feira da Ladra, não tem tempo a perder. Vá lá.

Aquillo é feira que está já no levantar... E olhe que vale a pena. Desapparecendo ella, com ella terá desapparecido uma das mais caracteristicas instituições do reino. Vá, meu amigo, vá, e verá que largo campo esse de divagação e entretenimento para a mais exigente fantasia!»

Porque na Feira da Ladra se encontrava tudo, se procurava tudo quanto fôsse possivel desejar em materia de objectos já servidos, factos velhos e idéas em segunda mão; roupas usadas, calçado gasto, chapéos acochichados, trastes eutensilios da mais variada especie e dos destinos mais diversos.

Na Feira da Ladra iam alguns dos nossos mais laureados dramaturgos e romancistas desencantar o entrecho das suas peças mais applaudidas, a intriga dos seus romances mais palpitantes.

Era á Feira da Ladra que as noivas em más circumstancias iam comprar a flôr de larangeira com que ornavam a fronte para o matrimonio.

Na Feira da Ladra se encontravam, em excellentes condições, fardas de ministros, bastões de marechaes, dragonas de almirantes, chumaços de coroneis, velhas armas e barões assignalados, em perfeito estado de conservação. Quanta no breza fôra lá buscar os seus antepassados, e quantos titulares de lá voltaram trazendo debaixo do braço os seus brazões!

Grandes oradores parlamentares e sagrados iam buscar á Feira da Ladra os melhores discursos e sermões de José Estevão e do Padre Antonio Vieira, que depois de sacudidos e passados a ferro eram ouvidos nas Camaras ou em sexta-feira da Paixão, como se fossem d'elles...

Era á Feira da Ladra que as nossas sociedades anonimas iam escolher as suas mezas de assembléa geral, e onde as donas das hospedarias para pernoitar iam adquirir as suas mezinhas de cabeceira.

Era, finalmente, na Feira da Ladra que alguns dos nossos mais profundos pensadores iam beber da fonte que ali corria perenne, a saciar-lhes a sêde de verdade sobre as miserias humanas.

A Feira da Ladra fôra, por largos annos, a Senhora dos Afflictos para todas as classes e para todos os cerebros menos abastados.

-- «Desapparecendo ella, concluia Poças, sempre desejarei que me digam se toda essa gente que ia vestir-se, calçar-se, mobilar-se e encontrar idéas na Feira da Ladra, ha de passar a vestir-se no Amieiro, a calçar-se no Serra, a mobilar-se no Castanheira, e a encontrar idéas -- na Academia!»

Lá ao fim, isolado do grande movimento da feira, mettido num recanto, junto do arco de São Vicente de Fóra, estava um pequeno alfarrabista com o seu taboieiro cheio de livros velhos, de todos os formatos e grossuras, crivados uns pelas traças, outros roídos dos ratos, uns sem principio, outros sem fim, e todos elles tresandando a espelunca de trapeiro, d’onde só deviam sahir ás terças feiras para aquella aragem, que não chegava a sacudir-lhes o bafio. E enfiados ao alto do taboleiro, entre tres cordeis amarrados á ponta de dois sarrafos, muitos folhetos d'essa tão pittoresca e ingenua litteratura popular da Edade Média não apagada ainda, antes conservada e transmittida com afinco de geração em geração, através de uns poucos de seculos de transformações sociaes, sentimentaes, intellectuaes: eram o resumo dos antigos poemas carlingios e arthurianos, as lendas dos Santos e as satiras, as aventuras facetas e os apparecimentos de monstros -- a Malicia das Mulheres e a Historia dos Tres Corcovádos, o Bertholdo e o Cacasseno, a Donzella Theodora e a Imperatriz Porcina, mulher do Imperador Lodonio de Roma... -- toda uma livraria de rebotalho grosseiramente impressa, e ornada de gravuras que me pareciam manifestações de uma esthetica selvagem, ou pre-historica.

Uma estampa solta, que se me afigurou valiosa, attrahiu-me a attenção. Inclinei-me para vêr melhor; e logo o alfarrabista, percebendo talvez que encontrava em mim o primeiro comprador d'esse dia, a puxava de baixo de um pedaço de ferradura que a livrava do vento, e m'a offerecia a exame de mais perto, quando uma outra mão, de alguem que chegara nesse momento junto do taboleiro, se precipitou sobre ella e a arrancou para si.

Voltei-me, encarei o malcreado. Mas uma espontanea alegria me desconcertou no repente de azedume:

-- «Oh! Chico...»

-- «Oh! Amarante!»

E cahimos nos braços um do outro.

Era o Chico do Patrocinio, o poeta, o meu caro Chico do Patrocinio, que fôra meu contemporaneo de Coimbra, e commigo vivera, e com o Fausto Guimarães, naquella mesma e sempre saudosa republica da Couraça dos Apostolos. Mas como elle estava dififerente! e de bigode rapado! E que tremenda cabelleira! Era o caso de lhe perguntar:

-- «Mas Chiquinho, por onde tens tu andado, que tão bom cabello tens creado?!»

-- «Ora, por onde tenho eu andado! Na lua, sempre na lua!»

-- «E que tens feito?»

-- «Versos! Tenho feito versos... Pois que queres tu que eu faça?...»

E o curso? Não acabara o curso! Dois annos no quarto anno, e nem para trás, nem para deante. Tinha sido o diabo, tinha. Mas que havia de fazer lhe? Desistira, esmurrara o Pimentel Gouveia em pleno pateo da Universidade, fugira para Lisboa. Era amanuense da Bibliotheca Publica.

-- «Mas estás magnifico, sabes tu? Estás plethorico!”

-- «E' certo. Tenho passado admiravelmente.»

-- «Ainda comes muito bife?»

-- «E muito peixe, muitos ovos, muitos legumes, tudo brutalmente, em dóses maximas! Os versos puxam muito por nós, é preciso dar-lhes que puxar.»

-- «De mais a mais, chefe da nova escola, tens que ter hombros largos...»

-- «E bom pulso, Amarante, e bom pulso! que isto de implantar uma escola litteraria em Portugal, só vae a socco, sabes tu? e socco valente, para a direita e para a esquerda... Tens lido os nefelibatas?»

-- «Experimentei. Não consegui entendê-los.»

-- «Não digas isso duas vezes, Amarante! E' uma grave offensa que fazes a ti mesmo. Não nos entender é ser tolo! E tu não és tolo, Amarante, tu nunca foste tolo!»

-- «Não sei, não sei... Eu bem quiz, eu bem lhe fiz a diligencia, mas não me foi possivel, que queres tu? De resto, já um de vossês o disse: Para os raros, apenas...»

-- «Pois por isso mesmo. Quero que sejas um d'esses raros apenas... Tem paciencia. Já te não largo!»

Metteu-me o braço, arrastou-me.

E a estampa? A estampa não valia nada. Elle não a queria, nem de graça. E atirou a com desdem, mas desdem de quem não quer comprar.

Lembrei me então de que já o Chico era, em Coimbra, muito entendido em livros e gravuras antigas.

-- «E' verdade, tu ainda tens aquella mania de bibliofilo, que tinhas noutros tempos? de «Bibliofilo Braga», como te chamava o Fausto...»

-- «Ainda, ainda! E complicada agora de uma outra: a mania do bric-à-brac. Até faço negocio...»

-- «Pois tu tambem me sahiste ferro velho, ó Chico do Patrocinio?!»

-- «Que queres! E' preciso viver. E' preciso comer... Muito bife, muitos ovos! Custa tudo um dinheirão! E não era com dezoito mil e oitocentos, que recebo da Bibliotheca, que poderia aguentar-me... Faço então negocio... Ando sempre nisto. A pesquizar, a rebuscar, a farejar. E como tenho bom faro, descubro ás vezes coisas maravilhosas, antigas. E aqui para nós, que ninguem nos ouve, e porque tu sempre foste discreto como um tumulo -- quando as coisas que descubro não são maravilhosas, faço-as eu maravilhosas...»

Poeta e ferro velho, Chico do Patrocinio patenteou-se-me então como um producto estranho, mas perfeitamente authenticado, do seu meio e da sua epoca.

A' revolução que eu notava na topografia da cidade, no tipo das suas architecturas, na propria composição do seu ar atmosferico, correspondia, e coincidia nos simptomas, uma outra revolução dos costumes, da arte, da litteratura e da opinião.

Nos cruzamentos da raça, na transmissão da sifilis e da tuberculose, nas secretas precauções da lei de Malthus, nos abusos do prazer moderno, anniquilavam-se e extinguiam-se os ultimos representantes directos das nobres casas e das tradições fidalgas.

Na agitação dos mecanismos e das industrias, na ramificação frondosa do commercio, no estimulo das exposições internacionaes, nas explorações das minas e da Bolsa, enriqueciam-se e engrandeciam-se os burguezes.

Na corrente das idéas novas de socialismo, no desrespeito dos patrões, no incremento das cozinhas economicas, no exito das repetidas gréves, o operariado conquistava todos os privilegios e todos os direitos.

A febre do dinheiro, como uma febre epidemica, atacava indifferentemente todas as classes.

E fazia-se dinheiro de tudo.

O Estado vendia as colonias, os morgados vendiam as terras, as mulheres vendiam as joias.

Trabalhava-se o menos possivel, gosava-se o mais que se podia.

Floresciam então os bancos hipothecarios, os prégos e os agiotas. Quando já não havia que vender, recorria-se ao emprestimo; e o emprestimo era sempre feito com as maximas garantias sobre penhores valiosos.

Depois, não havendo já que empenhar, jogava-se. E entrava-se então no periodo aureo das operações da bolsa, da loteria, e da roleta.

Feliz com mulheres, infeliz ao jogo-- o português perdia ao jogo o pouco que lhe restava. Chegado a esse extremo, lançado nessa penuria, ficava-lhe o optar por uma d'estas duas coisas: ou pelo trabalho, ou pelo suicidio. E a percentagem dos suicidas, sobre aquelles que se decidiram pelo trabalho, foi uma coisa pavorosa, que vinha contada, todas as manhãs, nas folhas.

A meio d’este escalavro, emergindo d’estas ruinas, calcando este montão de destroços e cadaveres, appareciam então, numa aureola de jubilo, de bem-estar, de desafogo, radiantes e nédios, os intermediarios. E estes intermediarios eram: os ministros, que estipulavam e contractavam a transmissão do dominio português para a posse do Estrangeiro; os banqueiros, que promoviam na Bolsa a alta e a baixa dos nossos fundos publicos, á medida dos seus desejosos cambistas, que faziam andar a roda das loterias; os prestamistas, que dos juros onzeneiros constituiam novos capitães; os commissarios, que tratavam de despejar, por todo o preço, nos toneis de Bordeus as adegas nacionaes; finalmente, os ferro velhos, que dos solares d'onde se desalojavam os ultimos fidalgos, e dos mosteiros onde morriam as derradeiras freiras, tudo compravam, tudo levavam, tudo varriam -- mobiliários, tapeçarias, joias...

E como não ha miseria que não desande em fartura, a miseria de uns, neste caso, desandava em fartura -- para os outros.

-- «A occasião era esplendida!» dizia me o Patrocinio. Estava tudo a liquidar. Arranjei um socio, puz então um estabelecimento de primeira ordem no seu genero. Has-de lá ir, tem muito que vêr. E' na Avenida, a Grande Liquidadora. Seis salas enormes, e um pateo tambem enorme, que mandei cobrir de zinco e vidro, tudo atulhado de coisas antigas, preciosas... Vale a pena. Como a maior parte do velho mobiliario andava maltratado pelos netos e bisnetos dos primitivos donos, foi necessario montar uma officina só para restaurar todos esses moveis, e nella tenho restaurado tudo...»

-- «És ainda capaz de fazer a restauração de Portugal!»

-- «Olé! se sou... Havendo quem pague.»

Tinhamos sabido já do Campo de Santa Clara, para baixo. Aquillo estava visto. Era uma triste coisa, afinal, essa Feira da Ladra, um afflictivo espectaculo. Dir-se ia o montão de tarecos de uma familia desditosa de empregado publico, que não podera pagar a renda do ultimo semestre, e a quem o senhorio dera mandado de despejo, pozera no olho da rua.

-- «Conheces a historia do teu paiz, ó Chico?»

-- «Um poucochinho... pelos trastes!»

Apontei com a bengala para cima, onde se estendia a Feira, comparei não sem magua:

-- «Pois ali tens tu a melhor e a mais triste sinthese d'essa nossa historia: a familia do empregado publico é a nossa familia portuguêsa; o senhorio avaro é a Inglaterra; e o montão de tarecos o nosso pobre espolio. Espera outro ultimatum, que será o mandado de despejo, e verás como vamos todos para o olho da rua...»

Entretanto, e ainda para muitos, a vida ia rolando satisfatoriamente, como se o fosse sobre rodas de cautchu, nas mólas commodas e suaves dos laudaus modernos.

Toda essa gente, que ninguem sabia quem era, nem d'onde vinha, nem como enriquecera, e que era hoje a gente da alta finança, a gente do alto commercio, a gente da alta róda, e que era quem dava as cartas do bom gosto e do bom tom, imprimia á cidade e á vida de Lisboa um caracter novo, em tentativas e ensaios de cosmopolitismo galante, trazendo e implantando do Estrangeiro, no regresso das viajens (que a frequencia dos expressos e as regalias dos sleepings tornavam commodas e faceis) modas e generos de chiquismo, de mundanismo, de parisianismo.

Obtida uma fortuna, que apparecia consolidada de um dia para outro, sem que a ninguem importasse saber como aquillo fôra; arranjado um titulo de nobresa com a mesma facilidade que ha em adquirir um titulo da Divida Publica; construido á pressa um palacio com os materiaes ligeiros e a mão de obra rapida das empreitadas de fancaria; recheiada essa residencia de formosos moveis, tapetes acariciadores, bronzes de arte e porcelanas, marfins e barros esculptados, rendas e esmaltes; contractada uma mestra inglêsa para as creanças, e um cozinheiro francês para os folhados -- tinha-se grangeado uma prompta nomeada de elegancia e distincção, figurava se nas primeiras linhas do high-life dos jornaes, ganhava-se a votação dos plebiscitos mais exigentes em materia de refinadas elegancias, dispunha-se, como appetecia, da opinião...

Essa gente promovia todas as festas aristocraticas, cobria as assignaturas de São Carlos, dava batalhas de flores, andava em caçadas, organisava regatas, inaugurava o gosto das corridas de cavallos e reconstituia toiradas de fidalgos á antiga portuguêsa, fazendo ella os fidalgos.

Essa mesma gente estimulava, sob o patronato do seu dinheiro e da sua impostura, as exposições de arte, de pintura e de esculptura, encommendava os seus retratos aos pintores recem-chegados dos pensionatos de Paris, subscrevia a lista de fundadores da Real Associação dos Amadores de Musica, enchia os primeiros theatros nas noites de primeiras recitas.

E a cidade ostentava um ar de alta vida, encaixilhando de oiro o quadro d'essa geração espontanea, que conseguia dar a illusão de uma boa sociedade, rica e distincta desde o berço -- admittindo que ella houvesse tido um berço...

-- «Jantas hoje commigo!» intimou-me o Patrocinio, quando chegavamos ao Largo do Museu de Artilheria, onde deviamos esperar o americano. Mas tinha passado um naquelle mesmo instante, que ainda avistámos ao longe, e d'ahi até que tornasse a passar um outro, tinhamos que esperar.

-- «Não esperamos! disse eu. Vamos andando a pé. Até appetece, com este tempo.»

E fomos andando a pé. Andando, e conversando.

O Chico fôra sempre um grande cavaqueador. Em Coimbra, fizera elle os primeiros annos de Direito a conversar. Elle mesmo o dizia, á hora de entrar para as aulas: -- «Vamos então lá a essa conversa!»

Tinha graça, tinha pilhas de graça, e tinha mais que graça: tinha pilhéria. Dentro do seu pequenino cerebro redondo, que eu conhecera quasi rapado, á escovinha, as idéas, sempre sacudidas, faziam um barulho jovial, tlitante, de bolinhas de metal dentro de um guiso. Divertia-nos. Divertia os lentes.

Nas aulas, o seu sisterra era este: applicava-se com afinco ao estudo, emquanto não era chamado á primeira lição. E a sua primeira lição era sempre, invariavelmente, estupenda de sabedoria. Já então o lente não o perdia de vista, adivinhando um portento. D’ahi em deante, não lia mais uma pagina, não abria mais um compendio, desdenhava a sebenta. Podia depois ser chamado quantas vezes quizessem: estava sempre prompto -- para a conversa.

D' uma vez, num exame, não me lembra já de quê, teve o Chico o presentimento de que sahia reprovado. Um dos lentes trazia o então de ponta, por causa d’uma famosa satira que elle lhe dirigira e publicara na Cabra. Não lh'o perdoaria. E aquelle seria o momento da revindicta.

Chegou-se ao acto; chegou a vez ao lente de o interrogar. O lente era o Pedróza, muito versado e tido por auctoridade em questões de filologia, grande defensor da ortografia sónica, incapaz de perdoar ao proprio pae a impropria collocação de um acento tonico.

Todos lhe conheciam o fraco. E a proposito de já não sei quê tambem, logo que elle começou a interrogar o Chico, aconteceu falar-se da Oceania, que o Pedróza dizia -- «Oceânia.»

-- «Perdão, Oceania...» dissera seccamente o Chico do Patrocinio.

O Pedróza deu um salto na cathedra:

-- «Oceânia, se me dá licença!»

Sem pestanejar, o Chico repontou:

-- «Eu digo -- Oceania... Vossa Excellencia dirá como entender.»

-- «Mas porque diz o senhor Oceania, e não quer dizer Oceânia, que é como deve dizer-se?»

-- «Porque Oceania me sôa muito melhor ao ouvido...»

O Chico considerou, de soslaio, a areia que corria na ampulheta. E ainda disse:

-- «Vossa Excellencia terá então a bondade de esclarecer-me no meu erro. Eu só desejo acertar... Mas será necessario que Vossa Excellencia me convença de que sou eu que realmente estou em erro...»

E não disse mais nada. Nem foi preciso mais nada. O Pedróza esticou os punhos, atirou os braços pela meza fóra, caiu a fundo na questão do acento.

