BIBLIOTHECA ESCOLHIDA

XXIII

ROMANCE

III

A MORGADINHA DOS CANNAVIAES

Vol. I

CENTRO TIPOGRAFICO COLONIAL

LARGO BORDALO PINHEIRO, 27 E 28

TELEPHONE 2337

JULIO DINIZ

A MORGADINHA DOS CANNAVIAES

(CHRONICA DA ALDEIA)

DECIMA-SETIMA EDIÇÃO

LISBOA

J. RODRIGUES & C.a, EDITORES

186--Rua Aurea--188

1920

I

Ao cair de uma tarde de dezembro, de sincero e genuino dezembro, chuvoso, frio, açoutado do sul e sem contrafeitos sorrisos de primavera, subiam dois viandantes a encosta de um monte por a estreita e sinuosa vereda, que pretenciosamente gosava das honras de estrada, á falta de competidora, em que melhor coubessem.

Era nos extremos do Minho e onde esta risonha e feracissima provincia começa já a resentir-se, senão ainda nos valles e planuras, nos visos dos outeiros pelo menos, da vizinhança de sua irmã, a alpestre e severa Traz-os-Montes.

O sitio, n'aquelle ponto, tinha o aspecto solitario, melancolico, e, n'essa tarde, quasi sinistro. D'alli a qualquer povoação importante, e com nome em carta corographica, estendiam-se milhas de pouco transitaveis caminhos. Vestigios de existencia humana raro se encontravam. Só de longe em longe, a choça do pegureiro ou a cabana do rachador, mas estas tão ermas e desamparadas, que mais entristeciam do que a absoluta solidão.

Não se moviam em perfeita igualdade de condições os dois viandantes, que dissemos.

Um, o mais moço e pela apparencia o de mais grada posição social, era transportado n'um pouco esculptural, mas possante muar, de inquietas orelhas, musculos de marmore e articulações fieis; o outro seguia a pé, ao lado d'elle, competindo, nas grandes passadas que devoravam o caminho, com a quadrupedante alimaria, cujos brios, além d'isso, excitava por estimulos menos brandos do que os da simples e nobre emulação.

Contra o que seria plausivel esperar d'este desigual processo de transporte, dos dois o menos extenuado e impaciente com as longuras e fadigas da jornada não se pode dizer que fôsse o cavalleiro.

A postura de abatimento que lhe tomára o corpo, o olhar melancolico, fito nas orelhas do macho, a indifferença, a taciturnidade ou o manifesto mau humor, que nem as bellezas e accidentes da paizagem natural conseguiam já desvanecer, o obstinado silencio que apenas de quando em quando interrompia com uma phrase curta mas energica, com uma pergunta impaciente sobre o termo da jornada, contrastavam com a viveza de gestos e desempenado jôgo de membros do pedestre, com a sua torrencial verbosidade, a que não oppunha diques, e com as joviaes cantigas e minuciosas informações a respeito de tudo, por meio das quaes se encarregava de entreter e ao mesmo tempo instruir o seu sorumbatico companheiro.

Explica-se bem esta differença, dizendo que o cavalleiro era um elegante rapaz de Lisboa, que fazia então a sua primeira jornada, e o outro um almocreve de profissão.

O leitor provavelmente ha de ter jornadeado alguma vez; sabe portanto que o grato e quasi voluptuoso alvoroço, com que se concebe e planisa qualquer projecto de viagem, assim como a suave recordação que d'ella guardamos depois, são coisas de incomparavelmente muito maiores delicias, do que as impressões experimentadas no proprio momento de nos vermos errantes em plena estrada ou pernoitando nas estalagens, e mórmente nas classicas estalagens das nossas provincias. As pequenas impertinencias, em que se não pensa antes, que se esquecem depois, ou que a saudade consegue até dourar e poetisar a seu modo; esses microscopicos martyrios, que de longe não avultam, actuam-nos, na occasião, a ponto de nos inhabilitar para o gôso do que é realmente bello. A dureza do colchão, em que se dorme, do albardão ou selim sobre que se monta, o tempêro ou destempêro do heteróclito cozinhado com que se enche o estomago, a lama que nos encrusta até os cabellos, o pó que se nos insinua até os pulmões, o frio que nos inteiriça os membros, o sol que nos congestiona o cerebro, tudo então nos desafina o espirito, que traziamos na tensão necessaria para vibrar perante as maravilhas da natureza ou da arte.

Só pelo preço de muitas jornadas se compra o habito de ficar impassivel no meio dos episodios d'estas pequenas odyssêas, que atormentam e exhaurem o animo dos Ulysses novatos; mas ai, quando se adquire esse habito, tambem nos achamos já com a sensibilidade mais embotada para as commoções do bello.

Examina-se com mais minuciosidade, mas com menos enthusiasmo; analysa-se mais e melhor; porém a propria analyse é a prova de que se sente menos. Onde domina o sentimento e a imaginação, mal teem cabida a paciencia e phleúgma, necessarias aos processos analyticos. O homem positivo e frio recolhe de qualquer excursão á patria com a carteira cheia de apontamentos; o enthusiasta e poeta nem uma data regista. Viu menos, sentiu mais.

Mas Henrique de Souzellas―que era este o nome do cavalleiro―fôra educado e passado da infancia á plena juventude, em Lisboa, levantando-se por avançada manhã, frequentando o theatro, o Gremio, as camaras, parolando no Chiado ou no Rocio, e indo alguns dias no anno a Cintra, ou qualquer praia de banhos, desenfadar-se da monotonia da capital.

Desde que fazia perfeito e consciente uso da razão, fôra esta jornada, em que o encontramos, a primeira levada a effeito, e logo sob tão maus auspicios, que era para suffocar-lhe á nascença os instinctos de touriste, se porventura quizessem despertar n'elle.

Havia dois dias que cavalgava aquelle rocinante, unico vehiculo accommodado aos caminhos por que passára. E então que dois dias! D'aquelles, durante os quaes o céo, uniformemente pardo, parece desfazer-se em agua, e a chuva cae sem interrupção e com uma teimosia e constancia impacientadoras; d'aquelles em que a terra saciada rejeita já a agua que recebe, a qual escorre nos declives, transborda dos algares, e encharca-se nos terrenos baixos, transformando em brejos as lezirias; em que as lufadas do sul vergam e torcem os ramos, melancolicamente despidos, dos álamos e sobreiros, e emprestam aos pinheiraes a voz dos mares; em que os campos se mostram desertos, a noite se anticipa, e tão densas nuvens cobrem o firmamento, que parece tomar-nos a persuasão de que nunca mais o veremos com as suas formosas vestes de azul.

Vejam se, n'estas circumstancias, o pobre rapaz podia deixar de ir cabisbaixo, triste e dando ao diabo a viagem que commettera.

E para quê e por quê a commettera elle assim?

Em poucas palavras procuraremos satisfazer a natural interrogação, que é de suppôr nos dirigissem os leitores, se podessem fazel-o.

Este Henrique de Souzellas attingira a idade dos vinte e sete annos, vivendo, como dissémos, aquella enlanguescedora vida da capital, e dividindo as attenções do espiri Este Henrique de Souzellas attingira a idade dos vinte e sete annos, vivendo, como dissémos, aquella enlanguescedora vida da capital, e dividindo as attenções do espirito pela politica, pela litteratura e pelos destinos do theatro de S. Carlos, do qual estava habilitado a fazer circumstanciada chronica, que abrangesse os ultimos dez annos.

Não concebia vida fóra d'aquillo.

O mundo para elle era Lisboa. Não sentia desejos, nem imaginava possibilidade de visitar a Europa, quanto mais a provincia; o que seria maior façanha.

Não que lhe faltassem recursos para realisar qualquer projecto d'esta natureza.

Henrique herdára dos paes rendimentos bastantes, dos quaes vivia folgadamente e sem precisar de sacrificar nos altares da economia.

Mas a indolencia lisbonense manietava-o alli. A poucos ia tão direita a apostrophe de Garrett aos seus «queridos alfacinhas», a qual se pode ler no livro setimo das Viagens.

De certo tempo em deante começou, porém, a incommodal-o uma especie de vácuo interior, um mal-estar, doença infallivel nos celibatarios sem familia, quando chegam á idade a que chegou Henrique, e passam a vida como elle.

Tudo lhe causava fastio. Bocejava em S. Carlos, bocejava nas camaras, bocejava no Gremio, bocejava no Suisso, no Chiado e nos circulos dos seus amigos, os quaes principiaram tambem a achal-o insupportavel de insipidez; porque poucas coisas ha que mais perturbem o espirito, do que o espectaculo d'um homem que boceja ou dorme, onde e quando os outros forcejam por divertir-se.

O demonio da hypocondria, esse demonio negro e lugubre, implacavel verdugo dos ociosos e egoistas, o qual havia muito o espiava, apoderou-se d'elle em corpo e alma.

Ahi temos, desde esse instante, Henrique muito preoccupado com a sua pessoa, imaginando-se victima de mil e uma molestias, as mais disparatadas e incompativeis, suspeitando-se conjunctamente predestinado para a apoplexia e para a phtisica, para o cancro e para a alienação, para a cegueira e para as aneurismas, tremendo á leitura do obituario da semana, folheando livros de medicina, construindo theorias physiologicas, consultando todos os medicos da capital, experimentando todo o arsenal pharmaceutico e todos os annuncios, em parangona, da quarta pagina dos periodicos, e elevando as crenças do seu espirito amedrontado até ás mysteriosas e nevoentas alturas do credo homoepathico! Ao mesmo tempo manifestou-se n'elle uma progressiva degeneração de gôsto; não podia ler uma pagina dos livros que lhe eram predilectos; desfazia-se sem desgôsto de quadros, móveis, estatuas e objectos curiosos que colleccionára com paixão; detestava a musica, o theatro, n'uma palavra, tornára-se um dos maiores flagellos, que podem pesar sobre a humanidade e que muito em especial causam o supplicio dos medicos que os aturam.

Foram estes os que, em parte de boa fé, em parte com o desculpavel intuito de sacudirem de si tal pesadelo, lhe deram um dia de conselho, que fôsse viajar.

Henrique de Souzellas julgou ouvir uma heresia n'esta palavra: viajar.

Viajar? E as suas aneurismas? E as suas imminencias apopleticas? E as suas disposições para tantas outras enfermidades? Pois um homem pode lá viajar com esta bagagem pathologica?

E se lhe désse alguma coisa pelo caminho? Recusou com mau humor a receita, e ficou na capital.

Exacerbaram-se os padecimentos, repetiram-se as consultas, e os medicos, como se para isso apostados, a insistirem em que saisse de Lisboa.

―O senhor não tem nada―diziam alguns.

Henrique perdia a cabeça, ao ouvir isto.

Prolongou-se este estado de coisas, até que um dia o hypocondriaco rapaz persuadiu-se muito sériamente de que estava chegada a sua hora extrema.

Um medico velho e grave, que por essa occasião o escutou, em vez de se rir d'elle, disse-lhe, muito sisudo:

―Homem! O senhor está realmente mal. Esse estado de imaginação não pode prolongar-se mais tempo, sem romper por ahi em alguma doença que o sacrifique. Se quizer salvar-se, saia-me d'aqui, emquanto é tempo. Quebre por todos os habitos, e escolha entre as fortes impressões de uma grande capital, como Paris ou Londres, ou as mornas sensações de um completo viver de aldeia. Os revulsivos e os emollientes curam por meios oppostos ás vezes as mesmas molestias.

Ora succedeu que n'esse mesmo dia recebesse Henrique um presente de fructa de uma sua tia, santa creatura que elle, desde creança, não tornára a vêr.

Vivia regalada em uma aldeia sertaneja do Minho onde na idade de cinco annos Henrique passára alguns mezes na companhia de sua mãe.

Aquelle presente frugal recordára-lhe esse tempo, já meio apagado na memoria, e conseguira fazer-lhe saudades. D'ahi uns vagos desejos de voltar a vêr aquelles sitios.

Por isso ao ouvir o conselho do doutor, Henrique nomeou-lhe a aldeia, em que esta sua parenta vivia.

O velho facultativo applaudiu a ideia e instou para que fôsse abraçada.

O sobrinho escreveu então á tia, e, passados dias, punha-se a caminho.

Mil vezes se arrependeu, depois da resolução tomada; mil vezes mandou ao diabo o conselho do medico e phantasiou horriveis exacerbações em todos os seus males. Os inconvenientes de uma jornada, feita ainda segundo os velhos processos, com malas, coldres e pistolas, botas de montar e almocreve, ampliava-lh'os a proporções estupendas, o prisma da hypocondria.

No momento em que nos associámos ao cavalleiro, caira elle n'um desalento profundo, n'um quasi convencimento de proxima anniquilação, do qual nem a loquacidade do almocreve, condimentada, como era, de pragas eloquentes e de cantigas pouco edificantes, o conseguia arrancar.

Havia mais de uma hora que estavam luctando com as difficuldades da ascensão do ingreme e escabroso caminho, que torneava o monte como as voltas de uma helice.

Era este monte uma como irregular pyramide, levantada no meio da amplissima bacia, onde tinha assento a aldeia que Henrique demandava; por isso o estafado rapaz não podia atinar a razão de conveniencia pela qual, tendo de procurar o valle, assim porfiavam em descrever as fastidiosas curvas da quasi interminavel espiral, que os approximava do vertice.

Não se concebe uma estrada menos logica do que aquella.

No nosso paiz são porém frequentes estas faltas de logica nas estradas.

O almocreve havia-se separado por momentos de Henrique com o fim de encurtar distancias, seguindo por um atalho só franqueavel a gente de pé.

Henrique nem desviára os olhos para o fundo valle, que se abria á esquerda, velado pela densa nevoa d'aquella atmosphera saturada de humidade, nem prestava attenção á agreste e selvatica paizagem, do lado direito, toda encrespada de pinheiraes nascentes e de espinhosas tojeiras.

Os olhos procuravam, em anciosa interrogação, o mais alto da flexuosa ladeira que subia, no sitio em que ella, formando um cotovello, furtava á vista o seguimento ulterior.

N'estas curvas das estradas sorri sempre de longe ao viajante, cançado e aborrecido, que pela primeira vez as trilha, uma promettedora esperança.

―D'alli verei talvez o termo do caminho―pensa elle.

Mas quantas vezes, ao approximar-se, esta esperança lhe foge!

Assim aconteceu a Henrique, que, ao chegar á almejada inflexão e quando esperava principiar emfim a descer para o valle e approximar-se da aldeia, viu que o macho, pratico no caminho, e á disposição de cujo instincto elle collocára a razão, dobrava ainda para a direita e continuava a contornar e a subir o monte. A espiral não terminára ainda. Henrique olhou em torno de si, profundou a vista nas sombras do valle, nada pôde descobrir, que lhe promettesse a aldeia procurada. Muita arvore, povoação nenhuma!

Teve um paroxismo de impaciencia!

―Isto não é estrada!―exclamou elle, exasperado.―São os nove circulos do Inferno de Dante virados para fóra.

E a luz do dia a fugir cada vez mais, e a chuva a augmentar, a calar através do grosso gabão de jornada que Henrique vestia! O desgraçado vergava sob o pêso da sua consternação.

Ajuntou-se-lhe outra vez o almocreve, assobiando com fleugma desesperadora.

―Com um milhão de demonios!―bradou-lhe Henrique, não podendo conter-se.―Essa maldicta terra foge deante de nós, homem!

―Estamos quasi lá, meu patrão. É alli logo adeante―respondeu o almocreve, sem se alterar. Vê aquella capellinha branca em cima d'aquelle monte? pois fica já para além da povoação. É a ermida da Senhora da Saude. É um instante.

―Desde as duas horas da tarde que me dizes que é um instante, e eu estou acreditando que cada vez nos afastamos mais. Pois se a aldeia fica alli em baixo, para que diabo subimos nós? Ás voltas que temos dado, estou persuadido de que vamos tão adeantados como quando principiámos a subir.

―Pois olha que dúvida! Se se fôsse a direito lá por baixo, era mais perto, mas...

―Mas foi então pelo prazer de trepar, que me trouxeste por aqui?

―Não é isso, patrão; mas bem vê v. s.a que o caminho lá por baixo é todo cortado por quintas e campos, e é preciso dar taes voltas, que a final fica mais longe. Depois, com a chuva que tem caído, faz lá ideia de que o caminho lá por baixo é todo cortado por quintas e campos, e é preciso dar taes voltas, que a final fica mais longe. Depois, com a chuva que tem caído, faz lá ideia de como estão os riachos por lá! Só o esteiro do almargeal é para uma pessoa se afogar. Mas tenha o patrão paciencia, que pouco falta agora. Vê v. s.a aquelle tronco de sobreiro que parece, visto d'aqui, um frade de capuz?

―É alli?

―Não, senhor―disse o homem, rindo;―mas vêem-se d'aquelle sitio as primeiras casas da aldeia.

―As primeiras!―murmurou Henrique em tom lastimoso; e penderam-lhe os braços com mais desalento e augmentou-se-lhe a flexão da columna vertebral.

O almocreve proseguiu, para o distrair:

―Tenho passado por estes sitios muita vez com neve de se cortar á faca e de noite. E olhe que nunca tive mêdo. Qual historia! Mêdo? Isso sim! E vamos lá! o sitio não é dos mais seguros. Vê o senhor essa cruz preta, ahi á sua mão direita, pregada no tronco d'esse pinheiro? Pois ahi mesmo mataram um homem, que vinha com uns centos de mil réis da feira franca de Vizeu, fez pelo S. Miguel um anno. E ainda hoje se está para saber quem foi. N'um ermo d'estes só os santos podem valer a uma creatura.

Henrique sentiu-se pouco á vontade com as elucidações do cicerone; olhou para elle com desconfiança e quasi julgou vêr moverem-se sombras suspeitas por entre os troncos dos pinheiros. Apalpou nos coldres os cabos das pistolas, e approximou as esporas dos ilhaes da cavalgadura.

Dentro em pouco attingiam o indicado tronco de sobreiro, de junto do qual deviam avistar a aldeia.

Henrique olhou; viu lá no fundo do valle muitas arvores, mas continuou a não enxergar vestigios de casas.

―Onde está a aldeia que dizias, homem?

―D'ahi já se vê―disse o almocreve, correndo para alcançar o cavalleiro.―Não vê v. s.a, além, além, aquelles pinheiraes mansos?

―Vejo, sim.

―Pois já são da freguezia. Se fôsse mais claro havia de avistar a casa do guarda. É a tapada dos Bajuncos, que pertence á morgadinha dos Cannaviaes.

Henrique não respondeu. A distancia a que ficava ainda a tal tapada fel-o suspirar.

Emfim, passados minutos, principiaram a descer para o valle, costeando sempre obliquamente o monte.

Cem passos andados, fez-lhe o almocreve notar um pequeno ponto branco, que se divisava ao longe por entre a rama do arvoredo, mas já indistinctamente, em virtude do adeantado da hora e da intensidade da neblina.

―Lá está a capella da freguezia―dizia o homem.

―Alli? É um seculo para lá chegar!

―Qual! Estamos aqui, estamos lá. Eh, russo!

E applicou uma vigorosa vergastada nas ancas do macho, que accelerou o passo.

O homem continuou:

―Até se fôsse mais dia podia-se vêr d'aqui a pedra, que está no cemiterio novo, e que é da familia da morgadinha dos Cannaviaes. Foi a mãe d'ella a primeira pessoa que lá se enterrou, e até hoje mais ninguem. O povo, como o outro que diz, tem sua aquella em se enterrar fóra da egreja. Elle, a falar a verdade... Eu bem sei que tudo vae do costume... mas emfim a gente foi creada n'isto... Mas a pedra é coisa asseada. É como as que estão na cidade.

Henrique, transido de frio, quebrado de desalento, já nem attendia ao que o homem ia dizendo.

Cerrára-se a noite de todo, quando attingiram emfim o valle. O terreno mudava agora de aspecto. Appareciam já, aqui e alli, alguns indicios de cultura, annunciando a proximidade de um povoado. Os caminhos estreitavam, internando-se no valle, e seguiam tortuosamente por entre muros tôscos de pedra ensossa, silvados e sebes naturaes. A chuva, que não cessára de cair, transformára estes caminhos, onde o declive não dava escoamento ás aguas, em charcos e tremedaes.

Novos indicios da vizinhança da aldeia iam successivamente apparecendo.

Aqui era uma manada de bois soltos, em direcção do curral, guiados por uma creança de palhoça e pernas nuas, os quaes paravam a olhar com aquella expressão de composta curiosidade, que lhes é peculiar, para o recem-chegado visitante da aldeia. Não faltou receio a Henrique, que suppôz a estes bonacheirões quadrupedes a indole travêssa e bravia dos touros, a cuja chegada tantas vezes fôra assistir em Lisboa.

Mais adeante passava por elles uma fileira de carros a vergarem sob o pêso do matto e atroando os ares com o chiar incómmodo das rodas sob o eixo, incómmodo para os ouvidos cidadãos de Henrique, cujos nervos se irritavam com elle, mas apparentemente agradabilissimo para os conductores aldeãos, que ou dormiam ou cantavam com aquelle acompanhamento.

N'um e n'outro ponto deparavam-se-lhe já algumas casas de tectos de colmo, de cujas innumeras fendas saía um fumo espêsso, que a atmosphera humida mal deixava elevar nos ares. No olfacto deshabituado de Henrique de Souzellas o cheiro resinoso e activo das pinhas e das agulhas sêccas dos pinheiros, queimadas no lar, produziam sensações muito longe de serem agradaveis.

Augmentava-se-lhe com tudo isto a funda melancolia que já lhe tomára o animo.

―Tantas fadigas para este resultado!―pensava elle.―Sair de Lisboa para me enterrar n'esta aldeia escura e suja! Enganou-se o parvo do doutor. Cuidava que me salvava e matou-me. Eu morro por certo aqui. Deus lhe perdôe o homicidio.

Os caminhos succediam-se aos caminhos, qual mais tortuoso e incómmodo de trilhar; as curvas complicavam-se como as ruas de um labyrintho. Aqui subiam; desciam mais além, para subir outra vez. Umas vezes caminhavam em terreno descoberto, outras penetravam em tão estreitas quelhas, apertadas entre paredes argilosas e humidas e toldadas de ramos entrelaçados, que só o instincto do animal podia evitar-lhes os perigos. Ora soavam as patas do macho como em chão lageado, ora amortecia-lhes o som um terreno, que a chuva encharcava, e a agua lamacenta vinha salpicar o rosto do cavalleiro.

As casas eram já frequentes, e algumas de menos humilde apparencia.

Os cães, que, pelo timbre de voz, mostravam ser gigantes, ladravam raivosos por dentro dos portões ou de sobre os muros das quintas, ao ouvirem os passos da cavalgadura ou a voz do almocreve, que falava ou cantava sempre.

Outras vezes era um inharmonico grunhir suino que accusava a vizinhança das córtes ou, partindo de um casebre rustico, o chorar de creanças, entremeado com os ralhos das mães e com as pragas dos chefes de familia.

O almocreve não desistira das suas funcções de cicerone, que sómente interrompia para saudar alguns conhecidos seus, a cuja porta passavam.

―Estes campos e lameiros―ia dizendo―são da morgadinha dos Cannaviaes; andam arrendados a um compadre meu.

E exclamava para dentro de uma casa terrea, escassamente allumiada por uma candeia:

―Boas noites, tia Escolastica. Como vae a pequenada?

―Ai, é vossemecê, sr. José? Então não entra?―respondia-lhe uma voz feminina.

―Agora, não, ámanhã.

E proseguiu para Henrique:

―É uma santa creatura. A morgadinha...

Henrique interrompeu-o:

―Onde fica a final, a quinta de Alvapenha? onde mora minha tia? Não me dirás?

―É logo ahi adeante, meu patrão. Em nós passando umas casas amarellas que ha ahi... é logo ao pé. Essas casas que digo são tambem da morgadinha, mas ha uma demanda pelos modos.

O almocreve falava pela decima ou undecima vez na morgadinha. Até esta periodica referencia a uma personagem que elle não conhecia, impacientava Henrique de Souzellas.

E continuavam a succeder-se em enredado dedalo as quelhas e azinhagas, a ponto de fazer perder toda a orientação. Umas vezes ouviam o ruido das levadas, que as ultimas chuvas tinham engrossado; adeante, transpunham uma ponte rustica, escutando das profundezas do despenhadeiro, que ella atravessava, o fragor das cascatas nos açudes ou o ranger das rodas dos moinhos.

Henrique a cada momento imaginava cair n'um abysmo.

―São os açudes do Casal―dizia o almocreve berrando para se fazer ouvir através do estrondo da torrente.―Pertencem á morgadinha dos Cannaviaes.

Henrique nem alento já tinha para falar.

Ao triste e quasi sinistro aspecto d'aquella aldeia tão cerrada lhe envolveu o coração a nuvem de melancolia, que cedeu sem resistencia ao crescente torpor que o invadia, como o que desespera da vida e da salvação.

Mais adeante, excitou-lhe ainda as attenções uma toada plangente, melancolica, monotona, que exacerbou estes effeitos.

―É uma fiada em casa do Tapadas―disse o almocreve.―É um dos maiores amigos do pae da morgadinha. Vê aquelle muro acolá?

―Eu não vejo nada. Deixa-me!

―Pois pertence já á quinta dos Cannaviaes, que a morgadinha...

―Outra vez! Cala-te para ahi com essa morgadinha―exclamou Henrique.

Era evidente emfim que estavam em pleno coração do povoado. As casas appareciam mais juntas. De algumas saía um surdo rumor de vozes que tinha o que quer que era de lugubre. Era a corôa rezada em familia a Nossa Senhora. A voz grave do lavrador casava-se com a voz quebrada e trémula do avô, com a voz sonora e fresca da mãe, e a juvenil das raparigas e creanças n'aquelle piedoso côro, produzindo um effeito que acabou por levar ao auge a impaciencia do nosso spleenetico viajante.

―Sumiu-se essa endiabrada quinta de Alvapenha, que não a acabamos de attingir?

O almocreve d'esta vez nem respondeu; sacudiu uma chicotada sibilante junto ás orelhas do muar, o qual com desusada rapidez galgou uma ladeira orlada de arvores, volveu á direita e, á voz do almocreve, estacou em frente de um portão de quinta resguardado por um telheiro rustico.

―É aqui―disse o guia.

―Até que emfim!―exclamou Henrique, suspirando. Suspiro de conforto e de tristeza ao mesmo tempo, como o do homem cançado da vida, quando antevê o repouso do tumulo. Em Henrique era intima a convicção de que a quinta de Alvapenha lhe havia de servir de cemiterio.

II

O almocreve assentou duas vigorosas pancadas no solido portão de castanho, deante do qual tinham parado.

As primeiras vozes, a responderem-lhe, foram as de dois cães, que acudiram de longe ao signal e vieram ladrar á porta com furia, que fez agourar mal a Henrique da cordialidade da recepção que o esperava. De facto as intenções dos quadrupedes não pareciam demasiado hospitaleiras. O almocreve divertia-se excitando-os de fóra com uma vara de vime, apesar de quantas recommendações de prudencia lhe fazia Henrique, não em demasia socegado.

A final ouviu-se uma voz aspera e rouca, chamando os cães á ordem, se é licito, sem irreverencia, empregar n'este caso a phrase consagrada para outro genero de algazarra.

Henrique ouviu rodar a chave, correr os ferrolhos, levantar a aldraba, gemerem os gonzos, e emfim um homem de lavoura alto e magro, trazendo em punho um lampeão de frouxissima luz, appareceu-lhes á porta e saudou-os com a fórmula do estylo:

―Ora Nosso Senhor lhes dê muito boas noites.

E, levantando a luz á altura do rosto de Henrique, poz-se a miral-o com a menos ceremoniosa curiosidade.

―É o sobrinho cá da senhora, não é verdade?

―Sou eu mesmo.

―Está um tempo muito azêdo. Eu já julgava que não vinham. Entre.

Henrique não se resolvia a acceitar o convite, porque lhe continuavam a impôr respeito os olhares ferinos e os rugidos surdos dos dois façanhosos quadrupedes, cuja má vontade era a custo refreada.

―Entre, entre―insistia o homem.

―Mas esses animalejos?...

―Ah! isto não faz mal. Sae-te p'ra lá, Lobo: passa, Tyranno!

Lobo! Tyranno! Que nomes! E dizia o homem que não faziam mal!

―C'os diabos! ti'Manuel―disse o almocreve―em occasião de se esperarem hospedes, não se soltam assim os cães. Os diabos não são nenhuns cordeiros. Olhe no outro dia o sr. Joãosinho das Perdizes, que por pouco lhes deixava nos dentes as barrigas das pernas.

―Forte perca!―resmoneou o outro.―Não trouxesse cá os d'elle. Não tem dúvida; entre o senhor, que elles não lhe fazem mal.

―Não entro; assim é que não entro―teimou Henrique, a quem as palavras do almocreve acabaram de fortificar na sua resolução.

O homem em vista d'isto encolheu os hombros e bradou:

―Ó Luiz!

Uma creança de cinco annos, e quasi nua, correu ao chamamento.

―Enxota para lá esses cães, que aqui o senhor tem mêdo.

A creança, á palavra mêdo, fitou Henrique com uns olhos espantados, e tomando do chão um tronco de tojo, deu-se a zurzir desapiedadamente nas feras, que, com todos os signaes de respeito, de orelha baixa e cauda abatida, fugiram deante d'ella.

O orgulho de Henrique de Souzellas ficou um tanto maltratado com o desfecho da scena; mas a prudencia consolava-o, dizendo-lhe que andára ajuizadamente.

―Agora vossemecê―disse o camponez para o almocreve―arranje-se como puder e mais a bêsta ahi pelas lojas, emquanto eu ensino o caminho ao senhor.

―Vão, vão com Nossa Senhora, que eu cá me arranjarei. Muito boas noites, sr. Henriquinho.

―Adeus, José―disse Henrique, passando para a mão do guia a esportula da gorgeta, e após seguiu, com as pernas trôpegas de cavalgar, o homem do lampeão.

Não era para dissipar a impressão penosa, que subjugava o espirito de Henrique, o aspecto que lhe offerecia, áquella hora da noite, a parte da quinta, por onde era conduzido para a casa de Alvapenha.

Primeiro, trilhou o pavimento molle de um quinteiro ou eido, estradado de altas camadas de matto e embebido de chuva, d'onde se exhalava um cheiro de cortumes, pouco de lisonjear o olfacto mal habituado a estes aromas campezinos. A luz do lampeão a custo conseguiu evitar a Henrique o tropeçar n'um carro desapparelhado, n'uma dorna, n'uma pia para gallinhas, e em outros objectos que atrancavam o quinteiro. Transpondo a cancella que terminava este, seguiram por uma rua de folhas; atravessaram diagonalmente a horta, pelo carreiro que a dividia; ladearam a eira e a casa do cabanal, e, effectuados mais alguns rodeios, acharam-se finalmente junto da escadaria de pedra, por onde se subia para uma especie de patamar ou varanda alpendrada, que servia de um modesto portico á casa de Alvapenha.

A propriedade da tia de Henrique era um genuino typo de casa rustica, á moda do Minho.

Ao subir as escadas, e apesar de mal poder divisar os objectos á escassa luz que os allumiava, recebeu Henrique a primeira impressão agradavel de toda aquella mal estreada excursão.

Estas escadas, esta varanda de pedra e este alpendre avivaram n'elle memorias, quasi apagadas. Lembrava-se agora vagamente de ter brincado alli, a cavallo n'esse mesmo parapeito, então, como agora, enfeitado de uma formidavel cohorte de aboboras meninas, victimas votadas ás festas do proximo Natal.

A um canto do patamar deparou-se-lhe ainda um grande vaso de louça, que elle, havia vinte e tantos annos, conhecera, e ao qual tinha a ideia vaga de haver quebrado uma aza; abaixou-se no intento de se certificar, e viu que de facto ainda lhe faltava a aza, sendo este o unico estrago que após tanto tempo o velho utensilio soffrêra.

―É admiravel!―não pôde deixar de exclamar Henrique ao fazer a descoberta, vendo que em oito dias operava maior reforma nos seus aposentos em Lisboa, do que n'um quarto de seculo se realisava em Alvapenha.

O hortelão bateu á porta e disse para dentro que era o sobrinho da senhora que chegava.

Seguiu-se um mexer de cadeiras, um trocar de vozes, um arrastar de passos; moveu-se a chave na fechadura; abriram-se as portas e no limiar appareceu de braços abertos a tia Dorothéa, e por traz d'ella, elevando a luz acima do hombro da ama, a criada Maria de Jesus, a que, havia trinta annos, lhe era companheira e interessada em lagrimas e pesares. Já Henrique lhe andára ao collo no tempo em que estivera creança na quinta.

Deante da figura esbelta, do typo varonil e do comprido bigode de Henrique, a sr.a Dorothéa reprimiu as suas expansões e quasi recuou.

Nunca mais vira Henrique desde que este, aos cinco annos, deixára Alvapenha, e dir-se-hia que esperava ainda encontrar os mesmos cabellos louros e annelados e o mesmo rosto menineiro da travêssa creança de outros tempos, em vez do homem feito, em que os vinte e tantos annos volvidos o tinham transformado.

Ha d'estas illusões na gente.

A mais segura razão não está precavida contra ellas; a infundada surpreza invade-nos de subito, e os labios não podem prender a exclamação que a denuncia.

―Pois na verdade tu és o Henriquinho?!―disse espantada a boa senhora.

―Eu julgo que sim, tia Dorothéa.

―Tu! Ai como estás um homem! Ó Maria de Jesus, você não quer vêr isto!?

―Parece mesmo um soldado!―disse a criada, igualmente estupefacta.

―Credo, mulher! Santissima Trindade! Você que está a dizer? Nossa Senhora nos livre de tal!―exclamou a ama, em cujo conceito o soldado estabelecia a transição do homem para o diabo.

No entretanto Henrique de Souzellas abraçava a tia, que havia tanto tempo que não vira, e ella correspondia-lhe, beijando-o com todo o carinho e chorando.

Chorando por quê? Por quê? Pela muita bondade que tinha n'aquella alma. A bondade é um rico manancial, que brota lagrimas ao toque da menor commoção.

Henrique não tinha ainda bem conseguido libertar-se dos roxeados amplexos e mais provas de affecto de sua tia, quando se sentiu prêso em novos laços. Era Maria de Jesus, que o abraçava tambem e lhe pespegava nas faces dois beijos muito chiados, como aquelles que veem a ferver do coração, e isto acompanhado de um―Ai o meu rico filho!―tão eloquente como os beijos.

Henrique, habituado ás etiquetas da civilisação urbana, que estabelece entre amos e criados distancias desconhecidas na aldeia, extranhou um pouco a familiaridade, mas sujeitou-se a ella sem reflexões.

Maria de Jesus dizia, ainda admirada:

―Ó senhora! Não que uma coisa assim! Pois é este o menino que vinha á cozinha limpar o tacho, em que se fazia a marmelada!

―É verdade! E que boa marmelada cá se fazia!

―Lambareiro!―disse a tia, sorrindo.―Se eu soubesse que eras assim, não tinha mandado lavar o tacho do dôce, que ainda hoje serviu.

―Sim? Então ainda se faz dôce cá em casa, como d'antes?―perguntou Henrique.

―Pois então? todos os annos. Mas valha-me Deus! E não querem vêr nós aqui postas á palestra! Entra, menino, entra cá para dentro, que está frio e tu deves vir cançado.

―Um pouco, um pouco, tia Dorothéa.

E Henrique entrou para a sala.

Demoremo-nos no limiar para informar o leitor sobre as pessoas, em cuja casa se vae alojar com Henrique de Souzellas.

Não se imagina a santa paz de espirito, a placidez de paraiso, que estas duas mulheres―D. Dorothéa e Maria de Jesus, ama e criada―gosavam na quinta de Alvapenha, onde Henrique de Souzellas ia procurar allivio aos seus muitos e variados males.

Ambas da mesma idade, ambas muito aferradas aos seus habitos, ambas muito tementes a Deus e amigas do proximo, as duas celibatarias passavam alli uma vida, rescendente a um suave perfume de santidade, como o da alfazema e do rosmaninho, que lhes aromatizava as gavetas e de que se repassava toda a roupa branca, objecto muito dos seus cuidados.

A inalteravel harmonia, mantida havia tantos annos entre as duas, poderia ser exemplo á maior parte das familias d'este mundo. Entre velhas, que nunca tiveram filhos, circumstancia que em geral faz o humor mais acre e desabrido, era tanto mais para admirar o caso.

Tinham ellas porém a precisa tolerancia para fazerem mutuas concessões; cada uma fechava os olhos aos pequenos caprichos da outra, e tudo corria bem. Nunca a dentro d'aquellas paredes se ouviu uma só palavra, que, por mais alto pronunciada ou por menos expressiva de paciencia, destoasse da invariavel monotonia dos seus habituaes dialogos.

Eram um exemplo edificante para os vizinhos, que, pela maior parte, devorados por demandas entre primos e irmãos, paes e filhos, marido e mulher, mostravam infelizmente ser esta abençoada semente caída em improductivo terreno.

As discordias intestinas nas familias do seu conhecimento affligiam as duas sexagenarias e augmentavam o numero de Padre-Nossos com que todas as noites se faziam lembrar dos santos, de quem eram validas, pedindo-lhes a felicidade dos outros tanto ou mais do que a sua propria.

Ouvir rezar as duas santas velhas―e era essa a occupação dos seus curtos serões―equivalia a escutar uma resenha das differentes calamidades, que perseguem e apoquentam o genero humano, e que ellas, d'esta maneira, pretendiam evitar.

―Um Padre-Nosso e uma Ave-Maria a S. Marçal, para que nos livre do fogo―dizia D. Dorothéa, e seguia-se o Padre-Nosso.―Outro a Santa Luzia milagrosa, para que nos dê vista e claridade na alma e no corpo; outro a S. Braz, para que nos proteja da garganta; outro a S. Vicente, por causa das bexigas, etc. Seguia-se um Padre-Nosso por todos os que andam sobre as aguas do mar; outro por os pobres sem abrigo nem alimento; outro por os orphãos; outro pelos doentes; um pelos vivos; outro pelos mortos; um pelos justos; outro pelas almas do purgatorio, não hesitando até a sua caridade em transpôr as portas do inferno e pedir tambem a remissão dos condemnados. E ainda depois d'esta minuciosa e longa enumeração, um ultimo Padre-Nosso fechava a primeira serie, comprehendendo todos os não contemplados por esquecidos, ou por não terem logar na classificação.

Compunha a segunda serie a menção especial de cada uma das pessoas fallecidas das suas relações: parentes, amigos e conhecidos, por cujo «eterno descanço entre os resplendores da luz perpetua» oravam com verdadeira compunção. N'esta phalange ia tambem D. João VI, por quem, havia quarenta annos, se costumára a rezar D. Dorothéa, e não era ella mulher que rompesse com habitos semi-seculares. Era esse talvez o unico Padre-Nosso que a alma do monarcha recebia no Céo, com procedencia do seu antigo reino.

Quanto ás qualidades physicas, a imaginação dos leitores pintar-lh'as-ha melhor do que a minha descripção. Forçosamente conheceram uma d'estas boas velhas, para quem nos sentimos attrahidos; a quem se estima e com quem se brinca ao mesmo tempo; que nos podem inspirar sacrificios e simultaneamente nos tentam a travessura; a quem mystificamos agora e logo beijamos respeitosamente a mão; contra quem não reprimimos impaciencias, escutando depois submissos os seus nunca terminados sermões.

Ora estas velhas assim teem quasi sempre um typo uniforme, que é o reflexo exterior da bondade do coração; esse era o typo da tia Dorothéa com o seu vestido rôxo, o seu lenço castamente cruzado no peito, a sua touca de folhos alvissimos e de fitas escuras, o mólho de chaves á cinta, o livro de orações na algibeira e os oculos a marcarem no livro a reza habitual.

Maria de Jesus de igual maneira. Era apenas uma edição popular da mesma alma. Succedêra de mais com ellas o que é sempre de esperar de uma longa e intima convivencia; haviam reciprocamente adoptado maneiras e modos de pensar e de vêr e de dizer as coisas uma da outra, a ponto de qualquer d'ellas ser como que uma premissa d'onde a modo de conclusão, se deduzia a outra facilmente.

Tudo isto percebeu logo Henrique de Souzellas ao primeiro exame que fez das duas santas mulheres.

Entremos agora com elle para dentro da sala.

Quem, vinte annos antes, tivesse visitado a casa de Alvapenha e ahi voltasse de novo com Henrique julgaria, á vista da uniforme disposição de coisas mantida alli dentro em tão distantes épocas, que todo esse tempo não fôra mais do que um sonho de momentos.

Encontraria os mesmos móveis, na mesma collocação; as mesmas cobertas nos leitos, apenas mais desbotadas; as mesmas ou iguaes cortinas nas janellas; o mesmo cheiro de feno e alfazema na atmosphera dos quartos, os mesmos quadros na parede, as mesmas jarras nas cómmodas.

A memoria de Henrique, aquella inconstante e leviana memoria de rapaz estouvado, sentia-se acordar, á vista d'aquillo tudo.

A sala tinha uma physionomia caracteristica.

Supponha-se uma não muito ampla quadra de pouca altura, toda pintada a óca, e alumiada por duas mal rasgadas janellas de peitoril, com os seus competentes assentos de pedra, um defronte do outro, com meias cortinas de cambraia sempre corridas―pleonasmo de discrição que se não justificava, visto que as janelas, abrindo para a quinta, não tinham vizinhança de cujos olhares precisassem de recatar-se. O tecto era de almofadas de castanho, em tempos pintado de azul, agora de uma côr duvidosa. Havia quinze annos que D. Dorothéa falava em o mandar retocar, mas o projecto, momentoso como era, ia sendo adiado de primavera para primavera. Orlava a sala, no alto, um friso ou cornija saliente, onde coroadas maçãs de inverno aguardavam, em vistosa fileira, a completa maturação, e derramavam no aposento o mais agradavel aroma. O pavimento, apesar de muito picado de caruncho, andava limpo e escafunado―termo do vocabulario de casa―que mettia gôsto vêl-o. Cada parede era um museu de estampas de devoção. Poucos santos e santas da côrte celestial não estavam alli representados e com um colorido, que era o maior peccado, a que estes bemaventurados haviam dado logar cá no mundo.

Cá se via Santa Quiteria e as suas sete companheiras; Santa Anna ensinando Nossa Senhora a ler; o Senhor dos Passos, venerado em S. João Novo, no Porto; o Bom Jesus de Bouças, representação da imagem, que, segundo reza a respectiva chronica, é obra das mãos de José de Nicodemus; os Santos Martyres de Marrocos, da igreja de S. Francisco, etc., etc. Sobre a cómmoda de pau preto era devotamente venerado o mais rubicundo, menineiro e bem disposto Santo Antonio, que ainda modelaram as mãos de santeiro afamado. E seja dito de passagem que não sei por que a tradição popular dá a este austero franciscano o aspecto chorudo de um moderno reitor de farta abbadia de aldeia.

No interior da redoma onde se abrigava o santo estava estabelecido o museu de raridades da tia Dorothéa. Eram flores artificiaes, concharinhas e caramujos, um rosario de caroços de azeitonas, uns poucos de vintens de prata, enfiados e pendentes do braço do menino Jesus, que o santo sustentava ao collo, veronicas, escapularios, uma campainha benta, uma medida do braço do Senhor de Mattosinhos, um pão do sacco de Santa Isabel, que vae na procissão de Cinza, no Porto, e outros objectos curiosos.

A mobilia da sala consistia em cadeiras de palhinha, que gemiam quando entravam em serviço, como militar, cujas articulações o rheumatismo invadiu; mesas cobertas com colchas de chita; bahús cravados de pregaria amarella, disposta em lettras e arabescos; uma papeleira de pau santo, e uma gaiola com um canario decrepito, objecto, havia muitos annos, das tentações de um gato, mais decrepito do que elle e pertencente ás classes inactivas.

Henrique, adivinhando por todo aquelle cheiro de beatitude e de antiguidade que alli se respirava, os habitos da casa, sentia já certo desconfôrto, como de quem é arrancado de subito ao ambiente, em que se educou e vive, e engolfado n'um ambiente extranho; especie de asphyxia moral, não menos angustiosa do que a do peixe fóra da agua.

A saudade que ao principio sentira, dissipára-se já. O perfume da saudade é como o de certas flores, que só se percebe quando de longe o recebemos. Se, illudidos, as tentamos aspirar de perto, dissipa-se.

Acontecera isto com Henrique.

Cada vez portanto se lhe radicava mais funda a crença de que não seria por muito tempo que se demoraria alli.

―Os emollientes do doutor―pensava elle, emquanto sua tia falava―serão efficazes para quem os pudér soffrer sem enjôo, mas para mim...

No entretanto sentou-se.

―Ora o Henriquinho!―dizia ainda D. Dorothéa, pondo-se de braços cruzados em contemplação defronte d'elle.―Ó menino, onde foste tu arranjar esses bigodes tamanhos? Então isso agora usa-se?

Pergunta que sobremaneira embaraçou Henrique.

―Quem quer usar, usa, tia. Não é obrigação―respondeu elle, com leve mau humor.

―Em nome do Padre e do Filho!―dizia Maria de Jesus, benzendo-se e tomando logar ao lado da ama.―Até nem sei que parece, lembrar-se a gente que trouxe este marmanjão ao collo!

O termo «marmanjão» não soou bem a Henrique. Principiava tambem a impaciental-o o vêr as duas embasbacadas deante d'elle; um homem sujeito a uma exposição d'estas, por mais que faça, não atina com o modo de arrostar com ella, que não seja ridiculo. Ora Henrique, como todo o homem da sociedade, o que mais que tudo temia n'este mundo era o ridiculo.

Felizmente acudiu-lhe a caridosa intervenção da tia Dorothéa, que fez perceber á criada a conveniencia de ir preparando a ceia de Henrique, que havia de querer recolher-se. Henrique, apesar de não costumar cear, acceitou a ideia, porque o frio, as fadigas e a má alimentação dos ultimos dias, haviam-lhe desafiado o appetite. Demais, o espanto de D. Dorothéa, quando lhe ouviu dizer que as ceias não entravam nos seus habitos, foi tal que lhe tirou o animo de rejeitar.

―Não ceias! Ó menino, que me dizes? então vaes-te deitar sem ceia? Ora essa! Por isso vocês são uns pelens. Vejam lá que arranjo este! ficar toda a santa noite sem alguma coisa que dê sustento ao estomago, que aconchegue. Nada, nada; a ceinha em todo o caso. E tu has de tambem querer mudar de fato?

―Eu venho bastante molhado.

―Ai, então depressa, menino, que não ha nada peor do que a roupa molhada no corpo. Ó Maria... ou deixe estar, eu vou... Anda, Henriquinho, anda lá, que eu guio-te ao teu quarto para te arranjares.

Meia hora depois, Henrique banhado, enxugado e commodamente vestido, saboreava uma gorda gallinha de canja, sobre uma mesa coberta de toalha lavada, e na melhor louça da copeira.

Elle que tinha sempre severidades de critica contra os mais afamados cozinheiros de Lisboa, estava achando deliciosa aquella comida primitiva, com que o regalava a tia.

Esta sentou-se a vêl-o comer, e com a mesma familiaridade, que Henrique já anteriormente extranhára, Maria de Jesus sentou-se ao lado da ama.

Ambas tinham ceado já; pois que o faziam ao cerrar da noite.

Emquanto Henrique comia, ellas, sem deixarem de o observar com a natural curiosidade de quem havia tanto tempo não tivera um hospede, faziam-lhe perguntas, ás quaes elle ia respondendo conforme lhe era possivel.

―Tu dizias-me na tua carta que estavas doente; pois olha que na cara não o parece.

―Não―concordou a criada―tem boas côres, e, vamos, a magreza inda não é lá essas coisas.

Era este o ponto fraco de Henrique; respondeu logo ao reclamo.

―Não me digam isso! Então não vêem como estou? Pois isto é lá côr de saude? de febre, será. Gordo? pois acham-me gordo?!

―Gordo, não digo, mas assim, assim... E depois como vieste de jornada... Mas a final que molestia é a tua, menino?

―Eu sei lá, tia Dorothéa? Nem os medicos a conhecem bem. É, entre outras coisas, uma tristeza, uma melancolia, que me não deixa, que me persegue por toda a parte. Ás vezes parece-me que sinto apertar-se-me dolorosamente o coração; outras, são palpitações, ancias... Tenho quasi vontade de chorar, irrito-me, impaciento-me, não quero que me falem, nada quero vêr, nada quero ouvir; não leio, não durmo, não como. Finalmente todo eu sou doença e tristeza.

A boa tia Dorothéa olhava com sisudez e attenção para o sobrinho, emquanto elle falava, e na physionomia iam-se-lhe desenhando, ao ouvil-o, os mais expressivos signaes de espanto e consternação.

Assim que Henrique terminou a exposição, ella disse-lhe com uma adoravel candura:

―Então é assim uma especie de mania!

Á palavra «mania» Henrique sobresaltou-se. Seria a consciencia que se sentiu ferida?

―Mania? Ó tia Dorothéa! Mania! Veja bem, olhe que o termo é forte? Mania!

―Sim, menino―insistiu ingenuamente a boa senhora―pois olha que não é outra coisa. Pois isto de estar triste sem ter de quê... sim... porque não te morrendo ninguem, nem te doendo nada...

Ó poetas devaneiadores, ó almas melancolicas, que percebeis no sussurrar das brisas, no ciciar das folhas, no murmurar dos arroios, queixas occultas de dryades e de nayades, sentidas vibrações das harpas de fadas aereas, que vivem em palacios de nuvens; ó corações inoculados de poesia, que vos confrangeis e gottejaes lagrimas sinceras ao desmaiar do dia, ao desfolhar das arvores no outomno; poetas, que escutaes, com Victor Hugo, as vozes interiores, os cantos do crepusculo, e com elle adivinhaes os mysterios dos raios e das sombras, perdoae a involuntaria blasphemia da tia Dorothéa, que não contem o menor fermento de malicia; perdoae-lhe a dura expressão de que ella se serviu para caracterisar os vossos arroubamentos, as vossas tristezas vagas, os vossos devaneios, e crêde que, apesar da phrase, terieis n'ella uma alma mais afinada para sympathisar comvosco, do que tantas que por ahi fazem gala de vos comprehender melhor.

Henrique não podia porém digerir a expressão, de que se servira a tia, para diagnosticar o seu mal.

―Mania!―repetia elle―essa agora! Sempre é forte de mais. Mania, não, tia Dorothéa, lá isso não. Mania!

―Eu lhe digo―acudiu a criada.―Não vá sem resposta; que está quasi como o cunhado da Rosa do Bacello. A senhora não se lembra? Andou aquella alminha por ahi sempre triste, sempre a falar só, até que a final lá foi parar...

―Aonde?―perguntou Henrique, erguendo os olhos interrogadoramente para a criada.

―Lá foi parar a Rilhafolles―concluiu esta, espevitando a véla o mais naturalmente d'este mundo.

Henrique de Souzellas pulou com a sinceridade.

Nem acabou de sorver a ultima colhér de caldo de arroz, que lhe estava sabendo como nunca manjar lhe soubera.

―Então não comes mais?―perguntou a tia.

―Muito agradecido; eu o mais que tenho é somno.

―Pois sim, mas é preciso fazer por comer―insistiu ella.

―Ora vá mais este côxão―disse a criada.

―Não é possivel―teimou Henrique, e insistiu para se recolher ao quarto.

―Tens razão, tens―concordou a tia Dorothéa―deves estar fatigado. Vae com Nossa Senhora, menino. E deixa-te lá de pensar e estar triste, que isso não é bom. É fazer por espairecer. Come, bebe, passeia, que é o que dá saude. Nada de malucar.

―Sim―accrescentou a criada―e não queira estar doente, que não tem graça nenhuma.

―E olha, Henriquinho, tu tens por ahi com quem te podes distrahir. O brazileiro Seabra, que tem uma casa como um palacio; o Augustito do doutor, que é um bom mocinho. E depois vae dar um passeio por ahi, um dia até os moinhos outro dia até á ermida da Senhora da Saude. Agora me lembra: a Lenita já mandou ahi outra vez saber se tinha chegado o hospede―disse D. Dorothéa.

―Não foi só a morgadinha...

―Ahi está você a chamar-lhe tambem a morgadinha.

―Então, senhora?! isto é o costume. Mas todas as outras senhoras mandaram tambem o Torquato saber do sr. Henrique. A sr.a D. Victoria e a Christininha.

―Ai, pois cuidadosas são ellas! Tu has de te entender com aquella gente. É uma gente muito dada e sem ceremonia. É preciso lá ir. Olha, ámanhã podes ir visital-as. É um passeio bonito.

Henrique, que tinha estado distrahido durante a conversa das duas, nem se dava ao trabalho de intervir no dialogo em que ellas dispunham já do seu tempo e traçavam-lhe planos de vida.

―Mas vae descançar, menino, vae e faze por dormir. Olha lá, tu costumas dormir com luz?

―Não, tia, não costumo.

―É porque n'esse caso... Ó Maria, onde está aquella lamparina, que me serviu quando eu estive doente, ha seis annos?

―Está lá dentro, senhora; se a senhora quer eu...

―Vê lá, menino...

―Não tia, não quero.

―Ha pessoas que não podem dormir ás escuras―dizia a criada.―Eu, graças a Deus, durmo bem de qualquer fórma.

―Pois sim, mas nem todos são como você. Olha, ó Henriquinho, has de vêr se queres o travesseiro mais alto ou...

―Muito agradecido, tia Dorothéa, tudo deve estar bom―disse Henrique, procurando fugir ás muitas reflexões, perguntas e conselhos, com que as duas o iam perseguindo até o quarto.

―Olha, ó menino, tu bebes agua de noite?

―Ás vezes.

―Você poz-lhe agua no quarto, Maria?

―Puz, sim, minha senhora; pois então? Já minha mãezinha dizia, que antes sem luz do que sem agua.

―Bem, então está bom. Então muito boa noite, menino.

―Boa noite, tia.

―Ai, é verdade. Has de vêr se queres mais roupa na cama.

―Não hei de querer, não, tia.

―Olha que está muito frio. Você quantos cobertores lhe deitou, ó Maria?

―Cinco, senhora.

―Cinco!―exclamou Henrique, quasi horrorisado.―Cinco cobertores!

―É pouco?

―Pouco?―É de morrer esmagado debaixo d'elles.

―Ai, quer não! Olha que está muito frio.

―Bem, bem; eu cá me arranjarei.

―Então, muito boa noite.

―Muito boa noite, tia.

E Henrique ia a fechar a porta.

―Olha...―disse ainda a tia.

Henrique parou.

―Não sei o que é que me esquece...

―Não ha de ser nada, tia; boa noite.

―Não esquecerá?... Eu sei?... Emfim... boa noite. Ai, é verdade... Sempre é bom ficar com lumes promptos.

―Ai, sim; lá isso sempre é bom.

―Vês? não que bem me parecia.

―Já lá estão, senhora―disse a criada de longe.

―Melhor; então muito boa noite nos dê Nosso Senhor, menino.

―Muito boa noite, tia.

E Henrique conseguiu fechar a porta.

Estava finalmente só.

―Que desastrada lembrança a minha!―disse o pobre rapaz, ao fechar a porta sobre si.―Como posso eu viver com esta santa e virtuosa gente, que chama manias aos meus padecimentos? Que futuro de impertinencias me espera! Ai, Lisboa, Lisboa, e pensar eu que só posso voltar para ti á custa de outra jornada!

O quarto de Henrique era arranjado com simplicidade. Um alto leito de almofadas na cabeceira e rodapé de chita, tão alto que se não dispensava o auxilio de cadeira para trepar acima d'elle, uma commoda com um pequeno espelho, um bahú, um lavatorio e duas cadeiras mais, constituiam a mobilia toda.

Henrique de Souzellas sentiu a falta de mil pequenos objectos de toucador, a que estava habituado. Aquelle estrictamente necessario não lhe promettia grandes confortos.

Deitou-se. A roupa da cama era de linho alvissimo e respirava um asseio e frescura convidativos: os travesseiros, de largos folhos engommados, possuiam uma molleza agradavel ás faces; o colchão de pennas abatia-se suavemente sob o peso do corpo fatigado.

Henrique conchegou a roupa a si; á falta de velador, pousou o castiçal no travesseiro, e, abrindo um livro que trouxera de Lisboa, poz-se a ler, para obedecer a um habito adquirido.

Não teria ainda lido um quarto de pagina, quando ouviu a voz da tia Dorothéa, que lhe dizia de fóra da porta:

―Ó menino, tu já te deitaste?

―Já, sim, tia Dorothéa.

―Olha se tens cautela com a luz. Eu tenho um mêdo de fogos!

―Esteja descançada, tia. Eu apago já.

―Então será melhor. S. Marçal nos acuda.

E afastou-se, rezando ao santo.

Henrique continuou a ler.

D'ahi a pouco a mesma voz:

―Tu já dormes, Henriquinho?

―Não, tia, ainda não durmo.

―Olha que não vás adormecer sem apagar a luz. Eu tenho um mêdo de fogos! Não descanço, emquanto não vejo tudo apagado em casa.

Henrique perdeu a paciencia.

―Pois pode socegar, olhe.

E apagou a véla, meio zangado.

―Fizeste bem, fizeste bem; isto já é tarde, e é melhor fazer por dormir. Então, muito boas noites.

―Muito boas noites―respondeu Henrique quasi amuado; e ageitando-se na cama, dizia comsigo:―E esta! Já vejo que nem ler me é permittido aqui. Olhem que vida me espera! É isto o que me devia curar? Que fatalidade!

Dentro em pouco, os dois felpudos cobertores de papa, unicos que conservava dos cinco primitivos, começaram a fazer o seu effeito, insinuando nos membros cançados da jornada um agradavel calor. Convidavam ao somno o som da agua n'um tanque que ficava por debaixo das janellas do quarto e as gottas da chuva, que dos beiraes do telhado caíam compassadas na taboa do peitoril.

A noite socegára. De quando em quando apenas algumas lufadas de vento, já menos impetuosas, faziam bater as vidraças.

Eram como estes estados, que succedem a um choro aberto. Correm ainda algumas lagrimas nas faces, mas já não brotam novas dos olhos: saem ainda do peito os soluços, porém mais espaçados; dentro em pouco será completa a serenidade.

Henrique começou a experimentar uma languidez, um delicioso bem-estar n'aquelle confortavel leito e no meio d'aquelle socego; fecharam-se-lhe enfraquecidos os olhos, e deslisou suave, insensivelmente, no mais profundo, tranquillo e restaurador somno, que, havia muito tempo, tinha dormido.

III

Ao romper da manhã, quando a consciencia principia, pouco a pouco, a acudir aos sentidos, até então tomados pelo torpôr de um somno profundo, Henrique de Souzellas sonhava-se commodamente sentado em uma cadeira de S. Carlos, disposto a assistir ao desempenho de uma opera favorita.

Moviam-se os arcos nas cordas dos violinos, violoncellos e contrabassos; sopravam, a plena bôca, os tocadores dos instrumentos de vento; agitavam descompostamente os braços os ruidosos timbaleiros; dedos amestrados faziam vibrar as cordas da harpa; a batuta do mestre fendia airosamente os ares, e comtudo não chegava aos ouvidos de Henrique, de toda esta riqueza de instrumentação, mais do que uma nota unica, arrastada, continua, plangente, baixando e subindo na escala dos tons, e sem formar uma só phrase musical.

Era de desesperar um dilettante como elle; torcia-se na cadeira, inclinava convenientemente a cabeça, fazia das mãos cornetas acusticas, e sempre o mesmo resultado!

Este violento estado de attenção, este esforço do sensorio, principiou n'elle a obra de despertar; principiou pois pelos ouvidos, mas cêdo se transmittiu a todos os outros orgãos.

Antes de dar a si proprio conta do que era aquelle som, e quasi esquecido ainda do logar em que estava, Henrique abriu os olhos.

A luz do dia penetrava já pelas frestas mal vedadas das janellas e espalhava no aposento uma tenue claridade.

Veio então a Henrique a consciencia do logar em que estava, e uma alegria profunda lhe dilatou o coração.

O leitor se ainda não padeceu de insomnias, de pesadêlos, ou de somnos febris, não avalia por certo o contentamento intimo, que se apossa das desgraçadas victimas d'esses demonios nocturnos, quando por excepção elles as deixam em paz, e lhes respeitam o somno de uma noite completa. Acordar só aos raios da aurora é um dos mais ineffaveis prazeres, a que elles aspiram na vida.

Penetra-lhes então nos membros um insolito vigor; a arca do peito expande-se-lhes mais livre e as sombras do espirito dissipam-se-lhes com aquelle clarão matinal.

Foi o que succedeu a Henrique. Pela primeira vez depois de muitos mezes, dormira de um somno a noite inteira.

Sentia-se com isto tão bom, tão vigoroso, tão contente que teve vontade de cantar.

Mas o som, que o acordára, aquella nota unica, em que se confundiam todas as notas da sonhada orchestra, ainda lhe soava aos ouvidos.

Prestando-lhe a attenção de acordado, conheceu que era o chiar dos carros―o mesmo som, que na vespera o irritára, agora assim a distancia, estava-lhe agradando, como nota extrahida por mão habil das cordas de um violino.

Não resistiu mais tempo ao impulso que n'aquella manhã o incitava ao exercicio, rara disposição no indolente filho da capital, que tinha por habito ouvir o meio dia na cama.

Ergueu-se e abriu as janellas.

Não é licita a comparação entre a mais surprehendente transmutação de uma d'essas apparatosas magicas, que tanto extasiam as multidões embasbacadas nas plateias e camarotes de um theatro, e as que de instante para instante, realisa a natureza. Descerrando o véo de nuvens que encobre o fulgor do sol, elevando, acima do horizonte, esse magestoso lampadario do mundo, ou o brilhante reflectidor que illumina as noites desanuviadas, a natureza opéra, a cada momento, as mais admiraveis e completas metamorphoses.

Durante o somno de Henrique realisára-se um d'esses effeitos magicos.

Abrandára gradualmente a violencia do sul; o vento, mudando, voltou em sentido opposto a grimpa do campanario; dispersaram-se as nuvens; luziram trémulas por momentos as estrellas, empallideceram perante o alvor do dia, e quando o sol assomou por sobre a crista das serras, estendia-se-lhe deante um vasto manto azul, tapetando a estrada, que tinha a percorrer. Só, muito para o occidente, ainda algumas nuvens amontoadas formavam uma como franja, que o astro nascente em breve tingiu de carmim e de ouro.

Foi pois a luz de um dia esplendido e a brisa, cheia de aromas, que vem dos campos nas alvoradas serenas que penetraram no quarto de Henrique, quando elle abriu as janellas.

A inesperada surpreza quasi lhe soltava do peito uma exclamação de prazer!

A aldeia, aquella mesma aldeia, escura e triste que, com o coração apertado, atravessára na vespera, parecia outra.

O sol da manhã baixára sobre ella, dissipára-lhe as sombras, colorira-lhe as verduras, reflectira-se-lhe nas presas, dispersára-se em iris cambiantes na espuma das torrentes e cascatas naturaes, perfumára-a de aromas, animára-a de cantos, transformára-a emfim na mais risonha paizagem, em que os olhos de Henrique, pouco habituados ás esplendidas galas do Minho, tinham nunca repousado.

O inverno despojára parte d'essas galas; embora! Até da propria nudez de algumas arvores resultavam encantos. As folhas crestadas, os ramos despidos, as moitas sem flores infundem tristeza; mas não tem a tristeza poesia tambem? Pode haver completa paizagem onde não haja uns tons escuros de melancolia?

Henrique de Souzellas, debruçado na varanda de pedra do quarto, não se cançava de admirar aquella scena.

Parecia-lhe estar assistindo a um milagre de fadas, que, n'um momento, elevam, nos ermos, jardins e paços, como os de Armida e Alcina.

Pois era esta a mesma aldeia, através da qual elle cavalgára de noite?

Os accidentes do terreno, aquelles accidentes, que tão do fundo da alma amaldiçoára na vespera, produziam, vistos então d'alli, os mais pittorescos effeitos. Abatia-se-lhe aos pés um não muito profundo valle, opulento em vegetação, e que a certa distancia se continuava insensivel e gradualmente com uma amenissima collina.

Além, um bello bosque de carvalhos seculares, que o inverno, privando-os de folhas, tingira quasi da côr da violeta, contrastava com a fronde sempre verde das laranjeiras nos pomares vizinhos, fronde por entre a qual se divisavam abundantes os dourados fructos, poupados pela mão do lavrador. As copas, como umbelladas dos pinheiros mansos, desenhavam nas encostas e eminencias fronteiras as mais suaves ondulações. Dispersos aqui e alli, e entremeiados com a verdura, grupos de casas campestres, alvejantes á luz do sol, moinhos e azenhas, noras toldadas de ramadas conicas, eiras, pontes rusticas, as mesmas talvez que com mau humor trilhára na vespera, tão sinistras então, como graciosas agora; extensas e virentes campinas e lameiros, onde pastavam numerosas manadas de gado. Mais longe a igreja com a sua alameda á entrada e o cemiterio, onde um só mausoléo avultava ainda; uma ou outra casa apalaçada, ennegrecida pelo tempo; algumas ruinas, consolidadas pelas heras, revestidas de musgos, douradas de lichens; finalmente, tudo o que tenta os paizagistas, tudo o que exalça os poetas, tudo quanto suspende os passos ao viajante; e, encobrindo todo o quadro, um tenuissimo sendal de vapores azulados, dando-lhe a apparencia de uma das mimosas composições a pastel da mão de Pillement.

A mudança de aspecto da scena operou não menor mudança nos sentimentos e disposição do enlevado espectador que das varandas de Alvapenha a estava observando.

―É preciso sair! é preciso sair!―disse Henrique comsigo.―Quero vêr isto de perto; quero entranhar-me n'estes bosques, quero trepar por aquelles montes, debruçar-me d'aquellas ribanceiras.

E vestindo-se á pressa, e sem sentir a necessidade de uma escrupulosa toilette, saiu do quarto.

Encontrou nos corredores a tia Dorothéa, que o saudou amavelmente.

―Muito bons dias, menino, então como passaste tu a noite?

―Deliciosamente minha querida tia―respondeu elle, abraçando-a com maior affecto e bom humor do que na vespera.

O que é sentir-se a gente bem!

―Então não estranhaste?

―Estranhei immenso!

―Sim?!―disse a tia, mortificada.

―Dormi a noite de um somno, e acordei bem disposto; o que para mim é a mais estranha das occorrencias.

A tia sorriu satisfeita.

―Pois antes assim. E agora...

―E agora quero sair, quero vêr esta terra, que me está parecendo um paraiso terreal.

―Espera, menino. Não vás sem almoçar.

―Almoçar! Pois que horas são?

―Não é cêdo; são já sete horas.

―Já sete horas!

E Henrique insensivelmente desviou os olhos para a janella, para vêr como era a natureza, a uma hora a que raras vezes a examinava.

―E então acha que se pode almoçar ás sete horas?

―Por que não? Se está já prompto.

―Bom; almocemos. O doutor disse-me que tomasse os habitos da aldeia. Principiemos por este.

Entrando para a sala do jantar, Henrique viu deante de si uma taça de leite espumante, tépido, odorifero, extrahido de pouco tempo.

Foi por elle que principiou o almoço.

Pela primeira vez na sua vida disse elle ter bebido o leite verdadeiro, o leite que não faz mentir a analyse dos chimicos, de que os physiologistas exaltam as qualidades nutritivas, de que os poetas das georgicas cantam as delicias e virtudes; só agora os comprehendeu elle, que bem differente d'aquillo era o aguado e quantas vezes derrancado sôro, a que estava habituado na cidade.

D. Dorothéa, almoçando, e Maria de Jesus, servindo, falaram, segundo o costume, continuadamente.

Henrique, d'esta vez, falou tanto como ellas.

Ouvia-as já com mais attenção e respondia-lhes com mais vontade e paciencia.

Falaram em muitas coisas.

A tia deu parte ao sobrinho de que varias pessoas da vizinhança, sabendo-o chegado, lhe tinham mandado presentes de gallinhas, offerecendo-se, ao mesmo tempo, para lhe mostrarem as raridades da terra; disse mais que as senhoras da quinta do Mosteiro tambem tinham já mandado saber d'elle, Henrique, e lembrou que seria delicado ir visital-as aquella manhã.

Henrique concordou em tudo, quasi sem reparar em quê, e terminando o almoço apressou-se a sair para o campo.

―E se te perdes, menino?―lembrou a tia.

―Se me perder, farei por achar-me.

Riram-se muito as boas mulheres e deixaram-o ir.

Dentro em pouco, Henrique atravessava a quinta, que tambem então lhe parecia graciosa, de uma graça bucolica, a que não estava habituado. O aspecto melancolico da vespera desvanecera-se. Até para ser completa a mudança, estavam encadeados nas casotas o Lobo e o Tyranno, cujas boas graças comtudo procurou conquistar, atirando-lhes biscoutos.

Foi um passeio delicioso o que elle deu. Tudo quanto via lhe era novidade, tudo lhe captivava a attenção e o distrahia dos seus lugubres pensamentos.

Depois de muito andar, de subir collinas, de descer valles e costear ribeiros, foi sair a um pequeno largo, ao fim do qual havia uma casa terrea, caiada de branco, com portas verdes e janellas envidraçadas, sendo os vidros em alguns dos caixilhos substituidos por papel. Á porta d'esta casa estava muita gente parada; mulheres, velhos, moços, creanças, uns sentados, outros deitados, outros a pé e encostados á umbreira, e todos apparentemente aguardando alguma coisa ou alguem do lado de uma das ruas, que vinha terminar no largo, e para a qual se dirigiam todos os olhares.

Henrique approximou-se d'esta casa com alguma curiosidade, que cêdo satisfez, vendo em uma taboleta, suspensa no alto da janella, a seguinte pomposa inscripção: «Repartição do correio», e, como a confirmar o distico, um córte feito na porta para a recepção das cartas.

Lembrando-se da conveniencia de avisar o empregado do correio para lhe serem remettidas a Alvapenha as cartas que lhe viessem de Lisboa, Henrique entrou na repartição.

Consistia esta n'uma loja apenas, mobilada com um banco de pinho e dividida por um mostrador, para dentro do qual se alojava todo o pessoal do serviço, isto é, um homem por junto; e era este o sr. Bento Pertunhas, personagem importante na terra, e a cuja intelligencia e solicitude estavam confiadas mais do que uma funcção. Além de servir, em interinidade permanente, como muitas vezes são as interinidades do nosso paiz, este cargo, dito por elle, de «director do correio», estava de posse s. s.a de uma das cadeiras de latim e de latinidade, com que se procura em Portugal fomentar nos concelhos ruraes o gôsto pelas lettras antigas; era ainda regente e director da philarmonica da terra, armador de igreja em dias festivos, ensaiador de autos e entremezes populares, e, quando Deus queria, auctor de alguns tambem.

Vendo entrar Henrique nos seus dominios, o illustre funccionario tirou cortezmente o seu bonnet de pelle de lontra e ergueu-se da banca para cumprimentar tão honrosa visita. Nos cumprimentos que formulou disse o nome de Henrique.

Admirado por ser já conhecido, Henrique interrogou o latinista e, achando-o muito informado de tudo quanto lhe dizia respeito, convenceu-se de que estava na presença de um esmerilhador de vidas alheias do mais fino quilate e de um falador de assustar.

Com o fim de cortar a divagação, em que o homem entrára a respeito de certa viagem que fizera a Lisboa, perguntou-lhe Henrique se o correio não chegára ainda.

―Saiba v. s.a que ainda não―respondeu o sr. Bento Pertunhas―mas não deve tardar; o homem que d'aqui vae buscar as malas á villa, se bem andasse, já cá podia estar. Esse formigueiro de gente, que v. s.a ahi vê á porta, está á espera d'elle. Hoje então, que chegam as cartas do Brazil, ninguem pára com este povo. Dão-me cabo da paciencia. Isto é um inferno! Eu sirvo este logar interinamente, emquanto o empregado está paralytico; porque eu tenho outro cargo publico; sou professor de latinidade.

―Ah!...

―É verdade, mas a minha vocação era para as artes. Meu pae queria que eu fôsse padre e mandou-me ensinar latim; mas já então a minha paixão era a musica. Eu ainda queria que v. s.a me ouvisse tocar trompa, que é o instrumento que mais tenho estudado... Se v. s.a se demorar ha de fazer-me o favor...

―Com muito gôsto.

―Não poder um homem seguir no mundo a sua vocação!

―Ainda assim não se pode queixar muito. O cultivo das lettras latinas deve-lhe proporcionar gosos; porque emfim para quem possue instinctos de arte, a leitura dos poetas já é um lenitivo contra as agruras da vida.

O mestre Pertunhas fitou Henrique com olhos muito abertos.

―Os poetas? Os poetas latinos! Ora essa! Então parece-lhe que pode achar-se gôsto em lêl-os? Ai, meu caro senhor, eu por mim tenho-lhe uma vontade!... O latim!... a mais destemperada e desesperadora lingua que se tem falado no mundo! Se é que se falou―accrescentou em voz baixa.

―Então duvida que se falasse latim?―perguntou Henrique, sorrindo.

―Eu duvido. Não sei como os homens se podessem entender com aquella endiabrada contradança de palavras, com aquella desafinação que faz dar volta ao juizo de uma pessoa. Sabe o senhor o que é uma casa desarranjada, onde ninguem se lembra onde tem as suas coisas quando precisa d'ellas e passa o tempo todo a procural-as? Pois é o que é o latim. Abre a gente um livro e põe-se a traduzir e vae dizendo: «As armas, o homem e eu, canto, de Troia, e primeiro, das praias.» Quem percebe isto! Ora agora peguem n'estas palavras e em outras, que elles punham ás vezes em casa do diabo, e façam uma coisa que se entenda! É quasi uma adivinha. Ora adeus! E depois―continuou elle, enthusiasmado com o riso de Henrique, suppondo-o de approvação―e depois as differentes maneiras de chamar a um objecto? Isso tambem tem graça. Nós cá dizemos por exemplo: «reino e reinos» e está acabado; lá não senhor; diz-se regnum e regna e regni e regno e regnis e até regnorum. Ora venham-me cá elogiar a tal lingua!

Henrique estava achando delicioso o odio entranhado de mestre Bento Pertunhas á latinidade que ensinava com a proficiencia, que o leitor pode imaginar, depois do que ouviu.

―Ai, meu caro senhor―continuou o atribulado magister―eu se me vejo um dia livre d'este amaldiçoado latim, faço uma fogueira, na qual me hei de regalar de vêr arder o Tito Livio e os Virgilios todos tres.

É de advertir que mestre Bento falava sempre no plural, ao referir-se a Virgilio.

Quer-me parecer que para este interprete da litteratura latina tinham de facto existido tres Virgilios, provavelmente irmãos, e cada um auctor de cada um dos tres volumes da edição, que lhe servia de texto. Dizia Virgilio 1.º, 2.º e 3.º, como quem se refere aos monarchas homonymos, que succederam n'um mesmo reino.

―Não me salvo se morro mestre de latim―proseguia elle.―Afunda-me no inferno o trambolho da syntaxe.

Ia continuar, quando toda a gente, que Henrique viu fóra da porta, principiou em desordenada azafama a entrar para a loja, que em breve não comportava mais ninguem.

―Ahi vem o homem, sr. Pertunhas; ahi vem. Graças a Deus, que ahi vem!―diziam todos á uma.

O funccionario principiou a impacientar-se.

―Então! então! Por onde ha de elle entrar, fazem favor de me dizer? Saiam, saiam. Não ouvem? Então não fazem caso das minhas ordens? Dêem logar. Não vêem que estão molestando este senhor?

Cada um dos reprehendidos n'estes termos indignava-se, ao vêr que os outros não obedeciam ás ordens, mas, pela sua parte, não cedia um passo, como se lhe valesse algum especial privilegio.

―Saia você, mulher―dizia um.

―E você por que não sae? Olha agora!

―A todos ha de chegar a vez. Descance. Se tiver carta lh'a darão. Lá por estar aqui não é que...

―Pois então saia tambem. Ora essa!

―Ó santinha, não empurre.

―Ó filho, quem é que lhe faz mal?

―Por onde é que se quer metter, homem de Deus?

―Eu não sou menos que os outros.

―Que quereis vós d'aqui, canalhada?

―Não bata, que ninguem lhe tocou, seu velhote.

―Espera que eu te falo.

Estas e analogas vozes abafavam n'um rumor tumultuoso as agudas declamações do «director do correio», o qual obrigou Henrique a passar para dentro da teia, para se salvar das ondas populares.

Henrique estava achando igualmente curiosa a indignação do homem e a alvoroçada anciedade do povo.

Ha de facto poucas scenas tão animadas, como a da chegada do correio e da distribuição das cartas em uma terra pequena. Durante a leitura dos sobrescriptos, feita em voz alta pelo empregado respectivo, um observador, que estude attento as impressões que essa leitura opéra nos semblantes dos que ávidos a escutam, como que vê levantar-se uma ponta de cortina, corrida a occultar-nos as scenas da comedia ou da tragedia da vida de cada um.

Que hora de commoções aquella, em que se abrem as malas, onde veem encerrados porventura os destinos de tantas pobres familias! Quantas vezes verdadeira boceta de Pandora, d'onde se espalham as desgraças e os pezares!

Nas grandes cidades dispersam-se estas commoções; passam-se no recato dos gabinetes de cada um. Lembrem-se porém das vezes, em que teem segurado com mão trémula na correspondencia, que o correio lhes traz; no anciar do coração com que lhe rasgam o sêllo; nas lagrimas ou sorrisos com que lhe interrompem a leitura; no irresistivel movimento de desespero com que a amarrotam depois, ou nas expansões apaixonadas com que beijaram o nome que a subscreve; lembrem-se d'isso, multipliquem depois esses affectos todos, despojem-os das reservas que a etiqueta impõe ás classes mais civilisadas, façam-os manifestarem-se n'um mesmo momento e n'um mesmo logar, e digam se concebem muitas outras scenas, em que mais sentimentos e paixões se agitem em lucta travada.

Chegou emfim o homem das cartas, e a custo conseguiu romper até ao mostrador, onde pousou a mala. O «director», depois de tossir, de assoar-se, de suspirar e de limpar os oculos com umas delongas, que formavam com a anciedade do povo um contraste desesperador, abriu fleugmaticamente o sacco, extrahiu um não muito volumoso masso de cartas, que despejou n'um cesto de vime, e tomou apontamentos.

Era digno do pincel de um artista aquelle grupo de physionomias, que seguiam ávidas todos os movimentos de mestre Bento. Olhos e bôcas abertas, mãos juntas, pescoços estendidos, a cabeça inclinada para receber o menor som, tudo caracterisava profundamente a anciedade que lhes dominava os animos.

Mestre Bento Pertunhas achou a occasião apropriada para dizer a Henrique:

―Pois, senhor, eu nasci para artista. Quasi sem mestre aprendi a tocar trompa e, não é por me gabar, mas prezo-me de tocar com certo mimo e expressão.

Henrique volveu o olhar para o auditorio; apiedou-o a consternação d'aquellas physionomias. Resolveu valer-lhe.

―Tem a bondade de vêr se ha alguma carta para mim?

―Ah! pois já as espera hoje?

―Não é provavel; porém...

Mestre Bento Pertunhas, em vista d'isto, começou em voz lenta e fanhosa a leitura dos sobrescriptos.

Seguiu-se novo e não menos interessante espectaculo.

A cada nome proferido, erguia-se quasi sempre uma voz, ás vezes um grito; estendia-se por cima das cabeças um braço, e, podemos accrescentar ainda que se não visse, alvorotava-se um coração.

Outros, os não nomeados ainda, olhavam com anciedade para o masso, que diminuia, e cada vez mais se lhes assombrava o semblante.

―Luiza Escolastica, do logar dos Cójos―lia mestre Pertunhas.

―Sou eu, senhor, sou eu; ai, o meu rico homem!―exclamou uma mulher joven, apoderando-se ávidamente da carta.

―Joanna Pedrosa, de Serzedo―continuava elle.

―Aqui estou; será do meu Antonio, senhor?―disse uma velha, pobremente vestida.

―Será do seu Antonio, será―respondeu o insensivel funccionario;―o que lhe posso dizer é que traz obreia preta.

A mulher, que já tremia ao receber a carta, deixou-a cair, ouvindo aquellas sinistras palavras. Apanharam-lh'a; e ella, tomando-a, saiu da loja, a chorar lastimosamente.

―Se foi o filho que lhe morreu, não sei o que ha de ser d'ella―disse um dos circumstantes.

―Coisas do mundo!―respondeu outro.

Estes commentarios foram interrompidos pela continuação da leitura.

―João Carrasqueiro.

―Prompto, senhor―bradou um velho.

―A mezada, hein?―disse Bento Pertunhas, fitando-o por cima dos oculos.―O rapaz não se esquece.

―Deus Nosso Senhor o ajude, que bem bom filho tem saido.

―D. Magdalena Adelaide de...

―É a morgadinha, é a morgadinha―disseram a um tempo muitas vozes.

―Agradecido pela novidade; era cá muito precisa a explicação―disse o Pertunhas: e passando a carta para uma mulher, que era a encarregada de fazer a distribuição a quem a podia gratificar, accrescentou:

―Leve-lh'a a casa.

E proseguiu:

―Augusto Gabriel...

―É o mestre-escola...

―Ora fazem o favor de estar calados! Esta... como elle vem por aqui... pode ficar... ainda que... será melhor levar-lh'a a casa, leve, leve tambem...

―João Cancella.

―É o João Herodes.

―Esse foi a Lisboa.

―Então, quando vier, que appareça.

―O tio Zé P'reira ficou de receber as cartas. É compadre d'elle.

―Eu não quero saber de compadrices. O tio Zé P'reira que se occupe com o seu zabumba e deixe lá os outros.

A leitura mais ou menos acompanhada d'estes dialogos proseguiu, redobrando de momento para momento a anciedade dos que iam ficando. Um fundo suspiro, unisono, melancolico, expressivo de desalento, seguiu-se á leitura do ultimo nome e ás poucas palavras, com que o funccionario fechou a tarefa.

―E acabou-se.

Os que ainda estavam na loja sairam cabisbaixos, morosos e com tão má vontade, como se ainda tivessem esperança de commover a inexoravel sorte.

Henrique, ficando só com Bento Pertunhas, teve de lhe escutar ainda, por muito tempo, a narração dos seus passados triumphos artisticos, das suas amarguras presentes no magisterio, e das suas esperanças em melhoramentos futuros. Entre as ambições mais inquietas do mestre, a de obter o logar de recebedor de comarca, proximo a vagar por a morte imminente do respectivo empregado, figurava em primeira linha.

Depois de varias tentativas, Henrique conseguiu deixar o seu interlocutor, e continuou o passeio que este episodio interrompera, tão satisfeito e distrahido, que nem apprehensões lhe causava a ideia de trazer as botas humedecidas pelas hervas do caminho, ideia que, em outra occasião, bastaria para o fazer doente.

Ladeava elle um campo, cingido de altas silvas, a procurar saida para a deveza, da qual um fundo vallado o separava, quando lhe pareceu ouvir um rumor de vozes, como de alguem, que conversasse perto d'alli.

Parou a certificar-se.

Não se enganára. Era do outro lado da sebe, e na deveza, para onde tentava passar, que se estava falando.

Espreitou por entre as folhas do silvado que o encobria, e viu uma scena, que lhe moveu a curiosidade.

Um grupo de creanças e de mulheres do povo escutavam em pleno ar e com religiosa attenção, a leitura que uma senhora joven e elegante lhes fazia das cartas, que ellas para esse fim lhe davam. A senhora estava montada, não como romantica amazona, em hacanêa fogosa, mas modesta e simplesmente n'um digno exemplar d'aquelles pacificos animaes, a que Sterne não duvidou dedicar algumas palavras de sympathia nas suas paginas mais humoristicas, e que Pelletan incluiu entre os collaboradores da humanidade na grande obra do progresso, ou, deixando a periphrase, em uma possante e bem apparelhada jumenta.

Á roda as ouvintes encostavam-se com familiaridade ás ancas e ao pescoço do immovel quadrupede.

A leitora segurava no collo a mais pequena e a mais nua das creanças do rancho.

Lia com voz agradavel e sonora; e, graças á serenidade da manhã e ao socego do logar, ouviam-se distinctas, á distancia que ficava Henrique, as palavras, que ella pronunciava lentamente, como para as deixar penetrar bem na intelligencia do auditorio.

Henrique reconheceu muita d'esta pobre gente, por a mesma que, momentos antes, vira na casa do correio.

Mas as suas attenções voltaram-se com especialidade para a leitora.

Era uma mulher muito nova ainda. Uma graciosa figura de mulher, suave, elegante, distincta, um d'esses typos que insensivelmente desenha uma mão de artista, quando movida ao grado da livre phantasia; a côr, essa côr inimitavel, onde nunca dominam as rosas, mas que não é bem o desmaiado das pallidas, encarnação surprehendente, a que ainda não ouvi dar nome apropriado.

Os cabellos em fartas tranças, em ondas naturaes, não de todo pretos, porém, mais distinctos ainda dos louros; a estatura esbelta, sem ser alta, o corpo flexivel, sem ser languido; um vulto de fada, emfim, com a magestade, com a graça que deviam ter estas creações da poesia popular, se fôsse certo tomarem a fórma de virgens, para matar de amores.

Não se concebe attenção tão distrahida, que esta mulher não fixasse; olhos, que se não voltassem para seguil-a, depois de a vêr passar; coração, que não se perturbasse na sua presença.

Trajava um singelo vestido de xadrez branco e preto, adornado no collo e punhos apenas por collarinhos lisos. Descaía-lhe natural e elegantemente dos hombros um chale de casimira escura, sem lhe occultar as bellezas da airosa conformação; o chapéo de palha de largas abas, cobrindo-lhe a cabeça, espalhava pelo rosto as meias tintas, tão favoraveis ás bellezas delicadas.

Henrique comprehendeu logo a significação da scena, a que, tão inesperadamente, viera assistir. Aquella mulher parára alli, para ler a essa gente pobre e ignorante, as cartas que haviam recebido do correio.

Tambem era caridade a acção, muito mais cumprida com o bom modo e com o carinho com que ella o fazia.

Henrique applicou a attenção.

―...«E por isso, minha mãe»―lia ella―«se Deus me ajudar, espero dentro em pouco ir a essa terra e darei remedio a tudo. E não me fale vossemecê mais em vender o cordão e as arrecadas. Diga ao senhorio que tenha paciencia, que eu satisfarei a tudo.»

Aqui a leitora parou para perguntar:

―Então que historia é esta das arrecadas, Anna?

―É, senhora, que o aluguer estava vencido...

―E não podia falar-me antes de se lembrar do seu filho?

―Ora, senhora, bem basta o que...

―Fez mal. Estar a affligil-o com estas coisas! Elle que precisa de toda a coragem!

E continuou a ler a carta, no meio das lagrimas e das expansões de alegria da ouvinte, mais interessada n'ella.

Acabando, deu um beijo na creança, que tinha ao collo, e estendeu a mão a receber a carta, que outra mulher do grupo lhe passou. Esta era menos de consolar. Não se falava alli senão de contratempos, de revezes e desesperanças. Mais do que uma vez teve de suspender a leitura, para mitigar a dôr e enxugar as lagrimas, que ella estava produzindo na pobre mulher, a quem era dirigida.

Após esta, ainda outra e outra; uma do marido para mulher; outra de filho para mãe; outra de noivo para noiva.

Foi com o riso nos labios e inoffensiva malicia nas inflexões da voz e no olhar, que ella decifrou os mal legiveis caracteres, com que em papel bordado, pintado e recortado, vinham expressos os mais arrebicados conceitos amorosos, que ainda dictou uma paixão.

A noiva córava, sorria; mas, no meio da sua modesta turbação, era evidente que estava exultando de jubilo.

Com esta terminou a leitura.

Henrique não resistiu a esboçar rapidamente o gracioso grupo na carteira, que trazia comsigo. Não pôde, porém, deixar de dar-lhe um sabor de idade média, substituindo a jumenta por um palafrem de pura raça e dando á donzella, pelos trajes com que a desenhou, os ares de uma castellã rodeada dos seus vassallos.

Não lhe bastou o natural do quadro, quiz revestil-o de um figurino de convenção. Perdôe-lhe a arte, que julgou servir.

Depois de distribuir mais alguns beijos pelas creanças, a gentil rapariga passou a que tinha no collo para os braços da mãe e partiu rodeada de agradecimentos e bençãos, perdendo-a Henrique de vista, por entre as arvores do caminho.

Aquelle typo delicado de mulher, aquella singeleza do apurado gôsto, em que não podiam enganar-se olhos conhecedores, como os d'elle, aquella preciosa perola alli na aldeia! em uma terra para chegar á qual era necessario fazer uma comprida e laboriosa jornada! D'onde viera ella e como? que nuvem a trouxera? que viração a transportára?

Em tudo isto ficou a pensar Henrique, e quando se lembrou de que podia, para esclarecer-se, interrogar alguem do grupo, já não ia a tempo; tinham dispersado.

Conseguiu finalmente passar para a deveza, e foi sentar-se no logar, em que lhe apparecera a visão e ahi se demorou algum tempo; mas lembrando-se de que eram quasi onze horas, levantou-se para não faltar ás promessas feitas á tia Dorothéa, e que eram: a de visitar as senhoras do Mosteiro e a de estar em casa pouco depois do meio dia, para não transtornar a regularidade dos habitos domesticos em Alvapenha.

Pediu pois a uma creancinha que passava, que o guiasse á quinta do Mosteiro, e ahi chegou depois de um quarto de hora de caminho.

IV

A casa do Mosteiro, com a quinta annexa á casa, como o dava a entender o nome, pelo qual o povo a conhecia, tinha pertencido em tempo a uma ordem monastica.