Oceânia, e não Oceania! O facto de muita gente dizer Oceania, não era razão bastante para que não se devesse dizer Oceânia... E ahi vae elle, o Pedróza, por essa etimologia fóra, como um cavallo que torrou o freio nos dentes, largou a toda a brida! Esqueceu o exame, esqueceu a areia que corria na ampulheta, esquecera a satira do Patrocinio na Cabra...

Quando, passada a hora, o Pedróza serenou, se recostou, deu outro puxão aos punhos e disse, soberanamente concludente: -- «Ergo... Oceânia e nunca Oceania!» -- já o Patrocinio adquirira a certeza de que ficava approvado.

O Presidente tocara no braço ao Pedroza. E só então o Pedróza cahíra em si. Mas tinha pas-sado a hora. Fôra comido. Ainda teve um repelão. E a satira? Já não era tempo. Deixa-lo! Não se perdera tudo. Oceânia, e não Oceania. Ficara o acento no seu devido logar.

-- «Estou satisfeito!» disse.

Não estava. Isso sim! Mas era como se estivesse. E quando todos, rindo á socapa d'aquella deliciosa mistificação do Patrocinio, imaginavam que não lhe restava outra coisa a fazer senão levantar-se, cumprimentar o jury, e passar ao terceiro anno de Direito, ainda se ouviu elle dizer para o Pedróza, dobrando-se todo para a frente, estendendo os braços e espalmando as mãos para trás, numa profunda contumelia:

-- «Tambem eu estou satisfeito!»

Andando e conversando, tinhamos chegado ao Terreiro do Paço. Cortámos pela Arcada, passámos á porta do Ministerio da Justiça, entrámos na Rua do Oiro.

Eram quasi cinco horas.

Junto do marco postal que estava á esquina da Rua dos Capellistas, o Chico detivera-se e detivera-me um instante, tirara o largo chapéo de feltro, de copa alta e fendida ao meio, mettera os dedos recurvos pela grenha negra e lustrosa, que lhe cobria o pescoço, o collarinho e as orelhas, tornara a pôr o chapéo de melhor geito, um pouco ao lado, mais fendido ao meio. Ainda olhou as botas, que queriam ser engraxadas. Mas não fazia ao caso. Ora, ninguem lhe olhava para os pés. Aquella cabelleira offuscava o resto.

-- «Que tal?»

-- «A' devida altura! approvei eu. E acrescentei: -- Pareces um tenor!»

Metteu-me o braço, entrámos na Rua do Oiro, como num paiz conquistado.

Dir-se-ia o céo mais azul e o proprio ar mais tépido. Andava na rua um formigueiro de gente bem posta, arrastando os pés no asfalto dos passeios, entrando e sahindo das lojas, parando instantes no exame das vitrines, formando, aqui e ali, pequenos grupos, sacudindo apertos de mão, trocando beijos e risadas, falando alto, sublinhando frases, remoinhando bengalas, atormentando cabos de sombrinhas, riscando fosforos, acendendo charutos. Fru-frus de ricas saias, perfumes de boa marca, maciesas de veludos, caricias de pelles de bicho, revoluteios de plumas, rangidos de botinas, coruscações de joias, tudo se misturava e se fundia num zumbido e numa cocega que nos percorria os sentidos, a breve trecho excitados pelo cubiçar e pelo roçar das mulheres em grande numero, umas bonitas, outras feias, umas formosas, outras horrendas, e todas ellas corrompidas na provocação do outro sexo, na scintilla histerica dos olhos, na sasonada intumescencia dos seios, no dolente saracoteio dos quadrís, na fragilidade, quasi quebradiça, da cinta, na minuscula esquisitice do pé, na astucia destra dos gestos e das attitudes...

-- «Céo azul, riso amarello! Aqui tens tu -- dizia-me o Chico -- o lemma de uma nacionalidade como a nossa, que não póde ter no grande concerto europeu mais que uma parte muito ligeira, e que tem de resignar-se á condição secundaria que lhe cabe, contentando se com pouco em tudo, desde as chamadas despezas de representação, até ás mais infimas e vagas despezas geraes, que no diario d'esta sociedade anonima, onde a gente se aborrece, representam as pequenas verbas de bom humor com que cada um de nós concorre para o custeio, pouco espiritual, da vida de Lisboa!»

Eu, porém, observava:

-- «Mas toda esta gente, todos estes janotas, todas estas mulheres, têm o ar feliz de quem gosa a vida o mais que póde, e parece poderem gosa-la exuberantemente...»

-- «E' o clima, Amarante! E' este riquissimo clima!»

Muito empoleirado na sua propria pessoa, dando-se uma grande linha de superioridade em que quasi se podia acreditar, envolto na nuvem de fumo do seu charuto, como convinha e competia a um deus, attrahindo olhares e provocando sorrisos, Chico do Patrocinio transfigurara-se, de repente, aos meus olhos, sem que eu soubesse como, levando o pelo meu braço. O ferro-velho dava logar ao chefe da escola nefelibata. E eu levava agora, pelo meu braço, o poeta da moda. E senti-me lisongeado. Eu mesmo senti que partilhava da sua notoriedade e do seu triumfo.

A' porta das livrarias, muitos rapazes, tambem de guedelha comprida, de capinhas curtas ou de sobrecasacas enormes, de grande roda, com espantosas flôres ao peito, uns de luneta, outros de monoculo, cumprimentavam o Chico com reverencia.

Outros, do sport, esguíos, de calça muito justa, entalados em collarinhos altos, reluzentes como vidros, luvas amarellas, acenavam-lhe de longe, com a mão alta, familiares.

Algumas mulheres correspondiam com affecto, entreabindo os labios, mostrando os dentes, aos rasgados cumprimentos com que o Chico se dignava obsequia-las.

E, de mais em mais animado, sem despegar da conversa, que apenas entrecortava de breves cortezias e risonhos gestos para a direita e para a esquerda... -- «Como estás tu... Adeus, ó Fialho... Minha senhora... Creado de Vossa Excellencia...» -- o Chico proseguia na mesma ordem de considerações.

Ainda os mais pessimistas eram obrigados a reconhecer que em muitos dias de agosto não se nos mostrava o céo tão azul como o tínhamos visto nesses ultimos dias de março, restos d'um inverno em que -- segundo o discurso da Corôa, do qual não seria licito duvidar -- nem sequer tinham esfriado as nossas relações diplomaticas com as nações onde o thermometro baixara vinte e cinco graus abaixo de zero. Só aquelles que, porventura, soffressem de daltonismo, poderiam querer convencer-nos de que á vista dos seus olhos apparecia arroxeado e sombrio o céo, anilino e limpido, que a nossa vista alcançava, de norte a sul, e de leste a oeste.

Esse chamado «horisonte tenebroso» da publica administração, não era mais que um tropo. A muito conhecida «atmosfera carregada» da nossa eterna questão colonial, não era senão um effeito de theatro applicado, já com pouco exito, á rhetorica parlamentar, velho panno de fundo esmaecido.

-- «E todavia, vês tu, sob este céo azul que felizmente nos cobre, e no desfructe amavel das instituições que felizmente nos regem, nem o animo nos chega para grandes enthusiasmos, nem a alegria nos dá para grandes explosões... Assim como a temperatura do clima nos não deixa experimentar a sensação dos mais intensos frios, assim a dosagem do humor nos não permitte a bemaventurança das fortes hilariedades. A todos os respeitos, vogamos em aguas mornas -- quer a metafora alluda á nau do Estado, quer se refira ao batel da nossa fantasia!»

Toda a vida portuguêsa estava sendo bem uma parodia, de que só a muito custo se salvavam poucos factos e poucas individualidades. Na politica e na sciencia, nas artes e nas lettras, na moda e no dandismo, a parodia florescia, como a laranjeira ao sol. Regulamentos e leis, theorias e problemas, seitas e escolas, estilos e gravatas, tudo isso assimilava, imitava, adaptava ao meio, macaqueava, emfim, quanto de fóra nos vinha na corrente impetuosa das opiniões, nos artigos das revistas, nos jornaes de figurinos, nos mostruarios dos caixeiros viajantes. Cada qual se julgava no direito de trazer para a rua um paradoxo de Max Nordau com o mesmo enbonpoint com que poderia envergar uma sobrecasaca do alfaiate Amieiro. Trazia-se á flôr dos labios um dito de fim do Figaro como quem pozesse na lapela uma camelia dobrada…

-- «Uns bonifrates, Amarante! Uns bonifrates que vivem, comem, bebem, vestem e passeiam por Lisboa, pela simples razão, para cada um d'elles, de ver fazer o mesmo aos mais. São bonecos de engonços, são fantoches, são saguins de realejo -- tudo quanto procura imitar alma christã pondo as mãos no ar!»

Adaptava-se o bonifrate aos mais diversos meios; accommodava-se o bonifrate a toda a ordem de principios; invadia o bonifrate as mais variadas profissões; fingia assimilar o bonifrate as idéas mais complexas.

Na politica, o bonifrate seria tudo quanto dentro d'esse ramo de actividade humana fosse possivel ser-se: galopim, presidente de assembléa eleitoral, representante em Côrtes, relator de pareceres, leader da maioria, ministro, presidente de Conselho! Na sciencia, seria o medico, seria o mathematico, seria o botanico, seria o fisico, seria o zoologo. Nas artes, seria o que pinta, o que esculpe, o que entalha, o que musíca. Nas lettras, seria o poeta, o dramaturgo, o romancista, o polemista, o articulista...

-- «Em Lisboa, o bonifrate nasce, vegeta, exhibe-se e triumfa, sem mais funcções nem mais esforço que o cogumelo, desde que irrompe do solo até que é mettido em latas, de conserva. E’ de geração espontanea, e não tem vontade propria. Dentro do seu cerebro só existe uma faculdade: a velhacaria. E essa é a mola real, a potencia motora de todo o seu modo de ser... Ninguem, como elle, para fazer passar por sua a idéa que outro teve, nem para vestir pelo figurino por que outro veste.»

Eu tentava respirar. Mas não me era possivel. O Chico acolchetava-se mais ao meu braço, redobrava de loquacidade:

-- «E' isto, Amarante, é isto! Nem ha que sahir d'aqui... Nem tu vês por ahi outra coisa. Os antepassados uns espantalhos, os descendentes uma sucia!»

-- «E os nefelibatas?»

-- «Os nefelibatas não contam. Sômos creaturas á parte. Sômos os poetas, fugidos da choldra d'esta prosa para o refugio do nosso sonho. Achámos a dôr voluptuosa, e deitámo-nos nos seus braços... Os poetas foram sempre de todos os tempos. Somos de todos os tempos. Lamartine ou Mallarmé, Soares de Passos -- ou eu... tanto monta, tanto faz! A alma de um poeta só transmigra para outro poeta. Em nós, apenas o involucro, o vil involucro, muda. Apenas mudam as fórmas. Ainda ha pouco, na Feira da Ladra, me dizias tu que não eras capaz de perceber os nefelibatas... E não és só tu, é toda a gente. Que admiração! Pois se até nós nos não percebemos uns aos outros... Ora nisto é que está toda a nossa força, nisto consiste o nosso disfarce. Simples questão de fórmas. Simples questão de metros e de rimas. Que importa que Delfina se chame agora Briolanja? Nada. Não importa nada! Não quer dizer nada! Mas imagina tu que eu apparecia agora em Lisboa de calça côr de flôr de alecrim e de bigode e pera, a fazer poesias pela medida e na toada das Flôres d'Alma, quando já ninguem sequer se lembra do Dom Jayme, que ha tanto tempo passou de moda! Corriam-me. Positivamente, corriam-me! E o que fiz eu então? Rapei a barba, puz este chapeu, e implantei a nova escola... Agora, e depois d'esta elucidação amiga, para os raros apenas, folheia os nefelibatas, e verás... Lá tens as mesmas flôres d'alma, que se alteiam bellas, puras, singelas, orvalhadas, vivas! As mesmas, as mesmas. Simplesmente, em vez de se chamarem Flôres d' Alma, chamamos-lhes -- Silva isóterica...»

Não havia remedio senão dar-lhe razão. Assim era. O Chico punha as coisas em pés de verdade, era bem assim, como elle dizia. E todavia, no meio d'aquella embrulhada comedia da vida de Lisboa, em que mesmo nós, e naquelle mesmo instante, andavamos contra-scenando, de braço dado, em plena Rua do Oiro, Patrocinio achava-se claramente á vontade dentro do seu papel, e papel que, dada a alta preponderancia do seu metro e da sua guedelha no nosso meio litterario, não era nenhuma rábula, antes me parecia, e era, um dos melhores papeis.

Frisei o contraste, mostrei-lhe a flagrancia da contradição que havia entre as suas palavras e o seu modo de proceder:

-- «Mas porque é que tu, ó Chico, que falas como um revoltado, transiges como um servo? Porque não protestas alto com palavras e com obras?»

-- «Porque nem me ouviam as palavras, nem me compravam as obras... Tu não sabes o que são, nem o que pensam, nem como se manifestam as multidões! Nas multidões, quer activas, quer espectantes, ha muita heterogeneidade, Amarante. Tenho, a este respeito, uma infinidade de observações curiosas, de muito interesse. Quando publiquei o meu livro, os Oasis, que foi o grito de alarme que acordou e poz de pé, no seu devido pé, a nova escóla, estabeleceu-se logo, em volta da minha pessoa, uma multidão espectante, perfeitamente caracterisada, como essas multidões que se aglomeram nas ruas para vêr passar uma procissão ou um homem celebre. Que dóse enorme de paciencia, dirás tu, a d'essa gente que fica a pé firme quatro, cinco, seis horas, para vêr passar uma procissão ou um homem! E todavia, nenhum d'elles teria sósinho a mesma pachorra... Reunidos, estão sempre promptos para tudo. E o que acontece então? o que acontece sempre? E' que de toda essa multidão, apenas os que estavam á frente, nas primeiras filas, poderam vêr o homem celebre ou a procissão -- o que não impede que todos os outros se dispersem satisfeitos, e persuadidos de que viram tudo. E' uma verdadeira sugestão alucinatoria, por contagio... Publiquei os Oasis, fiz barulho, os rapazes amigos dos jornaes fizeram tambem muito barulho, e juntou-se gente, formou-se a multidão que me quiz vêr passar, homem celebre, seguido do meu cortejo de proselitos -- eu com esta enorme cabelleira, elles com as suas capinhas curtas e os seus girasóes nas mãos... Exgotou-se logo a primeira edição, num abrir e fechar d'olhos, fez-se segunda, já vendida, e vae entrar no prélo a terceira...»

E ahi estava formada, e desviada para o seu lado, a corrente da Opinião.

Imaginasse eu, agora, que elle, Chico do Patrocinio, duas vezes reprovado no quarto anno de Direito, e expulso da Universidade por ter esmurrado convenientemente o Pimentel Gouveia, sem a carta de bacharel, sem bens de fortuna, e sem amigos na Politica, chegava a Lisboa com as mãos nas orelhas (como de facto chegara), e em vez de farejar um meio de vida, como fizera, vinha para a praça publica protestar contra o estado de coisas do seu paiz, tratando de ladrões todos os ministros, considerando imbecis todos os contribuintes, declarando adulteras todas as mulheres! Elle bem sabia que ainda era possivel salvar d'aquella baralha algumas honrosas excepções, pois ainda havia ministros que não roubavam o Thesouro, contribuintes que não pagavam as decimas, e mulheres casadas que não ludibriavam os maridos. Mas suppozessemos que elle não admittia excepções, e na sua furia de haver perdido o curso, e naquelle desespero de se achar sem um vintem, media tudo pela mesma bitóla e ajustava todos pela mesma craveira, barafustando, invectivando, disparatando...

-- «Estava prompto... -- explicava elle. -- Era um homem ao mar... Era um homem perdido!»

Todos nós gostavamos e nos regalavamos de dizer mal dos outros, mas nenhum gostava nem se regalava de ouvir dizer mal de si. O nosso grande periodo pamphletario passara e apagara-se nas cinzas do esquecimento, como passara e se apagara o periodo aureo das descobertas e conquistas. As Farpas tinham tido a sua época, que correspondera ao inicio do escalavro nacional, mas a sua epoca extinguira-se, passara e apagara-se tambem. As Farpas eram d'um tempo em que ainda se vivia no pleno e amplo regimen de liberdades que o Senhor Dom Pedro IV nos outorgara. Até ahi tinha-se gosado de todas essas liberdades com conta, peso e medida, mas entrara-se, e de cabeça, no abuso d'ellas. Verdade, verdade, uma d'aquellas de que mais se abusara fôra a liberdade de imprensa. O commentario do abuso chegara a ser mais abusivo, por vezes, que o proprio abuso.

O pamphleto, que rompera de um nobre sentimento de protesto ou de uma viva comichão de troça, tornara se meio violento de violentos fins, e fôra instrumento perigoso de diffamação e de chantage.

O espirito de imitação, muito nacional, muito nosso, lançara logo á publicidade, atrás das Farpas, uma chusma de pequenos folhetos de mordacidade e de audacia, que atulharam o mercado. Eram as Garrochas, eram as Bandarilhas, eram os Ferros curtos, eram os Aguilhões, tudo quanto do vocabulario tauromachico podesse dar uma idéa sinonimica de ferroada no magro cachaço da sociedade portuguêsa, que se deixava correr e espicaçar bonacheironamente, como um triste e derrancado boi de curiosos.

As Farpas, entretanto, tinham cumprido o seu programma de demolição e de reforma.

Fôra arrasado o Passeio Publico, considerado fóco grandemente nocivo de todos os miasmas e de todos os males romanticos. Rolara no pó, como um colosso apeado e conspurcado, o terrivel General Macedinho, que fôra o principal manutendor da desordem publica. O Bazorra conseguira empregar o ultimo afilhado, e dispozera-se, contente, a entregar a alma ao Creador. Tinham sido retirados de scena os Lazaristas, e emendada a traducção de Shakespeare, do fallecido Rei Dom Luiz. Montara-se em Lisboa um estabelecimento de banhos e duches, de limpeza e de therapeutica. Todas as familias abastadas tinham adquirido uma banheira, e as de mais modestas posses um bidé, pelo m.enos. Estabelecera-se uma fabrica de sabão em Alcantara, e uma fabrica de escovas em Xabregas. Na educação nacional introduzira-se a gimnastica, a contabilidade, o pas-de-quatre e o allemão. Os rapazes andavam já de calção até á idade em que todos elles emagrecem e se escanzelam; e as meninas de saia curta até á idade em que todas ellas engordam e arredondam.

Pouco a pouco, porém, quasi sem que se desse por tal, as liberdades iam sendo coarctadas. Os pamphletarios, que d' antes investiam como féras, iam sendo domesticados. Uns entravam para os conselhos da Corôa; outros entravam para a Academia; e assim foram entrando, todos elles, na ordem -- uns na Ordem de Christo, outros na Ordem de São Thiago...

No dia em que só restava de fóra um unico pamphletario, que teimava em não querer ser ministro, nem membro da Academia, nem commendador, não havendo outro meio de o fazer calar, metteram-no no Limoeiro -- para socego e para exemplo. E foi assim que o pamphleto passou de moda.

-- «Hoje o que vês tu, Amaral? Vês um ministro subir ao poder com os rompantes do Oliveira Martins, que pôz tudo em pratos limpos, declarando que não encontrara um ceitil no fundo dos cofres publicos, que todos os seus predecessores tinham feito do governo um nefando ludibrio da Nação e dos crédores externos, e que para se entrar num periodo de renas-cimento e reacquisição de credito seria preciso metter tudo no são -- governos e governados. O relatorio de fazenda do Oliveira Martins foi o primeiro, e até hoje o unico que patenteou a inteira verdade aos olhos do Parlamento estarrecido. E o que aconteceu ao Oliveira Martins? Correram com elle... Chasquearam-no... Vês um jornalista, como o Ennes, fundar o seu jornal e iniciar uma campanha tremebunda contra a dictadura de um governo desvairado de nevropatas e de saltimbancos, que fazem uma reforma de lei eleitoral de cada vez que querem um bill de indemnidade para se pôr a salvo da responsabilidade de quantas tratantadas empreenderam e realisaram... E o que aconteceu ao Ennes? Embucharam-no com doze contos de réis por anno, que é uma bucha com que toda a gente embucha, e assim se viram livres d'elle... Critica? Boa critica? Critica de costumes? Isso é cada um em sua casa, com a sua mulher e os seus filhos!»

Eu podia perguntar-lhe, e perguntava muito bem:

-- tMas porque transiges tu, ó Chico do Patrocinio, tu que não queres ser ministro, nem membro da Academia, nem commendador?»

-- «Porque não tenho nada de melhor a fazer! -- respondia elle. -- Eu ponho sempre o meu interesse acima de todos os interesses; mas depois de servir o meu interesse, sendo-me possivel servir os interesses da minha patria, dos meus concidadãos e até dos meus amigos, teria nisso muito gosto e de bom grado o faria... Ora eu não posso, infelizmente, senão servir o meu interesse. E o meu interesse é este: vender os meus versos, e, por via do réclame dos meus versos, encontrar compradores para os meus moveis antigos... Aqui tens tu. Outros que barafustem e préguem nos desertos. Eu, e os da minha caravana, descobrimos os Oasis, e refugiámo-nos nelles...»

Quando chegámos ao fim da rua, que haviamos subido pelo passeio da esquerda, e elle propôz que cortassemos para o lado de lá, por onde andavam «outras caras», já eu começava a pensar e a dizer com os meus botões, que aquelle maroto do Chico talvez tivesse razão.

-- «E tu, Amarante, que programma trazes? a que partido pertences?»

Eu nem trazia programma, nem pertencia a nenhum partido. Tinha vindo para a politica um pouco ao acaso, estava vendo em que paravam as modas.

-- «Homem! fórma tu um partido...»

Organisar um partido politico parecia uma coisa difficil, e afinal era uma coisa facil. O que era difficil era achar para isso a opportunidade. Essa opportunidade dava-se agora, precisamente agora, em Portugal.

Acabara-se o dinheiro.

Acabara-se a liberdade.

Acabara-se a esperança.

Experimentados um a um, os homens de governo tinham dado o que podiam dar, dentro dos chamados partidos militantes. Um a um, todos elles haviam perdido a confiança que num dado momento houvera nos seus meritos, no seu pulso, na sua dignidade. Os que não transigiam com a força das circumstancias, mettiam-se em casa, liquidados. Os que transigiam com ellas, eram victimas da propria transigencia, e liquidavam, egualmente. O que sobejava dos velhos partidos constitucionaes, das suas tradições, dos seus crédos, das suas energias, pertencia ao inventario dos museus e dos archivos. Eram velhas coisas arrumadas em prateleiras, dispostas em panoplias, mettidas em armarios, enfiadas em manequins, com numeros de catalogo, e rotulos summarios da sua historia, pregados com alfinetes. O que havia a fazer era simplesmente entrega-las aos cuidados d'um conservador que as tivesse sempre em ordem, mandasse limpá-las da poeira de vez em quando e tratasse bem de preservá-las da traça. O José Luciano e o Antonio de Serpa, por exemplo, precisavam bolas de naphtalina nas algibeiras da sobrecasaca, e um pouco de espanejador nas idéas.

Quem viria agora?

Esta pergunta, que andava na bocca de todos, determinava a boa opportunidade para a organisação d'um partido.

Bastava que uma só voz se ouvisse, respondendo:

-- «Eu!»

Fosse de quem fosse, essa voz seria immediatamente a voz de um chefe.

Todos se voltariam para o lado d'onde a voz partisse. Quem é? Quem não é? Levante o braço quem foi! E então, um homem que ninguem conhecia, erguia e agitava no ar o braço ousado.

-- «Ao estrado!» -- bradava a multidão.

-- «Que fale!» -- gritava a populaça.

E o homem trepava, atabalhoadamente, ao estrado, batia com a mão espalmada sobre o peito, revolvia a gaforina, procurava meia duzia de frases sonoras, recorria á memoria de quantos velhos programmas de partido lhe tivessem passado pelos olhos, dando tudo isso como novo e como seu, encolerisava-se contra todos os abusos do poder, invectivava todos os despotismos, flagellava todas as fraudes, enumerava todos os esbanjamentos, invocava todas as grandes idéas, adoptava todos os novos principios, offerecia o peito á defeza de todas as santas causas...

Já a multidão, facilmente sugestionada, e como que toda ella percorrida pelo mesmo desconhecido fluido de enthusiasmo, não ouvia bem o que elle dizia, nem já percebia a relacionação d'aquillo que elle dizia com os desconcertados gestos que disparava; e só era possivel apreender, por fim, claramente escapas á confusão dos sons roucos em que elle embrulhava e expellia os restos do discurso, uma ou outra palavra, uma ou outra promessa...

... Regeneração!

Patria!

Questão financeira!

Isenção de caracter...

Forças vivas da nação!

A situação angustiosa do momento... a Agricultura... a Humanidade... o Codigo administrativo... o dia de ámanhã!

Tudo aquillo andava, como se costuma dizer, no espirito de todos. Faltava quem o dissesse, faltava quem o bradasse, faltava, sobretudo, quem promettesse remediá-lo. Toda a gente tinha medo da Policia, e calava-se. Tinha-se medo da Municipal, e mettia-se a gente em casa. Apparecia, porém, um homem que declarava não ter medo nem da Policia, nem da Municipal, e que promettia todos os desafogos, todas as garantias, todas as liberdades, desde que lhe passassem o poder para as mãos.

Mas quem era esse homem?

Mas o que era o poder?

O homem, ninguem sabia quem era. O poder era uma coisa que não era de ninguem, mas de que toda a gente podia dispor. E toda a gente, nesse momento, dispunha do poder a favor d'esse homem que lh'o pedia. Em Portugal, quem dizia poder dizia Policia e dizia Municipal. Ter uma de prevenção e contar com a outra, era quanto bastava para administrar um estado, onde as coisas se passassem como se passavam aqui.

-- «Bem! -- dizia- se então a esse homem. -- Ahi tem você o poder. Agora governe!»

Tinha-se acabado a esperança. Mas eis que a esperança renascia. Tinha-se acabado a liberdade. Mas tornava a haver liberdade. Tinha-se acabado o dinheiro... Era todavia forçoso arranjar mais dinheiro.

Evidentemente. Mas como?

Augmentando os impostos...

Não podia ser. O que era preciso era reduzi-los.

Reduzindo os juros da Divida...

Peor ainda. O que convinha era que se voltasse a pagá-los integralmente, como d'antes.

Cortar pelos ordenados ao funccionalismo, acabar com os empregos onde não houvesse que fazer...

O quê?! O quê?!

Só assim, meus amigos, só assim! E' ter paciencia. E' soffrer. E' aguentar...

Nunca! Tudo, menos isso. Olhem que tal nos sahiu o sujeito, ein? Então, não querem lá vêr? Não está máu Messias este, não... Comicios! Toca a fazer comicios. Nada de graças. E' necessario protestar, é indispensavel protestar. Então, não querem lá vêr?!

No domingo seguinte, a mesma multidão que déra o poder a esse homem, pretendia reunir-se num comicio em que se tratasse de obstar a que que viesse sobrecarregar com mais impostos, ou agravar com mais reduções, a vida nacional. Mas quando toda a gente chegava ao ponto onde combinara reunir-se, já encontrava lá uma força de policia, que a punha em debandada.

Ella queria resistir. A policia prendia-a. Ella recalcitrava. A policia espancava-a. Ella engalfinhava-se na policia. E o homem de governo, pelo telefone, mandava sahir a Municipal, que a desancava.

-- «Evidentemente -- concluia o Chico -- não são estes os homens de governo que o paiz precisa. Mas são estes, incontestavelmente, os homens que a multidão merece.»

Defronte da loja de modas do Lopes de Sequeira estava parada uma carruagem. O Patrocinio chamou-me a attenção, puxou-me pelo braço:

-- «A D. Claudia e a filha...»

Alvorocei-me. Onde as vira elle? Mas onde? E descrevi um semi-circulo de relance, sobre o calcanhar, numa viva pressa, olhando para todos os lados. Do fundo do coupé, forrado de claro, destacavam-se então, voltados para o nosso lado, os dois vultos conhecidos de Clarinha e da mãe, quando os meus olhos se encontraram com os olhos d'ellas.

Corri á portinhola:

-- «Oh, minhas senhoras...»

E fôra aquillo uma festa para mim e para ellas, como se nos não avistassemos ha muito tempo. Pois ainda na vespera eu lá tinha estado em casa!

-- «Anda gosando o seu feriado?» disse-me D. Claudia.

-- «Ando entretendo o meu feriado... Está um dia lindo!»

Mas Clarinha quiz logo cortar o fio de banalidade cerimoniosa que já ia tecendo esse passageiro dialogo, para lhe imprimir o seu sainete risonho de despretenciosa familiaridade:

-- «E andava tão entretido, que foi preciso que o seu companheiro lhe fizesse signal para dar por nós...»

-- «E' verdade. Eu não tinha conhecido a carruagem.»

D. Claudia engatilhara o lorgnon sobre o Chico do Patrocinio, media-o da cabeça aos pés, prescrutadora. Demonio! pensei eu. Lá está ella a reparar-lhe nas botas, que tanto precisavam ser engraxadas.

-- «Quem é aquelle rapaz?» perguntou ella depois de demorado exame.

Inclinei-me mais na portinhola, informei com certo gosto:

-- «E' o Francisco do Patrocinio... o poeta... o nefelibata!»

-- «Ah!... fizeram as duas, mãe e filha, a um mesmo tempo. -- Este é que é o Francisco do Patrocinio?!»

E Clarinha não poude ser senhora de si, occultou-se precipitadamente para trás, no fundo do coupé, e riu, a bom rir, do Chico, da sua figura, da sua cabelleira, de toda aquella aureola de reluzente disparate.

-- « Que ratão! Mas que grande ratão!»

D. Claudia, muito inquieta, dizia entre dentes, reprehensiva:

-- «Oh, Clarinha, por amor de Deus! olha que elle está a olhar para cá... Olha que elle já está desconfiado...»

Eu serenei-a, tomei a responsabilidade, achei muita graça, e ri tambem, dissimulando, como se rissemos de coisa muito diversa. Nem elle prestava attenção. E que prestasse! Estava habituado. Elle mesmo o dizia: que até gostava de que o troçassem. Era metade do seu exito.

D. Claudia, já interessada por estas singularidades do meu amigo poeta, de quem fizera uma idéa muito diversa «pelas poesias», mostrou desejo de o conhecer, de lhe falar.

-- «Vossa Excellencia dá licença que o apresente?...»

Mas ella receiou que Clarinha não podesse ter mão em si, se não contivesse... Sabia como ella era, e se a tomasse naquelle momento alguma das estridentes convulsões de riso que costumavam dar-lhe, era uma semsaboria, era uma inconveniencia.

Clarinha protestou. Não, lá isso não. Tambem não era tanto assim. Ora! não era nenhuma creança... E pôz-se muito séria, prometteu não nos comprometter. E ella mesmo pediu:

-- «Chame-o, chame-o!»

Já o Chico percebera, muito fino, fino como um coral, que se falava d'elle, da sua pessoa, talvez dos seus versos, com certeza da sua guedelha. A um leve aceno meu, endireitou-se mais, arqueou alto o braço, levou a mão ao chapeu, adeantou um passo para a carruagem, descrevendo uma profunda reverencia antiga, restaurada...

-- «O meu amigo Francisco do Patrocinio...»

D. Claudia tinha um grande prazer em o conhecer pessoalmente. Pelos seus versos, pelos seus lindos versos, ha muito tempo que o conhecia, que o admirava. E elle! Oh, elle, que subida honra, senhora D. Claudia, que bem-aventurança! Ha quanto tempo alimentava elle esse desejo, que agora estava sendo satisfeito, de ouvir o divino verbo da grande propugnadora dos direitos da Mulher em Portugal! Tanto empenho tivera, tanta diligencia empregara para assistir a alguma reunião da Liga Feminista em que a senhora D. Claudia fizesse uso da palavra, e não o conseguira, uma vez porque fôra forçado a ausentar-se de Lisboa, outra vez porque cahira doente, ora por isto, ora por aquillo, mas sempre por alguma razão ponderosa, por alguma causa inevitavel ou inadiavel...

Estavam preciosos, ella e elle, realisando essa generosa transacção de elogio mutuo. Mas já Clarinha, dotada de uma precoce percepção de todos os ridiculos, intervinha para reduzir aos meus olhos a má impressão de alta cabotinagem que resaltava da conversa, toda artificial e presumida, em que a mãe e o meu poeta se intrujavam e delambiam, como um peralta e uma sécia na modelação de um madrigal. E dirigindo-se ao Chico:

-- «Quando publica outro livro de versos, senhor Patrocinio?»

-- «Ainda não sei, minha senhora... Tenho agora em preparação um pequenino poema...»

-- «E’ que eu já sei de cór quasi todos os versos dos Oasis... E quero mais!...»

O Chico não cabia em si de contente. Nem atinava com o que dizer. Teve até o ar mal geitoso de quem suppunha que aquillo fosse troça. Mas theatral, reentrando, apressado, no papel a sério, tomou a deixa:

-- «Vossa Excellencia deve ter uma excellente memoria!»

-- «Pois olhe que é verdade! confirmou D. Claudia. -- Eu ás vezes nem sei como ella póde metter tanta coisa na cabeça, sem as baralhar umas com as outras... Sabe de cór paginas e paginas inteiras de coisas que tem lido...»

Eu abundei na asserção, permitti-me um gracejo:

-- «Não se faz idéa! Chega a ser inacreditavel... Imagina tu que foi pela senhora D. Clara que eu tive conhecimento do ultimo Discurso da Corôa! Disse-m'o todo, sem lhe faltar uma palavra, como um fonografo...»

Clarinha achou immensa graça. Riu muito.

-- «Não! Lá isso não... Tudo quanto quizerem... menos o Discurso da Corôa!»

Mas da loja de modas sahiu, a este tempo, e veiu a meio do passeio trazendo um grande embrulho., um caixeiro do Sequeira. Clarinha pediu-nos licença para receber o embrulho das mãos do caixeiro, que lh'o passava pela portinhola. D. Claudia ainda fez qualquer recommendação a respeito de uns alamares. E logo que o senhor Sequeira chegasse de Paris com as sedas, que lh'o mandassem dizer, para ella vir escolher alguma coisa bonita. Depois pediu-me:

-- «Olhe, ó senhorr Amaral, faz favor de dizer ao cocheiro que ainda vamos pelo Ferrari...»

Eu transmitti, léstamente. Chico descobriu-se outra vez á antiga, esperou que D. Claudia accommodasse o embrulho com outros que já trazia no coupé, e lhe estendesse a mão.

-- «Dê-nos o gosto de vir a nossa casa, senhor Patrocinio... quando queira.»

Clarinha ainda insistiu por mais versos. Chico agradeceu, confundido, extremamente penhorado, o offerecimento de uma e a insistencia da outra.

-- «Muito obrigado a Vossa Excellencia, minha senhora... Vou apressar o poema, minha senhora...»

D. Claudia ainda me disse:

-- «Não apparece esta noite por lá?»

Sem olhar Clarinha, eu percebia que ella me fazia, com os seus lindos olhos, aquella mesma pergunta. As suas mãosinhas inquietas procuravam disfarçar a sua pequenina anciedade, repuxando e ajustando-lhe ao pescoço a pelle de bicho. Estava bem galante, a Clarinha, nessa tarde, com aquelle vestido côr de coelho bravo, enfeitado d'uma formosa guipure Colbert, e o seu chapéo de plumas escarlates. Bem galante! Tive quasi vontade de lh'o dizer.

Talvez. Talvez me fosse possivel. E se me fosse possivel, iria. Mas não queria dar a certeza.

-- «Veja então se póde...» disse ainda D. Claudia.

E quando me arredei da portinhola, e a parelha do carro levantou as patas a compasso para despegar, outra vez os meus olhos se embeberam nos olhos de Clarinha, que me diziam tambem, e com mais vehemencia:

-- «Veja então se póde!»

-- «Muito interessante esta D. Claudia!» -- dizia o Chico.

-- «E a filha?»

-- «Tambem muito interessante, muito graciosa...»

Eu ia cahindo, por um triz, em confidencias. Contive-me a tempo. O Chico era um excellente rapaz, mas não tinha a lingua segura, dava muito com ella nos dentes. E apenas disse:

-- «Oh! não imaginas... Muito graciosa... e muito intelligente!»

-- «Ora aqui tens tu -- continuou o Chico -- um caso curioso de celibato forçado...»

Eu não percebia.

-- «Aqui... onde? qual caso?...»

-- «O caso d'esta rapariga.»

-- «... Clarinha?!»

-- «Sim. Pois não sabes?»