Era um d'estes conventos campestres, que hoje ou se encontram em ruinas ou transformados em solar de alguma notabilidade provinciana. Ao de que falamos coubera o ultimo destino.

Incluido, depois do acto dictatorial de 1834, na lista dos bens nacionaes, fôra, por insignificante preço, vendido a um modesto proprietario das immediações, mais arrojado do que os vizinhos, ou mais convencido da estabilidade da nova ordem de coisas politicas, que se inaugurava no paiz.

E em tão auspiciosa hora lhe acudira aquella inspiração, que, em pouco tempo, lhe restituia a quinta o capital empregado, regalando-o todos os annos com não calculados juros, e elle, sem intermittencias, cresceu d'ahi por deante em prosperidade a ponto de deixar, ao morrer, a familia no numero das mais abastadas d'aquella terra.

A propriedade do Mosteiro, apesar de varios melhoramentos e reformas effectuados n'ella, offerecia, ainda claros, muitos vestigios de seus primitivos usos. Não era raro encontrar-se, aqui e alli, em pé uma cruz de pedra marcando antigos logares de devoção; no alto de algumas portas conservava-se visivel o emblema e divisa da ordem, ou restos de inscripções latinas; nas paredes da arcaria, em que se apoiava a face posterior do edificio, mantinha-se ainda um azulejo contemporaneo dos frades; finalmente resistira a successivas reformações certo colorido monastico, que só após muitos annos se dissiparia de todo.

Entrava-se para a propriedade por uma larga, comprida e magestosa álea de sobreiros seculares, alcatifada de relva, que, sobretudo dos lados, por pouco trilhada, crescia espêssa e verdejante. Abria-se, ao fim d'esta rua, o alto portão do pateo.

Henrique, deixado só pelo guia ao chegar alli, foi caminhando vagarosamente por esta avenida, dominado por a intima commoção e sentimento quasi de temor, que se apodera de nós, em todos os logares a que se ligam memorias do passado.

A phantasia estava-o transportando a tempos, a que não chegavam já as suas recordações, ás épocas, em que, por entre estas arvores gigantes, se via passar, como um phantasma, o habito escuro do monge, cuja sombra o sol, ao declinar no horizonte, tantas vezes projectou, esguia e estirada, ao longo d'aquella mesma avenida.

Impressionado por esta ordem de pensamentos, chegou Henrique ao portão, transpondo o qual se introduziu no pateo. Era um largo terreiro de perfeita fórma rectangular, limitado ao fundo pela fachada da casa, e lateralmente por elevadas paredes, armadas á maneira de pannos de Arrás, com tapeçarias de vigorosas heras. A cada uma das paredes encostavam-se dois tanques de vasta capacidade.

No tempo dos frades vomitavam, sem cessar, as feias e enormes carrancas de todos estes quatro tanques grossos jorros de fresca e purissima agua; porém as medidas economicas do ultimo proprietario e as exigencias dos seus projectos agricolas haviam derivado para outros fins, parte d'esta abundante veia, de maneira que tres d'aquellas bacias estavam agora completamente a sêcco.

Os fetos de folhas recortadas, as pegajosas parietarias, os funchos odoriferos, havia muito que tinham invadido a bôca dos encanamentos inuteis onde encontravam asylo imperturbado lagartos, aranhas e myriapodes, e se estabeleciam pacificas colonias de caracoes.

A fachada do ex-mosteiro nada tinha de notavel pelo lado architectonico. A arte não tivera fadigas, ao concebel-a; o cinzel pouco se embotára a executal-a; nem uma columna singela, nem um florão, nem um tympano lhe davam a menos pretenciosa apparencia monumental. Imagine-se uma vasta casaria de um andar além do terreo, com muitas janellas de peitoril e uma só varanda de pedra sobranceira á porta principal; acima do telhado, uma especie de agua furtada, de construcção evidentemente posterior e aconselhada aos proprietarios modernos por conveniencias de accommodação domestica; e ter-se-ha concebido o edificio.

Emquanto Henrique se occupava a examinar estas particularidades, um velhito, que, sentado em um banco de pedra, que havia á porta de casa, se estava aquecendo ao sol, ergueu-se e veio ao encontro do recem-chegado, tossindo e arrastando os passos.

Junto de Henrique, o velho, de apparencia meia rustica, meia urbana, depois de o saudar com grave cortezia, que deixou a descoberto o solideo fradesco com que resguardava a fronte calva, perguntou se havia alguma coisa, em que o pudesse servir.

Ouvindo, depois de repetida, a resposta de Henrique, que disse procurar as senhoras, com nova cortezia lhe fez signal para que o acompanhasse, e ambos atravessaram o pateo em direcção da casa.

No portal o velho afastou-se de lado com toda a deferencia para deixar passar Henrique; em seguida abriu-lhe a porta de uma primeira sala, e, voltando-se, pediu-lhe para que lhe dissesse quem havia de annunciar. Henrique deu-lhe para esse fim um bilhete de visita, cuja significação teve de explicar, porque o velho não a comprehendia bem.

A final porém retirou-se por outra porta, levando o bilhete.

A sala, em que Henrique ficou esperando, era toda mobilada com pesadas cadeiras de couro lavrado e alto espaldar, mesas de pés em espiral, e pelas paredes alguns ennegrecidos retratos de frades, pertencentes provavelmente aos antigos proprietarios do mosteiro.

No momento em que o velho servo, que era uma especie de feitor honorario da casa, abriu outra porta da sala, para ir annunciar á familia a visita de Henrique, chegaram aos ouvidos d'este, de mistura com um tinir de louças e de crystaes, as vozes e risos de creanças, que falavam ao mesmo tempo. Com a entrada do velho produziu-se um certo silencio, e após uma voz de mulher, de timbre fresco e agradavel, disse audivelmente e como em resposta ás palavras do criado:

―Ora as etiquetas com que esteve, Torquato! Mande entrar para aqui.

O feitor parece que resmoneou não sei o quê, a que ainda a mesma voz redarguiu:

―O que não é bonito é fazel-o esperar. Ande, vá.

Torquato―chamemos-lhe assim, visto que assim lhe chamaram―appareceu outra vez e fez signal a Henrique, de que o esperavam na sala immediata.

Henrique que presentiu ir achar-se na presença de uma mulher nova e porventura bonita, correu, com instincto de perfeito homem de côrte, os dedos pelos cabellos, afagou o bigode, ageitou rapidamente o laço da gravata e entrou.

Era completo o contraste d'este aposento com o primeiro; transpondo aquella porta dissipava-se todo o perfume antigo, todo o caracter de vetustez, que até alli reinava em tudo. Era moderno o estuque do tecto, modernissimo o papel que forrava as paredes, e a mobilia toda de um cunho de actualidade, visivel aos olhos menos pesquizadores. Como para tornar mais frizante o contraste, a presença do velho feitor estava aqui substituida por a de duas creanças, a mais velha das quaes mal passaria dos seis annos.

O reposteiro, que caiu atraz de Henrique, foi como que uma cortina corrida sobre o passado. A porta, que elle transpuzera, a barreira que separava dois seculos.

Sentadas no tôpo de uma longa mesa de jantar, coberta de louça fina ingleza, estavam as duas creanças que dissemos, com os seus babeiros brancos e tendo cada qual defronte de si um prato de odorifera sôpa. Em pé, á cabeceira, presidia ao lunch infantil uma mulher, de quem Henrique só pôde notar vagamente os contornos geraes do corpo e não as particularidades das feições, porque, ficando voltada de costas á luz das janellas, velavam-lhe o rosto umas meias sombras, que não favoreciam o exame.

Ao vêr entrar Henrique, ella disse-lhe jovialmente:

―Na aldeia a sala de recepções é aquella em que a gente se acha, quando lhe annunciam uma visita. É assim pelo menos que eu comprehendo o viver do campo.

―E é assim que eu o aprecio, minha senhora―respondeu Henrique, approximando-se da mesa.

As creanças, interrompendo a refeição, fitavam o recem-chegado com aquelles olhos espantados e penetrantes, com que ellas, promptamente, e quasi sempre com a certeza de um verdadeiro instincto, decidem para si das sympathias ou antipathias de que lhes é merecedor um estranho, a quem vêem pela primeira vez.

A mulher, que presidia ao banquete, não suspendeu com a entrada de Henrique a occupação domestica, na qual estava empenhada. Mostrava receber-lhe a visita com um perfeito «á vontade», que nada tinha porém de affectado.

―Não sei se v. ex.a sabe...―ia dizendo Henrique, quando, ao chegar perto d'ella, parou subitamente em meio da phrase.

Na mulher, que estava deante de si, reconheceu a leitora da deveza, a interessante rapariga, que tanto o preoccupára.

Era ella, era o mesmo vestido de xadrez, era a mesma cabeça, agora melhor apreciada ainda, porque nada havia a encobrir-lhe a fronte de um primoroso modelo, e os cabellos penteados com tanta graça como singeleza. Em vez do longo chale de casimira, trazia agora uma especie de jaqueta, curta e larga, apertada por alamares, de fórma pouco mais ou menos similhante á que, na nomenclatura das modistas, nomenclatura quasi sempre absurda, e de mau gôsto, teve depois a impropria e desastrada denominação de zuavo!

A surpreza de Henrique não passou despercebida a quem era causa d'ella e que lhe correspondeu com um gesto de curiosa interrogação.

―Perdão, minha senhora―disse Henrique, comprehendendo aquelle gesto―mas ignorava que vinha encontrar aqui uma pessoa, que já me não era estranha.

―E sou eu essa pessoa?

―É v. ex.a effectivamente.

―Pois já nos vimos?

―Já... quero dizer, eu já vi v. ex.a

―Pode ser; pela minha parte confesso-lhe que me não lembra de o ter visto nunca. Apesar d'isso sei que é o sr. Henrique de Souzellas, sobrinho d'aquella boa senhora de Alvapenha, a tia Dorothéa; não é verdade?

―Eu proprio. O conhecimento que tenho de v. ex.a não é antigo tambem; data de algumas horas apenas.

A interlocutora de Henrique, ouvindo isto, contrahiu levemente as sobrancelhas bem desenhadas, fez um movimento de labios e deu á cabeça uma ligeira inclinação sobre o hombro, d'onde resultou para aquella gentil physionomia a mais adoravel expressão de estranheza, que pode animar um semblante de mulher.

―Esta manhã―proseguiu Henrique, a quem os encantos d'aquelle gesto não tinham passado despercebidos―assisti a uma scena commovente. O logar era uma deveza; uma joven senhora... joven e... e com outras qualidades, além d'esta, para excitar attenções, lia, em voz alta, as cartas que algumas pobres mulheres do povo acabavam de receber pelo correio...

Ella não o deixou continuar.

―Ah! entendo agora. Viu-me? Já andava por fóra? Não o suppunha assim madrugador. Mas onde estava tão escondido? Vejo que é indiscreto... Não admira, habitos da cidade. É verdade, é. Aquella gente encontrou-me no caminho quando eu voltava de uma visita a uns parentes pobres, e não me deixou sem que eu lhe abrandasse a ancia de coração que a affligia. Coitados! Que havia eu de fazer? Diga-me, já pensou no supplicio que deve ser olhar a gente para uma folha de papel escripta, na qual sabemos que se fala de uma pessoa querida, e não ter poder para decifrar aquelle enygma? Que martyrio! Eu por mim, confesso que me falta o animo para recusar pedidos d'aquelles, como me faltaria para negar uma gotta d'agua ao desgraçado que visse a morrer de sêde. A crueldade seria quasi igual. Não lhe parece?

Henrique formulou um galanteio, que ella porém não ouviu, entretida já a escutar o que uma das creanças lhe dizia.

―Lena, olha a Annica, que está a deitar a sôpa d'ella no meu prato.

―Deixa falar, Lena, deixa falar, foi ella que primeiro a deitou no meu. Não tem vergonha de mentir!

―Então―disse Magdalena, que a este nome correspondia a contracção familiar, de que se serviam as creanças.―Olhem agora se teem juizo. Vejam se querem que eu vá dizer á mamã que venha para aqui.

―Não é ella a mãe, visto isso―pensou Henrique, como quem modificava uma opinião que concebera antes e folgava com a modificação.―Será irmã? Talvez... Ou mestra... É mais provavel que seja mestra. Esta mulher foi de certo educada na cidade. Tem uns ares distinctos...

E elevando a voz:

―v. ex.a está-me recordando uma scena de um precioso livro, que nunca me canço de ler.

―Qual é?

―Werther.

―Ah!

―Conhece?

―Conheço... quero dizer, li-o, por acaso, ha pouco tempo. Compara-me a Carlota? É por estar a distribuir as rações d'estas creanças? Que mulher ha que não seja Carlota, n'essa parte? Em todas as casas se passa uma scena assim. Bem se vê que não tem familia.

―Por quê?

―Por lhe fazer tanta sensação o espectaculo d'esta.

―É certo―respondeu Henrique com melancolia.―Deve ser essa uma das causas; mas não a unica―accrescentou galanteadoramente.

E, de si para si, estava encantado de saber que a sua interlocutora tinha lido Werther.

Magdalena, para mudar de conversa, perguntou-lhe:

―Então que lhe parece esta nossa aldeia?

―Um jardim. Hontem, ao chegar, confesso que me foi desagradavel a impressão recebida. Nem admira; a noite, o frio, a chuva, o cansaço. Esta manhã, porém, a transformação foi completa. Estou encantado, fascinado! N'uma palavra, minha senhora, eu, cidadão em corpo e alma, reconciliei-me em poucas horas com a vida do campo.

―Desconfie da mudança rapida. Habitos radicados, qualidades ou defeitos de educação não se perdem assim depressa. Alguns dias aqui, e suspirará por Lisboa outra vez.

―Talvez não. Hoje estou até em acreditar que tinha razão o doutor, que me prometteu a cura das minhas doenças, se me costumasse devéras a estes habitos campestres.

―Ai, prometteram-lhe isso? E espera costumar-se?

―Por que não? Hoje já almocei ás sete horas, já andei mais do que uma semana inteira ando em Lisboa. E inda tenho por vêr as raridades da terra.

―As raridades?! E que raridades são essas que inda tem para vêr? A nossa pobre aldeia não lhe merece essa ironia.

―Então acha tão pouco curiosa esta terra? Do quasi nada que d'ella observei esta manhã, parece-me até...

―Ai, se fala da natureza, é outra coisa. A cada passo se encontra um ponto de vista, que nos obriga a uma exclamação. Mas ha por ahi certos cicerones, que insistem em mostrar aos hospedes as bellezas da arte. Peça a Deus que o livre d'esse flagello.

―v. ex.a assusta-me. Embora; se lhes cair nas mãos, farei por achar curioso o que elles acharem. Vae ser esse o meu systema de cura. Interessar-me por tudo o que a um homem da aldeia interessa. Foi o regimen que me prescreveu o medico, quando me receitou o campo, a titulo de emolliente; se o seguir, salvo-me.

―E não o diga a rir. Se quizer prender-se á aldeia, abjurar os attractivos da cidade, deve rustificar-se em tudo; principiar por cultivar o interesse por as questõesinhas da terra; deve, por exemplo, declarar-se pelo abbade contra a junta de parochia ou pela junta de parochia contra o abbade; ralhar do regedor na questão com os taberneiros ou defendel-o. Emquanto não chegar a isso, desconfie da sua acclimação.

―Farei por conseguil-o o mais depressa possivel. Outra coisa necessaria é deixar-me convencer ingenuamente dos inexcediveis dotes de espirito das notabilidades da terra, o que é de rigor; estar em perpetua admiração deante de uns certos nomes famosos que ha sempre em todas as terras pequenas, e que nos atiram á cabeça a cada momento. Por exemplo, aqui já sei de um, com que encherei a bôca a proposito de tudo; é o de uma celebre morgadinha dos Cannaviaes, pessoa em quem ouço falar, desde que puz os pés, ou por mim a alimaria que me trouxe, n'este productivo torrão.

Magdalena sorriu de uma maneira singular, ouvindo isto.

―Então com que, tem ouvido falar muito n'essa morgadinha?

―Oh! mas não faz ideia; de uma maneira desesperadora. Não ha pinhal, quinta, azenha, choça ou lameiro que não pertença a essa entidade, para mim desconhecida. Este nome anda-me já nos ouvidos, como um estribilho de cantiga popular; na estrada, nos campos, em casa de minha tia, na loja do correio, em toda a parte o ouço pronunciar. Parece que voga nos ares.

―Isso deve ter-lhe excitado a curiosidade de conhecer a pessoa.

―Qual! tem-me impacientado a ponto de nem perguntar por ella. E demais parece-me que a estou a vêr.

―Ora diga. Então como a imagina? Annica, não tens ahi um guardanapo?

―Como a imagino? Imagino-a uma morgada, e está dicto tudo; uma senhora nutrida, a rever saude por todos os póros, encarnada como uma romã, sobre quem os vestidos á moda assentam como pendurados de um cabide, as mãos cheias de anneis, meias luvas de retroz, um chapéo com uma cercadura de rendas, pousado no cocoruto da cabeça... v. ex.a ri-se? Acertei?

―Parece-me que sim; mas julgue-o por si já que tem á vista o original.

―Como?!

―A morgadinha dos Cannaviaes, sou eu.

―Vossa Excellencia!...

Henrique de Souzellas, apesar do seu uso do mundo, esteve por muito tempo sem saber como sair da situação em que se puzera.

Magdalena ria com toda a vontade; os pequenos riam, por contagio, sem saberem de quê. Tudo augmentava pois a confusão de Henrique.

―Ora confesse―insistia cruelmente Magdalena―confesse que o está lisonjeando a exactidão das suas conjecturas.

Henrique teve emfim uma lembrança. Tirou do bolso a carteira, em que, horas antes, esboçára rapidamente a figura esbelta da morgadinha, rodeada das mulheres do povo, e mostrando-lh'a, disse:

―Veja v. ex.a se esse esboço, apesar da sua imperfeição, está de accordo com a estupida concepção, que eu formára.

Magdalena lançou a vista para a carteira e sorriu.

―Ah! desenha?

―Quando os modelos tentam, tenho d'essas ousadias. Os resultados são lastimosos, como estes. Perdôe-me o original, que julguei possivel copiar, o desacato, mas...

Magdalena fitou em Henrique um olhar penetrante.

―Isso que diz sabe-me a um galanteio. Devo advertil-o de uma coisa, sr. Henrique de Souzellas. Não ha nada tão mal empregado como uma fineza no campo. Tudo quer o seu logar. Em Lisboa talvez o achasse pouco delicado... ou pelo menos pouco amavel, se me não dirigisse d'essas phrases conceituosas e bonitas. Vive-se d'isso lá. Aqui acho-as affectadas e inuteis... Que quer? Influencias da scena. Ha tanta semceremonia no campo! Aqui todos nos tratamos como parentes: ha de vêr. Não repara como eu o recebo n'uma sala de jantar, sem nem sequer tirar os babeiros a estas creanças? Olhe lá que fizesse o mesmo em Lisboa...

―Então v. ex.a já lá esteve?

―Eu nasci lá e lá me eduquei.

―Ah! bem se vê.

―Ah? Ahi está um ah, que eu desejaria muito que me explicasse.

―Não me será difficil fazel-o. É que antes já de ouvir falar v. ex.a, só ao vêr certa distincção, certa elegancia de maneiras, conjecturei...

―Basta. É um ah portanto, que tem umas poucas de más qualidades.

―Devéras? Uma interjeição tão innocente!

―Pelo contrario, é a voz mais perfida e inconstante da nossa lingua; tudo exprime, a hypocrita. O seu ah é vaidoso, adulador e iniquo pelo menos. Pela vaidade castigue-o algum resto de modestia que ainda se abrigue no seu coração lisbonense; a adulação competia-me castigal-a, mas perdôo-lh'a porque quero ainda suppôr que é um symptoma da doença das cidades, a meu vêr, a principal doença, que o obrigou a procurar a aldeia; da iniquidade, da injustiça, que faz á educação que se pode dar na provincia, ha de convencer-se dentro em pouco, quando eu lhe apresentar minha prima Christina, uma rapariga, que tem vivido aqui sempre e que protesta contra essa sua opinião; possue tudo quanto pode dar de bom a educação das cidades, e, o que mais vale, aquillo que lá é tão facil perder-se depressa, uma candura adoravel. É a irmã mais velha d'estas creanças―accrescentou, pousando a mão na cabeça dos pequenos, que comiam e conversavam um com o outro.

―Mas v. ex.a...

―Perdão. Outra coisa. Já agora que entrei no caminho das admoestações, permitta-me mais uma, antes de perder o ar grave, que hei de por força ter. Não me sôa bem o impertinente tratamento de excellencia, que me dá. Essa excellencia está a pedir-me uma senhoria, pelo menos, e, confesso-lhe ingenuamente que me custaria a voltar na lingua uma palavra tão comprida.

―Como quer então que a trate?

―Eu sei?... Olhe, uma ideia! Ha pouco não me comparou á Carlota de Goethe? Deixe-me pois adoptar uma lembrança d'ella. Está certo de que tratou o Werther por primo, a primeira vez que lhe falou? É um tratamento como outro qualquer; e entre nós mais justificado, porque sendo o sr. Henrique sobrinho direito de D. Dorothéa, e teimando minha tia Victoria, a mãe d'estes pequenos e de Christina, que D. Dorothéa é ainda uma especie de nossa tia arredada, e como tal a tratamos, nós a final de contas vimos a ser uma especie de primos tambem. Pelo menos assim o sustentou e decidiu hontem minha tia Victoria; e ha de vêr como por primo o tratará! É um tratamento menos incómmodo; eu chamar-lhe-hei primo Henrique; chamar-me-ha, se quizer, prima Magdalena, e desterraremos para sempre a antipathica senhoria e excellencia; concorda?

―Acceito e acho deliciosa a proposta. Adoptamos o principio falso, admittido pela fidalguia em Portugal, de que «os primos dos nossos primos, nossos primos são.»

―Fica pois ajustado?

―Fica ajustado.

―Bem. Mas que ia dizer ha pouco?

―Nem eu já sei... Ah!... Perguntava se tinha estado muito tempo em Lisboa e o que a obrigou a vir viver para aqui.

―Isso é nem mais nem menos do que pedir-me a historia da minha vida. Seja; é um sacrificio inevitavel a quem se vê pela primeira vez. Deixe-me primeiro attender a estes pequenos, que eu principio.

E, depois de partir a cada creança uma fatia de queijo, a morgadinha principiou:

―A historia é curta e sem peripecias, tranquillise-se. Eu sou filha de Manuel Bernardo de Mesquita e...

Este nome era o de um dos principaes vultos politicos da época, e que então militava no campo opposicionista, sendo indigitado para ministro na primeira reforma ministerial, homem influente, de grande capacidade politica, tendo sempre advogado no parlamento as ideias mais liberaes, e militado no partido progressista.

Henrique de Souzellas, que conhecia todas as personagens de importancia no paiz, fitou Magdalena com olhar estupefacto: tão longe estava de encontrar alli a filha de um futuro ministro.

―Filha do conselheiro Manuel Bernardo! v. ex.a?

―Excellencia! Esquece-se da nossa convenção? Repare! É verdade. Não sabia que meu pae era d'aqui? Eu e meu irmão Angelo, que estuda actualmente n'um collegio em Lisboa, somos os unicos filhos de meu pae. Nasci, como disse, em Lisboa, mas as continuas enfermidades de minha mãe fizeram-nos vir para aqui viver na companhia d'ella; aqui mesmo morreu, e aqui está sepultada. O Angelo nasceu já n'esta casa. A morte de minha mãe deixou-me orphã aos doze annos, e incompleta a educação que ella principiára a dar-me e para a qual, se vivesse, ella só bastaria. Fui pois obrigada a voltar a Lisboa, onde continuei com mestra a minha educação. Mas, ao chegar á idade dos quinze annos, receiando meu pae que os ares da cidade desenvolvessem em mim germens de molestia, que porventura tivesse herdado, mandou-me outra vez para aqui, onde sempre passava alguns mezes no anno, e para onde me chamavam tambem habitos adquiridos em creança. Eu sou muito aldeã. Para aqui vim pois. A morte de meu tio, passado pouco tempo, impressionou profundamente a minha tia Victoria, que ficou desde então um pouco... um pouco... com pouca paciencia para olhar por as coisas domesticas. Isto creou-me novos deveres; havia aqui muitas creanças, estas duas, outras que estão lá dentro, e Christina, que era então creança tambem; occupei-me a ajudar minha tia.

―E tão admiravelmente, que a mais carinhosa mãe o não faria melhor.

―Dou-me bem com as creanças, dou. E a meu pae devo, em parte, o ter aprendido cedo esta sciencia. Porque é uma sciencia tambem.

―Então como procedeu o conselheiro para a ensinar?

―Eu lhe digo. Meu pae tem em certas coisas umas ideias muito singulares. Excellentes as acho eu. Oh! não imagina que boa e excellente alma é a de meu pae! Era eu uma creança, tinha onze annos, talvez, quando elle, um dia, vindo de Lisboa passar aqui algum tempo comnosco, me trouxe uma boneca, realmente bonita; uma maravilha de Nuremberg. Nos primeiros dias não me fartava de a vêr, de a beijar, até commigo a deitava. Oito dias depois succedia o que era de esperar, já nem d'ella sabia. Meu pae notou-o.―Então, Lena―aqui todos me chamam assim―já não gostas da tua boneca?―Disse-lhe eu: Gosto, mas...―Bem sei, já fizeste tudo o que tinhas a fazer por ella, e como, pela sua parte ella nada faz por ti, enfastias-te, canças-te de conceber, a cada momento, brinquedos novos. Tens razão; onze annos já não é idade em que o interesse se sustente com tão pouco, é necessario mais. Ora dize-me, Lena,―continuou elle―se eu te mandasse vir uma boneca que movesse os braços e os olhos, que te sorrisse, que chorasse tambem, que te beijasse até...―Pois ha bonecas assim?―perguntei eu, admirada.―E desejaval-a?―Oh! se a houvesse!...―Trago-t'a ámanhã. Não dormi aquella noite a pensar na boneca. No dia seguinte apresentou-me meu pae uma creança de um anno, orphã de uma pobre familia, que uma epidemia extinguira, e disse-me:―Ahi tens a boneca que te prometti, Lena; vou confial-a aos teus onze annos. Veremos se tens juizo para brincares com ella. É assim que eu quero que aprendas os deveres de mãe, que é a verdadeira sciencia apropriada a mulheres. E o que é certo é que eu, dissipado o desgosto dos primeiros momentos, porque o tive, confesso, costumei-me a querer áquella pobre creança, fui avara nas suas caricias, troquei por ella todos os meus brinquedos, e senti-lhe do coração a morte, quando, um anno depois, ella me expirou nos braços. Quando fui para Lisboa, já ia educada para amar creanças.

Magdalena contára tudo isto naturalmente, sem a menor affectação, sem deixar até de attender aos primos, o que augmentava o interesse com que a escutava Henrique.

―E assim fica sabendo quem é a morgadinha dos Cannaviaes―concluiu ella, desatando o babeiro das creanças, que tinham terminado o lunch.

―É verdade, mas d'onde lhe vem este titulo singular, prima Magdalena?―perguntou Henrique, tomando ao collo uma das creanças, que a morgadinha pousou no chão.

―É que eu sou realmente a morgadinha dos Cannaviaes. Quero dizer, minha madrinha vivia na quinta dos Cannaviaes, uma quinta que fica d'aqui perto. Era uma senhora velha, rica, elegante e muito caprichosa; chamavam-lhe todos a morgada dos Cannaviaes. Tomou-me ella affeição, e, sempre que passeiasse, me havia de levar comsigo; d'ahi começaram a chamar-me de pequena a morgadinha. Quando ella morreu deixou-me tudo quanto possuia; n'esse legado entrava a quinta dos Cannaviaes, de que sou proprietaria ainda. Foi uma como confi ―É que eu sou realmente a morgadinha dos Cannaviaes. Quero dizer, minha madrinha vivia na quinta dos Cannaviaes, uma quinta que fica d'aqui perto. Era uma senhora velha, rica, elegante e muito caprichosa; chamavam-lhe todos a morgada dos Cannaviaes. Tomou-me ella affeição, e, sempre que passeiasse, me havia de levar comsigo; d'ahi começaram a chamar-me de pequena a morgadinha. Quando ella morreu deixou-me tudo quanto possuia; n'esse legado entrava a quinta dos Cannaviaes, de que sou proprietaria ainda. Foi uma como confirmação do titulo, que já desde creança me tinham dado; e para todos sou aqui a morgadinha, titulo na verdade pouco elegante e que tão mau conceito fez conceber ao primo Henrique da possuidora d'elle.

―Retracto-me, prima Magdalena; agora que sei a pessoa a quem elle pertence, parece-me outro. Acho-o bonito, gracioso...

―Vamos, vamos. Confesse que o titulo não é dos mais romanticos e que, de boa vontade, escreveria outro nome debaixo do desenho de phantasia que ahi fez, da mesma maneira que deu á humilde e fiel jumenta, que eu montava ha pouco, a conformação e orelhas elegantes de um palafrem, e quasi me transformou em uma amazona ingleza.

Henrique respondeu, sorrindo:

―Na impossibilidade de reproduzir as graças naturaes, soccorri-me ao expediente das bellezas de convenção. Confesso o meu deploravel erro.

―Olhe que não estamos em Lisboa, primo Henrique. Repare para essas arvores e refreie o sestro galanteador, com que está.

―Por quem é! Não leve o rigor a tal extremo. Tão injusta é comsigo, que se recuse a acceitar, como naturaes e sinceras, as phrases que a sua presença inspira?

―Ai, meu Deus, como refina! Veja como essa creança, que tem no collo, o está encarando com os olhos espantados. Se ella nunca ouviu falar assim aqui!

Henrique beijou as faces da creança, movimento em que não ia uma intenção menos lisonjeira do que nas phrases que dissera, porque elle percebia que Magdalena era extremosa pelos seus pequenos primos.

Abriu-se, n'este meio tempo, a porta da sala, e entrou, saltando, outra creança mais crescida, mas ainda de vestidos curtos, trazendo na mão uma folha de papel.

―Lena―dizia ella em alta voz.―Olha; queres vêr o que o sr. Augusto só me emendou hoje no thema francez?

Chegando ao meio da sala, parou a olhar com estranheza para Henrique.

―É o sr. Henrique de Souzellas―disse Magdalena.―O hospede da tia Dorothéa. Esta é Marianna, outra de minhas primas―accrescentou, voltando-se para Henrique.―Já vê que não faltam creanças n'esta casa; e ainda ha mais. É o que lhe dá o ar alegre que tem.

Marianna cumprimentou Henrique e não se constrangeu por mais tempo; mostrando á prima a composição que o mestre lhe emendára, disse:

―Ora vê que não tive muitos erros.

Magdalena sorria, examinando o thema.

Henrique ia a fazer não sei que pergunta a Marianna, quando á mesma porta, por onde ella entrára, appareceu o mestre, de quem se falava.

Augusto, que assim se chamava o recem-chegado, era um rapaz de pouco mais de vinte annos de idade; de rosto pallido e physionomia intelligente.

Ninguem adivinharia n'aquelle typo um mestre-escola de aldeia.

Trajava com simplicidade, porém com asseio e gôsto, e havia em toda a sua figura certo ar de distincção, que feria quem pela primeira vez o visse.

N'um leve pendor de cabeça, no olhar penetrante e fixo, e nos labios, como habituados a fecharem-se á saida dos pensamentos intimos, lia-se o caracter pouco expansivo d'aquelle adolescente.

Magdalena dirigiu-lhe a palavra, em tom de manifesta deferencia.

―Como vão os seus discipulos, sr. Augusto?

―Optimamente, minha senhora―respondeu o interrogado.

―O sr. Augusto―disse Magdalena, apresentando-o a Henrique―o primeiro mestre de meu irmão Angelo e hoje mestre de Marianna e Eduardo.

―Esquece-se, minha senhora,―accrescentou Augusto―que de Angelo sou discipulo tambem, e mais discipulo do que fui mestre.

―Do que me esqueci, e, a falar a verdade, não devia, foi de que de Angelo é effectivamente mais do que mestre, é amigo; assim como de todos nós. Este senhor―continuou ella, concluindo a apresentação―é o senhor Henrique de Souzellas, que se esperava em Alvapenha; é ainda nosso primo.

Os dois cortejaram-se com affavel delicadeza.

―Teve carta de Angelo?―perguntou em seguida a morgadinha.

―Não recebi ainda o correio de hoje.

―Nem nós; e é de estranhar que meu pae pelo menos não me escrevesse! Angelo não virá passar a festa comnosco? Pobre rapaz! Parece que renasce quando se vê aqui. É uma perfeita creança então.

Eduardo, outro primo de Magdalena, que Henrique ainda não vira, entrou n'este momento na sala, trazendo um masso de cartas na mão. Depois de cumprimentar Henrique, a quem Magdalena o apresentou, disse para Augusto:

―A mamã deu-me essas cartas para o sr. Augusto escolher d'ahi aquellas que eu pudesse ler.

―Eu verei devagar―disse Augusto, guardando-as n'uma pasta que trazia.

―Ah! já temos o Eduardo a ler cartas!―disse a morgadinha, afagando o primo.

―Pelo que vejo―disse Henrique de Souzellas, vendo Augusto em disposições de partir―tem uma vida muito occupada?

―E tanto que sou obrigado a pedir licença para me retirar. Tenho de ir esta tarde a casa do Seabra...

―Ai, lecciona ainda as pequenas do brazileiro?―perguntou Magdalena.

―Ainda, sim, minha senhora.

―E como vão essas mulatinhas?

Augusto encolheu os hombros, sorrindo; gesto que não devia lisonjear a vaidade do sobredicto brazileiro, se tomasse a peito os dotes intellectuaes das referidas mulatinhas.

Passados segundos, Augusto retirou-se, apertando a mão a Magdalena que familiarmente lh'a estendeu, e a Henrique, que a imitou.

―Ia apostar que vae alli uma intelligencia―disse Henrique ao vêl-o sair―algum d'esses grandes espiritos, que vivem e morrem ignorados e improductivos, porque os não aquece o sol do favor publico, nem os bafeja a aura da moda caprichosa. É terra de maravilhas esta, ao que estou vendo.

―É um rapaz intelligente, é―disse a morgadinha―e uma alma generosa. Desde tenra idade costumou-se a trabalhar. Não tem familia. O pae foi um pobre e honrado advogado de um logar perto d'aqui, que morreu quasi na miseria, deixando-o por educar. A mãe, que era d'estes sitios, para ahi veio, depois que viuvou. Elle tem sido, pode dizer-se, mestre de si mesmo. Dirigiu os primeiros estudos de Angelo e hoje é o seu melhor amigo. A morgada, minha madrinha, legou-lhe um patrimonio para elle se ordenar: não quiz, e preferiu ser mestre-escola. Meu pae, que lhe reconhecia intelligencia para mais, tentou dissuadil-o d'isso, mas nada conseguiu. Não ha quem o arranque d'estes sitios.

―Prende-o talvez alguma paixão?

―Não sei. É certo que é um professor modelo. O seu primeiro despacho foi temporario; agora, porém, espera meu pae fazel-o effectivo; para o que já elle fez novo concurso. Já vê que ambições são as d'este rapaz.

―Na verdade! com muito menos fundamentos ha quem aspire a ser ministro. Mas com certeza o coração entra como elemento no problema d'esse caracter.

―Mas ainda agora reparo!―exclamou a morgadinha―eu esquecida a conversar, e sem avisar a minha tia e Christina da sua chegada! Não o fiz logo, porque as sabia occupadas em umas longas novenas, em que andam; mas agora é tempo. Vae, Marianna, e tu, Eduardo; ide ambos dizer-lhes que está aqui o... o primo Henrique de Souzellas.

Marianna e o irmão sairam a correr.

―Vae conhecer duas boas almas―disse Magdalena, voltando-se para Henrique―minha tia é uma santa senhora, cujo peor defeito é suppôr-se victima dos criados; e Christina... Christina é um anjo.

V

Henrique de Souzellas sentia-se cada vez mais penetrado da sympathia, que logo á primeira vista, aquella mulher lhe despertára.

Havia na morgadinha um mixto de candura e de ironia, certa delicada reserva fluctuando, como uma sombra diaphana, na conversa familiar, a que tão espontaneamente se dava; um visivel conhecimento dos usos e etiquetas sociaes, e ao mesmo tempo uma coragem para cortar por elles, como quem se sentia sobranceira a toda a ousadia, inaccessivel ás suspeitas dos mais atrevidos: havia tantos enygmas n'aquella sympathica indole feminina, que poucos seriam impassiveis deante d'ella.

A pensar n'isto se ficou Henrique de Souzellas, calado, immovel, absorto, seguindo com os olhos os movimentos de Magdalena, que, sem o menor constrangimento, proseguia nas suas occupações domesticas.

Ouviram-se finalmente passos e vozes de differentes timbres na sala immediata.

―Ellas ahi veem―disse a morgadinha.

De feito, precedidas por Marianna e Eduardo, entraram na sala D. Victoria e Christina.

A mãe vinha dizendo:

―É o que eu digo... Não que vocês não querem crer! Ora vejam se isto se atura... se isto não é para metter uma pessoa no inferno!... Não tem que vêr!... Não ha ninguem que mais dinheiro gaste com criados e que seja tão mal servida como eu!... Eu só queria saber o que fazem os criados d'esta casa? Sim, só queria que me dissessem o que elles fazem, esse bando de mandriões!... Elle é o Torquato, elle é o Luiz, elle é o Damião, elle é a Ermelinda, elle é a Rosa, elle é a Violante... e não havia um só que me viesse dizer que tinha chegado o primo! É forte coisa!... Compromettem uma pessoa! Então como está?―accrescentou ella, mudando de tom para cumprimentar Henrique, a quem estendeu a mão.

Magdalena, ao ouvil-a, tinha já trocado com este um olhar malicioso.

Henrique correspondeu delicadamente á saudação das senhoras e procurou justificar os criados.

―Não m'os desculpe,―atalhou D. Victoria, elevando outra vez o tom de voz―aquillo é de proposito para fazerem ficar mal uma pessoa; ninguem me tira isto da cabeça... Aquillo é de proposito!

―Mas a mamã não vê que as criadas estavam comnosco á novena?―lembrou timidamente Christina.

―Pois que não estivessem. Quem tem serviço a fazer não pode ouvir novenas.

―Mas se a mamã é que as mandou!

―Pois sim... pois sim... mas... mas ellas é que me deviam dizer que tinham que fazer. Então eu é que lhes hei de estar a lembrar as suas obrigações? Não me faltava mais nada! Ora tens coisas, menina! Mas então vamos a saber, primo Henrique, fez bem a sua jornada?

Henrique principiou a falar para desvanecer a irritação de D. Victoria.

Como nós já sabemos dos pormenores da tal jornada, aproveitaremos a occasião para dizer duas palavras a respeito das novas personagens, que estão em scena.

D. Victoria, havendo attingido já a idade respeitavel dos quarenta e tantos annos, dispensa-nos grandes longuras e esmeros de descripção. Basta que o leitor saiba que era uma senhora nutrida, bondosa no fundo, e que sabia muito bem trazer os vestidos escuros da sua viuvez. Impertinente com os criados, doida pelos filhos e sobrinhos, muito sujeita a esquecimentos, e confundindo-se facilmente sempre que tentava forçar o espirito a abraçar alguma ideia mais complexa; mãos rotas com a pobreza; intolerante, em theoria, com os ladrões e malfeitores, porém felizes d'elles se d'aquellas mãos lhes dependesse a condemnação; eis o que era D. Victoria. Christina, porém, tinha dezenove annos; e esta idade gosa de privilegios, que eu não posso infringir. O leitor não me perdoaria se me visse passar estouvadamente por deante da prima de Magdalena, sem um olhar de homenagem á sua juventude e ao seu typo feminino. Reparemos pois.

Christina era mais bonita do que bella. Não havia n'aquelle rosto uma só feição, que não fôsse correcta e delicada. Tez alva e finissima; olhos meigos e quebrando-se com suavidade infantil; bôca, d'onde parecia sempre prestes a sair um afago ou uma consolação; voz, que da muita piedade d'aquelle bom coração, tirava ás vezes modulações commoventes; n'uma palavra, uma figura de cherubim, como as sonharam os mais inspirados artistas, cuja mão representou na téla os augustos mysterios do christianismo, tal era a primogenita de D. Victoria. Mas não procurassem n'ella alguns d'aquelles attractivos, que fixam de repente e como por magnifico influxo, a attenção dos olhos, uma d'essas particularidades physionomicas, pelas quaes a natureza, destruindo com arrojo feliz a geral harmonia de um semblante, consegue tornal-o mais fascinador; temperavam-se alli tão completamente todas as feições, que a attenção não se sentia obrigada a passar do conjuncto d'ellas, o que lhes diminuia muito a intensidade. É o grande senão dos rostos harmonicamente perfeitos.

Concordava-se em que Christina era galante, ninguem lhe negaria sympathias; mas o pensamento na ausencia d'ella, não se sentia dominado por a sua imagem: perdia-a até n'um vago, quando pretendia fixal-a: eram suaves de mais as inflexões d'aquelles contornos, brandas as tintas que lhes davam relevo, para que a memoria conseguisse reproduzir facilmente o typo angelico, de que lhe ficára uma agradavel, mas vaga impressão.

Por um homem, em quem predominasse a razão, Christina poderia vir a ser adorada; mas nas imaginações ardentes, nos corações inflammaveis, difficil lhe seria produzir alguma impressão duradoura.

Para bem se comprehender a belleza de Christina, era preciso sondar-lhe primeiro o coração, apreciar todo o thesouro de sentimentos que alli se continha; então descobrir-se-lhe-hia nas feições certa belleza ideal, reflexo de bondade e candura, uma d'essas claridades que as almas puras e generosas vertem nas physionomias. Se não fôsse receiar-me de linguagem que saiba a philosophia, diria que a belleza, que possuem umas mulheres assim, é uma belleza subjectiva.

De tudo isto é natural concluir que Henrique de Souzellas podia sympathisar com a candida figura de Christina, a qual baixava timidamente os olhos deante d'elle, córando cheia de enleio e confusão, mas que qualquer sentimento que ella lhe inspirasse, não conseguiria por muito tempo desviar-lhe o sentido dos encantos mais attrahentes da morgadinha―que a muitos respeitos, menos na bondade de coração, formava contraste completo com sua prima.

Travára-se animada conversação entre as pessoas presentes, e principalmente entre Henrique, D. Victoria e Magdalena.

D. Victoria quiz ser informada da doença de Henrique. Este passou a fazer-lhe uma exposição igual, com pequenas variantes, á que fizera á tia.

Mencionou, como a ella, aquelles vagos symptomas, aquellas tristezas, impaciencias e desalentos, que tão ingenuamente a boa senhora classificára como mania.

Emquanto Henrique falava, Magdalena poz-se a rir.

Henrique tornou para ella os olhos.

―Ó menina, de que ris tu?―perguntou D. Victoria, com certo tom de severidade.

―Rio-me d'aquella doença, tia. Pois já viu alguem padecer d'aquillo? Ora diga?

―Eu?... mas...

―Pode dizer que não. E comtudo o primo Henrique não mente. Ha d'aquellas doenças na cidade, ha; mas na aldeia são tão raras, que eu mesma as estranho já, eu que as vi em outro tempo...

―Então não crê na realidade d'ellas.

―Não lhes estou a dizer que sim? Ouço até que já teem levado ao suicidio. Acredito-o. Os habitos da civilisação affeiçoam a seu modo a natureza humana e criam molestias novas, que nem por isso são menos naturaes. Mas que quer, primo? A minha estranheza, ao vêr um d'esses doentes em plena aldeia, não é modificada por todas essas considerações. É como um homem de casaca e gravata branca; não ha nada mais sério e mais grave n'uma sala de baile, mas colloque-m'o n'um monte, e diga se o pode olhar a sério.

―Quer dizer que não devo queixar-me aqui, sob pena de zombarem de mim.

―Tanto não digo; mas não o entenderão; isso não.

―Porém a minha doença não é só d'essas, que se não dão na aldeia, prima Magdalena; eu creio que verdadeiras desordens organicas...

―Ah! tambem?―Com esse aspecto de robustez?!...

―Se eu sei o que tu estás ahi a dizer Lena!―disse D. Victoria, que não tinha percebido bem o dialogo.

―É que eu, minha tia, teimei em fazer perder ao primo Henrique todos os maus habitos da cidade, com que veio para aqui. Sem isso não pode curar-se.

―Sujeitar-me-hei da melhor vontade a tão agradavel dominio.

―Principia mal, se principia com uma fineza. Já o avisei ha pouco...

―Será necessario tornar-me grosseiro, para me salvar? N'esse caso renuncio á cura.

―Grosseiro, não; basta que seja razoavel e sobretudo...

―Acabe.

―Acabo? eu sei? Eu ás vezes sou sincera de mais.

―Eu adoro as sinceridades.

―Já que o quer... É preciso que seja razoavel e sobretudo... desaffectado.

Henrique de Souzellas mordeu ligeiramente os labios, córando.

―Então acha?...

―Acho que está sempre a imaginar-se n'um salão; faz uns gastos de galanteria, desnecessarios e perdidos.

―Ó meninos, eu não vos entendo―repetia D. Victoria.

Magdalena sorriu.

―Digo eu que...

Um criado entrando com as cartas do correio não a deixou continuar.

―Sempre chegou o correio!―exclamou Magdalena com vivacidade, recebendo as cartas.―Por que veio tão tarde?

―A mulher contou-me lá umas historias de uma quéda, e...

―Coitada! Aconteceu-lhe algum mal?

―Esteja descançada, minha senhora. Ella partiu já e era um gôsto vêl-a a correr.

Magdalena abriu com pressa a carta recebida.

―É de meu pae―disse ella, olhando-lhe para a lettra e, depois de pedir licença, começou a ler para si.

―Pois agora―dizia, n'este meio tempo, D. Victoria a Henrique―o que deve é aproveitar estes bonitos dias para dar alguns passeios. As pequenas acompanham-n'o. Aonde me dizias tu no outro dia que querias ir, Christina?

―Eu! disse Christina, córando.

―Tu, sim, menina. Inda hontem me falaste n'isso. Ora onde era?...

―Á Senhora da Saude, mamã.

―Ai, é verdade, á Senhora da Saude. Ahi está já um passeio bonito. Vê? Saem d'aqui uma manhã cêdo, levam alguma coisa para lá comer, porque o ar do monte abre o appetite, e a cavallo estão lá n'um instante...

―A cavallo, mamã! d'aqui á Senhora da Saude? Ora! Vae-se muito bem a pé―notou Christina do lado.

―Isso é por os açudes.

―Pois por onde haviamos de ir?

―Por a Granja, que é melhor.

―Por a Granja! É uma legua!

―Que tem? mas escusam de trepar como cabras por o lado dos açudes, que é até perigoso; e depois para que hão de ir a pé, se para ahi estão os cavallos sem fazerem nada? É vontade de se cançarem.

―Mas appetece ainda mais n'este tempo. Só se... só se alli o sr. Henrique...―disse Christina, embaraçada ao continuar.

―Eu o quê, minha senhora?

―Perdão―interrompeu D. Victoria.―Por que não has de tu chamar primo ao primo Henrique? pois não chamamos tia á tia Dorothéa?

―Por isso mesmo, mamã,―respondeu Christina―os sobrinhos da tia Dorothéa não são...

―Não averiguemos d'esses parentescos, priminha,―acudiu Henrique―eu acceito a proposta da mamã, peço para ser considerado do numero de seus primos.

Christina baixou os olhos, sorrindo.

Henrique proseguiu:

―Mas parece que receiava por mim, quando falou em ir a pé á Senhora da Saude. Não sei onde é o logar, mas desde já me comprometto a não cançar.

―Não tem que saber―disse D. Victoria, caminhando para uma janella.―Ella lá está. Olhe que inda é necessario saber trepar.

―Tendo duas tão galantes companheiras de viagem―tornou Henrique, depois de reparar no monte escarpado que ficava a alguma distancia d'alli, o mesmo que o almocreve lhe mostrou―parece-me que daria a pé uma volta ao globo e que subiria a correr o Pico de Tenerife.

―O que eu lhe digo, primo―accrescentou D. Victoria―é que se acautele, porque se lhes vae a fazer todas as vontades, tem que vêr.

―Inda que morresse em tão agradavel serviço, teria de agradecer a Deus a morte.

―Cá me chegou aos ouvidos o cumprimento―disse Magdalena, que continuava a ler.―Logo ajustaremos contas.

―É implacavel esta nossa prima, não acha?―perguntou Henrique, sorrindo, a Christina, que por unica resposta só soube sorrir tambem.

―Pois então, é arranjarem, é arranjarem isso e quanto antes, que não ha que fiar no tempo. Eu se pudesse tambem ia, mas já não são passeios para mim, e depois estes criados...

Henrique de Souzellas receiou nova divagação sobre o assumpto predilecto de D. Victoria; mas felizmente acudiu-lhe a morgadinha, que disse, terminando a leitura da carta:

―Escreve-me o pae que tenciona vir passar comnosco as ferias do Natal e trazer Angelo comsigo. Promette demorar-se até o dia dos Reis.

As creanças saudaram a nova com gritos de alegria, e saltos de causarem inveja a um clown de circo.

D. Victoria zangou-se.

―Então que pouca vergonha é essa? Parecem-me um bando de patetas! Ora vamos! Já quietos. A culpa tem a Ermelinda, que já vos devia ter levado para a quinta. Ó Senhor, esta praga de criados, que nunca ha de fazer a sua obrigação!

As creanças reprimiram um pouco mais as expansões de seus jubilos, mas ainda ficaram cantando a meia voz, em musica de composição d'ellas, o seguinte:

―Vem o primo Angelo! Vem o primo Angelo! Ora viva, viva! Ora viva, olé!

―Pschiu! Calae-vos!―bradou ainda D. Victoria; e voltando-se para Magdalena:―Mas então como se entende isso, Lena? Então o pae diz que vem...

―Nas vesperas do Natal.

―Sim, nas vesperas do Natal, e vae...

―Depois dos Reis.

―Sim; está bem; e... sim... e então o Angelo?...

―O Angelo vem com elle. Quer vêr a carta?

―Não, menina. Mas é preciso não fazer confusão... Então...

―Não ha nada menos confuso... É só isto.

―Sim; pois agora, sim; agora está bem claro. Calae-vos, diabretes! Ó meu Deus, que consumição! Mas então por que não entregou o criado ha mais tempo essa carta? Eh! não que vocês dizem que elles...

―Ó tia, pois não ouviu que foi a mulher das cartas que se demorou, porque...

―Historias! Não me venham para cá com esses contos. Vocês estão sempre promptos para desculpal-os. São elles...

―Ó Lena, Lena―diziam as creanças―o primo Angelo não torna para Lisboa?

―Ha de tornar.

―Ora!

―Olha lá, ó Lena―disse D. Victoria―sabes tu o que me lembra?... Mas eu nem sei... com estes criados que tenho... Mas a mim lembra-me... uma vez que teu pae vem com o pequeno... e... está agora cá o primo Henrique... lembra-me a mim... mas, já digo, era se eu pudesse contar com os criados que temos... lembra-me, juntarmo-nos todos para consoar... A prima Dorothéa tambem, e aqui o primo; mas era se...

Uma perfeita ovação acolheu o projecto; as creanças levaram as suas demonstrações de enthusiasmo até o delirio, penduraram-se ao pescoço, á cinta, ao avental da mãe, gritando todas a um tempo:

―Ai, sim, mamã, sim; mande convidar a tia Dorothéa, mande! E ha de ficar em casa, sim? Olhe e... e arma-se o presepe... e... e... e havemos de cantar as janeiras... Mande, mande, mamã, por as alminhas; ora mande.

D. Victoria fingia arrenegar-se com aquella pequenada, e erguia o braço, como para a fustigar asperamente, mas, contra a sua vontade, rompia-lhe o riso dos labios.

―Saiam d'aqui!―exclamava ella, quando conseguiu estar séria.―Saiam!... Não ouvem?... Espera que eu vos falo... Ai, não fazem caso? Ora esperem... Marianna, já devias ter mais juizo... Então, Eduardo! Tu tambem? Não tem vergonha! Um homem quasi! Saiam d'aqui, estafermos!

A ideia das consoadas em familia fôra uma ideia que a ninguem deixára impassivel. Christina, a timida Christina, não disfarçou um movimento de jubilo; as mãos ajuntaram-se-lhe instinctivamente, e raiou-lhe no olhar suave um fulgor pouco costumado.

A propria Magdalena não se mostrou superior áquella tocante puerilidade.

Approximou-se com viveza da tia, e beijando-a nas faces, disse-lhe affectuosamente:

―Ora ahi está o que é muito bem pensado.

―Pois sim, sim, mas o peor é... os criados―disse D. Victoria.

―Quem fala n'isso? Na noite de Natal quem mais trabalha somos nós. Demais, teremos, para dirigir as tarefas, a Maria de Jesus, a criada da tia Dorothéa.

―Isso é que é a perola das criadas! Oh! aquella prima Dorothéa, aquella sua tia, primo Henrique, é que teve felicidade! Mas dizes tu... Bem se importam os de cá com a Maria.

―Não tem dúvida. N'aquella noite quanto mais barulho e desordem, melhor―aventurou-se a dizer Christina, com impeto revolucionario.

―Ahi temos outra! Não, filha; isso é que não. Para barulhos é que eu já não estou. Então, não.

―Está resolvido―disse a morgadinha, para cortar pelas divagações da tia.―Aqui o sr. de Souzellas―accrescentou, com maliciosa inflexão―fica desde já encarregado de transmittir á tia Dorothéa o nosso plano e, ao mesmo tempo, officialmente convidado.

―Acceito da melhor vontade.

―Não sei se o deverá dizer. É preciso que o avise de que n'aquella noite todos teem de trabalhar na cozinha; a ninguem se dispensa, um minuto, pelo menos, de collaboração nos guisados. Por isso veja lá....

―Ó menina, tens coisas!―disse D. Victoria.―Deixe-a falar, primo.

―Não é deixe-a falar. Eu não dispenso ninguem.

―E eu prometto não me recusar. Promptifico-me a tornar detestaveis os pratos em que puzer a mão. Que mais querem?

Foi alegremente acolhida a promessa.

As creanças, familiarisadas já com Henrique, em quem tinham adivinhado um humor jovial, o que é sempre para ellas um motivo de attracção, trepavam-lhe já aos joelhos e dirigiam-lhe perguntas sobre perguntas, difficultando-lhe as respostas.

―Havemos de jogar o rapa, não havemos?

―Havemos de jogar, havemos―respondeu Henrique.

―E o par ou pernão?

―Tambem; tambem havemos de jogar o par ou pernão.

―E?...

―Tudo, tudo; havemos de jogar tudo.

―Olhe: e sabe contar historias?

―Sei tambem contar historias.

―Então ha de contar-nos, que nós tambem lhe contamos a da Gata borralheira, a da Maria de pau e a da Menina com as tres estrellinhas na testa.

―Ora, o sr. Henrique já as sabe―disse, fazendo-se sisuda, Marianna.

―Pois não sei, não, senhora; quem lhe disse que eu as sabia? hei de querer ouvir isso tudo.

―Ó meninos!―exclamou D. Victoria, que até alli estivera distrahida a discutir com Magdalena.―Então isso que é? Já para baixo. Ai, se lhes dá confiança, está arranjado, primo.

―Deixe-os estar, minha senhora, este contacto de alegrias é salutar; pegam-se.

―E não o diga a brincar―disse Magdalena―que tambem confio n'essas creanças para o curarem dos seus males.

―Então devéras emprehendeu curar-me?

―Com toda a certeza.

―N'esse caso havemos de discutir devagar esse ponto de pathologia.

―Não havemos, não, senhor. É mau medico o que soffre que o doente o interrogue sobre a molestia e o tratamento. O medico deve ser obedecido com fé, e cega.

Christina que, havia muito, defronte de Magdalena, fazia esforços por lhe chamar a attenção, resolveu-se a falar-lhe.

―Lena―disse ella―que te parece a lembrança que teve ha pouco a mamã?

―A das consoadas? Excellente.

―Não, menina, a do passeio á ermida.

―Ah! Excellente tambem. Marquemos já o dia.

―Quando queres?

―Depois de ámanhã, que é quinta feira.

―Seja.

―Que diz, primo Henrique?

―Quando quizerem, primas; agora mesmo...

―Mas, veja lá, atreve-se a fazer uma madrugada?

―Pois não viu hoje?

―Ai, pois não! Na aldeia não se chama isso uma madrugada. É preciso que se levante ás horas, a que se deitava na cidade.

―Que estás a dizer, Lena?―acudiu Christina.―Deixa-a falar. Basta que saiamos d'aqui ás cinco horas.

―Esta innocente Christina! Pois não é o mesmo que eu digo? Pergunta ao primo Henrique se tinha costume de se deitar mais cêdo em Lisboa.

―Engana-se, prima Magdalena; lembre-se de que, ha perto de um anno, sou valetudinario.

―Ai, é verdade, que me tinha esquecido. O que vejo é que ha por aqui muita indolencia.

―Quem a ouvir falar, ha de julgar que será ella a mais madrugadora; ora havemos de vêr―disse Christina.

Magdalena poz-se a rir.

E o passeio ficou ajustado. A morgadinha lembrou que se convidasse Augusto, por ser conhecedor do sitio e poder mostrar os mais bellos pontos de vista.

Henrique saiu finalmente da quinta do Mosteiro, já retardado uma boa hora ao que promettera á tia Dorothéa.

Um criado serviu-lhe de guia até Alvapenha.

Henrique de Souzellas, ao findar aquella manhã, era inteiramente outro, do que viera para a aldeia. Todas aquellas horas se haviam passado, sem que o affligissem os males habituaes, sem que nem sequer pensasse n'elles. O viver intimo a que assistira, a troca reciproca de affectos entre os membros de tão numerosa familia, a franqueza cordial com que fôra recebido, produziram n'elle uma impressão profunda.

Costumado ao viver desconsolador e de gêlo de rapaz solteiro e só; não passando, nas casas que visitava, além da sala de visitas, esse palco artificioso e reservado, onde as familias ante as familias representavam a comedia social, Henrique estranhára, mas agradavelmente, o espectaculo, quasi novo, d'aquelle interior, d'aquelles modestos costumes, d'aquellas alegrias, que não se envergonham de apparecer sem reservas nem disfarces. Foi uma revelação que recebeu. Sorriu-lhe a ideia de ter um dia uma familia assim; de viver entre creanças que lhe trepassem aos joelhos, na companhia de affectos, que alli via manifestarem-se, e até com alguem que ralhasse com os criados, á maneira de D. Victoria.

Escusado é dizer que a imagem da morgadinha apparecia sempre n'estes quadros que lhe traçava a phantasia: assim como, nos quadros dos grandes mestres, apparecem quasi sempre reproduzidas as feições queridas da mulher que elles traziam no pensamento e a quem deram assim a immortalidade.

De manhã parecera-lhe a aldeia um paraiso terreal; completára-o a figura de uma mulher; sem o sorriso d'ella nem o primeiro homem seria feliz no eden, onde a mão de Deus o collocára.

―Anda, vagaroso, anda―disse D. Dorothéa a Henrique, assim que o viu chegar.―Se o jantar tiver esturro, a culpa é tua.

―Perdôe-me, tia. Demorei-me no Mosteiro...

―Ah! foste lá? E então gostaste d'aquella gente?

―É uma familia para o coração. Passa-se o tempo alli tão depressa! A morgadinha, sobretudo, é adoravel!

―Ai, ai; como elle nos vem! Olha lá no que te mettes, menino! A mina boa é, mas... filho, anda alli encanto, que ainda ninguem descobriu.

Henrique fitou os olhos na tia Dorothéa, que dissera isto com certa malicia.

―Que quer dizer, tia?

―Tu bem me percebes. Anda lá, anda. Se fizesses tu o milagre, se quebrasses o encanto, grande coisa seria; mas sempre te digo que não tomes a coisa a peito, que podes aggravar o teu mal.

Henrique levou o caso a rir, mas é certo que esteve um pouco mais preoccupado e distrahido no resto da tarde.

VI

O leitor, se alguma vez realisou uma viagem na companhia de qualquer amigo, ha de ter observado que, durante os primeiros tempos que passam juntos n'uma terra para ambos desconhecida, tão alheios ás coisas como ás pessoas, no meio das quaes se vêem, nem por momentos se soffrem separados; um segue sempre o outro em todos os passos que dá, precisa d'elle para communicar-lhe as primeiras impressões recebidas, e pedir-lhe em troca as suas; á medida porém que, pouco a pouco, se vão familiarisando mais com os logares e com as personagens d'aquelle mundo novo, afrouxa a constricção d'esses laços, e cada um principia a readquirir a independencia individual, que de motuproprio havia abdicado.

Um facto similhante nos succede com Henrique de Souzellas. Encontrámol-o na estrada; na companhia d'elle entrámos em uma terra, onde tudo nos era estranho; nada mais natural do que dar o braço um ao outro, passar juntos a manhã, e fazer, em commum, as nossas visitas. Agora, porém, que temos já algum conhecimento da terra e da gente, é tempo de nos declararmos independentes, e sacudirmos o jugo de uma companhia forçada, a qual, embora seja de um amigo estimavel, se é forçada, é sempre jugo, em certas occasiões.

Os proprios Castor e Pollux, ou Pylades e Orestes, penso eu, haviam de ter momentos em que se desejassem sós; se é que não deviam aos deuses a felicidade de possuirem curtos espiritos, o que não creio.

Deixemos, pois, Henrique de Souzellas entretendo com a tia Dorothéa a mais pacifica das conversas que podem auxiliar a digestão de um jantar; deixemol-o no tranquillo recinto de Alvapenha, e vamos associar-nos a um dos nossos recentes conhecimentos, que é Augusto, o mestre de Marianna e de Eduardo, aquelle pallido rapaz que entrevimos na sala da casa do Mosteiro.

Ao sair d'alli, Augusto seguiu através de campos e á beira de vallados, com aquelle ar pensativo que lhe era peculiar.

O pouco que da historia d'elle soubemos, pelas palavras da morgadinha, é já bastante para que nos não admire a quasi incessante melancolia de Augusto.

Aos vinte annos e sem familia! com intelligencia e mal podendo, á custa de sacrificios, cultival-a, e eleval-a á altura das suas aspirações! Alma generosa e compassiva, tendo muita vez de limitar-se a chorar os infortunios que via, porque a pobreza lhe negava meios de remedial-os!.. não serão estas ainda nuvens bastantes para toldarem a luz de uma existencia, embora a juventude as illumine?

Havia alguns annos que esta disposição para a tristeza se exacerbára em Augusto. Coincidiu o facto com algumas circumstancias, que convém referir.

A morgada dos Cannaviaes, madrinha de Magdalena e de quem viera a esta o nome de morgadinha, pelo qual mais conhecida era na aldeia, havia ao morrer instituido um legado a favor de Augusto, então creança, com a condição d'elle abraçar a vida ecclesiastica. O conselheiro, pae de Magdalena, devia administrar este legado, educando o rapaz nas escolas de Lisboa ou Porto, desde o dia do seu primeiro exame até o da primeira missa, porque n'esse lhe entregaria o capital por inteiro.

Isto succedeu no tempo em que a mãe de Augusto, que havia dois annos viuvára, luctava com a miseria, e o rapaz, pela sua penetração e pelo enthusiasmo com que aprendia, causava o espanto do velho mestre regio da localidade.

Foi por todos abençoada a memoria da morgada, por tão bem cabido legado, que era ao mesmo tempo que remedio ás privações de uma familia, premio e estimulo á intelligencia e á applicação de uma creança, que promettia vir a ser... Deus sabe o quê.

Ninguem se lembrou de perguntar a si proprio se a clausula, posta pela legataria como condição á concessão do beneficio, não podia ser uma crueldade que o annullasse; se comprar um futuro por dinheiro, sem querer saber a quantidade de aspirações, de esperanças, de phantasias que sejam, a que se tem de renunciar pelo contracto, não é uma iniquidade; se não era uma quasi simonia ir a casa do pobre, e fazendo luzir os reflexos do ouro nas sombras da miseria, propôr-lhe trocar por estes thesouros, que o fascinam, os valiosos thesouros da alma. Eu por mim abomino estes legados condicionaes, que um espirito malevolo, egoista e desejoso de dominar ainda depois da morte, tantas vezes dicta; essas meigas generosidades são ás vezes a causa do infortunio de uma vida inteira; acceites ou recusadas, é raro que depois, a cada provação que nos experimenta, uma voz interior nos não exprobre o partido que abraçamos.―«Louco! para que hesitaste em trocar meia duzia de phantasmas por um bem real? Quem te mandou sacrificar a vaporosos idolos de poetas o beneficio que te offereciam?»―dirá ella aos que rejeitaram o pacto.―«Ambicioso!―clamará aos outros―ahi tens a felicidade que julgaste comprar á custa do que ha de mais nobre na alma humana; embriaga-te agora no incenso, em que envolveste o altar do bezerro de ouro, consumindo ahi as tuas mais santas e generosas aspirações.» Augusto não adivinhou porém logo a crueldade da disposição testamentaria. Era muito creança ainda; e depois uma ideia nobre o preoccupou; comprehendeu que ia ser o amparo d'aquella pobre mãe, que só podia abrigal-o com os extremos do seu muito amor. Seu pae, morrendo, apenas conseguira deixar uma herança; foi á viuva o dever de velar pelo filho. Augusto exultou vendo que podia inverter aquelle legado, velando elle pela fraca mulher, que, para bem o cumprir, esgotaria de certo a vida.

Redobrou por isso a solicitude no aprender; desenvolveu-se mais e mais a intelligencia, quasi espontaneamente, pois justo é confessar que bem rudes eram os cuidados de cultura que o velho magister lhe sabia dar. Mas quem ignora os surprehendentes effeitos que da intelligencia e do estudo, da aptidão e da vontade, podem resultar? Dotem um homem d'essas duas faculdades poderosas e neguem-lhe embora os meios de progresso, elle caminhará, inventando-os primeiro, se tanto lhe fôr preciso.

E depois, é um grande alento aos espiritos superiores a consciencia de uma nobre missão a cumprir. Não ha fadigas que tal estimulo não vença; abnegação, que não inspire.

A Augusto era-lhe incitamento a ideia de que sua mãe precisava d'elle.

Quando ainda aos seus treze annos fôsse já bem conhecida a grandeza dos sacrificios que lhe exigiam, não hesitaria talvez, instigado por aquella aspiração; quanto mais que ainda mais lhe tinham animado os sonhos, as doces imagens, tão gratas ao coração do adolescente, e a que teria de renunciar.

Suspirava por o dia do seu primeiro exame, o qual, graças aos esforços empregados, não se fez esperar muito.

Quando se approximava a occasião, o pae de Magdalena mandou vir Augusto para Lisboa e hospedou-o em sua casa até que chegou o dia.

Não confiando demasiadamente no ensino publico da aldeia, o conselheiro quiz que o seu pequeno hospede recebesse algumas lições de um professor da cidade, e d'este obteve as melhores informações da intelligencia do rapaz, que só por milagre d'ella conseguira sair muito pouco eivado dos vicios do ensino de campo.

Augusto demorou-se algumas semanas em casa do conselheiro. A final fez o exame, no qual foi felicissimo, obtendo n'elle as mais distinctas qualificações.

Imagine-se o effeito que a noticia produziu na aldeia. Exaggerando-se, dizia-se por lá que em toda Lisboa corria a fama do rapaz, e houve até quem não hesitasse em affirmar que a creança confundira os mestres, que fôra uma maravilha.

O mestre-escola reclamou para si a gloria do acontecimento, fundando-se em que, através do discipulo, resplandecia a sciencia do mestre.

Os invejosos disputavam-lhe porém tão inquestionavel gloria e riam-se d'elle.

A pobre mãe, essa, levou todo o dia a chorar de prazer e a render graças á Virgem, a quem tanto encommendára o filho.

Voltou Augusto á terra.

Era o rapaz o assumpto de todas as conversas: olhavam-o como um prodigio. Todos o queriam vêr, como se até alli o não tivessem visto bem, e de feito todos o foram vêr; nem o abbade, nem o administrador, nem o presidente da camara faltaram. Foi tudo. Pois bem, de tantos que o viram, não houve um só que não notasse que o pequeno vinha triste.

Ninguem contestava o facto: que elle como que saltava aos olhos; as interpretações é que variavam.

―Aquillo é dos ares de Lisboa; a quem não está costumado... dizia um.

―São canceiras de estudos―aventava outro.―Ha lá coisa que puxe mais por uma pessoa do que o estudo!

―Não que vocês cuidam! Um exame sempre abala a gente cá por dentro―dizia um doutor, que levára dez annos a vencer um curso de cinco.

Fôsse pelo que fôsse, Augusto trouxera de Lisboa uma melancolia, que os ares da sua terra não dissiparam e que augmentava sempre que lhe falavam no futuro e no legado da morgada.

Quem mais a estudou, e sentiu aquella subita melancolia, foi, como era de suppôr, a receiosa mãe. Deus sabe que noites mal dormidas, que sustos e que intimos terrores ella lhe causou! Perguntas, supplicas, arguições, lagrimas, promessas, nada tiravam de Augusto, que teimava em responder que nada tinha que o affligisse, que era a illusão de quem o via a tristeza que lhe suppunham, e, para confirmar o que dizia ria; mas era mais triste aquelle riso, do que o pranto, em que se desafogasse.

Para breve estava a entrada de Augusto no collegio de Lisboa, onde, á custa do legado da defuncta proprietaria dos Cannaviaes, devia continuar nos seus estudos, quando o rapaz pediu para ficar algum tempo na aldeia. Não se pôde atinar com os motivos d'este pedido. Indolencia não era; pois no entretanto começou a estudar os rudimentos do latim com o illustre professor, que o leitor conhece já, mestre Bento Pertunhas.

A saude vacillante da mãe de Augusto declinou n'esse inverno; o que veio dar outro motivo á demora do filho.

Dias e dias passou o pobre rapaz sentado á cabeceira do leito dividindo os seus cuidados entre o estudo e os carinhos pela estremecida enferma. Dois annos se passaram d'esta vida, e quando, ao fim d'elles, Augusto abandonou aquelle leito, foi depondo um beijo nas faces geladas de um cadaver.

Era orphão.

A vaga sombra de melancolia, que já lhe toldava o rosto, condensou-se-lhe mais então. Era quasi um negrume de tristeza.

Por esse tempo, veio o conselheiro trazer Magdalena para a aldeia, pois receiava pela saude d'ella se persistisse em Lisboa.

O conselheiro propunha-se levar comsigo Augusto, quando voltasse a Lisboa. Uma manhã, porém, este, de pouco mais de quinze annos, procurou-o e disse-lhe com uma gravidade, que revelava uma tenção meditada e irrevogavel:

―Venho prevenir v. ex.a de que desisto do legado da sr.a morgada. Não quero ordenar-me.

O conselheiro fitou-o, estupefacto.

―Não queres ordenar-te! Por quê?...

―Já não tenho mãe a quem amparar. Por ella forçaria a minha vocação sem remorsos; por interesse proprio não o posso fazer; parece-me um sacrilegio.

O conselheiro era um homem muito do seculo. O seu trato social, a frequencia dos circulos politicos e elegantes, haviam-lhe dado todas as boas e más qualidades, que caracterisam aquella classe de homens, e sabe-se que a candura de sentimentos não entra no numero das mais habituaes d'essas qualidades. Tinha uma razão clara, mas fria; se abraçava uma boa causa, não o fazia cedendo ao enthusiasmo, mas sómente depois de ponderar fleugmaticamente os fundamentos em que ella se baseava; assim era que, em politica, se costumára a contemporisar, espaçando a adopção de qualquer medida, inquestionavelmente boa, para tempos em que fôsse mais conveniente; não se apaixonava por utopias, desconfiava d'ellas; havia muito tempo que desviára dos olhos o prisma encantado, através do qual olham o mundo os poetas e todos os mais sonhadores; costumára-se a marcar por modelo nas differentes carreiras da vida, não um typo ideal dotado de todas as virtudes, limpo de todos os defeitos e vicios; assentára a menor altura o alvo: parecia-lhe que bom fito eram já os individuos que tinham conseguido maior consideração na sua classe; as maculas que elles tivessem, eram, por esse facto, maculas auctorisadas. O pensar de outro modo era pensar de romance; agradavel para entreter, porém mau nas applicações ás coisas da vida. N'uma palavra, o conselheiro era um homem de bem, mas na esphera mundana; não um d'aquelles typos de pureza crystallina, através da qual parece passarem sem desvio os raios da luz celeste, mas já um tanto embaciado do bafo social, que não o fazia ainda totalmente opaco.

Por isso sorriu á declaração de Augusto. A carreira ecclesiastica não lhe parecia tão escabrosa como o futuro sacerdote a fazia; nem tão dura a lei, como em theoria se mostrava. O conselheiro não pensava necessario tomar ao pé da lettra certos deveres impostos; o mundo seria, como elle, tolerante em naturaes infracções; por tudo isso se riu. Fez a Augusto uma longa dissertação sobre as vantagens da vida ecclesiastica, sobre os muitos interesses que lhe promettia, e a leviandade com que elle queria renunciar a uma carreira segura movido pelas instigações de um espirito timorato ou de uma visão phantastica.

Augusto insistiu. Sem córar perante o sorriso sceptico do conselheiro, declarou que não abraçaria a vida ecclesiastica sem que se sentisse com a coragem precisa para cumprir todos os deveres que ella lhe impunha; que era precisa uma grande abnegação, e que elle, depois da morte de sua mãe, não tinha a certeza de a conseguir. Nos interesses não pensava, e se pensasse, seria isso a primeira prova de não estar preparado para a missão de que se queria encarregar.

Quando alguem abraça com lealdade e franqueza uma boa causa, difficilmente é vencido. O conselheiro, costumado a não recuar nas mais acerbas luctas do parlamento, calou-se dentro em pouco ás objecções d'aquella creança. Como que teve remorsos de tentar sequer desvanecer as illusões a que o via abraçado,―illusões pelo menos as suppunha elle; parecia-lhe uma obra satanica envenenar com um sorriso aquelle ideal, em que vivia.―Respeitou-o e calou-se.

―Alguma creancice amorosa dos quinze annos―pensou para si. Deixemos ao tempo convencel-o. Não me encarregarei eu d'esse papel, que é pouco sympathico. Quem me restituira aquellas canduras! Teria alcançado menos no mundo, mas talvez tivesse gosado mais... ou melhor...

O conselheiro cedeu apparentemente, esperando que a reflexão modificaria, mais tarde, as ideias do rapaz.

Exigiu d'elle que a ninguem annunciasse as tenções, em que estava de não se ordenar, pelo menos emquanto não passasse mais tempo sobre aquella resolução.

E uma vez que ficava na terra, pediu-lhe o conselheiro que se encarregasse da primeira educação de Angelo, então de nove annos; pois mais confiava para isso em Augusto, do que no professor official.

Augusto acceitou com prazer a incumbencia, que, sobre adequada aos seus gôstos, lhe abria uma carreira, que elle já imaginára adoptar.

De então nasceu uma intima amizade entre Angelo e Augusto. Foram rapidos os progressos do discipulo, e não menos reaes as vantagens que ao mestre resultaram do ensino, que lhe desenvolvia cada vez mais a intelligencia.―O conselheiro tinha motivos para estar satisfeito da escolha.

Ao fim de um anno as repugnancias de Augusto em acceitar o legado eram as mesmas; o egoismo paternal do conselheiro não o deixou ser muito ardente a combatel-as.―Espaçou-se mais uma vez a decisão.

Outras lições appareceram a Augusto, as quaes elle acolheu com gôsto; o mestre-escola reclamava tambem muitas vezes o seu auxilio; compadecido da sua velhice, Augusto nunca lh'o recusou.

O velho acabou por declinar n'elle o serviço todo, sem que Augusto consentisse em receber por isso o menor estipendio.

O publico não se cançava de perguntar quando seria que o rapaz principiaria os seus estudos em Lisboa e por que o não fazia já. Como não obtivesse resposta, commentava o facto, como costuma commentar todos os que não entende.

No entretanto a educação de Augusto não ficára estacionaria. Com grandes sacrificios a continuára elle; e n'um êrmo, como era aquella aldeia, tinha muito de milagre o que fazia.

O latim de mestre Bento já mal satisfazia ás impaciencias do espirito d'este discipulo enthusiasta; e não era raro que a intelligencia de Augusto visse mais fundo nos textos, do que a experiencia do mestre.

O acaso favoreceu os desejos do estudante.

N'uma freguezia proxima estava, como abbade, um doutor em theologia, homem de solido saber e de reputação extensa.

Um dia em que, por convite do seu collega, viera assistir e prégar na festa do orago da aldeia, o padre encontrou-se com Augusto na sacristia e, conversando-o, admirou-lhe a penetração, captivou-se da sua modestia e lamentou não estar mais perto d'elle, porque o auxiliaria, como pudésse, nos estudos.

Augusto perguntou-lhe se era sincera aquella vontade; affirmando-lhe o padre que sim, respondeu que não seria então estorvo a distancia, porque elle a venceria.

E d'ahi em deante, duas vezes por semana, ás quintas feiras e domingos, franqueava legua e meia dos mais escabrosos caminhos, para ir ouvir as lições do erudito abbade. Assim se aperfeiçoou na latinidade, cultivou a philosophia e adquiriu o gôsto pelos nossos velhos prosadores e poetas. Vinha de lá carregado de livros para ler durante a semana. Toda a bibliotheca do padre lhe passou pelas mãos.

Era porém o theologo classico exclusivo e nada visto em linguas e litteraturas modernas.

A sorte não recusou ainda a Augusto um novo mestre.

Entre os muitos estudos de estradas, de que os governos em Portugal fazem preceder, vinte annos antes, a construcção definitiva de uma só, que de ordinario sae sempre como se não fôsse tão estudada, um houve que levou á aldeia, em que eu e o leitor nos achamos, um engenheiro que ahi fez quartel e centro de operações, durante tres mezes inteiros.

A casa em que elle se alojou ficava proxima da de Augusto. Cêdo travaram conhecimento os dois. O engenheiro o menos que possuia eram livros de mathematica; mas, emquanto a litteratura moderna, trazia nas malas e bahús uma excellente provisão.

Não tendo que fazer ás noites, entreteve-se a ensinar o francez a Augusto e a ler-lhe os livros da sua bibliotheca portatil. Voavam as horas a Augusto n'aquelles serões; n'elles aprendeu todos os nomes da nossa litteratura moderna, bem como os principaes da de França e de Inglaterra.

Quando o engenheiro partiu da aldeia já Augusto sabia o francez bastante para se aperfeiçoar por si; este amigo deixou-lhe em lembrança grande parte dos seus livros, que Augusto releu muitas vezes.

Attingiu finalmente Angelo a idade de precisar do collegio. O conselheiro, ao leval-o comsigo, insistiu mais uma vez com Augusto para que viesse tambem e acceitasse o legado da morgada. Foi em vão, encontrou-o ainda inabalavel.

E d'esta vez fez publica a sua desistencia, e o ambicionado patrimonio foi concedido a outro.

Mezes depois morria o velho mestre-escola da aldeia.

Augusto escreveu ao conselheiro, declarando-lhe que pretendia aquelle logar, que já havia muito tempo servia, e pedindo-lhe para que se interessasse por que elle o obtivesse. O conselheiro quiz tirar-lhe da ideia tal projecto; escreveu-lhe que, na idade em que estava Augusto, o não ter ambições era indicio de uma profunda doença moral; que a posição a que elle aspirava, equivalia a uma sepultura estreita a que se acolhesse vivo. Augusto persistiu porém no intento; o conselheiro empenhou-se por elle em Lisboa. Conseguiu que uma portaria, meio pelo qual se faz em Portugal tudo que é contra lei expressa, o dispensasse da idade que ainda não tinha, pois mal completára dezenove annos, e Augusto foi por conseguinte admittido a concurso para tão pouco disputado logar e provido n'elle por tres annos. O conselheiro, a quem não fôra impossivel obter-lhe despacho vitalicio, quiz vêr assim se, no fim de tres annos, o obrigava a abandonar tão laboriosa e mal recompensada carreira, e de proposito o fez despachar temporariamente. Comquanto o legado da morgada tivesse tido já outra applicação, o conselheiro não hesitaria em proteger, em qualquer carreira, o mestre de seu filho.

Mas ao fim de tres annos, Augusto, apesar de por experiencia conhecer já os espinhos da profissão, apresentou-se novamente ao concurso para obter novo despacho. Na época em que abrimos esta narração, voltára Augusto de pouco de ultimar a nova prova; e estava pendente ainda a decisão do ministerio competente. D'esta vez tivera um competidor, homem muito protegido por influencias da localidade, as quaes ainda não tinham podido vencer a do conselheiro, que pugnava por Augusto.

Desde que fôra para Lisboa, Angelo não se esquecera de escrever amiudadas vezes a Augusto, contando-lhe dos seus estudos, e descrevendo-lhe a sua vida na capital; e quando vinha a férias, procurava transmittir ao que fôra seu mestre a sciencia que durante o anno adquiríra.

Foi assim que Augusto principiou a estudar a lingua ingleza, a geographia e a historia.

Recebido o primeiro impulso, a sua intelligencia e applicação faziam o resto.

Um homem que havia na aldeia e com quem cêdo teremos de travar conhecimento, um velho herbanario, para alguns um sabio, para outros um louco, para todos um homem honrado, concorreu tambem, com o seu contingente, para a educação de Augusto.

De tempos a tempos, este velho mysterioso apresentava-se em casa d'elle com um pacote de livros debaixo do braço e, sorrindo, pousava-lh'os em cima da mesa.

Eram quasi sempre aquelles, que Augusto mostrava ou sentia mais desejos de possuir. Da primeira vez, Augusto fitou o herbanario com espanto. Ninguem o suppunha rico; como podia elle pois obter aquelles livros, alguns dos quaes eram de preço? O velho porém disse-lhe, ao perceber-lhe a surpreza:

―Não queiras saber da minha vida, rapaz. Suppõe que eu tenho a servir-me uma vara de condão ou uma fada qualquer, e deixa correr.

Augusto acabou por persuadir-se de que o herbanario tinha accumulado riquezas, á fôrça de economias: porque de economias vivera sempre.

De pequeno merecera áquelle velho uma singular sympathia, e com affecto de pae fôra sempre tratado por elle.

Resignou-se a acceitar sem reflexões; até porque sabia ser facil o escandalisar o velho com ellas. O que fazia era evitar, na presença d'elle, qualquer palavra que pudésse denunciar desejos de possuir um livro qualquer. Mas o velho, como se tivesse de facto algum poder occulto a informal-o, ás vezes parecia adivinhar; e trazia-lhe livros que Augusto devéras desejava, mas a respeito dos quaes tinha a certeza de lhe não ter falado, nem eram d'aquelles que o velho conhecia.

A seu pesar via-se quasi inclinado a adoptar a crença supersticiosa do povo a respeito d'aquelle seu velho amigo.

Pensando melhor, pareceu-lhe procederem de Angelo as informações, pelas quaes o velho se guiava na escolha. Não lhe attribuia porém o presente, porque as economias de Angelo não chegavam para tanto.

Depois de tudo quanto temos dito de Augusto, poderá ainda o leitor estranhar os ares pensativos com que o vemos?

Poucos passos andados, depois que saiu do Mosteiro, encontrou Augusto a distribuidora das cartas, que lhe entregou uma sobrescriptada para elle. Era de Angelo.

Augusto abriu-a immediatamente e leu-a ainda pelo caminho.

Era uma extensa carta, em que se succediam os periodos em um d'esses longos, incoherentes e diffusos arrazoados, que constituem a essencia de uma carta de amigo para amigo.

Angelo falava dos seus estudos, de saudades da terra, de esperanças e de projectos, projectos que, n'aquellas idades, nascem e morrem a todo o instante. Terminava esta carta, em que lhe participava a sua vinda á aldeia pelo Natal, com o seguinte periodo:

«Peço-lhe que diga á Lindita que se não esqueça de mim. Dentro de poucos dias conto ir vêr os coelhos do quintal d'ella, e ajudal-a a tirar a agua do poço. O pae d'ella chega ahi ao mesmo tempo que esta carta; leva um livro para si.»

Augusto sorriu, ao ler o post-scriptum.

―Pobre Angelo!―murmurou elle,―Deus não permitta que sobreviva á tua ultima creancice essa sympathia por Ermelinda. Estas generosas affeições de creança muitas vezes, ao crescer, envenenam o coração.

Havia tanta amargura n'estas reflexões de Augusto!

E, como absorvido n'ellas, caminhou para casa do recoveiro Cancella, que era o pae da pequena, a quem na carta se alludia.

VII

A casa do recoveiro Cancella ficava n'uma das mais estreitas ruas da aldeia e ao lado de um pequeno quintal, objecto dos cuidados e das diversões do proprietario, que alli gastava algumas horas disponiveis da sua occupada e laboriosa vida.

Cancella era um verdadeiro Judeu errante da aldeia. A maior parte do tempo ia-se-lhe nas estradas; pernoitava hoje n'uma estalagem; viam-o ámanhã já a mais de seis leguas de distancia; acotovelava um dia a multidão nas ruas e feiras da cidade; no outro entretinha os curiosos da sua terra, deixando-lhes entrever os thesouros da experiencia adquirida á custa de muitos annos de fadigas.

As estradas em Portugal e os novos meios de transporte, que conjunctamente vieram, não destruiram totalmente esse typo dos antigos tempos, anterior a ellas. Além da época, que parecia dever marcar-lhes limite á existencia, passaram, sustentados pela fôrça dos habitos e justificados pelas irregularidades do serviço das postas; e Deus sabe quando de vez acabarão. Mas Cancella era além d'isso um recoveiro de uma especie rara e superior. Em todas as profissões ha sempre, no meio do vulgo, que as exerce sem enthusiasmo nem consciencia dos gôsos, superiores aos interesses, que ellas podem offerecer, certo grupo de escolhidos, que as idealisam, e enxergam um raio de poesia através das sombras, uma flor entre os espinhos. Cancella era d'estes; era o poeta da sua profissão. Tinha em si o que quer que era de um touriste, e assim aproveitava todos os ensejos que se lhe offerecessem de explorar algum ponto do paiz, ainda por elle desconhecido.

Este instincto levava-o frequentemente a Lisboa. As muitas relações do conselheiro, pae de Magdalena, com as familias da aldeia, e a barateza relativa das recovagens operadas por este meio primitivo, proporcionavam-lhe algumas occasiões d'isso, as quaes o Cancella de boamente aproveitava. Era de uma d'essas expedições que elle devia voltar aquella manhã, como o dava a entender a carta de Angelo.

Quando porém Augusto lhe bateu á porta, achou-a ainda fechada; escutou á fechadura, mas não pôde verificar o menor signal de que alguem estivesse dentro.

―É cêdo ainda―pensou comsigo.―Vejamos se estará em casa do compadre.

Seguiu mais para deante pela rua por onde viera.―A poucos passos mais, e do lado opposto, deparou-se-lhe outra casa de aspecto não menos rustico do que a primeira, uma pequena casa terrea, de uma só porta e uma só janella, e com o respectivo quintal ao fundo.

Do interior vinha um sussurro de vozes, como de conversa animada; julgando que seria o Cancella, de quem o proprietario era, além de vizinho, confidente e compadre, Augusto empurrou a porta, que estava apenas cerrada e entrou.

A primeira sala achou-a deserta. Era um aposento quadrado, todo adornado á volta de cruzes de pau, para as devoções da via sacra, e de imagens de santos e santas em caixilhos de todos os tamanhos. Mais do que os outros enramalhetado e enfeitado, via-se alli o bento registo de uma confraria, havia pouco tempo instituida na terra pelos missionarios, o qual occupava o logar de honra n'aquella devota exposição.

Era recente na aldeia o estabelecimento d'esta confraria, sociedade um tanto mysteriosa, por meio da qual seus interessados instituidores só visavam a dar o reino do céo aos filiados, contentando-se apenas, em paga, com o do mundo, do qual, lembrados de antigos tempos, teem saudades já. Os missionarios, certos evangelisadores em terras onde a palavra do Evangelho não é chave que abra a porta, pela qual entraram os martyres no céo, lá andavam por aquelle tempo, na aldeia onde se passa a acção d'esta historia, plantando a vinha, que elles chamavam do Senhor; as mulheres, abandonando os lares, seguiam-os como rebanhos; o culto catholico era por elles cada vez mais arrebicado com orações absurdas e ceremonias ridiculas, e o eterno anathema da ignorancia contra o progresso da sociedade servia de thema predilecto aos seus barbaros discursos.

Ardente proselyta d'estes apostolos de fé duvidosa, a sr.a Catharina do Nascimento de S. João Baptista, a metade feminina do casal em questão, tomára por modo de vida as devoções da igreja, onde ia chorar as desgraças da humanidade, que tão fóra via andar da estrada direita.

Augusto pouco se demorou n'esta sala; respeitando a alcova conjugal, que era vedada aos olhares profanos por uma colcha de chita de largas e folhudas ramagens, tomou pelo corredor, que conduzia á cozinha d'onde lhe continuava a chegar aos ouvidos o som de vozes, que primeiro o attrahira.

Ao contrario do que esperava, porém, só uma pessoa encontrou na cozinha, comquanto falasse com a vivacidade que em poucos dialogos se mantem.

Esta pessoa era o dono da casa, o sr. José do Enxerto, ou vulgarmente chamado ti' Zé P'reira―nome que lhe vinha do popular e ruidoso instrumento, o classico zabumba, que nas nossas aldeias tem ainda hoje aquelle nome.―Era muito para vêr e admirar a mestria, com que o nosso homem o sabia tocar nas festas e arraiaes, á frente das procissões e cêrcos, e finalmente em todas as solemnidades publicas.