Estremeci. Fiz um grande esforço para dominar a emoção que me tomava e me resfriava, como se um floco de neve me houvesse cahido entre o collarinho e o pescoço, e me fosse escorregando ao longo da espinha.

-- «Não... Não sei nada... Mas o que é? Conta lá!»

-- «E' uma coisa sabida! -- foi o Chico dizendo sem ter dado pela minha excitação. -- Uma coisa notoria! Não ha quem queira casar com ella. Coitadinha... Ella bem quer, ella bem lhe faz a diligencia, mas não ha meio...»

-- «E porquê? -- disse eu ainda, gaguejando, sentindo que um nó me prendia a fala, me apertava a garganta. -- Algum escandalo?!»

-- «Não... Por ella, não. E' por causa da mãe... Isso sabes tu. Vaes lá, dás-te com ellas andas mettido na politica, até o deves saber muito mellior do que eu!»

Mas logo o nó que me apertava a garganta se tornou lasso e frouxo, e me libertou a fala. Voltei a mim, com afan; empolguei outra vez, vigorosamente, a minha estimavel faculdade de raciocinio, increpei na pessoa do Chico do Patrocinio a desarrasoada facilidade, a deploravel inconsciencia com que se vilipendiava e se manchava de um labéo afrontoso a reputação de uma mulher! E como essa mulher fosse mãe, a criminosa leviandade com que se fazia derivar e alastrar sobre a vida, o futuro, todo o destino da filha irresponsavel, o desdoiro de uma accusação, que bem podia ser até uma falsa accusação! Era uma indignidade... Era uma canalhice! Depois, a respeito de D. Claudia, que boas razões, que flagrantes provas havia para se acreditar na sua culpa de adulterio?

-- «Pois tu ainda estás ahi, ó Joaquim do Amaral?! -- atalhava, troçando, o meu poeta e meu amigo. -- Pois tu ainda queres, tu ainda exiges provas juridicas para que possas acreditar num caso de adulterio?»

-- «E porque não?!»

-- «Tu só admittes então a existencia de um adulterio quando tenhas sido testemunha ocular do flagrante delicto?...»

-- «... Ou quando o flagrante delicto tenha sido presenceado por pessoa idonea!»

-- «Essa é fórte, Amaral! Essa é muito forte! Has-de concordar que essa é fortissima! Olha que não ha de ser facil... A gente, quando se mette nessas saborosas aventuras, quer sempre tirar d'ellas os maximos proveitos, e tem cautela, toma as suas precauções...»

-- «Pois tanto melhor para quem as tome, se é que sabe toma-las de modo a destruir as provas.»

-- «Tu não ignoras, com certeza, como essas coisas sempre se fizeram, e a perfeição com que ja hoje se fazem em Lisboa... Não se corre o menor risco!»

-- «Bem sei... Os paraisos... Como o do Primo Bazilio!»

-- «Ora adeus, meu amigo! Estás atrazado vinte annos na historia côr de rosa da prostituição... Os paraisos já não offerecem segurança, todos os maridos os conhecem, é matto desbravado. São paraisos... perdidos! Hoje ha coisa melhor, muito melhor, incomparavelmente melhor! Nós já temos por cá, á semelhança das grandes capitaes, um d'esses misteriosos Rendez-vous des Gourmets até onde sóbem, sem correr a mais ligeira contingencia de compromettimento, algumas das mais illustres filhas do Tejo, em parenthesis de desvario no rigoroso e pautado cumprimento dos seus deveres conjugaes... Olha, não vamos mais longe...»

Estavamos á esquina da Travessa de S. Nicolau. O Chico deteve-me um instante, apontou um predio fronteiro, que formava a outra esquina, e deitava janellas para a Rua do Oiro. E continuou:

-- «Ali o tens tu, naquelle predio. E' uma casa que gosa de excellente reputação -- no seu genero... Installação de primeira ordem, todos os requintes do luxo e do conforto... Grandes espelhos de Veneza... Grandes pelles de leão... Estofos e mólas magnificas! Não imaginas! O Rendez-vous é no segundo andar. No primeiro, como vês, é o consultorio de um dentista... Lá tem a taboleta. Tal e qual como se faz lá fóra, nos grandes centros, nas grandes capitaes... De modo que quem passa na rua, e vê parada áquella porta a carruagem da Senhora Baronesa ou da Senhora Condessa, o mais que póde suppôr é que essas illustres damas devem soffrer horrivelmente dos seus bellos dentes, para que tantas vezes subam a casa do seu dentista! E' uma grande benemerita a dona d'aquella casa... Deves ter ouvido falar... A Antonieta!» E noutro tom, de quem não queria assumir a responsabilidade da calumnia: «Ha quem diga que esta D. Claudia é uma das melhores fre- guezas...»

Redobrei então de indignada vivacidade. Quasi insultei o meu poeta, que sorria. Aquillo era, por força, uma refinada mentira, uma infundada e asquerosa diffamação, ditada e propalada pelo odio dos politicos e por invejas de mulheres, que não perdoavam a D. Claudia nem a sua poderosa influencia no animo do Presidente do Conselho, nem o bello renome que lhe provinha do ruidoso movimento iniciado com a Liga Feminista. Elle o dissera, o proprio Chico o dissera: que eu, indo lá a casa, frequentando já na intimidade a casa de D. Claudia, melhor o sabia, melhor o poderia informar. E assim era. E com muito enthusiasmo o dizia bem alto: não acreditava em nada, absolutamente em nada, do que se podesse dizer e infamemente divulgar em desabono d'essa mulher, que eu estimava e respeitava!

-- «Bem! Bem! -- conciliava o Chico, já arrependido. -- Não podia suppôr que tomasses a coisa tanto a sério. Isto é falar, é conversar. Nem eu faço declaradamente profissão de má lingua. Deixa estar que não serei eu que me entretenha em diffamá la... Não, não... que ella compra-me os versos e ainda ha de comprar-me alguns moveis...»

Ainda encontrámos outras pessoas conhecidas: o Padre Eterno, carregado de papeis; o Meleças, cheio de noticias; o Gonçalinho Palha, todo perfumado de trevo. Eu queria que o Chico viesse jantar commigo no Hotel. Ficaria mal jantado, pois que o Borges despedira o antigo cozinheiro e tinha agora lá um hespanhol que temperava a comida com explosivos. Mas era só pelo prazer da companhia, pois já ia longe, e sem deixar vestigios, aquelle momento de mau humor. E o Chico, annuindo, quiz que tomassemos absintho.

Desapparecia o sol, já poucas mulheres andavam na rua, recolhiam apressadas. Escurecia brandamente. Entrámos no Café Aurea.

-- «Aqui me encontrarás todos os dias, invariavelmente, a esta mesma hora... -- dizia-me elle. -- Quando quizeres vêr-me, já sabes. Nesta mesma mesa. Não falho».

Deitando o absintho nos copos e deixando correr depois, gotta a gotta, a agua que o turvava, como na attenta observancia de um preceito ritual, o Chico continuava a falar, a falar, a falar... Mas entre os dedos compridos, terminando em compridas unhas, da sua mão ossuda, onde se engastava uma formosa amethista de Ceilão (que estivera no annel de Frei Bartholomeu dos Martires, Arcebispo de Braga) a garrafa da agua oscillava, precipitando as gottas. Elle apoiava então o cotovello sobre o marmore da meza, mas nem assim evitava as oscillações.

-- «Tu entras muito pelo absintho, Patrocinio?»

-- «Não... Muito não. Mas já não passo sem elle! Grandes males, grandes remedios! En cas de doute, absynthes-toi... O grande remedio da duvida é o absintho.»

-- «Mas faz-te mal.»

-- «Eu perdôo o mal que elle me faz por o muito bem que me sabe...»

-- «Pois sim! E um bello dia, sem saberes porque, nem como, começas a perder essas cores, esses hombros, esse aprumo...»

-- «Bem sei... Perturbação de funcções, enfraquecimento de força muscular, perda de memoria, anesthesia completa... Deixa lá... Deus é grande!»

-- «E a forçasinha genesica?»

-- «Grande tambem, por emquanto!»

E tomou do copo dois abundantes goles.

Depois, desviando-me a attenção para o lado da rua:

-- «Descobri aqui, para meu uso, o espectaculo mais barato e um dos mais divertidos que é possivel desfructar em Lisboa. Além do que, o espectador tem direito a quantas bebidas quizer, pagando-as... Através d'aquelle vidro fosco das portas passam por aqui, em diversos andamentos, ao sabor de qualquer musica trauteada, quadros e figuras das mais pittorescas que tem a capital. Tres minutos na presença d'este animatografo bastam para dar uma idéa da curiosidade do espectaculo. Passa, por exemplo, um ministro a pé. Logo atrás, a cavallo, passa o correio do ministro. Porquê? Porque o correio tem direito ao cavallo e o ministro não tem o mesmo direito ao trem. E d'este simples caso decorre, naturalmente, com a facil moralidade de uma fabula, a conclusão patusca, filosofica, de que o correio é o mais feliz dos tres... No momento em que o ministro passa, um pobre estende a mão -- a vêr se chove. O ministro espirra. E um outro transeunte, illudido com o movimento da mão do pobre, coincidindo com o borrifo que o nariz do ministro espalha, abre rapidamente o guarda-chuva, e apressa o passo. Dez, vinte, trinta pessoas que se cruzam no passeio, abrem no mesmo momento os guarda-chuvas; outras levantam a góla, outras arregaçam a saia. Durante quatro segundos tem-se a mais completa illusão da chuva -- uma verdadeira chuva de mólha-tolos. Ha então um cavalheiro de chapéo alto, abrigado num portal, que faz o mesmo movimento do pobre d'inda agora, não querendo metter o chapéo fino á chuva; e uma senhora caridosa, que passa, pára, procura qualquer coisa no seu saquinho de velludo, e mette um vintem na mão do cavalheiro de chapéo alto. Do outro lado da rua cresce, em linha recta ao vidro, a sombra de um cão sem dono. Chega á porta, cheira, alça a perna, e esguicha... «Salsaparrilha e soda!» grita um creado ao balcão. Um vulto de maltrapilho distribue prospectos. Passa outro de grandes barbas, quer um prospecto tambem. O homem diz-lhe que não. Não? Porque não?! Porque o outro usa crescida a barba e o prospecto annuncia navalhas para a barba... Mas o que é isto? que disparate é este?... Isto é a vida. O que não quer dizer que muita gente não ache a vida uma coisa divertida, mas muito divertida!»

VII

Uma noite, Já tarde, entrando no Hotel, inesperadamente encontrei no meu quarto um volumoso masso de cartas e jornaes da Ilha, vindos por um navio da carreira da America.

Eu recolhia massado, «esbódêgado» -- como diziam as meninas brazileiras dos quartos mais caros -- após um demorado e muito animado serão em casa de Antonieta, com quem eu estreitara relações, e de quem recebera um bilhetinho convidando-me a apparecer nessa noite, sem falta, para me encontrar com «um antigo conhecimento» que me havia de dar grande prazer.

Intrigado, e confiado nos bons creditos da casa, que primava na escolha dos seus artigos, para lá eu correra á hora indicada, cora pressurosa pontualidade. E fôra, com effeito, uma boa surpreza, que muito prazer me déra.

O antigo conhecimento era (mal poderia eu suspeitá-lo!) a Margarida Tricana, que estava uma maravilha, e que eu não podera reconhecer á primeira vista, tão mudada ella estava. Fôra até muito bem preparada a surpreza, pois quando eu entrava na sala azul onde Antonieta recebia as suas visitas mais intimas, e achando-se já ali algumas amigas da casa em attitudes expectantes, e cada uma d'ellas com o seu nome de guerra mirabolante, nenhum d'esses nomes me recordava qualquer creatura que houvesse conhecido noutros tempos em Coimbra, durante a formatura, ou em Lisboa nas férias, de passagem para a Ilha. De modo que quando a Antonieta, affectando um grande ar de cerimonia, concluia as apresentações, e eu já estava persuadido de que o antigo conhecimento não chegara ainda, pois não o vira ali, uma unisona e fresca gargalhada rompia d'aquelle grupo galante de mulheres, coroando o exito da intriga que me tinha sido preparada. E uma d'ellas, então, avançando para mim, e plantando-se na minha frente, com mais viva jovialidade me dissera:

-- «Pois tu já não me conheces, ó ingrato?!»

E só assim eu a reconhecera, e só assim a teria reconhecido, porque estava inteiramente mudada, a nossa querida e saudosa Margarida Tricana! Ella, que era magra, miudinha e debil, apparecia-me agora cheia, fortalecida, rija. Ella, que era timida, modesta e encolhidita, estava agora desinvolta, pomposa, imponentissima! Ella, que d'antes tinha o cabello mais lindamente castanho d'este mundo e do outro, era agora loira, d'um loiro fulvo, excessivamente loiro! Quem poderia tê-la reconhecido, quem?!

Mas estava muito melhor, incomparavelmente melhor. Estava soberba. Estava optima. Como se fizera uma tão grande e bella transformação? Como fôra aquillo?

Contou-me tudo. Para mim não havia segredos desde o tempo da Couraça dos Apostolos. E depois, era um amigo, oh! um velho e bom amigo...

Depois que eu e o Fausto tinhamos sahido de Coimbra, ella não poderá mais aguentar-se por lá. Affeiçoara-se-nos tanto, tanto se identificara comnosco e com a nossa alegria, que nunca mais, depois da nossa partida, poderá resignar-se a ficar e a viver por lá. Era do nosso curso, concluira tambem o «seu curso». E lançara mão do primeiro ensejo para tambem fugir.

Offerecera-lhe esse ensejo um actor do Porto, um tal Bravo, que andava no verão por terras da provincia com troupes de opereta. Gostara d'elle, deixara que elle a levasse para o Porto. Mas sahira-Ihe um mariolão, que a maltratava, e que á custa d'ella, e chegando a bater-lhe, tinha querido viver uma temporada de inverno em que não arranjara theatro.

Deixara-o, fugira para Lisboa.

Foi a sua felicidade. Uma vez em Lisboa, tudo lhe correra ás mil maravilhas. Por intermedio de uma prima, que tinha casa de hospedes, arranjara um encosto muito vantajoso com um hospede que chegara do Brazil no mesmo dia em que ella chegara do Porto. Fôra isso um romance. O homemsinho era de Braga, engeitado e creado por uma pobre gente que o tinha levado para Manáus, ainda muito pequeno. Marido e mulher, que eram, por lá tinham morrido. Elle trabalhara e enriquecera, chegara aos cincoenta annos solteiro, sem filhos, com um aneurisma e uma fortuna. Com o presentimento de que morreria cedo, sem uma affeição sobre a terra alheia, e com um grande desejo de vir morrer a Portugal e de voltar a vêr Braga, mettera-se no primeiro paquete e abalara por ahi fóra.

Um companheiro de quarentena, no Lazareto, indicara-lhe a casa de hospedes da prima de Margarida, onde elle seria tratado e amimado como pessoa da familia. E assim acontecera.

A Margarida Tricana, emquanto não arranjava pé de vida, e como tivesse vendido os ultimos oirinhos para fugir do Porto, não tendo genio para estar ás sopas da prima sem ao menos lh'o pagar com trabalho, declarara que tomava á sua conta o arranjo dos quartos, e nessa lida se fôra aproximando do «brazileiro», que chegara muito amachucado da viajem, e passara quasi todo o dia na cama, sobre as roupas. Boasinha como era, como nós sempre a tinhamos conhecido, a Margarida, bem mais por bondade que por interesseiro calculo, insinuara-se no animo do hospede novo, e em tão boa hora, e com tanta sorte, que pouco tempo depois estava em casa sua, que elle lhe pozera em seu nome, com promessas de mais grossa e mais choruda fatia.

Então a vida entrara a ser para a Margarida Tricana uma boa coisa compensadora do seu pequenino sacrificio junto d'aquelle homem doente, que temia excitações e se contentava com aspirar o fresco perfume de saude que d'ella se desprendia, da sua carne e da sua seiva. E arredondara, e engordara.

Por seu lado, o homemsinho tinha encontrado tambem, e finalmente, um bom affecto na terra. E assim durou ainda seu anno e meio, contente, sereno, confiado. Tão confiado e tão sereno, que o aneurisma, farto de esperar um sobresalto, resolvera rebentar assim mesmo, no meio d'aquella confiança e d'aquella serenidade.

Margarida vestiu ainda, pelas suas proprias mãos carinhosas, o cadaver do seu homem, chorou-lhe sobre o caixão, e chorou devéras. Mas não quiz mais ficar naquella casa, onde o morto lhe apparecia entre todas as portas e nos vãos de todas as janellas. Agora, era minha vizinha...

-- «Minha vizinha?»

-- «Sim. Tua vizinha. Muitas vezes, das minhas janellas, te tenho visto á janella do teu quarto... E' verdade: e como está o teu collega Poças?»

Cahi das nuvens! Pois era ella, a Margarida Tricana, a nossa vizinha do terceiro andar da esquina! Pois era por ella que o Poças andava apaixonado?!

Nem mais, nem menos. Mas pediu-me logo as maximas reservas. Não queria que o Poças suspeitasse, nem por sombras, das nossas antigas relações, e que nem sequer podesse sonhar do nosso encontro, naquella noite e naquella casa.

Tantas precauções e receios aguçaram a minha curiosidade. Queriam vêr que era ella já a amante do Liberato Poças?

-- «Não, não! Palavra d'honra que não...»

Elle apenas lhe falara uma vez, furtivamente, no jardim da Escola Politechnica. Correspondiam-se por cartas. E eram cartas a sério, de que a Margarida pretendia tirar partido, «se calhasse».

-- «Tenho soffrido muito, sabes? -- dizia-me ella. -- E agora, que tenho alguma coisa de meu, que me deixou o «brazileiro» e já não preciso andar por ahi á gandaia, quero tambem ser gente... Um homem sério, assim como o Poças, convém-me. Depois, ou gósto d'elle, ou não gósto. Se gósto, tanto melhor! se não gósto, o menos que falta por ahi são homens de quem a gente goste! Tudo se ha-de arranjar.»

Ella dizia estas coisas só para mim, a meia voz, muito em confidencia. Já as outras tinham abalado, e Antonieta, por sua vez, deixara-nos sós. Sós, a um canto mais velado da salinha azul, mergulhados numa chaise-longue, recordámos com mais activa saudade os nossos tempos de Coimbra e as noites da Couraça.

-- «Por amor de Deus -- recommendava ella ainda á despedida -- não digas nada d'isto ao Poças... an? Olha que eu confio em ti!...»

-- «Pódes confiar -- assegurei. -- Nem palavra!»

E quando entrei no Hotel, já tarde, vinha moído, vinha derrancado.

No grosso masso de cartas e jornaes da Ilha, logo ao de cima, conheci a lettra apurada do Primo Theodosio, que puz de lado, para o fim. Depois, vinha a lettra graúda, muito egual, bem medida e bem lançada, do Doutor Tarquinio. Depois, a lettra confusa, deitada, corredía, do Doutor Tristão. E só depois d'essas e de muitas outras, umas conhecidas, outras novas, é que me apparecia a mais desejada de todas, a unica desejada entre todas, naquelle momento de somnolento cançaço: a lettra miuda, muito compacta e aconchegadinha, sem maisculas e sém paragrafos, da Tia Genoveva.

Era uma carta enorme, de tres folhas atulhadas. Havia novidade, com certeza, e novidade de vulto, para que a Tia Genoveva tanto escrevesse, ella que tanta difficuldade tinha em escrever! Logo ao voltar da primeira para a segunda lauda, dadas as noticias costumadas da saude de todos, que era boa (Deus louvado!) e das coisas de nossa casa, que lá iam continuando na mesma -- percebi que a Tia Genoveva ensaiava complicados rodeios e se perdia em atormentados circumloquios, antes de entrar claramente no assumpto que tanto parecia affligi-la e que já começava tambem a preoccupar-me, á medida que mais crescia a periferia dos circumloquios e rodeios.

«... Emquanto foi o Theodosio e tua Tia Maria da Assumpção, e tambem as Noronhas, que encontrei no domingo na missa de São Gonçalo, eu não fiz grande caso, nem pensei sequer em t'o dizer, para q-.ie não te aborrecesses. Mas imagina que susto eu tive quando hontem me appareceu aqui o Doutor Tristão a dar-me conta do que se dizia de ti e do que se tramava contra ti, meu querido Quinino! Eu ainda lhe pedi que te escrevesse e te dissesse a ti mesmo o que eu acabava de saber de certeza, mas recusou-se, poz os pés á parede, como se costuma dizer, e que lhe pedisse eu tudo menos isso, porque nunca tivera geito para se metter em vidas alheias nem para vehiculo de intrigas. Vinha dar-me parte do que ouvira e lhe constava, e trazia-me até um periodico que falava contra ti, para que eu t'o mandasse, pois que nem isso mesmo elle queria fazer directamente. Coitado, é assim, todo cheio de escrupulos, e sempre assim o conheci. Nosso amigo é elle, e devéras. Só Deus sabe tambem quanto me custa affligir-te com estas coisas, mas parece que melhor é tu saberes tudo. Aqui, toda a gente começa a estar descontente comtigo, meu querido Quinino, por já se terem passado tres mezes depois que ahi chegaste e nada constar do que tenhas feito a bem d'esta terra. O Doutor Tarquinio, que tanto tomou a peito a tua eleição (embora nós bem soubessemos com que reservado fim) anda como doido, e já brigou com o Pedro Affonso, que te tinha dado trinta votos por lhe terem promettido que as Obras Publicas arranjariam a canada do Posto Santo, onde tem a quinta, para poder passar por lá com o carro, e que de tal coisa nunca mais se falou. O Pedro Affonso fez-lhe uma espera á porta do Tribunal, e dava conta d'elle, se não tivesse acudido gente que sahia da audiencia. Isto tem dado muito que falar e até d’isso se diz que tu é que tens a culpa, porque se tu quizesses já as Obras Publicas tinham mandado arranjar a canada... No Centro Regenerador tem havido reuniões secretas, mas não tão secretas que se não saiba que nellas se tem falado muito contra ti e contra o Doutor Tarquinio, a quem já por lá chamam -- o Traidor! E tanta troça lhe fizeram na botica do Cunha e no Club, que já ninguem o vê apparecer á noite em parte alguma...»

Por alto, vi que a Tia Genoveva nada mais me dizia de terrifico. O resto eram conselhos e recommendações. Mas tudo aquillo me irritara, me espalhara o somno. Canalhas! Sempre queria vê-los no meu logar, e saber o que fariam!

Elegiam-me deputado independente, entregavam-me um mandato todo de arrogancia e de isenção, encommendavam-me um sermão de altivo protesto para dizer nas bochechas do Poder Central -- e queriam que eu, á capucha, e por detrás da cortina, continuasse a servir os mesquinhos interesses da politica do circulo, arranjando lanços de estrada, obtendo empregos, acobertando contrabandos e emigrações clandestinas, livrando latagões do recrutamento, promovendo transferencias, exercendo vinganças... Canalhas!

Num frenesi, rasguei o envelope da carta do Doutor Tarquinio. Escrevia-me pouco, com manifesto desgosto; mas discretamente, vendo bem as coisas, avaliando as circumstancias. Sabia o que era o Parlamento, sabia o que eram os Ministerios. Por sua parte estava eu desculpado, largamente desculpado. Até me dava toda a razão na attitude reservada em que eu lhe declarara manter-me perante as seduções do Governo. Ou bem que era deputado independente, ou bem que o não era. Mas fossem lá dizer isso aos outros -- aos Pedros Affonsos! Estavamos bem servidos... A autonomia que esses queriam era uma autonomia que lhes permittisse gastar em seu proveito todo o dinheiro que até agora se mandava para a metropole, não dispensando porém a metropole de lhes mandar mais algum. E o que acontecia? Acontecia que os Pedros Affonsos de ambos os partidos (pois não ha partido nenhum que não tenha o seu Pedro Affonso) queriam dar agora o dito por não dito, e quebrar o accordo de que eu sahira eleito, cortando-me todas as vazas no Parlamento, desprestigiando-me o mandato, se as primeiras tentativas da ignominiosa campanha que tramavam me não levassem a depô-lo immediatamente.

-- «Pois não hão-de ter esse gosto, sucia de malandros!» esbravejei, ferrando um valente murro sobre a commoda, que toda estremeceu. E não quiz ler mais nada, não quiz saber de mais nada.

Despi-me apressadamente, aos repellões. Um botão de punho mais renitente em sahir da casa, saltou ao tecto, quebrado pelo pé. Cada uma das botas foi para seu lado, no desespero de não ter eu ali, naquelle instante, e a geito, o trazeiro d'esse velhaco do Pedro Affonso, onde podesse experimentar-lhes a resistencia das biqueiras. E mettido na cama, e assoprada a véla, antes de puxar as roupas, de me ferrar no somno e esquecer aquella corja, com os punhos cerrados e rilhando o dente, ainda investi na treva, ameaçando-os de desforra!

Ai de mim! Eu já não era o senhor, o antigo senhor, absoluto e rispido, da minha propria vontade. Distrahido, contaminado, empolgado pela Capital, deixava-me agora levar, sem bussola e sem leme, todo o meu querer desmantelado, na corrente impetuosa da sedução da Capital...

Admittindo que o homem não é outra coisa senão um animal, que acha a vida pessima, ou que acha a vida optima, conforme nelle se demoram ou se abreviam as digestões, eu, animal, digerindo sem difficuldade a comida ruinosa do Borges, achava a vida excellente.

Bem longe andava eu de ser como aquelles catechumenos antigos, que depois de terem assistido ás visões terriveis de certos misterios, podiam bem continuar a viver, mas nunca mais podiam rir. Iniciado e já quasi familiarisado no mecanismo da alta politica portuguêsa, que me offerecera surprezas mas não me inspirara ainda fundas repugnancias; desfructando todas as regalias e todas as estimas devidas á minha condição, e estimuladas pela minha natural affabilidade no commercio dos politicos, dos frequentadores da Havaneza, dos commensaes do Borges; achando facil e grato o trabalho que me era distribuido nas commissões da Camara, para que me haviam escolhido, ainda mesmo

naquella de que fôra nomeado relator (que era a commissão de Instrucção) pois de todo esse trabalho eu me desempenhava folheando dois ou tres livros e com uma perna ás costas; recebendo amiudadas vezes o mot d'ordre do Governo, por intermedio do meu amigo Fausto, para não ir á Camara nos dias em que ao Governo convinha que não houvesse numero; frequentando, talvez já com demasiada assiduidade, os serões galantes da Antonieta, a respeito dos quaes o Illustrado guardava uma absoluta reserva, mas que nem por isso eram menos agradaveis do que muitos outros de que nelle sempre vinha noticia minuciosa; inscripto como socio do Turf, onde o meu magico chapéo de côco côr de abobora me franqueara a entrada, dispensando o inquerito ácerca dos meus titulos de nobreza, como ordenava o estatuto, e onde me era grato assomar á varanda entre viscondes, á hora buliçosa da tarde a que passavam na rua as viscondessas -- a vida de Lisboa desabrochara para mim, sob a tépida caricia do céo já bem azul d'esses principios de junho, a grande flôr fatal da sedução! E eu aspirei então, com delicias, e no goso da minha inadvertencia, o perfume venenoso d'essa bella flôr...

Ao primeiro periodo de jubilosa actividade que inaugurara a minha carreira politica, e em que eu quiz abraçar e profundar todas as grandes questões do meu paiz -- as de ordem politica e as de ordem moral, as de ordem financeira e as de ordem economica -- revolvendo a Historia, compulsando os Tratados, comparando as Legislações; sem abalo brusco de transição, sem que me fosse dado, sequer, apreciar a fase de mudança, seguira-se porém um outro periodo de fadiga intensa, d'uma exagerada sensibilidade pervertida, d'uma nonchalance persistente, d'uma generalisada irritabilidade, d'um desequilibrio funccional, emfim, que me voltava o miolo, não me deixando já fixar as idéas que procurava nos livros, deixando-me ler paginas inteiras e seguidas, capitulos até ao fim, sem que de tudo isso me fosse possivel fixar uma noção, nem uma formula, nem sequer uma frase, chamando-me incessantemente para algum ponto opposto áquelle onde eu me achasse, atirando-me para cima de todos os divans que os meus olhos descobrissem, obrigando-me a chamar carruagens para transpôr as mais curtas distancias, móle, móle, espapaçado... Sentiame victima de uma lida que excedia muito as minhas forças de adaptabilidade nervosa, desalentava, parava, recuava -- e acabava sempre, fatigado, por dar fundo na Rua do Salitre, onde já não me era consentida uma ausencia de mais de vinte e quatro horas sem boas justificações e mil desculpas.

Tudo quanto a Tia Genoveva me insinuara, e tudo quanto eu depois aprendera e chegara a conhecer de nocivo e de fatal no convivio muito intimo da mulher, parecia tê-lo esquecido inteiramente, repentinamente, desde que transpozera o limiar da casa de D. Claudia. E todos os manejos, todas as ronhas, todos os ardís e todos os embustes attribuidos ao perigoso e eterno Feminino, tudo isso eu juntava agora, numa nova estrofe, ao himno limpido e sonoro do Merito das Mulheres, sob a influencia enamorada dos encantos de Clarinha, avassalado pela soberania da sua graça irresistivel.

Muitas vezes, em sua casa, nos encontrámos sós, absolutamente sós, na mais descuidada e mais doce intimidade. E ahi, e assim, passavam para nós horas esquecidas -- ella occupada com algum bordado, eu collocado em frente do seu bastidor, ora lendo em voz alta algum livro novo, ora entrecortando a leitura de largos trechos de conversa.

-- «Parece-lhe que vá bem aqui este amarello tão vivo?» perguntava-me ella, a proposito da applicação de alguma seda ao bordado.

-- «Acho lindo...»

-- «E d'este desenho, gosta?»

-- «Gosto muito! E' uma idéa sua, ou tirada de algum jornal?»

-- «Creio que é uma idéa minha. Admira-se? E o senhor nunca teve uma idéa?»

-- «Já não ha meio de ter idéas novas...»

-- «E para quê? Os jornaes dizem tudo. Basta ler os jornaes.»

-- «E' o que eu faço.»

-- «E quando encontra alguma que lhe serve fa-la depois passar como se fosse sua...»

-- «Não, lá isso não! Seria facil perceber o truc, sobretudo quando se tratasse de alguma idéa boa...»

-- «O senhor é muito modesto. Precisa corrigir-se. A modestia é uma pessima virtude.»

-- «Mas isto não é ser modesto... Isto é ser exacto.»

-- «Pois então, fique sabendo que não é nada d'isso. Quer que eu lhe diga o que o senhor realmente é?»

-- «Pois diga...»

-- «E' um intrujão!»

Eu ria, animava-me, protestava. Ella teimava, deliciosa:

-- «Certissimo! Um grande intrujão. Nunca ninguem lh'o disse, talvez... Talvez nem o senhor mesmo o suspeitasse... Pois é, digo-lh'o eu!»

-- «Bem. Acredito. Vossa Excellencia que o diz...»

Batia o pé, numa raiva. Torcia o narizito.

-- «Vossa Excellencia! Outra vez! Que massada... Porque não me pede licença para tratar-me por tu?»

-- «Não me atreveria...»

-- «Pois atreva-se, ande! Já não será sem tempo. Ha tres mezes que me conhece, que vem aqui, que me diz coisas amaveis a meia voz... E hontem?... que quasi me obrigou a fazer um pequenino esforço para lhe fugir com a mão, que o senhor teimava em apertar, depois de a ter beijado...»

-- «E o que podia haver nisso de mal? Um beijo na mão...»

-- «Um só, decerto... Nenhum mal! Mas é que o senhor se preparava para me dar segundo! E olhe que não foi para que m'o não desse que lhe fugi... Foi para que não podesse dizer depois que eu lh'o acceitara.»

-- «Mas se eu tivesse segurado bem a sua mão, e sempre lh'o désse, afinal?»

-- «Se fosse necessario segurar-me a mão, era porque essa mão lhe fugia. Nesse caso, dava-me o senhor o direito da defeza, com a mão que me restasse livre. E eu teria sabido usar d'esse direito...»

Depois, mudando de conversa:

-- «Quando faz o seu debute na Camara?»

-- «Quando se discutir o projecto da reforma do Codigo...»

-- «Ah! Isso é sério. De costume, para os discursos de debute não se escolhem coisas sérias... Decididamente, o senhor vem disposto a coisas espantosas!»

-- «Pois olhe, não fui eu que escolhi. Foi a senhora sua mãe que m'o impoz...»

-- «Não diga isso outra vez, senhor Amaral! Um homem no seu caso não obedece a imposições de ninguem. Faz o que quer. Faz o que julga melhor. Teria o senhor preferido outra occasião para falar pela primeira vez na Camara?»

-- «Não tinha pensado ainda nisso, quando sua mãe me fez essa mesma pergunta. E então ella, muito naturalmente, disse-me: «Porque não aproveita a discussão da reforma do Codigo? Porque não defende a questão do divorcio?» E accrescentou, como se me fizesse uma indicação: «... Até me seria muito agradavel...» A lembrança sorriu me, vi a possibilidade de tirar d'ahi alguns effeitos, acceitei o alvitre...»

Clarinha suspendera o trabalho do bordado, afastara-se um pouco do bastidor para mais se approximar de mim; e como se tomasse, afinal, uma deliberação difficil depois de muito hesitar, e de muito deixar amadurecer um certo proposito, cujo segredo me ia confiar, disse-me assim:

-- «Minha mãe, quando fala com os senhores, nunca diz nada muito naturalmente. Guarde isto só para seu uso, como prova da muita estima e da muita confiança que tenho em si. Quero que o senhor o saiba, para seu governo. Faça a sua estreia quando quizer, e escolha o pretexto que muito bem quizer... Mas livre-se de que alguem supponha que minha mãe se serve de si, como de tantos outros, para conseguir os seus fins!»

Vindo da rua, da Liga, dos Ministerios, D. Claudia entrava nesse momento. Clarinha fez-me signal para que me calasse.

D. Claudia não esperava encontrar-me. Mas não me fez a festa do costume. Mal sorriu. Eu estranhei e attentei no seu aspecto, que denotava uma desusada fadiga, um evidente esforço de dissimulação.

-- «A estas horas por cá? E' caso! Aposto que não houve Camaras...»

-- «Deve ter havido, mas passaram hoje sem mim...»

Depois, chegando-se ao bastidor, examinando com attenção o bordado que Clarinha retomara apressadamente, quando a sentira entrar:

-- «Bravo! O crisantemo fica lindo. Está um apetite.»

Deu-lhe um beijo nos cabellos. E descalçou lentamente as luvas, foi tirar o chapéo, collocou num frasco, sobre uma étagère, umas rosas soltas que lhe dera o Plantier.

-- «Sabes que combinámos ir á exposição do Gremio? disse Clarinha. -- Dás licença? Estavamos á tua espera.»

-- «De mil vontades. Acho muito bem. O que me parece é que não terão muito tempo... São quatro horas.»

-- «Não é tarde. Só fecha ás seis. Damos uma volta... Podemos vêr o melhor.»

-- «Pois vão. -- E voltando-se para mim: -- Mas veja lá senhor Amaral, não vá comprometter-se...»

-- «Não, minha senhora... Creio bem que não.»

Clarinha deixou-nos, por instantes, para ir apromptar-se, concertar um pouco os cabellos. D. Claudia insistiu:

-- «Não sei, não sei... Veja lá! -- E cha mando por alguem que entrara com ella, mas ficara na ante-sala: -- Entre para aqui, ó Meleças!»

E eu vi entrar o Meleças, o Meleças do Phantasma, rebolando-se de contentamento como um mops de estimação, e sobraçando duas enormes pastas de carneira vermelha. Arreou aquelle enorme peso sobre a secretária-ministre onde D. Claudia se instalara já, veiu comprimentar-me, com immenso gosto.

Abrindo uma das pastas, e começando a tirar papeis, que dispunha em diversos montes, D. Claudia continuou, dirigindo-se-me:

-- «O senhor não teme as más linguas?»

-- «Absolutamente nada.»

-- «Não conhece então o Dom Bazilio?»

-- «Quem o não conhece!»

-- «E não lhe acha razão? Não acredita que de toda a calumnia alguma coisa fica?»

Respondi firmemente:

-- «Não acredito.»

Voltando-se então para Meleças, gracejou:

-- «E vossê, Meleças, o que pensa?»

D'olho em alvo, melado como um alfenim, Meleças sorriu:

-- «Eu, minha senhora, peço desculpa, mas não penso nada!»

Vivamente, continuando o gracejo, D. Claudia increpou o:

-- «Para que anda então o senhor a aprender esgrima, se arranja sempre maneira de não ter uma opinião?»