O ti' Zé P'reira era homem dos seus quarenta e tantos annos; tinha no rosto, principalmente no nariz, vestigios evidentes das suas sympathias pela divindade celebrada nos antigos dithyrambos. Esposo da sr.a Catharina do Nascimento de S. João Baptista, vivia em perenne sabatina com a sua cara metade, sujeitando-lhe todas as suas acções, mas salvando sempre o direito de protestar pela palavra. Ganhava a vida no officio de hortelão e, aos domingos e dias de festa, á fôrça de rufos e pancadaria na retesada pelle do seu companheiro inseparavel―o zabumba. Era aos cuidados e vigilancia d'este par conjugal que o recoveiro Cancella confiava o seu mais precioso thesouro, a pequena Ermelinda, uma mimosa creança, que lhe ficára á sua viuvez tão cheia de saudades, e a quem elle mais queria do que á menina dos olhos.

Ermelinda era afilhada da familia Zé P'reira, e a mesma a quem ouvimos referir-se Angelo no fim da carta.

Zé P'reira estava, como dissémos, só na cozinha, quando Augusto alli chegou: sentado, no meio da sala, sobre um alqueire voltado com o fundo para o ar, viradas as costas para a porta e a face para o lar apagado e vazio, falava, gesticulava e mudava de tom desde a nota mais grave e rouca da sua escala de barytono, até o mais agudo e desafinado falsete. A lingua pegava-se-lhe ao céo da bôca, difficultando-lhe suspeitosamente a articulação de algumas syllabas; era evidente que se apossára do hortelão o espirito familiar, o qual n'este caso, era um verdadeiro espirito, na accepção chimica do termo.

Ze P'reira era um homem baixo, já grisalho, sufficientemente nutrido, de olhos vesgos e que mais vesgos se faziam quando o enthusiasmo, o rapto artistico se apoderava d'elle; usava de umas suissas que pareciam tentar sumir-se-lhe pela bôca dentro; tinha longos braços, accommodados ás difficuldades e evoluções da sua arte, e pernas que, do joelho para baixo, lhe divergiam em angulo de mais de trinta graus.

Quando Augusto deu com elle, o homem monologava, gesticulando:

―Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!... É forte desgraça!... Aqui estou eu!... Um homem casado... casado á face da igreja... que me casou em dia de S. Thiago o abbade que foi... e que Deus tenha em descanço. Não faltou nada... correram-se banhos deante de quem os quiz ouvir, e não houve quem puzesse impedimento... porque eu não devia nada a ninguem... sempre fui liso de contas... Sou casado com a Catharina do Nascimento de S. João Baptista, filha do Antonio Canhestro, do logar dos Fójos... E casado para quê? Faz favor de me dizer? Para que casei eu?... Forte desgraça a minha! Casei-me para isso!... Para vir para casa e achal-a vazia, o lume apagado e o caldo na horta... e a mulher a papar missas e novenas lá por essas igrejas... Ora, senhores, que é forte desgraça a minha! É forte desgraça!... Bem morria eu de frio e de fraqueza, se não fôsse aquelle quartilhito... o ultimo, que sempre me deu sua aquella... sim... sempre me conchegou o estomago. Não que dizem que o vinho que faz, que o vinho que acontece... Pois casem-se com uma mulher que vá de madrugada para a igreja e venha de lá quando muito bem lhe pareça, e verão depois se o vinho não serve de cobrir muita lazeira que se soffre... verão depois... Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!... Diz que Deus que disse, que a mulher que era a carne da nossa carne e o osso do nosso osso... Deus devia de vez em quando tornar a dizer estas coisas... para não esquecerem... como se faz na escola com a taboada. A minha Cath'rina já o não sabe, aposto... e pelos modos os padres não lhe dizem isto na igreja... pois deviam dizer!... A carne da minha carne e o osso do meu osso!... mas é carne e osso que me não fazem caldo... Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!... Como ha de um homem, se isto assim continua, pegar na enxada para dar uma cavadela, ou fazer qualquer sachada?... E tambem quero vêr como hei de no arraial e procissão de Santo Amaro, que não tarda ahi, dar sequer um rufo assim mais tal... assim mais scientifico? Eu se fôsse bispo...

A caudalosa corrente d'este soliloquio foi interrompida pela apparição de nova personagem á porta do quintal.

―Deixe estar, meu padrinho, deixe estar; tenha um bocadinho de paciencia. É um instante emquanto accendo o lume e lhe faço o caldo. Verá.

A pessoa, que assim falava ao entrar para a cozinha, era uma rapariga de doze annos, alva e franzina, como a mais delicada creança da cidade, com os olhos negros e expressivos de intelligencia e de doçura, e com os mais formosos cabellos louros que ainda enfeitaram uma cabeça infantil. Não havia n'elles sombra, que desvanecesse aquella côr deslumbrante; reflectia-se-lhes a luz nas ondas, naturalmente lustrosas, como em tenuissimos fios de metal; usava-os soltos e caidos, sem vislumbre de artificio, de um e de outro lado do collo.

Condizia com a expressão angelica do semblante o suave e affectuoso timbre de voz com que falára.

O leitor prevê de certo que é Ermelinda, a filha do Cancella, ou Lindita, como geralmente na aldeia lhe chamavam, a creança que tem na sua presença.

Ermelinda sobraçava um mólho de hortaliça, que fôra colher ao quintal, e dirigia-se com ella para o lar, que o descuido e a indifferença conjugal deixavam ainda apagado áquella hora do dia.

Dando, porém, com os olhos em Augusto, parou, sorrindo-lhe.

―Ai, pois estava ahi, sr. Augusto?! E o meu padrinho talvez sem reparar.

A estas palavras o desditoso marido voltou a cabeça e fitou em Augusto um dos seus desemparelhados olhos.

―Olá, sr. Augusto! Viva! Passe muito bem! Entre; esta casa é sua... De jantar não lhe offereço... porque... porque... Forte desgraça a minha... Olhe! repare para este desaforo!... Venho para casa, morto de trabalho... e vejo o lar apagado! A minha mulher está a ouvir missa, a confessar-se, a commungar... a tomar todos os sacramentos... acho que os está a tomar todos... Louvado seja Deus! Vem ahi tão limpa de consciencia, como eu estou do estomago... Ora, senhores...

―Deixe estar, padrinho... Verá como isto se arranja depressa... Olhe; o lume já está accêso―dizia Ermelinda, accendendo effectivamente o lume no lar.

―Já o devias ter feito antes, Lindita,―disse Augusto, sentando-se junto d'ella.

―Mas se inda agora vim das prêsas, onde fui lavar a roupa?

―Pobre pequena―disse o Zé P'reira―tambem não te ha de faltar lazeira, tambem!

―A mim? Agora. Não que eu não saí de casa com as algibeiras vazias.

―Pois sim... mas é sempre preciso coisa que conforte... Inda se tu bebesses... já não digo um quartilho...

―Credo, meu padrinho! Que está a dizer?

―Que espanto!... Ora, senhores, que parece que o vinho é bebida amaldiçoada, que todos lhe teem mêdo! É vêr se o padre na missa...

―Padrinho! padrinho! que vae dizer?―interrompeu Ermelinda, quasi aterrada.

―Eu digo o que é verdade, rapariga!... Tenho minha presumpção de nunca dizer senão a verdade... Lá o pespeguei na cara do sr. juiz de direito e mais do sr. doutor delegado e mais doutores, quando fui a um juramento, por causa d'aquellas pancadas no recebedor... É que nenhum d'esses santalhões, d'esses missionarios me teem que ensinar n'esse ponto... Os missionarios!... Eu, um dia, tiro-me dos meus cuidados e dou-me ao trabalho de lhes ir perguntar, quando elles estiverem no pulpito, se Deus lhes manda que tirem as mulheres de casa, para que os maridos não tenham que comer, quando voltarem do trabalho... Um dia inda lhes vou perguntar... isso vou...

―Olhe; a agua não tarda a ferver; verá que dentro em pouco...―continuou Ermelinda.

―Bem, Lindita, bem―disse Augusto―em paga da boa vontade, com que trabalhas, vou dar-te uma alegre nova.

―A mim? Diga.

―Trago-te visitas de alguem, que em poucos dias te dará em vez de visitas, um abraço.

―De quem? Ah!... Angelo escreveu-lhe?

―Como adivinhaste depressa!

―Pois de quem mais havia de ser? Mas diz que... em poucos dias... Então?

―Tel-o-hemos cá pelo Natal.

―Fala verdade?

―Assim m'o diz n'esta carta. Queres ler?

―Para quê?―respondeu a rapariga, fitando porém o papel com os olhos cheios de curiosidade.

―Ora lê, lê... Até para vêr se ainda te recordas das lições, que eu te dei.

―Ai, lá isso... mas, o caldo do meu padrinho...

―Deixa que o lume é que o ha de aquecer e não a tua presença.

Ermelinda approximou-se; tomando a carta das mãos de Augusto, começou a lêl-a com intensa curiosidade.

Zé P'reira proseguiu no seu monologo:

―A religião, senhores―dissertava elle―não manda tal... Isso é que não manda... A religião é a palavra de Deus... e Deus disse... sim... Deus disse... Deus disse muita coisa... Disse que por este deixarás pae e mãe. Ora a santa madre igreja é mãe, é, sim, senhores; que tem lá isso? mas não é mais mãe do que a outra mãe... e então... senhores, uma mulher não deve deixar por ella o seu marido; porque o marido, senhores, é o tudo de uma casa, e o ganhapão da familia. Ora, senhores, que é forte desgraça.

O monologo do desconsolado conjuge e a leitura de Ermelinda foram interrompidos por uma voz potente, que cantava na rua.

O dinheiro paga tudo,

Não se fica a dever nada;

Toma, toma o limão verde,

Ó da fresca limonada.

E logo em seguida estalaram as taboas do soalho no corredor sob uns passos pesados e ruidosos, e no limiar da porta da cozinha desenhou-se a figura agigantada e herculea do recoveiro Cancella, pae da Ermelinda. Cancella, ou o João Herodes, que assim tambem lhe chamavam por ter creado, nos autos em que era actor applaudido e popular, o typo do sanguinario e infanticida rei da Judéa, fôra pela natureza dotado de uma estatura e robustez, dignas de Adamastor.

Encontrava-se n'elle uma d'essas felicissimas realisações dos temperamentos sanguineos que, sem ameaçarem de insultos apopleticos, dão riqueza ao sangue, vigor aos musculos e á physionomia o aberto e colorido da saude e os reflexos da satisfação interior.

A barba negra e espessa cercava-lhe as faces córadas, e o natural fulgor dos olhos parecia augmentado sob o duplo arco de bastas sobrancelhas, que, quando contrahidas, os rodeavam de sombras ameaçadoras, d'onde fuzilavam relampagos. Era formidavel então!

O riso pairava-lhe porém, nos labios, quando na presença de amigos, descobrindo-lhe duas fileiras de alvissimos e bem dispostos dentes, d'esses que os excessos e absurdos culinarios ainda não deterioraram.

Parando á porta da cozinha, o Herodes (ás vezes lhe chamaremos assim, cedendo ao geral costume na aldeia) procurou com a vista alguem, que mais que tudo trazia na memoria―a filha.―Esta, pela sua parte, mal o reconheceu, correu a lançar-se-lhe nos braços.

O pae pegou n'ella, como se fôsse uma penna, levantou-a á altura dos labios e pousou-lhe nas faces dois sôfregos e ruidosos beijos, ainda palpitantes de todo aquelle intenso amor paternal.

―Ah!―exclamou, pousando-a no chão e respirando como quem acabava de satisfazer uma intensa necessidade do coração.―Isto consola que nem o copo de agua que a gente, em dias de calma, pede á borda da estrada, quando se leva a bôca secca e queimada de poeira! Mais do que isso me sabem estes dois beijos que te dou, pequena. Que querem?... Ó sr. Augusto! tambem por cá?

―Esperava-o, Cancella.

―A mim?―continuou o homem, pousando no chão uma mala que trazia.―Pois aqui me tem. Mas, dizia eu, um homem quando anda lá fóra, e pensa no que lhe irá por casa, sente ás vezes uns sustos, que parece que lhe fazem tudo escuro... As desgraças, para succederem, não põem muito... De um momento para outro... E depois a gente ouve por lá conversas, vê coisas que parece que são agouros... e que nos fazem a noite no coração... Umas vezes é um enterro... outras, um desastre... um fogo... um... E as creanças sós, e os paes fóra de casa!... Ai! Isto é de ralar o coração de uma pessoa... Eu bem sei que em boa companhia me fica a pequena. Aqui o compadre, tirante lá a sua aquella pelo sumo da uva... Quantos foram já hoje, compadre, hein?... mas, tirante isso, é homem de bem: a comadre é uma santa, que só tem o defeito de querer ser santa devéras... mas emfim... tudo isso não obsta; uma coisa é uma pessoa saber o que lhe vae por casa, outra... Tremem-me as pernas sempre que entro na aldeia. A primeira alma de Christo, que encontro, estou sempre a vêr quando me vem dar alguma nova má. Salta-me cá por dentro o coração, que ninguem faz uma ideia; eu bem canto a vêr se disfarço, mas... Ai, filha da minha alma, quando me passa pelo pensamento que te posso um dia vir achar doente!... Assim me succedeu com tua mãe... Deixei-a uma vez tão satisfeita e alegre, e vae, quando voltei, a primeira pessoa que encontro, diz-me á queima-roupa: «Venha, sr. João, venha, que já não vem sem tempo. Corra a casa, se ainda quer vêr sua mulher...» Foi como se recebesse uma descarga em cheio no peito... corri, e...

A commoção impediu-o de continuar; disfarçou como envergonhado d'aquella fraqueza, beijando a filha outra vez.

Ermelinda percebeu a perturbação do pae e disse-lhe carinhosamente:

―Para que está agora a pensar n'essas coisas que o affligem, meu pae?

―Deixa-me cá, rapariga. Isto ás vezes tambem faz bem. Mas, por isso, quando entro em casa e te vejo, pequena, e te vejo com boas côres e alegre... nem eu sei o que tem mão em mim, que não me ponho a dançar. Ah!... ah!... Ninguem tem uma filha como eu! Olhe que não, sr. Augusto; mal fica a mim dizel-o, mas... Lá por Lisboa e por o Porto ha muita menina galante, isso ha; muita inglezinha loura, bonitas como anjos, mas cabellos assim dourados?―e passava com orgulho os dedos pelos bastos cabellos de Ermelinda―mas uma pelle assim delicada,―e afagava-lhe com as mãos a face, quasi a mêdo―mas olhos assim a metterem-se mesmo pelo coração á gente?―e beijava-lh'os com paixão―isso é que eu ainda não vi, nem tenho de vêr. Como o Senhor concedeu um anjo d'estes a um selvagem como eu, é que não sei... É a imagem da mãe!... Ella tambem era poucochinho de si... miudinha e... Mas não pensemos n'estas coisas. Sim, senhores; eis-me aqui outra vez, e por signal com a minha vida por arranjar e eu posto á taramela. Trago-lhe uma encommenda, sr. Augusto, e muitos recados, muitos.

―Já sei; Angelo escreveu-me.

―Escreveu? Ah, sr. Augusto, que rapaz aquelle! Aquillo é uma perola! Com tres milheiros de demonios do inferno! d'alli ha de sair coisa grande. Eu não queria morrer sem vêr o que saía d'alli. Brinca como uma creança, mas, quando quer, põe-se sério, e fala como homem. E nada de soberbas, nem de ares enfastiados, como tomam aquelles senhores da cidade, quando conversam com uma pessoa rustica... Qual historia! Elle tudo quer saber, tudo pergunta... isso é um nunca acabar, quando lá me pilha... Então como vae fulano? e sicrano? e se já se fez aquella casa, e se já acabou aquella obra, e se já casou este, e se inda vive aquelle, e mais para aqui, e mais para acolá, e tudo quer muito explicado... Ah! ah! ah!... tem diabo o pequeno... Pois cá a respeito da rapariga?... Isso é uma comedia!... Não se farta de me ouvir falar d'ella... Ah, sr. Augusto, ás vezes chego a ter pena de que isto nascesse minha filha.

Ermelinda fitou o pae com olhos espantados.

―Sim, filha,―proseguiu elle.―Deus não te devia dar a um homem como eu, que emfim... Com os diabos! lá alma e coração... não quero que haja ahi quem me leve a barra adeante. Eu por um amigo... e com mil demonios, até por um inimigo, se não fôr soberbo, vamos lá, dou a camisa do corpo... Mas o mundo... Bem, bem, eu cá me entendo. Vamos á minha tarefa. Mas que tem você estado para ahi a prégar, compadre, desde que eu entrei? Humh! humh! parece-me que já se cantou a gloria, hoje, visto que já se está ao sermão.

Effectivamente Zé P'reira tinha apenas concedido ao seu compadre um olhar de distracção e um aceno de mão, e voltára de novo ás suas queixas amargas contra a sorte e contra a esposa.

Interrogado pelo Herodes, Zé P'reira reproduziu uma das suas lamentações; o compadre, emquanto desenfardelava a mala, ia cortando com reflexões proprias essa longa jeremiada.

―Então com que a ti' Zefa deixou-o sem caldo, hein? É mal feito, a falar a verdade. Lume apagado em casa de familia é coisa triste... Aqui está um livro para si, sr. Augusto... Mas deixe lá, compadre, que a minha pequena arranja-lhe n'um ai algumas berças... Tambem eu estou em jejum desde as cinco horas da manhã... mas estes missionarios! Ah! com seiscentas mil duzias de demonios, eu ainda queria um dia...

―Deus nosso Senhor seja n'esta casa―disse uma voz gemida á porta da cozinha.

―E o demo na do abbade―resmungou Herodes.

Era a sr.a Catharina do Nascimento de S. João Baptista, typo de beata, que dispensa descripção, que regressava a casa depois de completar o cyclo das suas devoções.

―Viva a comadre!―disse o João Cancella, continuando a mexer na mala.

Ermelinda foi beijar a mão á madrinha.

Augusto saudou-a affavelmente.

O marido obrigou o corpo a uma meia rotação sobre o alqueire, e, voltando-se para a mulher, disse-lhe, agitando os braços e as mãos, espalmadamente abertas:

―Mulher dos meus peccados, mulher de não sei que diga, olha que a paciencia um dia acaba-se, mulher! Isto não pode continuar assim, mulher! Eu não me casei para que tu me andes a ganhar indulgencias na igreja, mulher!... Isto são preparos, mulher?... Um homem chega a casa e acha o caldo por fazer, porque a senhora sua esposa deu em ouvir nove missas por dia e uma duzia de novenas!

―Cala-te, cala-te,―retorquiu azedamente a devota metade do Zé P'reira―cala-te para ahi, desalmado. Excommungado seja o mafarrico, que assim me quer attentar logo que entro em casa! Olha lá que não morresses de fome! Estás mal acostumado. Louvado seja Deus! Já não ha quem queira soffrer n'este mundo mortificações! cuidas que não tens de soffrer as do purgatorio? E Deus nos queira dar só o purgatorio e livrar-nos das penas do inferno. Que muito mal fazemos por lhe merecer misericordia! Ora que não ha de uma pessoa poder ter as suas devoções, que não venha encontrar lamurias em casa! Ó minha rica Mãe do céo, seja para desconto dos meus peccados! Sume-te, inimigo mau! E eu que deixei de rezar oito estações, que prometti á Senhora da Rocha, e vae... Ora digam como ha de esta gente cumprir os jejuns que manda a santa madre igreja, se, por duas horas de espera, já se choram todos! Bemdito e louvado seja o sacratissimo coração de Maria! Ó homem de Deus, e então aquelles santos eremitas, que viviam no deserto de raizes e de agua das fontes...

―Que lhes prestasse. Haviam de andar muito gordos. Eu queria-os vêr com uma enxada a trabalhar todo o dia no campo, e que lhes dessem depois raizes para roer, a vêr se gostavam. Ora, senhores, que é forte desgraça a minha! Mulher, a religião manda que olhemos pelo nosso cadaver. É má christã a mulher que deixa o seu marido na penuria. Isto é que os padres deviam ensinar. Vae-lhes lá perguntar se, quando chegam a casa, não teem a sôpa e o toucinho á espera d'elles?

―Cala-te, tentador, que me andas a tentar, cala-te, tem vergonha n'essa cara. Olha agora! Eu queria vêr-te com o trabalho do sr. padre Domingos. Coitadinho! desde as cinco horas da manhã até agora a confessar!

―Confessar é parolar; ora adeus!

―Tu estás doido, alma perdida?!

―E cuidas que elle não leva marmelada nos bolsos?

―Ó chagas do seraphico S. Francisco, ainda mais terei de ouvir?!

―Mulher, deixemo-nos de historias; com jejuns ninguem engorda. Só os santos... de pau.

―Vamos, vamos―disse o Herodes, intervindo.―Não vale zangarem-se por causa d'isso. A minha pequena deve ter o caldo quasi feito. Comam-o em santa paz e deixem-se de testilhas, que não é bonito; e muito menos entre marido e mulher. Você, compadre, tambem tem culpas em cartorio; vamos lá. Ha por ahi umas certas capellas, onde passa tambem bastante tempo em devoção; emquanto á comadre, acredite o que lhe digo: a palavra de Deus não é tão difficil, que uma pessoa precise de estar tanto tempo a ouvil-a explicar. Eu cá penso que, fazendo a gente aquillo que lhe diz o coração, e que não sente nenhuma aquella em fazer, vae por caminho direito. E mais vale fazer o que Deus manda, do que levar a vida a pedir perdão por o não ter feito. E tambem não é bonito estarem agora as mulheres, horas e horas, pegadas ao confessionario, como lapas nos rochedos, nem...

―Compadre!―atalhou escandalisada a sr.a Catharina―compadre! É essa a educação que dá á sua filha? São coisas que se digam deante de uma creança de doze annos? Ande lá, ande lá... Ora Deus queira que lhe não encontre ainda o pago. Era bem melhor que lhe ensinasse, ou mandasse ensinar, a doutrina; que é mesmo uma vergonha o pouco que sabe d'ella.

―Bem tenho eu tempo para isso. A minha Ermelinda não deixa passar pobre á porta, a quem não dê esmola; creança que não afague; velho ou velha, que não corteje; reza todas as manhãs a oração, que a mãe lhe ensinou, o Padre-Nosso e a Ave-Maria, onde se diz tudo o que se deve dizer a Deus; de dia trabalha, como filha de pobre que é, e mulher de casa que ha de ser... O Senhor me perdôe, se mais é preciso ainda, que mais não sei eu ensinar-lhe.

―Não tenha soberbas, compadre, não tenha soberbas! E cautela com o mimo que dá á pequena, que é o que perde muitas almas.

―Que mimo, que mimo? Logo eu com este genio de repentes é que hei de dar mimo a esta pobre creança, que nem o da mãe conheceu!

―Ora diga, compadre, acha que é muito bem feito, da sua parte, deixar andar a rapariga com esses cabellos soltos? Não sabe que o demonio... cruzes! arma com elles laços ás almas das creaturas?

―Fracas prisões são as do diabo, se as forja só de cabellos!... Então, por causa das tentações é que a comadre rapou os seus? Ah! ah! Tem coisas! É teima velha! Eu já lhe disse, comadre: Deus, que deu á pequena esses cabellos tão bonitos, é porque lh'os quiz dar. Se quizer, que lh'os tire, eu é que não.

―Deus cerca-nos de tentações, para que nós as vençamos.

―Forte tentação venceu a comadre! aposto que os não cortaria assim, se os tivesse como os da minha Ermelinda, hein! Cortar os cabellos á minha filha, eu?! fazer d'aquella cabeça de cherubim uma d'essas cabeças tosquiadas, que por ahi andam!

―Talvez ainda se arrependa!

―Deixe lá, comadre. O que eu vejo é que, junto de Deus e da Virgem, se pintam anjos, como a minha pequena, e não figuras... respeitaveis, como a da comadre; ora então...

A beata, apesar de trazer sempre na memoria o Vanitas vanitatum do Ecclesiastes, não foi inteiramente insensivel ao remoque do compadre. Azedou-se-lhe o humor, e, voltando-se para Ermelinda, disse-lhe como para descarregar sobre ella a má vontade com que estava ao pae:

―Sae-te p'ra lá. O senhor meu homem tinha muita pressa de jantar! Deixar assim uma creança fazer uma fogueira d'estas! Nem para assar um boi! É preciso não ter consciencia.

E tirou do lume um pequeno cavaco, para justificar o dicto.

Zé P'reira monologava ainda. Augusto continuava examinando o livro recebido.

Ermelinda afastou-se do lar com timidez. No animo d'aquella creança, que era de uma organisação nervosa, excepcional na aldeia, exercia a beata uma especie de fascinação, um mixto de respeito e de terror, capaz de dissipar todos os risos dos seus labios infantis. Era outra na presença da madrinha, fitava-lhe nas faces descarnadas e macilentas os bellos olhos negros; seguia-lhe, quasi assustada, o movimento dos labios austeramente contrahidos; tremia ao escutar-lhe a voz aguda e penetrante, falando nas penas do inferno; chorava á menor reprehensão que d'ella recebia, e comtudo amava-a, amava-a, porque Ermelinda na sua candura de creança, suppunha a madrinha uma santa; avultavam-lhe, como virtudes beatificantes, os defeitos da devota velha; a innocente julgava-se uma grande peccadora quando, depois de ter na mente aquelle perfeito typo, voltava a olhar para si, para o fundo da sua consciencia; e que negros e hediondos peccados lá encontrava! Uma pequena mentira que dissera; um domingo em que faltou á missa; um juramento que, sem o sentir, lhe saira da bôca; um jejum que não guardára, e outros crimes da mesma fôrça. A amedrontada creança chegava a receiar pela salvação da alma.

É sempre funesta a influencia que exercem sobre a infancia os caracteres como os da beata.

O Herodes percebeu a impressão sob a qual estava a filha e acudiu-lhe.

―Toma lá, Ermelinda―disse elle, tirando da mala uma pequena medalha com um retrato.―É um presente do nosso amigo Angelo para nós, ou antes, para ti...

Ermelinda pegou no retrato com não reprimido alvoroço. Era outra vez a creança.

A madrinha lançou para a medalha um olhar obliquo e reconheceu o retrato.

―Em nome do Padre e do Filho e do Espirito Santo!―rompeu ella, com um espanto exaggerado.―Este homem não tem a cabeça no seu logar, por mais que me digam! Elle quer perder a filha de certo! A fazer a cabeça doida a uma creança!

O Herodes, ouvindo estas palavras, pousou com impeto a mala no chão, e com os olhos chammejantes e as faces injectadas, vociferou, cedendo o campo á cólera, que se lhe accumulou no seio:

―Com seiscentos milhões de diabos! Você que está ahi a dizer, mulher? São os sermões dos missionarios, que lhe teem assim afiado a lingua e deitado peçonha na baba? Com effeito! Saiba que dou mais pela creança, de quem é aquelle retrato, do que por quantos sotainas lhe ouvem os seus peccados todas as semanas e por quantas beatas andam comsigo a dar marradas no lagêdo da igreja. Fazer a cabeça doida á minha filha! Tenha mão na lingua, comadre, que lhe não soffro tanto. Doida lh'a trazem a vossemecê os missionarios e os sermões. Seu marido fôra eu, que a mania lhe tirava.

O Zé P'reira, apesar dos seus desgostos domesticos, zelava a dignidade do casal; e não levava á paciencia que outro, além d'elle, dissesse d'aquellas verdades á mulher; por isso, ouvindo-as, através dos sonidos que lhe chiavam nos ouvidos, levantou-se, e sustentando-se nas pernas vacillantes, e bracejando sempre, bradou:

―Compadre! Eu sei quaes são os meus deveres! Compadre, prudencia!... Compadre, eu não consinto... Ora, senhores, que é forte coisa! Compadre!... veja que eu é que sou aqui o chefe da familia e esta é minha mulher! Pschiu... Basta... Compadre... basta. Então? Ora, senhores.

Mas o Herodes já nada attendia; cada vez mais lhe crescia a vermelhidão nas faces; a irritação rompera os diques da cordura e ameaçava engrossar cada vez mais. Ás exclamações de Zé P'reira respondia já azedamente.

―Ora adeus, temos conversado... Seja homem, que bem precisa... Não basta dar á lingua... Na taberna não é que se governa a casa...

A sr.a Catharina abstinha-se agora prudentemente.

Ermelinda, pallida, a tremer, abraçou o pae, quasi chorando.

Augusto, que fôra alheio ao principio da contenda, conheceu emfim que precisava de intervir. Saiu-lhe difficil a empreza.

Ensurdeciam os ouvidos dos contendores, a um o sangue, a outro o vinho.

Depois de muito custo, conseguiu emfim apazigual-os. Deram-se mutuas satisfações, e separaram-se apertando as mãos.

Augusto retirou-se com João Cancella e Ermelinda.

O par conjugal ficou, renovando-se cêdo entre elles a interminavel contenda em que viviam.

VIII

Saindo de casa do Zé P'reira, Augusto teve de escutar, ainda por muito tempo, as vociferações e pragas, com que o Herodes acoimava a fraqueza do compadre, que assim deixára a mulher tomar sobre si um ascendente offensivo da dignidade varonil. Augusto ouviu tudo com resignado silencio e attenção um pouco distrahida, conseguindo emfim a custo soltar-se das mãos do seu interlocutor, que, no fogo da exposição de tão justos aggravos, lhe segurava os braços com pouco affavel vivacidade; a final, porém pôde deixal-o e voltou a casa.

Entrando no seu quarto, um pequeno e modesto quarto, mobilado com uma banca, poucas cadeiras e uma estante, cheia de livros, Augusto respirou.

Era alli o seu logar de descanço; a escola era em outra casa vizinha. N'esta não havia, a amargurar-lhe as horas do repouso, vestigios que lhe recordassem as do supplicio.

Leitor philantropo, que, abrazado em santo amor da humanidade, só entrevês delicias na tarefa do ensino, e fazes d'este vigiar e encaminhar o espirito infantil, que desabrocha e respira pela primeira vez no fecundo ambiente da sciencia, um seductor quadro de phantasia, perdôa-me a palavra, supplicio, de que me servi, e perdôa ainda mais ao caracter de Augusto o ter saido exacta a expressão, que te feriu os humanitarios instinctos.

Eu bem sei que é uma sublime missão a do mestre: e que é uma graciosa e amoravel idade a da infancia, e poucos melhor do que Augusto possuiam presente o ideal de uma e amenisavam á outra com branduras os amargores do penoso tirocinio;―mas que importa? nem por isso é menos real o supplicio. A cultura dos espiritos é como a cultura das terras. O lavrador exulta, estremece de prazer, vendo pullular do solo, arado e semeado de pouco, os rebentos do grão que o calor fez germinar, e volverem-se as folhas, estenderem-se e enflorarem-se os ramos, penderem os fructos e colorirem-se das tintas da madureza; mas, emquanto vergado, coberto de suor, arquejante, se afadiga a arrotear o terreno duro e quem sabe se ingrato aos seus cuidados, muita vez lhe fallece o alento, e se olha de quando em quando para o céo, não é para lhe agradecer, com risos os gôsos que elle lhe dá; mas para lhe pedir, com lagrimas, a fôrça que lhe mingúa.

De igual modo, se é grato ao cultor das intelligencias o vêl-as desenvolver, florir, fructificar; ardua, improba, desesperadora é muita vez a tarefa da sua primeira educação. É mister possuir um grande thesouro de ideal, para que o suave e risonho typo, que da infancia concebemos, não se transtorne, na phantasia d'estas victimas d'ella, em não sei que figura diabolica e maligna, que lhes envenena todos os momentos de alegria.

Além d'isso, o pobre professor de instrucção primaria, sobre quem pesam os mais fastidiosos encargos da instrucção, não pode ser comparado absolutamente ao agricultor do nosso simile; é antes o jornaleiro contractado por magro salario, para, á fôrça de braço, lavrar o solo, d'onde, mais tarde, romperá a vegetação, que elle não terá de vêr e que a outros concederá os gôsos e o beneficio. Venceu tambem o humilde professor, e por o mesmo preço que o jornaleiro, que não vão mais longe com elle as liberalidades dos nossos governos, venceu as maiores cruezas do magisterio; mas não verá tambem o resultado das suas fadigas. Fogem-lhe as intelligencias, que educou, justamente quando com mais amor as devia contemplar, e, se o destino reserva a qualquer d'essas intelligencias um futuro de glorias, raro é que volvam um olhar agradecido para as humildes mãos, que as sustentaram, quando ainda não tinham azas para voar.

Quasi todos os grandes homens commettem esta ingratidão. Falam nos seus mestres de philosophia, de mathematica, de litteratura, e não salvam do esquecimento, pronunciando-o, o nome do primeiro mestre, do que os ensinou a ler.

Considerações da ordem das que acabamos de fazer, quero acreditar, não são as que mais preoccupam o pensamento da maioria d'esses pobres diabos, que, por noventa mil réis annuaes, se deixaram ligar á atafona do ensino primario da aldeia; porém devem ser, além das miserias de tão mesquinha sorte, causas de grandes torturas moraes para alguma alma de instinctos e aspirações mais elevadas, que o destino amarrasse, como por escarneo, a este poste de expiação. N'esse caso estava por certo a alma de Augusto. No vasto mundo, que os livros abrem ás imaginações, que na vida real não encontram deleite, refugiava-se elle nas horas em que as suas obrigações lhe permittiam respirar.

D'esta vez, porém, por pouco tempo lhe foi dado saborear esse prazer.

Soaram nos vidros da janella pancadas repetidas e chamou-o de fóra uma voz bem conhecida d'elle.

Era a do mestre de latim, o sr. Bento Pertunhas.

―Sr. Augusto, ó meu querido sr. Augusto. Amice! Pode falar a um amigo e colega?―dizia elle.

Augusto foi abrir-lhe a porta, não reprimindo um gesto de enfado.

O latinista entrou esfregando as mãos.

―A ler, hein! sempre a ler! sempre amarrado aos livros!―dizia elle, batendo no hombro a Augusto.―Invejo-lhe mais a pachorra do que o proveito. Olhe que não medra com isso; nem ninguem lhe agradece as canceiras que toma. Meu rico, por dois dias que um homem passa cá n'este mundo, tolo é o que se mata. E então n'este paiz!... Faça como eu.

E, imitando com a bôca os sons da trompa, seu instrumento predilecto, poz-se a examinar os livros que via sobre a mesa.

―Então que estava lendo? que estava lendo?... Poh! poh! poh!... Versos... Ora que nunca pude gostar de versos!... Poh! poh!... E não é agora porque se diga que não tinha quéda; não, senhores; em tempos fiz até algumas quadras... Poh! poh!... já se sabe, até certa idade, mas nunca fui muito para ahi... Poh!... A minha vocação é para a musica... Poh! poh!... Lá para a musica, sim... Poh! poh! poh!... Herman e Dorothéa―continuava elle, examinando os livros.―Novellas... Poh!... E isto que é? Confessions de Rousseau―n'este nome deixou aos diphtongos o valor portuguez―Poh! poh! As Metamorphoses... Latim! Oh que massada! Poh! poh! poh! poh!...―E o Ovidio, que lhe chegára ás mãos, foi arremessado como se estivesse em braza.

Augusto não pôde conservar-se sério, ante o instinctivo movimento de repulsão do mestre.

―Então que boa fortuna o traz por aqui, sr. Pertunhas?―perguntou elle.

―Ai, é verdade; eu lhe digo ao que venho. É para lhe pedir um favor, meu caro sr. Augusto. Eu bem sei que é abusar da sua bondade... Quousque tandem, Catilina... Mas, é por esta vez...

―Já sei; quer que lhe vá dar lição aos rapazes.

―Ah! grande maganão, que adivinhou―exclamou o mestre, abraçando Augusto com effusão.―É isso mesmo, se lhe não custasse...

―Irei.

―É que... eu lhe digo, eu tinha hoje de ir ao ensaio da philarmonica... Percebe o senhor? Os Reis estão ahi á porta e as outras festas do Natal, e não ha tempo a perder... Percebe? E eu tenho ainda umas peças do Trovador para ensinar á minha gente. São muito bonitas... Poh! poh! poh! E então este anno, que pelos modos temos cá o conselheiro e mais o pequeno... Não contando com esse sujeito que ahi chegou a Alvapenha. Chama-se Henrique de Souzellas, é sobrinho da velha, da D. Dorothéa, e julgo que ainda aparentado no Mosteiro. Lá chamam-lhe primo. Esteve lá esta manhã um par de horas, logo que saiu da minha repartição. Dizem-me que é filhote de Lisboa, solteiro, rico e sem modo de vida. Rico e sem modo de vida! Que lhe parece, hein? Olhe que sempre ha gente muito feliz! Aqui para nós, sabe ao que me cheira a visita d'este senhor? Aquillo é mosca que vem ao cheiro do mel. Que diz, hein? Ninguem me tira d'isto. Pois não lhe parece, hein?

―Não sei bem o que quer dizer com a imagem―respondeu Augusto, levemente enfadado.―Além de que não posso adivinhar as intenções de um homem que pela primeira vez encontrei esta manhã.

―Pois está claro que não; nem eu; mas emfim uma pessoa logo tira pelo que vê... Ora pois diga, um rapaz de Lisboa, afeito a divertimentos, a boa musica, et coetera, andar leguas e leguas para se metter n'este desterro... Porque isto é um desterro. Sim, deve concordar que não é natural. Mas se a gente se lembrar de que a morgadinha, et coetera... O senhor bem me percebe... Todos, hoje em dia, sabem o preço ao dinheiro, meu amigo.

A verbosidade do mestre Pertunhas estava evidentemente incommodando Augusto, que não redarguia.

―Nada, nada; alli anda plano, com certeza. Pelos modos, já depois de ámanhã vae o rapaz acompanhar as pequenas á ermida da Saude. Ah!... mas agora me lembro! o senhor é tambem da sucia.

―Eu?!

―Com certeza. Disse-m'o o Damião, que tem ordem das pequenas para o convidar. Se ainda não recebeu o recado, ha de recebel-o. Em todo o caso, observe-o e verá se eu tenho razão.

―Vou jantar, sr. Pertunhas, que já ha muito para isso me chamou a criada―disse Augusto, erguendo-se como para fugir áquella conversa.―Em seguida irei aos seus rapazes.

―Então vá, vá. Deus lhe pague o favor que me faz e permitta que eu lhe não peça muitos d'estes. E eu tenho esperanças... Sabe que ando com ideias de arranjar o lugar de recebedor, que está, como diz o outro, a encher dias? Já falei ao conselheiro; mas o conselheiro promette muito e falta melhor, sobretudo a um homem que não tenha influencia em eleições. O sr. Joãozinho das Perdizes interessa-se por mim, é verdade; mas, por outro lado, o Seabra brazileiro faz-me guerra. Eu ando a vêr se consigo pôr o Seabra a meu favor, porque emfim... Mas vá, vá jantar, que eu espero.

―Se quizer fazer-me companhia...

―Muito obrigado. Eu já jantei. O meio dia é a minha hora. Jante á sua vontade.

Augusto saiu da sala. Mestre Bento Pertunhas, ficando só, deu algumas voltas cantarolando, sentou-se depois, e pegando na pasta de Augusto, poz-se a examinar os papeis que ella continha.

Ao mesmo tempo simulava umas variações de trompa, á fôrça de contracções e esgares dos labios.

A pasta, victima da indiscreção do mestre, era a mesma que Augusto trazia, quando o vimos no Mosteiro.

Entre os documentos contidos n'ella algum achou o mestre Pertunhas mais curioso do que as escriptas e themas dos discipulos, pois, ao lêl-o, desenhou-se-lhe no semblante a mais intensa curiosidade e cessou de todo a exhibição acustica, que com tanto ardor encetára.

Leu-o até o fim com crescente avidez; e depois, olhando em volta de si, para verificar que não era observado, dobrou-o e sorrateiramente o escondeu no bolso. Fechou outra vez a pasta, pousou-a no sitio d'onde a tirára, continuou a ler ou a fingir que lia com toda a attenção um livro e encetou novas variações de trompa.

―Então já! Apre! Isso é jantar a vapor―disse o latinista, pondo-se a pé, logo que Augusto voltou.

E momentos depois sairam juntos.

Querendo poupar os leitores á semsaboria de assistir a uma lição de latim e a um ensaio da philarmonica, deixal-os-hemos ambos, para voltarmos ao Mosteiro.

Ao fim da tarde, depois do jantar, estavam as duas primas sentadas ao parapeito do muro da quinta, d'onde, por sobre almargens e pomares vizinhos, a vista se espraiava em amplissimo horizonte até umas nuvens, que pareciam limital-o.

D. Victoria saboreava, no seu quarto, as delicias da sesta habitual. As creanças brincavam a alguma distancia, e os risos e os clamores d'ellas vinham como um chilrear de passaros aos ouvidos das duas raparigas, que, a cada momento, se surprehendiam em meditativo silencio.

A natureza estava serenissima. No occidente desenhavam-se estreitos e longos traços nebulosos, a que o sol dava um colorido tão ardente, que se o pintor paizagista o produzisse na palheta, hesitaria, ao passal-o á tela, com receio de que o acoimassem de exaggerado. O verde dos campos apresentava a gradação vigorosa, que a luz de um formoso dia de inverno costuma dar-lhe.

Christina interrompeu o silencio por fim.

―O que eu não sei―principiou ella―é como o primo Henrique de Souzellas...

―Onze!―atalhou a morgadinha, sem desviar os olhos do ponto da perspectiva, que fitava.

―Onze quê?―perguntou Christina, erguendo os d'ella.

―Com esta são onze as vezes que, esta tarde, depois de um longo silencio, abres a bôca para me falares no primo Henrique de Souzellas, uma vez que está decidido que seja primo.

Christina fez um gesto de despeito e córou levemente.

―E então que queres dizer com isso?

―Eu? Nada. Digo só que são onze vezes com esta.

―Não sabia que era prohibido falar-te no primo Henrique. Bem, n'esse caso falaremos em outra coisa. Está um tempo muito bonito: nem parece dezembro.

―Não; vae magnifico para os nabaes―replicou Magdalena zombeteiramente.

―Se não mudar com a nova lua―continuou Christina, ainda formalisada.

―É excellente para seccar os milhos, que bem precisavam ainda d'isso, principalmente os das terras baixas.

E, acabando de dizer estas palavras, a morgadinha desatou a rir.

―Não sei de que te ris!―acudiu Christina, cada vez mais séria.―Pois não é esta a conversa de que tu gostas?

―Ai, muito. Eu sou doida por estas coisas de lavoura; bem sabes.―E, mudando repentinamente de tom, accrescentou:―Ora vamos, Christe; não te zangues commigo.

―Não, mas é que ás vezes não te entendo, a falar verdade. Vens com umas coisas que mettem raiva―respondeu-lhe Christina, sempre agastada.

―Já estou arrependida; peço perdão. Fala lá á tua vontade no primo Henrique, fala; que eu não contarei as vezes que o fizeres.

Christina reproduziu o gesto de impaciencia.

―Agradeço a tua generosidade, mas já não tenho mais que dizer d'elle agora; por isso...

―Pelo menos completa a duzia.

―Lena! Então! Olha que se continuas com isso, fazes-me sair d'aqui.

―Sempre queria que te vissem agora, Christe, esses que andam por ahi a gabar a docilidade do teu genio, as branduras da tua indole; queria que te vissem essa cara arrenegada, para saberem que tambem ha um acidozinho na tal doçura... Mas fazes-me a graça de só para mim teres d'essas franquezas.

Christina sorriu, ainda que não de todo aplacada, ao ouvir esta reflexão da prima.

―E não sabes a razão d'isso?―respondeu-lhe ella―a razão é o genio que tens, Lena. O teu gôsto é mortificares uma pessoa. Não ha santo que não perdesse a paciencia comtigo.

―Que injustiça! que ingratidão! Eu, que sou a victima das tempestades que o teu genio pouco expansivo te junta no coração a todo o instante! Se alguma coisa te faz chorar, guardas as lagrimas para o meu quarto; se te irritam, vens desafogar as tuas cólerazinhas sobre a minha cabeça. E pagas-me assim!

―És muito infeliz commigo. Pobre Lena!

―Vamos, vamos, Christe! esquece o que eu disse ha pouco. Não te posso vêr assim.―E tomando um tom natural, mas sob o qual transparecia ainda certa malicia, Magdalena continuou:―Pois é verdade, dizias tu que não sabias por que o primo Henrique de Souzellas...

Christina fez um movimento impaciente, como para levantar-se.

―Então que é isso? Não me acceitas a expiação?―perguntou Magdalena, sorrindo.

―Não; não quero que se fale mais no sr. Henrique de Souzellas. Vejo que te não é agradavel que as outras se occupem d'elle. Sejam quaes forem as razões que tens para isso...

―Bravo! Foi admiravel de maldade o entono com que disseste esse: «Sejam quaes forem as razões.» E venham-me falar na candura d'esta creança!

―Eu não quero dizer...

―O que queres dizer, não sei; mas vejo que não és senhora tua quando se fala n'este assumpto.

―Que lembrança!―tornou Christina, cada vez mais embaraçada―pois imaginas devéras que eu?...

―E por que não?

―Lena!

―Não ha nada mais natural.

―Se queres, juro-te...

―Ah! atalhou a morgadinha, pondo-lhe a mão nos labios.―Isso não, que é mais sério. Jurar não te deixo eu. Conheço os escrupulos da tua consciencia, e não quero obrigar-te a remorsos. «Juro!» E com que ousadia ias pronunciar um juramento falso!

―Falso!

―Falso, sim; falso como os que o são. Olha, minha pobre Christe, queres então que te fale com toda a franqueza? Esta conversa trouxe-a eu de proposito para confirmar umas suspeitas, que se me formaram e que vejo agora que eram fundadas.

―Suspeitas! que suspeitas?...

―O primo Henrique de Souzellas deixou em ti uma tal ou qual impressão.

―Lena!

―Conheci isso ainda quando elle cá estava; verifiquei-o depois e agora. Então! tem juizo. Commigo sê sempre o que tens sido. Eu góso ha muito do privilegio de conversar á vontade comtigo e de te vêr sem aquella timidez que tens deante dos outros. Com o teu genio, precisas de uma pessoa, como eu, com quem não tenhas acanhamento e em quem possas até descarregar algumas maldadezitas; e acredita que me lisonjeio com me dares a preferencia.

―Mas como imaginaste?...

―Continuas? Não tens de que te envergonhar pelo interesse que por ventura te inspirou esse rapaz. Henrique de Souzellas é elegante, é espirituoso, affavel, possue uma intelligencia cultivada e muito trato do mundo...

―Mas...

―Faça favor de me ouvir―atalhou Magdalena, pondo um dedo nos labios. Reconhecendo todas essas qualidades n'aquelle nosso primo, não quero por isso concluir que seja natural e prudente denunciares-te já. E nem receio que isso aconteça, para te falar sinceramente, porque te conheço o genio timido e porque... porque te conheço o genio timido e mais nada.

Havia mais alguma coisa, havia, mas não era coisa que se dissesse. Magdalena sabia demais que Henrique não saíra d'aquella primeira visita demasiado impressionado por a imagem de Christina; sabia talvez, suspeitava de certo, não me atrevo a dizer que lisonjeada algum tanto, que no coração do hospede de Alvapenha reinava outra imagem mais persistente. Mas vejam as leitoras se, sendo este o seu pensamento, ella o poderia formular? O remedio pois era completar a phrase como a completou.

Christina já não tinha ousadia para negar, nem ainda coragem para confessar. Encostando a face á mão, calou-se e deixou falar Magdalena.

A morgadinha proseguiu:

―É preciso que saibas, Christe, que é mais facil conhecer os defeitos de uma pessoa, do que as suas boas qualidades. Os defeitos são imprudentes e linguareiros, denunciam-se, dão signal de si, basta meia hora para se descobrirem em qualquer logar que habitem. As boas qualidades, não; essas são modestas, humildes, discretas; sabem esconder-se. São precisos annos para as descobrir todas. Mas com que olhos de espanto me estás fitando! Parece que te causa estranheza o meu sermão? Eu te digo a que elle vem. Logo que falei com este nosso primo... e quem sabe se o futuro virá confirmar, em relação a mim, esse titulo, que por phantasia lhe dou? escusas de corar por eu dizer isto, Christe...; mas, dizia eu, logo que falei com elle, saltaram-me aos olhos muitos dos seus defeitos.

―Quaes são?―perguntou Christina com viveza.

―Socega; são ligeiros felizmente, e parece-me que os poderá ainda perder; sobretudo se continuar a viver aqui. Quiz-me tambem logo parecer que no fundo havia uma mina de bons sentimentos por explorar. Nasceu logo em mim a vontade de o sondar, a vêr se conseguia purifical-o do que n'elle houvesse de menos heroico. Então que queres? para a aldeia era um passatempo como outro qualquer. Mas redobrou-se em mim este desejo e revestiu em mim mais sério caracter, desde que vi a impressão que este sobrinho da tia Dorothéa te causára.

―Lena! Como te deu para suppôr que eu me apaixonei assim em poucas horas? Julgo que me imaginas apaixonada?

―Não, ainda não; inclinada, agradada, attrahida... ou outro qualquer termo d'esta fôrça, que deixarei á tua escolha, isso sim. Para isso não é preciso muito tempo. As razões, pelas quaes julguei isto, dispensa-me de t'as dizer, que pouco valem. Suppõe que foi por um tacto especial, por uma qualidade occulta, como a do tino que dizem que teem certos medicos para reconhecerem o mal sem estudarem muito o doente.

―Pois o tino enganou-te.

―Enganaria; mas deixa-me continuar. Se este senhor primo intruso fôr realmente o que eu imagino que é, resta-me preparal-o para o tornar mais digno do amor d'esta boa Christe, que em tal caso favorecerei; se não fôr, declaro-lhe já guerra e guerra de morte. A ti competia fazer isso tudo, como a mais interessada, mas desconfiei da tua credulidade e boa fé e da tua experiencia. Olha, estou certa que o que mais te attrahiu em Henrique foi exactamente o que n'elle ha de peor. Certo verniz mentiroso, certo colorido, que é preciso ter visto muita vez, e em muitos individuos differentes, para se ter na conta devida. Illude, agrada a quem não está costumado, e pode causar graves enganos e desenganos mais graves ainda. Por emquanto o que elle nos mostra é mais da sociedade em que vive, do que d'elle proprio. É necessario deixar cair a primeira capa, para que o natural appareça.

―Não sabia que era assim facil enganar-se uma pessoa a respeito de outra―notou Christina, sorrindo.

―Se é! Lembras-te do que tantas vezes conta tua mãe? Que, quando ha annos foi a Lisboa, comprou lá por bom preço um cofrezinho que ella suppunha preciosissimo, e que chora hoje a sua tentação, desde que o verniz brilhante, que elle tinha, caiu e ficou á vista a realidade? pois o mesmo acontece muitas vezes em contractos de outra ordem e bem mais sérios do que este. Ha vernizes maravilhosos, que illudem os inexperientes.

Houve um instante de silencio, no fim do qual Christina perguntou, olhando pela primeira vez fita para Magdalena:

―Ora dize-me, Lena, qual será a razão pela qual eu não devo acreditar que esses pensamentos te occorreram, porque era o teu destino, e não o meu, que vias dependente do estudo que fazias?

A morgadinha fixou na prima um olhar triste e cheio de amargas recriminações.

―Por uma razão muito poderosa, Christe, porque ias abrir o coração a um sentimento mau, que macularia o teu caracter generoso e candido―a desconfiança. Porque me offenderias, duvidando da lealdade, com que te falo, quando te falo séria; e porque me farias mal sem necessidade e immerecidamente, pois que a consciencia me diz que t'o não merecia. Satisfaz-te esta razão?

A voz de Magdalena perdera o tom de ironia, que ás vezes tinha, e tomára quasi o da commoção.

Christina arrependeu-se logo do que dissera, e, tambem commovida, apertou as mãos da amiga.

―Não faças caso do que eu disse, Lena; perdôa-me. Quando eu duvidar de ti, pedirei a Deus que me tire a vida, porque terei já, para tudo e para sempre, envenenado o coração.

A morgadinha readquiriu outra vez o seu bom humor.

―Estamos quasi a cair no sentimentalismo. Cautela! Saldemos antes as nossas contas, como mulheres de juizo. Em compensação da pequena offensa que me fizeste, vaes-me fazer uma confissão formal, a qual até agora tens evitado. Ora confessa, adivinhei o estado do teu coração? Dize.

Christina hesitou.

―Vamos,―insistiu a morgadinha―acredita que preciso de uma declaração para me guiar... E crê que é para bem teu.

―Que queres que te diga? Eu não me sinto apaixonada.

―Mas já te disse que me bastava um termo menos violento... um «agradada», por exemplo.

―Confesso que...

―Olha, se queres, podes até parar ahi. Esse «confesso que...» já diz muito. Agora deixa-te guiar por mim. Eu vigiarei. Afianço-te que não corro o perigo de me apaixonar por elle; creio que ha alli um excellente coração, mas que queres? Não é o typo que me agrada... o meu ideal como se costuma dizer.

―E então qual é o teu ideal?

―Ai, eu sou muito exigente. Desespero de o encontrar. Quero-o assim uma especie de archanjo S. Miguel, animo de guerreiro em figura de cherubim; e não sei onde o procure.

N'este sentido se prolongou o dialogo entre as duas primas, até que D. Victoria, findando a sua sesta, veio ter com ellas á quinta. Segundo o costume, ralhava contra os criados, a quem, não sei por que processo, attribuia umas dôres de cabeça com que acordára.

No dia seguinte, Henrique voltou de manhã ao Mosteiro; redobrou de galanteio com Magdalena, a qual redobrou de ironia. Christina já mal podia disfarçar a pena que lhe causava o pouco que era attendida, mas a sua timidez não a deixava luctar.

De tarde, Henrique teve de condescender com o padre, procurador de Alvapenha, que se promptificou a mostrar-lhe as raridades e monumentos da terra. Assim, com grande pesar seu, foi obrigado a renunciar á nova visita ás senhoras do Mosteiro, para gastar as expressões da sua admiração deante das alfaias da sacristia parochial; da tosca esculptura de não sei que imagem de santo, a qual passava por um primor; de uma sala nua, com uma mesa ao centro, forrada de baeta verde e cadeiras á volta, que era a sala das sessões do corpo municipal; e de umas pyramides de ripa, que tinham servido, havia oito annos, em festejos officiaes.

Como é de suppôr, Henrique passou uma tarde deliciosa.

IX

Dois dias depois da chegada de Henrique, e n'aquelle que se destinára para o passeio á ermida, Christina foi mais madrugadora do que as aves. Á hora, a que estas ainda se não ouvem chilrear, já a prima de Magdalena abandonava o leito, receiosa de se fazer esperar pelos companheiros da projectada excursão matinal. Quasi não dormira toda a noite aquella rapariga, com tal preoccupação.

As estrellas viram-a erguer, e tiveram muito tempo de se despedirem d'ella, antes de se esconderem discretas ante o apparecimento do dia.

Christina vestiu-se á pressa e dirigiu-se ao quarto de Magdalena. Esta dormia ainda. O projecto de passeio á ermida não a alvoroçára tanto. Christina foi acordal-a ao leito.

A morgadinha abriu os olhos e fitou-os admirada na prima.

―Que queres tu, Christina? Que lembrança foi essa hoje de andares estremunhando a casa esta noite?

―Levanta-te, preguiçosa, levanta-te. Não o dizia eu hontem? Então são estas as madrugadas em que falavas?

―De certo que não são madrugadas; isto é noite é o que é.

―Dentro em pouco é dia. Queres vêr?

E, dizendo isto, Christina abriu para traz as portas das janellas e correu as cortinas.

A estrella da manhã, Venus, aquella brilhante e ao mesmo tempo suave estrella, que umas vezes assiste no crepusculo ás melancolias da natureza, outras vezes na aurora ao renascimento dos seus jubilos, scintillava mesmo defronte do leito de Magdalena.

―Vês?―disse Christina.

―Muito pouco. É esse o teu sol? Como vae alto! É pena que não alumie melhor do que esta lamparina.

Christina sentia redobrar com estas delongas a sua impaciencia, quasi de creança.

―Anda, Lena, anda. Assim não chegamos a vêr do alto da ermida o romper do sol.

―Pois queres vêr isso de lá?! Que crueldade! Em uma manhã de dezembro!

―Está tão bonita, que parece de primavera.

―Triste lembrança a nossa hontem de combinarmos este passeio. Isto é lá coisa que se faça? Vale por uma viagem aos pólos.

Christina não fazia senão ir do leito de Magdalena para a janella e voltar da janella para o leito, em virtude d'aquella irresistivel necessidade de movimento, embora sem ordem nem fim, que experimentamos quando nos deixamos apossar da impaciencia.

―Não fazes ideia como está bonito cá fóra; n'alguns pontos ainda se vê neve.

―Oh, que agradavel e tentadora belleza! Ainda se vê neve!... Parece-me que já estou gelada... Com essa palavra tiraste-me o alento que ia ganhando. Vês?

―Mas não está frio; até parece que aqueceu o tempo. Então, Lena!... Elles... não tardam por ahi. Cuidas que te vae custar muito, e é um engano; aqui estou eu, que não sinto frio nenhum.

―Ora, mas tu estás em condições muito particulares. Quem tem uma fogueira no coração, não precisa...

―Ahi principias com as tuas coisas!

―Eu não sei; o que é certo é que esse teu enthusiasmo pelos passeios matutinos não é natural. Quantas vezes recusaste acompanhar-me quando eu t'os propunha? Ora, se me dás licença, eu explico isso.

―Não quero saber de explicações; veste-te, anda.

―Seja! Infeliz lembrança a d'este passeio. E foi d'aquella tia Victoria, que nem por isso nos quiz acompanhar. Não, que já tem juizo; dorme a estas horas o somno da madrugada, que é uma consolação. Que sorte de invejar!

E a morgadinha, continuando assim a exaggerar o sacrificio d'aquella madrugada e a alludir aos motivos secretos a que attribuia o ardor e heroicidade da prima ante os rigores de dezembro, tudo isto de proposito para a vêr impaciente, principiou a vestir-se.

Christina ficára á janella, espiando os progressos do amanhecer e transmittindo á prima as observações que fazia.

―Olha, eu que digo?... já o Manoel vae abrir o portão... Não ouves os pardaes?... É dia claro já... Havemos de chegar com sol á ermida, o que não tem graça nenhuma... Avia-te, Lena... Has de ser a ultima a estar prompta... Ahi vae já o Luiz com o almoço. É que não chegamos lá senão ao meio dia. Elle ahi vem! Eu bem digo.

―Elle! Quem é esse elle que vem ahi?

―Pois quem ha de ser? Então não é o primo Henrique que nos acompanha?

―É o primo Henrique, é o sr. Augusto e é o Luiz, que tua mãe teimou em mandar com o almoço. Não sabia qual dos tres te merecia as honras de um «elle».

―Eu dizia o primo Henrique, que já ahi está no pateo―disse Christina, que n'esta occasião correspondia ao cumprimento, que o recem-chegado lhe fazia de baixo.

―Então, com effeito já chegou?―perguntou a morgadinha, admirada.―Bravo! Nunca o esperei. Ai, Christe, que me parece que elle tambem tem alguma coisa no coração!

―Tambem o julgo―respondeu Christina, despeitada;―é vêr como hontem te falou.

―Socega. Quando o coração tem alguma coisa, não se fala assim com a pessoa que causou esse mal.

―Não sei o que elle me está a dizer―disse Christina, olhando para o pateo.―Posso abrir a janella, Lena?

―Eu já estou preparada para soffrer todas as crueldades esta manhã. Abre lá a janella, abre. Fala-lhe.

Christina correu a vidraça.

A voz de Henrique chegou distinctamente aos ouvidos de Magdalena.

―Então aquella grande madrugadora da nossa prima, onde está?―perguntou elle a Christina.

Christina respondeu, sorrindo:

―Está a fazer a diligencia que pode para ficar prompta antes do meio dia.

―Oh, que vingança a minha! Ella que tanto falou da minha indolencia!―disse Henrique jovialmente, e continuou falando sempre de Magdalena, e elevando a voz ás vezes para se dirigir directamente a ella, mas sempre sem receber resposta.

Esta insistencia impacientou Christina, para quem elle nem um galanteio tivera ainda.

―De maneira que nós, priminha―continuou Henrique―damos uma lição de mestre áquella arrogante de hontem. Estou ancioso por que ella nos appareça; quero vêr a coragem, com que ousa apresentar-se.

―Eu vou chamal-a―disse sêccamente Christina, e veio dizer a Magdalena, com certo modo, que não podia escapar a esta:―Olha se appareces alli ao sr. Henrique de Souzellas, que não descança emquanto te não vê.

A morgadinha, que acabava de ajustar ao espelho as tranças, dando ao penteado a mais singela e graciosa disposição, voltou-se para a priminha e disse-lhe sorrindo:

―Isso são já ciumes? Mal sabes quanto gósto de te vêr assim! Ao menos ha já vida n'esse teu coração, minha pobre pequena. O que te peço é que não me odeies, só porque esse rapaz se lembrou de perguntar por quem não via.

―Estás a imaginar ciumes, como hontem imanavas...

―Amores? justo; e com a mesma felicidade em acertar; podes ir accrescentando. Mas, parece-me que ahi está mais alguem no pateo. Ouço falar. Vae vêr. Será Augusto? N'esse caso, espera-se só por mim para completar a caravana. E eu estou prompta. Marchemos.

Augusto havia effectivamente chegado ao pateo.

Henrique trocára com elle alguns cumprimentos, e principiaram depois ambos a passeiar, um ao lado do outro, á espera das que deviam ser-lhes companheiras na romagem.

A conversa manteve-se pouco animada. Augusto não era expansivo com as pessoas, a quem o não prendiam habitos de longa intimidade; Henrique, talvez por não conhecer a extensão e natureza dos conhecimentos de Augusto, abstinha-se de falar dos assumptos, em que entraria de mais vontade. Falaram pois de coisas indifferentes a ambos, e quasi frivolas; no frio, na chuva, no inverno e no verão, nos prós e contras da vida do campo e de varios outros assumptos sêccos de si e já além d'isso muito esgotados, e tudo cortado por aquellas pausas e silencios constrangidos e insupportaveis, que o leitor ha de conhecer por experiencia.

Digamos nós a verdade; estes dois homens não sentiam um pelo outro aquella subita e inexplicavel sympathia, que abre os corações e dá margens a confidencias.

Nos dois curtos encontros que tinham tido, manifestára-se entre elles certa frieza mais que ceremoniatica, uma quasi desconfiança instinctiva.

Chegaram as senhoras. Foram acolhidas com prazer por ambos. Ainda quando não fôssem senhoras o seriam; a chegada de um terceiro, quando dois indifferentes estão na presença um do outro, em entrevista forçada e fatigadora, é sempre saudada interiormente como uma redempção.

Magdalena e Christina vinham ambas formosas, com a especie de mantilhas ou capuzes de que usavam, adequados aos rigores de uma manhã de dezembro.

Appareceram ambas a rir. Foi o caso que, passando proximo do quarto de D. Victoria, pé ante pé, para não a acordarem, esta presentiu-as, e mesmo do leito perguntou-lhes:

―Então já vão, meninas?

―Vamos, tia; vamos, mamã―responderam as duas a um tempo.

―O Luiz já partiu com o almoço?

―Já partiu, já, minha senhora.

―E ides agasalhadas?

―Como se fôssemos para a Siberia―respondeu Magdalena.

―Olhae, sempre levem os guarda-chuvas por cautela. E ide com Nossa Senhora.

―Cá os levamos. Adeus, tia; adeus, mamã.

―Adeus, filhas; até logo, se Deus quizer. Olhae lá, não vos estafeis.

Ora os taes guarda-chuvas é que não iam. Para quê? Com uma manhã d'aquellas, que nem de inverno parecia, pois que até o frio abrandára com o vento! Por isso é que vinham ainda a rir.

Chegando ao pateo, cumprimentaram os seus dois companheiros. Henrique, depois de formular um galanteio a Magdalena, offereceu-lhe attenciosamente o braço, que Magdalena recusou com alguma impaciencia, porque se lembrou de Christina.

―Muito obrigada, primo,―disse ella com vivacidade.―Mas é preciso que o advirta de que não vamos passeiar pelas avenidas de um parque. Vamos trepar montes, atravessar ribeiras, costear precipicios, e para tudo isso é necessaria a completa liberdade de movimentos. Ha occasiões, em que melhor nos servem os nossos dois braços, do que o braço de outro, embora seja o de um heroe.

―Mas de certo que não é á borda dos precipicios que esse auxilio se escusa―replicou Henrique.

―É, muitas vezes é. Ha bordas tão estreitas, que mal cabe n'ellas uma pessoa só; felizmente que a natureza nos dá um braço então... um braço de giestas, por exemplo.

―Vê lá, Lena,―disse Christina ao ouvido da prima.―Talvez seja melhor que acceites. Resta-me, a mim, o braço de Augusto.

―Se continuas com essas loucuras, Christina, obrigas-me a odiar-te. Sr. Augusto―continuou voltando-se para este―espero que tome a direcção do nosso passeio; ninguem melhor conhece os mais bellos pontos de vista; leve-nos por lá, embora tenhamos de comprar as bellezas á custa de perigos e de fadigas. Partamos!

O monte onde se erigira a capella da Senhora da Saude, afamada por seus milagres e pela sua romaria n'um circulo de muitas leguas de raio, era uma elevada rocha vulcanica, que dominava as freguezias ruraes de mais de dois concelhos. Estendiam-se-lhe aos pés as alcatifas da mais rica vegetação; banhava-lh'os a agua dos ribeiros, das levadas e torrentes, arterias fertilisadoras de extensas veigas e pomares; mas elle, o gigante orgulhoso e selvagem, recebia aquelles preitos, olhava sobranceiro aquella opulencia, e, como se fizesse gala da sua rudeza, em vez de cobrir os hombros com o manto real, que lhe estendiam aos pés, permanecia aspero, severo e nú, como nas épocas primitivas, em que uma convulsão tremenda o evocára do seio da terra, para o consolidar em colosso.

Apenas, como symbolo de realeza, coroava-lhe a fronte alta a alameda, que, havia perto de um seculo, a piedade christã plantára em volta da ermida, para refrigerio e conforto dos devotos christãos que alli iam. Era custosa a ascenção por o lado, por onde os nossos romeiros, contra os conselhos de D. Victoria, a emprehendiam. Quando, ao sair de uma longa rua, apertada entre muros de quintas, Henrique achou de subito deante de si a mole immensa e talhada quasi a pique, que lhe disseram tinha de subir; elle, que raro em Lisboa estendia além do Rocio os seus passeios, com medo das ingremes calçadas da cidade alta, julgou ouvir um absurdo.

Parou a contemplar o monte, como hesitando em atravessar o riacho, que d'elle o separava.

O riacho, engrossado pelas aguas da chuva dos dias anteriores, levantava um bramido atordoador ao cair em toalha dos açudes e ao escoar rapido pela cal da azenha, que lhe obstruia o leito e cuja enorme roda movia.

Áquella hora, ainda pouco clara da madrugada, este sitio da raiz do monte tinha não sei que aspecto selvagem e melancolico, que quasi infundia pavor. Os altos choupos, em que se enroscavam, como serpentes negras, os troncos flexuosos e despidos das vides; mais longe, o cannavial, ondulando ligeiramente ao perpassar através d'elle a briza da madrugada, e, aqui e além, um d'esses degenerados aloes dos nossos climas, debeis e enfezados, como se os devorasse a nostalgia da sua verdadeira patria, eram accessorios que concorriam para o effeito geral do quadro.

A morgadinha, percebendo a hesitação de Henrique, deu-lhe alento com lançar-lhe em rosto a sua pusillanimidade. Henrique encheu-se de brios e atravessou, com não menor denodo do que os outros, o riacho, por o passadiço de altas pedras, collocadas a pequena distancia umas das outras, e que as aguas a cada momento ameaçavam cobrir.

Atravessada a corrente, seguia-se escalar o monte; para isso tornava-se indispensavel caminhar em continuados zigue-zagues, aproveitando os córtes que a fouce do tempo conseguira abrir n'aquella massa granitica e os toscos degraus, com que uma arte rudimentar procurára facilitar, por aquelle lado, o accesso da ermida á piedade dos devotos.

As difficuldades para Henrique eram continuas.

A cada momento os embaraços d'este forneciam motivo para risos da parte de Magdalena. Christina não lhe podia levar a bem que se risse d'aquillo.

Para compensar as fadigas de tão trabalhosa ascensão, havia porém, a paizagem, que, a cada passo andado, a cada angulo que se dobrava, apparecia mais surprehendente e maravilhosa.

Poucos peitos teriam fôrça para reprimir um brado de admiração.

As nevoas d'aquella manhã de dezembro não eram bastantes para velarem a belleza do quadro.

Á medida que os nossos quatro peregrinos iam subindo, ampliava-se-lhes mais e mais o horizonte; avelludava-se a relva da planicie, parecia aplanarem-se os outeiros vizinhos, e os campos tomavam a apparencia dos canteiros de um jardim.

Henrique não retinha o enthusiasmo, que aquelle espectaculo lhe causava.

―É magnifico! é admiravel! é soberbo!―dizia elle, a cada momento e quando não era inquietadoramente preoccupado com os perigos do caminho.

O enthusiasmo de Augusto não era menos vivo! Dir-se-ia que eram os montes a sua patria, e que a melancolia nostalgica, que o opprimia na planicie, se ia dissipando á medida que subia a encosta.

Magdalena e Christina tambem não estavam menos impressionadas por o que viam. Esta, porém, tinha uma causa secreta a aguarentar-lhe o prazer, que as bellezas naturaes lhe pudessem occasionar.

Era esta causa a mesma dos seus leves despeitos de pela manhã.

Henrique continuava a ser todo attenções e galanteios com Magdalena; parava a cada momento n'aquelles pontos do caminho, que lhe pareciam mais difficeis de vencer, para lhe offerecer a mão a ella, sempre a ella, a quem dirigia tambem todas as reflexões que o aspecto da paizagem lhe suscitava e nunca á esquecida Christina que, n'esses momentos, quasi achava a manhã desagradavel e o sitio feio e sombrio.

A morgadinha respondia sempre em curtas phrases a Henrique e recusava insistentemente o auxilio, que elle lhe offerecia.

―Estou a suspeitar que esses offerecimentos do primo são mais devidos á necessidade, que sente, de quem o auxilie, do que ao empenho de nos auxiliar―disse ella sorrindo.―A falar verdade, para quem tem passado a vida a trilhar os passeios do Chiado, que admira? Eu fui creada n'isto. Tenho um pouco de alpestre. Adeante.

E de uma occasião, em que estava perto d'elle, disse-lhe a meia voz:

―Pode ser que Christina careça mais do seu braço, primo. Ainda não teve a lembrança de lh'o offerecer.

Henrique só então deu por esse esquecimento; apressou-se a remedial-o, offerecendo a Christina tambem o braço, que esta recusou, córando.

―Então por que recusas?―perguntou-lhe a morgadinha, em voz baixa.

―Porque não quero abusar da delicadeza d'elle, nem da tua.

A morgadinha abanou a cabeça em ar de reprehensão, fitando-a, mas não lhe disse nada.

Pouco a pouco ia sendo mais completo o silencio em torno d'elles. Já tinham passado acima dos rumores do valle, que não subiam a mais de meia encosta. Chegaram emfim ao cimo do monte; tudo annunciava o proximo apparecimento do sol.

―Chegamos a tempo!―exclamou Magdalena que, deitando a correr, fôra a primeira que attingira a planura. Sua Magestade ainda se não levantou.

Os outros estavam, dentro em pouco tempo, ao pé d'ella.

Houve um longo espaço de silencio, concedido espontaneamente á contemplação d'aquella perspectiva solemne.

As primeiras palavras, que se disseram, foram ditas em voz baixa, n'aquelle tom, que insensivelmente lhes damos, quando na presença de um espectaculo grandioso e bello. Fala-se baixo e pouco: não se formulam longos periodos de aprimorado estylo, nivela-se a eloquencia de todos em simples phrases, como estas:

―É bello!

―É magnifico!

―É sublime!

E nada mais. Pouco mais disseram os quatro na occasião de que falamos. E eu, por analogas razões, os imitarei, desistindo de descrever o que só bem se aprecia, quando pela vista se abrange o conjuncto de todo o panorama. O leitor, que nunca visse alguma scena similhante, não a imaginaria pela descripção, forçosamente pallida, que ahi lhe deixasse d'ella; e para o que a viu, a memoria lhe preencherá bem a lacuna.

Desvanecida a primeira impressão, que não deixa ao espirito a serenidade precisa para os processos da analyse, principiaram, como é costume, a fazerem notar uns aos outros os sitios mais conhecidos.

Isto manteve por momentos uma perfeita e desenleada familiaridade entre os quatro.

Christina descuidou-se da sua timidez e despeitos; Magdalena dos seus projectos e desconfianças; Henrique e Augusto deixaram tambem a sua mutua frieza.

―Lá está o Mosteiro―disse Magdalena, apontando para o logar indicado.―Como parece pequeno, visto d'aqui!

―É verdade―respondia Christina―e olha, Lena, como se vêem bem as janellas do teu quarto.

―Lá está aquella que tu abriste esta manhã para cumprimentares...

Sentindo a mão de Christina comprimir-lhe o braço, concluiu:

―Para cumprimentares a estrella d'alva.

―As janellas do quarto da mamã julgo que ainda estão fechadas.

―Tanto não posso eu distinguir; comtudo afianço-te que sim. A tia Victoria não é muito matinal.

―Aquella casa acolá não é a de Alvapenha?―perguntou Henrique, apontando n'outra direcção.

―É―respondeu Augusto―e, mais adeante, alli tem a deveza, em que passou ante-hontem. Não é verdade?

―É justamente. Com effeito! Foi um soberbo passeio, o que eu dei! D'aqui é que se vê. Lá vejo umas prêsas, por onde me lembro de ter passado tambem.

―Vê, acolá, aquella casa que tem uma capella ao lado?―perguntou Magdalena, apontando para um ponto distante.

―Perfeitamente.

―É a minha quinta dos Cannaviaes.

―Ah! É verdade, lá estão uns cannaviaes, se me não engana a vista.

―Justamente. Não sei se sabe que ha n'aquella capella uma imagem de Nossa Senhora, muito milagrosa.

―Sim? hei de visital-a.

―Coisa que se lhe peça, fazendo-se o voto da meia noite, é concedido―disse Christina, fitando d'esta vez Henrique, com a expressão da mais insinuante sinceridade.

―Que quer dizer o voto da meia noite?

―Tem uma pessoa de rezar á meia noite, e sósinha, sete estações no altar da Senhora―continuou Christina.

―Só isso? Boa é de cumprir a promessa. Já vejo que não ha aqui na terra desejo que se não satisfaça.

―Mais devagar,―acudiu Magdalena, sorrindo―pouca gente se atreve até a ir lá á meia noite, porque a alma de minha madrinha passeia a horas mortas por a sua antiga casa, dizem.

―Cada vez sinto mais desejos de lá ir―accrescentou Henrique, depois de ouvil-a.

―Além, entre aquellas arvores, sr.a D. Magdalena, vive um philosopho―disse Augusto, indicando outro ponto de perspectiva.

―É verdade; o bom do tio Vicente.

―Tio Vicente? Quem é o tio Vicente? Temos mais algum tio, com que eu possa augmentar o meu parentesco na aldeia?

―O tio Vicente é um santo velho, que se occupa a colher hervas pelos montes e valles para fazer remedios, que dizem milagrosos. Ainda é nosso parente, mas em grau muito arredado; comtudo chamamos-lhe tio, assim como quasi toda a gente por aqui.

―Que sombras negras são aquellas que se vêem no adro da igreja?―perguntou Christina.

―Na igreja? Ah! acolá? É verdade, parece um cordão de formigas―disse Henrique de Souzellas.

―São as mulheres que vão ouvir o missionario―respondeu a morgadinha.―Escutem, lá está a tocar o sino.

Effectivamente chegavam ao alto do monte as debeis mas sonoras badaladas do campanario da aldeia.

―A estas horas principiam as lamentações d'aquelle pobre Zé P'reira, que tão mal olhado anda por a mulher, desde que ella deu n'essas devoções―notou Augusto, sorrindo, ao lembrar-se da scena domestica a que na vespera assistira.

―Degenerou aquella mulher!―disse Magdalena―e, se quer que lhe fale a verdade, sr. Augusto, custa-me vêr o Cancella deixar a Lindita entregue assim a essa gente quando sáe da terra. A pequena é tão apprehensiva!

―Visto isso, já chegou aqui á aldeia a influencia dos missionarios?―perguntou Henrique.

―E não tem lavrado pouco!―tornou Magdalena.

Christina, que era um poucochinho devota, censurou timidamente as palavras da morgadinha.

―Primo Henrique―disse ella―julgo que ainda será preciso o seu auxilio para livrar do contagio esta innocente Christina.

―Prompto, prima Magdalena; para as boas causas tenho sempre armada a minha vontade.

―Olha, Lena, não vês?―exclamou Christina―são os pequenos que nos estão a dizer adeus das janellas do mirante.

De facto nas mais altas janellas do Mosteiro agitavam-se uns lenços brancos.

Marianna e Eduardo haviam-se erguido para saudarem, de longe, a irmã e a prima. Estas tiraram tambem os lenços e corresponderam-lhes aos signaes.

Interrompeu-as a voz de Henrique, dizendo:

―Annuncio a v. ex.as, que chega o rei da creação.

Effectivamente o cume do telhado da ermida e as franças despidas da alameda já se tingiam de luz.

Todas as vistas se voltavam para o oriente. Assignalava-o uma esplendida faixa de purpura, que, em insensivel graduação, desmaiava para as extremidades até se perder de todo no azul-celeste.

Rompia já, do meio d'ella, um pequeno segmento do sol, depois, o astro inteiro apparecia afogueado e vermelho, como um escudo de metal candente, e logo se desprendeu da terra, d'onde parecia surgir, e subiu nos ares, como um brilhante aerostato, ao qual se rompessem as prisões que o retinham.

O monte inundou-se de luz. O valle, em baixo, estava ainda envolto nas meias sombras da madrugada.

Nisto appareceu do outro lado da capella um dos criados de Alvapenha, que veio annunciar que o almoço estava prompto.

―Pois devéras temos um almoço?―exclamou Henrique, sinceramente surprehendido.

―Graças á previdencia de minha tia, previdencia de que eu zombava em casa, mas que sou obrigada a admirar agora. De facto, parece-me que estes ares do monte e frescuras da madrugada lhe devem ter aberto o appetite―respondeu Magdalena. E logo após continuou para Henrique:―Agora é occasião mais accommodada de pôr em prática os recursos do seu galanteio, primo. Quer dar o braço a Christina?

Henrique, em quem a morgadinha suspeitára a intenção de lhe render a ella a fineza, que assim declinou na prima, teve de condescender, limitando-se a exprimir n'um olhar as suas queixas, olhar que Magdalena fingiu não perceber.

E conversando e rindo, dirigiram-se para o logar onde, sobre uma mesa de pedra e lousa e ao ar livre, estava disposto o almoço.

D. Victoria não era senhora, que se saisse mal de emprezas d'estas. A alvura da toalha, a excellencia da louça e o bem disposto e apurado das iguarias convidavam.

Não se concebe appetite refractario a um tal conjuncto de circumstancias. O fastio, n'este caso, seria um fastio mórbido, correspondente a lesão organica e como tal sem poesia.

Henrique e Augusto principalmente fizeram, como era natural, justiça á cozinha do Mosteiro.

Henrique, que parecia haver esquecido as suas mil e uma doenças, conversou animada e espirituosamente.

Contaram-se anecdotas; Augusto applaudiu as de Henrique; este riu com vontade das que ouviu a Augusto.

A morgadinha, por sua propria mão, preparou o chá.

N'estas alturas do almoço encetou novamente Henrique o tiroteio de amabilidades, de que por muito tempo não sabia prescindir.

Dir-se-ia ser este o signal para se perturbar a santa harmonia do congresso. Parecia que todos os outros, mais ou menos, se sentiam contrariados.

Henrique ficára sentado junto da parede da capella. Inclinando-se sobre o espaldar da cadeira a saborear um charuto havano, descobriu umas letras escriptas na parede, exactamente por cima da cabeça.

―Bravo!―exclamou, depois de as ler para si―não imaginava que havia poetas na aldeia! Querem ouvir?

E leu:

Se estás mais perto do céo

N'estas alturas da serra,

Ai, porque tens, peito meu

Inda saudades de terra?

Em vez-de erguer os olhares

Á luz d'este firmamento,

Desço-os á sombra dos lares,

Onde tenho o pensamento.

―É pena que a chuva apagasse o resto. Quem é o bardo, prima?

―Não sei; da aldeia de certo que não é―respondeu Magdalena, com indifferença.

Augusto ergueu-se da mesa e foi passeiar para a alameda.

―Da aldeia, não, diz a prima; e por que não? Com esta natureza é facil crearem-se os poetas. Eu estou vendo n'esta quadra a folha solta de um romance. Aqui a serra de algum Bernardim inedito, tão capaz de escrever saudades, como de as sentir. Os lares, pela sombra dos quaes o olhar do poeta trocava os esplendores do céo... algumas d'essas casas, que ahi se vêem em baixo. Quem sabe se não será até o Mosteiro? Eu, por mim, confesso que se estivesse hoje aqui só, ou em outra companhia―accrescentou, olhando significativamente para a morgadinha-não teria dúvida em subscrever esta quadra, como a exacta expressão do meu sentir, porque...

Em vez de erguer os olhares.

Á luz d'este firmamento

Eu tambem...

Os abaixaria aos lares

Onde tenho o pensamento.

Christina levantou-se tambem da mesa e foi ter com Augusto á alameda.

Magdalena, que a seguiu com a vista, não disfarçou um gesto de despeito ao ficar só com Henrique.

―Prima Magdalena,―disse em tom mais affectuoso Henrique, passado tempo, e depois de mais algumas palavras―deixe-me falar-lhe com franqueza, agora que estamos sós. Conhecemo-nos ha dois dias; eu, porém, sinto-me tão seguro já do que lhe vou dizer, que não hesito. Não pode imaginar a indelevel recordação que me ficará d'esta manhã.

―Perdão,―atalhou Magdalena―diga-me primeiro o que é isso que me vae dizer. Prepara-se para me agradecer o almoço? Eu sou como os reis; gosto de estar prevenida do sentido das felicitações que me dirigem, para ir preparando uma resposta adequada.

-Que prazer tem em ser cruel!

-Deixemo-nos de loucuras―continuou Magdalena, séria já.―Quem ouvisse o sr. Henrique de Souzellas havia de suppôr que se preparava para me fazer uma declaração.

-Uma declaração do mais puro affecto, do mais sincero sentimento, por que não?

-Ah! Pois, se eram essas de facto as suas intenções, peço-lhe desista d'ellas.

―Por quê?

―Porque não posso escutal-o.

―Ou não quer.

―Ou não quero; seja.

―Teria eu a desventura de chegar tarde, prima? Acaso o seu coração já...

―Que impertinente pergunta? Se já, não tenho ainda no sr. Henrique a necessaria confiança para o tomar por confidente. Conhecemo-nos apenas de hontem, que é o mesmo que não nos conhecermos.―E accrescentou logo depois:―Christina, anda ser arbitra n'uma disputa entre mim e o primo Henrique.

―Que vae fazer?―perguntou-lhe Henrique, admirado.

Christina approximou-se; Augusto seguiu-a. Henrique não desviava os olhos da morgadinha que, sem lhe dar attenção, proseguiu para Christina:

―O primo Henrique falava com certa exaltação da doçura do teu caracter; o meu amor proprio disse-me que―era pouco delicado estar assim a lisonjear uma mulher na presença de outra―e redargui por isso, pondo em dúvida a asserção e affirmando que havia um fermentozinho de maldade na tua doçura. Elle nega por impossivel, eu insisto e estamos n'isto. Agora dize tu.

Christina córou intensamente e não teve que responder.

Henrique, que nas palavras de Magdalena julgou ouvir algumas que, pelo sentido e inflexão, com que foram dictas, lhe eram dirigidas, acceitou desaffrontadamente a posição, em que Magdalena o collocára, e respondeu:

―Venci eu! O facto de querer a priminha poupar uma réplica amarga á accusação que lhe fazem, é a mais eloquente prova, já não digo só da doçura, mas da natureza angelica do seu caracter. Já vê, prima Magdalena, que «quando uma das mulheres que diz, fôr como a nossa boa Christina, não se podem admittir essas revoltas de amor proprio, a que alludiu.»

A morgadinha percebeu tambem o duplo sentido d'estas ultimas palavras; mas fingiu não comprehender.

Henrique, ao desviar por acaso os olhos, encontrou os de Augusto fixos n'elle, emquanto um sorriso lhe dissipava um pouco dos labios a grave expressão que lhe era habitual, temperando-a com não sei que de ironico, que não escapou tambem a Henrique.

Os olhares d'estes dois homens trocaram-se por momentos, sem que nenhum parecesse disposto a baixar-se deante do outro.

Desviou-os porém uma dupla exclamação de Magdalena e de Christina, dizendo:

―Olhem o tio Vicente por aqui!

Dobrava effectivamente n'aquelle momento a esquina da ermida, e approximava-se da mesa do almoço, o velho herbanario, em que já temos falado no decurso dos passados capitulos.

X

Era uma expressiva figura de ancião o herbanario.

A fronte larga e desaffrontada de cãs, os olhos ainda vivos e penetrantes e, em toda a physionomia, permanentes indicios de habituaes meditações e por ventura de passados infortunios, elevavam aquelle semblante muito acima da vulgaridade. Os annos ou, mais ainda do que os annos, os pezares haviam subjugado n'elle a robustez de outros tempos; os habitos de solidão, que adquirira, a pouco e pouco lhe amoldaram o caracter até fazerem do velho um d'esses typos excepcionaes, que atravessam o mundo entre a estranheza de quantos os rodeiam, a ninguem permittindo sondar os mysterios que guardam comsigo e para si, e creando para uso proprio regras de viver, sem attenção ás convenções sociaes.

Era um enigma vivo.

Nas aldeias acompanhava-o uma fama quasi de nigromante; attribuiam-lhe curas milagrosas, obtidas com os simplices, a cuja cultura e colheita consagrava as maiores attenções e canceiras.

Ninguem lhe queria mal, que a ninguem o fizera nunca. Poucos porém ousariam, depois do esconder do sol, ir procural-o á isolada casa em que vivia, escondida n'um quintal, que era cultivado com todo o amor pelo velho.

Em todos os casos intrincados vinham consultar o herbanario, e elle, como seguro da sua proficiencia, em caso algum recusava o alvitre.

Em resultado de leituras aturadas, mas sem escolha nem methodo, de uns alfarrabios herdados de um tio frade que tivera, adquirira imperfeitas e mal digeridas noções de sciencia, de que se mostrava orgulhoso. Livros de medicina antigos, alguns de jurisprudencia, outros de logica e de astronomia, constituiam a sua mesclada bibliotheca. Entre os livros mais predilectos e consultados contava um exemplar da Polyantheia de Curvo Semedo.

O herbanario principiára em creança uma educação tal ou qual, que revézes de familia haviam interrompido.

Os meios conhecimentos, que das suas habituaes leituras extrahira, e os erros, que de taes livros assimilára, eram os elementos, com que chegou a architectar uma sciencia informe, que na aldeia passava por maravilhosa.

E o caso era que a fama do homem voára de freguezia em freguezia, de concelho em concelho, e de muito longe o vinham ouvir como a oraculo.

Os costumes do velho, que errava por valles e montes á procura dos simplices, cujas occultas virtudes conhecia, as suas maneiras rudes, a austeridade da physionomia, a franqueza, sem contemplações, com que dizia quanto pensava, tinham gravado fundo na imaginação popular aquelle typo, para ella quasi lendario.

Depois de se sentar á mesa, o herbanario estendeu familiarmente a mão a Augusto, que lh'a apertou com affecto.

―Bons dias, rapaz,―disse o velho; e, dirigindo-se a Magdalena e Christina, accrescentou com maneiras paternaes:―Adeus, pequenas; grandes madrugadas hoje!

Voltou-se depois para Henrique, e fitou-o com olhos inquisidores e quasi desconfiados, terminando por lhe dizer simplesmente:

―Guarde-o Deus!

Henrique correspondeu-lhe no mesmo tom.

Sem mais o attender, Vicente voltou-se para Magdalena e perguntou-lhe com voz audivel para Henrique, e referindo-se a elle:

―Quem é?

Henrique respondeu com ligeiro tom de mofa:

―O homem que, melhor que ninguem, está habilitado a responder a essa pergunta.

O velho nem sequer o olhou.

―Este senhor―respondeu Magdalena―é sobrinho de D. Dorothéa; está hospede em Alvapenha. Veio para aqui restabelecer-se da saude.

Vicente tornou a examinar Henrique.

―Então é doente?... Não parece... Olhar vivo... Côres boas... voz sã... Umh!...

Magdalena julgou perceber que as maneiras rudes do velho estavam desagradando a Henrique; por isso apressou-se a intervir, respondendo jovialmente:

―A doença d'este senhor é um pouco de imaginação.

―E grandes effeitos nascem d'ahi―acudiu sentenciosamente o velho.―Lá veem na Polyantheia muitos casos curiosos. Um homem, por ter comido umas amoras, foi atacado de dôres de cabeça, de que morreu. Pois tanto scismou que das amoras lhe viera o mal, que até se lhe formou no craneo uma pedra do feitio de uma amora.

―Com effeito!―disse Henrique, com ironica expressão de pasmo―ahi estava um cerebro de concepções rijas!

―É divertido!―disse Vicente, com ligeiro sarcasmo e olhando para Magdalena.

―Pelo contrario―acudiu a morgadinha―o seu mal é a melancolia. Não é verdade?

―Eu já não sei qual é o meu mal. Estou quasi a dar razão á tia Dorothéa, que lhe chamou mania.

―Mania e melancolia não são a mesma coisa―emendou o velho.―Tambem lá na Polyantheia se diz isso bem claro. A melancolia é sem ira nem furia, porque procede de humor frio, e a mania de sangue quente ou cólera requeimada.

―De cólera requeimada? Deve ser uma coisa terrivel!―continuou Henrique, no mesmo tom.

Magdalena, receiando que a ironia dos commentarios de Henrique acabasse por irritar o velho, perguntou a este:

―Parece-lhe que terá cura a doença?

―Pode ter; mais rebeldes melancolias se curam. Este é divertido a final. Umh!... Mas contra tristezas e manias não ha como as folhas de ouro em caldo de frangão com flores de borragem e de herva cidreira.

―Este é como os calvos, que vendem aos outros pomadas para fazer nascer o cabello; é um argumento vivo contra a efficacia da beberagem que receita para as manias―disse Henrique a meia voz para Augusto, que lhe ficava proximo.

O velho, que não tinha ainda dado mostras de offensa pelas maneiras impertinentes de Henrique, córou d'esta vez e faiscou-lhe nos olhos um relampago de irritação.

Havia-se sentido ferido no ponto mais melindroso da sua dignidade.

―Está bom, menino,―replicou elle amargamente.―Não diga mais, para se não envergonhar depois. Eu calo-me; e desculpe-me se falei. Estou costumado a vêr pobres e ricos virem a minha casa pedir-me o favor de os attender. Ainda assim ahi vae mais um conselho, apesar de m'os não pedir. Seja attencioso com a velhice que não é baixeza nenhuma. Mas que é isto?―exclamou, mudando de tom e olhando para um redemoinho de folhas sêccas que o vento trouxera até perto d'elle.―As folhas veem d'este lado! Então virou o vento? É verdade. Ah! sim?... Percebo.

E, depois de olhar para o ar, continuou:

―Mudanças tão repentinas!... Umh!... Já me não agrada aquelle azul e aquellas nuvens.

E levantou-se.

―Dou-lhes meia hora, e verão tudo isto coberto e quem sabe o mais que virá! Aconselho-os a que vão descendo o monte, que não é seguro descel-o quando as enxurradas engrossam. Eu, por mim, já me não demoro, que não tenho confiança na firmeza das minhas pernas. Oh! n'outros tempos!... Emfim tudo tem de acabar. Adeus!

E, sem mais palavras, sobraçou a caixa de lata, em que archivava as hervas medicinaes e outras substancias, que andava colhendo, e partiu, depois de dizer adeus a Augusto, a Magdalena e a Christina.

Logo que o herbanario desappareceu, Henrique soltou uma risada, em que parecia haver o que quer que era de forçado.

―É realmente curiosa esta antigualha―disse elle, que interiormente sentia já remorsos pela maneira por que tratára o velho.

―Ai, primo Henrique; que ainda está muito pouco preparado para viver na aldeia!―disse a morgadinha.―Tem uns melindres e uma maneira de vêr as coisas! Tudo lhe parecem faltas de attenções, propositos de offender! depois ha um sarcasmo cruel nas suas palavras, a que os espiritos não estão aqui habituados e de que se sentem por isso feridos. Isso não é bom! Se vae assim, ou terá de nos deixar cêdo, ou grandes desavenças suscitará por ahi. Não repara que estes modos são proprios do campo?

―Perdôe-me, prima Magdalena; mas confesso que nunca tive demasiado geito para lidar com doidos. Deve confessar que este homem...

―É um homem de bem―atalhou Augusto com voz firme e com uma severidade de expressão, que até alli não mostrára ainda.

Henrique voltou-se admirado e fitou-o em silencio. Augusto arrostou firmemente aquelle olhar.

―Não o nego―respondeu Henrique, pouco depois―mas infelizmente os homens de bem envelhecem, como os outros, e a extrema velhice traz a imbecilidade.

―Engana-se; esse homem, apesar de algumas phantasias, tem ainda um juizo são e uma razão clara.

―Acha?―tornou Henrique, já algum tanto azedado.―Ha de dar-me licença de não fazer obra por as suas apreciações... se me é permittido.

―Procede mal―redarguiu Augusto.―Porque eu conheço aquelle homem ha muito e o senhor acaba apenas de o vêr pela primeira vez. Foi o senhor quem primeiro deu ás suas palavras um tom irritante, que desafiou uma digna correcção. Não lhe ficaria mal se tivesse sido mais generoso. A consciencia lh'o está dizendo n'este momento melhor do que eu.

―Lê fundo nas consciencias dos outros!

―Não é difficil. Em todos os homens a consciencia tem uma só maneira de ser. Reprova sempre o mal, aponta sempre a culpa.

―Estou admirando a subita loquacidade que se lhe manifestou! Até aqui suppunha-o taciturno. Vejo que lhe mereço a fineza de abrir uma excepção aos seus habitos de laconismo em meu favor. Muito agradecido. Isso que dizia eram maximas ou pensamentos moraes? Não reparei.

Augusto córou, mas respondeu com firmeza:

―Nem uma nem outra coisa; é um genero muito mais modesto do que qualquer dos dois. Simplesmente um preceito de civilidade.

Henrique ia responder irritado, mas conteve-se e tornou com dobrada ironia:

―É verdade, é verdade... esquecia-me que a civilidade entra no seu programma... de mestre-escola.

―Justamente; tenho alguns discipulos que lisonjeiam o mestre; rapazinhos da aldeia, pobres, rotos e descalços, mas n'esse ponto podem dar lições a elegantes filhos das cidades.

―Pois estimarei, nas minhas longas horas de ocio, aqui na aldeia, dever-lhe algumas lições tambem. Comtudo, como, felizmente, as circumstancias em que estou me permittem prescindir do beneficio do estado, que o subsidia, ha de conceder-me que pague as lições que receber.

―Nunca me envergonhei de acceitar a recompensa do meu trabalho, se o discipulo pode dar-m'a... sem sacrificio.

―E acceita-a em toda a especie de moeda, não é verdade?―perguntou Henrique, cada vez mais petulantemente.

Augusto respondeu com a mesma serenidade:

―Não faço tambem escrupulo n'isso, comtanto que me fique o direito salvo de pagar na mesma especie de trócos, quando julgar que os devo.

O dialogo ia, como vamos vendo, de momento para momento adquirindo mais acerbo caracter.

Christina, que já tremia de assustada, cingiu o braço de Magdalena, como para convidal-a a intervir.

Esta não o tinha ainda feito por uma simples razão. Desconhecia Augusto. A audacia com que o via repellir as ironias do seu adversario, a firmeza inalteravel, com que lhe sustentava o olhar, o sorriso, que, em desdens, rivalisava com o d'elle, eram tão novos para a morgadinha, que a surpreza, que d'ahi lhe vinha, nem a deixava ainda perceber a utilidade de uma intervenção. O aviso de Christina chamou-a, porém, á realidade.

―Tem-me querido parecer, ainda que me custa a acreditar, que isso entre os senhores é uma altercação―disse ella por fim.―Vejam que só teem por testemunhas duas mulheres, que mal lhes podem servir de padrinhos, se a contenda tomar outra feição. Por isso não é muito para louvar a escolha que fizeram da occasião, para uma justa tão pouco... amavel.

―Perdão, prima Magdalena; reconheço a minha culpa, e a grosseria do meu proceder. Mas aqui o sr. Augusto, costumado a impôr aos discipulos o seu pensamento, quiz estender até mim este despotismo de... magister... Ora o meu pensamento pugnou pela sua independencia...

―Desculpe; suppondo-o um homem de brio e de pundonor, julguei que me agradeceria, se conseguisse modificar-lhe uma opinião desfavoravel, que levianamente formou de quem lh'a não merecia. Vejo que prefere ser injusto. Seja-o. Pense o que quizer. Mas o que eu não soffro é que se diga deante de mim uma palavra contra um homem que respeito e de quem sou amigo, sem que erga a voz a defendel-o. Se não costuma fazer o mesmo por os seus, nem sente viva e irresistivel a necessidade de o fazer, lastimo-o; é porque não os tem.

―Com mais paz de espirito se discutirá tudo isso depois―disse Magdalena.―É de crêr que, como sempre, haja de parte a parte razão e aggravos. Agora convido-os, antes de descermos, a visitar a ermida, cuja porta está sempre, dia e noite, aberta aos devotos que a piedade aqui traz. E tal é o prestigio que a defende, que não consta de um só roubo sacrilego, que se fizesse n'ella.

Entraram na ermida. Era um pequeno santuario, todo forrado de azulejo antigo, com ennegrecidas pinturas a fresco nos apainelados do tecto, representando episodios da Paixão; os altares, adornados de columnas e florões de talha dourada, attestavam nos muitos ex-votos que d'elles pendiam e nos quadros, cuja perspectiva deixava a perder de vista a dos desenhos chinezes e que representavam milagres de todo o genero, a fé ardente com que era adorada a imperfeita esculptura da Virgem.

E apesar de tudo tinha este templo um ar de solemnidade manifesto. D'onde lhe vinha elle? Da sua mesma pobreza e nudez, do silencio que reinava em torno, da altura a que se erguia, do isolamento em que estava.

Alli dentro demoraram-se os quatro visitantes, Magdalena e Henrique examinando alguns dos quadros dos milagres; Christina, que prolongára mais do que a prima a oração que fizera, contemplando a imagem da Senhora; Augusto com os olhos fitos nas columnas do altar, porém, não sei se pensando n'ellas.

Esperava-os uma surpreza á saida.

Realisára-se o prognostico do herbanario.

O vento sul que, segundo elle notára, soprava já havia algum tempo, viera condensar os vapores, que arrasta de ordinario na sua corrente, e empanar com elles a limpidez do firmamento. O azul do céo semeiára-se, pouco a pouco, de pequenos flocos brancos, de manchas irregulares e de longos e encurvados veios que lhe davam uma apparencia quasi marmorea. Cêdo estas massas de nuvens cresceram, tocaram-se, confundiram-se, acabando por tingir uniformemente toda a extensão do firmamento. Ao mesmo tempo, outras nuvens, mais pesadas e mais escuras, começaram a erguer-se do sul e caminharam impetuosas no espaço, como montanhas moveis, que viessem em pavorosa carreira, de encontro ás serras, que as aguardavam firmes.

Um denso véo de nevoeiro escondia já a paizagem, quando sairam da ermida.

―Depressa!―exclamou Augusto―já não ha tempo a perder! Desçamos antes que a tormenta nos colha.

―Tem medo?―disse Henrique em tom de mofa.―Um montanhez!

―Talvez tenha; em todo o caso ha de vêr que não é de inimigo pouco digno de o inspirar. Por agora peço-lhe tréguas ás zombarias e, por amor d'estas senhoras, aconselho-o a que trabalhe por apressar a descida. Felizmente que o criado já partiu. É um embaraço de menos. Vamos.―Detendo-se, porém, disse para Magdalena:―Se descessemos por o outro lado, minha senhora?

―Para quê?―respondeu esta.―É um momento, emquanto chegamos abaixo.

A tempestade caracterisava-se cada vez mais; crescia a cerração do ar; os álamos gemiam, vergados pela impetuosidade das lufadas do sul; a chuva principiou por grossas gottas, e cêdo augmentou assustadoramente; havia na atmosphera surdos rumores de tempestades longinquas; algumas nuvens tomavam uma côr terrea, outras um carregado de chumbo, ambas igualmente sinistras.

Christina, pallida de susto, murmurava em voz baixa orações fervorosas; Magdalena sorria para a animar, mas ella propria estava inquieta.

Não era de facto uma empreza de todo facil o descer o monte por um tempo d'aquelles. O caminho, já de si ingreme e precipitoso, era quasi impraticavel quando as correntes se despenhavam por elle, como em catadupas, e os ventos vinham despedaçar-se furiosos de encontro ás arestas salientes da rocha.―Era necessario estar muito amestrado para o descer sem perigo.

Augusto era de todos o que melhor o conseguiria; assim não tivesse de repartir os seus cuidados por tantos. De pequeno se costumára áquellas aventuras; e já então seguia, sem vertigem, a mais estreita borda dos despenhadeiros do monte.

A tudo porém attendia agora, desenvolvendo uma actividade e pericia, que inspirava alento e confiança aos mais. Agil, como um animal montez, girava em volta da pequena caravana, de que tacitamente fôra reconhecido chefe. Ora adeante a dirigir os passos pelos logares de mais facil transito, ora á retaguarda a dar a mão a Magdalena, que vira em embaraço, ou a amparar Christina, a quem muita vez chegou a levantar nos braços, para a fazer franquear um ponto do caminho, em que ella parára, sentindo que lhe resvalavam os pés no declive e na humidade do chão. O proprio Henrique, que não era o menos embaraçado do rancho, e nem isso admira, só a custo podia prescindir, em certos lances, do auxilio de Augusto.

O amor proprio e orgulho do hospede de Alvapenha iam um tanto mortificados n'esta retirada ingloria. Nenhum dos seus muitos talentos e aptidões, de tanto valor no terreno, tambem escorregadio, das salas de baile, lhe valiam para alli. Era evidente a sua inferioridade n'este momento; ora Henrique não era homem que, tendo consciencia disto, ficasse indifferente; mas que remedio? Procuraria mais tarde uma compensação.

Não descrevemos todos os episodios d'esta laboriosa descida, alguns dos quaes sómente a preoccupação, em que iam os animos, impedia achar risiveis; porém que mais tarde deviam, como é costume, vir a ser alimento de animadas e joviaes recordações.

Assim foi que, a meio da encosta e em sitio em que se lhes cortava ao lado do caminho, que cautelosamente desciam, uma ribanceira quasi a pique e erriçada de fragas salientes e angulos de rocha, em cujas fendas e sinuosidades apenas os tojos e as giestas e algum pinheiro enfezado tinham conseguido vegetar, uma violenta rajada de vento, desprendendo a mantilha de Magdalena, depois de a revolutear no espaço arremeçou-a ao abysmo.

Ficou suspensa nos espinhos das tojeiras, porém em logar, onde seria difficil o accesso, de qualquer lado que se tentasse.

Magdalena, no momento, não pôde reter um grito, que fez parar com terror Henrique e Augusto que caminhavam adeante. Voltaram-se assustados.

A morgadinha, com a cabeça descoberta, tranças ligeiramente desordenadas, as faces um pouco pallidas, sorria já do seu exaggerado susto.

A rir, explicou o succedido, pedindo perdão pelo sobresalto que involuntariamente causára.

―Descança em paz!―disse ella, olhando para a mantilha; e accrescentou:―Sigamos.

―Mas não será possivel tiral-a d'alli?―perguntou Augusto, examinando o sitio.

―Para quê? Não podemos demorar-nos agora com isso―respondeu Magdalena.

―Eu desço a cortar uma canna lá abaixo aos Moinhos e volto n'um momento―insistiu Augusto, dispondo-se a executar o que dizia.

Henrique notou, sorrindo:

―O alvitre é de homem prudente. Cuidei que os montanhezes não eram de tão bom aviso.

E, animado pelo desejo de humilhar Augusto, por quem se sentia humilhado, e ao mesmo tempo cedendo á influencia que sobre elle exercia a fascinadora figura de Magdalena, Henrique arrojou-se a uma desnecessaria imprudencia.

Sem dar tempo a que o impedissem ou lhe fizessem qualquer reflexão, deixou-se escorregar no despenhadeiro, segurando-se com as mãos á borda do caminho; tenteou com os pés as fendas e as anfractuosidades da rocha, até conseguir firmal-os; segurou-se ora a uma raiz saliente, ora a um ramo mais tenaz; á fôrça de vontade dominou a sua impericia em exercicios d'esta ordem, e finalmente conseguiu, estendendo o braço, segurar a mantilha, que o vento arrojára ao precipicio.

Depois, com dobradas difficuldades e por ventura redobrados perigos, pôde, roçando-se como reptil, e ferindo as mãos nas asperezas da rocha e nos espinhos das tojeiras, em que se firmava, pousar outra vez os pés em terra, sem acceitar a mão que Augusto lhe offerecia, e com gesto radiante entregou a mantilha a Magdalena, fixando em Augusto um olhar de triumpho.

Os espectadores d'esta scena haviam-a presenciado sem soltar uma palavra, sem fazer um movimento, quasi gelados de susto e de espanto.

Quando Henrique voltou com a mantilha, Augusto meneou a cabeça murmurando:

―Que imprudencia!

―Na verdade!―disse Magdalena, ainda nervosa com a impressão que este incidente lhe causára―foi uma loucura; uma loucura imperdoavel.

E a perturbação era tal, que nem acertou com uma phrase de agradecimento, com que pagasse a imprudente galanteria, que mais desejava reprehender, do que recompensar.

Esta reserva offendeu Henrique; serviços a seu vêr de menor importancia, tinham merecido a Augusto mais calorosas palavras.

Revoltou-o esta ingratidão.

Mal sabia elle que estava sendo ainda mais ingrato, não concedendo sequer um olhar ás faces desmaiadas pelo terror, aos labios trémulos e aos olhos arrasados de lagrimas, com que o fitava Christina. Ella, que o tinha seguido muda de susto e de anciedade em toda aquella louca aventura, ella que, ao terror do perigo, ajuntava a affligil-o o desespêro de vêr que fôra outra a que inspirava aquellas loucuras!

Aguardavam-os em baixo novos trabalhos a vencer. Com a fôrça das enxurradas, que se precipitavam clamorosas pelas vertentes e algares, era provavel que a levada que corria na raiz do monte tivesse engrossado mais e acabasse de cobrir a ponte rustica, que á vinda já tinham encontrado quasi submersa.

Augusto, prevendo isso, voltou-se para as senhoras, dizendo:

―Eu vou adeante assegurar-me do estado da ponte, para no caso de estar já coberta, como é provavel, vêr se o moleiro nos abre a porta do moinho, a fim de passarmos por lá. Vão descendo devagar, que eu volto.

―Então deixa-nos sós?―exclamou Christina, assustada.

―É um instante.

―Não sei se nos atreveremos a dar um passo sem a sua indicação―disse Magdalena.

―O peor está passado. Além d'aquella pedra já vêem o ribeiro e a ponte; o caminho indica-se por si.

E dizendo isto, desceu agilmente por uma especie de escadaria aberta na rocha, a qual mais depressa o devia conduzir ao logar que demandava.

Henrique ia agora na frente; após, seguia-se Magdalena. Christina fechava o cortejo.

O mau humor de Henrique augmentára de ponto, em consequencia dos receios com que as duas raparigas tinham visto Augusto abandonar, por momentos, a direcção do rancho.

Ficava assim bem evidente a pouca ou nenhuma confiança que lhes estava merecendo o auxilio de Henrique, representando assim elle n'aquella contingencia, em vez do papel de protector, o de protegido, que o humilhava.

Obrigado a digerir, como pudésse, o seu fundo descontentamento, Henrique perdera com isso aquella volubilidade de conversação que mantivera todo o dia.

Nunca, na presença de Magdalena, deixára passar tanto tempo sem formular um d'esses galanteios que a impacientavam e obrigavam a uma resposta, nem sempre demasiado affavel.

Magdalena, por seu lado, não se sentia com disposição para falar. Christina menos.

Este silencio acabou por exasperar Henrique.

Haviam já percorrido grande parte do caminho, que os distanciava do riacho. Avistavam-se as aguas turvas e impetuosas, que, com mais fragor do que nunca, se contorciam n'aquelle apertado leito.

Foi então que Henrique desafogou o seu resentimento.

―Estou devéras arrependido, prima Magdalena,―disse elle com leve ironia―do meu espontaneo movimento de ha pouco. Devia lembrar-me de que ao nosso cavalheiroso guia devem pertencer todos os triumphos e toda a gloria d'esta jornada: mas como d'aquella vez se me figurou que era demasiado cauteloso para heroe...

Uma simultanea exclamação de Magdalena e de Christina não o deixou proseguir.

Voltando-se para saber a causa, que a motivára, viu-as paradas, pallidas, olhando com anciedade para a base do monte.

Seguindo a direcção do olhar d'ellas, Henrique reconheceu a causa d'aquelle duplo grito.

Refiramol-o em poucas palavras.

Quando Augusto chegou ao ribeiro, para averiguar se a ponte estava ou não transitavel, surprehendeu-o um espectaculo inesperado.

O herbanario que, prevendo tempestade e receioso dos perigos de que em taes condições a descida era acompanhada, se apressára a partir, não conseguira chegar ao ribeiro, antes do desencadeamento da borrasca. O andar vagaroso e precavido do velho e as frequentes pausas que fazia, ou para descançar ou para colher a rara planta montezinha, o insecto, o verme, o mollusco ou o mineral de occultas virtudes, elementos da sua pharmacopeia, foram retardando de maneira que a chuva apanhou-o a meio caminho, e mais difficil de descer lhe tornou a metade, que lhe faltava. Assim, não obstante haver partido antes dos outros, não lhes levava muitos passos de avanço.

Ao chegar á levada, encontrou já as pedras do tosco passadiço, a que se dava o nome de ponte, cobertas pela agua. O velho deu-se pressa em descer para a passar ainda a pé enxuto; mas a levada, agora torrente caudalosa, ganhava corpo de momento para momento; cêdo já não se viam signaes de ponte. O herbanario parou, embaraçado. Acima ficavam-lhe os açudes, transformados em impetuosas cataractas; abaixo, o moinho, em cujas enormes rodas espumava a corrente com espantoso fragor.

O velho Vicente hesitou. Era para causar vertigens o que via. As aguas, sem transparencia, occultavam de todo a vista das pedras.

Tenteou com o bordão o sitio, em que as suppôz. Encontrou a primeira, pousou um pé n'esse ponto; firmou-se como pôde, para resistir á fôrça da corrente; tenteou outra vez, reconhecendo outra pedra, deu mais um passo, e outro, e mais outro, até que de repente, ou por esvaímento de sentidos ou por se firmar em falso, vacillou e, perdendo o equilibrio, caiu na levada para o lado dos moinhos.

Foi n'este momento que Augusto chegou; viu-o pois cair, viu-o estrebuchar, luctando com a impetuosidade das aguas; reconheceu a urgente necessidade, para evitar uma horrivel desgraça, de acudir, sem perda de tempo, ao pobre velho, que a torrente arrastava para os lados do moinho.

Cedendo a este pensamento, Augusto franqueou, quasi de um salto, o espaço, que o separava ainda do ribeiro, e lançou-se á agua.

Era a vez de Augusto revelar coragem. Henrique tambem a possuia, mas abusava d'ella ou, por vaidade malbarateava-a em ninharias. Ainda n'isto se revelava o seu amor de ostentação. Imaginava-se sempre n'um palco, deante de espectadores que o viam e applaudiriam, se desempenhasse bem o papel de homem perfeito. Fraco perante doenças imaginarias, arriscaria, para evitar o ridiculo, a propria vida, assim como suffocaria, por ventura, um impulso generoso, que não pudésse harmonisar-se com a convenção, que se chama elegancia.

Eram estes os defeitos que Magdalena adivinhára n'elle.

Augusto era differente.

As suas grandes qualidades guardava-as com modestia dos olhos estranhos, para sómente as revelar, quando pudéssem ser uteis.

Ao vêr cahir a mantilha de Magdalena, não arriscou temerariamente a vida para a buscar. Procurava com placidez os meios de o fazer, com mais segurança, embora com menos romanticismo; mas, para salvar uma vida, para obedecer a um instincto, verdadeiramente nobre e generoso, nada o fazia recuar.

Logo que Augusto voltou a terra e auxiliou o herbanario a subir para a margem, Magdalena, respirando emfim com desafogo, respondeu ás anteriores palavras de Henrique, dizendo em suave tom de censura:

―Bem vê que nem sempre é cauteloso o nosso guia, primo Henrique. Sabe tambem arriscar a vida, quando uma razão de humanidade lh'o pede. A sua imprudencia de ha pouco... agradeço-lh'a, mas... não posso approval-a. Confesse que não foi tão justificada como esta.

Henrique tinha a razão clara bastante e a consciencia justa para vêr que, apesar da sua façanha cavalheiresca, ficára, d'esta vez ainda, inferior ao seu companheiro.

Qualquer que fôsse o desgosto, que a descoberta lhe produzisse, é certo que teve sobre a rebellião dos maus instinctos poder sufficiente para se obrigar a ir apertar a mão a Augusto.

O velho Vicente estava pallido e extenuado pelo esforço da lucta com a corrente; ainda assim abraçou tambem Augusto, dizendo:

―Agradeço a Deus o haver-me dado esta occasião de te dever a vida, rapaz. Era um prazer que desejava levar da terra, quando a deixasse.

Magdalena e Christina rodeavam o velho de cuidados.

Appareceram, emfim, do outro lado do ribeiro, os criados enviados por D. Victoria com guarda-chuvas e roupas de agasalho. Com elles vinha tambem o moleiro, a quem mandaram chamar para dar passagem pelo moinho, visto estar obstruida a ponte, e ao mesmo tempo para que as senhoras pudéssem ahi dentro mudar de fato.

Augusto seguiu o herbanario a casa.

Passada meia hora saíam tambem do moinho os outros todos, depois de haverem renovado a roupa, que a chuva repassára.

No Mosteiro, D. Victoria recebeu a filha e a sobrinha com muitas exclamações e ralhos por não terem ido prevenidas com guarda-chuvas, como ella lhes recommendára; estas iras cêdo se derivaram sobre os criados, a quem, entre outros delictos, attribuia o de a não haverem avisado de que na vespera passára por alli o caldeireiro ambulante, repenicando nos seus arames, o que, sendo prognostico infallivel de chuva, faria com que ella, sabendo-o, se oppuzesse a tal passeio.

Em Alvapenha, D. Dorothéa e Maria de Jesus não levantaram menor celeuma, ao vêrem chegar Henrique. Fizeram-o metter na cama, cobriram-o de cobertores, emborcaram-o de punch e taes mêdos lhe insinuaram, que as apprehensões pathologicas de Henrique agitaram-se e tentaram reapossar-se da sua antiga victima.

XI

Censuravel descuido tem sido o nosso em não conduzir o leitor a um dos logares mais importantes da aldeia, onde se passam os singelos episodios d'esta narração.

Que se diria de um cicerone que, por esquecimento ou proposito, deixasse de apresentar um viajante, recem-chegado a uma cidade, na assembleia, club, gremio, ou o que quer que seja, onde se reunem as principaes personagens d'ella, onde se compendiam as grandes questões e interesses locaes, as pequenas vaidades e intrigas, as modas ephemeras, os voluveis caprichos que agitam os espiritos, onde se commenta o boato de hontem, se dão ao de hoje mil versões diversas e se adivinha já o de ámanhã?

Pois no mesmo delicto incorremos nós, chegando a este undecimo capitulo, sem ter guiado os leitores á venda de Damião Canada, a qual podia dizer-se o verdadeiro coração d'aquelle organismo social.

Tudo quanto na terra havia de certa representação alli ia falar da coisa publica e tambem da particular;―da particular dos outros mais do que da propria, entenda-se.

Aproveitemos um resto da tarde, em que a natureza após horas continuadas de chuva e de temporal, como que procurou respirar e permittiu que o sol, já no occaso, levantasse uma ponta do manto de nuvens que o envolvia, e mandasse os raios amortecidos ás cristas das serras fronteiras; aproveitemos este intervallo de socego para entrarmos na taberna.

Tinham passado dois dias depois do passeio ao monte, que descrevemos.

Henrique de Souzellas teve de condescender com uma leve angina, que lhe legaram os rigores d'aquella excursão, e ficou em Alvapenha, entretendo-se a escrever cartas aos amigos e a scismar n'uma imminente desorganisação da larynge, a que imaginava conduzirem-o os seus incómmodos actuaes.

No Mosteiro nada tambem occorreu, que mereça narrar-se ao leitor.

Deixemos, pois, por momentos, os nossos conhecidos, e vejamos o que dizem os frequentadores do estabelecimento de Damião Canada.

Brilhante é a assembleia alli reunida. Além do proprietario, barriguda e rubicunda figura, que, assim posta ao pé das pipas, podia servir de typo para a representação de um Sileno, havia varias individualidades de peso nos destinos de toda a comarca.

Dê-se primeiro menção ao nosso já conhecido Bento Pertunhas, a quem as humanidades não faziam soberbo a ponto de recusar-se a entrar em communicação social com os seus conterraneos.

Observada esta deferencia, mencionemos os mais.

Um era nem mais nem menos do que o sr. Joãozinho das Perdizes, em quem já temos ouvido falar por mais do que uma vez.

Era o dicto sr. Joãozinho morgado e proprietario em uma das freguezias proximas, chamada de Pinchões; mas propriedades e morgadia andavam-lhe tão embaraçadas em redes de demandas e de hypothecas, que Deus nos acuda.

Os autos, que diziam respeito á casa das Perdizes, enchiam um cartorio. Graças, porém, ao seu genio despreoccupado e folgazão, o sr. Joãozinho deixava aos procuradores os cuidados judiciaes; os cuidados agricolas aos rendeiros e feitores; os do futuro, a Deus ou ao diabo; e para si não reservava nenhuns.

Proseguia n'aquella vida airada, que já lhe era necessidade. Frequentava as feiras, onde ia para jogar e fazer trocas de cavallos com os ciganos, e ás vezes para dar e levar sovas monumentaes.―Nos mezes de caça, a vida do morgado era perfeitamente nómada: estendia por leguas e leguas as suas excursões venatorias, contentando-se com qualquer cama e comida, de que, de ordinario, participavam os cães, que o acompanhavam; distrahia-se tambem a conquistar os corações femininos da freguezia, calando com dinheiro algumas queixas mais acerbas e insoffridas de um ou outro pae, marido ou irmão. Em todas as tabernas das freguezias vizinhas tinha contas em aberto, o que não obstava a que entrasse em todas com ares de conquistador e expendesse alli as suas opiniões absolutas, com grande exhibição de berros e de punhadas.

Com todas estas qualidades, era o sr. Joãozinho das Perdizes um homem verdadeiramente popular entre os da sua freguezia; movia-os no sentido que quizesse.

Tudo por lá era o sr. Joãozinho; não havia funcção, rixa, solemnidade official, para que elle não fôsse consultado. É que a superioridade do morgado das Perdizes não era d'aquellas que intimidam e acanham o povo; ninguem hesitava em falar-lhe e em procural-o em casa, porque, falando e vivendo com elles, o sr. Joãozinho não constrangia ninguem. Os seus defeitos, a sua vida de feiras e de tabernas eram outras tantas causas a popularisal-o; justo é porém que se diga que algumas boas qualidades tambem para isso concorriam. O sr. Joãozinho não era avarento, nem soberbo. Sentado a beber, e com dinheiro no bolso, não consentia que pessoa alguma, desde o mais rico proprietario até o jornaleiro mais miseravel, recusasse tomar assento a seu lado. Não eram poucos os filhos-familias que resgatára de soldado, sem a menor caução ou interesse, chegando a ficar empenhado para os livrar; e se algum desgraçado se via perseguido pela justiça, encontrava, fôsse qual fôsse a enormidade do crime, asylo seguro na herdade das Perdizes, que em certas épocas era um perfeito valhacouto de malfeitores.

Graças, pois, a estas e analogas qualidades, era o sr. Joãozinho uma verdadeira potencia eleitoral.

Eis ahi o homem moralmente.

Pelo lado physico, supponham um sujeito de trinta e cinco annos, gordo, vermelho, de longas e encaracoladas melenas em desordem, bigode aparado e a barba quasi sempre mal feita ou por fazer. Na maneira de vestir inculcava os habitos da vida e um certo desleixo com sua pessoa, que lhe era peculiar. Trazia o collete quasi sempre desapertado e com alguns botões de menos de modo que os peitos da camisa formavam hernia pela abertura; entre as calças descaídas e o collete avistava-se o cóz das ceroulas, no qual era geito muito seu o enfiar a mão; ao pescoço trazia um lenço de seda escarlate, negligentemente atado e com longas pontas fluctuantes; uma jaqueta de pelles com alamares, calças de fazenda chamada pelle do diabo, botas de montar e esporas constituiam o resto do vestuario. O cigarro, que quasi sempre fumava até ás ultimas, crestára-lhe profundamente as pontas dos dedos e o canto dos labios. O palito andava-lhe sempre atraz da orelha; a navalha de ponta na algibeira, e, para qualquer parte que ia, acompanhava-o uma tumultuosa matilha de galgos, podengos e perdigueiros.

Segunda e não menos importante personalidade era a do sr. Eusebio Seabra, chamado por antonomasia―o Brazileiro.

Era um homem de cincoenta annos; bem figurado e sisudo, de falar compassado e com seus quês de oraculo, phrases sentenciosas e ares de protecção a todo o mundo.

Saira creança da aldeia e fôra tentar fortuna ao Brazil. Por lá esteve quarenta annos, e voltou o homem grave que vemos e rico. Como enriqueceu não sei, e ninguem na terra o sabia. Veio edificar uma casa no sitio em que nascera, uma casa grande de cantaria e azulejo, com tres andares e varandas, jardim com estatuas de louça e alegretes pintados de verde e amarello, o qual jardim tinha mais fama n'aquellas aldeias vizinhas do que os jardins suspensos da Babylonia. Trouxera um papagaio e uma arara, igualmente famosos, e uma botica homoepatica, que elle proprio manipulava.

As ambições de Eusebio Seabra limitavam-se a vir a ser a primeira personagem de influencia na aldeia. Para isso principiou por fazer alguns reparos na igreja parochial, presenteou com vestidos novos todos os santos dos altares, e mandou renovar um sino, que havia doze annos tocava a rachado. Fez á sua custa a festa do orago, chegando a mandar vir fogo preso da cidade e um aerostato, que ardeu a pouca altura do chão. Apesar, porém, de todos estes beneficios á localidade, o conselheiro Manoel Bernardo, pae da morgadinha, comquanto vivesse quasi sempre em Lisboa, continuava a fazer-lhe sombra e a contestar-lhe as ambiciosas vistas. Por isso, apesar da apparente amizade com que Seabra o acolhia e lisonjeava até, conservava por elle no fundo uma má vontade, um ciume, de que eram de receiar, tarde ou cêdo, explosões.

Seabra era tão asseiado, quanto o sr. Joãozinho das Perdizes descurado no seu vestir. Usava sempre de suissa irreprehensivelmente talhada em volta do queixo; camisa muito lavada; peito aberto e tres grandes botões de brilhantes; no trajo combinavam-se as variegadas côres de uma ave da America; e o ouro, distribuido com profusão por todos os accessorios da sua pessoa, attestava os bons resultados dos seus quarenta annos do Brazil. Passeiava pela aldeia de chinelos de marroquim verde ou sapato de tapete, e era tal n'elle a delicadeza do andar, que voltava a casa sem que uma mancha ennodoasse a alvura das suas meias de algodão fino. Aos domingos e dias de festa indignava a relva dos caminhos, calcando-a com bota de polimento.

Além d'estes dois e do nosso conhecido Zé P'reira, que bebia, em silencio, ao pé do taberneiro, havia um padre, coadjuctor da freguezia, dois lavradores abastados e já de avançada idade, e outros que deixaremos confundidos na massa indistincta dos comparsas.

No momento, em que entramos, usava da palavra o brazileiro, que estava sentado á porta da taberna, na mais limpa cadeira do estabelecimento.

―Pois é verdade―disse elle―fômos todos da mesma creação. O conselheiro Manoel Bernardo saiu d'aqui para Lisboa um anno depois de eu ir para o Brazil. Andámos ambos na mesma escola, que era a do padre Joaquim, alli pelo sitio da Corredoura. Vossemecê ha de estar lembrado, sr. Luiz―accrescentou, dirigindo-se com a affabilidade protectora, que o caracterisava, a um dos lavradores.

―Ora se estou! muito bem. Era na casa em que hoje mora o Chico da Luciana.

―É verdade que sim. Pois alli andei eu e o conselheiro e aquelle ratão do Vicente, herbanario, que era já rapaz taludo. Lembra-me, como se fôsse hoje, de quando jogavamos todos tres a pedra no terreiro da Corredoura.

―Olha lá, hein!―diziam dois lavradores com um sorriso cortezão nos labios―então com que o sr. Seabra tambem jogava a pedra! Eh! eh! eh!...

―Ora, como um homem. Eu fui levadinho da bréca. Boa sóva levei de minha mãe, por causa de umas calças novas que rompi.

―Ora vêdes?―diziam os outros.

―Ai tempos, tempos!―disse, suspirando, o brazileiro.

―Quem havia de dizer então ao que v. s.a e o conselheiro tinham de chegar!―notou lisonjeiramente o sr. Bento Pertunhas.

―Eu sim―respondeu com toda a sua modestia o brazileiro.―A que cheguei eu? Comi candeias accêsas pelo Brazil, para arranjar um boccado de pão para o resto da vida; com isso me contento. O mais, sou um pobre diabo que ninguem conhece, um homem ignorante, sem principios. Elle é outra coisa.

―Não é tanto assim―insistiu Pertunhas―todos sabem que v. s.a se quizesse...

―Olhe, meu caro amigo, eu conheço-me; se tivesseo juizo de muitos, que por ahi vejo figurando, então havia de me vêr na brecha; porque, não é por me gabar, mas não me tenho por menos do que muitos d'elles.

―Ora pois, não, não―disseram os lavradores, Pertunhas e o padre.

―Alguns que até ministros teem sido...

―Por essa estou eu...

―O conselheiro mesmo...―resmungou o padre, fungando uma pitada jesuitica―sim, aqui para nós...

―Tanto não digo―continuou o brazileiro, mais jesuiticamente ainda.―O conselheiro... vamos... Faça-se-lhe justiça. Eu não quero dizer que elle seja uma coisa por ahi além... sim... Que diabo tem elle feito a final?... Mas... Não é dos peores, não é dos peores. Faça-se-lhe justiça. Não é homem de grandes talentos... isso não; nem mesmo de grande fundo. Sim... Devemos confessar que esta é a verdade... Mas... emfim, vamos andando...Cada um faz o que pode―concluiu o brazileiro, depois de ter feito justiça ao conselheiro.

―No que elle tem andado mal é em prometter mais do que pode fazer. Ha quantos annos nos anda a falar na estrada, e até hoje ainda nem palmo d'ella?―opinou Pertunhas.

―Meu amigo, engana meninos e chupa-lhe o pão: diz o dictado―ponderou o brazileiro.

[182]―A falar verdade!...―disse um dos lavradores―com a influencia que elle tem, podia...

―Ora adeus! palanfrorio―atalhou o padre―bem me fio eu na influencia do conselheiro.

―Eh! eh! eh!―respondeu o brazileiro, agradado do scepticismo do padre, e accrescentou com um sorriso velhaco:―Não, elle diz que fala com os ministros, que tal, que sim senhores, que domina o partido. Emfim... Elle lá o sabe.

―Para mim é que elle vem de carrinho...

―Eu não sei―concluiu com requinte de velhaquez o brazileiro.

―Pois eu cá―disse o sr. Joãozinho, que estivera bebendo em silencio, e descarregou um murro na banca, que fez tilintar os copos.―Eu cá já disse; se os taes homens das bandeirolas me tornam a passar por as terras, sempre lhes meço as costas com um marmeleiro, que lá tenho, e que já me serviu para varrer a feira de Santo Estevão. Uns mariolas!...

E como para desafogar o pêso da sua amabilidade, despediu um pontapé a um podengo, que lhe viera roçar por as pernas, e fel-o sair ganindo.

―Dizem que vão principiar outra vez com os trabalhos das estradas―informou o taberneiro, enchendo de novo o copo ao sr. Joãozinho.

―Pois que vejam no que se mettem. Cautelinha commigo!―resmungou este.―Faço como d'aquella vez em que eu e a minha gente queimámos toda a papelada da camara e do escrivão da fazenda.

―Agora no inverno é que elles hão de principiar com os trabalhos. Sempre se fia em boa!―disse, encolhendo os hombros, mestre Pertunhas.

―Vossemecê é que está a ler―veio-lhe á mão obrazileiro.―Então não sabe que as eleições são em fevereiro?

―Ai, é verdade! não me tinha lembrado d'isso!―exclamou o padre.

―Tambem não sei como será d'esta vez essa [183]historia das eleições―acudiu o sr. Joãozinho.―Cáeu e a minha gente ainda estamos a vêr no que param as coisas. Eu já não estou para ser logrado. Até agora tenho dado ao conselheiro a freguezia em pêso, sem pedir nada, ou se pedi foi o mesmo que não pedisse. Vou curar-me de tolo; agora sempre havemos de entrar n'uns ajustes. Se o homem não estiver cá por umas contas, não anda o filho de meu pae.

―Ora adeus!―disse o padre cura.―O conselheiro tem artes para o levar.

―A mim? Está enganado. Não querendo eu?Então você não me conhece. Em euembirrando, sou como um borrego teimoso.

―Quando se fala em estradas, já estou a tremer―disseum dos lavradores.―O que elles veem cá fazer é cortar-nos os campos, e a final não sei para que servem.

―Isso não é assim―atalhou o brazileiro, tomando uns ares cathedraticos, cheios de gravidade.―Vossemecê é ignorante e por isso é que fala d'esse modo.

―Eu digo...―tartamudeou, intimidado, o lavrador.

―Pois sim: mas não deve metter-se a falar em coisas que não entende. As estradas não servem para nada! As estradas são meios de communicação e... facilitam o... o... o trafego commercial e augmentam por conseguinte a riqueza das nações... Porque o trabalho representa um capital..., sim, senhores, mas... mas um capital...sim... um capital morto... quero dizer um capital que não vive... Quero dizer... sim... supponhamos: o credito por exemplo... O credito..., sim... ahi está o credito... Pois que é o credito?... O credito é... é o credito... depende de muitas coisas... Por outra, supponhamos... se nós não tivessemos estradas... Uma supposição... Partamos de um principio. A producção excede o [184]consumo... Quero mesmo que o consumo exceda a producção... Sim, quero mesmo isso... Muito bem... D'ahi que resulta? Está claro que um desequilibrio. E depois?... Depois, boas noites... Não havendo estradas... Ahi está que se diz por ahi que a livre exportação, que tal, que sim senhores... mais isto, mais aquillo... Pois não é assim. É preciso que se attenda tambem ás condições economicas dos povos. Sim... eu digo: O commercio deve ser livre... Muito bem... Em termos já se sabe...Mas... o commercio livre... a livre troca... entendamo-nos... É preciso clareza de ideias... Quando eu digo que... Ora supponhamos... supponhamos que não havia estradas... Os transportes eram mais difficeis e portanto mais caros... E se além d'isso os generos fôssem escassos e... Diz vossemecê, para que servem as estradas? Ora diga-me uma coisa, sr. Manoel, supponhamos que... os impostos indirectos... não precisamos de ir mais longe... os impostos indirectos... Sempre queria que me dissesse o que havia de fazer.

―Impostos, Deus me livre d'elles!―murmurouo lavrador, cujos instinctos trepidaram á palavra «impostos».

―Isso tambem não é assim... Deus me livre! Não se diz Deus me livre, porque a riqueza... a riqueza... sim, a riqueza não está na terra... isto é, a riqueza está na terra... mas é preciso o capital para a exploração... Percebe?... Ou... supponhamos... por exemplo... Não... vamos cá por outro lado... Ha um deficit n'um orçamento... desce o preço das inscripções... Ora bem... Mas... supponhamos que ha boas estradas, etcoetera... A riqueza tende a augmentar... e... e... Emfim lá que as estradas são uteis, isso é que não tem questão.

Toda esta lenga-lenga economica foi escutada pelo auditorio com profunda attenção.

O brazileiro, assignante e leitor infallivel de variosperiodicos politicos, conseguira, á fôrça de leitura, fixar na memoria certas phrases de artigo defundo, e acabára por convencer-se de que possuia grandes noções de sciencia politica. Em occasiões como esta dava uma sacudidela ao intellecto, e aquellas phrases como os variados objectos do interior de um kaleidoscopo, tomavam uma disposição tal ou qual, mais ou menos regular, e assim lhe saia uma dissertação, como essa que viram. Em permanente indigestão economica vivia este portento. A doença não é das mais raras entre politicos.

O sr. Joãozinho das Perdizes abriu desmesurada e ruidosamente a bôca, depois do discurso do brazileiro, e disse:

―Eu cá por mim não sei d'essas coisas. Não se me dava das estradas para poder ir á feira de Penafiel com menos trabalho, mas, já disse, que me não venham mexer na quinta; porque então teem que vêr.

―Pois está arriscado a isso―disse o brazileiro.

―Veremos, depois não se queixem. Temos a historia da papelada outra vez.

―Houve a ideia de levar a estrada pela Corredoura fóra, depois de tomar á esquerda pelo Castro e vir direito á Palhoça. Não tinha cruzes nem cunhos. Ia-me parte da propriedade.

―Ah! ah! ah! Tambem não gosta? Diga-me d'isso!―berrou o sr. Joãozinho.

―Não é não gostar, é que o traçado era pessimo.

―Não sei por quê.

―Só a expropriação da minha quinta por que preço não lhes ficava?

―Elles, para esses casos, lá teem umas leis a seu modo―notou o padre cura.

―E por onde ha de ir então a estrada?

―O outro traçado, que eu aconselhei ao engenheiro, parte da herdade do capitão-mór, faz umviaducto nos lameiros, atravessa o pinhal do Conego, passa o rio n'uma ponte e...

―Oh com os diabos; o que ahi vae!

―Não é tanto como parece; sendo as obras bem dirigidas... Até aos lameiros só tem a deita rabaixoa casa e o quintal do herbanario.

―Deitar abaixo a casa do herbanario! O pobre diabo rebenta de paixão, se tal fazem―disse, com certa commiseração, o sr. Joãozinhodas Perdizes, que tinha por o herbanario uma sincera affeição e respeito, n'elle excepcional, desde que lhe attribuia a cura de um typho que o tivera ás portas da morte, e de que o velho, dizia elle, o salvára, com uns cozimentos sómente d'elle sabidos.

―Ora adeus! Antes d'isso morre o homem de doidice. Está maluco de todo―redarguiu o brazileiro.

―Tambem está um bom magico, está―notou o padre.

―Quer não, que sabe mais do que todos os medicos―acudiu o sr. Joãozinho das Perdizes; a mim me livrou de uma maligna. Oh que excommungada!

E principiou a fazer a historia da sua doença.

Os lavradores concordaram em que o homem era sabedor; mas attribuiam-lhe mais mysteriosa sciencia, do que a da medicina.

―Pois a final por onde devia ir a estrada―continuou o brazileiro;―tinham ainda o campo dos Brejos do conselheiro, mas n'isso não se fala, já se sabe.

―Ora! pois está de vêr―concordou o padre.

―E o conselheiro não se ha de oppôr á expropriação da casa do herbanario, porque pelos modos elles não andam muito correntes―lembrou um lavrador.

―É verdade; por que seria aquillo?―perguntou outro.

―Elles em tempo eram muito um do outro; e são até aparentados;―explicou o brazileiro―e o [187]velho ainda hoje é tratado com familiaridade pela gente do Mosteiro; mas julgo que o homem com aquelle genio exquisito que tem, disse algumas verdades ao conselheiro, por occasião de umas eleições, quando elle pôz as auctoridades a trabalhar por si, e o velho entendia que as coisas não iam bem assim.

―Pois, com os diabos, o Vicente herbanario vale mais do que vinte conselheiros e toda a familia,―exclamou o sr. Joãozinho, batendo outra punhada―e queira elle, que o tal senhor não põe mais o pé nas camaras, mandado cá pela terra.

―Eu gósto de os ouvir,―disse o padre―falam assim, mas em chegando a occasião, vão todos votar n'elle como carneiros.

O brazileiro encolheu os hombros e sorriu, como confirmando o dicto.

―Pois havemos de vêr o que será!―berrou o sr. Joãozinho.―Isso é consoante cá umas coisas.

―A falar a verdade―disse o Pertunhas―não tem pago muito bem ao circulo o nomeal-o ha tantos annos seu deputado; só essa teima agora em querer obrigar o povo a enterrar-se no cemiterio!

―Essa a falar a verdade!―disse um lavrador.

―Quero vêr se me hão de enterrar a mim!―disse ameaçadoramente o sr. Joãosinho, como se esperasse ainda depois da morte, impôr as suas vontades á fôrça de murros e de pragas.

―Deram-lhe para lhe dizer que fazia mal enterrar nas igrejas. É moda e acabou-se. D'antes enterrava-se lá toda a gente e não havia mais doenças do que agora―isto dizia o padre.

―Os romanos tinham as suas catacumbas―ponderou o mestre de latinidade, forçando as suas reminiscencias romanas.

―Vamos―ponderou o brazileiro, como quem vira pretexto de fazer novo discurso e como homem que punha acima dos despeitos a verdade scientifica.―O enterrar nas igrejas é anti-hygienico; porqueos chimicos sabem que... o ar que não é puro... é mau para a saude publica. Ora os cadaveres... em putrefacção produzem uns vapores que corrompem o ar... Ha uns insectozinhos invisiveis que a gente respira... e vão para a massa do sangue e corrompem-a... e o resultado é a febre... porque a febre são os humores a ferver... como o vinho no lagar... e se sáem, muito que bem; e se não sáem, ficam retidos e azedam o corpo todo.

A theoria physiologica pathologica foi recebida com attenção igual á que merecera a economica.

―Tudo isso será assim,―disse o padre―mas o conselheiro faz aquillo por instigações das lojas maçonicas e dos pedreiros livres.

―Pois elle será tambem?...―disse um dos lavradores, arregalando os olhos assustados.

―Ora que dúvida! Pois aquella gentinha é toda da sucia.

―Corja!―resmungou o sr. Joãozinho.

O brazileiro, que se filiára no Brazil na maçonaria, fez um discurso sobre os fins da sociedade, que ninguem entendeu; vendo, porém, que não calavam nos animos aquellas doutrinas, mudou repentinamente de rumo.

―Elle não será mação―disse d'ahi a momentoso padre―mas é vêr o que elle tem defendido nas camaras; queria roubar ás irmandades e ás freiras os bens que ellas possuem; appeteceu-lhe o exemplo do cunhado, que se encheu com a compra do Mosteiro; queria acabar com o santo sacramento do matrimonio; queria que cada qual seguisse a religião que muito bem lhe parecesse. Vejam que christão aquelle!

Estas novidades abalaram os lavradores, que formularam algumas palavras de censura.

―E tambem falou para acabar com os morgados e com os vinculos.

―A falar a verdade, os vinculos...―murmurou [189]o sr. Joãozinho, que por vezes tropeçára nas disposições da antiga lei vincular, ao caminhar na estrada da dissipação; porém, recordando-se de um irmão que tinha, casado e pae de muitos filhos, que mal conseguia sustentar á custa de muito trabalho, a ideia da abolição dos morgados não lhe sorriu e exclamou com nova punhada:―Acabem lá com os morgados quando quizerem, que o que eu lhes digo é, que tem de se haver commigo quem quizer tirar-me um palmo de terra!

O padre cura continuou a tratar pouco christãmente o conselheiro.

O pae de Magdalena militára sempre, como já dissémos, nas fileiras do partido mais liberal, e por isso era-lhe em geral pouco affeiçoada a maioria do clero, que, entre nós, não espósa ardentemente aquellas ideias.

No principio da sua carreira parlamentar, cedendoao impulso do enthusiasmo juvenil, o conselheiro desenrolára desassombradamente a bandeira do partido progressista e pronunciára os mais absolutos artigos d'aquelle credo politico; liberdade era então o seu mote favorito; a liberdade do commercio, do ensino, da imprensa e dos cultos; as reformas consequentes nos codigos, a desamortisação e desvinculação da propriedade, tudo advogára com enthusiasmo, no tempo em que estas palavras soavam ainda como heresias aos ouvidos habituados á lettra de outro catecismo.

Com o tempo arrefeceu, porém, esse enthusiasmo; dissipou-se-lhe com o fogo da mocidade. Com quanto liberal ainda de convicção, ensinou-lhe a politica pratica a rebuçar em formulas mais ordeiras os seus principios doutrinarios, a contemporisar, e até quando as conveniencias, infelizmente, nem sempre as publicas, o pediam, a dar alguns passos de retrocesso e a transigir com o partido opposto.

Se o fizessem ministro não se arrojaria a transformarem projecto de lei nenhuma d'aquellas medidaspor que pugnára nos seus primeiros discursos, e que tantas malquerenças lhe acarretaram então.

Já atraz dissémos, que o conselheiro era actualmente um espirito pouco apaixonado do ideal, respirava a atmosphera de desillusão e de scepticismo, em que nas grandes cidades se vive. Era um perfeito homem de côrte; tratava cordialmente os seus adversarios politicos, pedindo d'elles mercês e empregos para afilhados; fulminava-os ás vezes da tribuna e depois apertava-lhes a mão nos corredores das camaras e nas praças. Se o julgava vantajoso, pronunciava ainda uma d'aquellas phrases sonoras, uma d'aquellas sympathicas divisas de politica avançada, que no principio da sua carreira adoptára comsinceridade; mas não tinha já aos principios o amor preciso para cair, abraçado n'elles, dos degraus do poder, se algum dia os chegasse a subir.

Por isso os soldados rasos do seu partido, os politico sem abstracto, unicos para quem a politica é sempre ideal e logica, o taxavam de frouxo e tibio; e de gazeta na mão havia muito que lhe dictavam, do obscuro canto do paiz em que viviam, a estrada direita, de que elle, porém, a cada passo se desviava.

Apesar d'isso, o partido conservador e o reaccionario, julgando-o por os seus primeiros discursos, continuavam, de boa ou de má fé, a acoimal-o de impio, de republicano e de pedreiro livre.

O brazileiro entrou em dissertação a respeito de todas as medidas politicas a que alludira.

Segundo o costume, ninguem o entendeu.

Ia elle no mais enredado da sua meada oratoria, quando o som de um tropear de cavallos o interrompeu. Mestre Bento, que fôra espreitar á porta, voltou-se, exclamando:

―Elle ahi vem! ahi vem o conselheiro!

Todos se levantaram pressurosos para correrem á porta. O que mais de má vontade o fez foi ainda assim o brazileiro.

[191]Dentro em pouco todos se descobriam. Parava á porta o conselheiro, que montava um soberbo cavallo branco, e ao lado d'elle Angelo, n'um pequeno baio de fórmas elegantes e olhar vivo.

O conselheiro cortejou com affabilidade palaciana os seus amigos e patricios, dizendo a cada um uma phrase lisonjeira, que dissipou quasi todo o effeito da conversa que descrevemos.

Depois, fazendo signal ao filho de que podia seguir para casa, dispoz-se para entrar na venda.

XII

O conselheiro levou a sua attrahente amabilidade até se sentar nos bancos de pinho do estabelecimento de Damião Canada, envernizados já pelo uso de muitos annos.

Entre os circumstantes era qual mais o cumprimentava e opprimia com attenções e o flagellava com obsequios.

O conselheiro revestira-se, com muito estudo, de uma physionomia satisfeita e sem sombras de reserva; tratando a todos por amigos, e conversando com aquella familiaridade, tão sabida de candidatos a procuradores do povo, nos circulos que pretendem representar. Até chegou a levar aos labios o copo de vinho, que um lavrador lhe offereceu.

Não se lhe percebia porém no rosto, ao fazer isto, o menor vestigio de artificio, e, ao mesmo tempo, mantinha-se ainda n'elle tão apparente a superioridade intellectual, que os seus interlocutores nunca excediam os limites da deferencia. O pae de Magdalena era um perfeito homem de côrte: presença agradavel, modos insinuantes, palavras tão astuciosamente[192]lisonjeiras, que desvaneciam os proprios que como taes as tinham.

Alvejavam-lhe já algumas cãs nos cabellos e suissas, que usava talhadas á moda ingleza; principiava a predominar-lhe nas fórmas certa rotundidade caracteristica; mas no esmero e até elegancia distincta de casquilhice pretenciosa, com que vestia, no porte airoso, nos movimentos ageis, no olhar penetrante como o de poucos, e na viveza das conversas, havia ainda tantos signaes de vigor e de virilidade, que ninguem se sentia obrigado a estranhar-lhe certos habitos de rapaz, que não perdera ainda.

Em Lisboa passava o conselheiro por ser um homem bemquisto das damas, e não obstante os seus cincoenta e cinco annos, acreditava-se que assim fôsse, ou quasi se adivinhava, ao primeiro olhar lançado sobre elle.

Possuia o dom especial de se encontrar á vontade em toda a parte, desde o mais perfumado gabinete da moda, até o menos asseiado local de um comicio popular. Nas camaras com graves diplomatas, nos cafés com rapazes estouvados, na sua aldeia com eleitores absurdos, com actores e actrizes nos bastidores, com padres nas sacristias, com militares nos quarteis, em toda a parte e com todos se achava este homem á vontade, acabando, quasi sempre, por captar sympathias.

Podia dizer-se d'elle, que com igual pericia e rara consciencia da opportunidade, jogava todas as armas: o galanteio cortezão, a phrase conceituosa, o equivoco subtil, a anecdota picante, o estribilho popular, a figura oratoria, a maxima moral, e até a praga energicamente expressiva; mas, como os espadachins de profissão, jogava-as todas com frieza de animo, cada qual na occasião opportuna e com perfeita observancia do que o mundo chama conveniencias sociaes.

Muito tinham que fazer com elle os La Bruyères,que, a cada passo, ahi encontramos no mundo; illudia [193]os mais atilados. Ás vezes parecia abrir-se tão do intimo, tão completamente e sem condições nem reservas, havia tal uncção de sinceridade nas palavras, com que falava de si, dos seus projectos, dos seus sentimentos, que o mais desconfiado jesuita sentir-se-ia tentado a acredital-o e nem sempre se enganaria; outras, falava verdade, mas com taes hesitações na voz, com tal mobilidade no olhar, que, ao consideral-o, a mais ingenua creança experimentaria o despontar da primeira dúvida.

Já se vê que um homem d'estes era um contendor de muita fôrça, para poder ser combatido por qualquer dos influentes locaes; o proprio brazileiro, apesar de toda a sua economia politica, ainda nada pudéra contra elle; nem ousára romper hostilidades com receio de ficar vencido.

Durante os poucos momentos, que o conselheiro se demorou na loja do Damião Canada, soube desvanecer muitas das sombras, que a conversa que precedera a sua chegada havia gerado em alguns espiritos. Tres ou quatro lisonjas, outras tantas promessas, alguns conselhos modestamente pedidos com fingida ingenuidade, serviram-o perfeitamente.

Deixemol-o nós na laboriosa e pouco invejada tarefa de manter a popularidade, e vamos seguir Angelo, que se separou do pae á porta da venda, para chegar mais depressa ao Mosteiro.

Mettendo a galope o pequeno baio que montava, dirigiu-se para casa com aquelle alvoroço do coração, que conhece quem já foi estudante e se recorda ainda do que experimentava ao vêr de longe despontar o telhado da casa paterna, onde vinha gosar as delicias de umas almejadas férias.

Angelo tinha por este tempo treze para quatorze annos. Era uma agradavel figura de creança, expressiva de intelligencia e de vida. Tinha nas feições um mixto da delicadeza de Magdalena e da energia varonil, e ao mesmo tempo attrahente do conselheiro.

[194]O cabello louro e curto levantava-se-lhe graciosamente em anneis naturaes, com grande vantagem para a espaçosa e bem modelada fronte.

Quando Angelo chegou ao pateo, era quasi noite fechada. As janellas do Mosteiro estavam todas obscuras, á excepção das aguas-furtadas, correspondentes aos quartos das creanças. Angelo desmontou e cautelosamente se dirigiu a pé para casa.

Torquato dormia á porta, como frequentemente lhe acontecia.―Angelo pôde assim penetrar sem ser percebido até o mais intimo da casa, até os aposentos onde dormiam as creanças, e em cujas janellas avistára luz.

A scena que viu, ao entrar alli, insinuou-lhe no coração uma suave e encantadora alegria.

O mais novo dos seus primos, creança de tres annos, estava meio nú e de joelhos sobre o leito com as mãos erguidas e os olhos fitos em um crucifixo que tinha á cabeceira. Magdalena, ao lado d'elle, dictava-lhe as palavras da oração, que a creança repetia, cheia de fervor.

Nos quartos proximos palravam, ainda acordados, os mais velhos, apesar das continuadas advertencias da prima.

Angelo approximou-se sem ruido, e quando a morgadinha se abaixava para beijar a creança, elle estendeu a cabeça e pousou tambem um beijo nas faces da irmã.

Magdalena soltou uma exclamação de surpreza e cingiu-o nos braços com effusão.

A creança levantou um brado, que foi o signal de revolta dado a Marianna e Eduardo, que cêdo abandonaram os quartos e correram a abraçar Angelo.

―Vens só?―perguntou Magdalena ao irmão, quando uma pergunta lhe foi possivel.

―O pae ficou na loja do Canada―respondeu Angelo.―Estava em sessão a assembleia dos notaveis. E como estás tu, minha Lena, tu e Christe e a tia? Como vae toda essa gente?

[195]―Anda tu mesmo sabêl-o.

―Eu vou dizer á mamã―disse Marianna, saindo aos saltos.

―Eu vou chamar Christe―disse Eduardo, imitando-a.

E sairam ambos, pregoando a chegada do primo.

O pequeno que Magdalena deitára, pedia, chorando, para se tornar a levantar, requerimento que, a rogos de Angelo, foi deferido.

―Dize-me―continuava no entretanto este para a irmã―tens-te enfastiado muito, aqui só?

―Não, tenho-me divertido até.

―Devéras? E que fazes? Em que passas o tempo?

―Eu sei? O tempo é que passa, sem eu dar por isso. Leio pouco, passeio muito; trabalho mais.

―Que tens lido?

―Quasi sempre relido.

―O quê?

―Nem eu sei já. O primeiro livro em que pouso a mão, quando os vejo sobre a mesa.

―O Augusto tem vindo ensinar os pequenos?

―Todos os dias.

―E o tio Vicente? Que me dizes d'elle?

―Vae bom. Caiu no outro dia á levada da raiz do monte; valeu-lhe o Augusto para o salvar.

―Sim? Pobre homem! Olha n'aquella idade! E a tia Dorothéa?

―Tem de hospede um sobrinho de Lisboa, um Henrique de Souzellas; conheces?

―Eu não.

―É provavel que por ahi venha. A tia Victoria insiste em que lhe chamemos primo. Aviso-te d'isso.

―Sim? E a tia? Ralha ainda muito com os criados?

―Coitada! Achei graça, ha dias, á Joanna, que com muita ingenuidade se me veio queixar de que ella até o anjo da guarda lhe occupava em serviço proprio. Tu sabes que a tia, quando está com muitosomno, tem aquelle costume de dizer ás criadas que a encommendem ao anjo da guarda d'ellas. Mas vamos.

―Espera... e... e o Cancella trouxe-vos aquellas encommendas?

―Trouxe.

―É verdade; e a filha d'elle? A Lindita?

―Já cá me ia tardando a pergunta―notou a morgadinha, rindo.―Essa anda contente, como quem nada tem a penalisal-a; nem saudades.

―Ora vamos, Lena; não te perdôo a malicia.

―Então devéras esse coração está assim tomado?

―Não te informo do meu coração, que o não levo commigo, quando d'aqui vou. Cá me fica; e uma grande parte d'elle no teu poder. Eu sou que pergunto; em que estado m'o entregas?

―Muito doente.

―Sim? E o teu?

―O meu? Ah! nem eu sei d'elle. Olha; isto decorações são como as creanças. As travêssas tantos cuidados dão ás mães, que a todos os instantes querem saber o que ellas fazem e onde estão; as socegadas inspiram tal confiança, que nem sequer n'ellas se pensa. O meu coração é um modelo de serenidade.

―Então ainda nenhum cavalleiro errante ou trovador...

―O sitio é pouco abundante em heroes. O unico d'estas immediações, capaz de ferir a imaginação e commover os affectos de uma mulher, é o sr. Joãozinhodas Perdizes; mas esse é um Actéon insensivel, que...

―É verdade―disse Angelo, rindo―lá vi tambem esse javali na venda do Damião Canada. Mas...Não sei que pense, Lena. Eu ainda um dia te hei de dizer umas coisas.

―A mim? A respeito de quê?

―Do teu coração.

[197]―Que sabes d'elle?

―A seu tempo direi.

―Como te vieram essas presumpções de conhecedor dos corações alheios? Não tinhas isso, quando d'aqui foste.

―Ás vezes vê-se melhor de longe.

―Os de vista cançada... de muito vêr.

―Bem; depois falaremos. Vamos lá ter com a nossa gente, que o pae não tarda ahi.

De facto, meia hora depois estava a familia toda reunida n'uma das salas principaes da casa. O conselheiro, sentado n'uma cadeira de braços, tinha ao collo Marianna; Christina, a pé, encostava-se-lhe familiarmente ao hombro; a morgadinha, sentada em tamborete baixo, apoiava o braço, em que recostava a cabeça, em um dos joelhos do pae. Do outro lado da sala, D. Victoria, sentada no sofá, servia de travesseiro a um dos pequenos que, apesar de prometter estar acordado, para que o deixassem ficara pé, adormecera. Junto d'este, Angelo fazia frequentemente rir sua tia e Eduardo, com as historias que lhes contava.

A conversa cêdo se generalisou. Era uma d'essas conversas intimas, familiares, em que se referem as mais insignificantes circumstancias da vida domestica; conversas cujo suave perfume só em familia se aprecia.

Pobre do estranho que por acaso se encontra n'um d'esses circulos apertados pelos estreitos laços da amizade e do parentesco, e se vê obrigado a ouvir a minuciosa chronica das occorrencias da casa, que não é a sua! É uma pathetica illusão a de certas familias, que imaginam que para todos é de igual interesse a narração dos successos domesticos, que tanto as deleitam, e com ella entreteem o primeiro indifferente que se lhes depara; tudo trazem á luz, o dicto agudo da creança de tres annos, os incómmodos que soffreu na primeira dentição, as espertezas do gato favorito, as razões ponderosas [198]que aconselharam a mudança de um movel, a combinação economica que favoravelmente modificou o orçamento domestico, a reforma nos processos culinarios consagrados pelo habito de muitos annos, o exame comparativo da conserva de um anno e da do anno antecedente, os defeitos e qualidades de um criado e mil outras pequenas coisas, que é forçoso escutar com ares de quem as acha curiosissimas, o que obriga a esforços sobrehumanos.

É natural aquella illusão; e pathetica a dissemos nós tambem, porque os que mais decoração se entrega má vida domestica, são os mais sujeitos a ella. Todos estes episodios futeis e pueris os preoccupam e deliciam mais do que as mais estranhas peripecias, que ainda concebeu a imaginação de romancista fecundo. E quem se lembra de que é individualissimo esse interesse, inherente á pessoa e não aos factos, ás causas que tão curiosos lh'os fazem ser?

Eu e o leitor, estranhos á familia do Mosteiro, vêr-nos-iamos, se fôssemos escutar todo o dialogo que se travou na sala, na posição da pessoa indifferente que imaginamos a aturar um d'esses relatorios domesticos, a que sobre tudo são tão inclinadas as mães de familia.

É verdade que o conselheiro podia achar curiosa a conversa; e o conselheiro tinha visto e ouvido tanto no mundo, que o que elle achasse curioso é porque realmente o era. D'esta vez, porém, damol-o por suspeito, porque o conselheiro tinha coração e,quando esta viscera se alvoroça com affectos, as intelligencias mais elevadas teem d'estas sympathicas fraquezas.

O politico, o diplomata reservado, fica fóra do portão da quinta do Mosteiro; alli dentro, n'aquelle circulo de affectos, era o pae extremoso, o homem de familia, ingenuo, sincero, aberto a todos, porque em todos confiava, contente por não ter de estudar [199]na expressão dos rostos os pensamentos que seguardam; nas palavras o sentido, que n'ellas não vem explicito.

Era um salutar descanço dos continuados esforços da sua vida de Lisboa; lá a lucta; aqui o repouso.

Por isso ouvia com attenção e applaudia com vontade as narrações da cunhada, de Magdalena, de Christina e até da pequena Marianna.

E apesar de todo este encanto, em que parecia cair, o conselheiro não poderia resignar-se a trocar por elle para sempre o vertiginoso movimento da sua vida politica.

Eram-lhe já necessidade aquella contenção, aquelle esforço de espirito, aquellas desconfianças continuas, aquelle jogo de astucias, que lhe tomavam em Lisboa todo o tempo.

Quinze dias no campo bastavam para o fazerem suspirar por as lides e o afan da capital; nem os affectos da familia o retinham.

A politica é uma embriaguez; nos intervallos em que o espirito se sente desanuviado dos vapores em que ella o envolve, pesam-nos os desacertos a que fomos arrastados; o desgosto do mal feito insinua-se-nos no coração; cêdo, porém, a violencia dos habitos subjuga os remorsos da consciencia, e de novo nos arrasta.

O caracter intimo da conversação foi levemente modificado por a entrada de D. Dorothéa e de Henrique de Souzellas, que de Alvapenha vieram visitaro conselheiro, mal tiveram noticia da sua chegada.

O conselheiro acolheu com jovial cordialidade a senhora de Alvapenha e com delicada franqueza Henrique, que elle conhecia de Lisboa. Frequentavam ambos os principaes círculos da capital e, por mais de uma vez, tinham trocado algumas palavras ou tomado parte em conversas e discussões communs.

Passado algum tempo depois dos cumprimentos,o serão animou-se de novo, fragmentando-se porém a conversação.

D. Victoria tomou á sua parte D. Dorothéa e passou a fazer-lhe amargas queixas a respeito dos criados do Mosteiro, ao que D. Dorothéa acudiu com conselhos de resignação christã.

Angelo conversava com Magdalena e Christina, a quem frequentemente fazia rir.

Henrique e o conselheiro, proximos do fogão, estavam empenhados n'um dialogo muito animado.

O conselheiro parecia estar falando com muita sinceridade e candura que surprehendiam Henrique, que ainda o não tinha observado por esta face.

―É uma triste verdade―dizia por exemplo o conselheiro n'um ponto adeantado da conversa, referindo-se a algumas considerações de Henrique sobre a felicidade d'aquella vida do Mosteiro.―Tenho esta familia que vê; todos me querem sinceramente aqui, e não sei resistir á fatal necessidade que me arranca de todos estes braços para me lançar ao turbilhão da politica e d'isso que se chama o mundo! Pois amo devéras a minha Lena, creia.

―É um dever que cumpre. N'estes tempos de má fé politica, quem se sente com a coragem de se votar, corpo e alma, á defeza despreoccupada dos bons principios...

Nos labios do pae de Magdalena passou um ligeiro sorriso, meio de descrença, meio de melancolia.

―Defeza despreoccupada? Isso é quando Deus quer―respondeu elle.―Olhe, Henrique, visto que me veio encontrar em minha casa, a cuja porta eu deixo, ao entrar, todas as mascaras e artificios, de que uso no mundo, vae vêr em mim o homem que talvez não esperasse e que, já lhe digo, debalde procurará reconhecer um dia, se me observar outra vez em Lisboa. O que lhe vou dizer não lh'o diria, nem lh'o repetirei lá. É verdade que estes ares do campo tambem actuarão em si para me apreciar e [201]tomar á boa parte a franqueza. Lá não acreditaria n'ella; se por acaso não a aproveitasse como arma politica contra mim...

―Pois julga?...

―Peço perdão, se o offendi com isto. Não eraesse o meu intento, mas é pratica tão geral!... Se um dia fôr politico, o que lhe não desejo, dir-me-ha.

Dizendo isto, fez uma curta pausa na conversação.

Rompendo de novo o silencio, o conselheiro proseguiu:

―Mas falava ahi de principios, que se defendem com desassombro e através de tudo. Não sei se quiz ser lisonjeiro e disse o que não sentia, ou mais do que o que sentia. Em todo o caso, eu, aqui no Mosteiro, acho-me muito ás ordens da minha consciencia, a qual não me deixa calar hypocritamente. Estou muito longe de ser esse ideal do homem politico, a que alludiu. Humildemente o confesso; até porque, se quizesse sel-o, arriscar-me-hia a achar-me só, não teria partido. Porque, qual é o que vê nas condições de constancia de opiniões que disse? Tenho crenças politicas, é verdade; espóso no coração certos principios que quizera vêr realisados, mas não combato por elles a todo o transe, nem por elles affrontaria o supplicio; antes, por vezes, entro em transacções, que são a completa negação da divisa da minha bandeira. E este peccado não sou eu só que o commetto; é um peccado venial da nossa época. As grandes ideias, que definem e estremam os campos na politica, havemol-as eu e os mais calcado muitas vezes aos pés, para sustentar umas insignificantes fórmulas, um interesse mesquinho, um capricho pessoal. A politica desce muitas vezes a isto. E ninguem é isento de culpa n'este mal. Para elle concorrem os mesmos que de fóra nos julgam severamente. Ha muitos d'estes peccados na minha carreira publica. E, quer que lhe diga, sabe quando vejo claro n'elles? quando mepersuado de que não são de todo desculpaveis? quando... porque o não direi? quando sinto remorsos de os ter commettido? É aqui, é perante a boa fé, a sinceridade, a candura d'esta familia, que me tem amor, e que me considera um homem perfeito, superior, impeccavel. É perante os generosos sentimentos da minha Lena, e o caracter nascente d'aquella creança―e indicava Angelo com o gesto.―Parece-me que tenho n'elles juizes inflexiveis, eescondo por isso a minha face politica dos seus olhos penetrantes. Ha muita coisa n'ella, para que o mundo é já indulgente, mas que receio elles me não perdoassem.

Reparando para o olhar de estranheza, com que Henrique lhe seguia esta effusão de sinceridade, o conselheiro accrescentou, sorrindo:

―Estou a vêr que não esperava estas palavras da minha bôca; esta confissão de peccador contricto.

―Confesso que não.

―Então que quer? Surprehendeu-me aqui como coração aberto. Já agora deixe-me continuar. Uma das ideias que mais me atormentam sabe qual é? Vê aquella creança que alli está? Angelo? É uma intelligencia que, de dia para dia, vejo formar-se com um vigor de vida, que me espanta. Não é a vaidade paterna que me cega, pode acreditar. Conhecendo-o de perto ha de dar-me razão. Mas o que ha além d'isso n'elle é um senso profundamente moral, raro até em idades menos tenras. Pois bem, quando penso n'elle por algum tempo, e conjectura que não serão poucas as vezes em que o faço?... quando penso n'elle e no futuro, sobresalto-me. De um lado, seduz-me abrir-lhe a carreira politica, onde ha grandes triumphos a embriagar as intelligencia se onde presinto que a d'elle terá o direito, senão o dever, de procurar um logar; mas, se me lembro de que na atmosphera d'aquellas regiões não duram muito estas primitivas canduras da alma, tão adoraveise consoladoras, quando me lembro de que Angelo será um dia... o que eu já hoje sou, um pouco desilludido, um pouco sceptico... com franqueza o digo, hesito em impellil-o ao redemoinho e pergunto a mim mesmo se mais não valeria dizer-lhe: Angelo, vive obscuro e tranquillo n'este retiro do Mosteiro, conserva aqui a ideal pureza da tua alma e procura a felicidade nas satisfações do coração. A lucta da vida pode embriagar-te, filho, mas não te fará feliz.

―Mas não admitte possivel que um homem possa atravessar a vida politica, sem sacrificar um só artigo do seu primitivo credo?

O conselheiro esteve algum tempo silencioso, depois respondeu:

―É difficil. Se um dia a fôrça das circumstancias realisasse, como um phenomeno natural, uma revolução completa nas camadas politicas do paiz a ponto de trazer á superficie de uma só vez uma geração nova, impolluta, inspirada de sentimentos generosos e de sinceras crenças, então sim, não bastaria o tempo de uma vida para produzir n'esses homens reunidos, que uns aos outros seriam ao mesmo tempo exemplo e vigilancia, a inquinação que eu receio. Mas lance esses mesmos homens, um a um, a sós com os seus principios e com os seus esforços, insulados no meio de uma camada quasi toda composta de elementos velhos, e cada um, após uma lucta impotente de momentos, ou se retirará, fiel aos principios, mas desanimado pela inefficacia da sua intervenção, ou ficará, cedendo á corrente e deixando-se penetrar do espirito pouco ideal, que rege as massas. Só um d'esses caracteres de excepção, que são raros na historia do mundo, é que poderia luctar e vencer na lucta. E a esperar tanto de Angelo não chega o meu affecto paterno.

―Não o fazia tão pessimista, sr. conselheiro;―disse Henrique―conceda-me que julgue em demasiacarregadas as côres do quadro que me faz. Eu não creio que a corrupção...

―Se acha forte o termo, substitua-o por... o que quizer, relaxação, tibieza de fé politica, indifferentismo... em todo o caso será uma doença social. Assim abrandada a fôrça da expressão,nãoponha difficuldades em adoptal-a. Não se me pode levar a mal o propôl-a, desde que principiei por me declarar affectado da lepra contagiosa.

―Nunca esperei encontral-o tão desilludido. Eu, que me não tenho ainda assim por demasiado crente, creio que quem entrar na politica sob a égide de uma convicção profunda, pode...

O conselheiro interrompeu-o.

―Sabe a coragem mais admiravel? a de que menos exemplos existem? É aquella de que nos dá uma eloquente mostra a historia do aldeão do Danubio. Sair um homem de um canto retirado da provincia, um pouco montanhez, e escudado só da sua boa fé, achar-se de repente no meio de um circulo luzido, illustrado, elegante, novo para elle, e ousar repetir ahi aquellas falas rudes, que tanto deliciavam o auditorio da sua terra; vêr o sorriso nos homens, que a seu pesar respeita, e poder resalvar as suas crenças d'aquelles sorrisos; sentir o ridiculo a seu lado, e ousar fital-o; ferirem-lhe os ouvidos, a cada passo, as vozes seductoras da moral elegante e facil, que hoje domina, e conservar-se fiel á austera e rude moral que lhe falava entre o rumorejar das folhas da sua aldeia nas longas horas de vigilia e de estudo, que lá teve; cair embora, mas cair fiel á consciencia, como um leal cavalleiro da idade média caía pela dama de quem trazia a divisa: é uma especie de lucta, para que não abundam lidadores, e nem sempre se deve lançar o labéo de traidores aos que mentem á sua antiga profissão de fé. A maioria cede com boas intenções. O perigo está em chegar a persuadir-se de que as suas convicções eram sonhos, em perder o[205]amor ás utopias. Eu confesso que só quando aqui estou é que sinto avivar, debilmente, o amor que n'outro tempo lhes tive.

N'isto annunciou-se a visita do sr. Tapadas, fazendeiro opulento e um dos influentes eleitoraes da localidade, creatura em corpo e alma do conselheiro, e tão visto em demandas e subtilezas de processos, como o mais rabula dos lettrados. Demandista por gosto e officio, levava a sua paixão pela arte a ponto de comprar as demandas dos outros, só por gosto de as tratar; especie vulgar no Minho, onde uma legislação especialissima, reguladorada propriedade rural, fomenta estas disposições no espirito dos camponios, das quaes os juizes são as miserandas victimas.

Depois de grande exhibição de cortezias, para a direita e para a esquerda, o Tapadas dirigiu-se ao conselheiro, que o fez sentar ao seu lado, concedendo-lhe todas as provas de deferencia e de amizade.

O homem que tão judiciosa dissertação acabava de fazer sobre a politica abstracta, sentiu, na presençado recem-chegado que de novo o abandonava o espirito da utopia, e principiou a tratar com elle politica pratica, sob a feição mais mexeriqueira que ella pode revestir.

Tratou-se dos pequeninos processos de preparar candidaturas, por fôrça ou vontade dos representantes.

Henrique deixou-os na conferencia e foi sentar-se ao pé das senhoras, no grupo formado por Magdalena, Christina e Angelo.

Escuso de referir o dialogo em que tomaram parte estes interlocutores; reproduziram-se n'elle os galanteios de Henrique a Magdalena, a leve ironia d'esta e as respostas timidas e silenciosos despeitos de Christina.

D. Victoria e D. Dorothéa entremetteram-se, dentro em pouco na conversa, e desviando-lhe o curso,fizeram-a cair sobre o assumpto das proximas consoadas.

Passado tempo, ouviu-se o conselheiro dizer, elevando a voz, para o Tapadas:

―Pois, meu caro Tapadas, que tenha paciencia este bom povo. Com isso é que eu não transijo. Ninguem é mais condescendente do que eu, menos no que pode arriscar a vida de muitos e entre essas as dos que me pertencem. O abuso ha de acabar. Por estes dias deve chegar uma portaria, mandando expressamente cumprir a lei. Consegui isso do governo. O cemiterio fez-se. Eu fui o primeiro a dar o exemplo, levantando alli o sepulchro para a minha familia. Depois d'isso, graças a um preconceito tolo, á má fé de alguns padres, á frouxidão das auctoridades e talvez a alguma incuria minha, ainda ninguem mais se enterrou alli. No entretanto quasi todos os estios se repetem os casos d'essas febres que a sciencia attribue em grande parte aos miasmas da igreja onde a extrema devoção d'este povo accumula em certos dias, durante horas e horas, uma extraordinaria quantidade de fieis. Portanto, com isso não transijo. Hei de acabar com o abuso.

―Pois sim... mas agora na occasião das eleições... sr. conselheiro, não sei se faz bem.

―Para compensação trataremos de apressar o principio das estradas; tambem o pude conseguir.

―Inda assim... Receio alguns motins.

―Reprimem-se.

―O peor é que ha de haver quem lance mão d'essa arma contra nós.

―Quem?

―Ora! não falta quem. Basta o missionario, que já prégou contra isso.

―Não tenho mêdo. Quando muito, algum motimzito sem consequencia. Leve-os por bem. E se fôr preciso fale ao ouvido d'esse tal missionario...O homem que quer? Provavelmente alguma abbadia? algum canonicato? É preciso vêr isso.

―Elle diz que não quer nada.

―Bem sei, todos dizem o mesmo―disse o conselheiro,com a sua descrença de homem politico.

Tapadas retirou-se mal assombrado. De facto aopinião publica era, por toda a aldeia, em extremo adversa aos cemiterios, e elle mesmo não estavade todo limpo do preconceito geral, mas a sua affeição ao conselheiro obrigava-o a digerir a disposição legal, conforme podia.

Depois d'elle se retirar, o conselheiro disse, erguendo-se:

―Vem em má occasião a medida, vem; é arrojadapara épocas eleitoraes; se houvesse um chefe habil que a aproveitasse, podia... Em todo o caso não transijo.

Eram dez horas quando se levantou a sessão, e Henrique voltou com a tia para Alvapenha.

XIII

Ao outro dia a impaciencia de Angelo não lhe permittiu longa demora no leito. Tardava-lhe o vêr todos aquelles sitios, tão seus conhecidos; arvores que uma por uma distinguia, sebes, atalhos de campos, e quebradas de montes. A custo o puderam reter para o almoço; resignou-se porém a não ultrapassar, até então, os muros da quinta. Logo porém que sorveu á pressa o ultimo golo de chá, partiu, veloz como uma lebre, sem nem sequer dar ouvidos á enfiada de recommendações de sua tia D. Victoria, que teimava em o querer prevenir, com sócos, gabão e guarda-chuva, de uma hypothetica mudança de tempo.

Angelo partiu. A tudo que via pelo caminho encontrava ligada uma recordação e uma saudade; mas seguia sempre, como quem não errava ao acaso pelos campos, antes era guiado n'aquelle passeio por um intento, que tinha pressa de realisar.

Atravessou grande parte da aldeia, cortejado, cumprimentado e festejado por quantos encontrava pelos caminhos, ou ás portas e janellas das casas, nos campos e nos ribeiros.

Chegou emfim á casa, onde já dissemos morar o recoveiro Cancella e a sua filha Ermelinda.

Era evidentemente aquelle o termo proposto por Angelo ao passeio matinal, porque retardou o passo á medida que se approximava, e parou á porta da casa.

Achou-a fechada, mas não lhe causou isso embaraço.

Como quem estava habituado a vencer estes estorvos, sondou resolutamente o muro do quintal, construido de pedras soltas, e dispoz-se á escalada.

Com a agilidade e destreza proprias de quem passou na aldeia os primeiros annos da vida, o irmão de Magdalena trepou sem vacillar até o alto do muro, e n'um momento pousou os pés no chão do quintal.

Vendo-se dentro da fortaleza, olhou em redor com precaução e, com mais precaução ainda, se dirigiu para um bosquezito de laranjeiras, que era o logar de recreio do pequeno horto.

Foi motivo d'estas precauções o ter já avistado, por entre os troncos e a rama baixa das laranjeiras, um vulto que se lhe figurou conhecido.

Assim se foi approximando sem que o presentissem e, occulto por detraz de uma sebe de roseiras silvestres, poz-se á espreita.

Era Ermelinda a pessoa que estava no laranjal.

Sentada sobre o tronco partido de uma laranjeira velha, que mezes antes havia sido derrubada, a filha do Cancella e afilhada da familia Zé P'reira, tinha todas as faculdades applicadas á decifração dos hieroglificos caracteres de um pequeno papel manuscripto, que segurava nas mãos, e lia a meia voz. De quando em quando interrompia a leitura e, erguendo a cabeça para o céo, parecia repetir o que lera, como se pretendesse decoral-o.

Angelo applicou mais o ouvido, a vêr se alguma das palavras, que ella declamava, lhe revelava a natureza do manuscripto.

De facto, de uma vez, a pequena leu em voz mais audivel e elle escutou a seguinte quadra:

―Que lamentavel tragedia,

Que os meus olhos tristes viram!

E publicam minhas vozes

Aquelles que não ouviram!

E principalmente o rei,

Que se chama o rei tyranno,

N'esta região remota

Do Egypto dilatado.

Depois de ler isto, a rapariguita levantou a cabeça e repetiu:

―Que lamentavel tragedia

Que meus olhos tristes viram...

Angelo saiu do esconderijo, e sempre vagarosamente, e com precaução, veio collocar-se por detraz d'ella, sem que fôsse presentido ainda.

Tão perto chegou, que, por cima do hombro de Ermelinda podia já ler as quadras que ella estava decorando:

―Tenho mil linguas, mil bôcas...

ia Ermelinda continuar a ler, quando uma respiração mais profunda de Angelo a fez desviar a cabeça.

Dando com os olhos n'elle, soltou um grito de sobresalto; depois sorriu e instinctivamente procurou esconder no bolso do avental o papel que lia.

Angelo segurou-lhe a mão.

―Que estavas a ler, Linda?

―Não é nada...

―Deixa vêr.

―Não deixo.

―Por que não deixas?

―Para não ser curioso. Que modos são esses de andar a escutar a gente?

―Pois sim, sim; mas deixa-me vêr os versos.

―Não são versos. Quem lhe disse que eram versos?

―Pois não ouvi? Que era isso de tyranno e de Egypto, que dizias?

―Que ha de ser?―disse a final Ermelinda, dando-lhe o papel.―São os versos do auto dos Reis. Sabe agora?

―Do auto dos Reis? Ai, sim; está a chegar o dia! Mas que tens tu com o auto dos Reis?

―É que este anno meu pae quer que eu seja a Fama.

―Viva! E que bonita Fama que vaes ser! E já sabes os versos?

―Estava a decoral-os.

―Tenho mil linguas, mil bôcas...

dizia Angelo, lendo no principio.―O que é pena é pôr uma chochice d'estas na bôca de uma Fama como tu.

―Que está a dizer? Então os versos não são bonitos?

―Oh! pois não são!―exclamou Angelo, gracejando.―São uma perfeição!

E tendo-os corrido com a vista, principiou a lel-os com accentuação e emphase comicamente exaggeradas.

―Ora ouve lá:

Sabei que aquelle Herodes,

Lobo cruel carniceiro,

Tremendo de inveja pura

Lhe venham tirar o reino...

―Então que ha que dizer a isto?

E proseguiu:

Feria raios de fogo

De seus olhos com mudança;

E só pretende fazer

Alvo da sua vingança.

―Isto é claro e sublime!

―Lendo assim, pudéra!―disse Ermelinda, rindo.

É preciso que advirta o leitor que estas quadras e auto, a que nos estamos referindo, não são obra da nossa imaginação. Por ahi corre manuscripto o auto, mais ou menos extravagantemente orthographado, segundo o systema ou o capricho do copista. Em quasi todas as aldeias dos arredores do Porto podem vêr em cada anno representado este ou outro analogo, com applauso e gloria da arte. Ás mãos nos veio uma d'essas cópias, á qual, menos na orthographia, escrupulosamente nos cingimos.

Angelo era talvez em demasia severo na apreciação critica sobre o merecimento litterario da obra, ao chamar-lhe uma chochice. É raro que a musa popular não tenha, apesar da sua rudeza, alguma inspiração. N'este mesmo auto, se encontram vestigios d'ella. Mas não é nossa missão apreciar as opiniões dos actores que pomos em scena; tão sómente as registamos, sem nos responsabilisarmos por nenhuma.

Angelo redarguiu á reflexão de Ermelinda:

―Pois bem; para que não digas que é da maneira de ler, que elles parecem chôchos, repara; vou lel-os agora com toda a seriedade. Ora escuta.

Que quantos até dois annos

Em Belem fôssem nascidos,

E toda a sua comarca

Matassem a ferro frio

Sem excepção a pessoa

Que nos districtos se achasse,

Entendendo d'esta sorte

Que nós lhe não escapassemos.

―Olhem que semsaboria!

Esta divisão administrativa e judicial, em districtos e comarcas, que o auctor fez na Judéa e que tanto parecia revoltar Angelo, era uma d'estas liberdades shakspeareanas, que se devem perdoar aos genios.

―E não foi assim?―perguntou Ermelinda, que não percebia ainda o motivo dos reparos de Angelo.―Pois Herodes mandou matar todas as creanças da Judéa; então não mandou?

―Mandou, mandou; mas a Fama é que devia contar isso melhor.

―Melhor?! Então não é bonito esse verso?

E Ermelinda, tirando o manuscripto das mãos de Angelo, leu a seguinte quadra:

Para livrarem seus filhos

Da morte dos innocentes,

Dos braços faziam cruzes

Aquellas mães impacientes.