-- «Saber esgrima, senhora D. Claudia, é uma excellente coisa para evitar os duelos. Mal isso consta, ninguem mais se mette comnosco.»

-- «Ora ahi tem Vossa Excellencia -- disse eu -- uma excellente opinião!»

Clarinha voltava, já prompta.

-- «Vamos lá?»

Mas a mãe levantara-se, fôra escolher uma rosa do ramo que tinha trazido, e chegando-se a mim, pelas suas proprias mãos quiz collocar-ma no casaco.

-- «Deixe-me flori-lo um pouco.»

A lapela, porém, estava ainda fechada.

-- «Mas espere... Este casaco está novo em folha...»

-- «Precisamente em folha, não está. Mas não tive ainda occasião de lhe pôr uma flôr.»

Clarinha, então, intromettia-se, obstando a que a mãe rompesse a lapela:

-- «Deixa, mamã... Talvez não goste, quem sabe? Não teimes...»

-- «Gosto, sim, minha senhora! affirmei vivamente. Gosto até muito! E que não gostasse...»

Mas D. Claudia retirara subitamente a flôr:

-- «Não, lá isso não! Diga com franqueza se gosta, ou se não gosta... Uma lapela deve estar sempre aberta -- ou fechada! E vossê, Meleças, tambem gosta de flôres?»

Meleças estremecia, de goso:

-- «Oh! as flôres... Quem ha que não goste d'ellas...»

-- «Pois sim! dizia D. Claudia, frenetica. -- Mas as rosas não se fizeram para os Meleças! Para os Meleças fizeram-se as commendas!»

-- «Talvez, minha senhora...E' possivel...»

-- «Pois deixe estar que eu lhe arranjarei ainda uma commenda!»

Clarinha despediu-se. Eu procurava o meu chapéo e a minha bengala, que o Meleças avistara a um canto e correra a buscar, sempre amavel, extremamente serviçal.

-- «Não se demorem muito!» disse ainda D. Claudia.

E sahimos sós -- eu e Clarinha.

Por que artes se introduzira Meleças em casa de D. Claudia? perguntara eu mais de uma vez a mim mesmo, sem atinar com a explicação de tão espantoso acontecimento. Meleças era o redactor do Phantasma, e o Phantasma esse pasquim que chegara a publicar, numa supposta lista das amantes do Presidente do Conselho, as iniciaes de D. Claudia!

Mas da propria bocca de Meleças vim a saber como aquillo fôra.

-- «Eu passava uma vez naquelle corredor do Ministerio do Reino que fica por cima da escada principal, sabe? quando percebi que uma voz de mulher altercava com alguem na sala do Conselho de Estado, onde acabava de reunir a commissão do Codigo. Estava uma porta entreaberta, puz o ouvido á escuta, achei que valeria a pena deter-me por ali alguns minutos e, por dever de officio, escondi-me atrás do reposteiro...»

As traças tinham aberto, dir-se ia que de proposito, uns pequeninos orificios no estofo, por onde me era permittido assistir á impagavel scena que ali se estava passando.

D. Claudia puxava por um braço do Padre Eterno, que resistia, declarando: -- «Não, minha senhora... Tudo menos isso! Lá isso, nunca!»

Ella teimava, puxando sempre, encolerisada já.

-- «Não, minha senhora! Tudo menos isso! Lá isso, nunca!»

Por fim, ella empurrou-o com violencia, obrigou o a sentar-se na cadeira da presidencia, e carregando-lhe nos hombros, como se quizesse pregá-lo bem no assento:

-- «Sente se ahi, já lhe disse! Fique se ahi! E saiba que não tornará a levantar-se d'esse logar emquanto não estiver tudo isto acabado, e bem acabado, ouviu? Muito lhe tenho eu aturado, ao senhor, e não estou disposta a aturar-lhe muito mais. Ha de ficar, digo lh'o eu, até que o mandem embora!»

O Padre Eterno resignava-se; não resistia já:

-- «Bem... Que remedio! Manda quem póde... E quando Vossa Excellencia quizer, para variar... aqui tem a outra face...»

Mas D. Claudia não o tomava a serio:

-- «Deixe se de farças, reverendo! Bem sabe que não ha mão que lhe bata que não fique a arder. Mas hei de amarrotá-lo!»

-- «Bem, minha senhora... Eu fico.»

-- «Necessariamente! tornava ella, exaltadissima. Mas por quanto? Preço fixo, ouviu? Não me obrigue ainda a ter de regatear...»

O Conego já estava apopletico. Vi o momento em que lhe dava algum ataque.

-- «Ou Vossa Excellencia procede de má fé, o que não está nos seus habitos, ou o seu tacto a illude, senhora D. Claudia! Isto não é tão mole como parece...»

-- «Deixe-se d'isso, já lhe disse. O senhor é um sapo! Tem a pelle resistente d’esse reptil batrachio. Póde pôr-selhe um pé em cima, e carregar, que não estala. E' repugnante!»

-- «Eu já não sei, com franqueza, rouquejava o Padre Eterno, o que mais admirar em Vossa Excellencia: se a enormidade da sua audacia, se os seus profundos conhecimentos de historia natural!...»

Bufou de raiva, afogueado, levantou-se e sahiu. D. Claudia, que parecia uma leõa excitada dentro d’uma jaula, andava á roda da mesa numa grande agitação, e quando o viu encaminhar-se para a porta estacou, ainda lhe lançou um olhar rancoroso como uma chicotada que o envolvesse todo, da nuca ao calcanhar, e disse alto:

-- «Mariola!»

Eu não podia mais conter o meu enthusiasmo. Ergui o reposteiro, corri para D. Claudia, cahí-Ihe aos pés:

-- «Bravo, minha senhora! Bravo!...»

Qualquer outra mulher, naquella situação e naquelle momento, ter-se-ia sobresaltado com a minha inopinada apparição. Ella não. Até serenou. E pergutou-me friamente:

-- «Quem é o senhor?»

-- «Não me pergunte Vossa Excellencia quem eu sou, nem d'onde venho... Só desejo dizer-lhe que vou... para Onde Vossa Excellencia quizer! Ha muito tempo que eu pasmava dos altos dotes que ornam o caracter de Vossa Excellencia, mas nunca se me offerecera occasião para tão bem poder avaliá-los, como agora...»

Ella insistiu:

-- «Mas quem é o senhor, afinal?»

-- «Eu sou o Meleças, minha senhora! O Meleças do Phantasma -- para servir Vossa Excellencia, voltado! Todas as minhas antigas convicções politicas baquearam neste instante, sob o imperio das palavras de Vossa Excellencia exprobrando esse Director Geral!»

D. Claudia sorriu, como decerto não sabem sorrir os anjos.

-- «Trata-se então de uma profissão de fé?»

-- «Perfeitamente!»

-- «De boa fé?»

-- «Da melhor fé!»

Estendeu-me a mão, que eu beijei, e ainda disse:

-- «Mas conhece bem o senhor o meu credo politico?»

-- «Se conheço! Na minha qualidade de reporter, tenho seguido todos os passos de Vossa Excellencia através da publica administração, como um cão fiel segue o dono. E cheguei á conclusão de que Vossa Excellencia pode hoje dizer, como outr'ora dizia o grande rei de França: -- «O Estado sou eu!» Ha uma coisa para mim, nesta vida, que eu ponho acima de tudo, e que é o amor pela minha patria. E se Vossa Excellencia me vê, neste momento, rendido a seus pés, é porque eu sinto bem que o unico homem capaz ainda de pôr tudo isto a direito -- é Vossa Excellencia!»

-- «Como póde o senhor justificar-se então d'essa ignominiosa campanha que tem movido contra o meu programma de governo, atacando tão desapiedadamente o meu poder executivo, tendo mesmo chegado a ferir com algumas allusões muito directas a minha pobre pessoa irresponsavel? Não sabe o senhor, acaso! que numa mulher não se deve bater nem com uma flôr... de rhetorica?!»

Ah! meu caro senhor Amaral, que divina mulher! que mulher divina! Eu nem já procurava justificar-me, eu só queria arrepender-me; e disse-lh'o:

-- «Vire-me Vossa Excellencia! Vire-me Vossa Excellencia, e verá como um pessimo jornalista da opposição dá, do avêsso, um excellente jornalista do governo...»

Ella obrigou-me então, solemnemente, no momento de passar para as suas fileiras, a jurar-lhe fidelidade.

E eu jurei!»

Hoje, era o seu secretario particular. Mandara o Phantasma ao diabo, para que fizesse d'elle o melhor uso que entendesse. E já não sabia como podesse haver quem gostasse de estar na opposição! Estar na opposição, afinal, o que era? Era estar por baixo, era andar por baixo, sempre por baixo, até por baixo das mesas, como elle chegara a andar para colher algumas migalhas de noticias. Não era sem tempo que passava da cêpa torta. Chegara-lhe tambem a vez de andar de cabeça alta! Agora todas as portas se abriam na sua frente, todos os misterios se lhe desvendavam, via-se no segredo dos Deuses! Estava ali e estava segundo official...

Mas, arre! que não fôra sem custo. Tinha arranjado uma tal reputação de jacobino com essa burrice de assumir a responsabilidade de artigos, que nunca elle escrevera, contra as Instituições, que só Deus sabia as difficuldades, as penurias em que se tinha visto para manter uma certa hnha... Mas era uma inclinação, era uma vocação, era uma paixão pelo jornalismo, que abandonara tudo -- tudo! -- o commercio, a familia, a vergonha... para se lançar na imprensa! Fizera a sua estreia no Pimpão. Com uma charada em verso. Uma charada só para homens. Depois mudara de genero, e passara a collaborar no Almanach das Senhoras... E pouco tempo depois abandonava a loja de modas, onde estave quasi a ser promovido a primeiro caixeiro, para ir dirigir o Pirolito, uma vez por semana, para ambos os sexos. Ao fim de seis mezes de Pirolito -- que bate, que bate, teve de suspender a publicação, o que não era coisa de espantar num paiz de seis milhões de analfabetos; e andara outros seis mezes sem emprego, sem exame de instrucçao primaria, e quasi sem botas!

Afinal, um bello dia, encontrando-se num grande aperto, lançou mão de um jornal e começou a ler os annuncios, por distração. E descobrira o annuncio em que se pedia um jornalista com alguma pratica, e robusto, para assumir sem desdouro a responsabilidade de uma série de artigos violentos, garantindo-se-lhe depois uma situação desafogada na imprensa... Correra, correra, imaginando ingenuamente que corria a salvar-se. Fôra a sua perdição. Os artigos foram logo querelados, elle assumira a responsabilidade, e toda essa comedia se lhe acabara em tragedia, com seis mezes de Limoeiro e alguns conselhos do juiz, que ainda se ria por cima dos oculos, recommendando-lhe que, para outra vez, fosse menos atrabiliario...

Cumprida a sentença, e voltando á vida activa dos jornaes, achara-se compenetrado de que em realidade era, como lhe dissera o juiz, um jornalista atrabiliario. E teimara em conservar-se na opposição. Mas tanto soffrera, tanto, que lhe chegou o momento em que não poude mais. Passara então uma borracha por cima do passado de jornalista independente, virara a casaca, embrulhara as suas convicções num velho jornal como quem embrulha um féto, e fôra deixá-las á porta do Directorio...

Depois cahira, politicamente rendido, aos pés de D. Claudia!

VIII

No dia em que resolvi embrenhar-me nas Secretarias e comecei a distribuir pelos sete Ministerios os numerosos memoriaes que deixara accumular de seis correios da Ilha, eu adquiri a certeza de que nunca poderia vir a dar um deputado de geito.

Essa funcção subalterna de agente de negocios junto das Repartições, esse mister de procurador zeloso de mesquinhas causas, esse officio de corretor de empregos, de mercês e de obras publicas, esse sagrado dever de me pôr incondicionalmente ao serviço de todos os interesses privados de cada um dos meus eleitores -- eram coisas que, positivamente, mas positivamente! não se davam com o meu feitio.

Depois, naquelle caminho de perdição que eu seguia para ir do Borges ao Terreiro do Paço, descendo o Chiado, cortando á Rua Nova do Carmo, dobrando para a Rua do Oiro -- eu habituara-me já, irremediavelmente, a uma vida regalada de lagarto ao sol, que acabava por não me consentir o mais leve esforço, a diligencia mais facil.

E quando naquelle dia, e logo a um dos primeiros deferimentos que eu sollicitava «com muito empenho» para um dos meus eleitores, vi crearem-se os primeiros empecilhos burocraticos, entre os labios risonhos d'um Chefe de Repartição «que todavia muito desejaria ser-me agradavel e prestavel» sempre que alguma disposição legal se não oppozesse, como naquelle caso, a esse seu desejo -- enfiei pelo primeiro corredor que conduzia á rua, galguei escadas, e procurei o ar livre, e jurei nunca mais voltar ás Secretarias para patrocinar memoriaes. Era uma coisa decidida!

Depois, galhofando, contei isto mesmo na Rua do Salitre. Clarinha bateu as palmas de contente, julgando já ganha uma aposta, que commigo fizera, teimando ella que eu não seria capaz de seguir carreira pela politica, teimando eu que sim... E logo D. Claudia disse:

-- «Passe-me o senhor para cá todos essespapeis. Eu me encarrego d'isso. E póde contar com o despacho que precise para todos elles. Não se incommode mais com essas ninharias. Trate-me de coisas sérias. E quando tiver mais não os demore nas gavetas, traga-m'os...»

Que allivio, e que pechincha! Aquillo foi dito e feito. No primeiro paquete, que sahiu d'ahi a seis dias, logo expedi para a Ilha vinte e tantas cartas communicando o almejado despacho a vinte e tantos eleitores. Era um corno de abundancia que eu despejava no circulo. «Mas d'esse corno, dizia eu em carta ao Doutor Tarquinio, como o meu amigo verá, o Pedro Affonso não apanha nem sequer a ponta. Elle que se contente com aquellas que já tem.»

E eu continuava, entretanto, arrastando neurasthenicamente o remorso da minha preguiça, quando recebi uma carta do Fausto, escripta pela mulher, communicando-me que recolhera á cama com um forte ataque de gripe, precisamente no momento em que, tendo já tudo preparado para escrever o relatorio sobre o projecto do divorcio, se dispunha a metter mãos á obra. Chegara a enthusiasmar se pela idéa, achava a coisa muito viavel mesmo sem escandalo (uma vez que o Ministro influisse nos Bispos e os Bispos influissem no resto para se evitar algum movimento prejudicial da padralhada) e tinha pena, devéras, de se achar agora impossibilitado de concluir o trabalho. D'ahi a dois ou tres dias a commissão teria acabado de discutir o projecto, e o Ministro queria fazê-lo passar immediatamente nas Camaras. Era portanto um caso de força maior, uma questão de urgencia. E já tinha combinado com o Ministro que a tarefa viria ter ás minhas mãos. Tivesse eu paciencia e era escusado procurar evasivas. Concluindo, dizia:

«De mais a mais, terás assim bella occasião de prestar um serviço relevante, (d'estes que vão ao Diario do Governo com justos galardões) á nossa muito consideravel e boa amiga D. Claudia. Ella está sobre brazas, pobre senhora! Façamos-lhe a vontade.»

E em post-scriptum:

«Remetto-te tudo quanto cheguei a reunir sobre o divorcio, livros e apontamentos. Afunda-te bem nisso, meu grande mandrião. Meu grande mandrião e meu grande felizardo: porque vaes ter um assumpto para discurso de estreia, como hoje já poucos se encontram. E as galerias, nesse dia, apinhadas de mulheres bonitas, que pedem o divorcio como pão para a bocca, cobrindo te de bençãos, atirando te beijos, mandando-te as moradas!... Arranja-me conclusões de arromba para esse relatorio, ouviste?»

Já então era para mim ponto de fé que D. Claudia, á semelhança do deputado Naquet, queria fazer votar a lei do divorcio para aproveitar-se d'ella, e porventura, como se dizia, contrahir novo matrimonio com o Presidente do Conselho.

Mas que tinha eu com isso? Que me importava a mim que assim fosse? Que duvida poderia eu ter em prestar a D. Claudia esse pequenino serviço de defender o seu projecto nas Camaras? Se eu nem conhecia o marido!

Depois, olhando de mais alto, não era verdade que esse projecto trazia á nossa legislação civil uma bem util e grandiosa reforma? Não era uma sociedade inteira que viria a colher o precioso, saboroso fructo d'essa galharda e fecunda iniciativa do Governo? E não sentia eu mesmo, e bem vibrantemente, que o grito d'essa verdade se repercutia na minha consciencia como o echo de um clamor universal de justiça?

Para que era eu então deputado independente senão para que a minha opinião só reconhecesse a soberania da minha consciencia?!

Portugal, que tão rasoavelmente acompanhava os outros paizes nas modernas applicações da sciencia juridica, não podia ficar-se n'um Codigo que trinta annos antes representava talvez a melhor obra de legislação civilista, mas que já não servia para agora, quando os codigos modernos e as resoluções justas dos Tribunaes tudo aquilatavam segundo a filosofia da razão. Tudo se transformara -- o modo de sentir como o modo de pensar. A' tradição romanista e canonica succedia-se uma orientação mais social e natural, mais livre e humanitaria. E, todavia, essa idéa tão simples e de tanta justiça natural, e tão necessaria á dignidade do matrimonio e á felicidade dos casados, não poderá ser ainda consignada na legislação portuguêsa, quando o divorcio era já uma instituição em quasi todos os paizes do mundo civilisado.

Hoje, era uma necessidade instante, inadiavel. E aproveitando se no nosso Codigo Civil uma certa orientação de tolerancia que nelle havia, e que admittia, a par do casamento religioso o casamento civil, o divorcio continuaria e completaria essa orientação.

Entre os livros que Fausto me remettera para o Hotel, havia um, muito recente, que eu não conhecia ainda e que logo me forneceu um dos melhores, dos mais seguros effeitos do meu relatorio. Era -- O Crime, de Cesar Lombroso, onde todo um substancioso e lucido capitulo de estatisticas comparadas estabelecia a conclusão de que a criminalidade era tenebrosamente maior nas sociedades sob o regimen da simples separação do que naquellas que tão gloriosamente se orgulhavam de já terem o divorcio. E facil me foi estabelecer, em aguilhoada frase, que sendo o divorcio uma questão de moral social, a sua negação levava a muitos crimes.