Os instinctos populares da filha do Cancella perceberam a belleza, talvez um pouco rude, do tocante quadro, que estes versos exprimem.

Esta pequena contenda litteraria entre duas creanças podia dar margem a profundas reflexões a quem para ellas estivesse disposto.

Angelo estava no principio de uma educação esmerada. Principiára já a desenvolver-se n'elle a intelligencia, e a acordar os instinctos artisticos que estremeciam já sob as primeiras seducções da fórma. N'estas épocas criticas, em que esses segredos se revelam, é tal o encanto em que elles nos trazem que exclusivamente nos votamos ao novo culto, com a fanatica intolerancia. Onde as louçanias do estylo, os primores e a sonora harmonia do metro, e o brilhantismo das imagens nos não afagam os sentidos, recusamos demorar a vista; e escapa-nos assim na sombra muita belleza real, ás vezes occulta sob a grosseira revestidura da poesia ou narrativa popular.

É necessario que passe o enthusiasmo, a violencia da paixão nascente, que venha a frieza de animo necessaria á imparcialidade do juizo, para que nos não cause repulsão a aspereza, e grosseria até, da fórma e consigamos apreciar o bello que por ventura n'ella se envolva.

Dá-se com a belleza da ideia e da fórma de qualquer obra litteraria, o que se dá com a belleza moral e a belleza physica de uma mulher.

Ambas são feitas para nos commoverem e dominarem. Mas, quando o assomar de um sentir novo começa a alvoroçar o sangue do adolescente, quando fórmas vagas e formosissimas principiam a encantar-lhe os sonhos de suas noites febris, a paixão da fórma domina-o; por ella sacrifica tudo; uma modelação perfeita, um delineamento gracioso poderá decidir da sua vida inteira, e na fascinação que o cega, nunca verá a formosura da alma, que se abriga n'uma pouco feliz encarnação. É que para apreciar a belleza moral, para a vêr transparecer, através do involucro exterior é preciso deixar passar a vertigem dos primeiros momentos, ou não a ter ainda experimentado.

Por isso na infancia e nas idades viris é que melhor se apreciam essas fealdades, que escondem um coração angelico. A adolescencia é impiamente cruel para com ellas.

Por uma lei analoga é o povo, o simile da creança, porque não tem os sentidos educados para as mais subtis bellezas da fórma, e é o homem a quem ella já não fascina, embora ainda e sempre o deleite, como poderosissimo elemento de belleza litteraria,―são estes os leitores que mais aptos estão para avaliarem uma ou outra inspiração que, entre muitos desvarios, tem a humilde musa que visita a cabana do lavrador ou a officina do artista.

Apesar da defeza de Ermelinda, Angelo não perdoou ao auto.

―Sabes que mais? Não decores isso―disse-lhe elle resolutamente.

―Meu pae quer.

―O que é que quer teu pae?

―Quer que eu entre no auto.

―E has de entrar. Quem te diz que não?

―E quer que seja a Fama.

―E has de ser a Fama.

―E não hei de falar?

―Has de falar. Tinha que vêr uma Fama que não falasse. Para que lhe serviriam as cem bôcas?

―Então?

―Então; é que não é forçoso que digas o que ahi está.

―E que hei de eu dizer?

―Outra coisa.

Ermelinda olhava Angelo admirada, sem conseguir comprehendel-o.

―Outra coisa! repetiu ella, instinctivamente.

―Olha, proseguiu Angelo.―D'aqui até chegar o dia do auto vae muito tempo. Eu te darei outros versos para estudares, em logar d'esses.

―E onde os tem?

―Eu os procurarei. Não digas tu nada. Basta que no dia recites, em vez d'esses, os que eu te der!...

―Mas que dirá meu pae e o sr. Pertunhas?

―O mestre de latim? Pois que tem elle com o auto?

―É quem ensina como a gente ha de dizer.

―Ah! sim? Pois para que elle nada diga, guarda para a occasião os versos que eu te arranjar. Até ha de ter graça vêr a cara com que elles ficarão todos, quando lhes sair uma coisa bem differente do que esperam.

―Mas... diga: onde é que vae buscar esses versos?

―Não sairei da aldeia para isso. N'uma visita que d'aqui vou fazer, conto obtel-os. Agora falemos de outra coisa. Que é de teu pae?

―Saiu a levar umas encommendas. Minha madrinha, d'alli defronte, está para a igreja e meu padrinho nas hortas. E eu vou tratar do jantar de meu pae.

―Pois vae, que eu faço-te companhia.

E Angelo seguiu-a á cozinha, e ahi, ella sentada na soleira da porta a escolher hortaliça, elle a dar de comer aos coelhos e ás gallinhas, se entretiveram a conversar.

Angelo falou-lhe de Lisboa, dos theatros, contou-lhe enredos de dramas que o tinham commovido; typos e situações de romances, que se lhe haviam gravado na memoria; invenções da arte moderna, versos, anecdotas, contos.

Ermelinda era toda ouvidos a escutal-o.

Passadas horas, Angelo levantou-se e despediu-se, para sair.

―Onde é que vae?

―Vou visitar Augusto, que deve estar agora em casa.

―E ainda o não viu?

―Ainda não. A minha primeira visita foi esta.

―Então vá, que elle deve estar morto por o vêr. Ah!... já sei a pessoa a quem vae pedir os versos!

―Quem te disse que Augusto os fazia?

―Eu vi-o estar a escrever na parede da capella da Senhora da Saude de uma vez que eu ia levar o jantar a meu padrinho, que estava a trabalhar para aquelles sitios.

―E leste-os?

―Não, que não quiz que elle me visse. Mas que havia elle de escrever na capella? Então não adivinhei?

―Não sei. Adeus.

―Diga.

―E chamavas-me curioso!

E Angelo saiu apressadamente.

Momentos depois estava com Augusto.

A conversa entre ambos teve toda a intimidade da de dois affectuosos amigos.

Angelo fez a narração dos episodios da sua vida de collegio; das difficuldades e das bellezas dos seus estudos n'aquelle anno. Augusto, que da aldeia com elle os seguia, passo a passo, interrogava-o sobre algumas dúvidas que tinha, e esclarecia ás vezes tambem, graças á sua poderosa penetração e natural lucidez, as que o ensino do collegio havia deixado no espirito do seu antigo discipulo.

A geographia e a historia, que eram as disciplinas estudadas n'aquelle anno por Angelo, deram assumpto a grande parte d'este dialogo.

Augusto inclinára-se aos estudos historicos, inclinação em que o herbanario o entretinha com frequentes presentes de livros d'aquelle genero.

Em exame de livros novos, referencias a outros lidos, e leituras de alguns mais apreciados, passaram os dois grande parte da manhã, até que por fim Angelo disse a Augusto:

―Ah! é verdade! Tenho um favor a pedir-lhe.

―Qual é?

―Sabe que está para breve o dia dos Reis?

―Sim.

―E portanto o auto com que o povo d'aqui o festeja; aquelle auto em que o Herodes faz tremer meio mundo?

―Bem sei―respondeu Augusto, sorrindo.

―Este anno teremos a Linda a fazer de Fama. Fama bonita, por certo; mas se soubesse os versos que lhe deram para recitar!

E Angelo reproduziu, como pôde, as quadras do monologo da Fama no auto dos Reis.

De quando em quando passava um sorriso pelos labios de Augusto.

―Eu já conhecia isso. É o costume―disse elle no fim.

―Mas não lhe parece que de uma Fama como aquella, se devia esperar melhor do que isto?

―E então que quer que eu lhe faça?

―Outros versos para o logar d'estes.

―Outros!... Eu?...―perguntou Augusto.

―Por que não?

―Que lembrança!

―Não me venha negar que os faz.

―Versos?

―Sim.

―Quer dizer que os leio.

―E que os escreve. Vamos. Mas se insiste em recusar, diga-me então quem é que os escreveu na parede da capella da Senhora da Saude, para eu me dirigir a elle.

―Então houve quem escrevesse versos na parede da capella?―perguntou Augusto, sorrindo.

―Não que eu visse; mas já duas pessoas m'o affirmaram, e as suspeitas de ambas recaíram no mesmo homem.

―Quem foram essas pessoas?

―De uma o ouvi agora mesmo. Foi Ermelinda.

―Ah!

―A outra foi Lena.

―Le... A sr.a D. Magdalena?

―É verdade, minha irmã. E estranhou, com razão, que eu o não soubesse.

―E como o soube ella?

―Leu-os, e pela leitura conjecturou o auctor.

Augusto calou-se como absorvido por um pensamento, que todo o preoccupava.

Angelo continuou falando, sem que fôsse escutado; a final concluiu, dizendo:

―Então quer falar ao poeta da Ermida para que me dê o que lhe peço?

―Poesia não lhe pode elle dar, agora se... alguns versos o satisfazem...

―Sim, sim, venham os versos; que a poesia eu a procurarei n'elles, até a achar. Desde já lh'os agradeço.

―A elle?

―A ambos―respondeu Angelo, rindo.―E agora diga-me, Augusto: Ainda está resolvido a viver aqui sempre enterrado? Não pensa em mudar de vida?

―Nenhuma outra me namora mais; o destino que a bondade da morgada me offerecia... não tenho coragem para acceital-o. Assusta-me o peso do crepe.

―Nem eu lhe digo que deva acceitar esse. Mas o Augusto não terá amigos que ajudem a seguir outros destinos menos obscuros do que este e menos pesados do que o que o legado lhe impunha? Meu pae já ...

―Que quer? Não me posso vencer até pedir ou acceitar de outrem auxilios, quando Deus m'os não tem recusado ainda; nem sei até se esses destinos, que diz menos obscuros, me fariam mais venturoso. Ha indoles que nasceram affeiçoadas para a obscuridade. Incommoda-as a demasiada luz. Umas plantas querem ar, e sol e luz; outras vivem ahi em qualquer canto escuso e obscuro, e lá mesmo dão flôr. Porque é isto não sei, mas...

―Sei eu―disse uma voz da parte de fóra da janella, junto da qual se passára o dialogo...

Voltaram-se os dois ao ouvil-a. A figura do herbanario desenhava-se no vão da janella, como um retrato de velho n'um caixilho de galeria.

―Ah! o tio Vicente!―exclamou Angelo, correndo-lhe ao encontro.

O herbanario encostou-se, ainda de fóra, ao peitoril da janella, ficando assim com meio corpo para dentro da sala.

―Viva o nosso doutor―disse elle, sorrindo, a Angelo.―Por emquanto ainda esse coraçãozito está como era. Não esqueceu os seus amigos da aldeia.

―Está como sempre estará―respondeu Angelo.

―Sempre!―repetiu o velho.―Sempre e nunca são duas palavras de terrivel significação... Mas emfim... de bom metal é o coração, assim o não enferrugem os ares da cidade, como ao de... como ao de tantos...

E mudando subitamente de tom, disse para Augusto:

―Com que dizias tu que não sabes porque algumas plantas vivem de pouca luz e de pouco ar, ahi em qualquer buraco do muro? É porque vivem muito pelas raizes essas. As plantas vivem do ar pelas folhas e vivem da terra pelas raizes. Lá diz aquelle livro da Historia Natural que eu tenho. Umas prendem-se pouco ao chão; precisam, pois, de se abrirem muito ao ar para poderem viver; outras porém, profundam tanto a terra, com tantas raizes se seguram, que d'ellas lhe vem todo o sustento e não desdobram muitas folhas, nem crescem em grandes ramos para o ar. Como umas e como outras ha homens no mundo. Tu és dos que deixam ganhar raizes ao coração e d'ellas vivem. Que te importa o mais? essas grandezas que os outros procuram? Mas é preciso cautela, rapaz! Ha corações como a hera, que onde quer que se encosta, prende-se com raizes. Quem é assim deve dirigir com prudencia as suas inclinações. Se para mau lado dobra, se se encosta a arvore de preço... mal d'elle! que o separarão com fôrça, fazendo-lhe estalar todas as raizes, que o prendiam.

As palavras de uma obscuridade sibyllina, ditas pelo herbanario, parecia terem um sentido para Augusto, que visivelmente se perturbou ao ouvil-as.

―Que está ahi a dizer, tio Vicente!―disse Augusto, sem ousar fitar o velho.

―Nada. Tonterias de velhice. A prudencia, que os annos dão, vê longe e fundo, rapaz... É verdade que... ás vezes... o arrojo dos mocos é tambem guia feliz... Anda lá com a tua estrella, anda. Ao que já vejo, não sei se te possa chamar louco... como ao principio não duvidei fazel-o. É certo que é pouco seguro o terreno, em que sustentas os teus castellos.

―Os meus castellos! Que castellos faço eu?

―Não hei de ser eu que t'os mostre... Só te quero avisar que não ponhas grande fé em sonhos... Lembras-te do que se passou no monte da ermida?

―No monte da ermida?

―Não viste por lá no outro dia uns signaes de trovoada? A inconstancia é sempre de receiar. O que n'aquella manhã se passou, o que então vi...

―Que viu?... Que se passou?

O herbanario demorou por algum tempo o olhar em Augusto e com tal expressão, que o obrigou a desviar o seu; depois accrescentou:

―Nada; o que todos os dias acontece. O céo azul fez-se pardo, a luz clara cobriu-se de sombras, os raios do sol tornaram-se torrentes de chuva. Pois não te lembras?... E tudo devido a uma mudança... de vento... a uns ares que vinham do sul...

Augusto não entendia ou fingia não entender estes mysteriosos dizeres do herbanario. Angelo estava distrahido devéras.

O velho voltou-se, de subito, para este, perguntando-lhe:

―Tem ido ao mosteiro o hospede de Alvapenha?

―Esteve lá hontem.

―É amigo das creanças?

―Parece-o.

―Conta muitas historias ás senhoras?

―Entretem-as bastante.

―E ao... e a teu pae? Ouve-o com attenção?

―Conversaram muito toda a noite.

O herbanario parecia ligar grande valor a estas perguntas, porque a cada resposta obtida, abanava pausadamente a cabeça com certo ar meditativo.

Augusto relanceava tambem para a fronte, meio contrahida, do velho um olhar entre curioso e timido.

O herbanario proseguiu:

―Emfim... A desconfiança é um achaque de velhice e nem sempre os mais felizes são os mais acautelados. Deus que vele, se os bons lhe merecem ainda a graça da sua protecção.

―O tio Vicente desconfia do primo Henrique? perguntou Angelo, rindo.

―Primo?!―repetiu o velho, admirado.

―Primo lhe chamamos nós, porque a tia Victoria teima que, sendo elle sobrinho da tia Dorothéa, é nosso primo tambem.

―Ah? Já ahi vamos? E Lena?...

―Lena, Christe, todos lhe chamam por lá assim.

O herbanario poz-se a murmurar algumas palavras inintelligiveis, terminando por estas:

―E, como no Egypto, é o vento sul que traz a praga dos gafanhotos. Mas Deus que vele, Deus que vele. E eu não me demoro mais, que vou ainda d'aqui aos pardieiros de Cernuche.

―Á caça dos sapos, tio Vicente?―perguntou Angelo, gracejando.

―Não, que não é agora o tempo―respondeu, sisudo, o velho.

―Dos sapos! Galante caça, na verdade!―continuou Angelo no mesmo tom.

―Galante não será ella, pequeno,―respondeu o velho;―mas abençoada a chamarias se te torcesses no leito com as dores do carbunculo, que não ha remedio mais efficaz para o curar, do que a pelle d'estes animaes sêcca ao ar livre.

―E a das toupeiras? O tio Vicente tambem caça toupeiras?

―Em seu tempo. Oh! a toupeira é animal de abençoadas virtudes! Basta que um dente que se lhe arranque, estando ella viva, trazido ao pescoço, cura a mais desesperada dor de dentes.

―Não deve ser facil operação a de tirar os dentes ás toupeiras―tornou Angelo.

O herbanario continuou:

―A quinta essencia das toupeiras é milagrosa contra cancros e herpes.

―A quinta essencia das toupeiras!―repetiu Angelo, rindo.

―Não rias, creança―acudiu severamente o herbanario.―Que não é bonito rir do que os homens doutos asseguram. Eu já o experimentei, logo que o li n'aquelle grande livro da Polyantheia, livro como se não faz hoje outro.

―E como é que se tira a quinta essencia a uma toupeira, tio Vicente?

―Tomam-se as toupeiras e queimam-se até as fazer em cinzas. Mistura-se a estas cinzas o sumo de celidonia maior, até haver quatro dedos de sumo acima das cinzas. Mette-se tudo n'um vidro bem fechado, que se enterra por dez dias e... e... Bem, bem. Elle ri!... Tolo sou eu em gastar tempo e paciencia com creanças.

―Espere, espere, tio Vicente... Não vá embora... Então depois de enterrar tudo isso, que se faz?

―Até logo... Pede a Deus que nunca te seja preciso fazer a pergunta com menos vontade de rir.

―E assim vae sem me dar um remedio! Olhe, tio Vicente, eu padeço ás vezes de um somno tão pesado que me não deixa estudar.

O herbanario voltou-se e, com toda a seriedade, respondeu:

―E julgas que não sei de remedio para isso? Experimenta e verás. Mette um ou dois morcegos debaixo dos travesseiros e eu te affirmo que... Mas adeus, que se me faz tarde e d'aqui a Cernuche é uma legua.

E o herbanario retirou-se, meio agastado com o scepticismo de Angelo e sobraçando a caixa de lata e o sacco dos seus thesouros medicinaes.

Angelo e Augusto ficaram rindo da sciencia e das singularidades do velho, riso em que não entrava, porém, o menor laivo de malignidade; porque ambos tinham pelo velho uma verdadeira estima, que elle bem lhes merecia, pois sempre do coração o achavam votado a seu favor.

O dialogo de Angelo e de Augusto prolongou-se ainda, até ás horas do jantar.

XIV

Eu não sei se esta historia terá leitor tão mal aventurado, que não possua recordações e saudades associadas á noite de Natal, áquella festiva e abençoada noite, em que as ruas e os logares publicos se despovoam, e nos lares domesticos parece crepitar e scintillar o fogo mais acalentador do que nunca. Se algum desherdado da fortuna ha ahi que não saiba o que é a festa das consoadas em familia, esse que não leia este capitulo, que n'elle não encontrará prazer. Se alguns as gosaram já n'outros tempos, porém hoje erram a essas horas pelas ruas solitarias, olhando com inveja para cada raio de luz que rompe das frestas de tantas janellas discretamente fechadas, ouvindo commovidos o ruido das alegrias que vão no seio das familias, e pela phant Eu não sei se esta historia terá leitor tão mal aventurado, que não possua recordações e saudades associadas á noite de Natal, áquella festiva e abençoada noite, em que as ruas e os logares publicos se despovoam, e nos lares domesticos parece crepitar e scintillar o fogo mais acalentador do que nunca. Se algum desherdado da fortuna ha ahi que não saiba o que é a festa das consoadas em familia, esse que não leia este capitulo, que n'elle não encontrará prazer. Se alguns as gosaram já n'outros tempos, porém hoje erram a essas horas pelas ruas solitarias, olhando com inveja para cada raio de luz que rompe das frestas de tantas janellas discretamente fechadas, ouvindo commovidos o ruido das alegrias que vão no seio das familias, e pela phantasia creando em cada morada um mundo intimo de affectos e de venturas, como o de que a sorte os privou, que esses me perdoem as amargas saudades, que por ventura lhes avive assim.

É certo que não ha noite mais alegre; alegre d'esta alegria que vae direita ao coração, sem perturbar os sentidos com fumos de embriaguez; alegre d'esta alegria candida a que o homem é sujeito do berço á velhice, a qual respeitam os estos das paixões, na idade d'ellas, e o gêlo do egoismo, no declinar da vida.

Bem escura, bem ventosa, bem fria e humida surjas tu sempre, noite de vinte e quatro de dezembro, que melhor então se avaliará pelo contraste a luz, o calor, o conchêgo dos lares, e mais intimos se estreitarão os circulos da familia em roda da ceia patriarchal.

E vós todos, a quem uma moda tôla não constrangeu ainda a abandonar os habitos que de pequenos contrahistes, e festejaes ainda o Natal de Christo, segundo o estylo velho, continuae a manter genuinos esses costumes nacionaes, que não resultará d'ahi desdouro para o vosso nome ou brazão. A roda da civilisação, a que applicaes hombros com tanto denodo, não se cravará por isso.―Podeis, elegantes meninas, cantar lôas sem escrupulo deante do presepe armado na sala mais intima da casa, que nem por isso cantareis peor na das visitas as arias italianas, que aprendestes no collegio; não córeis de collaborar, por excepção, esta noite nos mesteres da cozinha, que sobra de agua de colonia e perfumes tendes no toucador para as abluções purificatorias. Homens graves, a republica perdoar-vos-ha uma pequena infidelidade, a politica do paiz e da Europa não periclitará desnorteada se, por um pouco, lhe negardes a vossa attenção; humanisae-vos pois uma vez por anno, e baixae ao seio da familia os olhares, que ponderosos empenhos vos trazem sublimados.―Entrae com as creanças em jogos pueris e faceis, que não destemperareis a intelligencia para as philosophicas cogitações do boston e do whist.

A familia do Mosteiro era fiel ás classicas usanças d'esta noite tradicional. E n'aquelle anno sobretudo as festas das consoadas deviam ser coisa falada, graças ao plano de D. Victoria de reunir no Mosteiro a resumida familia de Alvapenha; plano que vimos approvado por acclamação por toda a assembleia presente.

D. Dorothéa veio effectivamente na companhia de Henrique de Souzellas e de Maria de Jesus.

Foram recebidos no Mosteiro por uma completa ovação das creanças.

D. Dorothéa viu-se litteralmente enlaçada em braços infantis, que lhe tolhiam os movimentos e que, dizia ella, quasi ameaçavam asphyxial-a.

Tudo isto dava motivo a exclamações e risos, que inauguraram um estado de coisas, o qual nunca mais devia cessar aquella noite.

A balburdia, a azafama festiva que ia no Mosteiro é indescriptivel. Na cozinha, nas salas, nos corredores tudo era movimento e ruido.

Aqui eram as creanças jogando, a pinhões, o «par ou pernão» e o «rapa», jogos popularissimos e de occasião, que, de tão conhecidos, dispensam o trabalho de descrevel-os. Estes jogos, como é de prever, não se executavam sem um concurso de vozearia e de algazarra, que desafiava a impaciencia de D. Victoria, a qual, segundo o costume, ia, pelo que se passava na sala, ralhar com os criados á cozinha.

No aposento immediato ao quarto de D. Victoria, armára-se o presepe, deante do qual ardiam seis vélas de cêra em castiçaes de prata maciça.

As duas velhas senhoras, D. Dorothéa e D. Victoria, encetaram logo no principio da noite uma longa e devota reza, meio recitada, meio cantada, a qual se continuava com uma interminavel enfiada de Padre-Nossos e Avé-Marias, a que respondia, em côro, a parte feminina, da familia, as creanças e as criadas.

Corypheu era a senhora de Alvapenha, que em voz trémula e quebrada pela idade, entoava em singela cantilena coplas como esta:

Ó infante suavissimo,

Vinde, vinde já ao mundo

Livrar-nos do captiveiro

D'este jazigo profundo.

E seguia-se um Padre-Nosso e uma Avé-Maria.

Angelo havia ao principio, com as suas travessuras, desordenado um pouco o andamento regular das rezas, mas D. Victoria tomou o heroico expediente de o expulsar do congresso, e tudo serenou.

Á sala, onde Henrique de Souzellas conversava com o conselheiro em assumptos, todos d'esta vez longe da politica, chegaram as surdas harmonias d'aquellas cantigas e rezas. Henrique mostrou curiosidade de saber o que era aquillo. O conselheiro, sorrindo, convidou-o a seguil-o para por si proprio se poder informar.

E, tomando por aposentos interiores, conseguiram ambos introducção na sala da novena justamente ao lado de D. Victoria e de D. Dorothéa, que, de embebidas que estavam nas suas orações, nem por elles deram.

O conselheiro e Henrique ajoelharam sisudamente ao lado d'aquellas boas senhoras, e quando após um dos Padre-Nossos, ditos por D. Dorothéa, se devia seguir a resposta do côro feminino, este emmudecido, com a chegada dos dois, a qual desafiára risos a custo suffocados, foi substituido por um dueto de vozes masculinas, que sobresaltaram primeiro, e escandalisaram depois ambas as sisudas senhoras.

O tumulto que o episodio produziu fez attrahir as creanças; D. Victoria teve muito que fazer, muito que reprehender o cunhado, muito que ralhar com os filhos e com o sobrinho, muito que carpir-se com D. Dorothéa, muito que recriminar os criados, rindo-se, bem a seu pesar, no meio de todas estas tarefas.

Terminou confusamente a novena com tal occorrencia. Os desordeiros sómente capitularam, consentindo em retirar-se, quando lhes prometteram que se encurtaria a lista dos Padre-Nossos. Henrique voltou com o conselheiro a admirar o primor que a paciencia de um artista imaginoso realisára na confecção do presepe, onde estavam representados todos os episodios da natividade de Jesus, e muitos outros.

Era effectivamente uma complicada machina aquelle presepe, e seria prova de profunda indifferença artistica passar por elle sem um exame, embora fugaz.

Este traste antiquissimo na familia gosava de nomeada n'um circulo de leguas em redor. Havia empenhos para o vêr no tempo do Natal, e se algum viajante estacionava dois dias na aldeia, encontrava sempre quem lhe recommendasse o visitar o presepe, como coisa digna de vêr-se.

Consistia elle n'uma espécie de santuario de pau preto, no meio do qual havia uma pequena gruta toda cravejada de caramujos, e rosas de papel, com estames de fio de prata. Dentro d'essa gruta estava deitado o menino Deus, não sobre umas palhas, como a tradição refere, mas graças aos impulsos do compadecido coração de D. Victoria, que, ainda que tarde, parecia tentear um lenitivo aos antigos rigores da humanidade, em uma bonita cama de lençoes de renda com cercadura dourada; colcha de setim bordado, e colchão e travesseiro da mais macia penugem de aves americanas. Ao lado, Nossa Senhora e S. José, de proporções quasi iguaes ás do menino; mais longe a vacca e a mula tradicionaes. Os episodios porém eram inquestionavelmente o mais interessante da obra. Varios grupos de pastores, soldados e fidalgos de todos os tamanhos, feitios e vestuarios, ornavam a scena. Alli um cego tocador de sanfona; um grupo de gallegos dançando, ao som da gaita de folle; uma pastora com ovos mais adeante; ao lado, um grupo celebrando um pic-nic, perfeita actualidade, tudo em mangas de camisa, com gravata, e botas de cano;―outros fumando e bebendo cerveja. Uma amazona ingleza, com o seu Jockey, galopava pelas cercanias de Bethlem; um vareiro e uma vareira caminhavam a par com offertas para o menino. Ao longe, nos visos da serra, appareciam os tres Reis Magos, que deviam levar dez dias a chegar abaixo.

Não esqueceu ao inspirado auctor d'aquelle monumento esculptural os muros de Jerusalem. Elles lá estavam coroados de ameias e de milicianos fardados á ingleza e armados de lanças e arcabuz. Eram gigantes aquelles guerreiros, pois, não obstante estar a muralha no plano do fundo do quadro, qualquer d'elles era duas vezes maior do que as figuras do plano da frente. No alto da muralha arvorava-se a bandeira portugueza. Havia varios santos espalhados pelas agruras d'aquellas montanhas, e, entre os additamentos feitos pela devoção de D. Victoria ao presepe, contava-se o de um Santo Antonio de Lisboa, que, apesar de thaumaturgo, parecia muito admirado de se vêr n'aquelle tempo e logar. Um gallo colossal soltava do telhado do presepe o grito annunciador, anjos e cherubins espreitavam do céo por entre nuvens de algodão e estrellas de ouropel. Era um prodigio!

Descrevendo rapidamente esta maravilhosa fabrica, sentia eu vivo orgulho de ter revelado ao mundo uma preciosidade sem igual, e a que a unanime admiração faria cêdo ou tarde justiça; tive porém de abandonar esta lisonjeira idéa, ao achar-me precedido por um dos romancistas mais justificadamente populares da nação vizinha. Das paginas de um delicioso quadro de costumes de Fernan Caballero, a eminente escriptora de que a Andaluzia se ufana, conheci eu serem não sómente nacionaes, mas peninsulares pelo menos, estes modelos de presepes, com os seus ingenuos anachronismos, cunho irrecusavel que o povo imprime a todas as suas obras de arte. Onde falta o anachronismo, falta a assignatura do povo.

Em todo o caso era digno da menção que d'elle fizemos o presepe do Mosteiro.

Emquanto Henrique e o conselheiro o estudavam por miudo, D. Victoria fizera desfilar o cortejo das criadas para a cozinha, onde urgia o serviço, e seguindo-as ia-lhes demonstrando que eram as peores criadas do mundo, por isso que, tendo tanto que fazer, perdiam tempo a cantar lôas deante do presepe. D. Dorothéa cêdo tomou com Magdalena e Christina o mesmo caminho.

O conselheiro e Henrique ficaram nas salas com os pequenos, e com elles entraram em jogos, como se fôssem creanças tambem.

O aspirante a ministro, o deputado, o orador, o homem grave e sério das salas de Lisboa perdera todo o ar diplomatico: agora era sómente o homem da familia; pueril, travesso, alegre, folgazão.

―Meu caro,―dissera elle a Henrique no principio da noite―vou fazer-lhe um pedido. Hoje deve ser banido o menor assumpto politico, a menor discussão séria. Deixe-se correr frivola a conversa da noite, o contrario seria uma profanação, que attrahiria sobre nossas cabeças as justas iras dos anjos domesticos que n'estas noites andam invisiveis misturados com a familia.

―Apoiado,―respondeu Henrique;―acceito e comprometto-me a cumprir a proposta.

Henrique possuia em alto grau o talento de se tornar agradavel. Comprehendendo que eram sinceros os desejos do conselheiro, tão frio e pueril conseguiu mostrar-se, que todos o tratavam como membro da familia, e ao proprio conselheiro parecia já impossivel que ainda fôssem tão recentes as suas relações mais intimas com aquelle rapaz.

―Animo, sr. conselheiro,―dizia-lhe Henrique, no momento em que elles ambos estavam empenhados a jogar a cabra cega com os pequenos.―Coragem, que temos gloriosos exemplos a animar-nos; até, entre outros, o do meu homonymo Henrique IV. É sabido o episodio recordado por uma gravura celebre.

O conselheiro secundava-o, rindo: graças a estes jogos, a sala estava dentro em pouco em desordem; os moveis fóra da sua posição, o chão alastrado de cascas de pinhões, que estalavam sob os passos, os tapetes desviados, as cortinas soltas.

Já por noite avançada, disse o conselheiro para Henrique:

―Falta-nos ainda um artigo importante do ritual d'estas festas, o principal. É dirigir uma visita á cozinha. Porque a obra principal d'esta noite é fazer uma ceia e não comel-a. Por isso convido-o a acompanhar-me lá.

―Com tanto mais vontade, que estou ha muitos dias compromettido a isso com as senhoras.

―N'esse caso é tempo.

E ambos tomaram pelo corredor, que conduzia á cozinha.

Escusado parece dizer que turba infantil os seguiu tumultuariamente, annunciando-os ao longe com risadas e gritos de alegria.

A cozinha do Mosteiro era uma digna cozinha de frades. Occupava um vasto recinto rectangular, rasgado em amplas janellas e fornecido de bancas monumentaes, condizendo com a estupenda chaminé, que parecia ainda saudosa dos odoriferos vapores que outr'ora espalhavam os tachos e as grelhas monasticas.

Ia indizivel animação na cozinha, quando Henrique ahi entrou com o pae de Magdalena. Era um barafustar de criadas, um chiar de certãs, um borbulhar de caçarolas e tachos, um tinir de pratos, um tilintar de crystaes no meio de uma babel de ordens, de perguntas, de reclamações, de conselhos, todos attinentes a negocios culinarios. E D. Victoria ralhava, e a sr.a de Alvapenha promulgava preceitos, e Maria de Jesus desdenhava do serviço das collegas, e Magdalena e Christina riam de todos e de tudo, e Angelo a todos impacientava.

Não se imagina!

A chegada do conselheiro e do seu hospede veio exacerbar a desordem. Ergueram-se risos e exclamações, as quaes ainda assim eram subjugadas pelos reparos e censuras de D. Victoria, a qual dizia para o conselheiro:

―Sempre o mano tem coisas! Olhem agora para o que lhe havia de dar! Vão lá para dentro, vão. Não venham atrapalhar-nos mais ainda do que estamos. E o primo Henrique tambem! Ora esta!...

―Não se afflija, mana. Nós não podiamos resignar-nos a ficar alheios á tarefa principal do dia. E até porque é necessario dar andamento a isto para chegarmos a tempo da missa do gallo.

―Pois querem ir á missa do gallo?

―Está de vêr que sim.

―Eu tambem vou―disse Christina.

―E eu―acudiu Magdalena.

―Mais um, que irá tambem―disse Henrique.

―E eu, e eu―accrescentaram differentes vozes.

―Ai, minhas encommendas!―suspirou D. Victoria.―Então por que não disseram isso logo? Agora como ha de ser?

E saiu em direcção á sala da ceia a dispôr as coisas.

É preciso que se diga que D. Victoria vivia na candida illusão de que era ella quem fazia tudo em casa, emquanto que manda a verdade declarar que nunca mais regularmente corriam as coisas domesticas do que quanto dormia esta aliás excellente senhora.

―Mãos á obra, sr. Henrique!―bradou o conselheiro, insistindo na resolução com que viera.

―Prompto―respondeu Henrique.

―Então? então?... Que vão fazer?―perguntava D. Victoria, afflicta, voltando á cozinha.

―Querem vêr que preparos?!―dizia D. Dorothéa, sorrindo e olhando com curiosidade para o que faziam os dois.

―Cumpro uma promessa que fiz a estas senhoras, minha tia―dizia Henrique, approximando-se da banca, perto da qual trabalhavam Magdalena e Christina.

―É verdade que sim,―acudiu Magdalena―e eu exijo o cumprimento da promessa.

―Vamos lá, sr. Henrique,―tornou o conselheiro―acceite-me alguns preceitos da pratica. A regra é fazer tudo o mais indigesto possivel; porque essa qualidade é o caracteristico dos manjares d'esta noite.

―N'esse caso, vejo que nasci para cozinhar a ceia do Natal, pois desafio o melhor estomago do mundo a que subjugue os meus guisados com os seus succos digestivos.

―Eu já escolhi tarefa―disse o conselheiro, tirando das mãos de Christina a colhér com que ella mexia o vaso onde se preparava o vinho quente, esse punch nacional, que n'esta noite seria uma falta imperdoavel se esquecesse no programma d'aquelle banquete.

Christina quiz resistir; mas o conselheiro venceu, e cêdo principiou a desempenhar-se d'este trabalho, no meio de hilaridade geral.

Angelo dispensou a tia Dorothéa do trabalho da preparação dos mexidos.

Henrique, seguindo o exemplo do conselheiro, e no seguimento do seu constante proposito, approximou-se da morgadinha, que n'aquelle momento se occupava a regar de calda de mel umas recentes rabanadas.

―Peço trabalho, prima Magdalena.

―Não ha falta de braços n'esta repartição, primo Henrique. Vá a outra porta.

―Agrada-me mais esta tarefa, acho-a ao alcance das minhas fôrças.

―Esta? Como se engana! Não sabe que as rabanadas são a essencia da ceia de Natal? E logo havia de confiar-lh'as?

―Ah! não ligava tanta importancia a estas representantes da pastelaria primitiva, notaveis porque recordam a infancia da arte! Emquanto a mim, já no tempo da peregrinação dos hebreus, Moysés lhes ensinava a cozinhar d'isto.

Magdalena abanou a cabeça em signal de reprehensão.

―Perdôe ás pobres rabanadas o pouco ar de moda que teem. A sua elegancia é implacavel, primo Henrique. Um indigesto manjar francez seria de melhor tom, bem sei. Até n'isso!

―Para provar que estou arrependido da minha irreverencia, consinta-me que a coadjuve, prima.

―Não pode ser; pesa sobre mim uma tremenda responsabilidade.

―Isso equivale a recusar-me o fôro de familia, que tão humildemente reclamo.

―Justamente―respondeu Magdalena.―Eu sou muito escrupulosa n'isso. Faz mal em não reclamar esse fôro de Christina, que talvez encontrasse mais disposta a conceder-lh'o.

―Mas, se me não engano, foi a prima Magdalena que primeiro me conferiu o apreciavel titulo de parentesco com que nos tratamos.

―O de primos? Esse sim; mas não tem os privilegios, que lhe quer dar.

―Que privilegios são?

―Ah!... o de collaborar n'uma ceia de consoadas, por exemplo.

―Parece-lhe, priminha, que será muito exigir o que eu peço?―perguntou Henrique a Christina, que principiára a escutal-os.

―Não ouvi―respondeu esta, córando e sorrindo, como sempre que lhe falava Henrique.

―Escusado é consultar Christina―acudiu a morgadinha―porque em muitas coisas pensa ella em opposição commigo. E n'isto...

―E n'isto...

―N'isto de attender a requerimentos, é talvez mais condescendente.

―Ao que estou vendo―disse o conselheiro jovialmente―grandes coisas se tinham passado aqui, antes da minha chegada. Vejo lavrar uma hostilidade entre Lena e o sr. de Souzellas, que me dá sérias inquietações.

―E eu julgo que não. Ao que ouvi ao Henriquinho, a primeira vez que viu a nossa Lena no Mosteiro!...―disse D. Dorothéa, com toda a indiscreção da sua ingenuidade.

Magdalena procurou acudir a tempo á corrente das revelações, a que viu disposta a boa senhora.

Veio opportunamente em seu auxilio Angelo, que tendo feito uma digressão pela sala do refeitorio, voltou com a alegre nova de que a ceia estava na mesa.

O annuncio foi recebido com apparente enthusiasmo. Suspenderam-se trabalhos, quasi completos, ultimaram-se á pressa outros, e a companhia dirigiu-se para o corredor.

Pouco depois de Angelo, chegou D. Victoria, desmentindo-o e pretendendo suster a corrente, que ameaçava invadir a sala, que ella ainda não dera por prompta. Já não era tempo. O conselheiro, tomando duas creanças ao collo, rompia a marcha, e atraz d'elle até a pacifica D. Dorothéa clamava insubordinada que não recuaria um passo.

E falando e rindo assim entraram na sala.

Estava offuscante de luzes, esplendida de louças e baixellas, enfeitada de flores e de crystaes e ennevoada dos vapores das iguarias.

Houve um grande rumor de cadeiras arrastadas, uma confusão e incoherencia de ordens de D. Victoria para marcar logares, infracções d'estas ordens, que a impacientavam, como se com isso pudésse perigar a ordem natural e social do mundo, e, como justa consequencia, caía sôbre a cabeça dos criados uma enfiada de recriminações, que elles por habito já soffriam com exemplar paciencia.

Restabelecida emfim a ordem, procedeu-se á ceia.

Ceia de Natal! abençoado banquete, ao qual todos se devem sentar nas mesmas disposições de animo em que ordenava Christo estivessem os que fôssem orar ao templo; ceia com tanto afan cozinhada, e com tão pouca vontade comida, falem embora contra ti os medicos e os gastronomos eméritos, condemnando uns a indigestibilidade dos teus cozinhados, outros o pouco delicado d'elles; reage contra as ideias novas, que veem da França e da Allemanha; cerra as fornalhas ás iguarias exoticas e furta-te ás mãos da extranha geração de Vateis, que aspiram a dominar pelos paladares o espirito nacional.

Modifiquem embora o caracter vernaculo de todas as outras refeições, mas respeitem esta, consagrada pelas memorias da familia, justificada pelo facto de que quasi não é feita para ser comida.

Assim succedia com a do Mosteiro. Apesar das instigações do conselheiro, das instancias de D. Victoria, das garantias de D. Dorothéa sobre a innocuidade dos guisados, os pratos corriam á roda da mesa quasi intactos e intactos voltavam á cozinha d'onde sairam.

Mas se se comia pouco―e de facto, á excepção de Henrique, do conselheiro e das creanças, quasi ninguem parecia haver-se sentado alli para ceiar―mas, diziamos nós, se se comia pouco, em compensação falava-se muito.

O conselheiro a todos dirigia a palavra, demonstrando uma iniciativa efficaz para baralhar e generalisar as conversas e assim conservar constante a animação. Tudo desafiava risos, o dito de uma creança, a anecdota contada por Henrique, as distracções de D. Victoria, as canduras de D. Dorothéa, os paradoxos sustentados pelo conselheiro, as allusões da morgadinha a Christina, a confusão d'esta, as maliciosas insinuações de Angelo.

Assim procedeu o repasto nocturno até á altura das saudações e dos toasts. N'esta parte, justo é confessar que Henrique e o conselheiro fôram menos abstinentes. Era difficil resistir á preciosidade dos vinhos.

Passados os reciprocos brindes entre os parentes, o conselheiro, voltando-se para Angelo, auctorisou-o a propôr tambem um brinde.

Angelo levantou-se então para brindar Augusto.

O conselheiro secundou-o, levando o copo aos labios.

―Ah! o sr. Augusto―disse Henrique, antes de beber e com certo tom de ironia.―Conheço; é uma ave rara d'estas immediações, que tem brios de cavalleiro errante sob umas apparencias de philosopho.

―Brios de cavalleiro?―disse Angelo, com vivacidade.―Inda isso não é tudo, sr. Henrique; pode accrescentar, e alma de heroe tambem.

―Pois dê-se-lhe tambem alma de heroe, e se fôr preciso até consciencia de santo. Vá á saude da phenix!

E bebeu.

Depois de pousar o copo, proseguiu com o mesmo tom anterior:

―O que vejo é que é perigoso falar com a mais ligeira irreverencia d'esta personagem; corre-se o risco de vêr voltar contra o impio, que tanto ousa, os poderes conspirados do céo e da terra. Bem; prometto acatar essa preciosidade.

―E creia―disse-lhe o conselheiro―que lhe é merecedor de toda a consideração. Augusto é um d'estes caracteres excepcionaes que vivem á sombra de uma modestia impenetravel e á sombra d'ella muitas vezes morrem. É necessario ter a vista muita exercitada n'estas explorações de almas modestas, para descobrir uma assim.

―Felizmente para os myopes como eu―proseguiu Henrique―ellas fazem ás vezes a fineza de se despojarem da sua timidez e de se mostrarem á luz. Não é verdade, prima Magdalena?

―Que admira;―respondeu Magdalena―bem occulto está o fogo na pederneira, primo Henrique, mas, percutindo-a, salta a faisca.

―Pobre rapaz;―notou a sr.a de Alvapenha―aquillo nem parece d'este tempo. O que eu não sei, primo Manuel, é porque elle se não resolveu a tomar ordens. Recusar o legado da D. Rosa!

―Não seja isso a dúvida. Elle sabe que, adoptando essa ou outra qualquer carreira, não lhe faltarão recursos para seguil-a até o fim. Devo-lhe esse auxilio, assim elle o acceitasse; mas tem um genio singular aquelle rapaz!

―É uma phenix―insistiu Henrique, ironicamente.―Vejo que não é susceptivel de discussão, impõe-se á gente como um axioma. Eu tenho habitos de livre pensador, mas... forçar-me-hei a incluir no meu credo esse dogma.

―Perdão―replicou Angelo.―Um axioma não se demonstra, e a boa alma de Augusto está todos os dias a demonstrar-se por acções generosas.

―Por favor!! Dêem como não ditas as minhas palavras! Arrependo-me da minha irreverencia, e se elle aqui estivesse, principiaria a penitenciar-me na sua presença.

―E é certo que nos falta aqui Augusto. Como te não lembraste d'elle, Angelo?

―Não viria. N'esta noite não deixaria o tio Vicente.

―Ah, sim. Esquecia-me d'aquelle pobre Vicente.

―É do herbanario que falam?―perguntou Henrique.

―Justamente.

―Outra phenix; e quer-me parecer que tambem pertence ao numero dos inviolaveis; não é verdade, prima?

―Pertence ao numero dos infelizes, primo, o que é justo considerar-se uma especie de inviolabilidade.

A resposta collocou Henrique em mau terreno, e por isso apressou-se a desviar do ponto principal da questão, dizendo:

―Infeliz? Por que lhe chama infeliz? Os visionarios como elle teem em si os elementos da propria felicidade, e ninguem possue poder de perturbar-lh'a. Além de que o herbanario gosa aqui na terra de uma certa soberania, que deve lisonjeal-o.

―E olha que nem em Lisboa ha talvez quem saiba tanto como elle em coisas de doenças e de remedios, menino,―disse D. Dorothéa, que era uma das fervorosas apologistas da sciencia do herbanario.

―É na verdade um homem singular!―disse o conselheiro.―D'antes, na noite de Natal, e em todas as solemnidades de familia, tinhamol-o tambem por commensal, que ainda é parente arredado da casa. Ha annos porém deu em tomar a peito o meu procedimento politico e em prégar-me sermões e dirigir-me censuras, que eu fazia por escutar com a possivel resignação. Mas um dia foi mais amargo nas suas recriminações e eu achava-me com maior susceptibilidade; julgo que lhe respondi com bastante acrimonia, e o homem saiu de minha casa offendido e protestando não voltar mais a ella. Procurei-o, escrevi-lhe, tentei demovel-o do seu proposito. Não houve de quê. Havia-o ferido no seu orgulho, e é intolerante n'estas condições.

―Sei-o já por experiencia;―disse Henrique―que n'uma unica entrevista que tive com elle, e que durou minutos, deu-me occasião de lhe conhecer a irritabilidade.

―Vamos, primo Henrique; talvez possa haver quem supponha que n'essa entrevista não demonstrou o primo peor do que elle possuir as qualidades de que o accusa.

―Agora―continuou o conselheiro―vão consideravelmente exacerbar-se os despeites do herbanario contra mim.

―Porquê?―perguntou Magdalena.

―Porquê?... por causa do traçado que se adoptou para a estrada.

―Então?―disseram simultaneamente Angelo e Magdalena.

―A casa e o quintal do herbanario são os primeiros cortados.

―Não pode ser!―exclamou Magdalena, com evidente expressão de susto.

Angelo dirigiu ao pae um olhar tambem inquieto.

Christina não exprimiu menos apprehensiva tristeza.

―É inevitavel. Os dois primeiros traçados tinham certas durezas. O primeiro era uma luva lançada a uma influencia eleitoral, poderosissima; o brazileiro Seabra.

―Ah!―disse Magdalena, com certa amargura na expressão e no olhar.

O conselheiro reparou n'ella e em Angelo, em cuja physionomia se não lia menos intenso desgosto.

―Estou adivinhando que meus filhos votariam por que antes se arrostasse com os despeites d'esse influente. A logica do sentimentalismo tem d'essas exigencias absolutas.

Magdalena respondeu:

―Julguei que era a da consciencia, meu pae.

―A consciencia diz-me que ha interesses superiores ás contemplações com as singularidades de um velho honrado, mas... meio tonto. Na carreira politica ceder ao coração é morrer ou ser vencido. O sentimentalismo exaggerado, Lena, tem o inconveniente de dar tanto vulto ás vezes a um sacrificio individual, que, para o evitar, não duvida prejudicar maiores e mais geraes interesses e operar sacrificios mais custosos. É muito tocante na verdade o amor de um velho pelas suas arvores e pela sua casa; porém, mais respeitavel é o bem-estar e a conveniencia de uma localidade.

―E é tão necessario para a felicidade d'esta terra o sacrificio a que se quer obrigar o herbanario?―perguntou Angelo, e Magdalena secundou com o olhar a pergunta do irmão.

―Eu te digo, Angelo―respondeu o conselheiro, levemente despeitado.―Eu tinha a vaidade de me suppôr ainda prestavel para esta gente, que me tem elegido tantas vezes. Dos nossos patricios, deixem-me dizel-o aqui em familia, não vejo ainda quem dê garantias de desempenhar o mandato, muito melhor do que eu. Chamasse eu contra mim a animadversão d'este povo, e elles, á falta de outros, acceitariam ámanhã qualquer nome inscripto na carteira do ministro; um homem que nunca tivessem visto, e que nem soubesse em que ponto da carta estava o circulo de que se propunha ser representante. Mas perdôa-me, Lena, talvez isto te esteja parecendo um censuravel excesso de vaidade.

―Não, meu pae, ninguem acredita mais do que eu no muito valor da sua influencia, mas... Ó meu Deus!... isso vae ser a morte do pobre tio Vicente! Imagine bem o que é n'aquellas idades e com aquelle genio, a grandeza do sacrificio que vão exigir d'elle?

―Custa-me ser obrigado a isso; porém...

―Valia mais esperar algum tempo. A vida d'elle não pode ser muito longa. Deixem-o morrer em paz, á sombra d'aquellas arvores a que elle quer tanto. Que importa passar mais alguns annos sem uma estrada?

―Poesia!―disse o conselheiro, sorrindo para Henrique, que lhe correspondeu.

―Perdão!―acudiu Magdalena, córando―é caridade.

―Ora vamos, Lena. Sê razoavel. Todos soffrem no mundo sacrificios maiores do que esse; eu mesmo, que me não tenho ainda assim por victima da sorte...

―E não haveria outro meio?―perguntou Angelo.―Acaso ha só esses dois logares para dirigir a estrada?

―Que antes nunca se fizesse!―exclamou Magdalena, apaixonadamente.

―Ahi temos como o sentimento me torna retrograda a minha Lena. Já clama contra as estradas como qualquer reaccionario convicto. Havia um outro traçado, mas esse ia destruir completamente os campos do Brejo.

―Ah! então esse, esse! São bens nossos!―exclamou Magdalena com vivacidade.

―São bens de Angelo, filha, e por ventura aquelles que um dia mais valiosos se tornarão para teu irmão.

―Os charcos?―disse Angelo, encolhendo os hombros―ora! Só para viveiro de rãs.

―Hoje pouco mais são do que isso, e como tal nol-os pagariam agora. Dentro, porém, de alguns annos, operados alli os trabalhos de esgoto, que eu projecto, verão em que se transforma aquillo. É exigir a um homem muita abnegação pretender d'elle que sacrifique assim os elementos da riqueza futura de seus filhos; quanto mais que as vantagens não seriam taes que...

―Não pediriamos esmola, meu pae―notou timidamente Angelo.

―Nem o Vicente a pedirá. Visto que estaes tão desprendidos de interesse, que não hesitaes em fazer-lhe sacrificio dos vossos bens, podeis ceder-lhe o sufficiente para o compensar da perda.

―Mas quem o compensará dos golpes nos seus affectos?―perguntou Magdalena.

―Tambem tu! São segredos do coração feminino essas compensações. Deixo-as á tua disposição.

―Meu pae! meu pae! se é ainda possivel atalhar-se!

―É impossivel.

―Meu tio!―secundou Christina.

―Mano! Primo!―disseram a um tempo as senhoras mais idosas.

―O que posso fazer é ir eu proprio falar com o Vicente, para o mover a consentir na expropriação amigavel, que farei que lhe seja o mais vantajosa possivel.

―E tem coração para lhe ir propôr isso?

―Dize antes se tenho coragem para arrostar com as iras do velho, e com as maldições que já sei vae sacudir sobre mim.

Lena calou-se, suspirando.

―Mas vejam a inevitavel fatalidade que me persegue!―continuou o conselheiro.―Eu, que tinha feito voto de não me entreter de negocios publicos esta noite! Ai, Lena, Lena, a culpada és tu!

―Eu?! Eu, que abomino a politica! que só ella podia fazer entrar uma crueldade no coração de meu pae!

―Ó tio, veja se faz com que a estrada vá por outro sitio!―implorou meigamente Christina.

―Tambem tu, Christe! tambem tu!

―Pudera, mano! Não, que uma coisa assim! Isso é até uma ingratidão para com um homem a quem esta aldeia tanto deve―disse D. Victoria.

―Pois não é! E logo um quintal onde cresciam tantas plantas de virtudes!―accrescentou D. Dorothéa.

―Vá vendo, sr. Henrique, como se conspiram todos contra mim. Veja como um sentimento insignificante organisa uma opposição.

―É uma lição que estou recebendo, sr. conselheiro.

―Meu pae,―insistiu Magdalena―eu espero ainda que, ouvindo o tio Vicente, se commoverá e trabalhará por alterar esse fatal plano que principia por arrancar arvores, mas que, pode estar certo, com ellas arrancará uma vida.

―Romances! Lena, romances! Os romances, lidos em plena aldeia, são perigosos. Falta aqui nos ares um certo scepticismo que, não sendo em dóses exaggeradas, tem a vantagem de não deixar vêr as coisas da vida através do prisma dos livros de imaginação. Mas basta de falar em politica. Ámanhã procurarei o herbanario. Espero uma recepção de gêlo, e vou preparado para uma ladainha de recriminações, mas irei. Nada esperes, porém, da entrevista, Lena; nem o mal, se mal é, se poderia já atalhar; nem o orgulho de Vicente lhe permittiria expansões á sensibilidade, que cheguem a commover-me. Conheço-o.

Magdalena não instou. Ficou, porém, pensativa e sem o menor vestigio da alegria, com que principiara o serão.

N'isto ouviu-se um toque de sino longinquo.

―Já toca para a missa do gallo! Ouvem?―disse D. Victoria.

―Vamos! Não ha tempo para demoras―exclamou o conselheiro, levantando-se.

Todos o imitaram, menos Magdalena.

―Não vens, Lena?―perguntou Christina.

―Não.

―São amúos, filha!―disse-lhe o conselheiro, indo por traz d'ella; e, tomando-lhe a cabeça entre as mãos, beijou-a na fronte.

―Não, meu pae, é uma dôr de cabeça tão violenta!

―A maldita politica é o que faz! Pois fica; fica, porque está fria a noite.

―Far-te-hei companhia, Lena, disse Christina.

―Não, não. Se insistes, obrigas-me a sair.

―Aviem-se!―dizia D. Dorothéa.―Henriquinho, vens?

Henrique, cujo ardor em ouvir a missa da meia noite esfriou desde que viu Magdalena ficar, respondeu:

―Ó tia... a falar verdade!... se me dispensassem!...

―Vem d'ahi, preguiçoso! anda!

―É que... para um homem doente...

―Ai, não; se te ha de ás vezes fazer mal, então não―apressou-se a dizer a precavida senhora.

E foi deferido por unanimidade o requerimento de Henrique, a quem cêdo depois Torquato foi ensinar. o caminho para o quarto onde devia pernoitar.

O conselheiro, D. Dorothéa, Christina e Angelo fôram para a missa do gallo.

D. Victoria, Magdalena e Henrique ficaram no Mosteiro.

XV

Fechando-se no quarto, que lhe deram para pernoitar, Henrique de Souzellas sentiu poucas disposições de dormir. Uma profunda excitação impedia-lhe o repouso; em parte era devida ás occorrencias d'aquella noite, tão fóra dos seus habitos de vida; em parte, digamol-o em verdade, á influencia dos vinhos, com que secundára os brindes do conselheiro, e com que elle proprio iniciára outros.

A imaginação, excitada como estava, cada vez, entre outras imagens, lhe representava mais bella a de Magdalena. A especie de hostilidade permanente, com que a morgadinha o tratava, ainda mais parecia seduzil-o.

Nos poucos dias que passára na aldeia, havia Henrique, com novos habitos, adquirido uma maneira de vêr e de julgar as coisas e as pessoas, differente da que lhe era habitual na cidade, no circulo de amigos, com quem convivia; assim foi que abjurou tacitamente, e sem dar por isso, certo scepticismo convencional, que uma antipathica escola conseguiu pôr muito na moda.

Graças a estas melhoras moraes, tão verdadeiras n'elle como as physicas, as quaes até o constante pensamento das doenças lhe haviam dissipado, pudéra elle considerar Magdalena como uma mulher superior ao typo, pelo qual a mencionada escola costuma modelar o sexo: e acceitou sem má prevenção a aberta sinceridade d'aquelle caracter sympathico, que descrevia com enthusiasmo nas suas cartas a um dos seus mais intimos amigos de Lisboa.

Taes estados de convalescença são porém sujeitos a recaídas.

N'este dia, vespera de Natal, recebera elle a resposta áquellas cartas, e sob as impressões com que ficou da leitura, tinha vindo para o Mosteiro.

O amigo ria-se, com todo o elegante scepticismo de um homem da moda, da candura e da ingenuidade de Henrique. Dizia-se sinceramente penalisado á vista dos profundos estragos que alguns dias de provincia tinham operado n'elle. Via-o disposto a idealisar a mulher, a mais perigosa e mofina monomania que, dizia o tal, pode transtornar o cerebro de qualquer homem.

Com aquella ausencia de escrupulos, com que todos os dias caracteres, aliás não pervertidos, levianamente calumniam ou ferem de suspeitas reputações de todo o genero, elle fazia irreverentes allusões á morgadinha e zombava de Henrique, que ainda tomava a sério as isenções de uma rapariga de vinte e tres annos. Acabava por o aconselhar a que indagasse de algum primo timido e modesto, ainda que menos ingenuo de certo do que elle Henrique se estava mostrando.

Esta carta fez mal a Henrique. Exacerbou-lhe a doença, que estava em via de cura. Um espirito mephistophelico parecia havel-a dictado. Henrique transportou-se pela imaginação, depois de lel-a, a um dos circulos que habitualmente frequentava em Lisboa; suppoz-se a fazer alli a narração da sua vida na aldeia, e parecia-lhe estar vendo os sorrisos com que o escutariam, e elle proprio construia os epigrammas, com que lhe seria por certo commentada a narração. E então uma vergonha de má indole, vergonha do homem que põe um preceito de elegancia acima de um dictame de moral, fazia-o córar, apesar de a sós comsigo mesmo. Voltava a ler a carta, que lhe parecia dictada pela experiencia e pelo bom senso, emquanto que a ingenuidade das suas crenças se lhe figurava ridicula e desarrazoada.

Quem ha que não tenha tido momentos d'estes? Quem se pode gabar de não ter perguntado um dia aos seus escrupulos mais nobres se não são meros preconceitos, que ficaram de uma educação acanhada? Quem não poz um momento em dúvida as sublimes verdades que a mãe lhe ensinou em creança? Henrique estava passando por um d'esses accessos de scepticismo. Magdalena era já para elle uma astuciosa, que muito se deveria ter rido da sua simplicidade; e tanto o incommodava esta ideia, que promettia a si proprio ser d'ahi por deante mais arrojado. Esta ordem de reflexões estavam acudindo outra vez a Henrique e recebiam da excitação, que se apoderára d'elle aquella noite, uma tenacidade maior. Sentindo a cabeça em fogo, Henrique levantou-se, apagou a luz, e abrindo a janella do quarto, saiu á varanda que deitava para a quinta, a respirar o ar livre.

A noite era sem luar e sem nevoas. Descobriam-se muitas estrellas no céo, que com forte scintillação parecia illuminarem a terra de um tenue crepusculo, que mal deixava distinguir os objectos.

O ar frio da noite estava produzindo em Henrique um prazer, que elle procurava prolongar.

Não havia passado muito tempo, depois que assim se encostára á varanda do quarto, quando lhe attrahiu a attenção certo vulto alvacento, que furtivamente se movia n'uma das ruas da quinta.

Pareceu-lhe uma figura de mulher.

Justamente n'aquella occasião tinha Henrique na memoria o periodo final da carta do seu amigo.

Por isso occorreu-lhe uma ideia satanica.

―Ah!... Querem vêr que... A dôr de cabeça subita... A insistencia em ficar só... Percebo... Um primo timido e modesto...

E murmurando estas palavras, um sorriso maligno encrespava os labios de Henrique.

―Se eu pudésse averiguar isto... Mas ella corre com uma ligeireza que, antes que eu ache meio de sair para a quinta... já a levará bem longe.

O meio porém não era difficil de encontrar. Da varanda em que estava Henrique passava-se com grande facilidade para outra immediata, na qual havia uma escada de communicação para a quinta.

Reconhecendo esta disposição do terreno, Henrique operou n'um momento a descida, e pouco depois procurava através da quinta os vestigios da mulher que tinha perdido de vista.

N'esta operação esforçava-se por combinar com a maxima ligeireza a possivel precaução, para não ser por causa alguma frustrada a sua pesquiza.

A quinta do Mosteiro era extensa e cerrada toda em volta por um solido muro de alvenaria. Aqui e alli abriam-se n'elle differentes portas que deitavam para os diversos logares da aldeia. N'este vasto recinto havia pomares, lameiros, vinhedos e hortas, por onde Henrique errava á tôa, já desanimado de ser bem succedido no empenho.

De repente julgou ouvir, a pouca distancia, o rodar de uma chave na fechadura. Parou por precaução e ficou-se a escutar. Logo depois ouviu o bater de uma porta e mais nada.

Então adeantou-se rapidamente; n'um momento deu com a porta, que ainda se conservava aberta.

Saiu por ella para a rua, mas achou-a deserta.

Dirigiu-se á esquina que d'alli avistava; dobrou-a, mas nada viu; as ruas eram solitarias, e uma só casa terrea que havia ao lado de um quintal estava discretamente fechada e silenciosa.

Desistindo de proseguir na infructuosa pesquiza, Henrique voltou para a porta.

―Esperemos aqui por esta donzella destemida que assim anda de noite a correr aventuras. Ha de ser curioso observar como ella fica, quando me encontrar por guarda portão. Veremos se ainda depois d'isto durarão aquelles ares de soberania, com que me trata. Um primo timido e modesto!...

E, sorrindo á lembrança da scena que se preparava, Henrique fechou a porta por dentro, e accendendo um charuto, poz-se a passeiar, aguardando o regresso da morgadinha.

Para não perdermos muito tempo á espera tambem, aproveital-o-hemos a inquirir de coisas e de pessoas, cujo conhecimento é util á continuação da nossa historia.

A pouca distancia do extremo da quinta do Mosteiro e n'um sitio a que a abundancia de vegetação e a suavidade de perspectiva davam o mais pittoresco aspecto, estava a casa e o quintal do herbanario, casa e quintal já condemnados pelos lapis e tira-linhas dos engenheiros e offerecidos em sacrificio aos melhoramentos municipaes e concelhios.

Acharia justificado o quasi terror, com que Magdalena e Angelo escutaram a nova d'esta expropriação, quem conhecesse a vivenda rustica do herbanario e soubesse do amor que elle votava a cada objecto d'ella, assim como da vida que, havia tantos annos, alli vivia escondido e obscuro.

Para o quintal, que a abundancia das arvores de espinho fazia sempre verde, abriam-se as janellas da pequena e humilde saleta, onde o herbanario se entregava ás suas leituras e lucubrações scientificas. Logo ao pé da porta se estendiam o jardim, em parte de recreio, pelas flores que o adornavam, em parte de utilidade, pelas simplices medicinaes, de virtudes mais ou menos problematicas, que o velho n'elle cultivava.

Vicente tinha entranhada a paixão vegetal, deixem-me assim chamar-lhe. Adorava as plantas pelas suas flores, pelos seus fructos e pelos poderes curativos que lhes attribuia. E como se ellas possuissem a responsabilidade dos effeitos produzidos, assim lhes queria e as amimava, quando salutares; assim as aborrecia e maltratava, quando nocivas. A vida isolada e o genio do velho, que sempre fôra dado a singularidades, augmentaram estas disposicões, que tinham o que quer que era de pantheistico; e não era raro surprehenderem-o conversando com ellas, como se convencido de que o estavam comprehendendo.

A borragem, a salva, a fumaria, a herva terrestre, a herva moura, os trevos, os geranios, as papoulas, as violetas, tão boa camaradagem lhe faziam, que nem lhe deixavam sentir a solidão.

O herbanario não tinha pessoa alguma ao seu serviço. Elle proprio cozinhava e por suas mãos fazia todos os mesteres domesticos.

É pois de imaginar que não seria muito complicado o banquete das consoadas n'aquella casa, e que devia formar em tudo contraste com o que á mesma hora se celebrava no Mosteiro.

De feito, quando alli eram mais ruidosas as conversas e mais espontaneos os risos, dois homens apenas, sentados um defronte do outro, a uma pequena mesa circular, solemnisavam n'aquella modesta sala o santo anniversario. Um era o proprietario da casa, o outro Augusto, um dos poucos que se atrevia a frequentar áquellas horas mortas a habitação do velho.

Além da mesa, sobre a qual estava uma ceia composta de queijo, maçãs, nozes, castanhas, duas sopeiras com escabeche, especialidade na confecção da qual o herbanario era eminente, e uma garrafa de vinho do Porto de promettedora côr de topazio, consistia o resto da mobilia n'uma estante de pinho, vergada sob o peso de in-folios de grossas encadernações e folhas vermelhas nos aparos, em algumas cadeiras e bancos tambem occupados com livros e com varios utensilios empregados nas explorações scientificas do velho, taes como caixas de lata, frascos, martelos, foicinhas, limas, os quaes ainda sobravam para alastrarem o chão.

Todo o recinto era apenas alumiado por um candieiro de azeite, e a escassa luz, que dos tres lumes que, em attenção á solemnidade da noite, o velho accendera, ia reflectir-se no vulto alvacento de um Christo de marfim pendente de um crucifixo negro, que sobresaía n'aquellas paredes nuas e caiadas.

Havia bastante tempo que aquelles dois homens, sentados defronte um do outro, guardavam silencio; um d'esses silencios, durante os quaes os espiritos, como se impacientes com as longuras da palavra, tendo-se desembaraçado d'ella, voam a par, para adeantarem caminho e voltarem mais longe a associarem-se á sua mais lenta companheira.

Augusto, com os olhos fixos na luz que illuminava a scena, parecia alheio a quanto o rodeava.

O herbanario, sem desviar os olhos d'elle, com o braço estendido para o calice que tinha defronte de si, e a cabeça inclinada, parecia espiar, um por um, todos os gestos de Augusto, e estudar n'elles os pensamentos que o preoccupavam. Emfim rompeu o primeiro o silencio:

―Pobre rapaz! Dize-me para ahi tudo o que tens. Para que te mettes a esconder de mim aquillo que eu ha tanto te leio nos olhos, creança?

―O quê, tio Vicente?―perguntou Augusto, inquieto.

―O quê?! Ouve, Augusto. Deu-te Deus o engenho, sem te esfriar o coração: são dons do Céo, que se pagam caro e com lagrimas, rapaz. Bondade de coração, com a cabeça... assim, assim... a dar esmolas aos pobres se satisfaz; cabeça de fogo, mas coração de gêlo... todos os meios de levar ao fim ambições, tanto os bons como os maus, todos lhe servem; mas coração como o teu, com o espirito que tens!... ai, pobre Augusto, se se escapa ao infortunio, é por milagroso poder do Senhor.

―Não o entendo, tio Vicente,―disse Augusto, com manifesta confusão.

―Não! Olha para mim. E vê se te atreves a repetil-o.

Augusto baixou a cabeça.

O velho sorriu com ar de commiseração e sympathia.

―Tu ainda não sabes fingir. Vamos lá; e cuidas que me não havia de custar, se não tivesse acertado?―E, depois de breve pausa, continuou:―Mas ainda quando penso em como tu, uma cabeça forte, assim te deixaste enfeitiçar!...―E tomando o calice, que tinha defronte de si, disse com resolução―Quero beber á tua saude, Augusto, e para que em breve se te desfaça essa loucura.

Quando ia a levantar o calice aos labios, a mão de Augusto susteve-lhe o braço.

―Não beba. Loucura embora, deixe-me viver e morrer com ella. Sou feliz assim.

―Ah!―disse o velho herbanario, tomando um ar mais grave; e pousou o copo, sem desviar de Augusto o olhar penetrante e fixo.

Augusto, depois de um curto silencio, proseguiu com maior vehemencia e colorindo-lhe as faces um não costumado rubor:

―Sim. Por que o não hei de confessar? Essa loucura que diz, trago-a commigo, vivo com ella e quasi que para ella. Quero-lhe assim, e não a desejaria perder. Amor? não é; a tanto não chega... antes um culto, isso sim. É uma adoração como aquella, em que de pequenos nos educam para com a Virgem. Que esperanças tenho? Nenhumas. Nem procuro alimental-as. Quer que lhe diga? Vêl-a; respirar estes ares que ella respira; atravessar estas devezas em que ella passeia; amimar as mesmas crenças que ella amima; soccorrer, com o meu óbulo de pobre, a miseria sobre a qual ella espalha caridosa as dadivas da sua abençoada opulencia... e, ahi está; são as minhas aspirações; é o futuro que desejo, e com que me contento. Leu no meu coração, disse; e ha muito que m'o dá a entender; mas não viu claro de todo, confesse. Julgou talvez que haveria em volta d'este sentimento um enxame de esperanças loucas, e d'ellas se ria. D'ellas por certo foi que se riu; é muito generoso para se rir do mais. Enganou-se, porém, tio Vicente; vê agora que se enganou, não é verdade? Essas esperanças não existem. Se existissem, bem vê que não estaria aqui. Não me teria impellido a ambição pelo caminho de realisal-as? Não se me teem offerecido os meios para tental-o? Mas, veja, quero-lhe tanto, e tanto me satisfaz esta felicidade a meu modo, que não arrisco um instante d'ella para tentar uma ventura maior.

O herbanario escutava silencioso, porém meneando a cabeça com ares de quem não punha demasiada fé n'aquellas palavras.

―Aos vinte annos!...―disse elle por fim―sentir o que dizes... ser feliz assim!... Deixa passar mais tempo; deixa tomar corpo á paixão e verás... verás depois...

―Tem dez annos―disse Augusto, sorrindo.

―Dez annos!

―É verdade. De creança a conheço, a paixão que diz; por isso confio n'ella. Tenho fé em que se não transviará.

―Dez annos!―repetia o velho, admirado.―Porém... ha dez annos...

―Ha dez annos saí eu d'aqui, tio Vicente. Não se lembra? Era então uma pobre creança da aldeia, educada entre os braços de minha mãe, e conhecendo, uma por uma, as arvores d'estes sitios e mais nada. Saí d'aqui e fui para Lisboa. Não imagina as fortes impressões que recebi na noite que alli cheguei. Nunca a historia mais maravilhosa de fadas e de encantamentos que ouvia, quando era pequeno, nunca me feria a imaginação assim! Tudo era novo para os meus sentidos. O rumor, as luzes, os palacios, os edificios, os carros produziam-me quasi uma vertigem; sentia-me vacillar. Achei-me, nem sei bem como, de tão atordoado que ia, n'uma casa onde estava o conselheiro, e em que se reunia, n'aquella noite, uma companhia numerosa de homens, de senhoras e de creanças, muitas da mesma idade que eu, e que formavam uma assembleia á parte. A sala era magnifica; muitas luzes, muitos espelhos, muitas flores, moveis dourados, tapetes, quadros, crystaes, e para acabar de me confundir, o piano, objecto novo para mim, e que eu me não fartava de admirar. Tudo isto me perturbava, como imagina, e por fôrça me havia de dar uns ares de estupefacto. O conselheiro recebeu-me com affecto; deu explicações ás pessoas presentes a respeito da minha vida, e deixou-me entregue ás creanças. Ahi fiquei eu, bisonho rapaz da aldeia, com a minha jaqueta mal talhada, o meu olhar timido, os meus modos acanhados, no meio de uma turba de creanças elegantes, que se me figuravam de uma essencia superior á minha. As creanças são desapiedadas, quando assim em companhia. Cêdo percebi que estava sendo o alvo da zombaria d'ellas; riam ao principio com disfarce e falavam-se ao ouvido, olhando-me de relance; redobravam as risadas e transmittiam reflexões a meu respeito, cujo sentido julguei adivinhar. Depois dobrou a ousadia n'ellas, dirigiram-me ditos, gracejos, cada vez menos disfarçados; formaram grupos em volta de mim; se eu falava, respondiam-me rindo. Então apoderou-se de mim um profundo desalento, comprimiu-se-me o coração de tristeza. Lembrei-me, com saudades, das arvores da minha aldeia, do meu pobre quarto, de minha mãe; e achei-me alli tão só, tão sem conforto nem amizades, que as lagrimas me vieram ferventes aos olhos. Ainda hoje não hesito em dizel-o, foi aquelle um dos mais amargos momentos da minha vida. Nós, quando adultos, esquecemos facilmente os martyrios da infancia, quando n'esta idade uma sensibilidade exaggerada tão dolorosos os faz. Foi então que se deu um facto que, na minha piedosa superstição de rapaz aldeão, quasi me pareceu de intervenção divina. Abriu-se a porta e entrou na sala uma creança, que eu não tinha ainda visto. Era uma menina pallida, de gesto affavel e angelico. Vestia toda de branco. Entrou e approximou-se do conselheiro, que jogava com uns amigos. O conselheiro, depois de beijal-a, não sei que lhe disse ao ouvido. Ella correu então a sala com a vista; viu-me e veio direita a mim.

―Não conhecias já da aldeia, Magdalena?―perguntou o herbanario.

―Não; minha mãe veio para aqui no anno em que, por morte da sua, Magdalena voltou a Lisboa. A affabilidade, a singeleza desaffectada com que me falou, causou-me um allivio ineffavel. Ainda hoje sinto como que os reflexos d'aquella suave impressão. Parecia-me ouvir a voz de minha mãe; tinha o timbre da sympathia. Encheu-se-me logo de confiança o coração. Com ella não senti mais aquelle acanhamento que me enleiava. Depois falava-me de coisas que eu sabia tão bem! Perguntava-me a respeito dos campos, das arvores, das abelhas, dos ninhos dos passaros, das flores, dos trabalhos do linho... interrogando-me e escutando-me com tanta deferencia e attenção, que me inspirava coragem, e julgo que me estava dando ares de mais importancia junto d'aquelles pequenos senhores e senhoras que, pouco a pouco, se fôram despojando dos seus desdens e acabaram por me escutar e interrogar tambem com curiosidade. Já uns me lançavam os braços ao hombro, outros formavam circulo em volta de mim, e cêdo fui eu a principal personagem d'aquella noite. Essa creança...

―Era Magdalena; adivinhal-o-hia agora, se já o não soubesse. Não podia deixar de ser ella―exclamou o herbanario, com um fulgor de sympathia a illuminar-lhe o olhar.―Era ella; sempre assim foi!

―Era. Esta scena pueril teve uma grande influencia no meu espirito. Hoje ainda, se penso n'ella, acho-a de uma grande significação moral. Pois não é mais apreciavel n'uma creança esta prova de superioridade de caracter, do que nas idades em que muitas vezes a razão e o calculo a impõem a uma indole naturalmente pouco generosa? Alli era tudo espontaneidade. Desde então a adoro.

O herbanario parecia não ter já animo para sorrir.

―Agora vejo por que trouxeste da cidade aquella grande tristeza. Tão novo!

―É verdade. Foi esse o motivo. Magdalena foi sempre para mim affavel; inclinava-se sobre o livro em que me via estudar, corrigia, sorrindo, os defeitos da minha educação aldeã, e, se reconhecia progressos no discipulo, manifestava uma alegria que era para mim o maior incentivo e o maior premio. Fiz os exames. Quando voltei a casa, Magdalena com certo ar de gravidade, que aquella creança já então tomava, perguntou-me, no meio de uma conversa propria de creanças: «E sente-se com genio para ser padre, Augusto?» Já me não lembro do que lhe respondi. Trouxe porém commigo aquella pergunta; trouxe-a para a solidão da minha aldeia. Procurei cerrar os ouvidos á voz interior, que desde então m'a repetia sempre, até junto da cabeceira de minha mãe, cuja maior aspiração era, como sabe, vêr-me padre. Mas em vão! foi desde então uma dúvida constante com que luctava. Com a morte de minha mãe tudo mudou. Pela primeira vez respondi á interrogação, que havia tanto tempo dirigia a mim proprio, e consegui por fim responder: «Não». Eis o segredo do meu passado.

―E por que disseste «Não»?

―Porque vi que toda a minha vida era para a consagrar a um sonho; que o sonharia no altar, no pulpito e no confessionario; que para toda a parte me seguiria a imagem, a que eu já não podia renunciar, e a qual então já não contemplaria sem remorsos, como agora o faço. Foi por isto.

―Só? Não te illudirás a ti mesmo, Augusto? Repara bem, que n'isso pode ir a tua felicidade! Estás bem certo de que não ha uma esperança dentro do teu coração?

―Se a tivesse...

Ia a continuar, quando julgou ouvir o rumor de passos na rua. Cêdo batiam na porta duas leves pancadas, e uma voz dizia de fóra:

―Está acordado ainda, tio Vicente?

O herbanario trocou um olhar com Augusto. A voz era de Magdalena.

Augusto ergueu-se com presteza. O herbanario quiz retêl-o.

―Onde vaes?

―Deixe-me sair. Não poderia vêl-a agora. Não estou preparado com a minha indifferença.

―Pobre mascara!―N'esse caso sae pelo quintal.

―Tio Vicente!―repetiu Magdalena, de fóra.

―Eu vou, minha ave nocturna; eu vou já. Espera―continuou em voz baixa para Augusto:―dá-me a tua palavra que não escutarás.

―Dou; mas... promette que nada lhe dirá?

―Eu?!... Louco! Assim te pudésse fazer esquecer, quanto mais... Adeus!

Depois de assegurar-se de que Augusto saira pelo lado do quintal, o herbanario foi abrir a porta da rua á morgadinha.

XVI

―Ora com Deus venha a minha fada; esta querida Lena, que se não esquece dos seus amigos velhos... Boas festas me trazes pela noite, filha!

No rosto e nas maneiras de Magdalena havia evidentes indicios de preoccupação.

―Boas noites, tio Vicente! Pouco me posso demorar; eu venho...

O herbanario conduziu-a para junto da mesa, onde estavam ainda os signaes de refeição, que havia pouco findára. Vendo os dois talheres, a morgadinha olhou interrogadamente para Vicente:

―Estava alguem comsigo?

―Esteve Augusto, que ceiou aqui. Porquê? Temos por ahi mais alguns livros a comprar-lhe?―continuou, sorrindo com benevola malicia.―Tenho eu mais uma vez de chamar em meu auxilio a fada que, de vez em quando, me ensina em segredo quaes os livros, que o rapaz mais deseja e de que eu mal sei dizer os nomes? Hei de ainda ouvir calado agradecimentos, que não mereço, e que elle mais de coração daria, a quem são de justiça devidos?

―Não, tio Vicente; não se trata agora d'isso.

―Ai, Lena, Lena, que não sei bem o que devo pensar de todas estas coisas.

A morgadinha parecia um pouco perturbada com as palavras do herbanario.

―Que ha de pensar? Ha nada mais natural? Angelo foi que me deu o exemplo. Elle sabia o amor que Augusto tem á leitura. Porém o cofre de Angelo é pequenino, bem sabe; emquanto que eu chego a nem saber em que hei de consumir o que me sobra. Por isso foi que me lembrei... porém como não conviria que eu propria fizesse o presente, nem elle de mim o acceitaria, é que eu lhe pedi que o fizesse em seu nome. Mas falemos de outra coisa, porque me não posso demorar. Venho ás occultas e emquanto a minha gente foi á missa do gallo. Tio Vicente, um objecto muito grave me obrigou a procural-o a estas horas.

―Ah!―disse o velho, sentando-se em tom de gracejo.―Adivinho a gravidade do caso. O filhito do boieiro, o teu afilhado predilecto, tem algum principio de sarampo ou de garrotilho, e vens...

―Não, não. Diga-me, tio Vicente, tem muito amor a esta casa e a este quintal?

O velho tornou-se immediatamente sério.

―Se lhe tenho amor?! Que pergunta!

―Tem?

―Nasci aqui, filha.

―Custar-lhe-ia a...

―A quê?

―A... a...

E Magdalena hesitava.

―Fala!―insistiu o velho, já inquieto.

―A separar-se d'ella?

O herbanario respondeu simplesmente:

―Ah! morreria.

Magdalena fez um gesto de afflicção.

Em Vicente crescia o desassocego.

―Mas... Dize, Magdalena; o que significam essas palavras?

―É que...

―Explica-te!―exclamou o herbanario, quasi imperiosamente.

―Ouça-me, tio Vicente; ouça-me, mas não se afflija. Eu vim de proposito para o prevenir. Mas, por amor de Deus, socegue; senão tira-me o animo de continuar.

―Que socegue, e tu a atormentares-me com essas demoras!

―Perdôe... Fala-se em deitar abaixo estas arvores e esta casa, para...

O herbanario de um impeto poz-se a pé. Fulgurou-lhe nos olhos um relampago de ira terrivel!

Magdalena calou-se, assustada.

―Deitar abaixo estas arvores e esta casa?! Quem?... Quem se atreve? Pois que venham! que venham!

Mas reparando no terror que estava causando a Magdalena, procurou reprimir-se, e com uma voz que elle se esforçava por tornar tranquilla, continuou:

―Mas vejamos. Então querem, dizes tu... Fala, Lena, fala... Dize o que sabes. Quem é?... Para que fim? Pois quem pode lembrar-se de... Fala, bem vês que eu estou socegado, filha.

―Ha um projecto de estrada...

―Ah!―disse Vicente, com um grito de raiva.―Não digas mais. Já sei―continuou com renascente exaltação.―Já sei. Adivinho o resto. É teu pae que o determina; é teu pae que o resolveu?

Magdalena abaixou a cabeça com dolorosa expressão.

O furor do velho exaltou-se outra vez.

―Teu pae! Teu pae, Lena! Então esse homem jurou matar-me?

―Tio Vicente!

―Elle não sabe o que são para mim estas arvores e estas paredes? Elle não sabe que a minha alma está n'ellas, presa a estas raizes? que com ellas se despedaçará? Esse homem sem coração não vê que são estas as minhas affeições, as unicas? a minha unica familia? Elle, o companheiro dos meus primeiros annos! que, como eu, ahi brincou, á sombra d'essas mesmas arvores e sob os olhares de meu pae, que tambem o abençoava, tão duro de coração se fez que, sem respeito por estas memorias todas, assim me quer separar do que me dá vida, do que ainda me prende ao mundo? E é teu pae este homem, Lena?

―Por quem é, tio Vicente; ouça-me. Deixe-me dizer-lhe ao que vim, que talvez tudo se remedeie ainda.

―Sim, sim; tudo se remediará... com a minha morte. Talvez que ella seja util a teu pae... Talvez precise d'ella.

―Oh! não creia, não creia.

―É duas vezes doloroso o golpe; porque me separa do que amo deveras e por vir da mão de quem vem. Eu era amigo de teu pae, Lena. Acredita que o era... ainda. Conheci-o tão generoso e tão innocente, como teu irmão Angelo. Muitas vezes me enthusiasmei ao ouvil-o falar dos seus projectos. E acreditei n'elle. Tinha então no olhar um fogo, que não mentia. Vi-o seguir a carreira publica e acompanhei-o com a minha fé. Não tardaram os primeiros desenganos; não lhes quiz dar credito ao principio. Vieram outros e outros. Fui vendo então que os maus ares d'aquella terra tinham embaçado o brilho do caracter, que eu julguei melhor do que os outros. Mas o peor dos desenganos estava-me reservado ainda. Para teu pae hoje os homens são medidos pelos votos, que podem lançar na urna eleitoral!

―Por amor de Deus, tio Vicente, não fale assim! Não duvide de meu pae!―exclamou Magdalena, a quem cruelmente estavam affligindo as recriminações amargas do herbanario.―Meu pae estima-o e respeita-o. Não tem o coração endurecido que diz. Elle mesmo ámanhã aqui ha de vir. Verá então...

―Elle? Ámanhã?...

―Para isso venho prevenil-o. Não o receba com asperezas, tio Vicente; fale-lhe com brandura. Talvez o commova, talvez seja ainda possivel valer a tudo. Ainda não está decidido... Julgo... E que estivesse...

―Ámanhã! Teu pae vem aqui ámanhã? E ousa vir elle proprio annunciar-me o que sabe que vae ser uma sentença de morte?

―Não; elle ignora o mal que isto lhe causa, creia. Sabendo-o, verá como...

―Teu pae conhece-me, Magdalena. Teu pae conhece-me, e ha muito. Não julgues que pode errar, calculando o effeito d'este golpe. Mas que queres tu? ensinaram-lhe já a avaliar em pouco as venetas de um velho quasi tonto. Homens que trazem o pensamento em interesses tão altos, não teem vista para estas pequenas desgraças.

Magdalena sentia-se possuir de uma profunda tristeza, ao ouvir falar o herbanario. Era uma dolorosa provação para o seu amor de filha vêr assim uma nuvem de desconfiança offuscar a ideal concepção que ella formára do pae, e não ter fôrças para a afugentar. Ás vezes uma dúvida cruel fazia-lhe, a seu pesar, suppôr que o herbanario tinha razão. Agora só conseguia oppôr um gesto supplicante áquellas acerbas accusações, que por muito tempo ainda desattenderam esta supplica muda.

A final serenou a violencia da irritação do velho; succedeu-lhe, porém, uma commoção profunda, dominado por a qual disse a Magdalena:

―Socega, Lena; ámanhã eu receberei teu pae sem a menor aspereza. Fizeste bem em vir primeiro, filha. Se o não esperasse, talvez não soubesse conter-me. Agradecido. Uma noite é bastante para me preparar. Agora vae, deixa-me só; deixa-me... chorar.

E cobrindo o rosto com as mãos, deixou-se cair, soluçando, sobre a mesa, junto da qual se achava.

Magdalena correu para elle, commovida.

―Então, tio Vicente, então! Socegue! Ámanhã meu pae virá. Fale-lhe, e eu espero que ainda será tempo de evitar... o mal.

―Pode ser, pode ser...―respondia o velho.―E se não pudér, Deus me acudirá, para não viver por muito tempo fóra da casa em que nasci.

Magdalena já não tinha que lhe dizer.

―Eu pedirei tambem, e Christina, e todos pediremos, como já pedimos. Tenho esperança.

―Não, filha, não peças tu. Deixa-me só com teu pae ámanhã. Disseste que tinhas vindo, sem ninguem saber?―continuou elle.―Olha que te não dêem pela falta. Vae, que é tempo.

―Mas...

―Vae, filha. Eu estou já tranquillo. Bem vês. Deus te recompense a bondade que tiveste. Vae. Queres que te acompanhe?

―Não é preciso. Vim pela porta das prezas, que deixei aberta. São dois passos e estou na quinta. Mas, tio Vicente...

―Vae então; e Deus te abençoe.

E o velho pousou a mão sobre a cabeça de Magdalena, que saiu commovida.

E elle caiu outra vez sobre a mesa, sem reter o pranto que lhe rebentava dos olhos.

É sombria a saudade n'aquellas idades, porque as esperanças são já muito debeis para lhe darem luz.

Saindo de casa do herbanario, perturbada ainda pelos sentimentos que alli a tinham agitado, a morgadinha dirigiu-se á pressa para a porta da quinta, por onde saira. Ao impellil-a para entrar, a porta resistiu. Este facto surprehendeu e inquietou um pouco Magdalena. Quem poderia ter fechado a porta? E se effectivamente estava fechada, tornava-se-lhe necessario um longo rodeio pela aldeia para chegar a outra, que pudesse encontrar aberta.

N'esta hesitação impelliu outra vez instinctivamente a porta, que lhe oppoz a mesma resistencia.

Cêdo, porém, sentiu o rodar da chave na fechadura e viu mover-se lentamente a porta, e no vão, que augmentava, desenhar-se uma figura de homem.

Antes que pudésse, através da obscuridade da noite, reconhecer a pessoa, que assim tão a proposito lhe acudia, deram-lh'a a conhecer estas palavras:

―Muito boas noites, prima Magdalena. Espero que pelo menos me concederá licença para exercer, junto de si, as humildes funcções de porteiro.

Era Henrique de Souzellas.

Magdalena não foi superior a um vago sentimento de receio, ao encontrar-se ahi com o hospede de Alvapenha; comtudo esforçou-se por dominar-se e respondeu, com apparente presença de espirito:

―Ah! É o primo Henrique. Muito boas noites. Ahi temos um requinte de galanteria, que eu estava muito longe de esperar.

―E de desejar, não?

―E de desejar tambem; confesso-o. Por mais diligente que seja um porteiro, nunca o é tanto como uma porta aberta.

―Mas é mais discreto.

―Duvido. Em todo o caso, agradeço o incómmodo.

E, dizendo isto, preparava-se para entrar, sem mais explicações.

―Uma palavra, prima Magdalena―disse Henrique, retendo-a por o braço e com certa expressão nas palavras e no gesto, que redobrou o sobresalto da morgadinha.―Não ha mais accommodado terreno para um dialogo solemne do que o limiar de uma porta. Ordinariamente no limiar das portas o homem muda de mascara; depõe a que apresenta na sociedade e afivela a que traz na familia, e vice-versa. Ora n'estas mudanças é facil surprehender o verdadeiro rosto da pessoa.

―Será tudo o que quizer o limiar de uma porta, primo; menos um logar muito confortavel para serões n'uma noite de dezembro.

E Magdalena tentou de novo seguir para deante.

Henrique susteve-a outra vez.

―Um momento só, prima Magdalena; tenho necessidade de saber se me quer para alliado ou para inimigo.

―Não vejo a necessidade da alliança que propõe, nem as razões para a lucta.

―Sejamos francos. A prima deve confessar que a minha presença aqui foi um desagradavel contratempo. Uma certa altivez e consciencia de invulnerabilidade, de que tinha o incómmodo de se revestir, sempre que tratava commigo, depois d'esta importuna occorrencia terá de se modificar.

―Não havia dado por essa... revestidura que diz; mas, se ella existiu, far-me-ha o favor de dizer: por que não pode continuar?

―Essa é boa! porque eu faço a justiça á prima de suppôr que não vae tão longe a sua hypocrisia.

―Hypocrisia!―disse Magdalena, com accento mais severo.

―Perdão; não tive tempo para inventar outro termo mais... brando. Dissimulação talvez lhe agrade mais. Seja dissimulação. Mas depois do occorrido...

―Agora exijo eu que se explique, senhor.

―Ora vamos. Seja razoavel. Poder-me-ha dar uma explicação... edificante... d'esta sua excursão nocturna?

―Obsta apenas a que eu lh'a dê, sr. Henrique de Souzellas, a falta de uma pequena formalidade: a de lhe reconhecer o direito de interrogar-me.

―Muito bem. Cada vez confirmo mais a minha ideia. A prima é uma mulher admiravel, uma mulher superior, educada na alta escola de uma sociedade distincta, sobranceira por isso a pieguices provincianas. Tanto mais me encanta! E creia que me envergonho só ao lembrar-me do que terá pensado de mim, vendo-me tomar a sério as suas profissões de fé, tão cheias de franqueza e de candura. Devo ter-lhe parecido bem ridiculo, não é verdade?

―Agora é que me está parecendo bem enygmatico!

―Sim? N'esse caso eu me decifro. A prima não ignora que eu a amo.

―Pois ignorava!―atalhou Magdalena, com ironia.

―E sabe de certo, por experiencia do mundo, que para homens como eu, a indifferenca, a frieza e os desdens redobram o ardor da paixão.

―Sim; já li isso n'um romance.

―A prima tem sido para commigo de uma crueldade revoltante, mas pouco sincera. Eu resignava-me a soffrer, porque um resto de ingenuidade que me ficou dos quinze annos, illudia-me na interpretação de taes resistencias. Tive a puerilidade de a suppôr uma mulher de excepção; pouco me faltou para a divinisar. Estava reservado para esta memoravel noite de Natal o desengano.

―Ah! então parece-lhe...

―Que a prima representa admiravelmente o seu papel. Pode gabar-se de ter illudido um homem habituado ás scenas da comedia social.

Magdalena respondeu, com um tom de voz cheio de severidade e de nobreza:

―Tenho-o estado a escutar, sr. Henrique de Souzellas, sem que eu propria bem saiba o que me retem aqui: se é a compaixão que me inspira a profunda doença moral de que o vejo tomado, se a curiosidade de saber a que tendem todos esses arrazoados. Vejo-o inclinado a imaginar que por um facto, que a sua pouco delicada indiscreção preparou, eu ficarei de hoje em deante á mercê da sua generosidade. Conhece-me muito pouco, sr. Henrique! Ainda quando esse facto não pudésse ter uma explicação natural, e que me não repugnará declarar quando quizer, saiba que tenho orgulho de mais para arrostar com tudo, até com a calumnia, de preferencia a resignar-me ao menor predominio que me seja odioso.

―Bravo!

―Saiba mais, sr. Henrique de Souzellas, que se eu não lhe fizesse a justiça de acreditar que d'esses seus actos e palavras não é absolutamente irresponsavel talvez a má influencia da ceia d'esta noite, bastariam elles para me inspirarem por si e pelo seu caracter o mais completo desprezo; e então seria, como nunca, manifesta a minha independencia, porque eu nunca temi os seres que desprezo.

Henrique principiava a ser de novo subjugado pelo tom de severidade e de energia, com que a morgadinha lhe falava; ainda assim um resto de scepticismo obrigou-o a replicar:

―Santo Deus! prima Magdalena; não dê um colorido tão pavoroso ás minhas supposições. Despojal-a de uma crueza deshumana, para a dotar de uma sensibilidade, verdadeiramente feminil, é uma justiça feita ao seu coração. E o facto que o acaso me revelou a nada mais me auctorisa. O pequeno e natural despeito por me haver deixado illudir desvaneceu-se já, creia; e agora só me resta invejar a sorte de quem tem a felicidade...

―Basta! Ordeno-lhe que se cale, senhor! Nem mais um instante o escutarei; poupar-lhe-hei assim os remorsos, que ámanhã teria da sua infamia...

E animada por uma resolução mais energica, Magdalena caminhou soberanamente para a porta.

Henrique collocou-se-lhe outra vez deante.

―Um momento mais.

―Deixe-me passar, senhor.

―Não, sem que me ouça antes.

―É uma violencia?

―É uma supplica.

N'este momento saiu da obscuridade da rua fronteira um vulto que avançou para elles.

―sr.a D. Magdalena, se fôr preciso reter o insolente, que se lhe atravessa no caminho, ponho um braço á sua disposição.

E Augusto, de quem partiram estas palavras, veio collocar-se entre Henrique e Magdalena.

Ouvindo-o e reconhecendo-o, Henrique estremeceu de cólera. O olhar que fixou no recem-chegado trahiu a vehemencia da impressão recebida. Depois succedeu-se-lhe no espirito outra ordem de ideias. Olhou para Magdalena, em quem não era menor a surpreza causada pela inesperada presença de Augusto, olhou outra vez para este e soltou uma risada cheia de malignidade e de ironia, que a ambos fez estremecer.

―Ahi está uma apparição tanto a tempo, prima Magdalena, que aos mais incredulos infundiria fé na intervenção da Providencia. Que foi sem dúvida providencial o acaso, que trouxe por aqui, a estas horas mortas, um tão generoso e intrepido salvador. Não é verdade, prima? O que vale estar de bem com Deus!

Estas palavras mostraram a Augusto que a sua intervenção, ainda que generosa e devida a um espontaneo impulso da alma, não fôra porventura das mais convenientes.

―Senhor!―exclamou elle, indignado, dando um passo para Henrique.

―Socegue―tornou este, com dobrado sarcasmo.―O senhor é um perfeito heroe de romance; enthusiasta, cavalheiresco, mas, em certas occasiões, incómmodo de candura, por isso mesmo. Se soubesse o transtorno que veio causar a um bello dialogo que eu sustentava aqui com a sr.a D. Magdalena! Não vê como a deixou embaraçada? Perdeu com a sua vinda o fio da comedia, que desempenhava com perfeita sciencia de actriz. As almas ingenuas e generosas, como a sua, sr. Augusto, são ás vezes de uma impertinencia! Vamos, sr.a D. Magdalena; não descoroçôe. Assim exgotou todos os recursos da sua imaginação? Vamos, introduza mais este elemento de apparição de um heroe no enredo, e organise a comedia com o superior talento que tem! Eu por mim acceito todos os papeis que me distribuir.

Augusto ia responder, quando Magdalena o atalhou, dizendo com voz firme:

―Perdão; vejo n'esta noite em todos uma notavel disposição para usurparem direitos, que não possuem! O sr. Henrique, o de me interrogar; o sr. Augusto o de me defender. A um repetirei o que já ha pouco lhe disse; se algum dia tiver necessidade de explicar as minhas acções, fal-o-hei deante de outros juizes, em quem reconheça o direito de o serem. Ao outro peço licença para lhe lembrar que, se o titulo de hospede e de parente não fôsse bastante para me assegurar da parte do sr. Henrique de Souzellas os respeitos que me são devidos, tinha ainda na minha familia defensores legitimos e não seria por isso obrigada a recorrer á protecção de um estranho. Meus senhores...

E, inclinando-se senhorilmente, a morgadinha passou por entre elles e entrou para a quinta, sem que nenhum a procurasse reter.

―Se esta senhora acceitasse a sua protecção e eu teimasse n'aquillo que chamou a minha insolencia, qual seria, pouco mais ou menos, o seu procedimento? Poder-se-ha saber?―perguntou Henrique, logo que a morgadinha desappareceu.

Augusto, em quem a fria altivez da resposta d'ella deixára o desespero no coração, respondeu acerbamente:

―Procuraria ensinal-o a ser cortez. Bem vê que não me esqueço facilmente do meu programma de mestre-escola.

―Vejo; é a segunda tentativa de lição que lhe mereço. Permitte-me que ámanhã o procure para dar principio a um curso de educação mais regular?

Augusto respondeu, sorrindo:

―É um cartel em fórma? Não sei se estarei ensaiado para essa comedia.

―Se o genero tragico lhe agrada mais, dar-se-lhe-ha esse sabor.

―Bem ouviu que se me negou o direito de tomar partido por esta causa. Qualquer scena d'essas entre nós seria pouco delicada... ámanhã.

―Pois bem, contemporisemos; e até lá é de esperar que algum motivo occorra que a explique melhor... aos olhos dos outros.

―Como queira; a minha porta não se fecha a quem me procura.

E separaram-se depois de se cortejarem.

―Se me não engano―dizia comsigo Henrique, em caminho do quarto―é um verdadeiro desafio o que eu acabo de dirigir a este rapaz. Quer-me parecer que estou sendo bem ridiculo, desafiando um mestre-escola. Se lhe deixo a escolha das armas, decide-se pela férula. Tem graça! Veremos o que ámanhã, á luz do dia, eu penso d'isto tudo. Eu já não fico por mim esta noite. Estou a querer convencer-me de que tenho andado estouvadamente e com não demasiado cavalheirismo. Que diabo! É que esta mulher e este creancelho são irritantes. Ella com a sua altivez, elle com os seus brios. Mas, na verdade, será este o Endymião d'esta esquiva Diana? Caprichos feminis... É o tal primo ingenuo e timido... A ociosidade da aldeia para alguma coisa ha de dar. Mas da maneira por que ella lhe falou... Havia certo tom de sinceridade... Astucias... O que é certo é que estou em lucta com uma mulher superior... Pois luctemos, priminha, mas com armas leaes. Não me prevalecerei do segredo que o acaso me revelou, se segredo existe... Veremos como ella ámanhã me trata...

Esta scena deixou em Augusto uma perturbação de espirito mais profunda.

As operações mentaes, que o preoccuparam toda a noite, eram d'aquellas a que repugna chamar pensar. É mais uma febre intellectual, um succeder de imagens sem ordem nem filiação, que não conduz a nenhum resultado, que não aconselha nenhum partido, que não esclarece, offusca.

Como se explica esta differença entre os dois? Por um apparente parodoxo; porque Augusto tinha mais habitos de reflectir. Quando n'uma vida de episodios uniformes e apparentemente vulgares, o espirito exerce demasiado a analyse, habitua-se a estudar factos que para outros passam por insignificantes, e descobre-lhes faces novas e desconhecidas. Costumado assim a ligar valor a tudo, quando succede que no decurso da vida se lhe depara um facto de maior vulto, a confusão do primeiro momento é inevitavel. Assim como a balança de precisão, apropriada para oscillar com pesos tenuissimos, não é a que pode servir para os grandes pesos, tambem a intelligencia costumada a pesar subtis accidentes, de que se compõe o drama habitual da vida, não é a que de subito pode avaliar algum mais complexo e importante.

A resolução n'estes espiritos, depois de formada, é mais tenaz; mas, emquanto se não fórma, vae n'elles um tumulto de ideias, que se não podem analysar.

Não analysemos, pois, as de Augusto.

Magdalena não socegou emquanto não viu Henrique voltar ao quarto, pelo mesmo caminho por que saíra.

―Que resultará d'isto?―pensava ella.―Que fará elle ámanhã?... É preciso não me acobardar, ou estou vencida... Mas que se passaria depois que os deixei?... Veremos ámanhã.

No meio d'esta serie de pensamentos, Magdalena sorriu.

É que lhe occorrera então este pensamento:

―Dizem que nós, as mulheres, temos filtros subtis para nos tornar amadas. Pois será mais difficil fazer-se aborrecida? Como o conseguirei?

FIM DO PRIMEIRO VOLUME

XVII

Não havia mentido a grande scintillação das estrellas na noite de Natal.

A manhã do dia seguinte correspondeu ao augurio meteorologico, rompendo pura, desennevoada, com um céo azul sem manchas, e um sol de fundir os gêlos dos montes e os gêlos da velhice.

O frio intenso convidava a sair, e desde pela manhã aldeões de ambos os sexos, de camisas lavadas e roupas domingueiras, atravessavam os campos, saltavam sebes e cancellos, desembocavam das azinhagas e quelhas na direcção da igreja matriz, onde se deviam celebrar as festas da Natividade.

Era dia santo entre os que mais o são; e os dias santos na aldeia teem uma feição solemne e festiva, que mal avaliamos nós, os que passamos a vida nos apertados horizontes das cidades, phantasiando o campo por meia duzia de pardaes, que chilram ruidosamente nas cópas das enfezadas arvores das nossas praças e jardins.

Desde que a moda estabeleceu a lei de não solemnisar o domingo nem o dia santo, com um vestuario mais asseiado, com um prato mais exquisito na lista do jantar, com uma diversão excepcional, que todos deram em vestir-se, comer e trabalhar n'esses dias, exactamente como em todos os da semana, perderam nas cidades os dias do Senhor a feição typica e interessante, que por muito tempo tiveram; e quem hoje bem os quizer apreciar tem de ir n'um sabbado pernoitar ao campo, para amanhecer no domingo ao som do sino, que chama para a missa matinal.

Dirá então se não parece que até o sol tem outra luz e que as arvores e as plantas se toucaram de flores novas, que guardam de reserva para os dias de festa.

Este particular aspecto do domingo estava-o logo pela manhã sentindo Henrique de Souzellas, encostado á varanda do quarto em que pernoitára, e emquanto esperava que o chamassem para o almoço.

De vez em quando a recordação das scenas nocturnas da vespera desviava-lhe para outra ordem de reflexões o pensamento; acudiam-lhe todos aquelles incidentes á memoria, mas vagos e confusos, como se tivessem sido sonhados; chegava quasi a duvidar da realidade d'elles.

Agora estava experimentando certa curiosidade e tambem receio de saber como seria recebido pela morgadinha, e que posição deveria tomar na presença d'ella.

Formava a este respeito varias conjecturas, sem se fixar em nenhuma.

D'estas cogitações veio por fim arrancal-o o toque da campainha annunciando o almoço.

―Vamos,―disse Henrique―preparemo-nos para o primeiro embate. Apuremos a vista para n'um relance julgar do estado das coisas, e por elle regular o meu plano de tactica.

E depois de uma rapida consulta ao toucador, desceu para a sala do almoço.

Já alli encontrou reunida toda a familia do Mosteiro, e a morgadinha presidindo á mesa e preparando o chá.

Todos saudaram Henrique, e a um tempo se informaram da maneira por que elle tinha passado a noite.

Henrique respondeu que a tinha dormido deliciosamente; e, falando, desviava o olhar para Magdalena, que o encontrou do modo mais natural, sem timidez nem audacia.

Seguiram-se os cumprimentos em particular, chegando portanto a vez de cumprimentar Magdalena.

―Bons dias, prima Magdalena,―disse Henrique, estendendo a mão e fixando-a com olhar investigador.

Magdalena respondeu-lhe ao cumprimento, com sorriso que nada tinha de affectado nem de constrangido:

―Bons dias, primo Henrique. Devem-lhe parecer horrorosos estes nossos habitos matinaes. Foi uma indiscreção mandar tocar a campainha. Esqueci-me de prevenir que respeitassem a indolencia cidadã.

―Eu é que não consentia:―disse o conselheiro―na aldeia como na aldeia. Em Lisboa tambem as minhas alvoradas são mais tardias.

―Tem razão, sr. conselheiro. Eu proprio não esperei que me acordasse o toque da sineta. Ha muito que eu namorava a manhã da janella do meu quarto.

―Eu não pude dormir toda a santa noite―disse D. Dorothéa.―Estranhei a cama e a casa. Eu cá sou assim, quem me tira do meu ninho!...

―Ó prima, não vá sem resposta―disse D. Victoria―que tambem eu não puz olho, e mais sou de casa. E por signal que sempre hei de querer saber quem foi o criado que lhe deu para andar toda a noite por a quinta. Eram que horas e eu ainda ouvia pés nas escadas de pedra. É verdade; o primo Henrique não ouviu? Era mesmo junto do seu quarto.

―Não, minha senhora; eu não senti rumor.

E dizendo isto, Henrique procurou os olhares da morgadinha, que justamente n'aquella occasião lhe servia uma chavena de chá, e que de novo o fixou sem perturbação nem affectada indifferença.

Henrique sentiu-se embaraçado com isto. Custava um pouco á sua vaidade este nenhum vestigio de resentimento ou de receio, que encontrava em Magdalena.

No entretanto D. Victoria continuava a commentar com D. Dorothéa o facto das passadas que ouvira de noite.

―Deixe-se d'isso, prima. É porque não sabe o que vae. São coisas d'estes criados. Não faz ideia! É uma pouca vergonha! É preciso paciencia de santa para os aturar.

―Angelo,―disse a morgadinha ao irmão―entretido como estás a conversar com as creanças, esqueces-te de servir a Christe, que tambem se esquece de se fazer lembrar. Que distracções por aqui vão!

Angelo reparou para a prima, que em todo aquelle tempo estivera calada e caida em uma d'aquellas abstracções, a que ultimamente era sujeita.

―Eu não sei que tem hoje esta Christe―disse Angelo.―Julgo que lhe fez mal o frio na noite de hontem.

―É verdade, até está falta de côr! Ora queira Deus que não seja coisa de cuidado. Dóe-te alguma coisa, menina?―perguntou D. Victoria, apprehensiva.

―Não, mamã―respondeu Christina.

―Ó meninas, vocês tambem são umas desacauteladas. Eu bem te dizia hontem, Christe, que levasses mais roupa. Tudo é não faz mal, tudo é não tem dúvida, e depois é que vem o queixarem-se.

Isto disse a senhora de Alvapenha e muitas coisas mais n'este sentido. Estas reflexões fizeram Henrique desviar os olhos para a pessoa que era objecto d'ellas.

Christina estava effectivamnte pallida e pensativa; e d'esta côr e d'esta expressão recebia uns ares de poesia melancolica, que a tornava mais graciosa.

Henrique notou pela primeira vez a belleza d'esta creança, em que mal fixára a attenção até alli, e pela primeira vez se demorou a observal-a com alguma insistencia.

―É interessante esta pequenita―pensava elle comsigo.

Christina ia a levantar os olhos para responder a D. Dorothéa, quando encontrou os de Henrique a fital-a. Assomou-lhe então ás faces um mal pronunciado rubor, a palavra resolveu-se n'um sorriso e os olhos baixaram-se de novo.

―Ha de ser adoravel esta mulher―pensou d'esta vez Henrique, vendo-a sob novo aspecto.

O conselheiro disse, sorrindo:

―Ora, que estão a dizer? A Christe até está com umas côres muito bonitas. Triste? Melancolias dos dezoito annos nunca me deram cuidados. Provavelmente está agora n'algum episodio sentimental no romance da sua imaginação. Não sondemos aquelles mysterios, mana. Já não é para nós comprehendel-os, prima Dorothéa.

Todos riam do dito do conselheiro, o que redobrou o enleio de Christina.

A morgadinha, a quem não passára despercebida a impressão, que a prima d'está vez parecia ter causado a Henrique, quiz aproveitar o ensejo que havia tanto procurava, e para isso propoz que se désse uma volta pela aldeia antes da missa do dia. Esperava ella que as attenções de Henrique, durante o passeio, seriam para Christina, se não decorresse o tempo preciso para que se dissipasse no espirito do voluvel rapaz a impressão que o dominava.

A manhã convidava á excursão campestre. A proposta da morgadinha foi acolhida com applauso. O conselheiro prometteu acompanhal-os até á casa do herbanario, a quem tinha de visitar aquella manhã.

Levantaram-se todos da mesa, e á excepção de D. Victoria e D. Dorothéa, todos saíram.

A morgadinha, sob não sei que pretexto, deixou-se ficar um pouco atraz para dar tempo a Henrique de offerecer o braço a Christina, o que effectivamente aconteceu.

―Bem,―disse Magdalena comsigo ao vêl-os―agora que os anjos bons de um e de outro se convençam da obra meritoria que fazem entendendo-se.

E, approximando-se do pae, Magdalena apoiou-se-lhe no braço.

Angelo ia com as creanças adeante.

Approximemo-nos nós de Henrique e de Christina, para vêr se os anjos bons d'elles ambos accederam ao convite de Magdalena.

―Não ha prazer que se compare ao de um passeio assim pelos campos, n'uma manhã como a de hoje, e em companhia tão amavel―dizia Henrique, procurando aquilatar o espirito da sua partner, n'um certame de galanteria, fóra do qual não concebia que se pudesse temperar uma paixão.

Pobre rapariga! Que eloquentes e apaixonadas respostas lhe estava porventura ditando a alma! mas o enleio da timidez fechava-lhe os labios, não lhe deixando formulal-as; apenas pôde responder:

―Está muito agradavel a manhã, está; nem parece de inverno!

―Pelo que vejo, não gosta do inverno? É natural em uma senhora isso. Faltam-lhe as flores e as aves, suas irmãs. Eu prefiro o inverno, porque prepara a vida intima, as scenas ao canto do fogão, as leituras em commum, e traz-me á ideia as imagens de um viver a que a phantasia de todos sorri; de todos os que teem um resto de coração; refiro-me ás imagens de uma familia.

Não ha quem sustente mais tremendas luctas do que os timidos. A alma revolta-se n'elles, com toda a violencia dos seus instinctos, contra não sei que mysterio de temperamento, que lhes reprime as expansões. Na apparencia é fraqueza e serenidade, mas no intimo ha esforços realisados, que os fortes nem concebem sequer.

Christina encobria no seu enleio uma d'estas luctas. Os labios só puderam responder:

―Na cidade o inverno é mais facil de passar, julgo eu; porém na aldeia...

―Na aldeia e em toda a parte se pode gosar a felicidade que eu imagino. Não é fóra das portas de casa que devemos procurar os elementos para instituir a nossa ventura, e por isso... Mas a prima ha de estar admirada de ouvir falar assim um homem que completou os seus vinte e sete annos sem familia. Não é verdade?

Christina só pôde sorrir:

―Mas que quer? Quem muito idealisa arrisca-se a morrer apaixonado do ideal e abraçado á peor das realidades. É a consequencia legitima e triste do aspirar demasiado. Até hoje tenho encontrado na vida mulheres formosas, amaveis, interessantes; porém nenhuma que satisfizesse ás necessidades do meu coração, de quem me affirmasse a consciencia poder esperar a realisação do meu sonho. Perdôe-me falar-lhe n'isto, priminha; é uma ousadia que tomei, porque um instincto me disse que possue no coração bastante bondade para m'a perdoar.

―Está a gracejar?―disse Christina, em quem redobrava a turbação, e que, ao mesmo tempo que estava sendo feliz, desejava vêr interrompida a sua felicidade: contradicções proprias dos timidos.

―A prima é muito moça―continuou Henrique, que não desesperava ainda de animar esta Galatheia―e talvez por isso lhe causará estranheza este meu modo de falar. Um dia virá, porém, em que o comprehenderá melhor. Se então encontrar um desconfortado como eu, peço-lhe que tenha misericordia d'elle e o salve do desalento, em attenção a quem a conheceu n'uma época, em que só podia vêr em si, priminha, a aurora de uma esperança que já não tinha de luzir para elle.

―Mas... salval-o!... como salval-o!...

―Como as mulheres salvam; amando.

―Bem digo eu que está a gracejar―balbuciou Christina, com voz trémula.

―Tem o defeito da innocencia―disse Henrique para si.―Não se lhe tira uma resposta de geito.

N'isto chegaram defronte da porta, por onde Magdalena tinha saído da quinta na noite passada.

―Agora deixo-os por aqui―disse o conselheiro―irei encontral-os á igreja. Vou arrostar com a fera silvestre ao proprio covil.

―Meu pae, lembre-se do que lhe recommendei―disse Magdalena.

―Socega, filha; serei de cera. Até logo.

―Até logo.

E o conselheiro tomou a direcção da casa do herbanario.

―Era tempo!―disse Henrique comsigo.―A minha eloquencia arrefecia na proximidade d'este gêlo.

A morgadinha havia quasi adivinhado tudo; estudando as physionomias de Christina e de Henrique, conheceu que se não haviam entendido.

―Ainda não!―murmurou ella.―Pobre Christe! como se deve estar odiando a si mesma! Como ha de esta creança vencer este obstinado? Mas não perco ainda as esperanças.

Henrique, na presença d'estes sitios, recordou-se da scena da vespera e tentou outra vez experimentar Magdalena.

―Esta porta é da quinta do Mosteiro, não é, prima?

―É―respondeu Magdalena, imperturbavel; e voltando-se para Angelo:―O que te faz lembrar esta porta, Angelo?―perguntou ella.

―Que muitas vezes por aqui saímos, eu e vós ambas já de noite, e sem a tia saber, para irmos ter com o tio Vicente, que voltava da caça das borboletas.

―Fica perto a casa d'elle?―perguntou Henrique.

―É alli, logo ao dobrar d'aquella esquina―respondeu Angelo.

Henrique pensava:

―Seria para provocar uma explicação que ella fez a pergunta? Esta mulher é admiravel! Não lhe sei resistir.

E já lhe não restavam vestigios da impressão causada por Christina.

―Este herbanario―continuou elle em voz alta―deve, pelos seus habitos excentricos e até pelo solitario do sitio em que vive, ter aqui na terra certa famazinha de feiticeiro.

―E tem,―affirmou Magdalena―mas de feiticeiro bem intencionado.

―Devem correr muitas fabulas a respeito d'elle, do seu viver.

―É certo que poucos se atrevem a passar aqui de noite, apesar de todo o bem que elle faz de dia.

―Ah! Então temem-se de passar aqui de noite!... Pobre homem!... O que lhe valerá é algum espirito forte que ainda por ahi haja, na aldeia. Que diz, prima Magdalena? haverá?

Antes que a morgadinha respondesse, Angelo disse:

―Á excepção de Augusto, que ahi vem quasi todas as noites, ninguem mais o visita.

―Ah!... O sr. Augusto vem ahi quasi todas as noites?!

Magdalena luctava para reprimir a impaciencia.

―Lá me parecia que havia de existir algum de coragem. Para tanto não chegava o seu animo não, prima?

―Tanto chega, que já muita vez alli tenho ido só, e a altas horas―respondeu Magdalena com a maior firmeza.

―Sim?! E não tem mêdo?

―De quê? De almas do outro mundo? não tenho crença para tanto. De malfeitores? não os ha aqui. N'esta terra todos me respeitam, nem com uma suspeita me offendem―disse a morgadinha, accentuando com expressão as ultimas palavras.

Henrique acudiu immediatamente:

―Longe de mim duvidal-o.

E calaram-se por muito tempo.

Pela sua parte proseguia o conselheiro no caminho para casa do herbanario. Cruzou-se com varios homens, mulheres e creanças de aspecto doentio e soffredor, que voltavam de consultar o velho a respeito dos seus males; eram mancos, ictericos, escrofulosos, creanças de aspecto rachitico e enfezado, os mais melancolicos exemplares do infortunio humano.

―São os peregrinos que veem de Meca―disse comsigo o conselheiro.―Pelo que vejo a clientela do meu velho amigo herbanario mantem-se fiel, como d'antes. Valha-nos Deus, que o meu severo censor não trata com muito respeito o codigo.

Entrou emfim a porta do quintal.

Poucos passos andados encontrou-se com o Zé P'reira, que vinha virando e revirando nas mãos um papel e monologando, segundo o costume:

―Ora! ora! ora!... Estragar o vinho de nosso Senhor com esta mexerofada! Isso até era um peccado. N'essa não caio eu!

O conselheiro interrogou-o sobre as causas d'aquelle aranzel.

O homem, depois de cortejar, respondeu mostrando uma receita que lhe dera o herbanario no virtuoso intento de lhe fazer aborrecer o vinho, causa dos seus males. A receita era extrahida da Polyantheia, e tinha por ingredientes uma cabeça e sangue de carneiro, cabellos de homem e figado de enguia; mas o doente ia pouco disposto a experimentar-lhe a efficacia.

Depois de se separar do Zé P'reira, o conselheiro seguiu por uma rua de limoeiros, e como homem a quem era familiar a topographia do quintal. Cêdo chegou á vista do herbanario, que dera audiencia sub tegmine fagi.

Estava sentado á borda de um tanque, a que uma d'essas arvores dava sombra.

O conselheiro saiu emfim de traz dos limoeiros e veio ter com elle.

Ao rumor dos passos, Vicente voltou a cabeça, e, depois de reconhecer quem era, retomou a sua primeira posição e ficou silencioso.

―Bons dias, Vicente―disse o conselheiro com familiariedade e parando defronte d'elle.

―Bons dias, Manoel―respondeu o herbanario, deixando-se ficar sentado.

―Saía agora d'aqui um homem, que julgo será rebelde a toda a tua medicina. Padece de mal que se não cura.

―Os vicios são enfermidades mais rebeldes do que os achaques do corpo, são.

―Já que tu não appareces no Mosteiro, como d'antes, para solemnisar comnosco as festas do Natal, vim eu vêr-te.

―Obrigado.

―A tua misanthropia vae-se azedando, Vicente―continuou o conselheiro, sentando-se á beira do tanque.―Cada vez te estás a sequestrar mais dos homens, cada vez mais os aborreces.

―Eu não aborreço os homens, enganas-te. Não os aborrece quem passa a vida a procurar os meios de alliviar os padecimentos dos seus semelhantes. Estou velho, isso sim; e, como velho, encontro já no mundo pouca gente com quem me entenda. As ideias do meu tempo passaram. Por isso deixo-me ficar em casa a pensar n'elle.

―És um homem singular; um verdadeiro philosopho. Ora dize-me: e em que cogitas tu, quando assim passas uma manhã inteira, sentado n'esse banco, com os joelhos ao sol, os braços cruzados, e os olhos no chão?

―No passado. Pois não t'o disse já? O domingo reservo-o eu para me recordar. Ahi está que ha pouco, quando aqui me vim sentar, ao ouvir os repiques na igreja, lembrei-me de que era, dia de Natal, e o meu pensamento voltou quarenta annos atraz a um dia igual ao de hoje. Lembras-te d'elle, Manoel?

―Do dia de Natal de ha quarenta annos? Não.

―Lembro-me eu. Faz hoje mesmo quarenta e dois annos que, mais cêdo do que estas horas, vieste ter commigo aqui a casa. Tinhas pouco mais ou menos a idade que hoje tem teu filho Angelo. Meu pae saíra; julgámos nós ambos boa a occasião de levar a cabo um projecto que havia muito tempo traziamos na cabeça. Crescia a um canto do muro, além, á beira do poço, uma pequena faia que alli não podia durar muito tempo; meu pae todos os dias a ameaçava com a enxada e a custo a tinhamos defendido. Resolvemos transplantal-a. Deitámos mãos á obra essa manhã, e, no fim de alguns segundos, estava a faia mudada. Trouxemol-a para onde a deixassem em paz os hortelões, e para junto da agua que ella já tinha procurado. Conheces a arvore hoje?

―Não―disse o conselheiro, olhando em roda, como á procura de algum pequeno arbusto.

―Olha que ha quarenta annos; a planta é hoje arvore. É esta a que me encosto.

O conselheiro levantou então os olhos para os ramos vigorosos da arvore, como se lhe parecesse impossivel ter sido removida para alli por suas mãos.

―É singular como os annos correm, e as arvores crescem depressa―disse elle, distrahidamente.

―Depois da nossa tarefa, sentámo-nos―proseguiu o herbanario.―Tu ficaste, exactamente como estás agora, á beira d'este tanque. Então, lembra-me bem; olhando para os ramos tenros d'este arbusto, que ainda não sabiamos se viveria, tu disseste: «Fizemos uma obra que durará mais do que nós.» E eu respondi: «Quem sabe? O machado vem, quando menos se espera.»

―Como te lembras bem d'essas coisas!―disse o conselheiro, sorrindo constrangidamente, porque não agourava bem do exordio que abrira a entrevista.

―Ai, eu tenho boa memoria!

Houve um momento de silencio, que Vicente interrompeu subitamente, dizendo:

―Mas a final o que te trouxe hoje aqui?

O conselheiro respondeu com resolução:

―Vêr-te, como disse, e ao mesmo tempo falar-te de um objecto grave.

―Sim? E commigo é que vens tratar os objectos graves?

―Por que não? sempre foste homem de bom conselho.

―Nem sempre, Manoel, ou nem sempre pensaste assim.

―Não poderás dizer que deixasse alguma vez de te respeitar. Os nossos genios differem, os nossos diversos habitos da vida ensinaram-nos a pensar diversamente a respeito de muitas coisas. D'ahi procedem divergencias naturaes, que comtudo nos não obrigam a deixar de nos estimarmos, julgo eu.

―Bem, então dizias tu que vinhas?...

―Trata-se de um negocio de muita importancia, Vicente.

―Dize.

―Responde-me primeiro: tens ainda animo para sacrificios?

―Pouco tenho que sacrificar.

―Tens, e é um sacrificio doloroso.

―Acaba.

―Trata-se de te desapossar d'esta casa e d'este quintal, para abrir por aqui a estrada em projecto.

O herbanario, contra a expectativa do conselheiro, acolheu sem surpreza estas palavras, e respondeu, com certa ironia:

―E para que me vens consultar? Posso eu oppôr-me a isso? Avisas-me para eu me arredar a tempo da sombra d'estas arvores, mais velhas do que eu, a fim de que não me esmaguem ao caírem decepadas? És generoso, Manoel, em teres ainda em conta a vida de um homem inutil.

―Ahi estás já com as tuas recriminações. Acredita que eu...

―Não mintas, Manoel, não mintas. Ias dizer que não tinhas tomado parte n'este projecto. Tem coragem e lealdade, homem, e dize tudo. Entre mortificares o coração de um velho e pobre amigo e offenderes os interesses de algum rico e poderoso influente, tomaste o primeiro partido; e, como os differentes habitos de vida te ensinaram em muitas coisas, como dizes, a pensar differente de mim, não déste a isso o nome de ingratidão.

―Ouve.

―Sê franco, que eu te ouvirei.

―Pois bem, serei franco. Sim, confesso-t'o; era indispensavel que esta estrada se fizesse. Bem o sabes. Estava n'isso empenhada a minha palavra e a minha honra. Ha muito que os meus adversarios me fazem guerra por causa d'ella. Trabalhei e consegui, apesar d'esta situação politica me ser contraria. Tres traçados se offereciam. Um sacrificava uma grande parte dos bens de meus filhos, de Angelo que não é muito rico, que está no principio da existencia e que só Deus sabe se no decurso d'ella não teria occasião de maldizer a imprevidencia de quem devera olhar por os seus interesses. Querias que o sacrificasse? Sabes que os Brejos, vendidos hoje, nada valiam; e que dentro em pouco tempo, convenientemente trabalhados, podem ser de um valor importante. Querias que o fizesse? ou não me desculpas por o não ter feito?

―Fizeste bem―respondeu o herbanario.

―O outro traçado cortava os bens do brazileiro Seabra. Conheces este homem? Um elemento que, nas mãos de quem lhe saiba lisonjear e conduzir a vaidade, pode ser de utilidade para esta terra; mas tambem uma cabeça que, entregue a si, não faz coisa de geito. O homem oppunha-se formalmente a esse traçado; se o não attendesse, declarava-se, por despeito, no campo contrario ao meu. Se vencia (e algumas armas tem para luctar), imagina a calamidade que seria para este circulo o confiar áquellas mãos os seus destinos; vencido, era perder a esperança de tirar dos bem fornecidos cofres, que o homem possue, alguma coisa mais util do que um sino para a igreja ou vestimentas novas para as imagens dos altares. Eu ando a catequisar o homem, para vêr se consigo d'elle uma casa para escolas, melhor do que esse albergue que ahi temos, e um estabecimento sericicola; se o desattendesse, lá iam as esperanças d'estes melhoramentos tão uteis, e que o mais que nos poderão custar é um diploma de visconde ou uma commenda. Sei que te não agradam estes meios, porém olha que em politica são dos mais innocentes que podem empregar-se. Já vês pois que o segundo traçado tinha desvantagens para o circulo, por cujo interesse me empenho devéras; podes crel-o. Resta pois o terceiro traçado que, lealmente o confesso, não era o melhor, nem scientifica nem economicamente considerado; eu sabia de mais o que valia para o teu coração o sacrificio que se te vinha exigir; eu mesmo possuo memorias ligadas a estas arvores, e não ha homem que, aos cincoenta annos, veja sem repugnancia desapparecerem os vestigios dos seus tempos de infancia e de juventude; mas sabia tambem que tu eras uma alma generosa e heroica, e que não duvidarias comprar, á custa das tuas dores e saudades, um melhoramento para esta terra, que tanto amas. Esta estrada, promettida ha tanto, e concedida ainda agora de má vontade, corre risco de se não fazer, se, quanto antes, não principiarem os trabalhos; a menor opposição dos proprietarios, o menor embargo dilatorio, podem ser motivo para o seu adiamento, porventura indefinido. Por isso tambem me animei, porque contava comtigo, Vicente. Enganei-me?

O herbanario estava cada vez mais pensativo.

―Pensaste bem. A velhice é assim; e eu queria dar mais importancia a dois annos de vida que me restam, do que á vida nova que vae haver para esta terra. Fizeste bem.

―Esperava ouvir isso mesmo de ti, Vicente. Além de que, dissipa as apprehensões com que estás; em toda a parte terás arvores...

O herbanario interrompeu-o:

―Se não entendes o amor que eu tenho a estas, não faças por consolar-me, Manoel, porque me affliges mais.

―Porém deixa-me dizer-te, Vicente, que no Mosteiro, ou em qualquer das nossas propriedades, tens sempre um logar vago á tua espera, tanto á mesa, como ao canto do fogão, e amigos que te receberão com prazer.

―Não receio ficar sem abrigo, Manoel. Em cada choupana de pobre teria tecto e pão. Conto com a colheita de algum bem que semeei.

―Eu farei com que o contracto da expropriação seja o mais favoravel possivel. Vejamos, em quanto avalias...

―Não falemos n'isso. A avaliar por o que eu lhe quero, ninguem m'o pagaria; a não attender a isso, tudo será pagal-o bem.

―Mas...

―Não falemos n'isso, homem. Tenho medo de que estas arvores me ouçam propôr o preço por que as vendo. Se alguma coisa posso pedir-te, então...

―Tudo. Dize em que te posso servir.

―Peco-te que decidas a pretenção d'aquelle pobre rapaz, de Augusto; que te lembres um dia de que aqui na aldeia ha um homem, que tem vinte annos, um coração e uma cabeça como tu sabes, e que de ti e dos teus, da gente que dá e vende graças, honras e empregos, só quer um favor... mais uma justiça: lembra-te d'isso.

―Falas do despacho effectivo para professor? É uma coisa facilima; mais que elle queira... E antes elle quizesse mais; esse rapaz perde por modesto. Acredita, ás vezes é mais facil servir os ambiciosos. Nem eu sei o que tem empatado esse negocio. É certo que ha um competidor, por quem alguem trabalha; mas não importa; conta com isso, como negocio concluido.

―Emquanto não vir...

―Hoje mesmo escrevo para Lisboa. É só isso que pedes? Vê lá.

―E que me deixes agora só.

―E não me ficas querendo mal, Vicente?

―Não. Estou a acreditar que tiveste razão, ou pelo menos que suppões que a tens. Basta-me isso para te perdoar.

―Vêr-te-hei no Mosteiro antes de partir? Depois do dia de Reis volto a Lisboa, e só tornarei para a campanha eleitoral.

―Não prometto.

―Adeus.

O conselheiro estendeu a mão ao herbanario, que não retirou a sua, e partiu.

―Está feito!―ia pensando o conselheiro á saída―não foi tão difficil como julgava. Está razoavel o homem. Quem o viu e quem o vê! O que faz a idade! Bem! Agora é apressar os trabalhos para antes das eleições, a vêr se acalmam algum fermentosito de opposicão, que por ahi possa haver, que pequeno será.

N'estas cogitações chegou á igreja. Magdalena esperava-o no adro.

―Então?―perguntou ella, com anciedade.

―Tudo está remediado; entendemo-nos perfeitamente―respondeu o conselheiro, com manifesta satisfação.

―Devéras! Eu logo vi que o pae havia de ceder!―exclamou Magdalena, com alegria.

―Como ceder?―tornou o pae.―Elle é que foi mais condescendente do que eu esperava. Não oppôz a menor resistencia, nem se queixou muito amargamente.

―Pois consentiu?!

―Sem grande custo, ao que parecia.

―Ó meu Deus! meu Deus! agora é que eu temo devéras. Pobre tio Vicente! assusta-me isso que diz, meu pae!

―Ora vamos; a tua imaginação é que te illude. Mas deixa-me aqui falar com o morgado das Perdizes e com o brazileiro, que julgo que teem que me dizer. Vae para a igreja, que eu vou já ter comvosco.

E separando-se da filha, o conselheiro dirigiu-se ao grupo, em que estavam aquellas duas notabilidades.

―Dou-lhes uma boa nova, meus senhores―disse o conselheiro, depois de cumprimental-os―dentro em pouco temos os alviões a trabalhar cá na terra. Estive agora com o Vicente; receei resistencias da parte do homem, que nos obrigassem a expropriações judiciaes, sempre demoradas. Mas não, achei-o nas melhores disposições; e assim, dentro em poucos dias...

―Mas, para deante da casa d'elle, talvez os outros proprietarios não sejam tão doceis―lembrou o brazileiro.

―Bem sabe que são terras insignificantes, cujos possuidores com pouco se contentam.

―Os antigos possuidores talvez se contentassem com pouco―disse o brazileiro, sorrindo velhacamente―mas os modernos...

―Pois mudaram de senhorio?

―Por contracto de venda assignado e legalisado hontem mesmo.

―E quem os comprou?

―Este seu criado.

O conselheiro teve vontade de o esganar; conteve-se, porém, dizendo:

―Tanto melhor; quero-me antes com proprietarios illustrados e independentes, que comprehendam a importancia dos melhoramentos publicos, do que...

―Isso historias, meu caro amigo; em primeiro logar estão os melhoramentos particulares. Eh, eh, eh.

―De certo que não ha de querer pôr estorvos a uma empreza como esta.

―Estorvos, não, mas emfim... Amigos, amigos, negocios á parte.

O conselheiro sorriu, emquanto que interiormente mandava ao diabo o espirito mercantil e interesseiro do seu antigo condiscipulo.

―Pode-me dar duas palavras, sr. conselheiro?―requereu do lado o sr. Joãozinho das Perdizes.

―Mil que pretenda―acudiu o conselheiro; e tomando o braço do morgado afastou-se do grupo.

―Eu tenho a pedir-lhe um favor―principiou o morgado.― Eu, como sabe, interesso-me muito pelo mestre-escola do Chão do Pereiro, que quer vir ensinar para aqui. Este negocio está empatado, como sabe; por isso queria que o senhor escrevesse para Lisboa a este respeito.

―Pois sim, mas...―fez-lhe notar o conselheiro―não sabe que é Augusto o outro concorrente?

―Então que tem isso?

―Não lhe parece que seria uma injustiça? Um rapaz de merecimento, como elle é, aqui da terra, que já exerce o emprego ha tres annos e com tanta intelligencia? e haviamos de...

―É verdade,―atalhou o outro―pois isso é verdade, mas... Emfim, elle que passe para outra parte.

―Mas se o rapaz quer isto?

―Quer! quer!... tambem o outro quer. Ora essa é fresca. E vamos, sr. conselheiro, a gente tambem não ha de estar só a fazer favores, sem os receber quando os pede. Com este já são tres. Pedi-lhe para o meu tio abbade ser conego; foi tanto conego como eu. Pedi umas caudelarias lá para a freguezia... estou á espera d'ellas... Ora isto não se faz. O senhor sabe que eu lhe tenho vencido as eleições com a gente da minha freguezia, que vae para onde eu a levo. Pois agora não sei o que será. A não se decidir este negocio depressa...

―Ora não será isso motivo para tanto.

―Com certeza que é―insistiu o sr. Joãozinho.―Então digo-lhe mais: a mim já me falaram. Ha ahi alguem que não desgostaria dos votos de que eu disponho, e votar pelos que já estão no poleiro não sei se lhe diga que não é peor.

O conselheiro, mortificado como estava, disse, sorrindo:

―Não posso convencer-me de que o meu amigo seja capaz de fazer isso por qualquer causa que possa dar-se. Mas deixe estar que, em relação ao que me diz, eu verei.

―Mau! Não é «eu verei». Então falo-lhe claro. Se d'aqui até ás eleições não estiver feito o despacho, não conte commigo.

―Mas quem lhe diz que não ha de estar?

―Pois lá isso...

―Socegue. Hoje mesmo escrevo para Lisboa.

―Bem.

O sino tocava a chamar para a festa.

Terminou o dialogo.

―O peor―ia pensando o conselheiro―o peor é que prometti ao Vicente que apressaria o despacho de Augusto. Não tem dúvida; é tão magra a posta, que não vale a pena disputal-a. Para Augusto arranjarei alguma coisa melhor. É preciso ter ambição por elle. Se elle quizesse ir para Lisboa?... Mas, pelo que me disse este basbaque, já se maquina no campo contrario! Hei de sondar o Tapadas, a vêr o que sabe.

Estas conferencias com o brazileiro e com o morgado tinham mortificado o pae de Magdalena a ponto de não conter um movimento de impaciencia, assim que viu que o Pertunhas se approximava d'elle, e, á fôrça de cortezias e cumprimentos, lhe pedia um momento de attenção.

Sabidas as contas, tratava-se do tal emprego de recebedor, que o latinista com tanto ardor namorava.

O conselheiro descarregou sobre este pouco influente eleitor o mau humor que os outros lhe causaram, e respondeu desabridamente:

―Ora adeus! O senhor é uma sanguesuga que se não farta de chupar. Contente-se com o que tem; vá conjugando o laudo, laudas, que outros, com mais merecimentos, nem isso conseguem; e deixe-me.

O mestre Pertunhas ouviu com humilde sorriso a admoestação, e curvou-se para deixar passar o conselheiro.

Mas lá comsigo dizia:

―Sim? Elle é isso?! Pois veremos se a sanguesuga te não pica.

E entrou tambem para a igreja, com não muito christãs disposições de espirito.

XVIII

Do dia de Natal ao dia de Reis passou o tempo para o conselheiro em visitas ás freguezias e aos influentes d'aquelle circulo eleitoral, visitas a que o acompanhava Henrique de Souzellas, que tomava parte, com gôsto, n'estas excursões politicas.

Em casa do sr. Joãozinho das Perdizes, na freguezia de Pinchões, passaram elles um dia. Nos solares do morgado tudo era desordem e desmazelo; a cada passo se tropeçava n'um podengo ou se trilhava a cauda a um perdigueiro. Henrique sustentou uma verdadeira lucta com o proprietario, para esquivar-se a engulir todas as enormes dóses de carne de porco e de vinho, com que elle, á viva fôrça, o queria regalar.

No quarto em que os hospedes pernoitaram estavam amontoados no meio do chão uns poucos de alqueires de milho e de castanhas, e aos pés dos leitos dormiram enroscados dois galgos, que elles não conseguiram desalojar, e que toda a noite os incommodaram com latidos ao menor rumor que escutavam fóra.

Henrique lamentou a influencia eleitoral do morgado das Perdizes, que o obrigava a esta noitada.

Outro dia jantaram em casa do brazileiro, que lhes mostrou toda a sua propriedade, tendo Henrique de obrigar a sua eloquencia a esgotar-se em affectadas exclamações, deante dos prodigios de mau gôsto reunidos alli.

As estatuas de louça, os alegretes de azulejo, os arcos feitos de cana, por onde se entrelaçavam magras trepadeiras; um pequeno modelo de fragata brazileira com tripulação de altura dos cestos de gavia, fluctuando n'um tanque circular; uma gruta estucada de azul e com assentos de palhinha, para onde vinha ler as folhas o sr. Seabra, eram as principaes maravilhas do jardim. Nas salas mobilia rica, mas vulgar; lithographias coloridas em custosas molduras douradas; bordados, diplomas de socio de não sei quantas sociedades brazileiras; tudo encaixilhado, e no logar de honra a estampa das capellas do Bom Jesus de Braga. Á impertinencia de admirar estas preciosidades accrescia a de ouvir e de ter de achar graça a um papagaio que cantava o hymno brazileiro.

Henrique saíu de lá exhausto de paciencia.

Com estas visitas politicas, passou, como dissemos, todo o periodo das festas do Natal, sem que entre as personagens da nossa historia occorresse coisa que mereça nota.

Entre Magdalena e Henrique mantinha-se a mesma lucta moral; nem um nem outro recordavam declaradamente a scena nocturna, em que tão acerbas palavras se haviam trocado. Augusto não voltára ao Mosteiro desde então. Era tempo de férias para as creanças, o que fazia natural esta ausencia, contra a qual Angelo em vão protestava. Magdalena nunca porém alludia a ella. Christina passava o tempo, querendo-se mal por a sua timidez, e de quando em quando amuando de ciumes com Magdalena, que ria d'elles e os dissipava com uma palavra.

Chegou emfim o dia de Reis, aquelle em que devia realisar-se no pateo do Mosteiro o auto que, havia muito, mestre Pertunhas andava ensaiando.

Henrique e D. Dorothéa vieram jantar ao Mosteiro, e ficaram para assistir á solemnidade popular.

Já por vezes temos ouvido falar n'este auto, que promettia ser coisa memoranda nos annaes dos festejos publicos da terra. Havia mezes que o sr. Pertunhas esgotava os thesouros da sua sciencia dramatica a ensaial-o, e vimos com antecipação andar Ermelinda decorando a parte da Fama, que lhe competia desempenhar.

Estes autos e entremezes, que nas aldeias se representam, são como os restos grosseiros que da nossa arte primitiva a varredura estrangeira deixou ficar pelo chão.

Não obstante as extravagancias e as modelações toscas e risiveis de muitos, é certo que nos mostram que a Euterpe rustica tem conservado mais fiel a indole peninsular, do que sua irmã, a civilisada musa das cidades, a cujo paladar já sabem mal as popularissimas redondilhas, tão apreciadas ainda na Hespanha.

Em occasiões de festa levanta-se em qualquer terreiro ou pateo de quinta um tablado; veem adornal-o as mais vistosas colchas de chita, das quaes tambem se formam os bastidores; alugam-se nos depositos mais modestos da cidade ou villa proxima vestidos de reis, de principes e de guerreiros, em que se combinam os elementos de épocas e de nacionalidades disparatadas, e perante uma plateia rustica, ao ar livre, como no theatro antigo, desfiam-se em cantada choradeira as sentimentaes peripecias da vida de qualquer santo, ou, entre gargalhadas, os episodios comicos do algum enredo popular.

A circumstancia de ser o auto d'esta vez desempenhado no pateo do Mosteiro, e que fôra em parte por deferencia ao deputado do circulo, em parte por conveniencia dos emprezarios, pela apropriação do terreno a todos os effeitos, e pela ajuda de custo, que sempre em taes casos recebiam de s. ex.a, essa circumstancia, dizemos, augmentava o numero de espectadores.

Das janellas do Mosteiro gosava-se, como de um camarote de frente, do espectaculo popular.

O terreiro era destinado para o povo, em grande parte attrahido tambem pela pipa de vinho, que o conselheiro n'estes dias mandava pôr á disposição dos seus representados.

Desde a vespera havia grande agitação e azafama no pateo do Mosteiro. Os artifices levantavam o tablado scenico; pregavam e despregavam taboas; serravam barrotes; os directores, e á frente d'elles o infatigavel e imaginoso Pertunhas, davam ordens contradictorias; e os curiosos estacionavam em magotes, difficultando tudo, censurando o que viam fazer, e aventando alvitres absurdos.

Herodes, o pae de Ermelinda, andava em brazas. Approximava-se a hora dos seus triumphos. O genio dramatico palpitava n'elle, cheio de, vida e de enthusiasmo.

Ia mais uma vez pousar nos hombros o manto da realeza judaica; brandir a espada infanticida, carregar aquelles sobrecenhos com que fazia chorar as creanças e estremecer as mães; ia resuscitar Herodes, o déspota legendario.

Trabalhando e suando, resmoneava os versos do seu papel de tyranno e insensivelmente fazia gestos e esgares promettedores de effeitos scenicos futuros.

Os seus collegas eram menos ardentes pela arte. O Herodes olhava-os com a sobranceria de um Talma, e muitas vezes lamentava sinceramente a ausencia de vocações dramaticas que auxiliassem a d'elle.

E não sorriam os leitores a esta velleidade artistica do recoveiro; alli havia fundamentos para ella. O Cancella era o minerio de um tragico, deixem-me assim dizer. No meio de uma escoria de rusticidade continha abafado mineral de lei.

Tivessem sido outras as contingencias da sua vida, vêl-o-hiam porventura arrebatar plateias inteiras com as revelações do genio, que ás vezes n'um grito, n'um sorriso, n'um gesto se manifesta; mas ainda assim inculto, não mentia n'elle o verdadeiro enthusiasmo, o sentimento da arte que lhe afogueava as faces e os olhos, e lhe animava o gesto no calor do desempenho; não mentia aquella embriaguez que lhe causavam os applausos da multidão. Não ha verdadeiro genio artistico, que se não namore do publico, embora o saiba caprichoso, inconstante e ingrato. O homem, indifferente aos applausos das turbas, nunca será poeta nem artista de verdadeira inspiração. O amor vivo da gloria adeantou a meio caminho os emprehendedores d'esta nova conquista de vellocino.

Ermelinda, essa tremia com a commoção de artista novel, á lembrança do espectaculo, em que pela primeira vez ia entrar.

As senhoras do Mosteiro, ou antes Magdalena e Christina, tinham querido encarregar-se da toilette da Fama.

Logo de manhã fôra pois a pequena Linda para o Mosteiro, e passava das mãos de Magdalena para as de Christina e das d'esta para as d'aquella, e sempre com recato preciso para que ninguem mais lhe puzesse os olhos, pois que pretendiam reservar para a occasião a surpreza toda. Contra a curiosidade de Angelo é que mais tiveram que luctar.

Logo depois da uma hora da tarde começou a povoar-se o pateo de espectadores e, os actores a reunirem-se na parte do tablado, occulto por as colchas de chita aos olhares da multidão.

Principiava a ensaiar os instrumentos o pessoal da philarmonica, dirigida por mestre Pertunhas, cuja trompa celebre servia tambem de batuta.

Chiava já o clarinete, assobiava o flautim, roncava o figle, uivava a flauta, e todos promettiam aos ouvidos a mais inharmonica das torturas.

Mestre Pertunhas, distribuidas as partituras, e vendo todos a postos, deu o signal de principiar.

Um, dois, tres; um, dois―dizia ou fazia elle com os olhos e com os movimentos da cabeça e pés, porque a bôca, essa já estava applicada á embocadura da trompa. O segundo «tres» era o tempo fatal. Os musicos, porém, ou por distrahidos, ou por a commoção propria dos actos solemnes, não corresponderam ao signal, e a nota furiosa, extrahida da trompa do mestre Pertunhas, achou-se só no espaço, e fugiu envergonhada a esconder-se na concavidade dos montes vizinhos, deixando na passagem os ouvidos quasi em sangue.

Este successo foi saudado com uma gargalhada geral, que redobrou quando as notas dos outros instrumentos, vendo partir desacompanhada a nota chefe e reconhecendo a falta, saíram alvoroçadas atraz d'ella, cada uma por sua vez. Foi uma debandada musical de indescriptivel effeito.

O auditorio, o sempre implacavel auditorio popular, apupava. Henrique e o conselheiro riam, os actores do auto espreitavam detraz da cortina a vêr o que era aquillo. Mestre Pertunhas barafustava por entre os da banda, berrando, ralhando, cheio de cólera e de razão.

Uma symphonia com quatro mezes de ensaios! A falar a verdade!

Ordenadas as coisas, rompeu emfim a symphonia.

Os typos dos artistas, marcialmente uniformisados com fardas que fôram de um corpo de infanteria, eram para tentar o lapis de um Cham ou Gavarni. Alli um gordo e rubicundo merceeiro, que ameaçava estalar todas as costuras da farda, primitivamente feita para um individuo de metade das dimensões d'elle, com as faces insufladas, a testa contrahida e os olhos injectados para extrahir de um obsoleto serpentão, que embocava com arreganho assustador, as mais destemperadas notas; acolá um flautim, de braços compridos e tibias esquinadas, com meio braço fóra das mangas, com meia perna de fóra das calças, figura em que havia não sei o que de onomatopaico, tão bem se casava com os silvos, horripilantemente agudos, que arrancava do exiguo instrumento. O artista pratilheiro era um velho recurvado, de nariz adunco, faces escavadas, olhos de coruja, suissas em tufos no meio das faces, e oculos na ponta do nariz. Um zarolha evacuava os pulmões dentro de um figle; um corcovado e semi-anão repicava os ferrinhos com uma prodigalidade assustadora; as baquetas da caixa estavam confiadas ás mãos callosas de um moço de lavoura, de rêpas hirsutas a cobrir-lhe a testa, olhos esbogalhados e labio pendente. E, no meio d'estas e analogas figuras, a alma de tudo, o sr. Pertunhas, torcendo-se, batendo com o pé, suando, arregalando os olhos, piscando-os, marcando o compasso com a cabeça armada de enorme trompa, que lhe dava então não sei que apparencias de proboscidiano.

Tal era a philarmonica da terra, que Henrique, o conselheiro e toda a familia do Mosteiro escutavam das janellas, e á qual tiveram de dispensar elogios, que o regente acceitou com a modestia de artista que se conhece. Henrique foi quem mais sublimes esforços fez para soffrer com paciencia aquellas torturas acusticas. Elle que nem á orchestra de S. Carlos perdoava uma desafinacão, obrigado a escutar com um sorriso aquella banda pandemonica!

―Coragem! coragem!―murmurava-lhe o conselheiro, impassivel como perfeito politico.―Nas occasiões é que os homens se conhecem! Coragem.

―É em extremo forte a provação!―respondia-lhe, gemendo, Henrique.

―Firmeza; que a pallidez do susto nos não atraiçoe―continuava aquelle.

Isto obrigava Henrique a nova lucta; d'esta vez para manter a seriedade.

A final calou-se a banda, sem que se pudesse dizer o que tinha querido tocar. Succedeu-lhe um intervallo de silencio. Passou pela assembleia o estremecimento que precede as occasiões solemnes. Os olhares de tantos espectadores fixavam-se na coberta de chita que já se via ondular. Ouviu-se um surdo rumor, significativo de anciedade, como se fôra a resultante do palpitar de tantos corações.

Appareceu emfim a primeira personagem do auto. Era o Herodes.

A alta e membruda figura do pae de Ermelinda, com os seus hombros largos, as faces injectadas, o olhar faiscante, os cabellos e barbas negros e espessos, o andar grave e pesado, sob o qual gemiam as juncturas do tablado, o timbre volumoso de voz e certo arreganho selvatico, com que falava e gesticulava, imprimia na multidão um quasi pavor, que nem o conhecimento intimo que tinha do homem conseguia dissipar.

Herodes trazia manto real e turbante musulmano, borzeguins vermelhos, corpete de velludilho azul, calções golpeados. Pendia-lhe á cinta um alfange e uma pistola; ao peito algumas condecorações.

Apparencia geral, a dos prophetas nas procissões.

O auto rompe com um monologo de Herodes.

O tyranno da Judéa, sobresaltado e meditabundo, faz considerações substanciosas sobre a condição dos reis em geral e a sua em particular. Principia elle assim:

Não ha vida mais inquieta,

Nem mais cheia de cuidados,

Do que a de um rei que pretende

Conservar os seus estados.

O Cancella dizia isto em tom pausado, com os braços cruzados, medindo o palco a passos largos.

Continuavam varias proposições de physiologia do throno, e, do caso generico baixando ao particular, da these á hypothese, principia a falar de si. Cancella, conhecedor dos segredos da arte, começava aqui a dar mais vida á recitação, como para mostrar o maior empenho que tomava a alma n'este capitulo da especialidade. Referia-se aos annuncios da vinda do Messias, e inquietava-se; a maré das paixões subia; a voz traduzia-lhe o crescimento. Depois seguia-se um como reflexo de desalento, para com mais violencia se exaltarem os affectos. Nos paroxismos da furia, o Cancella, dando toda a fôrça á sua voz potente, soltava berros, que participavam da natureza dos do tigre.

Começarei desde logo

A publicar leis tyrannas,

Que aterrem os meus montes,

Os palacios e as choupanas.

Será tal o meu furor,

Tal a minha indignação,

Que ninguem se atreverá

A conquistar meu brazão.

O interesse do espectaculo augmentava. Os olhos do publico principiavam a fixar-se. A excitação de animos a que os transportes de Herodes, inquieto pelo seu brazão, levára o publico, foi serenada por um chorado côro de anjos que cantavam atraz da cortina:

Não temas, ó rei cruel,

Que te conquiste o docel.

Herodes pára aterrado, ao escutar estas vozes, apesar de lhe afiançarem a segurança do docel, pela qual elle parecia receioso. Vacilla, entra-lhe o mêdo no coração, mêdo que procura afugentar com bravatas, em que ameaçava pôr tudo por terra. O Cancella exprimia tudo isto com abundancia de gestos e de movimentos.

Aqui é que subia a toda a altura o genio dramatico do Herodes. Para este final do monologo reservava todos os segredos da arte; apoderava-se d'elle a musa do palco; desappareciam-lhe deante dos olhos os espectadores, via o mundo; perdia a consciencia da individualidade propria; suppunha-se Herodes; e até... ó fôrça da arte! offuscavam-se-lhe os bons instinctos da indole generosa e quasi chegava a ter verdadeira ancia de sangue e carnificina. O publico era dominado por o artista, e n'um d'estes silencios que todos prevêem se desencadeiará em brados de enthusiasmo e phrenesi, escutava-lhe as duas quadras finaes:

Porém o furor me incita!

Dava, ao dizer isto, tres passos á frente, desembainhava o alfange e abria os braços. Tinha o que quer que era de Adamastor, visto assim.

O brio dá-me ousadia.

Levantava os braços acima da cabeça, espalmando a mão esquerda.

Para defender o sceptro

A favor da tyrannia!

Aqui agitava os braços como azas de moinhos.

Será cada lança um raio!

E, dizendo isto, tinha nos olhos o fulgurar do relampago.

Cada espada um corisco,

E o braço, armado do alfange, baixava com a rapidez do simile.

Cada soldado um trovão,

E trovejava-lhe a voz.

Cada golpe um basilisco!

E na posição e gesto em que ficava, não era menos terrivel e pavoroso do que a fera da comparação.

Uma tempestade de applausos rompeu de todos os lados; só as mulheres e as creanças ficaram silenciosas e immoveis, porque lhes parecia um peccado applaudirem Herodes. E não sei se, o que fizera menos escrupulosa n'este ponto a parte masculina, fôra o exemplo partido das janellas do Mosteiro; porque é certo que em geral os tyrannos no palco são admirados, mas raras vezes applaudidos.

Herodes, depois de agradecer os applausos publicos, senta-se e segue o auto.

Dariamos de bom grado na integra tão importante peça dramatica ou pelo menos circumstanciada noticia d'ella, se não receiassemos o recheio excessivo para esta ordem de alimentos litterarios, que se querem leves. Não podemos comtudo resignar-nos a passal-a por alto inteiramente.

Além do Herodes, são figuras do auto: o caixeiro do dito―assim se lhe chama pelo menos no folheto, o que dá a entender que Herodes era homem de escripturacão regular,―o capitão das tropas reaes, os tres reis magos, o anjo, a Virgem, S. José e o menino Jesus, a criada de Santa Isabel, dois cidadãos de differentes cidades, o criado de um d'elles, a Fama e duas creanças, chamadas Giraldinho e Amorzinho.

As scenas passam-se successivamente nos paços de Herodes, na lapa de Belem, e em diversas paragens da estrada do Egypto.

A imaginação do espectador era a encarregada da mudança do scenario.

O poeta corre toda a clave das paixões humanas, vibra todas as cordas do coração.

Ao terror despertado por Herodes e suas ameaças, succede a sympathia pelos tres reis, personificados d'aquella vez por tres moços de lavoura, de manto, luvas de algodão e turbante, os quaes, em lamuria nasal e com profusão de xes, cantarolavam as quadras do seu papel, em uma das quaes, patrioticamente anachronica, pediam aquelles bons magos ao Deus nascido a protecção para Portugal.

Excitava a piedade a familia sagrada. O velho S. José, como carpinteiro que era, apparelhava um madeiro a enxó e plaina, emquanto a Virgem dormia. A Virgem era um rosado barbatolas, em quem principiava a despontar o buço da puberdade. O anjo apparecia, como nas procissões, carregado de cordões de ouro.

No transe da fugida para o Egypto ha uma scena da mais que homerica simplicidade. Quando os sagrados esposos estão para partir, chega a elles a criada de Santa Isabel, prima da Senhora, outro mocetão em trajes femininos, e da parte da ama offerece aos foragidos algum dinheiro e refrescos; pedindo desculpa por não poder dar quanto queria, o que tudo a Senhora agradece com as phrases da tarifa, recommendando-se muito a sua prima.

O comico caminha ao lado do pathetico, como no drama moderno. Ha personagens, reflexões e scenas sempre apreciadas e já aguardadas pelo publico, que as saúda com sinceras gargalhadas. D'estas a principal é evidentemente a que se passa entre um cidadão, de quem a sacra familia recebe gasalhado, e o criado do mesmo.

É uma scena de disputa domestica, cheia de allusões satyricas á classe dos criados de servir, a qual era sempre applaudida. O cidadão, depois de mostrar ao criado, de relogio em punho―anachronismo shakspeareano―a demora excessiva que elle tivera fóra de casa, diz para o auditorio:

Não se pode ter criados

Hoje em dia, n'esta vida,

Ou quem houver de os ter

Não lhes deve dar guarida.

N'este ponto do auto houve aquella tarde um pequeno, mas gracioso episodio.

D. Victoria, que achava esta a parte melhor pensada e mais conceituosa de toda a peça, de afinada que estava pelo seu modo de sentir, não pôde conter-se, que não exclamasse:

―Aquillo é que é uma verdade!

A espontaneidade da reflexão fez rir a familia do Mosteiro, riso que teve ecco em baixo, entre o povo, que enchia o pateo.

A scena comica prolonga-se, mandando o patrão distribuir pelo caixeiro o rapé ao auditorio; outra liberdade que produzia sempre o maior effeito.

O criado trazia uma enorme tabaqueira, um verdadeiro bahu, e offerecia pitadas ao publico, dizendo:

O meu amo, com ser rico,

Gosta d'estas patuscadas.

Nunca os senhores tiveram

As pitadas tão baratas.

Os risos e as galhofas desordenaram, segundo o costume, por muito tempo a regularidade do espectaculo. Todos tiravam pitadas, todos falavam, riam e guinchavam, todos fingiam espirrar e não se ouvia senão: «Dominus tecum» e «Deus te salve» no meio de toda aquella confusão. Porém a um signal de mestre Pertunhas, que deixou por um pouco folgar o espirito das massas, tudo entrou na ordem.

Preparava-se nova transição dramatica. O criado, que vae a saír, volta, dizendo com gesto espantado e tom exclamatorio:

Jesus, Jesus, que é isto?

Jesus do meu coração!

O signal da cruz me livre

De tão terrivel visão.

Era a Fama que apparecia.

Ermelinda entrava em scena.

No meio d'aquellas figuras rusticas, e mais ou menos grosseiras, que entravam no auto, a figura delicada e angelica de Ermelinda produzia tão completo contraste, que um murmurio significativo de profunda sensação correu o auditorio.

Ermelinda estava surprehendente de formosura. Haviam-se associado ao que era n'ella dotes naturaes os cuidados de Magdalena e de Christina, para lhe darem a apparencia superior.

O proprio Henrique, que até alli estivera commentando maliciosamente o espectaculo, não pôde reter uma exclamação de surpreza, que foi secundada por o conselheiro. É que parecia que um verdadeiro anjo occupava agora a scena.

A simplicidade do vestir concorria para esse effeito.

Ermelinda trazia uma longa tunica alvissima e de amplas mangas, que lhe descia solta dos hombros sem sacrificar a menor belleza dos graciosos contornos e esbeltas proporções d'aquella creança, que promettia ser uma mulher esculptural. Os cabellos, cuja côr loura era de uma pureza rara, caíam-lhe desatados e profusos sobre os hombros, brilhando como fios de ouro, na alvura dos vestidos; a fronte ficava-lhe livre, e o oval das faces sobresaía n'aquella moldura natural. Com os braços descaídos, os dedos encruzados, e a cabeça ligeiramente pendida, em expressão de melancolia, e os olhos elevando-se para procurarem os de Magdalena e de Christina nas janellas do Mosteiro, mas que de longe parecia procurarem o céo, Ermelinda adeantava-se vagarosa, serena, tendo no gesto o encanto da innocencia, tendo nos passos a hesitação da timidez. Havia tanto de sobrenatural no vulto candido, franzino e melancolicamente suave d'aquella creança, que o actor que estava em scena não teve de simular espanto, porque o sentia real, e não podia desviar os olhos d'aquella apparição.

O silencio era profundo; parecia que em todos estava actuando a fôrça de um encantamento.

Como na antiga tragedia, o facto principal da acção, a carnificina dos innocentes, passava-se fóra de scena. Á Fama competia narral-o.

Ermelinda, a meio do palco, parou. Com uma voz argentina e leve tremor de commoção, principiou lentamente e no meio de um religioso silencio a recitar os versos da narração, os quaes, como o leitor já sabe, não eram os do auto, que mestre Pertunhas se estafára a ensaiar.

Os versos que Ermelinda recitou diziam assim:

Desci dos celestes córos,

Por Deus mandada a escutar

Da infancia as queixas e os choros,

Para lh'os ir confiar.

Desci. Na terra, nos mares

Tanta miseria encontrei.

Que os meus magoados olhares

Da terra e mar desviei.

Desci. E tantos gemidos,

Tão dolorosos ouvi!

Que, turbados os sentidos,

Quiz recuar... mas desci.

N'esta colheita de dôres

Pelo mundo todo andei,

No pranto dos peccadores

As minhas vestes molhei.

Vagueando dias e dias,

Chegára á Judéa emfim,

Quando um clamor de agonias

Veio de longe até mim.

O sol, o sol inflammado

D'estas terras orientaes,

Tinha no disco afogueado

Não sei que estranhos signaes.

Soavam menos distantes

Sinistros brados de dôr,

Choros de mães e de infantes,

Cantos de morte e terror.

Vi anjos de azas nevadas

Em bandos subir ao céo,

Quaes pombas amedrontadas

Fugindo á voz de escarcéo.

«Onde ídes? Quem vos persegue?

A que tormentas fugis?»

Um, que triste o bando segue,

Estas palavras me diz:

«Somos as almas de infantes

Mortos em guerra feroz;

Inda das mães delirantes

Nos chama a sentida voz.

«Só a materna saudade

Nossa carreira detem,

Embora no céo, quem ha de

Esquecer, o amor de mãe?»

Disse e o semblante formoso

Com as azas encobriu,

E ao bando silencioso

Silencioso se uniu.

Eu segui. Na impia cidade

Aterrada penetrei...

Ai, da fera humanidade

Os meus olhos desviei!

Que scena! Corre nas praças

Sanguinaria multidão,

Como nuvem de desgraças

Semeando a desolação.

Cáem por terra sem vida

Tenras creanças ás mil,

E uma turba enfurecida

Corre á matança febril,

As mães pallidas, chorosas,

Supplicam, pedem em vão!

N'essas feras sanguinosas

Não palpita um coração.

Outras tentam em delirio,

Os seus filhos disputar,

E com elles no martyrio

Gostosas se vão juntar.

Sobre a terra ensanguentada

Eu soluçando, ajoelhei,

E de intensa dôr magoada,

A Deus piedade implorei.

Findava a prece, e uma estrella

No horisonte despontou,

Pura, scintillante, bella

O caminho me traçou.

Á humilde e escondida estancia

Da venturosa Belem

Cheguei; vi um Deus na infancia

Nos ternos braços da mãe.

Minha colheita de dôres

N'aquelle berço depuz,

Da humanidade aos rigores

Pedi remedio a Jesus.

No olhar do divino infante

Raiou a luz e fulgor,

Foi a aurora radiante

Que annuncia um redemptor.

Não se descreve a impressão causada por estes versos, que assim transformavam a Fama do auto no Anjo da guarda da infancia. Muitas causas concorriam para produzir este effeito: a figura, a voz e o gesto de Ermelinda, que lhe davam uma apparencia verdadeiramente angelica, e depois aquellas palavras inesperadas, aquella exposição desconhecida e em versos a que a melancolia da toada, em que eram recitados, parecia augmentar a cadencia metrica. Emquanto debaixo da impressão d'aquella voz sonora e infantil, ninguem procurava explicar o mysterio. Milagre lhes parecia e quasi como milagre o acceitavam, e de ouvidos attentos, collos estendidos e bôcas semi-abertas parecia recolherem, uma a uma, aquellas palavras, como se de um verdadeiro emissario celeste as escutassem. O tablado enchera-se pouco a pouco de gente, e ninguem dera por isso. Os actores que estavam atraz da cortina tinham sido feridos pelos primeiros versos, differentes dos que elles esperavam; isto obrigou-os a espreitar. Depois, como arrastados pela magia d'aquella voz e d'aquelle gesto, vieram adeantando-se, adeantando-se, e cêdo formaram circulo á volta de Ermelinda. O primeiro da frente era o Herodes. O espanto, os affectos, o orgulho de pae, a exaltação de artista combinavam-se para dar-lhe ao rosto uma expressão quasi de extase. Olhava para a filha como se a visse animada de inspiração divina.

Pertunhas, o ensaiador do auto, que franzira o sobr'olho, prevendo trapalhada aos primeiros versos recitados por Ermelinda, agora, de bôca aberta, era de todos o mais espantado. No Mosteiro só Angelo sorria, elle só interpretava o milagre. Todos os mais escutavam silenciosamente aquella voz de creança, que, em campo descoberto e no meio de tantos espectadores, soava distincta e vibrante como se effectivamente tivesse alguma coisa de sobrehumana.

Depois que ella terminou, persistiu por algum tempo o silencio, sem que os espectadores pudessem voltar logo a si, nem os actores se lembrassem de continuar o auto. Henrique foi quem primeiro rompeu este quasi encantamento. Profundamente impressionado tambem por aquella scena, exprimiu n'um «bravo» todo o enthusiasmo que sentia. Foi o signal.

O silencio degenerou na mais altisona ovação.

O Herodes esqueceu o papel que desempenhava, o caracter que tinha a sustentar, a logica da situação, e tomando nos braços musculosos o corpo debil e franzino da filha, levou-a em triumpho para a beira do palco; os outros actores disputavam-lh'a; do pateo estendiam-se centenas de braços para a receberem; das janellas do Mosteiro acenavam-lhe, victoriando-a, os lenços das senhoras; os homens applaudiam-a com palmas. Herodes parecia devorar a filha com beijos, afagal-a com lagrimas de enthusiasmo e de paixão; e Ermelinda foi de braços em braços, entre beijos e afagos, transportada do tablado para a sala do Mosteiro, onde não foi menos calorosa a recepção.

Do auto ninguem mais se lembrou, e, apesar dos esforços do mestre Pertunhas, todos o deram por terminado alli e prescindiram de vêr as restantes scenas, com grande desgosto dos actores que entravam n'ellas.

O Herodes, ainda vestido de rei, andava como doido pelas salas do Mosteiro. Seria para rir aquelle enthusiasmo, se não fôsse bastante pathetico para commover.

―Mas como foi isto, meu Deus? Como foi isto? Que milagre foi este? Ai que versos, Maria Santissima! Que versos! E como ella os dizia!―exclamava elle, quasi convencido da milagrosa natureza da scena que vira.

Magdalena, chamando Angelo de lado, perguntou-lhe:

―Foi Augusto que fez aquelles versos?

Angelo sorriu.

―Por que me perguntas isso a mim?

―Porque o deves saber.

―Então não crês no milagre?

―Responde.

Angelo ia a responder, quando Henrique disse em voz alta para o conselheiro:

―Se eu digo a v. ex.a que o Bernardim existe.

―Mas quem é?―perguntou o conselheiro.

―Não sei; porém posso afiançar a v. ex.a que não são estes os primeiros vestigios que encontro d'elle. As paredes das capellas dos montes são as suas confidentes. Não está certa, prima Magdalena, de umas quadras sentimentaes, que lemos na ermida da Senhora da Saude?

―Sim; recordo-me.

―Não acha entre essas e as do auto analogia de estylo, que a levem a attribuil-as á mesma pessoa?

―Estou pouco habituada a analysar estylos, primo.

―Mas talvez este lhe seja habitual.

Magdalena fitou Henrique com um olhar de altivez, que o obrigou a accrescentar:

―Por muito o vêr por ahi desperdiçado por paredes de capellas e ruinas, e nos troncos das arvores.

Ermelinda foi de uma discreção impenetravel. Quando lhe perguntavam quem lhe ensinára os versos, sorria, respondendo que não sabia, ou que não podia dizel-o.

―Apostemos que n'isto entra Angelo?―disse o conselheiro.

O Herodes cada vez parecia mais convencido de que fôra pura inspiração.

Henrique, aproveitando uma occasião em que estava proximo da morgadinha, disse-lhe ao ouvido:

―Parece-me que ia pôr o dedo no rouxinol silvestre, que tão bem canta sem se mostrar.

―Sim?

―Não ha muitas noites que eu o vi vaguear n'estas immediações. Estas aves melancolicas amam as inspirações nocturnas.

―Pois as noites nem sempre são boas conselheiras, primo. É a hora favoravel á espionagem e ás... calumnias... Mas se sabe quem é, diga-o. Aqui em minha casa e no seio de minha familia, é sempre bem recebida a verdade. Não ha quem se tema d'ella.

E a morgadinha, dizendo isto, deixou-o desdenhosamente.

―D'esta vez foi de uma severidade!!―pensou Henrique.―Cada vez me convenço mais de que o idyllio existe e que vae já muito adeantado. Mas agora me lembro; e o meu duello com o Romeu, que nunca mais vi? Não foi má tolice aquella minha! Preciso de procurar o homem para lhe dizer que o caso não vale a pena.

O despeito de Magdalena pelas palavras de Henrique fôra d'esta vez mais intenso; quasi chegou a fazel-a desesperar da tenção que alimentava ainda, pois disse a Christina:

―Ai, filha, que não sei se deva curar-te antes a ti do que a elle.

―Que dizes?!

―Nada. Ha doenças que fazem desesperar os medicos.

Era já noite. Os grupos, que ainda depois do auto se conservaram no pateo do Mosteiro, a brindarem a hospitalidade dos proprietarios, fôram dispersando pouco a pouco.

A banda de mestre Pertunhas saiu tambem com o fim de se preparar para as serenatas a casa do brazileiro e de varias personagens da terra, a quem era devido o cantar os Reis.

Angelo saíra da sala. Fôra para o fim da rua de sobreiros, anterior ao pateo da quinta, esperar por Ermelinda para lhe dizer adeus.

Á medida que a noite se cerrava, parecia que se estendiam as sombras á fronte e ao coração do pobre rapaz.

Era a noite de Reis, a ultima dos dias de férias; na manhã seguinte devia partir com o pae para Lisboa.

Que amarguras as d'estas ultimas horas! que intensas saudades não se amontoam no coração das creanças ao expirar o termo d'esse feliz espaço de tempo, que viveram para os carinhos da familia e para os folguedos despreoccupados!

Percebe-se em nós mesmos aquella imminencia de lagrimas, que á menor palavra rebentam.

Quem não terá recordações de infancia a falar-lhe d'isto?

O pateo despovoára-se de gente; através das vidraças da casa viam-se já brilhar as luzes interiores. Com o olhar fito no chão, a cabeça inclinada, Angelo permanecia immovel. Cortejavam-o, ao passar, homens e mulheres, sem que elle désse por isso.

De repente voltou-se, porque ouviu atraz de si uns passos conhecidos. Era Ermelinda, que voltava para casa. O pae ficára atraz a pôr em ordem as roupas e mais objectos que serviram no auto.

―Esperava por ti, Ermelinda, para te dizer adeus―disse Angelo.

―Então vae-se embora?

―Vou ámanhã―respondeu Angelo, com a voz presa de commoção.

―Muito cêdo?

―De madrugada.

Os dois calaram-se por algum tempo, olhando para o lado.

―E agora quando volta?

―Eu sei lá? agora... só para agosto.

Novo silencio.

―Então... adeus...

―Adeus, Ermelinda.

E com a voz quasi sumida e os olhos ennevoados de lagrimas, Angelo estreitou contra o peito aquella que de pequena tratára como irmã, e que chorava ainda mais do que elle.

Que melancolico fim de dia tão alegre!

A este tempo uma sombra escura passou por elles e estacou.

―Ermelinda―disse logo a voz esganiçada e colerica, que saiu d'aquelle vulto.

Ermelinda estremeceu ao ouvil-a.

Era a mulher do Zé P'reira que voltava das suas devoções e ficára surprehendida com o espectaculo que vira. A assustadiça castidade d'aquella matrona toda se alvoroçou com a tocante despedida das duas creanças.

Ermelinda approximou-se, a tremer, da madrinha, que rudemente a agarrou pelo braço e a levou comsigo.

Angelo esteve quasi resolvido a ir tirar das mãos d'aquella harpia a innocente victima; mas a chegada de Herodes estorvou-o.

A sr.a Catharina do Nascimento de S. João Baptista ia dizendo, ao levar comsigo a afilhada:

―Que terão ainda de vêr meus olhos, meu Divino Pae do Céo? Que mundo este de abominação, meu doce Jesus! Ó Virgem das Dores, isto é para se vêr e não se crer! Uma creanca, uma creanca de dois dias, se pode dizer, e já assim com a alma perdida! Ó meu Jesus crucificado!...

―Minha madrinha―dizia Ermelinda, chorando.

―Anda, anda, anda, minha amiga, que já os demonios saltam e riem de contentes. Teu pae é que tem a culpa. Isto são lá modos? trazer-te por entremezes, que são artes do demonio, e arredar-te da igreja, que é a casa do Senhor! É a missa dos domingos, e acabou-se. Os resultados são estes!... Ai, filha, que muita penitencia te é já precisa para salvares a alma!

―Minha madrinha, minha madrinha, por as almas não me diga isso―exclamava Ermelinda, aterrada.

―Os tres inimigos da alma te farão guerra, creatura, assanhados como cães raivosos... Eu previa isto... É o lucro de andar por essas casas de Satanaz, onde não ha religião nem temor de Deus... Ó meu divino Jesus, e para isto tanto padeceste por nós! E nós tão pouco caso fazemos dos vossos preceitos, meu doce Jesus, filho de Maria Virgem... Depois queixamo-nos da vossa justiça, quando já ardemos nos fogos do inferno...!

A pequena Ermelinda tremia cada vez mais.

A velha proseguiu, em todo o caminho, n'estas exclamações, bramando contra o peccado, contra a familia do Mosteiro, que acoimava de herejes, contra o pae de Ermelinda e contra esta, e, no seu fervor religioso, desenvolvia sobre o thema do peccado dissertações não em demasia apropriadas aos ouvidos de uma creança.

O resultado foi apoderar-se da pequena Linda um excessivo terror. Das palavras da madrinha, que nem bem entendia, ficára-lhe uma horrivel convicção de que tinha a alma perdida, e com lagrimas ardentes pagava a pobre creança bem caro as alegrias d'aquella tarde, de que já tinha remorsos. Este desalento e pavor quasi a fizeram doente.

Quando o pae voltou, estranhou-a. Elle, que vinha orgulhoso com os triumphos proprios e com os da filha, sobresaltou-se ao abraçal-a, Interrogou-a; pediu, ordenou; nada pôde saber que explicasse os vestigios de lagrimas que descobria n'ella; se instava, provocava-lhe o pranto; desistiu pois.

Pobre pae! não pôde dormir aquella noite! Logo de madrugada teve de levantar-se, porque tinha de partir para o Porto em recovagem.

Deixou Ermelinda a dormir; não a quiz acordar; beijou-a na fronte desmaiada, abençoou-a e saiu.

―Comadre,―disse ao passar por casa do Zé P'reira―ahi lhe deixo a pequena. Olhe-me por ella, que não está lá muito boa.

―Vá com Deus―disse uma voz de dentro.

Era a sr.a Catharina.

O recoveiro partiu, silencioso e triste.

XIX

No dia seguinte ao dos Reis partiram para Lisboa, como estava determinado, o conselheiro e Angelo, o que deu logar no Mosteiro a muitas saudades. O conselheiro devia voltar sómente por occasião das eleições geraes que estavam proximas.

Alguns dias depois, n'um domingo em que se festejava na aldeia o padroeiro Santo Amaro, de quem reza a Igreja a quinze de janeiro, estava Henrique de Souzellas na sala de jantar de Alvapenha, escutando sua tia e Maria de Jesus, que ambas o entretinham com longas conferencias de coisas de pouco interesse e ás quaes elle ligava a minima attenção.

Tinham acabado de jantar havia pouco tempo. A mesa conservava-se ainda posta; Henrique fumava um charuto, recostando-se para o espaldar da cadeira; D. Dorothéa, de mãos cruzadas deante da cinta, falava; Maria de Jesus que, depois de pôr em arranjo a cozinha, viera, segundo o costume patriarchal, tomar parte na sala na conversa do pospasto, auxiliava a memoria da ama sempre que esta emperrava, corrigia-lhe as involuntarias e frequentes inexactidões em que a via cair.

Henrique habituára-se já a estes placidissimos habitos; e apesar de não ligar attenção á conversa, ou por isso mesmo que lh'a não ligava, achava-lhe certas virtudes estomacaes, que lh'a tornavam agradavel.

Depois de muitas voltas a conversa caíu sobre as occorrencias do auto dos Reis.

―Eu ainda estou para saber como aquillo foi!―dizia D. Dorothéa.―Quando me lembro! Como aquella rapariga falava!

―Ó senhora; olhe que já me disseram que a pequena tinha espirito―disse Maria de Jesus, com ar de mysterio.

―Olhem o milagre!―respondeu D. Dorothéa.―Por essa estou eu.

―Diz que desde aquelle dia anda amarella e triste, que nem parece a mesma.

―Então é mais do que certo.

―Ai, a tia Dorothéa tambem com crendices!―disse Henrique, rindo.―Então parece-lhe que traz espirito aquella creança?

―Pois, menino, aquillo a falar a verdade!

―E não é mais natural suppôr que alguem lhe ensinou os taes versos?

―Mas quem? se o Pertunhas diz que os versos eram outros e até que aquelles não calhavam bem nas lôas?

―O Pertunhas é um parvo. Houve alguem que ensinou aquillo á pequena e até suspeito com que fim.

―Não, sr. Henriquinho, olhe que alli anda coisa ruim. Tambem o filho do Ceboleiro, quando trazia o espirito, dizia coisas tão bonitas, que nem um livro. A senhora não se lembra?

―Ora se lembra!

―Digam-me―insistiu Henrique.―Quem ha aqui na aldeia que faça versos?

―Versos!―repetiu a D. Dorothéa, admirada.―Ninguem, que eu saiba.

―Ó senhora! Então o João do Trolha? Não deita tão bonitos versos nos desafios?

―Sem ser o João do Trolha―tornou Henrique, sorrindo.

―Ai, não se ria, sr. Henriquinho; olha que os deita muito bem! Ainda no outro dia, na noite de Janeiras, não se lembra, senhora, dos versos que elle botou?

Viva a senhora D. Dorothéa,

Raminho de bem-me-queres,

Quando põe a sua touca

É a rainha das mulheres.

―E depois a mim:

Viva a senhora Maria,

A perola das criadas,

Quando se chega á janella

Ficam as estrellas pasmadas.

―Ora com o que você vem, mulher! Não tinham as estrellas mais que fazer do que pasmarem―disse D. Dorothéa.

―Isso é por dizer, senhora; já se sabe que... sim... como o outro que diz...

―E além do João do Trolha, quem ha mais que faça versos?―perguntou Henrique.

―Que eu saiba...―disseram as duas.

―E aquelle Augusto?

―O Augustito do doutor? O filho! Coitado do pobre rapaz. Elle sim! Credo! Não, aquillo é um rapaz de muito juizo.

―Isso não tira. Então a tia julga que só os tolos fazem versos?

―Tolos não digo, mas...

―Mas um pouco feridos na aza, não é verdade?

―Ora pois então dize-me tu, menino, se um homem sério... sim... um homem de respeito, faz versos?

―Por que não?

―Versos?!

―Versos, sim, senhora.

D. Dorothéa fez um gesto de incredulidade.

Henrique ia redarguir, quando ouviram passos no patamar de pedra da entrada e após algumas pancadas á porta da sala.

―Abra, tia Dorothéa―disseram de fóra as vozes de Magdalena e de Christina, que fôram logo reconhecidas.

E cêdo depois entravam alegremente na sala, em companhia de D. Victoria, que vinha mais retardada.

D. Dorothéa levantou-se para recebel-as.

―Bons dias ou boas tardes, tia Dorothéa, porque me parece que já jantaram. Vimos aqui para confiar aos seus cuidados a tia Victoria, que não nos quer acompanhar a ouvir a palavra eloquente do missionario―disse a morgadinha.

―Eu não; para apertos e barafundas é que não estou.

―E tu vaes, Lena? perguntou D. Dorothéa.

―Então? Não quero passar por impenitente. Ainda o não ouvi. Pode crer? Além de que percebi na Christe um fervor, com o qual quiz condescender.

―Dizem que préga tão bem―atalhou Christina.

―Pois prégará, mas eu é que já não estou para sermões―ponderou D. Victoria.

―Vou eu tambem ouvir o missionario―disse Henrique, levantando-se.―Já m'o mostraram ha dias. Se os dotes oratorios do homem corresponderem á figura...

―Então?―interrogou D. Dorothéa.

―É um homem gordo e vermelho, de pulso grosso e, em geral, typo da grossura do pulso.

―Pois bom é que vás, menino―disse D. Dorothéa―para acompanhares as pequenas.

―Como quizer, primo,―acudiu Magdalena―mas não se constranja. O Torquato tambem vae.

―Que quer dizer? Que me dispensa?

―Não; mas que se é só por condescendencia que...

―É por prazer. É por devoção.

―N'esse caso...

E Henrique foi procurar o chapéo para acompanhar as duas primas á igreja.

O Santo Amaro fôra festejado com espavento na freguezia da sua invocação. Vesperas, missa cantada, duplo sermão, e procissão á volta da igreja, nada faltára para solemnisar a festa.