Conheci, manuseei, revolvi numa noite as legislações de todos os paizes onde, por ordem alfabetica, fui encontrando o divorcio. E encontrei-o na Allemanha, na Austria e na Hungria, na Belgica, na China, na Dinamarca, nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, na Grecia, no Japão, na Noruega, nos Paizes Baixos, nos Paizes Musulmanos, na Russia, na Suecia e na Suissa...

Todos esses allemães, todos esses austriacos, todos esses chinêses, todos esses dinemarquêses, todos esses americanos, todos esses francêses, todos esses gregos, todos esses japonêses, todos esses norueguêses, todos esses hollandêses, todos esses musulmanos, todos esses russos, todos esses suecos e todos esses suissos reconheciam, admittiam, proclamavam que, sendo o casamento um ideal de amor entre dois individuos de sexo differente, devia elle ser em absoluto livre, tão livre e tão espontaneo como era o Amor!

As sociedades atravessavam, porém, um período transitorio e tutelar. O Estado regularisava ainda a constituição da sociedade familiar de modo a evitar as fallencias. Porque na associação familiar, como nas outras associações, a intensidade e a variabilidade da vida traziam a desillusão, e a desillusão, em taes casos, era a fallencia aberta.

O que todos elles teriam querido seria poderem casar e continuar a casar, sem que a sociedade tivesse o direito de intervir na associação do homem e da mulher, e sem outros deveres que não fossem os que só nascem do Amôr e com o Amôr se apagam... Mas isso, que a tradição canonica confundia com a promiscuidade brutal da primeira fase da familia humana, era a suprema idealisação do Amôr livre, era a requintada aspiração da Humanidade, a eternidade no Amôr!

E como a vida, em realidade, não deixara ainda de mostrar que bastas vezes os esposos se illudiam, e não existiam entre elles as afinidades que tinham supposto haver; e como o chamado santuario da familia se transmudava ainda com frequencia num pequenino inferno insuportavel; e como não deixara ainda de haver sogras, nem adulterios, nem incompatibilidade de genios -- o Estado, que regularisara a constituição da familia, e fizera quanto estivera ao seu alcance para garantir o bem-estar dos conjuges, não tendo podido consegui-lo, restituia os associados ao seu anterior estado de liberdade, para poderem constituir novas sociedades, em que os negocios viessem a correr melhor...

Logo que eu recebera a carta do Fausto, incumbindo-me da elaboração do relatorio, fôra procurar o Presidente do Conselho, e com elle tinha tido uma larga conferencia, em que ficara bem assente que eu não teria a preoccupar-me com o supra-naturalismo da Camara.

-- «Sciencia positiva, meu amigo! Muita filosofia social! -- dissera-me o Ministro. -- E deixe...»

Na grata posse d'esta carta branca, e com as costas bem quentes, regalei-me então em atacar o casamento indissoluvel, «ideal da sociedade domestica, conquista preciosa de uma civilisação que traz o cunho dos seculos...»

Todo esse largo trecho, bem adubado de ricas razões, do meu relatorio, eu o lancei dextramente ás folhas de papel, deliciado com o antegoso do seu effeito terrifico no animo das Primas Rochas e das Primas Noronhas, para as quaes seria sempre incompleta a natureza do vinculo, frustrando radícalmente o fim que se almejava, se a união matrimonial se celebrasse a termo ou sob condição... Que o mesmo era suprimir a solidariedade e a intimidade do vinconjugal, a perpetuidade de dois seres numa só natureza (e eu via-as meditarem nisto com os seus olhos inquietos em alvo). Ter-se-ia assim um vinculo méramente provisorio, inteiramente destituido de valor e contheudo ethico!

Ah! Ah! Pois sim, ricas primas, primas domeu cojação... Mas quando acontecesse que algum ou ambos os elementos componentes do organismo familiar, achassem difficuldade em cumprir a missão a que eram destinados (e ahi tinham ellas o General Ayres, por exemplo, marido insufficiente da Maria Demitilia) de modo que a união forçada fosse causa de mal estar para o mesmo, de turbação e desordem para os outros orgãos similares, e até mesmo para o organismo social de que faziam parte? Que me diziam ellas a isso?...

Nada. Pois claro! Nem tinham que dizer. Desde que se observasse uma tal desordem pathologica, uma lei suprema de necessidade social queria que se restituisse a cada uma das moleculas que compunham o organismo soffredor a sua primitiva liberdade, para que podessem entrar em nova união com outra molecula mais adequada e indicada pela força espontanea da attração, e assim dar logar a novos organismos susceptiveis de cumprirem com regularidade a funcção social integrante e reproductora da especie...

E eu deliciava-me, ria sósinho, só com o imaginar as figuras das Rochas e das Noronhas quando tal lessem no Diario das Camaras, que eu já fazia tenção de lhes enviar com sublinhados a lapis azul -- córando todas ellas até á ponta das orelhas com essa historia de desaforadas moleculas descontentes, procurando outras moleculas a que melhor se adequassem, se adaptassem... Como se o casamento podesse vir a ser uma pouca-vergonha de mulheres da Rocha!

Dando uma no cravo, outra na ferradura, eu admittia que o casamento, productor de uma funcção eminentemente social, deveria subsistir sempre que fisiologicamente se ajustasse ao proprio mister. Mas nunca depois que o delicto, a infidelidade, vicios incuraveis, aversão completa e producto invencivel de causas graves e permanentes rompessem a solidariedade do vinculo conjugal, tornando a vida marital uma coisa intoleravel.

Concebido o divorcio como lei de alta moralidade, chegado o momento de estabelecer e justificar as suas causas, em harmonia com o projecto de lei de iniciativa do Governo, eu já sabia onde encontrar, para a minha substanciosa argumentação de relator, a papinha feita. E excluia desde logo o Codigo Napoleonico, que admittia o mutuo consentimento como causa de divorcio -- e alentava a inconstancia, favorecia a ligeireza das propostas, facilitava a especulação dos interesses. Nada d'isso!

Um apontamento do Fausto, com a observação de muito importante ao alto, chamara-me já a attenção para um projecto de lei apresentado na Camara italiana, da iniciativa fervorosa de Salvador Morelli, e moldado nos trabalhos persistentes de Naquet. Esse, e um outro do ministro Villa, tambem italiano, que nem sequer fôra admittido á discussão, eram para mim uma verdadeira mina.

Para obstar a que o divorcio podesse tornar-se o premio de uma culpa, a lei portuguêsa não concederia ao conjuge culpado a faculdade de o pedir.

Quando a separação pessoal dos conjuges e o consequente divorcio tivessem por causa o adulterio de um d'elles, declarado por sentença, o conjuge culpado não poderia contrair casamento com o seu cumplice. Neste caso, o casamento não seria considerado nullo, o conjuge culpado seria condemnado a prisão pelo tempo de tres mezes até um anno; e a nullidade do casamento e a condemnação não se poderiam declarar senão a pedido do conjuge offendido. Isto parecia-me uma disposição de arromba. A parte final, sobretudo, permittindo aos esposos offendidos, mas facilmente reconciliaveis e pacientes, a reparação da offensa por tres mezes de cadeia, (e até um anno para os mais exigentes) e admittindo que depois tudo continuasse como d'antes, era assombrosamente filosofico. E ainda talvez se conseguisse que a pena de prisão podesse ser remivel a dinheiro, o que seria então, como queria o Ministro, verdadeira filosofia positiva!

A vida vagabunda do marido era admittida tambem como causa do divorcio. E era esta a disposição premeditada para condemnar o marido de Claudia, que continuava percorrendo o reino dos Algarves, nas suas interminaveis investigações archeologicas de membro da Commissão dos Monumentos Nacionaes.

A dissolução do casamento não ficaria dependente de mero capricho dos conjuges, mas permittia-se o divorcio sempre que o crime, a infidelidade, a sevicia, a injuria grave, o odio profundo e inextinguivel tornassem legalmente insupportavel a subsistencia do vinculo domestico. Assim o divorcio pacificaria os animos, faria cessar causas de odio, de aversão, de crime; diminuiria o perigo social das uniões illegitimas e dos nascimentos clandestinos; satisfaria á manutenção, á instrucção, á educação da próle; regeneraria, em summa, a nossa familia moderna, corroida e pervertida nas suas raizes mais profundas...

Ao cabo de dois dias e duas noites de trabalho afincado, em que li, ruminei, digeri e assimilei tudo quanto a respeito do divorcio se acumulou no meu quarto do Hotel, por cima da mesa, por cima da commoda, por cima das cadeiras e até por cima da cama, apenas me restava dar uma redação definitiva ao relatorio. Fôra um trabalho violento, quasi ininterrupto, absorvente, febril. O Fausto tinha razão: era assumpto excellente, era assumpto optimo, de bem seguros effeitos. E um momento houve em que me senti envaidecido com as probabilidades de um grande exito, na Camara. Vi recuperado, nessas quarenta e oito horas, ao fim de um pequeno esforço, todo o tempo perdido desde que chegara da Ilha e tomara o meu logar no Parlamento.

O meu ouvido allucinado suppoz ouvir o que diria então, a berrata que faria, o clamoroso triumfo em que iria explodir o Doutor Tarquinio, no Centro Regenerador, na botica do Cunha e no Club, logo que o Portugal, Madeira e Açores, distribuido no caes á chegada do paquete, lhe levasse a boa nova do meu grande exito! Tardava, mas arrecadava.

-- «Dá licença?» -- disse uma voz conhecida no corredor, ao mesmo tempo que uns nós de dedos batiam na porta.

-- «Entre, faça favor!»

Era o Poças, que ha muitos dias ninguem via á mesa do Hotel, nem na Camara, nem na Havaneza. Justamente nessa manhã, a Augusta, a creada, perguntando eu que fim levara o senhor Poças, me tinha dito:

-- «Esteve cá na sexta-feira, de fugida. Veiu encher uma mala de roupa branca, mandou-a por um moço não sei para onde... E ninguem mais o viu.»

-- «Assim é, meu amigo -- dizia-me o Poças com a bocca cheia de satisfação, e uma buliçosa alegria a bailar-lhe nos olhos. -- A minha vida vae entrar, finalmente, numa definitiva e consoladora fase...»

Não era já o Liberato Poças dos meus primeiros tempos do Borges, azedo e desalentado, que eu tinha ali no meu quarto, sentado na minha frente, occupando com regalo o meu unico fauteuil esfarrapado, que eu reservava e offerecia ás visitas. Era um outro Poças -- era uma outra luz, uma outra claridade! E tudo me foi explicado em muito breves palavras: a sua longa ausencia do Hotel, a sua falta na Camara, o seu desapparecimento da Havaneza. Andara em procura de casa, ia pôr casa, já tinha casa. Casava.

-- «... Palavra?!»

-- «Palavra. Está tudo prompto. E' d'aqui a tres dias.»

-- «E a noiva?»

-- «O Amaral conhece-a...»

Tive um sobresalto. Pois seria possivel? Seria com effeito a Margarida Tricana? Oh! Mas fiz-me inteiramente de novas, portei me á altura.

-- «Não posso suppôr quem seja...»

O Poças, intrujado, gosava com demorar a pequenina intriga:

-- «Veja lá se se lembra...»

Recordei-me então de que elle em tempos me falara de um começo de namoro com a Baroneza do Paúl, um distinctissimo estafermo, em São Carlos:

-- «Casa com a Baroneza!»

Elle já nem de tal se lembrava:

-- «Qual Baroneza?»

-- «A Baroneza do Paúl...»

-- «Ora! Ora! Onde isso vae... Coisa melhor, muito melhor, incomparavelmente melhor!»

Ainda fingi um esforço de memoria, d'olho no vago, mordendo um dedo polegar. Mas não havia meio. Decididamente não havia meio.

Poças não se conteve então por mais tempo, descerrou o misterio:

-- «E' a nossa vizinha, senhor! A nossa vizinha ali defronte!»

Emquanto durara este curto dialogo, eu tinha estado perplexo entre a promessa que fizera á Margarida Tricana, de nada revelar do seu passado a Liberato Poças, e o desejo, que um murmurio de consciencia inquietava, de tudo lhe revelar. Deveria dizer? Não deveria dizer? Mas no momento em que elle, tão contente, me declarava quem era a noiva, eu entendia que, afinal, não deveria dizer-lh'o. E o que apenas disse foi isto:

-- «Bravo! Sim senhor... A julgar pelas apparencias, é caso para muitos parabens. -- Depois accrescentei, lisongeando-lhe o bom dedo: -- E parece-me bem que neste caso as apparencias não enganam...»

-- «Tambem me parece...» -- disse elle.

Já de pé, não podendo demorar-se, e cumprindo aquelle dever -- pois não esquecera o Poças quanto mau humor eu lhe tinha aturado por causa d'aquelle namoro que ia ter agora o seu desejado remate -- Poças interessou-se por esse excesso de trabalho em que julgava ter vindo desastradamente interromper-me. Contei lhe então o que se tinha passado, a gripe de Fausto, a pressa do Ministro, as linhas geraes do relatorio.

Elle andava alheio a tudo isso, não sabia nada d'isso. E, o que era mais, eu percebi que elle não se importava absolutamente nada com isso.

Por brincadeira, ainda lhe disse:

-- «Se o meu amigo deseja que se introduza no projecto de lei alguma disposição que lhe convenha, agora que está para casar... Ainda estamos a tempo. E' só dizer! Bem sabe que as leis, em Portugal, sempre se fazem á vontade dos amigos, e para servir os amigos...»

Poças sorria jubilosamente:

-- «Assim é, assim é! Mas eu não preciso. -- E estendendo-me a mão, muito apertada na luva côr de sangue de boi: -- Em todo o caso, muito obrigado, como se acceitasse...»

Fóra da porta, no corredor, ainda teimei, mais risonho:

-- «Veja lá... Não faça cerimonia. Que mais não seja senão como medida preventiva...»

Elle já ia descendo a escada, nos primeiros degraus, quando um hospede novo, que ainda nós não conheciamos, vinha subindo, em chinelas, depois do jantar das cinco, palitando os dentes. Póças esperou um momento, deu-lhe tempo de subir, e logo que o outro voltou costas, sumindo-se para cima, baixou a voz e considerou:

-- «Quem casa, meu amigo, nunca pensou em divorcio nas vesperas do casamento!»

A' semelhança do investigador de bacterias, que se fechou por dentro no seu laboratorio, e na ancia de saber se afundou no estudo e laborou nas experiencias; e na busca de um temeroso bacillus se picou e inoculou em si o virus do mal que queria evitar aos outros; tanto eu me afundei, mexi e remexi na questão do casamento (que era o grande mal, tal como elle se achava ainda, indissoluvel) que não tardei a sentir, a observar em mim a apparição successiva de todos os signaes de quem já trazia comsigo, assolapado e recondito, o bacillus temeroso.

Era o divorcio uma grande, uma bella, uma humanitária idéa. Mas era o casamento, tal como o sonhavam e o queriam os seus mais fervorosos e vehementes partidarios, uma idéa menos bella? Não era o casamento uma concepção bem clara da felicidade na terra, quando se imaginasse o casamento o encontro natural de dois entes que se identificaram na observação um do outro e que unem os seus destinos, e põem em commum o melhor do seu coração, a intimidade da alma e da carne, pactuando uma alliança que os acolcheta para a alegria e para a adversidade, para o prazer e para a dôr, para a vida e para a morte? Não seria esta a maior, a mais clara, a mais luminosa verdade humana?

Casar no ar, casar só por casar, casar por curiosidade, casar por impulso apenas sexual ou calculado interesse; casar para fugir á condição inquietante da vida que se tenha; casar á ventura, casar para outro fim que não seja o do casamento por amôr -- não! Casar como em geral se casa, quando se não attendeu a que o casamento é uma tão decisiva provação, nem á perturbação que elle exerce na alma de uma mulher, nem se presupoz o que poderão produzir as mutuas reacções dos caracteres, dos gostos, dos sentimentos, das opiniões; casar ao fim de um curto namoro de janella, na missa e no theatro, pelo telefone, por cartas e nos annuncios do Diario Illustrado, em cifra -- não! mil vezes não!

Mas casar depois que tudo bem se pesou, se avaliou, se preveniu, rodeando o casamento de todas as possiveis garantias; casar sem que apenas baste o consentimento dos dois conjuges, casar não apenas segundo a doutrina juridica da Egreja, e segundo o Codigo, mas casar tornando o casamento outra coisa mais alta que a cerimonia religiosa, um contracto civil, uma associação com estatuto; casar só depois de bem attentar no rifão: «Antes que cases vê o que fazes» -- e só depois que ambos, elle e ella, mutuamente se sujeitaram a todas as provas admissiveis, deliberando juntar-se por fim, e pondo nessa deliberação o proposito firme, sereno, irreductivel, inabalavel, de não admittirem nunca uma causa, nem sequer uma probabilidade de arrependimento ou desquite; casar por amor, em summa, mas o amor alto, o amor quanto possivel idealisado, o amor que quer dignidade, que quer bom senso, que quer respeito, que quer recato, que quer santidade -- isso sim! Isso sim... E sendo assim, podendo ser assim, que bella coisa o casar!

E assim pensando, eu ascendi, pela mão fina e tremula de Clarinha, a essa solida serenidade que nasce da justa e firme percepção das coisas...

Humano e são, eu tive o sentimento instinctivo das qualidades que me seria necessario encontrar na mulher que houvesse de escolher para «minha mulher». E foi na doce atmosfera da sua intimidade, sob a temperatura branda do seu affecto, acarinhado pelo delicado, subtil cuidado com que ella encetou e encaminhou até ao fim essa sua tarefa de suave jardinagem, que irrompeu, enfolhou, floriu, vicejou em mim esse sentimento.

Senti-me talhado para as doces alegrias do matrimonio e do lar. Tive uma outra concepção, muito diversa, do amôr, da dignidade, da vida. O casamento era, de certo, uma arrojada empreza, e muito embora tivesse, como todas as emprezas, o seu caderno de encargos, Clarinha estimulava-me para esse arrojo, mostrando-me bem, dentro do nosso caso, quão agradavel seria para mim (segundo esse caderno) a maior responsabilidade que ao marido cabe: a responsabilidade de uma grande parte da educação da mulher -- a educação da esposa -- pertencendo a elle, só a elle, modelar a seu grado, formar segundo a sua idéa, elevar á dignidade dos seus sentimentos esse novo coração e esse novo espirito... Ella tudo via, ella tudo julgava; e as suas maneiras de ver e de julgar, contrabalançando no meu espirito os arrebatamentos e os dispauterios da mãe, pouco a pouco desvaneceram, tornaram bruxuleante, apagaram em mim, a seu respeito, o preconceito da hereditariedade.