O sermão da manhã fôra prégado por o abbade; o da tarde havia sido concedido ao missionario, que o aproveitára para uma das suas catechéses.

A procissão já tinha recolhido, quando chegaram á igreja a morgadinha e Christina, na companhia de Henrique e de Torquato. Havia no adro muita gente, e algumas barracas de doce e de café, como n'um arraial.

Pela porta principal da igreja engolfava-se a multidão, como em bôca de sorvedouro, subitamente aberto no leito de um rio, se precipitam as aguas impetuosas.

A fama, que pelas aldeias circumvizinhas apregoava o nome do missionario, attrahira immensa gente a escutar o sermão.

As senhoras do Mosteiro romperam a custo por entre a compacta massa popular, que se amontoava á porta da igreja, e conseguiram, por deferencia excepcional dos mesarios, entrar pela sacristia para a capella-mór.

Tinha um aspecto melancolico o interior da igreja n'aquella occasião. Pobre de si e pouco alumiada, mais escura e lugubre parecia com a extraordinaria quantidade de gente que a enchia, na maior parte mulheres de roupas escuras e em que só alvejava o lenço branco que usavam á cabeça.

Apesar da quadra ir fria, como de janeiro que era, respirava-se alli dentro uma atmosphera quente, abafadiça e pouco salutar.

Um surdo murmurio formado por centenares de vozes rezando, a meio tom, orações e ladainhas, contrastava com as altas vozes de festa, que se escutavam lá fóra, e requintava a triste impressão que se recebia ao entrar. Alli um grupo de mulheres, de joelhos, escutavam a leitura de pias orações, que uma fazia em tom lutuoso, e respondiam em côro com Padre-Nossos e Ave-Marias; além viam-se outras com as faces rojadas no chão, batendo no peito e desentranhando exclamações, para commoverem a Divindade; outras em extase, como Santas Therezas, de braços abertos deante da imagem da Virgem; outras amortalhadas, em cumprimento de promessa feita a algum santo. Cavados na espessura das paredes havia uns pequenos cubiculos, que serviam de confessionarios. Ás portas d'estes nichos, munidas de um crivo de folha, adheriam, como as lapas nos rochedos, os vultos escuros das penitentes, fazendo para dentro a circumstanciada exposição dos peccados da semana, e recebendo de lá regras de bem viver, preceitos de devoção, ás vezes exaggerada e inspirada de certa moral de convenção, com que a ignorancia ou a má fé porfiam em falsificar os simples e luminosos dictames da moral, que a consciencia reconhece e que o Evangelho apregôa.

Ás vezes despegava d'aquelle crivo de peccados uma das confessadas; e exhausta de fôrças, abatida de animo, descrendo da misericordia divina, ia cair com desalento nos degraus do altar de Deus, que o fanatismo cego, senão hypocrita, lhe pintára inexoravel verdugo. Quando outra se não succedia a esta, via-se rodar nos gonzos a pequena porta d'estes cubiculos, e sair de lá um padre de batina, sócos e capote de cabeção, satisfeito de si, e revendo-se n'aquelles corpos prostrados, n'aquelles gemidos surdos, n'aquellas lagrimas humedecendo o pavimento do templo, tristes indicios de desalento moral, com que conseguira quebrantar os ingenuos espiritos que dirigia pela intimidação cruel.

De tudo isto vinha o aspecto sombrio e lugubre á igreja, que nem as luzes dos altares, nem as sanefas e cortinas de damasco, que com tanta arte dispuzera mestre Pertunhas, conseguiam dissipar.

Henrique estava sendo desagradavelmente impressionado por o que via.

Olhava com desgosto para aquelles signaes de um terror supersticioso, e sentia exacerbarem-se-lhe as prevenções que nutria contra o clero, cuja influencia moral, aliás justa e vantajosa, é cada vez mais diminuida por aquelles dos seus membros que pretendiam augmental-a por meios improprios da sublimidade da sua missão e até dos preceitos da religião, de que se dizem ministros.

Henrique fez algumas reflexões n'este mesmo sentido a Magdalena, que não pôde deixar de apoial-as, tanto mais que sabia o animo de Christina, que os escutava, não de todo superior a este apparato terrorifico.

A hora marcada para o sermão approximava-se; haviam-se já evacuado os differentes confessionarios, e o povo cada vez se apertava mais em todos os pontos da igreja e trasbordava para fóra das portas do templo. Quem de dentro olhasse para a porta principal veria que a grande distancia, na rua, se prolongava a multidão.

Apenas um confessionario permanecia ainda occupado. Havia mais de uma hora, que alli estacionava de joelhos uma penitente com a cabeça coberta por a capa de panno, com que rodeava o crivo do confessionario.

Nem o menor movimento revelava animação n'aquelle vulto.

Henrique notára essa immobilidade, que ao principio o fez sorrir; depois causou-lhe espanto e acabou, emfim, por o indignar. Qual, porém, não foi a sua surpreza e a de Magdalena, quando, ao terminar a confissão, reconheceram as feições da penitente por as de Ermelinda, a filha do Herodes, a formosa e amoravel creança, que, dias antes, tanto enthusiasmo causára, agora pallida, abatida, sem aquelles sorrisos nos labios, que tanta graça lhe davam!

E era esta creança que tão longos peccados tinha a narrar, para assim ficar tanto tempo aos pés do confessor?

Ermelinda, vagarosa, trémula, tendo claros os vestigios de lagrimas, e, como que enleiada de vergonha, caminhou por entre os grupos de mulheres ajoelhadas na igreja e veio cair de joelhos ao lado da madrinha e cêdo rojava com ella a fronte no chão, que regava de lagrimas ferventes.

Pobre creança! Que negros crimes lavariam aquellas lagrimas? Que culpas teria a expiar aquella inconsolavel dor?

O confessionario d'onde ella se afastára, abriu-se, emfim, e ás vistas, que para alli se voltaram, mostrou um padre gordo, córado, de olhos e fronte pequenos, cabellos grisalhos, rompendo-lhe a um dedo das sobrancelhas. O homem parou algum tempo a fitar o auditorio.

Espalhou-se no templo um sussurro particular; um movimento commum animou aquellas cabeças todas, quando este homem appareceu.

Era o missionario.

A sua passagem para a sacristia foi uma passagem verdadeiramente triumphal. Curvaram-se até ao chão as beatas, beijando-lhe a mão ou as borlas da batina, e pedindo-lhe a benção, que elle distribuia com profusão.

Mas a meio caminho da sacristia, para onde se dirigia, surgiu-lhe quasi do chão um estorvo.

Zé P'reira, o desconfortado marido, estava deante d'elle, gesticulando e realisando um triplice e admiravel esforço para firmar as pernas, para abrir os olhos, e para desembaraçar a lingua.

Dizia o homem:

―Ó sr. aquelle... ó sr. padre, ou missionario, ou lá o que é... eu quero-lhe perguntar uma coisa. Deus disse... sim, Deus disse... A religião manda... Quando um homem se casa...

O missionario não esperou pelo fim da inesperada interpellação; com modos rudes e pulso vigoroso arredou de si o atrevido, e bradou, fulo de cólera:

―Então que desafôro é este? Deixam um homem n'este estado vir ter commigo?!

E com maneiras e palavras igualmente asperas impoz silencio ao povo, que rira do desengano do Zé P'reira. Os mordomos acudiram logo para afastarem o Zé P'reira d'alli para fóra. Elle deixou-se ir, limitando-se a dizer mansamente:

―Ora, senhores, que é forte desgraça a minha! Então uma pessoa não pode dizer o que sente?

Ia elle já fóra da igreja e ainda se lhe ouvia a voz repetir:

―Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!

Quando depois d'esta scena, o missionario passou por Henrique, murmurou este em voz perceptivel, ao ouvido da morgadinha:

―Diga se este todo e este modo de tratar ovelhas não é mais de magarefe do que de pastor?

O missionario ouviu estas palavras, pois que se voltou como se uma vibora o picasse, e faiscou-lhe no olhar o fulgor de um odio pharisaico. Henrique arrostou-o com audacia provocadora.

O padre entrou para a sacristia.

No entretanto o auditorio dispunha-se para escutar o sermão, o mais commodamente que era possivel n'aquelle pequeno recinto.

No fim de alguns minutos apparecia no pulpito a figura bem nutrida e pouco attrahente do famigerado educador dos povos.

Fitou com sobranceria os ouvintes e com particular insistencia fixou em Henrique, que lhe ficava fronteiro, um olhar, que elle sustentou com firmeza.

Esta tacita provocação durou alguns minutos, no fim dos quaes poderia talvez, quem estivesse prevenido, distinguir nos labios do padre um sorriso rancoroso e perceber-lhe um movimento de cabeça quasi ameaçador:

Emfim soltou o texto latino do sermão.

Seguiu-se nova pausa, e principiou.

Apesar do exemplo de Sterne, que não duvidou entresachar nas paginas humoristicas da Vida e opiniões de Tristam Shandy, um sermão sobre a consciencia, eu não ouso transcrever para aqui o modelo de eloquencia sacra, recitado pelo missionario n'aquelle dia.

Ainda se eu pudésse transmittir aos leitores o tom rouco de voz, a extravagancia de gestos, o decomposto dos movimentos com que o orador acompanhava a recitação dos descosidos periodos d'aquella indigesta prática, talvez me animasse á empreza, para lhes dar um exemplo da vigorosa eloquencia, com que se anda atrazando a civilisação do povo e prejudicando a verdadeira religião, a despeito dos bons sacerdotes, cuja voz é abafada por aquella gritaria.

As mais tetricas e pavorosas imagens adornavam o discurso.

Era o enxofre a ferver, o chumbo derretido, as caldeiras de pez, as fornalhas ardentes, innumeras torturas, a que o menor delicto, tal como um jejum mal guardado, uma confissão mal feita, uma involuntaria falta á missa, uma penitencia esquecida, uma oração supprimida, arriscava as almas por toda a eternidade. Para cada peccado venial uma perspectiva de tormentos sem fim. O tribunal de Deus foi arvorado em tribunal de Santo Officio, onde os autos de fé, os pôtros, e cavalletes aguardavam os delinquentes arrastados até alli; eis o resumo da oração. A fatal e desesperadora sentença, que o poeta florentino esculpiu no portico do inferno, traçava-a este sobre os umbraes do tribunal do Eterno.

Na esculptura de Christo, obra rude do buril popular, mostrava o vulto de um accusador, surgindo alli a pedir vingança, e não o do Redemptor sublime a implorar e prometter perdão. E tudo isto de mistura com imprecações contra as modernas instituições sociaes, contra a obra do seculo, contra os descobrimentos, contra a sciencia, contra tudo em que se descobrisse o cunho da época e que tendesse a modificar os costumes e as ideias em sentido menos favoravel á propaganda reaccionaria.

Á medida que a oração progredia, animava-se a voz do orador; augmentava a desordem dos gestos e refinava a selvageria das imagens.

Ao mesmo tempo os gemidos, os soluços e os ais do auditorio, e principalmente da parte feminina d'elle iam crescendo em choro manifesto, em gritos e alaridos. Cêdo era já um angustioso clamor em toda a igreja. Magdalena, que se sentia, ella propria, um pouco impressionada por este espectaculo de desolação, voltou os olhos para Christina. Viu-a trémula, pallida, com as faces banhadas em lagrimas, tendo no gesto todos os signaes de um intenso pavor.

Assustada com o estado da prima, a morgadinha fez notal-o a Henrique, e tacitamente lhe communicou as apprehensões que sentia.

Henrique comprehendeu a necessidade de dissipar a funesta influencia que se estava exercendo no animo timido de Christina.

Sentou-se por isso junto das duas raparigas e principiou a distrahil-as com commentarios satyricos ás palavras do sermão e á figura do orador, que ambas offereciam farto alimento para elles.

D'ahi a pouco Magdalena instava já com Henrique para que se calasse.

Previa o perigo que poderiam correr, persistindo n'aquelles commentarios improprios do logar.

Effectivamente não tinham passado despercebidos, do padre os commentarios de Henrique, nem os sorrisos mal disfarçados de Magdalena; e a raiva despertada pela descoberta cada vez inflammava mais o orador, exacerbando-lhe a virulencia da phrase.

Já não podia tirar os olhos d'aquelle grupo, e por vezes a cólera, estrangulando-lhe quasi a larynge, interrompera-lhe o discurso.

Alguns ouvintes, seguindo a direcção d'aquelles olhares faiscantes, haviam attingido já a causa d'elles.

D'ahi algumas murmurações que principiaram a sussurrar pela igreja.

No grupo das beatas, em que estava Ermelinda, fôram ellas mais acerbas do que nenhumas. A sr.a Catharina e as suas companheiras fartaram-se de anathematisar a impiedade e a heresia da gente do Mosteiro, e no coração da filha do Cancella, dominado pelo terror que o sermão levára ao cumulo, calavam aquelles dizeres, que a faziam quasi olhar, como se fôssem já prezas do inferno, para Magdalena e Christina, a irmã e a prima de Angelo, do seu amigo de infancia, em quem já não se atrevia a pensar.

N'uma occasião em que o missionario fulminava com mais vehemencia os progressos da industria moderna e chamava redes do demonio e caminhos do inferno aos telegraphos electricos e ás vias-ferreas, Henrique approximando-se dos ouvidos das duas primas, fez não sei que reflexão tanto a proposito, que a morgadinha não conteve o riso; a propria Christina sorriu tambem.

Era de mais! O padre pulou no pulpito. Com os olhos em chammas, as faces apopleticas, os labios espumantes, os punhos cerrados e os braços hirtos e estendidos na direcção de Henrique, rompeu n'estes violentos termos:

―Fóra do templo, pedreiros livres, que vindes aqui escarnecer da palavra do Senhor! Fóra do templo, impios libertinos, que não respeitaes os ministros de Deus, nem o seu altar! Andam lobos no povoado e vieram esconder-se entre as ovelhas na casa do Senhor! Escorraçae-os, irmãos, se não quereis que se vos pegue a lepra do peccado e que Deus arraze esta aldeia, como arrazou Gomorrha e Sodoma. São esses os que trazem das cidades a peste para as aldeias; são estas as pragas que nos veem com as estradas e com a civilisação. Fugi d'elles, que trazem o demonio na alma! Homens sem religião, mulheres sem temor de Deus, mações, pedreiros livres, vindes para aqui tentar as almas? Eu vos esconjuro! eu vos requeiro! Vade retró, Satanaz, vade retró! vade retró!...

E de cada vez que repetia a fórmula exorcista, o missionario estendia o braço na direcção de Henrique.

Este, desde que viu que a imprecação lhe era dirigida, levantou-se e fitou o padre com ousadia imprudente. Preparava-se para lhe responder alli mesmo.

Quando o missionario concluiu, o sussurro da igreja degenerou em desordem. Das beatas transmittiu-se a revolta aos homens do campo, cuja má vontade, para com a gente das cidades, cresce sempre que se suspeitam alvo dos desdens ou zombarias d'esta. As ameaças soavam já distinctas, os varapaus mexiam-se pouco pacificamente, o escandalo tomára proporções assustadoras.

Christina quasi desfallecia; Magdalena, pallida, mas sem perder a presença de espirito, que nunca a abandonava, segurou o braço de Henrique e queria obrigal-o a retirar-se da igreja.

Henrique resistia e procurava falar.

O velho Torquato, trémulo e enfiado, puxava tambem por elle como podia.

O alarido, a confusão, a desordem recrudesciam. O padre tinha perdido a cabeça, e do pulpito animava a anarchia, berrando e bracejando.

Alguns homens prudentes, e entre elles o santo homem de um cura que havia na freguezia, obrigaram, quasi á fôrça, Henrique a sair da igreja por a porta da sacristia.

Ao vêl-o retirar, acompanhado das senhoras, o povo precipitou-se em confusão para a porta principal, para os vir esperar á saída da sacristia, e correu clamando atordoadoramente.

E de feito, quando alli chegaram, viram-se em frente de uma impenetravel parede humana, de centenares de rostos que os fitavam furiosos, de braços que os ameaçavam, e de bôcas d'onde partiam gritos de «morte aos pedreiros livres, aos libertinos e aos herejes.»

Magdalena recuou; Christina encostou-se-lhe ao hombro, quasi desmaiada.

Henrique parou á porta, pallido, mas sem recuar deante d'aquella gente furiosa e ameaçadora.

―Que querem de mim e d'estas senhoras?―perguntou elle, com voz firme.

Em vez de responder-lhe, berraram com mais violencia:

―Morra o pedreiro livre!

―Ensinem esses senhores da cidade!

―Pouca vergonha!

―Isto não fica assim! Isto é de mais!

―Mação!

―Hereje!

―Quero passar!―repetiu Henrique, no mesmo tom imperioso.

―Havemos de ensinar estes fidalgos.

―Excommungados!

―Havemos de lhes dar os risinhos na egreja.

Henrique não podia já reprimir a impetuosidade do genio; deu um passo para elles, levantando o chicote que trazia na mão.

Era uma imprudencia perigosa. N'um momento uma verdadeira nuvem de varapaus cruzou-se sobre a cabeça d'elle.

E os gritos de «morra! mata! abaixo os pedreiros livres e herejes!» levantaram-se mais ameaçadores do que antes. Magdalena susteve, a tremer, o braço de Henrique.

E o tumulto crescia cada vez mais e cada vez mais augmentava o perigo.

Uma grande pedra, impellida de longe, veio bater na verga da porta da sacristia, e na quéda ameaçava ferir a cabeça de uma creança que, entremettendo-se no grupo dos amotinadores, conseguira collocar-se junto de Magdalena, e de olhos espantados assistia áquillo tudo com infantil curiosidade, emquanto a mãe afflicta a chamava em altos gritos, procurando-a no adro. A morgadinha, estendendo as mãos para proteger a cabeça da creança, foi ferida nos dedos pela pedra. Com gesto sereno, e em tom desaffectadamente reprehensivo e ao mesmo tempo placido, disse para toda aquella gente:

―Não vêem que iam matando esta creança?

Esta simples acção, e estas palavras da morgadinha, produziram mais effeito do que todos os arrazoados e todas as resistencias. Havia n'ellas claros indicios de uma indole generosa, e a generosidade foi e será sempre um dos mais poderosos elementos para dominar e commover as massas. Sabem-o os especuladores politicos, que tanto se esforçam por simulal-a, quando precisam do povo.

―Quem foi que atirou a pedra?―perguntou um.

―Temos tolice!

―Nada de pedra, olá!

―Então isto é coisa de garotos!

Estava a quebrar-se a furia da onda popular. Os que antes gritavam «morra» achavam já reprehensivel a primeira tentativa de lapidação. E comtudo era a pedra a arma mais prompta para executar a sentença. Era evidente que o maior perigo passára e que um pouco de prudencia resolveria a crise.

O peor era que Henrique possuia em pequeno grau essa qualidade, e, irritado pelo insulto, ia commetter talvez algum acto irreflectido, apesar dos esforços de Christina e de Torquato para o reprimirem.

Uma circumstancia, porém, veio inesperadamente em auxilio d'elles, e concorreu para dissipar a tempestade.

Foi o caso que, depois de ser posto fóra da igreja o Zé-P'reira, que, pelas razões que o leitor já sabe, e inda mais depois do mallogro da interpellação ao missionario, não olhava com bons olhos para este, veio desconsoladamente sentar-se no adro, sobre os degraus de um cruzeiro, tendo ao seu lado o popular tambor, instrumento das suas glorias, e que ainda n'aquelle dia servira á frente da procissão.

Ahi se conservou em quanto durou o sermão. Junto do artista deitára-se a dormir o seu satellite, o rapaz do bombo, o que, a passadas compassadas e valentes, secundava os rufos rapidos e febris que o outro executava na caixa―pancadas que eram, por assim dizer, as virgulas d'aquelles floridissimos periodos acusticos.

Em posição de cansaço e desalento o Zé P'reira monologava, como era habito seu, sempre que tinha o cerebro repassado do espirito familiar.

Lamentava comsigo, o bom do homem, o desmazêlo domestico da sua cara metade; a influencia funesta dos missionarios na paz das familias, e sobre tudo a indifferença que principiava a perceber nas massas para as maravilhas do predilecto instrumento, que elle conhecia a preceito.

Era de facto esta uma das causas dos pesares secretos do hortelão.

Desde que, por influencia do mestre Pertunhas, se instituira a philarmonica na aldeia, Zé P'reira andava triste e desassocegado.

N'aquillo viu elle a morte da sua arte. Um ceci tuera cela, como o que preoccupava e entristecia o arcediago de Notre-Dame de Paris, analogamente inquietava o nosso homem. O espirito e gôsto publico entravam em nova phase, preparava-se uma revolução na arte. O reformador era o mestre Pertunhas; instituindo a banda marcial, verdadeira extravagancia romantica comparada á simplicidade e nobreza classica dos portentosos rufos do Zé P'reira, o mestre de latim realisou um commetimento digno de menção na historia da arte.

Pobre Zé P'reira!

Estas reflexões estavam-lhe acudindo todas, e mantinham-o, havia perto de uma hora, em uma posição contemplativa deante do tombado instrumento de seus ruidosissimos triumphos. Lia-se n'aquelles olhares fixos uma melancolia quasi poetica.

N'esta contemplação o surprehendeu a tumultuosa e subita saída do povo pela porta da igreja, e as scenas de motim que se lhe seguiram. A intelligencia pêrra de Zé P'reira não achou logo a explicação do que via. Pouco a pouco porém os varapaus no ar, os gritos, a confusão, principiaram a dar-lhe uma vaga consciencia da desordem popular.

Os instinctos ordeiros e pacificos de Zé P'reira acordaram, e o homem ergueu-se.

Olhou algum tempo para o logar do maior tumulto, e em seguida passou ao tiracollo a alça do tambor.

Olhou outra vez, e com um pontapé acordou o seu satellite, que, estremunhado, tomou automaticamente para si o bombo do acompanhamento.

Olhou outra vez, e viu nos ares a pedra que feriu Magdalena. Então o Zé P'reira não esperou mais nada, tomou uma resolução, fez um signal ao rapaz, e...

Pom―fez a baqueta d'este, caindo com toda a fôrça sobre a retesada superficie do bombo.

Taplão, taplão, rataplão, rataplão...―responderam as baquetas movidas pelas amestradas mãos do Zé P'reira.

Muitas cabeças de amotinados voltaram-se na direcção do som.

O Zé P'reira proseguiu; adquiria cada vez mais velocidade o jogo das baquetas; começava a ganhal-o o vapor do enthusiasmo.

Principiou a acudir o povo para junto do artista.

Este tomára-se já do raptus, do phrenesi musical. Já não eram só as mãos, eram os cotovelos, eram os joelhos, era a cabeça que rufavam. De olhos fechados, dentes ferrados nos labios, ventas offegantes, contrahidos quasi tetanicamente os musculos do pescoço, a vergal-o para traz, Zé P'reira parecia endemoninhado. Não via, não ouvia, não sentia, não tinha consciencia de si, nem dos seus actos; todo elle era fogo, delirio, convulsão, febre, loucura. Parecia que poderosas correntes electricas se transmittiam do tambor ao cerebro, e do cerebro ao tambor, desafiando aquelles movimentos choreicos, aquelles grunhidos surdos, aquellas visagens extravagantes, aquellas contracções geraes, que o torciam, desconjunctavam e desfiguravam.

Vencera-o completamente a febre; sangue, nervos, musculos, cerebro, tudo era dominio seu; congestionado, allucinado, louco, rufou, rufou, rufou com desespero, rufou até as baquetas se não avistarem, de rapidas que se moviam; rufou até o ouvido quasi não perceber a descontinuidade dos sons; rufou finalmente até cair por terra exhausto, no collapso que succede ás convulsões do espasmo. Se tinha de ser aquelle o declinar de uma gloria, todos os astros lhe invejariam tão esplendido crepusculo.

O povo inteiro applaudiu o artista.

E quando voltaram a si do extase em que elle os tivera, acharam já fechadas as portas da sacristia e nem vestigios da familia do Mosteiro. O povo dispersou pacificamente.

XX

Passados dias voltava o Herodes do Porto, quando nas proximidades da aldeia encontrou alguns homens a cavallo, que lhe eram desconhecidos.

O leitor que tenha sempre vivido n'uma cidade populosa, onde lhe é impossivel conhecer todos os que com elle habitam na mesma terra, mal pode fazer ideia da sensação que produz no habitante de uma aldeia, villa ou cidade pequena, a presença de uma cara estranha.

Formam-se-lhe logo no espirito mil conjecturas, e a mais inquieta curiosidade instiga-o a decifrar a significação d'aquelle apparecimento.

Isto aconteceu com o Cancella.

Desde que avistou os desconhecidos, que dissemos, não tirou mais os olhos d'elles. Eram tres em numero, traziam grandes botas, e largos chapéos, mantas ao hombro, usavam bigodes e lunetas escuras.

―Passaros de arribação...―pensava o Herodes comsigo―que vento traria isto para aqui?

E, chegando-se mais de perto, saudou-os cortezmente.

Um d'elles dirigiu-lhe a palavra:

―Olá, ó amigo, onde ha por aqui uma casa habitavel, em que nos alojemos?

―Por pouco ou por muito tempo, meu amo?

―Por o tempo que levar a construir uns quinze kilometros de estrada.

―Ah! então v. sr.as são engenheiros?

―Julgo que sim.

―Então, visto isso, as estradas sempre vão principiar?

―Antes de arranjarmos casa em que fiquemos, de certo que não.

―Ai, sim, querem uma casa... Eu lhes digo, não tem nada que saber; os meus amos vão por ahi sempre a direito, e lá adeante, chegando ao pé de uma oliveira, tomam á sua mão esquerda por um caminho estreito, que tem uma cancella no fim; depois, logo que virem uma nora, carregam á direita, seguem sempre ao lado de um muro branco, até chegarem á eira; ahi tomam por um outro atalho, que está ao lado e vão dar a um larguinho... Depois não tem que saber, deitam pela rua em frente e perguntando alli pela estalagem da Mouca, logo lhe dizem.

Os tres cavalleiros olharam uns para os outros, consternados com a explicação.

Iam a dirigir mais algumas perguntas, quando passou por alli uma rapariguita, guardando porcos, que parou pasmada a olhar para os engenheiros.

―Se v. s.as querem, esta pequena vae ensinar-lhes o caminho.

Acceitaram contentes, e cêdo partiam, precedidos por a pequena cicerone.

―Grande novidade!―ficou dizendo o Cancella comsigo―sim, senhor; com que vão principiar as estradas! Pois nunca cuidei que fôsse nos meus dias. Então... querem vêr que sempre sae certo o que eu ouvi dizer, que vae abaixo a casa e o quintal do tio Vicente?... Pois se querem vêr... O pobre homem estala de paixão, se isso assim é; isso é com certeza... Pois, senhores... isto de estradas... é bom, é; pois não é? Sempre é outro arranjo para quem tem de ir á cidade...

Nova surpreza esperava o Herodes n'este regresso aos lares. De longe ainda, divisou affixado á porta da igreja um edital. Outra circumstancia que nas cidades nem nos obriga a desviar a cabeça, porém que nas aldeias toma as proporções de um grande successo.

―Ui! Temos novidade―disse o Herodes ao vêl-o.―Edital á porta da igreja!―e approximou-se para ler.

Proclamava o chefe do concelho aos seus administrados que, por ordens terminantes do governo, eram, desde aquella data, expressamente prohibidos, sob as mais severas penas, os enterramentos no interior da igreja, e que todos se fariam no cemiterio, para esse fim já construido. Havia no logar um grupo de populares commentando a ordem e murmurando contra o governo e contra o conselheiro, e falando de opposição e motim.

―Bom, mais outra!―dizia o Herodes, ao apartar-se do logar.―Grandes coisas se passaram cá na terra, emquanto eu andei por fóra! O peor é que não sei se a coisa irá assim ás mãos lavadas; ao que já ouço por ahi rosnar!... É o diabo!... Eu digo, não sei se é do costume em que uma pessoa se põe... mas... lembrar-se, a gente de que fica assim á chuva e ao sol... Mas é do costume, é... Bem sente lá uma pessoa o frio depois de morta.

E fazendo estas reflexões proseguiu no seu caminho.

Passou por uma pequena capella, erecta á borda de um pinheiral, sob a invocação da Virgem da Esperança, e reteve-se a fazer oração. Áquella imagem costumava encommendar a filha, sempre que saía da aldeia, e no regresso pagava-lhe em fervorosas orações a protecção obtida, e separava-se d'alli mais consolado e tranquillo. D'esta vez, porém, ficou triste e sobresaltado. Porquê?

É que se lembrára de que tinha, ao partir, deixado Ermelinda doente, e estremecia agora na incerteza de como a iria achar.

Esta ideia fel-o apressar o passo, como se quizesse, quanto antes, tirar-se d'aquella incerteza; mas desde que avistou os telhados e muros da casa parou irresoluto.

Parece que os objectos inanimados nem sempre teem para nós um mesmo aspecto. Ha occasiões em que as casas, as arvores, os muros, as portas, se nos mostram com certos ares melancolicos, e quasi direi pensativos, que nos enchem de sombras o coração; outras em que umas apparencias de sorrisos lhes dão uns ares de festa que alegram e convidam.

Ao Herodes apparecia-lhe triste d'esta vez a casa, que de ordinario, ao avistal-a, lhe enviava um sorriso a dar-lhe as boas vindas.

Seria o effeito das tintas desmaiadas, que dá aos objectos o sol crepuscular? Seria o reflexo dos presentimentos proprios, que lhe estavam confrangendo o coração? Mas como lhe acudiram tão de subito esses presentimentos, a elle, ainda pouco tempo havia tão despreoccupado! Como lhe occorrera de repente a memoria d'aquelle dia em que, voltando tambem de fóra, viera encontrar quasi morta a mulher, que chorava ainda, a mãe de Ermelinda? Phenomenos que se perdem na parte obscura da vida moral, da qual ainda a analyse não conseguiu devassar as sombras.

Crescia o sobresalto do pobre homem ao pousar os pés nos primeiros degraus da escada de pedra. Ao passar pela porta do compadre, não tivera coragem de perguntar; receiou sair da incerteza.

Foi quasi a tremer que empurrou deante de si a porta da casa, que encontrou aberta.

Logo ao entrar, recuou espantado e não reprimiu uma exclamação de surpreza.

Fôra a causa o achar novidades na primeira sala.

Deu com os olhos n'uma fileira de pequenas cruzes de pau preto que cercavam as paredes, e em alguns caixilhos com imagens de santos, que não deixára alli ao partir. E ninguem a recebel-o.

―Crédo!―disse o Cancella, desgostoso.―Para longe o agouro! Cruzes negras á chegada! São coisas da comadre. Maldita velha! Jurou metter-me scisma em casa e na cabeça da rapariga, e se não lhe acudo...―Ermelinda!―exclamou, chamando por a filha.

Como não recebesse resposta, passou para os aposentos interiores.

Á entrada do corredor descobriu uma pequena pia de louça cheia de agua benta, em que mergulhava um ramo de alecrim.

―Mau!―disse o Herodes, cada vez mais descontente.―Vou vendo que a minha comadre fez por aqui das suas. Ora queira Deus... queira Deus... Ermelinda!

E correu toda a casa, que não tinha muito que correr, e explorou o quintal, e sem achar a filha; já inquieto, chegou a um quarto mais retirado, o unico que ainda não revistára. A porta estava fechada por dentro, porém a péquena cravelha fraca resistencia oppoz á pressão que na porta exerceu o Herodes.

Franqueando assim a passagem, parou no limiar.

Moveu-se, ao ruido que elle fez, um vulto que parecia ajoelhado n'um canto escuro do quarto.

―És tu, Linda? Estás ahi?―perguntou o Cancella, affirmando-se n'aquelle vulto, sem ainda o reconhecer,

―Meu pae... respondeu com voz fraca.

―Que fazes tu aqui mettida e fechada n'este quarto, filha? no quarto mais escuro e mais abafado de toda a casa? Chega-te cá, rapariga, quero-te abraçar e beijar... Então que é isso?... Tens hoje tão pouca pressa de abraçar teu pae?... D'antes, até ao caminho me vinhas esperar... Vem cá, minha filha, vem cá... Se soubesses como me consola...

E estendia os braços para a filha, que lhe viera emfim ao encontro. Quando, porém, a viu mais perto da luz, calou-se subitamente e principiou a examinal-a com inquieta anciedade. Depois, como se lhe não bastasse a luz d'aquelle recinto para desvanecer não sei que suspeitas assustadoras que o devoravam, trouxe, silencioso ainda, a filha para o corredor, e continuou ahi a fital-a com os olhos eloquentes de paixão e de espanto, bradando emfim, com voz consternada:

―Que é isto!... Que tens tu, filha?... Estás doente? Estas não são as tuas feições... Os olhos pisados... as faces abatidas... sem côr... sem risos... sem saude!... Linda, tu que tens? Dize: choraste, filha? Estás doente? Fala! Anda, fala!... por piedade!... por amor de Deus, Linda, fala!

A rapariga, em vez de responder, desatou a chorar.

―Meu Deus! Isto que é, meu Deus?―exclamava, mais assustado, o pae.―Choras ainda mais? Que te fizeram, filha? Ó Linda, tu não tens pena de mim? não chores!... Ou chora, chora, se te faz bem chorar; mas... fala, dize-me o que tens, dize-me por que choras, filha... Então?

E com voz trémula, com as mãos unidas e o susto no gesto, como no coração, o pobre homem quasi ajoelhava a implorar da filha a explicação d'aquelle doloroso mysterio.

Como ella não respondesse ainda, continuou o afflicto pae, cada vez mais commovido:

―Ai os presentimentos do meu coração! Não sei o que me dizia isto! Não sei! Meu Deus, meu Deus! E como te pareces com tua mãe n'aquelle dia em que... Nem quero imaginar... Ó filha, filha, não vês que me matas assim? Fala!

E beijava-a e afagava-a, e cobria-a de lagrimas ardentes, que mais lagrimas desafiavam á creança, sem que a fizessem falar.

Nos movimentos desordenados que fazia, o desgraçado parecia louco. Elle apertava as mãos da filha, levava-as aos labios, abraçava-a, tomava-a ao collo, pousava-a no chão; ora a attrahia a si, ora a afastava, sem saber o que fizesse, n'essa incoherencia de actos que produz um espirito inquieto.

Como para melhor examinar aquellas feições queridas, cujo abatimento e pallidez tanto o assustavam, afastou da fronte da creança, com as mãos trémulas, o lenço que lhe envolvia a cabeça; mas de repente retirou-as, soltando um grito medonho, ergueu-se e recuou com terror.

Depois, fitou a filha com olhar desvairado, e, sem pronunciar uma palavra, quasi que a arrastou para mais perto da luz, que entrava no corredor pela porta aberta do quintal; ahi, arrancou com impeto febril o lenço da cabeça de Ermelinda; um novo grito, mas d'esta vez rouco, abafado pela dor, cortado pelos soluços, saíu-lhe do seio, e elle, o desgraçado pae, desatou a chorar como uma creança.

É que aquelles formosos cabellos louros de Ermelinda, que com tanto amor beijava, que com tanta soberba lhe desatava pelos hombros, o orgulho, o enlevo do seu coração de pae, aquelles cabellos louros haviam caído aos golpes de uma tesoura desapiedada e quasi irreverente.

Só quem fôr pae pode conceber toda a desesperadora afflicção em que esta descoberta lançou o coração d'aquelle.

Ermelinda caiu-lhe aos pés, de joelhos, chorando tambem.

Por algum tempo, nada mais se ouviu alli dentro senão os soluços de ambos.

A reacção não se fez, porém, esperar muito no animo violento do Cancella.

Afastou com vivacidade as mãos do rosto, ergueu a cabeça, e, com os olhos inflammados de raiva e de cólera, disse para a filha, tremendo e gaguejando, tal era a impetuosidade dos sentimentos que se lhe amontoavam no coração:

―Quem foi?!... Responde! De quem foi essa mão atrevida que fez isto?... Fala! Não ouves? Quero sabel-o, para cortal-a mais rente do que te deixou os cabellos... E tu, desgraçada, tu, consentiste! Má filha, filha desagradecida e sem coração, que assim deixas que me roubem as minhas riquezas e alegrias! A teu pae!... É assim que pagas o amor com que te tenho creado?... a adoração com que de pequenina te tratei? É assim? É com este desamor?! e com esta ingratidão?!

―Meu pae! meu pae!―implorava Ermelinda, suffocada pelo pranto.―Perdôe! Não se affiija assim, meu pae, que me mata! Não vê?... Escute... Para servir a Deus... foi para servir a Deus que eu os cortei... A vaidade é um peccado grande.

―Quem te ensinou isso?... Quem te aconselhou a que os cortasses? Fala!...

―Por alma de minha mãe, não me fale assim, que me assusta!

―Vá! Pois já não falo... Eu estou socegado... Mas então? eu não hei de saber?... Bem vês que eu precíso de saber!... Vá!... Eu sou teu pae. Ordeno... Peço... Dize, filha, quem foi?

―O missionario...―ia a dizer Ermelinda.

O pae não a deixou proseguir.

―Ah! Já sei! O missionario! É isso! Os padres... as beatas... tua madrinha! A bruxa a quem eu confiei a filha e que m'a entrega assim! Vendeu-m'a ás mãos d'esses malvados sem dó, sem consciencia, sem religião, sem Deus...

―Meu pae, não diga isso! Não fale assim, que é peccado.

―Cala-te que grande, maior peccado fizeste tu, affligindo assim teu pae! Os missionarios! Quem lhes deu o direito? Quem lhes ordenou... Deus? Se Deus é assim, se Deus quer estas crueldades... Deus não é Deus, e eu não o reconheço nem adoro!

Ermelinda tremia de terror, ouvindo estas palavras, que a irritação e o desespero estavam dictando ao pae. A timida e nervosa creanca horrorisava-se, ouvindo aquellas phrases audaciosas, e quasi blasphemas, e a cada momento esperava vêr cair um raio fulminador a castigal-as.

―Por amor de Deus―murmurava ella, com a voz chorosa e quasi sumida―por alma de minha mãe!...

―Cala-te! não fales em tua mãe, que não mereces dizer esse nome! Tua mãe! Aquella sim, que sabia como eu lhe queria; que sempre lidou para me não causar penas, e que só com a sua morte me fez chorar lagrimas, tão amargas e tantas, como eu choro agora!

E chorava cada vez mais, chorava, como um fraco, aquelle homem forte e valente, chorava, porque tinha um coração de pae.

Ermelinda lançou-se-lhe nos braços, cobrindo-o de afagos e beijos.

―Perdôe-me, meu pae! perdôe-me!―dizia ella.―Se soubesse... Fui eu que pedi... Fui eu que sonhei... Não chore assim, meu pae! Não culpe ninguem, fui eu, eu que pedi a minha madrinha!... Foi por a salvação da minha alma, porque...

―E foi tua madrinha que t'os cortou?

―Foi, mas... É que o missionario tinha dicto... O missionario é um santo!... Não olhe para mim d'esse modo, meu pae, que me faz mêdo.

E cobria os olhos com as mãos, para não ver a expressão do rosto do Cancella.

―Querem matar-me a filha―bradava elle.―Ó meu Deus! pois não é isto um grande peccado? fazer da creança, linda e alegre, que eu deixei aqui, esta desgraçada rapariga, sem côr, sem risos, sem alegria! Não é isto um crime, meu Deus? Não se vos pode amar e servir, Senhor, senão com lagrimas, com penitencias e com tristezas? Não! Mentem elles! mente esse missionario! mente essa mulher! mentes tu, filha! e maldicto seja quem traz assim o desespero ao coração de um pae.

E o Cancella levantou-se exasperado, sacudindo rudemente de si a filha, cada vez mais gelada de terror e afflicção. Deu alguns passos no corredor, e voltou ao quarto onde a encontrára. Ella seguiu-o de mãos postas, chorando, pedindo-lhe que se não affligisse assim. Mas o Cancella era dominado pela impetuosidade do seu genio. Nem a ouvia. De repente, parou, fitando os olhos no registo do Coração de Maria, que alli fôra introduzido por a mulher do Zé P'reira. Estava adornado com jarras de flores e vélas de cêra; era a esta imagem que Ermelinda fazia oração, quasi extatica, quando o pae entrou.

―Coração de Maria!―disse o Cancella, quasi desvairado, conservando a vista fixa na imagem, e como falando para si.―Coração de mãe, e de mãe extremosa, que foi esta, e bem lanceada de dores. Soube o que é querer a um filho, o que é vêl-o padecer... o que é perdel-o... E será ella a que deseja as lagrimas, as tristezas e a morte d'esta creança?... as desventuras de um pae?... Ella! Não! E se tu o queres―continuou allucinado, voltando-se para a imagem―e se não podes ser adorada senão assim, é porque és falsa, falsa como a mão que ahi te pintou, falsa como as bôcas que te prégam os milagres. Vae-te!

E no accesso de raiva, que cada vez mais crescia n'elle, fez voar o caixilho, as jarras e os castiçaes pelo ar, e tudo veio fazer-se pedaços no pavimento.

Ermelinda soltou um grito dilacerante e agudissimo ao vêr aquillo. O terror seccou-lhe as lagrimas. Com o olhar espantado, as faces quasi lividas, as mãos juntas, quiz falar, mas não pôde; moviam-se-lhe os labios descórados, mas não lhe saía a voz da garganta.

Cada vez mais cego pelo desespero, o pae já não a attendia. Passou outra vez ao corredor, derrubou, em igual accesso de furia o vaso da agua benta, bradando:

―Vae-te, que estás empestada tambem pelo bafo maldicto da impostura.

Ermelinda lançou-se-lhe aos pés, abraçou-o pelos joelhos para o reter, mas elle não a sentia, e, continuando a caminhar desorientado, quasi a levou de rastos á outra sala.

Ahi, imagens, cruzes, esculpturas, tudo lançou por terra, tudo despedaçava ou rasgava.

N'este impeto de loucura, n'esta cegueira de raiva, não viu a filha que, como se galvanisada pelo terror, ergueu-se arquejante, com os braços estendidos, fazendo esforços para falar, e caindo por fim no pavimento inerte e fria como um cadaver.

Attrahida pelos gritos e rumor que partiam da casa do Cancella, a madrinha de Ermelinda acudiu a vêr o que era aquillo.

Chegando ao limiar da porta, assistiu ainda ao final da scena que descrevemos; ia a gritar, mas o olhar e gesto com que a fitou o Cancella cortou-lhe a fala na garganta.

Era de facto um olhar selvagem e sinistro.

A sr.a Catharina parou.

―Que vem fazer aqui, mulher?―dizia-lhe o Cancella com voz cavada.

―Eu...

―Vem acabar de matar-me a filha, serpente? Vem empeçonhar estes ares, onde metteu a tristeza?

E, a cada pergunta que fazia, dava para ella um passo e ella recuava outro.

Crescia outra vez a impetuosidade nas paixões e nas palavras do Herodes.

―Saia! saia da minha vista, se não quer que eu lhe faça como fiz a esses feitiços com que me enfeitiçou a filha, com que m'a quiz matar.

A velha ganhou animo ao vêr-se fóra da porta e por isso disse:

―Lá se vê quem a matou. Repare e diga se não tem remorsos, carrasco!

Estas palavras fizeram quebrar a vehemencia do desespero do Cancella.

Voltou-se, e vendo a filha estendida no chão, quasi como morta, com a pallidez, com a immobilidade, com a apparencia de um cadaver, correu para ella, soltando um grito angustioso, e principiou a chamal-a pelo nome, beijando-a, chorando, pedindo misericordia a Deus, pedindo perdão a ella, soltando palavras sem nexo, arrepellando-se, ferindo-se.

A velha, que já não o temia, ao vêl-o assim, vingava-se agora chamando-lhe impio, hereje, malvado, assassino da filha, condemnado de Deus... e elle, o desgraçado, tudo escutava humildemente, com remorsos, e implorando misericordia.

―Não! ella não ha de morrer-me assim... Deus não pode consentir n'isto. Não deixará que eu tenha assassinado minha filha. Ah! senti-lhe o coração!... vive!... senti-lhe o coração bater... Olhe! venha vêr... pouse aqui a mão, comadre, no peito d'ella, aqui... Não sente? É o coração, não é? Não lhe parece que não morreu? Ar, ar, é do que ella precisa.

E erguendo-se, correu, com a filha nos braços, para o meio da rua.

Ermelinda ainda estava sem accôrdo. Juntaram-se algumas mulheres, attrahidas pelo espectaculo e pelas arguições da beata, que não cessára de falar.

Foi voz unanime que a pequena estava a expirar. O Cancella tremia e pedia por amor de Deus que lhe não dissessem aquillo.

Subitamente, soltou um grito de triumpho e poz-se a rir como doido. Ermelinda tinha aberto os olhos.

Mas, ao fital-os no pae, instinctivamente desviou a cabeça, como se o aspecto d'elle lhe causasse terror.

―Filha! disse o Cancella, tremendo de interpretar aquelle gesto e com maior consternação na voz e no olhar.

Ermelinda, sempre com os olhos fechados, começou a tremer convulsivamente e n'uma anciedade extrema.

―Deixe a pequena!―disse a beata―não vê que lhe faz mêdo? E com razão, pobre creança! depois do que viu!

―Pois eu hei de fazer mêdo a minha filha?―repetiu timidamente o pae.―Eu?! Ó Ermelinda... pois tu...

Um estremecimento, que correu pelos membros da rapariga, fel-o calar. Commovido, consternado, passou-a para os braços da velha, e sentou-se a soluçar como uma creança, dizendo entre gemidos:

―Perdi o amor de minha filha! perdi o amor de minha filha! Ai que desgraçado que eu sou!...

A scena era bastante commovente, para que se não sentissem impressionadas todas as pessoas que ella attrahira alli.

Houve um longo silencio, só interrompido pelos roucos soluços do infeliz, em quem entrára o desespero no coração.

Este silencio permittiu ouvir-se um vago som, como de musica longinqua, que, a pouco e pouco, se percebeu ser um côro de vozes femininas; cêdo a toada e depois da toada a lettra, principiou a tornar-se distincta.

Ouviram-se perfeitamente estas palavras:

Vinde, vinde, ó missionarios,

Com a palavra de Deus

Libertar-nos do peccado,

Encaminhar-nos aos céos.

O Cancella ergueu a cabeça e poz-se a escutar.

As vozes continuaram:

Minha alma por vós anceia,

Ó ministros do Senhor!

E o meu peito em chammas arde,

Em chammas do vosso amor.

O Cancella principiou a abanar a cabeça, e os olhos animaram-se-lhe de um fulgor extranho.

O côro soava cada vez mais perto, e dentro em pouco desembocou na rua, em que se passavam estas scenas, um singular cortejo.

O missionario, que nós já conhecemos, por o termos visto em pleno exercicio de suas funcções predicatorias, vinha seguido por uma cohorte de mulheres de roupas escuras e cabellos cortados, que cantavam em chorada cantilena estas e analogas quadras, que os missionarios ou os agentes seus teem quasi sempre o cuidado de vulgarisar como preparatorios dos animos impressionaveis das mulheres e das creanças.

Ia em meio uma d'estas quadras, quando se approximava a procissão da casa do Cancella.

Este já estava em pé no meio da rua, á espera d'ella.

O missionario viu aquelle homem grande e immovel no meio do seu caminho, aquelle agigantado vulto que, virado de costas para o poente, se lhe apresentava escuro como um phantasma, e não conjecturou bem do que via. Por isso parou tambem, olhando para elle. O côro suspendeu-se.

O Cancella fitou por algum tempo em silencio o padre, e perguntou-lhe:

―Sabe quem sou?

O padre fez um signal negativo com a cabeça.

―Sou um homem desesperado, um homem que, n'este momento, nem ouve Deus.

O padre olhou inquieto para traz de si e para os lados, como quem procurava uma saída para caso de necessidade, pois dizia-lhe a razão que um homem que não ouve Deus não estaria muito disposto a escutal-o, a elle, humilde creatura.

―Sabe o que lhe quero? Perguntar-lhe por a alegria e por a saude de minha filha; perguntar-lhe por o amor d'ella, que me roubou; perguntar-lhe a que demonio offereceu os cabellos d'aquella creança sem culpa nem maldade; perguntar-lhe com que veneno lhe envenenou o coração, e depois... depois matal-o.

O padre enfiou; ia a abrir a bôca para falar, mas viu caminhar para elle o Cancella, viu no ar aquella mão musculosa e larga, e, calculando a violencia do embate pelo volume do braço, julgou-se de antemão esmagado, e só pôde encolher os hombros, fechar os olhos, contrahir comicamente as feições, e suspender a respiração, aguardando n'esta postura o golpe, que não podia evitar.

Este de facto não foi suave. A mão do Cancella caíu em parte sobre o cabeção, em parte sobre o pescoço do padre, e com tal fôrça, que este foi constrangido a ajoelhar.

―Anda, meu impostor do inferno!

E uma forte sacudidela o impelliu para deante e restituiu de novo á primeira posição. O chapéo rolou a alguns passos de distancia.

―Anda, meu envenenador de almas!

Nova sacudidela seguida de iguaes resultados; e os oculos seguiram o caminho do chapéo.

―Anda, meu calumniador de Deus!

E d'esta vez o Cancella principiou por collocar o padre em pé, e após, dando-lhe um forte impulso e soltando-o das mãos, deixou-o ir á mercê da fôrça transmittida.

O padre estendeu os braços instinctivamente para se amparar na quéda provavel, e, pé aqui, pé acolá, a passos descommunaes, escapou miraculosamente de cair, porém não conseguiu parar senão a muitos metros de distancia.

Escusado é dizer que esta scena não correu entre o silencio dos espectadores. Mal o Cancella levantou a mão sobre a cabeça do padre, as beatas ergueram um alarido de atroar céo e terra.

―Aqui d'El-rei!

―Aqui d'El-rei sobre o Herodes!

―Aqui d'El-rei, que matam o sr. fr. José!

―Quem acode ao sr. fr. José?!

―Ai, que matam o santinho do missionario!

E estas e outras vozes pipilavam, uivavam e chiavam aquellas esganiçadas mulheres, sem que o zelo religioso as decidisse, porém, a intervir mais activamente.

A celeuma attrahiu gente, e, no numero, alguns cabos de policia, que, em cumprimento de seus deveres, se acercaram do Herodes, mas com respeito.

Este, porém, não oppoz resistencia.

Tinha-lhe passado a furia e voltou-lhe o desalento.

Assim deixou-se levar em prisão, acompanhado das imprecações das beatas e dos gritos de indignação dos homens.

As devotas mulheres correram para o missionario.

Umas levavam-lhe o chapéo, outras os oculos, outras o capote.

―Magoou-se, sr. fr. José?

―Doe-lhe alguma coisa?

Mas o padre não se demorou a informal-as. Limitou-se a abanar com a cabeça negativamente e deitou a correr, como se visse atraz de si ainda a mão espalmada do Cancella, prompta a cair-lhe outra vez sobre a cabeça.

Quando o Cancella chegou a casa do regedor, já a multidão engrossára e em altos gritos pedia o castigo do criminoso.

O regedor tinha a precisa finura para saber condescender com a multidão. In continenti, redigiu um officio ao administrador, no qual foi tão feliz que escreveu tres palavras com boa orthographia; e, falando ás turbas, disse que estavam dadas as providencias, e que o crime havia de ser punido com todo o rigor das leis.

XXI

O acto violento do Cancella, contra a pessoa do missionario, foi assumpto das conversações geraes de toda a aldeia. Era com indignação que se commentava a façanha. Dizia-se que o Cancella fôra apenas o instrumento de que se servira a gente do Mosteiro para se vingar do padre, pela occorrencia da tarde do sermão.

Os adversarios do conselheiro aproveitaram o ensejo que se lhes offerecia para lhe alienarem sympathias e tentarem um cheque, pelo qual havia muito suspiravam.

O missionario e os seus ardentes sequazes fôram dos mais acerbos propugnadores d'estas ideias, que reforçavam com muitas accusações, de hereticos e de impios, contra todos os membros da familia do conselheiro.

A politica viu n'isto uma arma favoravel para combater o adversario, e não a desprezou; depois, veio a portaria a respeito do cemiterio, manifestamente devida á iniciativa do pae de Magdalena, e impopularissima na aldeia, augmentar a irritação dos animos e servir de thema a uma violenta diatribe do missionario contra a impiedade da época, que nem aos fieis concedia a santa consolação de repousar á sombra dos templos.

Tudo isto começou pois a fomentar uma reacção contra o conselheiro, a qual ameaçava o resultado da sua candidatura.

Não pequena parte n'esta guerra surda, que principiára a lavrar, tomava o seu companheiro de infancia e particular amigo o brazileiro Seabra.

Nunca elle sentira entranhada no coração metade da bem-querença que apparentemente ostentava para com o conselheiro: mas depois de uma conferencia que tivera com mestre Pertunhas tornára-se mais manifesta a sua hostilidade e menos observadora de etiquetas e rebuços.

Foi elle, por exemplo, quem teve o cuidado de lembrar que a familia do conselheiro estava de posse de bens religiosos; circumstancia que o missionario attendeu, clamando do pulpito contra os delapidadores dos bens da Igreja.

Foi tambem o brazileiro quem trouxe á flor de agua os antigos excessos demagogicos, que caracterisaram o principio de carreira politica do conselheiro, e referira, com modos de horrorisado, a substancia dos exaltados discursos que elle proferira nas camaras, advogando ideias cuja só exposição ferira de pavor a imaginação dos povos.

Finalmente, até o principio dos trabalhos para as estradas, cujo protrahido adiamento fôra até aquelle tempo um capitulo de accusação contra o pae de Magdalena, servia agora de arma á opposição.

O brazileiro, em attenção a quem se adoptára o traçado que ia ser posto em execução, era o que provava á saciedade com grande exhibição de cifras e de razões economicas, ser esse traçado, sobre dispendioso, irracional.

E cumpre advertir que estes argumentos ouvira-os elle ao proprio conselheiro, quando este os allegava para vêr se conseguia demovel-o do empenho que mostrava em que o traçado em questão fôsse preferido aos outros. Tal era o estado das coisas publicas na terra no dia em que principiaram os primeiros trabalhos de campo.

Tinham-se passado alguns dias depois da prisão do Herodes.

A aldeia vira-se invadida por um bando de sêres desconhecidos, que vieram alterar a perenne serenidade de animo de uma população habituada a considerar como occorrencias de maximo interesse a reforma dos muros ou das cancellas de qualquer proprietario da localidade.

A cohorte de engenheiros, conductores, apontadores, cantoneiros e mais operarios vinha, com seus habitos e costumes novos, fazer tantas ou maiores mudanças na vida moral da aldeia do que nas condições physicas d'ella as bandeirolas, os niveladores, as enxadas, as pás, alviões, picaretas, carros de mão e padiolas, de que era armada essa cohorte.

Por isso corria uma verdadeira romagem para o logar onde com a maior actividade tinham começado os trabalhos. Era como já dissemos, na casa do herbanario. Pela demolição d'ella, e do quintal que a rodeava, principiaram as obras.

O velho Vicente assignára dias antes o auto de expropriação e recebera o preço da venda, estipulado, o qual, por influencia do conselheiro, não lhe foi muito regateado.

Elle, porém, o desconsolado velho, recebeu-o comovido. Por as arvores nada quiz; não podia resignar-se a vendel-as. Podia vêl-as cair, como amigos sacrificados no cadafalso, mas mercadejar-lhes com os restos, isso não.

O desinteresse e o escrupulo do herbanario serviu á Fazenda Nacional de compensação ao excessivo preço por que fôram expropriados os bens de que o brazileiro se apossára, com o patriotico intuito de promover os seus melhoramentos particulares, preço que por empenho do conselheiro não foi litigado.

Ao principiarem os trabalhos, alguns grupos populares tentaram resistir, mas refrearam-se, em parte pelo respeito devido á cohorte de operarios melhor armados do que elles, em parte cedendo ás imperiosas ordens do herbanario, que, ao sair pela ultima vez da casa, onde envelhecera, lhes disse, com voz irritada e severa:

―Quem lhes pediu que defendessem estas arvores? Que amor lhes tendes vós, para vos amotinardes por causa d'ellas? Para traz!

Os instigadores das massas conheceram que não era aquella a occasião nem aquelle o pretexto proprio para os seus projectos, e adiaram, em vista d'isso, a empresa prudentemente.

Era ao fim da tarde de um dia ennevoado e frio, de um d'esses dias em que os animos mais fortes se deixam dominar de uma melancolia profunda.

Na baixa em que ficava a habitação do herbanario, ia uma azafama extraordinaria.

O machado demolidor e a alavanca principiaram a sua obra de destruição; desconjuntavam-se as pedras dos muros, desfazia-se em pó a argamassa secular, caíam a golpes de machado as vigas dos tectos e os troncos das arvores, alastrava-se de tijolo e caliça a verdura dos taboleiros, e cêdo, de toda aquella vivenda tão amena e virente, só restavam ruinas.

Numerosos grupos de já pacificados espectadores seguiam com curiosidade as operações de devastação; mas, longe d'alli, a maior distancia do que os indifferentes, assistiam ao espectaculo os unicos olhos que elle orvalhava de lagrimas, o unico coração que elle devéras apertava de dor.

O herbanario foi sentar-se na encosta de um outeiro vizinho, d'onde se divisava toda a scena. Com a cabeça pousada na mão e o braço apoiado sobre o joelho, com voz commovida, dizia adeus a cada arvore, que d'alli via vacillar e cair, como se fôsse um amigo que o precedesse no tumulo. Parecia ter fugido para longe, para pelo menos não lhes ouvir o estertor da agonia.

Ao lado do velho estava Augusto.

Não era tambem sem tristeza que elle seguia os progressos da demolição.

Mais do que uma vez tentára arrancar o herbanario d'aquelle sitio. O velho, porém, resistiu; queria estar alli até vêr cair a ultima arvore.

Ao pinheiral d'onde assistia á scena, chegava em confusão o alarido dos trabalhadores, o rumor do manobrar dos instrumentos, e até o da quéda das arvores cortadas.

O herbanario sempre que via brilhar o machado sobre uma nova arvore, recordava sentidamente algum episodio do seu passado, a que ella estava ligada.

―Lá vae aquella faia!―dizia elle, com intensa melancolia―pobre velha! Era á tua sombra que meu pae me ensinava a ler! Encostava-se áquelle tronco sobre a grossa raiz que elle tem á flor da terra e pegando em mim ao collo, guiava-me nas primeiras lições! E viver eu para te vêr cair!

E, ao perceber-lhe balançar as sumidades, o velho fechou os olhos instinctivamente. Cêdo ouviu um estrondo... Quando os abriu, estava por terra a faia.

―Agora é a tua vez, pobre carvalho!―dizia algum tempo depois―muito queria minha mãe áquella arvore! Por suas mãos a plantou bem tenra. Nunca me sentei áquella sombra, que me não lembrasse da santa mulher! Parecia que eram vozes tuas, que m'a recordavam, infeliz! Barbaros! Olha com que desamor a decepam! Perdôa-me, meu velho amigo, mas bem vês que te não posso valer.

E o carvalho caíu.

―Eil-os agora comtigo, cerdeira. Mal adivinhavas tu, quando o anno passado te enfeitavas com aquellas cerejas escarlates, que tanto cubiçavam as creanças, que pela ultima vez o fazias!... Adeus, pobre amiga, adeus.

E caía a cerdeira tambem.

E caíam, uma após outra, todas as arvores do quintal, os limoeiros, as nogueiras, os salgueiros e toda a familia vegetal do velho Vicente, que sentia ir-se-lhe com ella a alma. Memorias de infancia, sonhos de juventude, e reminiscencias de velho, como aves invisiveis, occultas nas copas d'aquellas arvores, surgiam agora, espavoridas e desnorteadas, a procurar o refugio que não encontravam fóra dalli.

Por outro lado os delicados sentimentos do herbanario eram dolorosamente feridos, ao desmoronarem-se as paredes d'aquella pequena casa, onde elle envelhecêra e contava morrer, e ao patentear-se indiscretamente aos olhos irreverentes e curiosos do povo aquelle recatado asylo.

A demolição proseguia com ardor e actividade. Em pouco tempo, só restavam da casa os muros, meio derrocados; e, no quintal, a serra e o machado principiavam a exercer no tronco da ultima arvore a sua obra destruidora. Era o castanheiro da entrada, gigante de outro seculo, que desafiára os raios de muitos invernos successivos.

A exaltação do herbanario cresceu n'aquelle momento. Ergueu-se, pallido e trémulo, apoiou-se no hombro de Augusto, murmurando:

―Tambem o castanheiro! Já era arvore quando eu nasci! Como elles se encarniçam contra elle! Mas não te parece, Augusto, que não soffre muito o castanheiro?... Sabes? É que elle já não agradeceria a vida, porque tinha de viver assim desamparado dos seus outros companheiros, que vê caídos no chão... Tarda-lhe talvez o deitar-se ao lado d'elles... É como eu.

O castanheiro principiou a oscillar.

―Repara―disse o herbanario, cada vez em tom mais baixo, e apertando o braço de Augusto.―Elle já treme! Não vês!... Lá lhe deitam a corda... Vae cair!... Parece-me que estou a sentir aquelle estalar de fibras...

E a arvore caíu com fragor no chão, que por tanto tempo cobrira de sombras.

Estava ultimada a obra.

O herbanario encostou a cabeça ao hombro de Augusto e rompeu em soluços.

―Então, tio Vicente, tenha animo―dizia-lhe Augusto, igualmente commovido.

―Se tu soubesses, Augusto, o que eu estou sentindo! Olhar para acolá e não ver em pé uma só das arvores que eu conheci em pequeno! Parece-me um sonho isto, um sonho de afflicção! Sinto-me tão só no mundo! Ai! se a morte me ferisse agora!

A dor, a saudade e o desalento davam uma uncção de poesia elegiaca á figura, ao gesto e ás palavras do velho, que desvanecia tudo o que n'elle pudésse haver, nas situações ordinarias da vida, capaz de desafiar um sorriso nos labios de quem o observasse friamente.

Conceda-se uma lagrima a estas obscuras victimas dos progressos materiaes, lagrima que não importa uma ironia á civilisação. Exalte-se embora a rapida carreira da locomotiva, que atravessa, como meteoro, as povoações e os êrmos; mas não seja isso motivo para condemnar a compaixão pela violeta dos campos, que as rodas deixaram esmagada á beira do carril. Inda quando um vencedor tem um papel providencial a cumprir, e o seu triumpho seja uma obra de redempção, o vencido, desde que cáe, tem direito a um olhar compassivo, a uma lagrima de saudade. Não tenteis a louca empresa de anniquilar o sentimento, espiritos áridos que infundadamente o temeis, como coisa desconhecida á vossa alma sêcca e esteril. Quem devéras confia nos destinos da humanidade não tem mêdo das lagrimas. Pode-se triumphar com ellas nos olhos.

Passado algum tempo, e quando já as sombras da noite se condensavam nos valles e subiam lentamente as encostas dos outeiros, o velho disse para Augusto:

―Agora que não tenho casa, dá-me por alguns dias o abrigo da tua.

―Por alguns dias?―repetiu Augusto, admirado.―Pois quer deixar-me depois!

―Quero. Vou com ellas.

E apontou, ao dizer isto, para as arvores derrubadas.

Atravessaram a aldeia á hora a que vibravam nos ares os sons melancolicos das Avé-Marias.

Em silencio chegaram a casa de Augusto, agora commum para os dois.

―Mettes em tua casa um triste hospede, pobre rapaz!―disse o herbanario, ao transpor o limiar.―Má companhia te fará a minha velhice.

―Boa companhia me faz sempre a sua amizade, tio Vicente. Nem a sua presença podia desalentar quem na mocidade é mais fraco e desalentado do que ninguem o pode ser na velhice.

―Custou-me muito este golpe de hoje! Não contava com elle! Desde hontem envelheci muitos annos. Podes crêl-o.

Quando Augusto ia a replicar, interrompeu-o uma voz que dizia de fóra da porta:

―Dão licença?

E no limiar appareceu a figura do mestre Pertunhas, animada de cordiaes sorrisos.

O herbanario e Augusto não reprimiram um gesto de impaciencia.

O homem entrou.

―Ora Deus seja aqui! Tão grande é o dia como a romaria, sr. Augusto! Ainda ninguem o viu hoje!... Disseram-me que tinha ido de manhã para casa do tio Vicente; vou lá... estava um mundo de gente no sitio... Mas qual sr. Augusto, nem tio Vicente! Então com que escorraçaram-n'o do seu ninho?... Pobre homem! A falar verdade, n'essa idade! Já sei que vem para casa do nosso Augusto. Hontem vi para ahi entrar os fardeis. Ainda bem que o temos por vizinho... Faremos boa camaradagem... Olhe que tambem fizeram-n'a fresca com o tal projecto de estrada! Uma coisa assim!... Coisas cá do sr. conselheiro! Vae-se fundir um dinheirão na tal estrada! E já por ahi se rosnam coisas! Emfim, politicos! politicos! Todos são os mesmos... Vae por ahi uma poeira dos meus peccados com a ordem a respeito do cemiterio; e com a historia do Herodes! Sabem que elle esteve hontem para matar o missionario?... E valha a verdade, dizem que por ordem de alguem do Mosteiro... Que eu não acredito, mas emfim, aquella historia no sermão do outro dia... E o tal sr. Henrique, que é unha e carne com elles... Elle será muito boa pessoa, mas não me calha... Lá feliz, isso como não sei de outro, com dinheiro e sem cuidados! E sempre se faz o casamento d'elle com a morgadinha?... Ouvi dizer que sim.

O herbanario levantou os olhos para fitar Augusto; a apparente impassibilidade d'este não illudiu o velho.

O Pertunhas não se exgotára ainda:

―Ora agora, quem anda fulo é o brazileiro, o Seabra. Pelos modos, eu não sei o que ahi houve; o conselheiro não o tratou muito bem, dizem, n'uma carta que escreveu ao ministro, ou creatura do ministro. Umas historias muito complicadas, que eu não entendo, mas que promettem dar de si... Veremos em que ficam as eleições este anno... O conselheiro bem pode trabalhar, senão... Elle cuidava que era só apresentar-se, e emquanto a fazer vontades... Que me dizem do sr. Joãozinho das Perdizes? Será fiel esse? Já me disseram tambem que...

―Ó sr. Pertunhas,―atalhou o herbanario, enfastiado―antes queremos não saber. Importa-nos pouco a politica.

―Estão como eu... Isto tambem não é politica, mas emfim... Pelo que vejo estão cançados? Eu tambem não os maço mais... E antes que me esqueça, ha muitas horas que estou de posse de uma carta para vossemecê, tio Vicente. É de Lisboa, veio por o correio de hoje. Não lh'a mandei a casa, porque... não sabia o que era feito d'ella. Eh, eh, eh... Mas como o vi passar, conjecturei que viria para aqui, e por isso...

O herbanario recebeu a carta, que o mestre Pertunhas lhe deu, e olhando para o sobrescripto, disse com indifferença:

―É do Manoel.

E abriu-a lentamente.

O mestre de latim deixou-se ficar, na esperança de ouvir novidades.

A meio da leitura o herbanario ergueu-se com impeto e exclamou, cheio de indignação e de colera:

―Mentiu-me como um vil! Mentiu-me aquelle homem sem dignidade nem sentimentos! Aquelle homem importa-se menos com a felicidade dos amigos, com a justiça das causas e com a voz da propria consciencia, do que com os caprichos e interesses dos poderosos com quem vive!

―Mas que é?―perguntou Augusto, sem atinar com a significação d'aquellas palavras.

―Lê.

E passou a carta para as mãos de Augusto.

O conselheiro participava n'esta carta ao herbanario que se vira obrigado a ceder, na questão do despacho de Augusto, a fortes influencias que se empenhavam n'isto muito mais do que elle julgava; que mais tarde lhe explicaria tudo. Quanto a Augusto, accrescentava elle, talvez fôsse isto até uma vantagem; que o logar que pedia era a sua annullação perpetua, e que elle, conselheiro, havia de luctar contra a grande modestia do rapaz, trazendo-lhe á luz os merecimentos reaes, dando-lhe melhor collocação, e que esperava ainda empregal-o na capital.

Era uma carta toda de homem politico, que tudo espera da diplomacia.

Ao acabar de ler, Augusto disse, com um sorriso amargo nos labios:

―Eu sou pouco ambicioso; contento-me com morrer aqui.

―A mim me deu elle, ao partir, a sua palavra de que te faria despachar, e breve; e quebrou-a como um pêrro! Oh! o que fizeram d'aquelle homem!

―Quê?! Pois é possivel?―perguntou, exaggerando a sua consternação e espanto, o officioso Pertunhas.―É possível que o sr. Augusto não fôsse despachado?!

E dizendo isto, passou a desfiar uma série de consolações, qual d'ellas mais tôla e sem cabimento.

Até que emfim, tendo já novidades para contar, e almejando communical-as aos frequentadores da taberna do Canada, onde devia estar reunida grande e luzida assembleia, o Pertunhas saiu, a pretexto de não ser mais tempo incómmodo, e deixou-os outra vez sós.

―Estão-me guardados para o fim da vida todos os desenganos! todas as amarguras! todos os desesperos!...―disse o herbanario momentos depois.―É para se odiar o mundo e os homens vêr um, que conhecemos generoso e innocente, contaminado tambem!... Pobre Augusto! Não basta que sejam modestos os teus desejos... nem assim t'os deixam realisar.

Guardados alguns momentos de silencio, continuou, com amargo sarcasmo:

―Por que te não fazes politico? Por que não vaes tambem para a taberna do Canada dizer tolices sobre a governança do paiz? Talvez levasses comtigo alguns tôlos, e tinhas n'isso uma recommendação poderosa. Olha para aquelle basbaque do morgado das Perdizes... ahi tens um influente... Imita-o... Mas dize: o que tencionas fazer?

―Ficar―respondeu Augusto, com firmeza.

O herbanario fixou-o com um olhar penetrante.

―Ainda?... Mas... não te vae ser suave agora a vida, rapaz. Para se viver não basta uma... uma loucura. Repara bem. Se quizeres... O Manoel é leviano, mas creio que ainda não perverso; eu lhe escreverei... talvez que em Lisboa...

―Não lhe escreva. Sabe que não partiria para Lisboa...

―Mas... repara!... Estás muito novo, Augusto... Tens um longo futuro deante de ti. E, ficando, o que te espera?...

―A morte que fôsse, a morte de miseria e de fome, ficava. Mas resta-me ainda o trabalho. Tenho coragem para acceital-o.

O herbanario baixou a cabeça, pensativo.

Soaram n'isto á porta da sala duas pancadas lentas.

O herbanario fez um gesto de enfado.

―Não abras sem eu sair,―disse elle a Augusto, que se erguera―não estou de animo para aturar importunos.

E passou para uma sala contigua.

Augusto foi abrir ao novo visitante.

Achou-se na presença do brazileiro Seabra.

A grave personagem entrou pausada e sisuda, como homem que sabe fazer valer a honra que dispensa, visitando um rapaz sem dinheiro.

Augusto offereceu-lhe cadeira Augusto offereceu-lhe cadeira para se sentar, sem inquirir do motivo de tão inesperada visita. O brazileiro sentou-se e principiou:

―Acabo agora mesmo de saber da injustiça que lhe fizeram. Senti-a como se fôra propria, e venho aqui declarar-lh'o.

Augusto curvou-se, em signal de agradecimento.

―Mas então que quer?―proseguiu o homem.―Hoje em dia é tudo assim. Padrinhos e mais padrinhos, e o mais são historias. Estamos n'uma época de corrupção e de immoralidades, e ninguem sabe onde isto irá parar.

Augusto ouviu em silencio os threnos do capitalista, que proseguiu:

―Tôlo é quem não faz como os mais. O mundo está para os velhacos.

Parou, assoou-se, tossiu, e puxando a cadeira para mais perto da de Augusto, continuou, em tom differente e mais baixo:

―Quando um homem tem uma gotta de sangue nas veias não pode receber as offensas e ficar-se com ellas assim. O perdão evangelico é muito bonito, mas não é para homens. Não lhe parece? Eu por mim não gósto de genios de lama. Falemos como amigos. Nós ambos somos victimas de um mesmo homem. O sr. Augusto foi enganado e escarnecido por o conselheiro, que se apregoava seu protector. Ahi temos a protecção que elle lhe deu. Eu tambem lhe devo finezas.

―V. s.a?―perguntou Augusto, que não podia saber o que lhe queria no fim de tudo o brazileiro.

―Eu, sim, senhor. Eu lhe digo como isto foi.

E o brazileiro, puxando a cadeira, approximou-se mais de Augusto, e deu principio á exposição dos seus aggravos:

―O conselheiro, que joga em politica com pau de dois bicos, andou-me a causticar, para que eu acceitasse um titulo qualquer... Queria fazer-me visconde por fôrça. Coisas de que eu me estou rindo... Mas... emfim, para me livrar d'aquelle importuno, disse-lhe que... fizesse lá o que quizesse... Pois, senhores, não teve o petulante o atrevimento de escrever ao ministro, com quem, apesar de se dizer da opposição, mantem aturada correspondencia; não teve a audacia de lhe dizer que eu andava sonhando com viscondados, e que a minha mania era attendivel, pois promettia ser uma fonte de melhoramentos locaes muito baratos ao Estado, visto que com tão pouco me contentava, e outras coisas n'este gôsto? O petulante!...

Augusto, apesar dos pensamentos pouco alegres que o preoccupavam, luctava para se conservar sério perante aquella indignação do sr. Seabra.

―Mas tem a certeza d'isso?―perguntou elle.―Ás vezes são calumnias...

―Eu vi a carta do ministro em resposta a esta; do ministro não, mas do secretario, que é o mesmo... Um acaso fez com que ella me chegasse á mão... O ministro fazia-me o favor de me conceder o titulo; mas era de parecer que, por cautela, se tirasse antes de mim tudo quanto eu pudésse dar, porque... porque... por umas tolices de que eu me lembrei a tempo... Ora ahi tem como elles são!... Que venham para cá com os seus melhoramentos... Eu lh'as cantarei; prometto-lhes que se hão de arrepender.

―Mas... talvez haja equivoco.

―Equivoco? Ora essa! Pois eu não li a carta? Ella ha de apparecer em publico; oh! se ha de! Isto é, não a parte que me diz respeito, porque... porque emfim são negocios particulares, que não interessam a terceiros; mas umas ultimas linhas d'ella, umas promessas do ministro, que põem a calva á mostra a este Catão, que nos anda aqui a prégar liberdade e independencia! Isso ha de apparecer, e ha de ser lido com muita vontade.

―Acaso tenciona?...

―Se tenciono?! Pudéra não! Eu lhe afianço que o homem ha de saber com quem se metteu. Deixe vir as eleições, deixe-as vir. Já ha de achar o caldo azedado, quando quizer comel-o; isso lhe prometto eu... A lição ha de leval-a breve.

―Vão guerrear a eleição do conselheiro?

―Faço essa tenção.

―E quem lhe oppõem?

―O candidato que a auctoridade propuzer; um individuo de Lisboa.

―Que nem o circulo conhece?

―Que importa? É uma lição. Aqui não ha politica nem meia politica. Eu não morro pelo governo, porque eu tambem fui offendido pelo ministro. Mas é preciso aproveitar tudo. E assim temos por nós a auctoridade, além dos padres.

Augusto não se sentia com disposições para discutir esta questão politica; por isso nada mais lhe replicou.

O Seabra proseguiu:

―O que eu quero saber é se o amigo quer entrar na nossa alliança e acceita uma proposta que eu lhe vou fazer. A vingança é o prazer dos deuses, e visto que foi tambem offendido...

―Não, senhor, não acceito―acudiu com vivacidade Augusto.

―Escute. Deixe-me concluir. Não sabe do que falo. Pouco se exige. A coisa é esta: na carta a que me referi, e que por acaso me chegou ás mãos, fala-se n'uma outra, ou em outras anteriores, em que se tratava, mais por miudo, de uma curiosa transacção politica que n'esta se revela claro. O conselheiro é pouco acautelado; haja vista ao extravio d'esta, e por isso...

Augusto olhava admirado para o brazileiro, como se não pudésse comprehender onde elle queria chegar.

O Seabra proseguiu:

―Ora, a mim lembrou-me... como o senhor vae muito pelo Mosteiro... sim, porque julgo que continúa a ensinar os pequenos, e, já se sabe... como mestre, entrando a qualquer hora no mais intimo da casa, sim... demais como a D. Victoria é... um tanto descuidada, como todos nós sabemos... Não sei se me percebe?... Dizia eu... sim, que se ás vezes, por acaso, encontrasse coisa que valesse...

Augusto levantou-se, indignado.

―Sr. Seabra!―exclamou, cheio de cólera.

―Valha-me Deus, eu não quero dizer... Não me entendeu... Bem vê que se o senhor devesse obrigações ao conselheiro, eu não ousava... Mas...

―Obsequeia-me muito, sr. Seabra, se não insistir...

―Entendamo-nos. O senhor está no principio da vida. Precisa do auxilio de alguem. Offerece-se-lhe occasião para fazer serviços ao governo, que é finalmente quem pode pagal-os; e que se lhe pede para isso? Quasi nada... O senhor sabe perfeitamente que se não trata aqui de desgraçar ninguem, de levar ninguem á forca.

―Visto que v. s.a insiste, sou obrigado a retirar-me.

―Espere, sr. Augusto―acudiu o brazileiro, segurando-o.―Repare no que faz. Não seja precipitado. Eu estou prompto a fazer alguns sacrificios, se vir que nas suas circumstancias...

―Visto que v. s.a não se cala, nem quer que eu me retire, ouça então o que tenho para lhe dizer. A sua proposta seria para mim o maior dos insultos, se não fôsse tal a baixeza d'ella, que até despe de toda a imputação a pessoa que a faz. Os homens, faltos de sentimentos de honra, não offendem, quando insultam; não se lhes pode pedir razão da infamia, porque não a conhecem como tal; identificaram-se com ella. Por isso, só me resta um partido, é convidal-o a sair.

O brazileiro fôra erguendo-se á medida que Augusto falava. Estava espantado por vêr que um rapaz, sem um vintem de seu, ousasse falar com tal irreverencia a um homem que tinha dinheiro e crédito em tantos bancos! A ordem do mundo estava perturbada!

―Ora esta!―disse elle no fim.―Então o senhor ordena-me?...

―Que saia!―respondeu Augusto, indicando-lhe a porta.

O brazileiro estava pasmado. Olhou para Augusto como se duvidasse do que ouvia; deu dois passos para a porta e tornou a olhar, seguiu outra vez, e, no limiar, parou para dizer:

―Veja lá o que faz! Eu só lhe digo que me não convem dar a minhas filhas um mestre de soberbas.

―Decerto que lhe não poderá convir a educação que eu désse a suas filhas; é natural não querer educar consciencias que sejam juizes da sua corrupção. Deixe-as ignorantes, para não ser castigado pelo desprezo d'ellas.

―Quer então dizer...

―Que lhe desejo muito boas noites, sr. Seabra.

O brazileiro saiu, bufando.

Augusto, que ficára só, sentiu-se apertar nos braços de alguem que entrou, sem elle sentir.

Era o herbanario.

―É assim, é assim que te vingas de todos, rapaz! Esmaga-m'os com a tua nobreza!

Augusto sorriu-se tristemente.

―O peor é, meu amigo―disse elle―que é a segunda subtracção que hoje se opéra no meu orçamento, e... a nobreza não nutre!

―Mas consola!―replicou o velho.

XXII

Dias depois das scenas descriptas no anterior capitulo, estava a morgadinha occupada a escrever n'uma das salas do Mosteiro, quando ouviu atraz de si correr o reposteiro da entrada.

Julgando que era algum criado, nem se voltou e proseguiu na escripta.

―Retiro-me, se sou importuno―disse a pessoa que entrára, e que ficára no limiar da porta.

Magdalena voltou-se então e reconheceu Henrique de Souzellas.

―Ah! é o primo Henrique? Pode entrar.

―Eu sei? Ha correspondencias tão delicadas, que demandam a applicação de todas as nossas faculdades, e a presença de um importuno...

―Mas não se dá agora esse caso; nem quanto á delicadeza da correspondencia, nem quanto á importunidade do visitante.

―Então utiliso-me da concessão.

―Occupava-me a escrever áquelle pobre Cancella, para o tranquillisar em relação á filha. Pobre homem! Ainda se lhe não pôde obter fiança, apesar de meu pae tratar d'isso, a pedido meu. Ha quem trabalhe contra elle. E como ha de ter padecido na cadeia na incerteza em que está? Quem ha de dizer que n'aquelle corpo, robusto e forte, se aloja uma alma de tão delicados sentimentos? Inda lhe hei de mostrar a carta que elle escreve a pedir-me que trouxesse para o Mosteiro a filha, e a tirasse de casa da madrinha, que com o seu fanatismo a perdeu... É um modelo para seguir.

―E como vae a pequena?

―Mal. Estou aqui a mentir, fazendo conceber áquelle pobre homem esperanças, que eu mesma não tenho.

―Que disse o cirurgião?

―Nada animador.

―Como capitulou a molestia?

―Não sei quê de cerebro; nem eu quiz saber. Nunca pude comprehender a necessidade que tem certa gente de conhecer a natureza da doença que lhes ameaça roubar uma pessoa querida. Perdel-a ou salval-a, é a questão que me interessa. Tudo o mais me é indifferente. N'uma pessoa doente vejo um espirito que hesita entre deixar-me e permanecer. Aos medicos peço que removam, se podem, aquillo que o faz partir, mas não quero saber o que é. Julgo natural ao sentimento o considerar assim a molestia e a morte.

―Á maneira da arte, ainda que hoje o diagnostico entrou na litteratura, prima. Mas a proposito do Herodes; deixe-me dizer-lhe que está sendo muito commentada na aldeia a violencia d'elle contra o missionario. É voz constante que fizera aquillo por influencia nossa, e as honras d'aquella bem empregada sóva são-nos tambem concedidas inteiras. Imagine o clamor que por ahi vae!

―Deixe clamar―respondeu Magdalena, encolhendo os hombros.

―Deixo, deixo. Eu sou odiado como um Lucifer, feito homem; seguem-me, quando eu passo, uns olhos rancorosos, e adivinho que na ausencia não sou muito bem tratado.

―É bom acautelar-se. Não os irrite. Viu que não era prudente.

―Não receie. Esta gente a final é cobarde.

―Tanto peor. O inimigo cobarde é mais para temer. Bem sabe. Foi uma desastrada ideia aquella da nossa ida ao sermão do missionario.

―Parece-lhe? Eu não estou arrependido. Bastava-me, como recompensa, o ter presenciado o accesso de furor rabico do homem.

―Vamos, primo Henrique; confessemos que a situação não foi das mais agradaveis.

―Sinto-a, principalmente por o incómmodo que tiveram as senhoras e talvez por esse episodio dar vigor á opposição, que alguem por ahi se interessa em organisar contra o sr. conselheiro.

―Ah! pois trata-se d'isso?

―Se se trata?! E muito sériamente. A portaria a respeito do cemiterio, a historia do sermão, e agora o episodio do Cancella, teem feito um grande mal.

―Oh! se meu pae perdia!...

―Não entendo essa exclamação, prima Magdalena. Ia jurar que era a expressão de um desejo.

―E por que não? Se isso fôsse motivo para meu pae abandonar de uma vez para sempre a politica, pedil-o-hia a Deus.

―Conhece pouco ainda o coração humano, prima. Seu pae está votado á politica para toda a vida. Desengane-se. E se o prendesse n'esta aldeia, aqui mesmo faria a mais deploravel, impertinente e inutil de todas as politicas, a politica local.

A morgadinha suspirou, como se reconhecesse a verdade que Henrique dizia.

Henrique proseguiu:

―Está organisado um club opposicionista na taberna de um tal Canada. O brazileiro capitaneia a phalange, os padres são os tribunos e a propaganda estende-se assustadoramente. É preciso olhar por isto e sobretudo não perder de vista o sr. Joãozinho das Perdizes, cujo voto seu pae tinha em grande conta, porque representa o de uma freguezia inteira. É de suppor que o requestem muito e... o homem é fragil. Já vê, prima, que eu tomo muito a sério os preceitos hygienicos, que me deu o meu medico, quando parti de Lisboa, e que a prima approvou. Estou a interessar-me pelas questões locaes, como se aqui estivesse, ha annos.

―E é um bom indicio de cura, pode crer.

―E ainda tem empenho de me curar?

―Empenho, todo; esperança é que menos.

―Ó meu Deus! que sinceridade de medico tão cruel! Seja; escutarei a sentença com coragem. Diga-me o que pensa de mim. Ha muito que não falamos n'isto. A ultima vez que o fizemos, um tanto categoricamente, foi n'uma occasião bem critica. Julgo que o meu procedimento de então até hoje lhe terá feito conceber do meu caracter um não muito desfavoravel conceito. Bem vê que não abusei...

―De quê?―perguntou Magdalena, contrahindo a fronte, n'um gesto de altivez.―É certo que tem em todo esse tempo dado provas de discreção, no que se mostrou mais contricto que generoso. Pelo menos é assim que eu interpretei o seu silencio, e approvo-o em vez de agradecel-o.

―Seja contricção, visto que assim o quer. Mas não lhe merecerá ella alguma misericordia para com o peccádor?

―Escute. Sinto sincera misericordia de si, pode acredital-o. Ella só me obriga a perdoar-lhe algumas impertinencias, nem sempre demasiado delicadas, com que me mortifica.

―Está sendo tão amavel!...

―Perdôe, mas a sinceridade tem d'estas exigencias.

―Curvo-me perante as exigencias da sinceridade. Continue, prima Magdalena.

―Vae mais longe ainda a minha misericordia, porque apesar da rebeldia do mal, inda não desisti de cural-o.

―Inda bem. E como? Ser-me-ha licito penetrar no segredo do tratamento?

―Ha já agora uma unica maneira de o salvar.

―E é?...

―Apaixonal-o.

―Ah! n'esse caso estou salvo!―exclamou Henrique, n'um impeto, que não pôde passar sem um sorriso da morgadinha.

―Ouça. É preciso andar com tento na escolha do objecto d'essa paixão, sob pena de aggravar o mal em vez de minoral-o.

―E como hei de escolher?

-De modo que lisonjeie a opinião que o primo tem de si proprio.

―A opinião que eu tenho de mim! Se pudésse ser mais clara...

―De boa vontade. O primo Henrique tem uma forte necessidade de persuadir-se de que representa no mundo um grande papel, uma missão heroica e generosa, quasi providencial. Exigencias de uma vaidade de boa indole, que se lhe não pode levar a mal. Repugna-lhe a ideia da inutilidade, da insignificancia da sua existencia. Não se resigna ao papel de comparsa, ambiciona o de protector. Se o acaso, ou uma inconsideração de momento, o associasse, por toda a vida, a um caracter igualmente forte, que, em constante opposicão, pretendesse provar-lhe que prescindia da sua protecção, grandes desgostos e amarguras o esperavam no futuro. Uma indole branda, docil, fraca, um d'estes seres nervosamente delicados, que tremem ao verem-se sós, cheios de poeticas superstições, que tenha a dissipar; que se lhe apoie ao braço, como se n'elle encontrasse a coragem que não sente em si, e que, ao mesmo tempo, domine pela fraqueza e pela doçura, domine sem consciencia do imperio que exerce e sem vaidade, portanto; um caracter d'estes é que deve procurar para salvar-se; só d'elle pode esperar a realisação da vaga ideia de felicidade, que todos concebem na vida.

―E se essa theoria engenhosa fôsse verdadeira, parece-lhe que poderia encontrar á mão o tal anjo salvador, que precisa do meu braço para se apoiar?

―Julgo que pode, e que já o teria encontrado, se pensasse sériamente nas necessidades do seu coração.

Henrique ia a responder, quando entrou na sala um criado com as cartas do correio.

―Trégoas á nossa conferencia, emquanto eu leio a carta de meu pae―disse Magdalena, examinando a carta recebida.

―Concedidas, e eu aproveito-as para correr a vista pelos periodicos que chegaram.

E emquanto Magdalena lia a carta, Henrique passava pelos olhos as folhas de Lisboa.

Não tinham decorrido muitos instantes, quando a morgadinha interrompeu a leitura, exclamando:

―Ó meu Deus! mas de que se trata? Que quer dizer isto?

Ao ouvir estas palavras, Henrique desviou para ella os olhos.

Viu-a agitada e lendo com vivacidade e commoção a carta do conselheiro.

―Ha alguma má nova?―perguntou Henrique, ferido por aquella expressão.

Antes, porém, de responder-lhe, a morgadinha seguiu com ardor a leitura até o fim.

Henrique continuava a observal-a e cada vez mais evidentes descobria n'ella os signaes de uma funda agitação. Ao findar a leitura, passou a mão pela fronte como para desviar uma ideia amarga.

―Por amor de Deus, prima Magdalena, que diz essa carta, para assim a perturbar?―perguntou Henrique, já assustado tambem.

―Não sei bem; não posso ainda dizer a que se refere meu pae; mas sinto-me interiormente sobresaltada, como se o adivinhasse.

―Mas a final o que se diz ahi?

―Leia, e veja se, melhor do que eu, pode comprehender esse enigma, por certo doloroso.

Henrique examinou a carta, que a morgadinha lhe passou para as mãos.

N'esta carta queixava-se o conselheiro á filha de ter sido victima de um abuso de confiança commettido por alguem, que elle ainda não sabia dizer quem fôsse. N'um periodico de Lisboa fôra publicada por aquelles dias uma carta dirigida tempos antes ao conselheiro por não menor personagem politica do que o secretario intimo do ministro.