Se o casamento era um abismo, eu achei-me, sem a mais leve sombra de receio, á borda d'esse abismo, até onde chegara sem o suspeitar, com os olhos fitos naquella pequenina estrella de felicidade que illuminava o meu caminho!

IX

A Divina Providencia, sob cujos auspicios o Discurso da Corôa collocara a obra governamental durante aquella sessão legislativa, não tendo até ahi intervindo em nenhum voto das duas Camaras, nem numa só das deliberações ministeriaes, entendera chegado o momento de tomar em consideração o appello que tão solemnemente lhe fôra dirigido no dia 2 de Janeiro, e para tal fim se incarnara e disfarçara, por um suave milagre, na humilde pessoa do Meleças, a quem D. Claudia falara nestes termos:

-- «Eu preciso possuir uma flagrante prova de que o Presidente do Conselho tem relações muito intimas com a mulher d'esse alto funccionario de que fala hoje o Phantasma. Trate de arranjar isso com urgencia. Deve saber que eu não fico a dever os bons serviços que me prestem...»

Meleças pozera em acção todas as suas inestimaveis faculdades de reporter, instruira convenientemente a sua policia secreta, estendera a uma grande área os seus imperceptiveis fios de informação como os fios de uma teia imperceptivel, e tudo isso por tal modo que, breves dias decorridos, elle sabia dar noticia de quantos passos fazia o Presidente do Conselho desde que sahia de casa até que voltava a entrar em casa para não tornar a sahir. E no dia em que não lhe restava a menor duvida sobre o caso escandaloso que quizera averiguar, Meleças apresentou-se, offegante, na Rua do Salitre.

-- «Trago-lhe a verdade, senhora D. Claudia! A pura verdade, como a não chegou a encontrar Diogenes...»

-- «O que averiguou então? Que passos deu?» -- quizera elle saber, numa viva ancia.

-- «O verdadeiro reporter, minha senhora, tem uma divisa que lhe prohibe revelar os passos que deu para conseguir os seus fins... Não digas como... é a nossa divisa. Se assim não fosse, nunca nós teriamos chegado á perfeição a que chega hoje a reportagem em Portugal, para que quando um ministro queira, por exemplo, fazer o elogio dos seus proprios actos, ou descompôr em lettra redonda alguns dos seus collegas de gabinete, chame o reporter e lhe dite, palavra por palavra, o artigo que no dia seguinte apparece nos jornaes...»

-- «Bem. Adeante!»

-- «Todos os ministros têm os seus defeitos... Um ministro é um homem -- e um gato é um bicho! O nosso Presidente do Conselho tem o fraco das mulheres. Tudo aquillo nelle é molestia... O que elle quer é variedade. Engano d'alma! As mudanças no amôr são como as mudanças de casa: de cada vez que se muda, sempre se quebra alguma coisa.»

Mas D. Claudia estava sobre brazas, e queria as provas, as provas!

-- «A grande prova -- disséra então Meleças -- eu só posso fornecê-la se Vossa Excellencia quizer assistir a um encontro do Presidente do Conselho com a adultera!»

-- «E como será isso possivel?»

-- «Muito simplesmente. Diga só Vossa Excellencia se assim o quer...»

Ella não hesitara um instante. Dissera logo que sim. E Meleças, mexendo-se e remexendo-se dentro d'aquella intriga como uma barata no fundo d'uma bacia, pozera D. Claudia em relações com Antonieta, em casa de quem o Presidente do Conselho se encontrava com a sua nova amante. D. Claudia entrara, levianamente, em pleno dia, apenas disfarçada numa toilette de luto rigoroso, cobrindo-lhe o rosto um espesso véo de viuva, em casa de Antonieta!

Ah! que se o Chico do Patrocinio a visse nesse momento, e podesse reconhecê-la sob aquelle disfarce!...

A uma grande distancia de datas, o acaso collocara aquelle mesmo homem -- que era hoje o primeiro Ministro -- no caminho d'essas duas mulheres. Muito antes que elle houvesse entrado nas relações de Claudia, havia sido das mais intimas relações de Antonieta, desfructando, quanto podera, o capricho amorudo em que ella o envolvera. A esse tempo, já Antonieta não era rapariga, e ainda elle andava na Escola Polytechnica. Por sua causa ella arruinara-se, arruinara um recebedor do 3.° Bairro, e teria arruinado todo o 3.° Bairro, se isso possivel fosse. Empenhara-se, para o vêr sempre bem vestido, bem calçado, bem contente! E o garoto atraiçoava-a. Uma madrugada, andando já com a pedra no sapato, e como elle não lhe apparecesse em casa, Antonieta saltara da cama, mettera-se numa tipoia, e gritara ao cocheiro:

-- «Bate para o Dáfundo!»

Chega ao Dáfundo e, seu dito seu feito: estava o tratante abancado, em grande regabófe de coelho á caçadora e muita vinhaça, com duas hespanholas do Arco do Bandeira. Quanto ella se ralara e quanto emagrecera! Até cahira doente. Depois o tempo, que tudo cura, curara-a. Mas tinha-lhe jurado uma desforra! Tinha-lhe dado «sua palavra de honra»... Era o momento de cumprir.

E a desforra seria tremenda.

O Ministro chegara a esse ponto em que o amôr começa a não querer correr aventuras, e procura já o socego e a segurança no prazer, resolvera pensar a sério em casar-se. Claudia era ainda, e sempre, a sua grande preoccupação. Na lucta que travara, e tão tenazmente sustentara para a possuir, como tinha possuido tantas outras, sentia-se já vencido, dispunha-se a entregar-se. E resolvera, emfim, fazer votar a lei do divorcio, para que Claudia, liberta, podesse ser sua mulher.

Agora, era uma coisa decidida. Tudo estava preparado. Em poucos dias seria votado o projecto. E elle despedia-se, á pressa, e sem saudade, da sua vida romanesca de solteirão, marcava as ultimas entrevistas ás suas tres duzias de amantes, de que falava o Phantasma com commentarios eroticos.

Dera uma d'essas entrevistas em casa de Antonieta, no dia em que Claudia ali devia ir. E Claudia vira-o enlaçar nos seus braços fortes de transmontano a mulher do Conselheiro Araujo, aquella perola da Isabelinha Araujo, que desde as Salesas era a grande, a maior, a amiga mais intima de Claudia, e que Claudia fizera eleger secretária perpetua da sua Liga Feminista!

Mas uma coisa só ha que se compare á intensidade de emoção com que uma mulher chega a amar o homem que ella suppoz ser-lhe organicamiente necessario, aquelle que ella idealisou capaz de completá-la, e a quem sacrificou ou teria sacrificado, com todo o seu amor, toda a sua vontade e todo o seu raciocinio: é essa celeridade com que essa mesma mulher esquece aquillo que para ella, e num dado momento, foi tudo.

Serenada a crise violenta de despeito que a tomou na constatação d'aquella prova irrecusavel, Claudia pensava:

-- «E muito singular, tudo isto! Mas o que era então que me impellia para esse homem, e me trazia presa d'essa obcessão? Era tudo isto apenas uma questão de temperamento? E pode assim o temperamento illudir-nos, a ponto de nos convencer de que uma grande parte do que sentimos se passa no nosso coração? Depois, num momento, num repente, todo este desprendimento! Como se nada fosse...»

Foi nesta excellente opportunidade que eu, ignorando ainda, e absolutamente, tão imprevistas peripecias, e tendo resolvido romper com embaraços e hesitações, bem decidido a definir uma situação que me preoccupava devéras, ousadamente falei a D. Claudia.

Era o dia dos annos de Clarinha. Desenove annos. Mil parabens! E d'essa vez, como todos os annos, era dia de festa na Rua do Salitre.

Emquanto estivera no Collegio de Bemfica, ella tinha vindo sempre passar esse dia em casa e a sua vinda abria um parenthese de tregua, ajustava um grato armisticio entre o pae e a mãe belligerantes. Mas d'esta vez o papá faltava, pela primeira vez. Grande pezar, grande tristeza, no meio d'aquelle Algarve como no meio d'uma Africa, em dia de tanta e tão querida festa! lamentava elle, em carta recebida cá, na vespera. O dever, porém, acima de tudo! a patria acima de familia! E elle bem sabia que a patria o contemplava, nesse momento em que elle honrava a patria, a pé firme e ao sol, no alto d'um descampado até onde o tinha conduzido o fio d'uma recente investigação, dirigindo elle mesmo as escavações pacientes, chegando elle mesmo a revolver, com os dedos experimentados no tactear archeologico, a terra que parecia incandescente, como se cobrisse numa delgada camada a propria cupula do Inferno! Estava-se na força do verão. «Tivémos hoje, aqui, quarenta graus de calor á sombra!» dizia elle no fim da carta. E um pingo de suor, desprendido da sua testa esbrazeada, caindo sobre a escripta, diluira e espapaçara no papel a tinta d'estas ultimas palavras.

Vinham á noite todos os amigos da casa e alguns amigos do Governo. Viria tambem, a instancias de Clarinha, o poeta Chico do Patrocinio, que se achava muito penhorado e promettera alguma coisa de inédito para essa festa.

Mas ao jantar, de fora, seriamos apenas quatro pessoas: o Presidente do Conselho, o Fausto e a mulher, e eu. E fui eu o primeiro a chegar.

Clarinha, por mim prevenida, deixou me só com a mãe. Não havia tempo a perder. Disse tudo.

-- «Senhora D. Claudia... Vossa Excellencia quer, em seu proveito, fazer-me o favor de acreditar na sinceridade de alguma coisa grave que eu tenha a dizer-lhe?

-- «Porque não?»

-- «E consente que eu lhe diga tudo o que tenho a dizer como poderia consentir que lh'o dissesse um verdadeiro amigo?»

-- «Consinto, o senhor Amaral bem sabe que o considero meu verdadeiro amigo.»

Não foi preciso mais nada. Apontei, disparei.

-- «O seu procedimento, minha senhora, que Vossa Excellencia não soube encobrir, como talvez devesse ter feito, nessa malfadada questão do divorcio, não podia passar-me desapercebido, ainda mesmo que eu assim o tivesse desejado...»

-- «E vê o senhor nisso, porventura, algum sentimento condemnavel?»

-- «Não, minha senhora, pelo contrario. Admiro-a. Mas o meu fim é outro. Agora, que Vossa Excellencia vae readquirir a sua inteira liberdade de mulher, é ao seu coração de mãe que falo...»

Claudia cahia, pouco a pouco, num grande abatimento, os braços quebrados estendidos sobre os braçus longos do fauteuil, os olhos baixos e fixos no desenho polichromo do tapete persa. E apenas murmurou:

-- «Diga... Diga o que quizer...»

Achei mole, carreguei:

-- «Sua filha, minha senhora, apesar de muito nova e inexperiente, não é já tão creança que ignore o verdadeiro destino de todas as mulheres. Não sei porquê, entendeu ella que eu seria capaz de apreciar e guardar algumas das suas confidencias, e pôz me ao corrente de todas as suas maguas, que não podem ser muitas, bem de vêr, mas que nem por isso deixam de merecer-me o cuidado de lhes procurar algum remedio... A intelligencia d'essa menina é uma intelligencia precoce, e o seu raciocinio não briga, por modo algum, com a sua intelligencia. D'aqui a impossibilidade, com que tive de luctar, para a persuadir de alguma coisa bem opposta a esta convicção, muito nitida, em que ella vive: a convicção de que se nenhum homem, dos muitos que a têm conhecido na boa sociedade que frequenta, se atreveu ainda a falar-lhe de casamento, é porque alguma razão muito poderosa os afasta, um preconceito os afugenta...»

Vi-a estremecer, num anceio.

-- «E essa razão?... perguntou.

-- «...Essa razão, minha senhora, quanto a ella e quanto a mim, é a errada interpretação que se chegou a dar aos mais insignificantes actos da vida de Vossa Excellencia!»

Claudia endireitou-se no fauteuil, encarou-me bem, levantou a voz, muito excitada:

-- «E qual a minha culpa?!»

-- «Eu não accuso Vossa Excellencia. Nem accuso, nem defendo. Quem a accusa é toda a gente; quem a defende é sua propria filha. E eu apenas me julgo na obrigação de pedir a Vossa Excellencia que cuide de destruir o erro da accusação e mostre a justiça da defeza.»

-- «E crê o senhor que essa liberdade de acção que eu tratava de obter não fosse o unico remedio?»

-- «Com certeza. O que Vossa Excellencia tem tomado como remedio é precisamente o veneno. Mas ainda estamos a tempo de tudo evitar...»

-- «E Clarinha?»

-- «O futuro da senhora D. Clara está neste momento dependendo, por um fio, um tenuissimo fio, da resolução de Vossa Excellencia...»

-- «Neste momento?!»

-- «Neste momento! Vossa Excellencia tem deante de si alguem que, em boa consciencia, sabe que nenhum perigo real existiria para a felicidade do homem que desposasse a senhora D. Clara, se sua mãe persistisse em aproveitar-se da lei do divorcio e contrahir outro casamento, mas alguem que ainda é bastante timido para tambem se deixar vencer pelo preconceito...»

Como em lance decisivo de bem urdida comedia, um vulto branco entrou e illuminou toda a sala d'uma clara e suavissima luz. Era Clarinha toda vestida de cassa branca, fina e vaporosa, infinitamente linda aos meus olhos enamorados.

Calei-me. E ouvi então, mal acreditando o que ouvia, D. Claudia dizer:

-- «Vieste muito a tempo, Clarinha... O senhor Amaral tinha acabado de me pedir a tua mão...»

Clarinha, num salto, deitou-lhe os braços ao pescoço, soluçando. E eu vi os olhos de Claudia arrazarem-se de agua.

X

«... Castevaes, Anadeis,

Infançoens, nédios Bispos, Menestreis,

almafres, cetras, balsas, alfarazes,

cavalleiros marcados de gilvazes!

O' fulgido preterito!

Hoje. Irra! Iridia Rua da Irrisão!

Esqualida e clownica procissão,

torpe bando de só brandos dandys pandos,

bebados de brandys, liquidos nefandos,

alcatea surrada de mancipios,

consciencias sem fé e sem principios.

Vejo-os passar sob o docel dos Astros,

vil, asthenica próle d'esses Castros,

parvulos fructos pêcos,

de inclitos Albuquerques e Pachecos...

E no Meu Peito, safaro calvario,

só cresce um cardeo lirio solitario:

A Saudade! a Saudade!

A incongrua Saudade d'Outra Edade…»

Quando o Chico do Patrocinio, alisando para trás com a mão tremula a guedelha, que se lhe desconcertara na vehemencia da recitação, disse o ultimo d'aquelles extraordinarios versos que nos trouxera do seu novo livro inédito, e uma vibrante salva de palmas estrugiu, Fausto perguntou:

-- «Que titulo dás tu ao poema?»

-- «A Rua do Oiro!» noticiou o Chico.

Fausto não percebia, ou fingia não perceber, para melhor desfructar o chefe da escola nefelibata, e repontava:

-- «Mas que tem que vêr a Rua do Oiro com isso?»

-- «Ora o que tem! Pois não comprehendes? E' um simbolo... E' o poema da ficção: a ficção do Amôr, a ficção do Talento, a ficção do Luxo, a ficção da Honra... Tudo o que luz, mas que não é oiro!»

Depois, sobre esta frase do meu poeta, a minha vida entrou, precipitadamente, num capitulo novo de boa e de corrente prosa.

Ao mesmo tempo que D. Claudia declarava ao Ministro desistir do empenho que tivera em fazer votar a lei do divorcio, o marido morria subitamente, no Algarve. E D. Claudia -- minha sogra -- exonerada, a seu pedido, da presidencia da Liga Feminista, retirada da Politica, serenada de nervos, e conservando-se viuva vae em tres annos, a um e um tem quebrado os dentes, agudos e esverdeados, que a calumnia lhe arreganhou um dia. Vendeu a casa da Rua do Salitre, deixou Lisboa, e aqui está hoje comnosco, na Ilha.

Quando, do escaler que nos trazia de bordo do Açor, bem picado de remos, me foi possivel reconhecer as pessoas que sobre a ponta do Caes aguardavam a nossa chegada, avistei logo, á frente, como uma filarmonica, as Primas Rochas e as Primas Noronhas, com o Primo Theodosio, esbracejando e regosijando. Sumptuosa de plumas brancas e vidrilhos, a fronte alta, protocollar, da Tia Maria da Assumpção Carneiro de Amarante, sobresaía do grupo, um pouco atrás. E a seu lado, irradiando jubilo, os oculos de oiro do Doutor Tristão coruscavam.

Amigos politicos -- nem um! Ainda bem! Eu bem sabia que, para os ter, era necessario creá-los. E eu não soubera creá los. A unica coisa que tinha pedido com empenho, e que conseguira, fôra a nomeação de Thedosio para a bibliotheca do Liceu. Trazia-lhe o decreto. E logo elle, em paga, me dava a noticia de que Tarquinio, o terrivel, definitivamente arrazado pela diabetes, tinha recebido os ultimos sacramentos nessa madrugada.

-- «Já não deve pertencer ao numero dos vivos!» ajuntou o Doutor Tristão, que lá tinha ido a casa, a uma junta.

Tia Genoveva, essa, não tinha vindo ao Gaes. Esperava-nos em casa, sobre o patamar da nossa larga e puida escada de pedra, na olorosa simplicidade do seu avental branco e dos seus bandós, enternecida e tremula, emquanto a Conceição Velha e a Gertrudes Gaga, atabalhoadas de contentamento, vinham abaixo para ajudar o Manoel Ignacio a subir as malas de mão, as caixas de chapeus, os embrulhos...

O unico desgosto que tenho tido depois que casei começa a dissipar-se agora, como nevoa que pouco a pouco se funde numa aurora, em uma suave, inexprimivel alegria. Clarinha sente-se gravida. Já não ha duvida. Mas custou! Estavamos casados ha dois annos...

Se fôr uma rapariguinha, ha-de chamar-se Genoveva.


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TextGrid Repository (2023). Portuguese ELTeC Novel Corpus (ELTeC-por). A rua do oiro: Edição para o ELTeC. A rua do oiro: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001D-44BA-3