O proprio conselheiro confessava ser esta carta demasiado compromettedora, e assim tambem o demonstrava a excepcional irritação que transparecia em todos os periodos, da que escrevêra á filha. O periodico que, para fins politicos, fizera a publicação, havia occultado os nomes, porém muitas circumstancias referidas tornavam inutil a discreção; e em Lisboa ninguem hesitou em aprontar as personagens entre quem se passara o facto. Durante uma das suas demoras na aldeia, recebêra o conselheiro essa carta; alli, no seio da familia, a confiança que depositava em quantos o rodeavam impediu-o de ser previdente, como por hábito o era; facil foi portanto o extravio. O conselheiro dizia á filha que era preciso descobrir o traidor, para evitar futuros abusos; e por isso, que se lembrasse de que o alcance da carta não era para todos comprehendel-o, e portanto não se limitasse a indagar entre os da baixa classe. «A vingança, concluia o conselheiro, de uma maneira mysteriosa, como de quem deseja e receia, ao mesmo tempo, fazer uma allusão―a vingança, bem ou mal fundada, obriga ás vezes os mais nobres caracteres a uma acção baixa e vil; entre os que por mim se possam julgar offendidos, é natural encontrar o criminoso.»

―Esclareça-me este mysterio! disse Magdalena, consternada.―De que se trata aqui?

―Alguma correspondencia politica extraviada. Seu pae diz bem; é necessario descobrir o traidor por cautela. Além de que, para todos os que, como eu, teem entrada n'esta casa, é isto um mysterio em que a nossa honra está empenhada, porque v. ex.as teem direito a alimentar suspeitas.

―Por amor de Deus!―acudiu, interrompendo-o, a morgadinha.―Não pronuncie essa palavra! Suspeitas! Esse envenenamento moral, que eu até aqui não conheci, quer meu pae que voluntariamente o contraia.

―Seja envenenamento, muito embora, mas é um envenenamento salvador, prima, como o da vaccina; é um preservativo de traição.

―Viver para desconfiar! procurar nas palavras que se ouvem um sentido occulto! nos gestos uma expressão denunciadora! nos affectos uma intenção egoista! Oh! isto é horrivel! Mas... que carta é essa, meu Deus? Que correspondencia pode ter meu pae, que não deva vêr a luz do dia? Meu pae!... Ha por fôrça illusão n'isto! Meu pae não tem crimes; meu pae não tem acções que o envergonhem; meu pae pode franquear a todos as portas da sua casa sem receiar-se de indiscreções. Pois não é assim?

―Por certo, prima; mas... na politica ha actos que... sem serem criminosos...

―A politica! Sim, é isso! Eu devia prevêr que essa palavra viria para explicar este mysterio! Por politica é-se cruel, por politica sacrifica-se um amigo, por politica força-se a consciencia, e depois... ella justifica tudo. Que obras são as obras politicas que precisam da sombra e do mysterio para se fazerem? Pois para dirigir ou salvar uma nação, pois para se tratar dos interesses de um povo, é sempre necessario o disfarce, a dissimulação, o mysterio?

―Quando se não pode contar com a boa fé dos outros, perde sempre quem fôr escrupulosamente fiel á sua.

―Mais valeria então abandonar por uma vez essa carreira cruel... Oh! ainda agora reparo... Tem ahi as folhas de Lisboa... deixe-m'as vêr... quero saber que carta é esta.

Henrique procurou dissuadil-a. Um numero avulso de um periodico, que não costumava vir ao Mosteiro, havia-lhe já feito suspeitar que era esse o que publicava a carta em questão. Não fazendo do conselheiro tão subido e ideal conceito como a morgadinha, achava muito natural que effectivamente o comprometesse a carta alludida. Conhecendo bastante Magdalena, sabia quanto seria cruel para o seu extremoso coração de filha, e para o seu caracter apaixonado por tudo quanto era idealmente nobre, generoso e justo, o descobrir no pae uma d'essas máculas frequentes na vida dos homens politicos, por minima e desvanecida que fôsse. Por isso quiz evitar-lhe a leitura. Não o conseguiu, porém. Magdalena, com aquella firmeza de resolução que energicamente se lhe revelava na voz e no gesto, disse, estendendo a mão para receber os periodicos:

―Deixe-me vêr, primo Henrique. Não é possivel que de meu pae se diga ahi alguma coisa que não devam ler os olhos de uma filha.

E quasi arrebatou das mãos de Henrique a folha, justamente aquella de que elle mais receiava.

E, abrindo-a, examinou-a com anciedade quasi febril.

Henrique observava com curiosidade os movimentos e a physionomia de Magdalena.

Viu-a tornar-se de repente mais attenta á leitura; os olhos, que até alli vagueavam por diversas secções do periodico, fixaram-se n'um ponto; contrahiu-se-lhe a fronte; um ligeiro tremor correu-lhe os labios; córou e empallideceu alternadamente; e no fim, afastando de si a folha com um movimento nervoso e apaixonado, exclamou, sob o dominio de uma commoção profunda:

―Ó meu Deus! E não ter um coração, como o d'elle, a fôrça precisa para fugir d'estes enredos! Isto é de enlouquecer!...

Henrique pegou na folha, que ella arrojou de si com impeto, e examinou-a.

Tinha conjecturado bem.

O caso devia consternar Magdalena, para quem o conselheiro era um homem tão perfeito na vida politica e na vida social, como na vida de familia. Para Henrique, em quem havia muito se inoculára o scepticismo da época, impedindo-o de divinisar os homens, por mais rodeados de prestigios que lhe apparecessem, não tinha o facto de que se tratava grande significação nem gravidade. O caso era o seguinte:

Tempos antes havia-se agitado nas camaras uma importante questão politica; uma d'estas questões que servem para estremar os campos e descriminar os programmas dos partidos. Vacillar n'ellas é já trahir os principios fundamentaes de uma causa, e abjurar um credo politico inteiro. O pae de Magdalena, militando no partido de mais avançadas ideias liberaes, tinha de antemão traçado por elle o caminho a seguir n'esta conjunctura, o circulo, fóra do qual não poderia combater sem apostasia; mas, como já atraz dissemos, o conselheiro não era já o homem que fôra nos primeiros tempos da sua carreira publica; perdera a fé nas utopias e nos principios abstractos, e trocava-os de barato por qualquer pequena vantagem positiva que pudésse obter, se não para si, para a localidade de que era representante. A logica partidaria sacrificára-a, sem remorsos, mais do que uma vez, ao que, em linguagem não sei se parlamentar, se chama conveniencias politicas.

Déra-se mais um exemplo d'esta flexibilidade de principios no conselheiro.

Comquanto membro da opposicão, e dos mais temidos pela sua eloquencia, variados conhecimentos e vigor de discussão, não era elle de tão espinhosa moral que não tivesse amigos no seio da maioria, sendo até o proprio ministro um dos mais intimos. No tempo da discussão, de que falamos, o ministro, que desejava afastar das camaras todos os adversarios de importancia, não duvidou entrar em ajustes com o conselheiro. Este, que já não era homem para repellir com indignação taes factos, teve a astucia precisa para se aproveitar das contingencias. Entenderam-se.

Chegada a época da discussão, o conselheiro, que sempre se mostrou ardente adversario da medida ministerial, e de quem se esperava uma opposicão vigorosa e efficaz, pretextou subitos negocios a chamal-o á provincia, e partiu, promettendo voltar a tempo ainda de discutir a questão.

Depois de chegar ao Mosteiro escreveu para os amigos, lamentando que inesperados negocios de familia o retivessem alli mais tempo do que contava, e alentando-os de longe á lucta. No entretanto, a questão foi apresentada nas camaras: oradores tibios e mal escutados acharam-se sós a combatel-a; apagadores officiaes e officiosos abafaram a tempo a discussão; e, quando o conselheiro voltou a Lisboa, só pôde protestar nos circulos politicos contra o resultado da votação e expender as razões que deveriam fazer repellir a medida.

Em recompensa eram concedidos melhoramentos para o circulo que o elegia; e entre elles a estrada que vimos principiar. Tal fôra o preço d'ella.

Tudo isto trazia agora á luz a carta desencaminhada, que era do secretario do ministro, e que no seu conteúdo deixava vêr claramente as condições do pacto.

Esta publicação causou profunda sensação em Lisboa. A importancia politica do conselheiro soffreu com isso.

Atacavam-n'o os partidarios do governo, para declinarem d'este, quanto possivel, a responsabilidade do facto; atacavam-n'o os opposicionistas declarados, para com o mesmo golpe ferirem o ministerio.

Os influentes politicos teem sempre no proprio partido, a que pertencem, invejosos que só almejam o primeiro pretexto para os derrubarem, embora caia com elles o partido a que se filiam.

Aquella carta foi, durante algum tempo, uma arma poderosa nas mãos dos taes; originou discussões e ataques violentos; e o conselheiro correu risco de se malquistar por causa d'ella com gregos e troyanos.

Tudo isto se revelava ao espirito de Magdalena e tudo isto a consternava. O seu muito amor filial fazia-lhe achar no facto uma significação dolorosa e triste que só desillusões, como as de Henrique de Souzellas, velhas desillusões de sceptico impenitente, poderiam attenuar. O conselheiro expiava cruelmente o seu delicto.

A leviandade e doblez do homem politico pagava-a caro o homem de familia.

É que a moral é uma. O homem não pode dividir-se; os peccados sociaes de quem é virtuoso nos lares domesticos, pagam-se, expiam-se n'esses mesmos lares. Os filhos que creou e educou segundo os preceitos da honra e da virtude, serão mais tarde os seus proprios juizes, e que cruel julgamento para o coração de um pae! É justo que a patria peça contas dos crimes de familia e desconfie dos tribunos que não sabem ser paes, filhos, irmãos e esposos; é justo que a familia exija que se seja fiel á prática e ás crenças que se professam, e castigue, pelo menos com lagrimas, como as de Magdalena, as culpas do homem que julgou poder ter duas consciencias: uma para responder por os actos civicos, outra para os actos domesticos.

Henrique procurou minorar o effeito que esta leitura tinha produzido no animo da morgadinha por meio de algumas consolações, que uma indulgente moral, muito do uso da sociedade, lhe inspirava.

Percebeu porém, que, embora as manifestações do sentimento tivessem cessado já em Magdalena, não se lhe tinha ainda dissipado a profunda e penosa impressão que lhe ficára da leitura.

Como para fazer cessar aquelle genero de consolações, a que Henrique se julgava obrigado, e que a ella eram custosas de ouvir, Magdalena disse, em tom já apparentemente sereno:

―Bem; visto que é necessario precavermo-nos, vejamos de quem e quaes as cautelas que temos a adoptar. Meu pae parece suspeitar de alguem, mas não se pronuncia claramente.

N'isto entrou na sala D. Victoria, carregada de roupa como para uma viagem aos pólos, e queixando-se do frio, cuja intensidade attribuia em grande parte aos criados, por se terem descuidado de accender logo de manhã os fogões da casa.

Quando D. Victoria foi informada do conteúdo da carta do seu cunhado, levantou um alarido desolador. Por sua vontade ordenava logo alli um interrogatorio e uma devassa geral a todos os criados da casa, aos quaes, segundo o costume, attribuia a culpa toda. Magdalena e Henrique tiveram muito que fazer para a convencerem da inutilidade e inconveniencia d'esse alvitre e para lhe mostrarem a necessidade de usar de toda a prudencia e dissimulação n'esta pesquisa.

―Aqui entre nós―dizia Henrique―vejamos em quem se pode, com plausibilidade, fazer recahir as suspeitas. O sr. conselheiro diz bem; um criado boçal pode roubar uma joia, subtrahir qualquer objecto de valor intrinseco; porém os ladrões de cartas como estas, são de outra especie e de intelligencia mais apurada. Ora entre a gente que frequenta o Mosteiro...

E parando subitamente, Henrique disse para D. Victoria, que olhava para elle com um gesto espantado:

―Porém, minha senhora, eu mesmo não me devo excluir da lista dos indiciados, e n'esse caso deixo v. ex.as livres para me instaurarem processo.

―Ora essa, primo Henrique!―exclamou D. Victoria.―Era o que faltava! Nada, nada; não se cance; não tem que vêr. Aquillo foram os criados.

Magdalena estava tão abatida de animo, que nem deu attenção a este episodio.

Henrique proseguiu:

―Nada de magnanimidades, minha senhora; quem quer ser juiz a ninguem deve excluir da possibilidade de ser réo. O sr. conselheiro, porém, alguns indicios nos aponta. Fala, por exemplo, vagamente, de alguem que n'estes ultimos tempos se pudesse considerar offendido por elle, e que por vingança... Ora actos capazes de trazer estas animadversões a seu pae, prima Magdalena, só a questão do cemiterio, mas essa não importa a ninguem que tenha entrada aqui... Ha tambem as das expropriações, porém...

Henrique parou, como se lhe tivesse acudido uma ideia, que examinava, antes de enuncial-a.

―Tive agora um pensamento diabolico; nem quero attendel-o.

―Diga, primo, diga―acudiu logo D. Victoria.

―A expropriação da casa do herbanario... O muito amor que o velho tinha áquella vivenda... A repugnancia com que viu cortar aquellas arvores velhas...

―Então julga que foi o Vicente?―perguntou D. Victoria.―Mas elle não vem ao Mosteiro ha muitos annos, primo.

―Não digo que fôsse elle, minha senhora―disse Henrique, cujo embaraço augmentava, sentindo que a morgadinha o fitava com um olhar penetrante, como se lhe estivesse lendo o pensamento.

―Então?―insistia D. Victoria.

―Mas―proseguiu Henrique―o velho exerce certa fascinação na gente da terra; um verdadeiro prestigio; e certas intimidades entre elle e... e alguem que tem aqui entrada a todo o momento... Emfim... eu não quero seguir mais adeante este antipathico pensamento, que talvez fôsse rejeitado com indignação por quem me escuta e attribuido a mesquinhos resentimentos da minha parte.

―Faz bem em o abandonar, primo Henrique―disse Magdalena, com severidade.―Entre ser victima de uma traição e culpada de uma suspeita injusta, cruel e maligna, prefiro arriscar-me á primeira sorte. Se um passado inteiro de honra e de probidade, se um caracter provado nas mais tentadoras situações da vida, se um nome ennobrecido pelo infortunio, não são garantias bastantes para proteger um homem contra os ataques da suspeita, não quero entrar n'essa pesquisa inquisitorial que nada respeita, que é capaz de lançar sacrilegamente a dúvida entre paes e filhos, entre irmãs e irmãos. Innocente, prefiro aguardar a calumnia; culpada, o castigo, a sentar-me como juiz n'esse tribunal impio que quer arvorar.

―Previ essas palavras, prima Magdalena; por isso hesitei. Lamento sinceramente ter já perdido no uso do mundo uma tão sympathica e adoravel boa fé nos outros, que é a maior prova de candura que se pode dar do proprio caracter.

D. Victoria não percebeu nada d'este rapido dialogo; por isso exclamou:

―Mas que estão vossês ahi a dizer? De quem falam? Eu se vos entendo! Quanto a mim, foram os criados, e d'isto é que ninguem me tira.

Abriu-se n'este momento a porta da sala e appareceu Augusto. Era a hora das lições dos pequenos.

Comquanto, desde o termo das férias, Augusto viesse todos os dias ao Mosteiro, era aquella a primeira vez que se encontrava com Magdalena e com Henrique, depois da scena que entre elles se passára na noite de Natal.

A morgadinha fitou por momentos n'elle os olhos; pareceu-lhe mais pallido e triste do que de costume. Desviou-os, porém, como se até sentisse remorsos de ter escutado as allusões de Henrique sobre o caracter de um homem que ella se costumára a respeitar. Porque o leitor, cuja intelligencia é, sem lhe fazer favor, mais perspicaz do que a de D. Victoria, percebeu de certo que era a Augusto que se referiam os vagos termos trocados entre Henrique e Magdalena.

―Muito bons dias, sr. Augusto,―disse D. Victoria affavelmente―então são horas de me vir aturar a pequenada? Não lhe invejo a vida. Sabe? De manhã até á noite a aturar creanças! Deus me livre!

―Agora já não succede assim, minha senhora. Estou dispensado de parte das minhas obrigações―disse Augusto, depois de cortejar as senhoras e Henrique.

―Como?

―Pois v. ex.a não sabe que já foi nomeado outro professor para o meu logar?

―Que me diz?

Em todas as pessoas presentes produziu sensação esta noticia.

D. Victoria e a morgadinha fixaram em Augusto um olhar interrogador. O gesto de Henrique tinha uma expressão particular.

―Recebi ha dias a participação official―continuou placidamente Augusto.

―Mas―proseguiu D. Victoria―o mano tinha aqui dito que o seu despacho estava seguro, que, além de ser de toda a justiça, elle o tomaria a seu cuidado. E então agora... Olhem, sabem que mais? eu cada vez me entendo menos com esta gente. Isto de politicos...

Magdalena inclinou a cabeça, suspirando.

―Bem vê v. ex.a―disse Augusto, com leve tom de amargura―que ás vezes ha grandes interesses sociaes dependentes do despacho de um modesto professor de instrucção primaria da aldeia, e portanto não se deve extranhar que um homem politico attendesse a elles antes de tudo.

Magdalena que, ao ouvir estas palavras, levantára os olhos, encontrou os de Henrique, que parecia procurarem os d'ella com intenção.

A morgadinha desviou os seus com impaciencia e desgôsto, que se lhe manifestou na contracção da fronte.

―V. ex.a dá-me licença que principie os meus trabalhos?―disse Augusto.

―Ai, quando quizer―respondeu D. Victoria.―Os pequenos estão na sala verde.

Augusto saiu.

D. Victoria entrou no panegyrico do mestre de seus filhos, e não se fartou de exaltar-lhe os talentos e as virtudes, apregoando o muito que aproveitavam os pequenos sob tão intelligente direcção.

―Olhe que o Eduardito já escreve e já lê manuscripto como um homem―dizia ella.―Quer vêr? O sr. Augusto deixou aqui ficar a pasta; ha de ter alguma escripta do pequeno. Ora tambem vou vêr.

E D. Victoria, cedendo aos impulsos do seu enthusiasmo de mãe, foi buscar a pasta de Augusto e pôz-se a procurar n'ella a escripta do filho.

―Não vejo ...―disse ella, remexendo os papeis.―Isto que é?... Ai, isto é uma escripta de Marianna... Ora veja.

Henrique fingiu examinar com attenção a escripta.

―Aqui estão os themas francezes d'elle. Quer vêr? Eu d'isso não entendo, mas hão de estar bons.

E passava tambem os themas para Henrique, que os examinava com a mesma attenção.

―Ora onde estará a escripta de Eduardo? Eu sempre queria que a visse. Isto... isto é... Ha de ser alguma carta, que elle anda a ler. Ora veja, primo; olhe que a lettra ainda não é das mais faceis... Eu por mim não a leio... Quer vêr?

Henrique recebeu, com a maior condescendencia, o novo documento que lhe ministrava D. Victoria, no sympathico intento de provar a habilidade dos filhos.

Voltou distrahidamente a primeira folha da carta e pôz-se a lêl-a no fim; cêdo, porém, começou a examinal-a com grande curiosidade; leu uma e outras das faces escriptas, e, ao acabar a leitura, estava-lhe nos labios um sorriso entre de ironia e de triumpho.

Offerecendo á morgadinha a carta que lêra, disse-lhe, com um modo que a impressionou:

―Veja se comprehende a significação d'esta carta, que estava na pasta do sr. Augusto, do amigo de seu irmão. A mim parece-me que as creanças não a comprehenderiam bem.

Magdalena olhou para Henrique e depois para a carta, que principiou a ler.

Succedeu-lhe como a Henrique; cêdo a dominava uma anciosa curiosidade, que a obrigou a ler com rapidez até o fim.

Ao acabar, amorfanhou-a com raiva, arrojando-a ao chão; escondeu o rosto entre as mãos e não pôde reter o pranto que lhe rebentava dos olhos.

D. Victoria parou a olhal-a, estupefacta.

―Que é isso, Lena? Santo nome de Deus! tu que tens, menina?

―É que ha momentos, minha tia,―respondeu Magdalena, fitando-a com os olhos arrazados de lagrimas―em que eu não sei como se resiste á loucura; em que, para não duvidarmos de nós mesmos, é necessario duvidar da Providencia, que dizem que protege os bons.

E levantando-se n'esta agitação nervosa, saiu da sala, suffocada pelos soluços.

D. Victoria interrogou Henrique a respeito da causa d'este episodio, que ella não podia comprehender.

Henrique respondeu simplesmente:

―Succedeu, minha senhora, que a carta encontrada na pasta do sr. Augusto parece-se muito com aquella de cujo extravio o sr. conselheiro se queixa e que foi publicada nos periodicos de Lisboa.

D. Victoria esteve algum tempo a pensar na verdadeira significação da resposta.

―Mas... n'esse caso... visto isso...

―Visto isso, só o sr. Augusto pode explicar o mysterio que inda ha pouco nos preoccupava a todos. Os meus presentimentos malignos tinham infelizmente um fundo de verdade.

D. Victoria, tendo a final comprehendido, exclamou:

―Pois seria elle! Era d'elle que o primo ha pouco falava? Por esta não esperava eu! Ora fie-se uma pessoa n'estes santos! Uma coisa assim! Ora deixa estar que eu vou... Ahi está o pago que se tira de bem fazer! Ahi está! Veremos a cara com que elle me responde. Ora deixa...

―Eu retiro-me―disse Henrique, pegando no chapéo para sair.

―Fique, primo, fique... Até é bom que ouça...

―Perdão, minha senhora. É melhor que eu não fique. Ha razões para isso... Tudo deve passar-se entre v. ex.a e elle, e, se me é licito um conselho, bom será que não seja demasiado violenta.

Apesar dos pedidos de D. Victoria, Henrique retirou-se.

Não ia satisfeito comsigo o hospede de Alvapenha. E por quê? Não tinha feito o seu dever? Por acaso não era flagrante o delicto de Augusto e irrecusaveis as provas que o acaso contra elle ministrára?

Mas em nós todos se deve ter já passado um phenomeno moral, comparavel ao que se estava dando com Henrique. Occasiões ha em que, apesar de todos os argumentos da razão, apesar da conspiração de todas as provas a justificar-nos, persiste em nós uma voz instinctiva a avisar-nos de que commettemos um mal, formulando uma accusação.

Isto sómente não succede a quem tenha adormecidos os mais generosos escrupulos da consciencia; e este caso não se dava com Henrique.

D. Victoria ficou só na sala, meditando na maneira de confundir e castigar o criminoso. Passeiava agitada, elaborando comsigo o dialogo que se ia seguir, encarregando-se ella propria de responder por Augusto.

Não se passou muito tempo que Augusto não viesse procurar a pasta que lhe esquecêra na sala.

―Que procura?―disse D. Victoria, que, ao vêl-o, parou junto da mesa.

―Uma pasta que deixei aqui!

―Será esta?―disse D. Victoria, mostrando-a.

―É essa mesma―respondeu Augusto, indo para buscal-a.

―Como vão na leitura do manuscripto os meus pequenos, sr. Augusto?―perguntou D. Victoria, retendo a pasta.

―Muito bem, minha senhora.

―Já entenderam esta carta?

Augusto pegou na carta, que examinou, superficialmente.

―É provavel que já, minha senhora; ainda que não me lembro de haver escolhido esta entre as que v. ex.a me deu.

―Pois escolheu por certo, visto que a tinha na pasta; mas como lhe pareceu difficil de mais para os pequenos, teve o cuidado de mandal-a imprimir para elles lerem melhor. Não posso consentir que entre n'esses gastos por causa de meus filhos; por isso queira dizer a despeza que fez, para se mandar pagar.

D. Victoria tirava da raiva, que se apossára d'ella, uma ironia superior aos seus habituaes expedientes de espirito.

Augusto ergueu para ella os olhos, admirado, porque não podia comprehender aquellas singulares palavras.

―Diz v. ex.a que...

Em vez de lhe responder logo, D. Victoria pegou no periodico que Henrique deixára sobre a mesa, e mais exaltada já, accrescentou:

―Veja se saiu exacta. Compare. Talvez precise de fazer alguma emenda.

Augusto olhou para o periodico e para a carta, sem bem saber o que fazia nem o que queria dizer tudo aquillo.

―Mas, por amor de Deus, minha senhora,―disse elle, já sobresaltado―que quer dizer tudo isto?

―Quer dizer, sr. Augusto, que, quando para outra vez se lembrar de atraiçoar mais alguem que o tenha favorecido, seja mais cuidadoso em esconder as provas da sua villeza.

―Minha senhora!―exclamou Augusto, fazendo-se pallido.

―Fez mal em não nos ter prevenido antes do que tinha descoberto; nós ainda tinhamos bastante dinheiro para cobrir o lanço e ficarmos com a carta.

―Oh, meu Deus! pois suspeita-se...

E Augusto, quasi como louco, arrancou das mãos de D. Victoria a folha, e começava a lel-a; mas as nuvens que lhe passavam pelos olhos, a vertigem que lhe turbava a cabeça não o deixavam comprehender o que lia.

Emquanto Augusto assim luctava comsigo mesmo, D. Victoria dizia:

―Agora é que eu entendo o que queria dizer o primo Henrique. Sempre é um homem que sabe o que é o mundo...

Ao ouvir estas palavras, Augusto arrojou de si o periodico, e scintillou-lhe o olhar de cólera:

―Ah! Foi elle? Sim... Havia de ser. Devia suspeital-o. Era de esperar que o fizesse. É o pretexto. Minha senhora, ha aqui uma traição infame, uma traição que eu não ousaria suspeitar de ninguem! Mas juro-lhe que...

―Ha de dar-me licença de ir accommodar meus filhos―disse D. Victoria, interrompendo-o friamente. E encaminhou-se para a porta.

Augusto viu-a afastar-se, e disse-lhe em tom sereno, mas commovido:

―Vá, minha senhora, vá; mas se tem a essas creanças amor de mãe, não lhes ensine por ora a suspeitar de um homem que ellas se tinham habituado a amar e a venerar. Peço-lhe por ellas, mais do que por mim. É uma triste e prematura experiencia que lhes vae dar; vae-lhes envenenar para toda a vida o coração e talvez que contra si mesma veja voltar-se a desconfiança que lhes semeia tão cêdo.

D. Victoria saiu da sala sem lhe responder; é certo, porém, que não ousou dizer aos filhos coisa alguma em desfavor do mestre. Sob as singularidades do genio d'aquella senhora havia um fundo de bom senso, onde perfeitamente calaram as reflexões de Augusto.

É singular; ao entrar na sala immediata, ia a limpar os olhos, commovida.

Augusto permaneceu abatido e desalentado, como se n'aquelle momento tivesse visto dissiparem-se todas as esperanças da sua vida. Lagrimas inflammadas e amargas assomaram-lhe aos olhos ao vêr-se humilhado no seio de uma familia que elle respeitava, da familia d'aquella a cujos olhos mais desejaria nobilitar-se, engrandecer-se, revestir-se de todos os prestigios.

Era uma dor para enlouquecer, a sua! Ao desalento succedeu, porém, a reacção; n'aquelle caracter havia latente uma energia de homem.

―Agora, mais do que nunca, preciso de alento para não succumbir;―exclamou elle, erguendo a cabeça e vindo-lhe ás faces o rubor da exaltação―obriga-me a isso o nome honrado de meu pae, a santa memoria de minha mãe. A consciencia me dará forças para luctar com a intriga e com a calumnia, onde quer que ella esteja. Ir-lhe-hei ao encontro, a descoberto, sem disfarce, nem artificios, como luctador leal. E se ha justiça no Céo, hei de vencer! Não voltarei mais a esta casa, sem ser com a cabeça erguida; não pensarei mais em ti, Magdalena, unica, suave imagem que ainda me offerecia vida, emquanto não saiba que no teu pensamento o meu nome não é o de um infame.

Ao voltar-se para sair descobriu Magdalena, que o observava da porta.

Augusto estremeceu, mas, fazendo por dominar a turbação, curvou-se respeitosamente perante a morgadinha, e ia a retirar-se.

―Espere,―disse-lhe ella, estendendo-lhe a mão, e com profunda melancolia―não saia sem se despedir de uma amiga que, apesar de tudo, o reputou sempre innocente.

Augusto parou, como se aquellas palavras o ferissem no coração.

Magdalena, com as faces pallidas e as lagrimas nos olhos, continuava a estender-lhe a mão.

Augusto apoderou-se d'ella e cobriu-a de beijos e de lagrimas.

―Oh! obrigado, minha senhora, obrigado!―exclamou elle―precisava d'essas palavras para não enlouquecer.

―Vá, Augusto, vá. Dentro em pouco tempo todos lhe pedirão perdão. Creio-o firmemente.

―E eu não procurarei tornar a vêl-a, senão quando pudér justificar essa generosa confiança. Juro-lh'o.

As lagrimas de Magdalena não podiam mais tempo conter-se-lhe nos olhos; iam soltar-se e já ella, para as occultar, desviava o rosto, quando Christina entrou na sala.

Christina, a quem a mãe acabára de contar o acontecido, parou a ver a scena e a commoção dos dois.

Augusto não se demorou, saiu sem pronunciar uma palavra.

Magdalena deu largas á tristeza, que lhe pesava no coração, deixando correr livremente o pranto.

Christina correu a abraçal-a.

―Meu Deus! meu Deus! Lena, isto que quer dizer?―exclamou Christina.

E, approximando os labios do ouvido da prima, murmurou, com adoravel ingenuidade:

―Pois tu... amaval-o?

Por unica resposta Magdalena apertou-a apaixonadamente ao seio.

E ambas por algum tempo confundiram as suas lagrimas.

XXIII

Dominado por os mais energicos e encontrados sentimentos Augusto saiu do Mosteiro, ainda sem plano formado, sem tenção definida, mas comprehendendo vagamente a necessidade de abraçar uma resolução qualquer.

As palavras que D. Victoria inconsideradamente soltára, tinham-lhe feito conceber a suspeita de que Henrique não fôra alheio á calumnia que pesava sobre elle. D'ahi a attribuir-lhe todo o plano da intriga não ia longe, e justo é confessar que não era destituida de plausibilidade a ideia.

A especie de aversão reciproca que, desde o primeiro encontro, os dividira, a maior vehemencia da entrevista na noite de Natal, em que ficára pendente entre elles uma provocação, só á espera de pretexto, concorriam para dar vigor a esta supposição.

Por isso, depois de por muito tempo percorrer á tôa os caminhos dos campos, sem consciencia nem destino, Augusto encaminhou-se resolutamente para Alvapenha.

Estava ainda pouco senhor de si para meditar nas circumstancias que occasionaram a sua accusação. Mal poderia até dizer de que era accusado. Percebeu que se tratava de um abuso de confiança, de uma infamia, mas a impressão recebida fôra tal que não o deixára investigar os pormenores do facto. Previa em tudo isto uma traição, e, para a esclarecer, dirigiu-se á unica pessoa de quem lhe parecia provavel que ella partisse.

Quando chegou a Alvapenha já tinha alli passado a hora de jantar.

Henrique retirára-se para o quarto, D. Dorothéa e Maria de Jesus, aquella dobando, esta fiando, aproveitavam o tempo a rezar parte das suas longas orações quotidianas.

Quando Augusto bateu á porta, estavam ellas de volta com a ladainha, que D. Dorothéa dizia em latim, a seu modo, e a que Maria de Jesus respondia no mesmo idioma.

―Turris e burris, fedilisarca, espeque da justiça, Joannes asellis―dizia D. Dorothéa.

―Orá pér nós―respondia invariavelmente a criada.

A reza interrompeu-se ao entrar Augusto na sala.

Poucas situações se podem conceber mais exasperadoras de animo do que a de Augusto n'aquelle momento.

Vir com o espirito dominado por as mais violentas paixões, trazer no coração uma verdadeira tempestade affectiva, e de subito achar-se na presença de duas indoles essencialmente pacificas, de dois corações a que a paixão nunca alterou o rithmo, de duas consciencias de que nunca a dúvida, o remorso, ou o odio turbaram a celeste serenidade, é um martyrio cruel.

Augusto teve desejos de recuar, porque previu a tortura que o esperava.

―Ditosos olhos que o vêem!―disse D. Dorothéa, arredando deante de si a dobadoura, para mais á vontade contemplar o recem-chegado.―Não sei, que mal lhe fizeram n'esta casa!

―As minhas occupações...―balbuciou Augusto, sem saber o que dizia.

Maria de Jesus veio de reforço á ama.

―Isso! fale-nos nas suas occupações, nem que se não soubesse cá que todos os dias dá o seu passeio ao fim da tarde; sem falar nas quintas-feiras e domingos...

Augusto não respondeu.

―Pois olhe que todos aqui lhe querem bem―disse D. Dorothéa.

―Assim o creio, minha senhora.

―Eu fui muito amiga de sua mãe, que era uma santa creatura. Inda me parece que a estou a vêr ahi sentada, com aquella capa rôxa que trazia. A alegria d'ella, quando o Augustito veio de Lisboa! Vi-a chorar e agradecer a Deus o filho que lhe tinha dado... Todo o seu desejo era não morrer antes de o vêr padre; queria pelo menos uma vez commungar das suas mãos... Coitada!... Não lhe concedeu isso o Senhor, que bem cêdo a chamou a si.

E continuou para Augusto:

―Quando morreu a morgada, a madrinha da Lenita, e que me contaram aqui do legado que ella deixára, eu disse logo: «Ora a alma tem ella no Céo por isto, quando por mais não seja». Porque, emfim... só quem não conheceu sua mãe é que não diria outro tanto. Verdade é que elle não chegou a aproveitar... mas... Emfim cada um sabe o que lhe convem e o que lhe não convem. E eu digo, a vida de sacerdote é muito bonita, isso é, mas... não havendo inclinação...

Augusto estava impaciente com a loquacidade da senhora de Alvapenha.

―O sr. Henrique de Souzellas está em casa?―perguntou elle, logo que pôde.―Desejava muito falar-lhe.

―Ai, sim? quer falar com elle? Eu acho que... Parece-me... Sim, elle deve estar no quarto... Ha de estar a ler. Não tem outra vida aquelle rapaz! Uma coisa assim! Por mais que eu lhe diga: «Henriquinho, olha que isso faz-te mal...» É o mesmo que nada. Só ler, ler, ler, que é uma coisa por maior. Ao principio ainda por ahi dava alguns passeios... Agora, tirando lá as suas visitas ao Mosteiro, elle para ahi fica. Lá ao Mosteiro sim, para ahi ainda elle vae.

―É que os ares são por alli muito saudaveis―disse maliciosamênte Maria de Jesus.

―Adeus! ahi vem vossê com as suas coisas. E então que tem? Pois está claro que um rapaz, como elle, dá-se com a gente nova.

―Pois sim, senhora, eu não digo...

―E as raparigas de lá já não estão bem sem elle... Ora eu confesso, quando elle está de maré, é um gôsto ouvil-o. Sempre ás vezes tem coisas que fazem rir as pedras.

―E pondo-se a contar historias? Ih! isso então é que é! Eu não sei onde elle as vae buscar!―accrescentou a criada.

―Com esta―continuou D. Dorothéa, apontando para Maria de Jesus―é ás vezes um passo. Eu ainda queria que o Augustito os ouvisse a ambos. É perdido em pouca gente. Elle põe-se lá a inventar patranhas, e ella a tôla, que sabe já como elle é, ouve tudo muito séria e fiada, e no fim então é que são os escarcéos. Emfim, uma coisa é dizer, outra é vêr!

E D. Dorothéa ria, com aquelle rir meio tossido de velha, em que ha não sei que indicios de uma existencia placida, que consola ouvir.

Augusto forçava-se a sorrir áquellas narrações das duas velhas, a que elle mal attendia.

―Eu digo―continuou D. Dorothéa―que já nos havia de fazer falta se saisse d'aqui; quando cá não está parece-me a casa morta.

―Deixe lá, senhora, que este já d'aqui não sae.

―Ora bem sabe vossê d'isso.

―Pois a senhora verá. Ora! Os passeios ao Mosteiro são muito bonitos.

Augusto ergueu-se, devéras resolvido a cortar a conversa por uma vez.

―Se me dá licença, eu vou procural-o ao quarto. Desejava falar-lhe, quanto antes, para um negocio de urgencia.

Depois de mais algumas reflexões, resignaram-se a deixal-o partir.

Augusto transpoz rapidamente os corredores, que o separavam do quarto de Henrique, e bateu á porta d'este.

―Entre quem é―disse de dentro Henrique.

Augusto entrou.

O sobrinho de D. Dorothéa estava sentado junto da janella, lendo uma folha e fumando.

Ao vêr Augusto levantou-se.

A lembrança das scenas d'aquella manhã no Mosteiro, e a expressão de physionomia de Augusto, fizeram-lhe prevêr a indole da entrevista que se ia seguir.

Evitando porém o menor indicio, que pudesse revelar a prevenção em que estava, disse naturalmente, estendendo a mão a Augusto:

―Oh! por aqui! A que devo o prazer d'esta visita?

Em vez de lhe corresponder ao cumprimento, Augusto disse-lhe friamente:

―Assim estende a mão a um miseravel? Ou é tibieza de pundonor, ou excesso de magnanimidade!

Henrique retirou logo a mão e respondeu com orgulhoso desdem:

―Nem uma coisa, nem outra; simplesmente o juizo bastante para não me arvorar em superintendente de negocios que me não dizem respeito; é um sentido especial, que se chama delicadeza.

―É um pouco sujeito a adormecer em si esse precioso sentido―replicou Augusto no mesmo tom.―Nem sempre são tão observadas pelo senhor, essas delicadas abstenções, como agora. Sei-o por experiencia.

―Não o são desde que os interessados me ordenam que intervenha, e desde que a minha intervenção pode ser util a amigos.

―Pois bem; como, por qualquer d'essas causas, se deu o facto em relação ao objecto que me traz aqui, espero que me explique a natureza da sua intervenção.

―Mas com que direito me vem o senhor pedir aqui explicações?

―Com o direito que me dá a consciencia, senhor!―respondeu energicamente Augusto, despojando-se de toda a apparencia de ironia.―Com o direito que tem todo o homem, calumniado cobarde e infamemente, como eu fui, de provocar uma accusação aberta e leal. Direito? É mais ainda do que direito, é dever. É um dever para com a moral, é um dever para com a consciencia, é um dever para com a memoria d'aquelles que nos transmittiram um nome honrado.

―Muito bem; mas, admittindo que seja esse direito ou esse dever, e não lh'o contestarei, por que singularidade acontece que seja eu a pessoa que tem de responder por tudo isso? Por acaso será este o pretexto, para depois do qual tinhamos adiado uma entrevista que suppuzemos necesssaria?

―Se houve pretexto para ella, foi da sua parte, e escolheu-o bem infame e vil. Não lh'o invejo. Da minha não é pretexto; é uma interrogação bem positiva e terminante. Todos os motivos anteriores, que podiam auctorisar-me a procural-o, cessaram ante a impreterivel exigencia d'este. Preciso de justificar-me, e por isso preciso de conhecer e de ouvir os meus accusadores.

―E imagina que sou eu quem deve auxilial'o na tarefa? Pelo menos devia escolher uma hora mais cómmoda. Sabe que na Alvapenha se janta patriarchalmente ao meio dia.

―Não julgue que com essas ironias de mau gôsto, se esquivará a responder-me. Juro-lhe que hei de obrigal-o a falar com seriedade.

―E tem meios para isso?

―Faço-lhe a justiça de acreditar que sim; creio que ainda não estará tão envilecido que receba com um sorriso cynico o insulto que lhe infligir...

―É provavel que não risse, no caso que diz; mas tambem não falava, acredite. Ha, para interrogações d'essas, respostas mais adequadas e discretas. Não tente; aconselho-o... Mas, valha-me Deus, quem lhe disse que eu não queria dar-lhe todas as explicações que souber? Sente-se, conversemos placidamente, que é a melhor maneira de vêr claro nas coisas. Não fuma?

Augusto, indignado com este frio sarcasmo, respondeu com vehemencia:

―Está-me causando tedio e compaixão ao mesmo tempo, senhor. Deve ter já uma alma bem corrompida para me receber assim. Ainda quando eu fôsse um criminoso, se no seu caracter houvesse brio, dignidade e sentimento moral, devia a minha presença ser-lhe um espectaculo demasiado abjecto, para o não deixar sorrir, ainda que de sarcasmo; mas na incerteza em que está, em que deve estar por fôrça, a só ideia de que pode calumniar um homem innocente, devia bastar para lhe fazer sentir toda a gravidade d'esta entrevista e obrigal-o a attender-me como eu exijo ser attendido. Para não comprehender isto, para não respeitar esse sagrado direito, que tem todo o accusado de se defender, é necessario estar corrompido até o fundo da alma. O scepticismo e a irreverencia para com os outros, só se dá em quem duvída de si proprio, e a si proprio se não respeita, porque se conhece. O senhor soube insinuar a calumnia no seio de uma familia, cujos amigos generosos não a receberam sem dor; e quando o calumniado lhe vem pedir explicações, porque se trata da sua unica riqueza, porque, sem familia e pobre, e ámanhã talvez na miseria, precisa de defender o unico bem que lhe resta, o senhor recebe-o com um sorriso ultrajante, para occultar talvez a cobardia, que não ousa repetir na face do accusado as insinuações que contra elle fez na ausencia. Se a consciencia lhe não exprobra esta infamia, teve razão ao dizer-me que me enganei procurando-o. A caracteres d'esses não se pede a explicação da calumnia; é a sua manifestação natural.

E terminando estas palavras, que a mais violenta paixão lhe dictára, Augusto caminhou para a porta do quarto.

Henrique deteve-o.

No espirito do leviano hospede de Alvapenha passára-se n'este curto intervallo de tempo uma profunda revolução moral.

Na voz, no gesto e na indignação de Augusto pareceu-lhe perceber vestigios de sinceridade, em que até alli não acreditára, e desde esse momento, além dos remorsos pelos desdens com que o recebêra, sentia viva a necessidade de uma reparação.

Magdalena tinha razão.

No meio de todos os seus defeitos, havia n'este rapaz um não exgotado fundo de pundonor e de moralidade.

―Não saia―disse elle para Augusto, já sem a menor sombra de ironia.―Se para isso fôr necessario pedir-lhe perdão, pedir-lh'o-hei. Que mais quer?... Reconheço-lhe o direito que tem de ser escutado. Fique. E creia que, apesar das apparencias lhe serem desfavoraveis, eu, que em bem pouco concorri para ellas, sinto-me já movido a não lhes dar fé. É já um convencimento tão intimo como o que até agora tinha da sua culpa, confesso-o. Se na minha mão estiver esclarecer o mysterio, conte commigo. Fale.

Augusto fitava-o ainda com desconfiança.

Henrique percebeu-o e continuou:

―É justa a dúvida que lhe leio no olhar, mas, como sómente o meu procedimento futuro a pode desvanecer, peço-lhe que não deixe por isso de falar.

―Antes de mais nada: de que me accusam?―perguntou Augusto.

―Pois não sabe?!―exclamou Henrique, admirado.

―Vagamente apenas. Sei que ha uma carta extraviada, mas a conclusão em que fiquei, mal me deixou comprehender...

Henrique contou então tudo o que se passára no Mosteiro, e terminou dizendo:

―Já vê que eu não fiz mais do que faria outro qualquer em meu logar. Pesava sobre todos quantos frequentavam aquella casa uma desconfiança odiosa: esclarecer o mysterio, dissipar as suspeitas, lançar aos hombros do culpado toda a responsabilidade da traição, era o natural empenho de todos. A descoberta da carta na sua pasta accusava-o. Essa descoberta foi occasionalmente feita por D. Victoria. Eu não o conhecia bastante para que o seu passado me obrigasse a recusar o testemunho das apparencias. Os motivos de despeito, que as suas mesmas palavras por aquella occasião confirmaram, explicavam muito bem certas tentações de vingança... Nada mais natural do que suppôr...

Augusto cobriu o rosto com as mãos, murmurando:

―Accusado!... accusado de uma infamia, e deante de...

Aqui reteve-se, como se a tempo comprehendesse a indiscreção da sua dor.

Henrique cada vez se sentia mais modificado nas suas disposições para com Augusto; por isso, quando este cortou assim em meio a expressão do pensamento, elle, que lh'o percebeu, disse-lhe, sorrindo:

―D'ella? Socegue. Tem junto d'esse tribunal, de que se receia tanto, advogados eloquentes.

Augusto levantou para Henrique um olhar interrogador.

―Diz que...

―Que não deve temer da impressão produzida, por todas as provas d'este mundo, no animo de quem, através de tudo, acreditará sempre na sua innocencia.

―Refere-se a...

―Ao seu segredo, que ha muito o não é para mim. Veja como eu estou virado! Acho-me quasi disposto a sympathisar com elle, quando ha pouco tempo ainda, sinceramente o confesso, era esta a causa occulta de tal ou qual antipathia, que sentia pelo senhor... que sentiamos um pelo outro, digamos assim.

―Mas...

―Vamos, vamos... eu sei que é discreto; nem esta era occasião para entrar em confidencias. Tratemos do que mais importa... Não sei como é que iria jurar agora a sua innocencia em toda esta desastrada intriga, e com o tempo... porque francamente lhe declaro que me é necessario algum tempo para desvanecer em mim todos os restos de despeito e de... paixão... porém, com o tempo, talvez venha a ser seu verdadeiro amigo... sem a menor prevenção.

E depois de um momento de silencio, proseguiu, mudando de tom:

―Mas, com os diabos, sendo o senhor innocente, deve ter grandes inimigos aqui na terra para o enredarem assim! É preciso esclarecer isto.

―Inimigos?!... Não os conheço, nem vejo motivos...―disse Augusto, pensativo. Mas de repente, como se lhe acudisse um pensamento luminoso, fez um gesto que Henrique percebeu.

―Que é?―perguntou este logo.―Descobriu?... Diga... Uma suspeita é já um rasto precioso... guia os primeiros passos... Diga... E eu o ajudarei a seguil-o.

―Lembro-me agora de uma notavel visita, que ha dias recebi. É isso...

E Augusto contou toda a entrevista que tivera com o brazileiro.

―E ainda agora se lembra d'elle?―exclamou Henrique, ao ouvil-o―e inda hesita?! O senhor é de uma boa fé!... Temos o fio!

―Mas como pôde elle...?

―Isso depois; o mais virá a seu tempo. Agora trata-se de vigiar esse senhor... E agora me lembra; elle é um dos oradores do club do Canada... Sondarei esse antro tenebroso... Eu já devia suppor que andava aqui miseria politica... Estou a achar razão áquella adoravel Magdalena... Perdão... inda não perdi o habito de a adorar... Tambem, desde que o consiga, serei seu amigo sem restricções. Até lá, porém, não será isso motivo para de corpo e alma me não dedicar á sua causa... Eu posso ter todos os defeitos, menos o de collaborar de boamente n'uma velhacaria; e, fôsse o meu maior inimigo que eu visse victima d'ella, creia que procuraria desfazel-a.

―Agradeço-lhe essas palavras, que acredito são sinceras; não posso, porém, acceitar a intervenção que me offerece. Eu sou que devo justificar-me. Está empenhada n'isso a minha dignidade.

―Como queira. Em todo o caso espero que uma má prevenção o não constranja a não recorrer lealmente a mim, se o meu auxilio lhe puder servir. Agora peço-lhe perdão, se alguma vez o offendi de mais; mas vamos lá, o senhor tambem não está de todo isento de culpa... E quanto ao pretexto... adiado mais uma vez, não lhe parece?

Augusto não podia fechar-se áquelle caracter, que se lhe estava mostrando agora sob uma face nova e sympathica; por isso respondeu, sorrindo:

―Adiado para sempre.

E estenderam as mãos um ao outro, apertando-as já sem o menor resentimento.

Eram duas almas generosas, que acabavam de se comprehender.

―É notavel;―pensava comsigo Henrique―estou sympathisando á ultima hora com este rapaz! Mas como se combina isto com a minha paixão por Magdalena, a quem elle ama igualmente? Dar-se-ha que ella acertasse, e que não fôsse paixão o que eu senti! Isto de mulheres teem uma vista tão apurada para estas discriminações!

XXIV

O processo instaurado contra o Cancella seguiu os seus tramites normaes; porém, graças ao empenho do conselheiro, a quem a morgadinha escrevêra a favor do prêso, e apesar da perseguição que lhe moviam os padres, contava-se que elle fôsse sôlto, e era esperado na aldeia dentro em poucos dias.

Magdalena não se descuidára de mandar todos os dias ao pobre homem noticias da filha, a qual, depois de ter por algum tempo inspirado sérios cuidados á medicina da terra, parecia haver entrado n'um periodo de convalescença.

Magdalena assim o participou ao Cancella para o animar, mas, sem saber por quê, ella propria não sentia as esperanças que dava.

Ha espiritos tão instinctivamente sensiveis e perspicazes, que, á maneira dos medicos experientes, presentem a gravidade ou a approximação do mal, ainda quando os symptomas tenham perdido toda a feição assustadora.

Já os sorrisos fluctuam nos labios do doente e um desmaiado rubor de saude principia a tingir as faces, até então pallidas, e elles sentem-se ainda estremecer de secretas apprehensões.

Assim acontecia a Magdalena ao contemplar as feições da pequena Ermelinda.

A frequencia e intensidade dos accessos diminuira; certo colorido de vida principiára já a animar-lhe o rosto infantil, havia pouco gelado de terror e pela doença; ás vezes até um sorriso, ainda que melancolico, distendia-lhe os labios desmaiados, e só de quando em quando raras nuvens de tristeza, evocadas por uma recordação penosa, parecia assombrarem-lhe o olhar limpido e meigo; os somnos eram tranquillos, as vigilias serenas, e apesar de tudo a morgadinha entristecia ao reparar n'ella.

O facultativo da localidade, apalpando com os dedos robustos o delicado pulso da creança, assegurára que ella estava já livre da febre; e apesar d'isso, Magdalena quasi sentia remorsos, quando escrevia ao Herodes a dar-lhe a boa nova.

E é certo que mais do que justificadas tinham de ser estas apprehensões da morgadinha.

Na tarde d'aquelle mesmo dia, em que Ermelinda acordára mais tranquilla e animada, renovaram-se subitamente, e assustadores como nunca, os indicios do mal profundo.

Um delirio violento, caracterisado por vagos e mal definidos terrores, gritos angustiosissimos, contracções espasmodicas, que parecia despedaçarem aquelle corpo fragil e delicado, surgiram de novo, e, ao dissiparem-se, deixaram, como rastos, uma prostração extrema, uma quasi completa insensibilidade de funesta significação.

Magdalena, assustada, tomou nos braços a debil e emmagrecida creança, e trouxe-a para junto de uma janella, d'onde ainda se avistava o sol, já quasi a esconder-se por detraz de uma collina distante.

Dir-se-ia querer pedir, aos frouxos raios de um quasi crepusculo de inverno, um pouco de calor para fundir os gêlos da morte, que principiavam a invadir os membros delicados d'aquella formosa creança; ao clarão levemente afogueado do horisonte, um pouco das suas tintas para aquellas faces morbidamente pallidas; á amenidade da paizagem, um reflexo de sorriso para aquelles labios, onde elle se apagára.

Os olhos de Ermelinda fitaram-se tristemente no sol já vacillante, com a expressão, cheia de saudade e de poesia, de uma alma joven que se despede da vida, e, quando o sol desappareceu, desviaram-se lentamente para o rosto de Magdalena, que a observava com anciedade.

Ermelinda sorriu; um sorriso mais triste do que as mais tristes lagrimas.

A morgadinha apertou-a ao seio, commovida.

―Que tens tu, minha filha?―disse-lhe com meiguice, afagando-a.

Ermelinda não respondeu, mas continuou a fitar Magdalena com a mesma expressão de affecto e de tristeza.

A morgadinha approximou os labios dos d'ella para beijal-a.

A pequena doente correspondeu-lhe ainda ao beijo e continuou a fital-a como d'antes. E durou, e durou este olhar até que pareceu a Magdalena haver n'elle não sei que estranha fixidez, que a inquietou.

Palpou as mãos da creança; estavam frias; o coração, parado; chamou-a pelo nome... a mesma fixidez no olhar, a mesma immobilidade nas feições... estava morta.

Foi assim que se despediu da vida aquelle candido espirito. Foi como o adormecer de uma alma, que algum anjo invisivel, namorado d'ella, arrebatasse nas azas para o throno de Deus.

A morte de uma creança como Ermelinda é um facto de ordinario indifferente na vida social; alguns sorrisos de menos no mundo; uma voz que emmudece nos festivos córos da infancia; algumas sentidas lagrimas de mãe sobre um berço vazio; algumas flores sobre um tumulo; e á superficie das ondas sociaes nem sequer a leve vibração que a rosa desfolhada imprime á agua tranquilla do lago... eis tudo.

A multidão segue no delirio das festas, na lucta das paixões, na febre da ambição e das glorias, e o perfume da flor pendida não lhe affecta os sentidos embriagados.

Ás vezes, porém, não succede assim, e assim não devia succeder com Ermelinda.

As paixões humanas, que ante o cadaver de uma creança, coroada de flores candidas e cingida da alva tunica da pureza, deviam abrandar-se, como deante de uma visão do Céo, tomam-n'o ás vezes por estimulo para mais furiosas se desencadearem, e proclamarem a lucta, a sedição e a vingança.

Desde que fôra publicada a portaria, prohibindo expressamente os enterramentos na igreja, medida tão adversa ao espirito do povo, não tinha havido na terra uma morte que obrigasse a pôr a medida em execução.

A ira popular, exacerbada de contínuo pelas secretas instigações de alguns padres fanaticos ou hypocritas, e dos adversarios politicos do conselheiro, rugia, havia muito, surdamente, mas não rompêra em explosão por falta de pretexto.

Notava-se apenas uma maior affluencia de gente na taberna do Canada, um maior calor nos discursos dos tribunos, e a tendencia á formação de magotes nas encruzilhadas e nos largos.

Quando porém se espalhou a noticia da morte de Ermelinda, augmentou a effervescencia dos animos. Era chegado o momento.

A morgadinha, que chorou com lagrimas sinceras a filha do Cancella, quiz que ella fôsse sepultada no mausoléo da casa do Mosteiro. Cumprindo assim a lei, prestava-se tambem culto á affeição que todos sentiam pela creança, companheira de brinquedos de Angelo, que lhe queria como irmã.

Sabendo-se d'esta resolução, rebentou a indignação popular.

No dia seguinte ao da morte de Ermelinda, e n'aquelle, no fim da tarde do qual devia realisar-se o enterro, havia na taberna do Canada extraordinario ajuntamento.

O brazileiro, o sr. Joãozinho das Perdizes, o latinista Pertunhas, alguns padres e lavradores, caseiros e camaradas do sr. Joãozinho, falavam, berravam e gesticulavam a um tempo.

O morgado das Perdizes, cujo animo fluctuava indeciso entre favorecer e guerrear o conselheiro, mas que, depois do despacho do professor que pedira e conseguira, como que sentia remorsos de o atraiçoar, achava-se agora muito abalado, porque na questão dos cemiterios era intolerante, não podendo levar á paciencia que quizessem enterrar um homem, como elle, n'um logar onde chovia e fazia sol, como n'um campo de centeio.

O brazileiro, conscio do valor do voto eleitoral do sr. Joãozinho, não se cançava de o catechisar, usando para isso de todas as armas e atacando-o por todos os pontos vulneraveis que lhe conhecia.

Era assim, por exemplo, que sabendo da sympathia e gratidão do morgado para com o herbanario, insistia muito sobre a dureza do coração do conselheiro, que privára cruelmente o pobre velho da sua propriedade, golpe fatal, que dentro em pouco o levaria ao tumulo; e a proposito contava como o herbanario pedira de joelhos ao conselheiro para lhe poupar a casa, e como este se rira das lagrimas do velho, porque tinha interesse em que não fôsse adoptado o outro plano, que lhe cortava uma grande porção dos proprios bens.

Ouvindo estas coisas, o sr. Joãozinho, que tinha mais de grosseiro e bestial do que de perverso, dava punhadas sobre a mesa, despejava copos de quartilho e dizia pragas sacrilegamente eloquentes.

Outras vezes era no tópico do cemiterio que ardilosamente o espirito tentador do brazileiro insistia. Fazia avivar a ideia ao morgado de que elle proprio tinha de ser alli enterrado, porque na freguezia de Pinchões iam tambem ser prohibidos os enterros na igreja, o que este negava, berrando; e todos affirmavam o mesmo que o brazileiro dizia, o que dava logar a novas punhadas, novas irritações e a novas pragas do sr. Joãozinho.

No dia que dissemos, multiplicára o morgado, mais que de costume, as suas libações de vinho; e com as faces injectadas, os olhos meio fechados, ouvia com irritação os commentarios dos circumstantes e distribuia com profusão pragas e murros.

―Com os diabos!―berrava elle, acabando de despejar um copo de quartilho.―Se me chega a mostarda ao nariz... sou homem para ir á igreja e obrigal-os a enterrar lá a pequena.

―Isso não se faz assim com essa facilidade e arreganhos―disse velhacamente o brazileiro, de proposito para o irritar ainda mais.

―Eu lhe diria se se fazia ou não, se se tratasse de coisa que me dissesse respeito!... Mas, lá com a filha do Cancella... não tenho eu nada... lá se avenham.

―A questão não é ser filha do Cancella ou deixar de ser;―tornava o brazileiro―a questão é do exemplo; enterrado o primeiro, enterram-se os outros.

―Menos eu―exclamou o morgado.

―Se Deus quizer tambem vmc. se ha de lá enterrar.

―Diabos me levem se...

―Pelos modos―disse um padre do lado―elles enterram a rapariga no tumulo da familia do conselheiro.

―Pois vêdes; se elles são todos da mesma confraria!―ponderou o Pertunhas.

―E se não, é vêr no outro dia o que o Herodes fez ao missionario! Então julgam que aquillo não foi combinação?―disse o padre.

―Dizem que o Herodes ganhou vinte soberanos para lhe bater―accrescentou um lavrador.

―A mim me disseram que trinta.

―Sempre uma pouca vergonha como aquella!

―E verão que não lhe succede mal.

―Pois não, não; elle está alli, está na rua.

―Diz-se que o soltam á fiança.

―Não pode ser; aquelle crime não tem fiança―ponderou um fazendeiro, que se tinha por muito visto em demandas e coisas de justiça.

―Ora adeus! com o que vossê vem! Querendo elles...

―Aquillo parece uma seita.

―E ainda ahi está? Pois já se sabe que elles são pedreiros-livres.

―E o tal lisboeta?

―Esse, então, é que é d'aquelles!

O sr. Joãozinho pestanejou, ouvindo falar de Henrique.

―Ah! é do tal petimetre que falam? No tal que foi para a igreja caçoar com o missionario? Sempre vossês são uns homens de lama, tambem! Ó Cosme―continuou, voltando-se para um alentado camarada que estava ao lado d'elle―olha aquillo comnosco, hein? Onde estaria o amigo?

O valentão sorriu modestamente, encolhendo os hombros.

―Pois, senhores―proseguiu o brazileiro, que não queria deixar arrefecer o enthusiasmo e a irritação do publico―hoje decide-se a coisa... D'aqui a uma hora está enterrada a pequena e depois... o uso faz lei.

―Isso é que é verdade―secundou o Pertunhas.

―Faz lei emquanto eu me não lembrar de ir desenterral-a―respondeu, cada vez mais azedado, o sr. Joãozinho

―Não; isso lá mais devagar―acudiu o brazileiro―vossemecê bem sabe que, estando ella no mausoléo do conselheiro...

―Importa-me cá o mausoléo? O senhor está a ler. Eu com um empurrão arrumo aquella platafórma a terra. Ó Cosme, olha nós, hein?

O Cosme tornou a fazer o mesmo gesto expressivo.

―Ahi está quando era preciso que houvesse n'esta terra um homem de vontade, que não deixasse fazer o enterro―disse o padre.

―Era bem feito, para elles saberem tambem que se não brinca assim com o povo.

―Lá isso era!―repetiram algumas vozes.

―Eu por mim... se alguem fôr...―aventurou um.

―E eu, eu―ouviu-se dizer de alguns pontos da sala.

―Deixem-se de contos,―continuou o padre―elles fazem o que querem, porque sabem que não ha um homem de coragem, que se ponha á frente do povo...

―Lá isso é que é verdade.

―Já não ha homens para as occasiões.

O morgado das Perdizes, que tinha presumpções de valente, e se gabava de ter varrido feiras a varapau, espinhou-se com estas palavras, e protestou dizendo:

―Então julgam vossês que eu, se me der para ahi, não vou ao cemiterio, eu só, e ponho tudo aquillo em cacos? hein?

―Isso não se faz com essa facilidade―disse o brazileiro impertinentemente.

―A quanto aposta vossê?―bradou, cada vez mais afogueado, o sr. Joãozinho.

―Ora vamos―continuava o brazileiro com os mesmos modos―não que a auctoridade...

―A auctoridade! Para mim é que elles veem! Olha o regedor! O regedor commigo! E os cabos? Ó Cosme, hein? Que te parece? Os cabos comnosco?

O Cosme sorriu e resmungou por entre dentes:

―Se queres tentar...

―Com mil demonios!―disse o morgado, exgotando mais um copo―vamos a isto! anda d'ahi, ó Cosme!

O Cosme levantou-se.

―Nada de imprudencias―aconselhou o brazileiro, de um modo que tinha a significação contraria ao pensamento que exprimia.

―Quem tiver mêdo, que fique em casa. Ora quero mostrar a esta gente se ha ou não ha um homem para as occasiões.

E estavam no meio da sala o sr. Joãozinho e os seus arrojados camaradas, e o brazileiro já conferenciava com o padre, que lhe respondia com signaes de intelligencia, como quem tinha projectos filiados n'aquelle movimento, quando entrou na taberna uma nova personagem que, por não habitual alli, e por outras circumstancias faceis de conjecturar, causou geral extranheza.

Era Henrique de Souzellas.

Tendo sabido da morte de Ermelinda, e encontrando no Mosteiro todos occupados com os aprestes do funeral da pequena, Henrique montou a cavallo e deu um longo passeio pelos arredores.

Na volta achou-se defronte da taberna do Canada.

Chegou-lhe aos ouvidos o rumor das altercações e das pragas que iam lá dentro, e isto resolveu-o a entrar, cumprindo assim a promessa que fizera a si mesmo de estudar aquelle terreno, a vêr se encontrava vestigios que o levassem a provar a innocencia de Augusto.

Apeou-se, prendeu o cavallo ao peão da porta e entrou.

Ao entrar, percebeu que havia causado sensação a sua presença, e até, pela expressão com que o fitavam, suspeitou que talvez não fôsse demasiado prudente o passo que dera.

Era tarde, porém, para recuar, e o orgulho impedia-lhe a menor manifestação de receio.

Sentou-se tranquillamente n'uma banca vazia.

O Canada, como taberneiro attencioso, veio informar-se pressurosamente do que desejava o recem-chegado.

Henrique pediu vinho, para pedir alguma coisa, e não obstante estar firmemente resolvido a não lhe tocar.

O Canada trouxe-lhe um copo largo para deante d'elle, e de motu-proprio associou-lhe algumas azeitonas, que recommendou como excitadoras da sêde.

Henrique pediu lume para accender um charuto, e pondo-se a fumar correu a vista pelos grupos que enchiam a sala. A effervescencia dos animos havia abatido com o chegar de Henrique, como a da agua em que se lançasse uma pedra de gêlo.

Reinava, porém, um rumor surdo, um cochichar pouco tranquillisador, e que ameaçava degenerar em maior tormenta.

O brazileiro escondia-se por detraz de uns homens do povo, para não ser visto; o sr. Joãozinho olhou para Henrique, como se o não conhecesse, e conversava em voz baixa com o seu camarada Cosme, o qual fitava no recem-chegado olhares sombrios e ameaçadores.

Henrique, ainda que interiormente não tranquillo, sustentava-os sem desviar os seus, e continuava fumando quasi provocadoramente. Pouco a pouco subiu de tom a conversa dos dois, assim como a dos outros grupos.

―É preciso ensinar estes espiões―dizia uma voz audivelmente.

―Que quererá d'aqui este figurão?―perguntava outro.

―Era bem feito que lhe ensinassem a não se metter com a nossa vida...

O morgado, cada vez mais excitado pelo vinho, cruzou os braços sobre a mesa, e com o corpo inclinado para deante e os olhos abertos para Henrique, principiou a dizer, retardando-se-lhe já algum tanto a voz nas fauces:

―Eu se sei que ha alguem que me anda a seguir os passos e a espiar, sempre lhe dou uma lição, que lhe ha de lembrar toda a vida! Não, que isto aqui não é Lisboa! Eu não admitto que se olhe para mim com falta de respeito... Já disse! Eu não gosto de repetir as coisas... Tenho dicto! O senhor não ouve?

Henrique continuou a fumar, sem desviar os olhos do morgado.

―Ó senhor lá... Faz favor de não olhar para mim d'essa maneira?

Henrique exhalou uma baforada de fumo e sorriu.

―Vossê ri-se!... Elle riu-se, ó Cosme? Pois elle riu-se de mim? Espera!

E o sr. Joãozinho executou um movimento para levantar-se.

O Cosme imitou-o, e os camaradas puzeram-se a postos.

Susteve-os o brazileiro e outros igualmente pacificos.

―Então! então! isso o que é?

―Quero perguntar áquelle senhor de que é que se ri―bradava o morgado, furioso.

―Para isso não se incommode―respondeu Henrique―eu mesmo d'aqui lhe respondo. Rio-me da ridicula figura que está fazendo.

―Ah!... ouvem-n'o? Larguem-me, deixem-me, deixem-me... Ó Cosme!...

E o morgado barafustava entre os braços debeis que o retinham. No povo principiou a subir a maré das murmurações contra Henrique.

―O senhor vem para aqui armar desordens?

―É para espiar?

―Depois queixe-se...

―Não se metta com a gente.

O morgado bracejando, espumando, e largando por pouco a jaqueta nas mãos que o retinham, conseguiu, graças aos seus musculos robustos, sacudir de si todos os obstaculos, e correu para Henrique, que por prevenção se collocou a pé.

O sr. Joãozinho, cego de embriaguez e de raiva, berrava, voltado para elle:

―O senhor conhece-me?... O senhor sabe com quem fala? Olhe bem para mim... Quero vêr agora se ainda se ri.

―Por que não? Se cada vez está mais ridiculo!

O morgado deu um urro selvagem e fez um movimento como para se atirar a Henrique.

Este recuou um passo, e pegando no copo que ainda tinha intacto deante de si, despejou-o todo sobre aquella figura já avinhada, dizendo motejadoramente:

―Ahi tem; é isso provavelmente que vem buscar.

O rosto, as mãos e a camisa do sr. Joãozinho ficaram litteralmente tingidas. Soltando um rugido de fera, levou a mão á faxa da cinta, como a procurar uma arma. Henrique, percebendo-lhe o movimento, antecipou-se a segural-o pela garganta, para o reter e afastar de si.

O morgado torcia-se e espumava sob a constricção de Henrique, e já congestionado e rouco bradou:

―Ó Cosme!... Ó Cosme!... Mata esse maldito!...

A phalange do sr. Joãozinho correu em soccorro do chefe. O varapau do Cosme girou no ar, produzindo um zunido como o de um enorme zangão.

O braço diligente do Canada, movido pelo empenho de salvar o crédito do estabelecimento, afastou a tempo Henrique do terrivel embate, que infallivelmente lhe seria fatal.

A pancada caiu sobre a mesa, que lascou ao comprido.

Henrique estava incólume, e o morgado sôlto.

Mas o perigo não passara para Henrique. O morgado preparava-se com os seus para nova investida, quando se ouviu a voz do brazileiro e do padre bradarem:

―Já está a tocar o sino! Ao cemiterio emquanto é tempo!

E no entanto o brazileiro, chamando de lado o Cosme, convencia-o, por varios generos de argumentos, da conveniencia d'este partido, e tão convencido o deixou, que elle berrou d'ahi a pouco:

―Deixa o homem para outra vez, João, deixa-o e vamos a elles ao cemiterio!

―Ao cemiterio, ao cemiterio! repetiram algumas vozes.

―E queime-se a papelada da camara!

―E mate-se o escrivão de fazenda!

―E quebrem-se os vidros do Mosteiro!

―E pegue-se fogo á casa!

Eram de bastante fôrça estes argumentos para convencer o sr. Joãozinho.

―Pois vá lá, rapazes! Com este faremos contas depois. Ao cemiterio! Atiremos a terra com o tal mausoléo!

E prepararam-se para sair tumultuariamente. Henrique, ouvindo isto, percebeu do que se tratava, e prevendo sérios riscos para as senhoras do Mosteiro, desembaraçou-se dos braços do Canada, que teimava em segural-o e em dar-lhe conselhos de prudencia, e correu a montar a cavallo para se anticipar aos desordeiros. Effectivamente assim o fez; mas, ao passar por entre o grupo d'elles, o varapau do Cosme, floreteando outra vez no ar, caiu sobre a cabeça do cavallo. O animal, atordoado por a pancada, partiu em galope desenfreado, e apesar de toda a arte de Henrique, acabou por o arrojar a terra com tal violencia, que o deixou como morto.

Os desordeiros seguiram, capitaneados pelo morgado, o caminho do cemiterio. O brazileiro, o padre e o Pertunhas, acolheram-se pacificamente aos lares.

O sino da igreja continuava a repicar.

XXV

Era uma perspectiva profundamente melancolica a do cemiterio da aldeia por aquella tarde de inverno!

Imagine-se um campo plano e raso, onde vegetavam algumas roseiras de toda a estação, e a murta e a alfazema, vivendo a custo n'aquelle solo ingrato, que havia pouco alimentava apenas urzes, tojeiras e pinheiraes. No centro d'este espaço elevava-se, singello, mas elegante, o tumulo da familia do Mosteiro, sobre o marmore do qual pousavam tristemente os ramos flexiveis de um salgueiro chorão, e nos cantos principiavam a erguer-se, como obeliscos funerarios, quatro jovens cyprestes ponteagudos. Para além do muro, que circumdava este terreno, estendia-se um vasto pinheiral, através de cujos troncos, confusamente cruzados, se podia ainda divisar ao longe uma ou outra casa da aldeia, e o verdor dos campos e pomares. A igreja parochial erguia, a pequena distancia d'alli, a grimpa do campanario, e o sussurrar dos desfolhados álamos do adro, agitados pelo vento, ainda chegava áquella estancia mortuaria.

A tarde tinha um d'estes aspectos ameaçadores, que deixam presentir a tempestade; d'estas serenidades insidiosas, interrompidas, de quando em quando, por uma subita viração, que faz revolutear na estrada as folhas sêccas como em espiraes phantasticas. O céo pintára-se do colorido melancolico e triste, que em alguns quadros de Annunciação tão fielmente se vê reproduzido. Estava quasi todo coberto; só muito para o occidente uma estreita zona se conservava limpa de nuvens, mas n'ella mesmo o azul recebia, do contraste das côres vizinhas, um cambiante quasi esverdeado. As nuvens inferiores, acima das quaes passavam os raios do sol, tinham o aspecto rôxo-livido, que o avizinhar da noite ia tornando mais carregado; no mais alto da abobada, as superiores, illuminadas ainda, apresentavam reflexos amarellados que cada vez se afogueavam mais.

Para o oriente haviam-se fundido os nimbos em uma massa unica, uniforme, cerrada, como uma abobada metallica, cujo livor imitava. De quando em quando cruzava os ares uma ave de vôo rapido, soltando pios angustiosos.

Era a esta hora que devia effectuar-se o enterro de Ermelinda.

Estava já aberto o jazigo da familia do conselheiro, aguardando a infeliz creança.

Os padres cantavam na igreja, e o sino repicava, como de festa, saudando a entrada de mais uma alma sem culpas no gremio dos anjos.

Á porta da igreja, no adro e no cemiterio estacionavam alguns ociosos; muitos acercavam-se do sepulcro, movidos pela curiosidade que a nova fórma de enterro lhes suscitava.

As murmurações, comquanto menos manifestas aqui do que na taberna do Canada, nem por isso faltavam.

Até da porta da igreja para dentro, até de joelhos, até de contas na mão e olhos fitos no altar, os murmuradores existiam. Velhas beatas clamavam assim a justiça celeste sobre os impios do seculo, que não queriam enterrar-se no chão sagrado da igreja. Junto da pia da agua benta, aspergindo-se, persignando-se sobre a bôca, para que Deus livrasse de peccar por palavras, n'essa mesma occasião, ellas entoavam os seus threnos e maldiziam dos reformadores, sobre quem chamavam as penas do inferno.

Havia tambem no grupo alguns que conferenciavam em voz baixa e se entreolhavam de maneira mysteriosa, fitando ás vezes os caminhos proximos, como se d'alli aguardassem alguma coisa.

A morgadinha viera junto ao tumulo despedir-se da filha do Cancella.

Christina ficára a fazer companhia a D. Victoria, que se achára adoentada.

Segundo o costume de algumas aldeias, Ermelinda devia ser acompanhada á campa por creanças quasi da mesma idade, vestidas como para festas. Uma d'ellas era a pequena Marianna, a irmã mais nova de Christina; as outras, raparigas das vizinhanças, que as senhoras do Mosteiro tinham por suas proprias mãos vestido e enfeitado. O enterro fazia-se com extraordinario apparato, não só em honra da familia do Mosteiro, mas para desvanecer a má impressão dos animos populares por meio da pompa religiosa.

Era digno do pincel de um artista, a quem a poesia das scenas campestres ainda inspirasse, o cortejo ao mesmo tempo melancolico e risonho, que, saindo da igreja, se encaminhava lentamente para o tumulo onde Ermelinda devia ser sepultada.

O sol quasi a desapparecer sob o horisonte, entrava na estreita zona, que as nuvens não toldavam.

A paizagem inundava-se agora de luz, mas de uma luz froixa, amarellada, que dá ao verde da relva e das frondes das arvores uma maior intensidade.

A cruz de prata que arvorada por um homem de opa, abria o cortejo, reflectindo aquelles raios amortecidos, brilhava como cingida de uma verdadeira auréola. Seguiam-se alguns padres de sobrepeliz e batina, recitando as orações da occasião; entre estes havia um de aspecto venerando, curvado pelos annos, de physionomia bondosa e pensativa. Era o cura, santo e respeitavel ancião que, em vez de exacerbar os preconceitos do povo contra os enterros, no cemiterio, antes energicamente os combatia e censurava.

Depois vinha em caixão aberto, e no meio de uma numerosa companhia de creanças, Ermelinda, a quem a pallidez da morte não dissipára a formosura. Dir-se-ia apenas adormecida. Trazia nos labios o sorriso da innocencia. As mãos cruzavam-se-lhe naturalmente sobre a tunica alvissima que a cingia, a mesma com que apparecêra no auto, e a cabeça, cercada por uma singella corôa de flores, conservava a graciosa inclinação que lhe era habitual em vida.

As creanças do acompanhamento tinham sido escolhidas, por Magdalena e Christina, entre as mais gentis da aldeia.

Era uma cohorte de cherubins humanados, qual d'elles mais louro e mais formoso.

A morgadinha precedêra o cortejo e viera esperal-o junto do tumulo. Com o braço apoiado na pedra sepulcral, e a fronte encostada á mão, seguindo melancolicamente com a vista a vagarosa procissão que entrára no cemiterio, dissera-se uma estatua primorosa, cinzelada por mão de inspirado artista, para symbolisar junto do tumulo a saudade pelos que morrem.

Cada vez se ouvia mais perto o latim dos padres; o coveiro viera já occupar a posição que lhe competia; estreitou-se o circulo dos curiosos em volta da campa. A cruz parou junto dos degraus do tumulo; os padres abriram alas e as creanças encaminharam-se, por entre elles, para a borda da sepultura.

O abbade molhou o hyssope na caldeira, para aspergir a cova.

Uma imprevista occorrencia mudou, porém, o aspecto da scena.

Havia já alguns momentos que começára a ouvir-se um vago rumor, que tanto podia ser do vento na rama dos pinheiraes, como de multidão que se approximasse em tropel.

As conferencias solapadas de algumas personagens dos grupos tinham-se activado ao ouvil-o. Pouco a pouco principiou a mover-se alguma coisa por entre os troncos do pinheiros; tornaram-se distinctas uma, duas, tres e muitas figuras de homens, correndo em direcção ao cemiterio, gesticulando, berrando, soltando ameaças, algumas das quaes já a distancia a que elles vinham permittia ouvir claramente.

Não era difficil adivinhar a significação d'aquillo. A questão vital do dia era, para todos os espiritos, a dos enterros, em campo descoberto; a cada momento se falava em motim prompto a organisar-se e a rebentar. Ficava pois evidente que tinha chegado a ocasião da crise popular já antevista.

Cêdo invadia o cemiterio um bando de furiosos, desorientados, de aspecto feroz, berrando e brandindo ameaçadoramente paus, fouces, chuços, e todas as peças do extravagante arsenal, a que o homem do povo recorre sempre ao chamamento da arruaça ou da sedição.

Era o bando dos influentes da taberna do Canada, de cujo proposito estavamos prevenidos; agora, porém, já engrossado, como a corrente a que no caminho se incorporam as aguas dos algares.

Entre os primeiros vinha o sr. Joãozinho das Perdizes, e ao seu lado o factotum Cosme.

Estes, enraivados, correram para o logar onde parára o enterro, bradando em confusão:

―Alto lá! alto lá! Ninguem se enterra aqui!

―Esperem! Isso não vae assim!

―Não façam a festa sem nós!

―Fóra com os do cemiterio!

―Morram os pedreiros-livres!

―Para a igreja!

―Enterre-se na igreja!

―Olá, sr. abbade, espere por nós!

―Aqui vamos para abençoar a cova!

E n'um momento o cortejo funebre viu-se rodeado de figuras avinhadas, gesticulando e vociferando pouco tranquillisadoramente.

O cruciferario e os padres, á excepção do velho que dissemos, abandonaram o posto; as creanças, pousando no chão e abandonando o esquife de Ermelinda, correram a acercar-se de Magdalena, amedrontadas e chorosas.

A morgadinha conservou-se junto do tumulo da mãe, olhando com serenidade para os revoltosos, mas intimamente sobresaltada. E no meio do grupo o cadaver de Ermelinda, com aquelle sorriso nos lábios, como de anjo que já de longe estivesse vendo o desencadear das paixões humanas, e rindo de piedade.

O velho cura foi quem interrogou com voz firme e severa os amotinados.

―Que querem d'aqui?―perguntou elle, fitando-os―com que fins vieram perturbar, com desordens da taberna, as cerimonias religiosas?

―Não queremos que ninguem se enterre no cemiterio―respondeu o sr. Joãozinho.

―É verdade! é verdade! ninguem se enterra aqui!―confirmaram differentes vozes.

―Por quê?―continuou o padre―julgam que Deus não receberá as almas, cujos corpos não estejam lá dentro, a apodrecer sob os telhados da igreja e a envenenar o ar que se respira lá?

―Não queremos saber de contos. Não queremos. Já disse!

―Eu não lhes reconheço o direito de querer.

―Ora o padre mestre tem vagares!―disse o façanhudo Cosme―e tu pachorra para escutal-o, João. Para isso não foi que viemos. Sermões para a quaresma. Vamos! cante lá os seus reponsos e latinorio, e ande-me para a igreja. Vamos nós fazer o enterro. Ó Manoel coveiro, traze a enxada e vem d'ahi.

E dizendo isto, o Cosme já se abaixava para levantar o caixão em que jazia Ermelinda.

―A justiça de Deus caia sobre o impio, que com as mãos impuras tocar n'esse cadaver, que está abençoado pela Igreja!―exclamou o velho, indignado e com um metal de voz vibrante e terrivel.

Na aldeia os homens mais endurecidos não são superiores á intimação religiosa. O Cosme retirou a mão, como se receiasse que a imprecação do padre se cumprisse alli mesmo.

Houve uma momentanea quebra no furor popular; um d'estes momentos de hesitação, que tão fataes são ao exito das revoluções democraticas; ninguem se sente com coragem de erguer o novo grito, e quasi todos procuram esconder-se, como envergonhados já do primeiro impeto.

Mas a primeira onda não é a mais temivel; os primeiros bandos populares, que sáem á rua, soltando o grito de revolta, são ingenuos no meio da sua quasi selvagem ferocidade; entregues a si, cêdo espontaneamente se dariam por vencidos; facil seria subjugal-os. Mas, quando esses poucos momentos, em que tumultuam sem pensamento que os dirija, não são os precisos para ficarem esmagados sob a repressão do poder; quando o grito sedicioso, em vez de sacrificar estes revolucionarios, quasi candidos, mandados por os cautos para tentar a opportunidade da occasião, apparenta sortir effeito, ou porque satisfaz uma aspiração legitima das massas, ou porque lisonjeia um falso preconceito d'ellas, vem então a segunda onda, mais ordenada, mas mais terrivel, porque não é a embriaguez do motim que a impelle, é a ideia fixa, o pensamento reservado, o plano de antemão traçado e urdido no mysterio e na sombra. Vem então reforçar-a primeira, insufflar-lhe o alento que esta não tem de si, e amparar-se com ella dos golpes dos inimigos. Se a tentativa não vinga, retiram-se antes que, derrubada a vanguarda, fiquem a descoberto; mas se a sorte os favorece, deixam cair os primeiros como victimas, e no campo da victoria adeantam-se então a colher os trophéos conquistados.

Foi assim que, no momento em que o bando capitaneado pelo morgado das Perdizes, ia ceder, um pouco subjugado pela figura solemne e a palavra severa do venerando cura, saiu da igreja uma singular procissão.

Á frente vinha o estandarte da confraria erecta pelo missionario; este seguia-o, e atraz d'elle os seus confrades e sequazes, no numero dos quaes se encontravam padres e mulheres.

A hoste do sr. Joãozinho sentiu-se reanimar com este refôrço.

Um grito unisono saiu dos labios de todos ao ver a procissão.

―Viva o missionario!

―Viva o santo!

―Abaixo os pedreiros-livres!

E os do bando do estandarte correspondiam a estas saudações, dizendo:

―Abaixo os maçonicos!

―Morram os jacobinos!

―Viva a santa religião!

Mais uma vez este brado augusto, que deveria proclamar o perdão das injurias, o amor reciproco, a caridade indistincta, era profanado por o fanatismo e por a hypocrisia, e manchado pelo sophisma de seculos, o mesmo sophisma que maculou os feitos de armas dos passados guerreiros da christandade.

A embriaguez da revolução apoderou-se de novo do morgado das Perdizes. Duas influencias inebriantes lhe disputavam agora o cerebro, que não fôra nunca dotado, de grande fortaleza contra as paixões.

Palpitava-lhe o coração, quando se imaginava caudilho de um movimento popular.

Sentia a necessidade de se fazer notavel por um feito heroico.

―Não se consentem aqui enterros, e principiemos já por deitar abaixo estas pedras―bradou elle, apontando para o tumulo da familia do conselheiro.

―É verdade! é verdade! Abaixo! abaixo!

―São invenções dos pedreiros-livres!

―É isso, é isso... Pois não vêem que são de pedra!

―Abaixo! Abaixo!

O sr. Joãozinho, arrojando de si o chicote, tirou um machado das mãos de um homem que lhe ficava proximo, e deu alguns passos para o tumulo.

Magdalena collocou-se deante d'elle.

Já não estava pallida; tinha nas faces o rubor, nos olhos o lampejar da indignação.

―Afaste-se, senhor!―bradou ella, estendendo a mão para o ébrio, que parou a fital-a com olhos espantados. Nem sequer pouse os pés nos degraus d'esta sepultura. Aqui repousa minha mãe. Atraz!

A figura, o olhar, a voz, as palavras de Magdalena exprimiam uma das resoluções energicas e potentes d'aquella indole sympathica, que aos affectos e branduras de mulher sabia combinar a firmeza e energia quasi varonis.

O morgado sentiu uma vaga consciencia da sublimidade d'aquella scena, e ficou enleado.

Porém o Cosme, o seu genio mau, não sei que lhe murmurou ao ouvido, que elle desatou a rir a mais alvar gargalhada que ainda escancarou bôca humana.

Estendendo para Magdalena a mão callosa e grosseira, disse-lhe, com um sorriso que tinha tanto de cynico como de estupido:

―Está dito! Toque! Gosto d'esse desengano! Toque!

Magdalena repelliu-o com despreso e aversão.

―Ah! ah! Faz-se fidalga!―disse o sr. Joãozinho, despeitado.―Pois não anda bem.

O missionario inclinou-se ao ouvido de um homem do povo que, depois de escutal-o, bradou:

―Abaixo com o tumulo dos pedreiros-livres.

―Abaixo!...―repetiram muitas vozes.

―Pois vá abaixo!―repetiu tambem o sr. Joãozinho, adeantando-se com o machado.

―Para traz!―exclamou outra vez Magdalena, já trémula de exaltação.

O cura, enfiado e convulso, correu para o lado d'ella.

O sr. Joãozinho sorriu.

―Isso é que é mandar! Socegue que não fazemos mal a sua mãe; só lhe queremos tirar essas pedras de cima d'ella. Devem-lhe pesar!―e soltou, ao dizer isto, uma gargalhada, que echoou no grupo que o rodeava.

―Abaixo, abaixo!―repetiram ainda as vozes, e o morgado preparou-se para cumprir o feito. Magdalena sentiu que a razão se lhe perturbava. Era-lhe preciso defender de uma profanação as cinzas de sua mãe, ainda que fôsse á custa da propria vida.

Ia para supplicar, para ajoelhar deante d'aquelles homens; já as lagrimas lhe brilhavam nos olhos, e os labios principiavam a murmurar a palavra «piedade».

O morgado viu-a assim, e como homem em quem as lagrimas de mulher ainda achavam caminho para chegar ao coração, hesitou, resmungando:

―Mau! se temos chôro, nada feito.

Mas já não podia hesitar; a onda impellia-o, os gritos redobravam, e outros braços se agitavam ao seu lado, preparando-se para a obra de profanação.

O sr. Joãozinho cedeu outra vez e levantou o machado.

Imitaram-n'o muitos.

Magdalena então correu a abraçar-se ao tumulo da mãe para o proteger da violencia.

Antes de o abater haviam de a ferir a ella.

Os machados, que já se brandiam no ar, suspenderam-se. Alguns baixaram-n'os, como arrependidos.

O morgado formulou n'uma jura a impressão que lhe estava causando a scena.

Desviando os olhos, disse, com modo desabrido:

―Tirem essa mulher d'ahi.

Deus sabe que scenas de violencia se seguiriam a esta ordem, se um novo facto não viesse desviar as attenções e modificar diversamente o animo popular.

Um homem, que parecia chegar de longa jornada, approximára-se do cemiterio, cada vez mais pressuroso á medida que se affirmava nos grupos alli reunidos.

Entrou justamente quando a furia popular crescia mais impetuosa.

A figura da morgadinha, em pé sobre os degraus do tumulo, abraçada a elle, dominava toda aquella multidão.

Ao descobril-a a distancia, o homem que dissemos soltou uma exclamação, como de quem tinha comprehendido ou adivinhado a significação d'aquella scena; e apressando ainda mais os passos achou-se, dentro em pouco, no logar do motim.

Era tempo.

A populaça allucinada ia talvez exercer algumas d'essas irreflectidas violencias, que tantas vezes maculam e deshonram a causa do povo nas luctas em que elle toma parte.

―Que é isto aqui?―disse o homem, rompendo com os braços potentes a onda que se lhe antolhava.

Á rudeza do impulso ninguem resistiu; em pouco tempo abriu caminho até ao meio do circulo.

Uma só voz correu por as differentes pessoas do grupo dos amotinados.

―O Herodes... É o Herodes!...―diziam, afastando-se.

Effectivamente era o Cancella o homem que tinha chegado.

Obtendo fiança, graças á intervenção do conselheiro, voltava á terra, ancioso por ver e beijar a filha, cuja ausencia fôra a unica dor que o atormentara.

O desgraçado não sabia ainda da sorte d'ella.

Uma carta que Magdalena lhe escreveu, noticiando-lh'a, já não o encontrára na prisão, para onde fôra dirigida.

Vinha cheio de esperanças o pobre homem, porque eram para animar as ultimas noticias recebidas.

Vendo de longe o ajuntamento no cemiterio, ouvindo os gritos sediciosos, conjecturou que havia algum motim popular por causa dos enterros no adro, que elle sabia serem antipathicos aos espiritos da terra.

Quando descobriu a morgadinha, envolvida pelo tumulto, e no tumulo da mãe, previu que ella estava correndo perigo, e apressou-se logo a acudir-lhe.

Ao chegar, porém, ao meio do circulo, que conseguiu romper, e quando ia a dirigir a palavra a Magdalena, reparou para o cadaver da creança do esquife, o qual continuava ainda pousado no chão; fitou os olhos n'aquella pallida e serena physionomia, ainda animada pelo mesmo sorriso de innocencia, e, apesar da debil claridade da hora, reconheceu a filha.

Nem um só grito de dor lhe saiu dos labios, nem um só movimento de surpresa; ficou mudo, immovel, com os olhos fitos n'aquella creança morta, com as mãos juntas e com as faces extremamente pallidas.

Perante esta terrivel manifestação de dor, que toda se concentra, para n'um momento gastar mais vida do que o perpassar de muitos annos, calmaram todos os outros sentimentos que dominavam os corações.

Fez-se um profundo silencio. O Herodes, n'uma especie de recolhimento fervoroso, ajoelhou junto do caixão de Ermelinda, e trémulo, opprimido, quasi sem alento para chorar, approximou a mêdo as mãos das mãos cruzadas da creança.

Ao primeiro contacto retirou-as rapidamente por achal-as de gêlo; mas, tomando-as outra vez, murmurava:

―Jesus, meu Deus! Está morta!... Ermelinda!... Filha!... Isto não pode ser, Senhor!... Pois minha filha está morta?

A paixão principiava emfim a manifestar-se mais tumultuosa; mas havia no tom de voz, com que estas palavras fôram pronunciadas, não sei quê tão intimamente doloroso, que presentia-se que, no curto espaço de tempo que as precedera, se tinha operado n'aquelle peito uma revolução tremenda, como se uma intima dilaceração o tivesse destruido. Adivinhava-se lá dentro já um desalento mortal, um mal de que se não convalesce nunca. Aquelle homem estava perdido.

―Mataram-me a minha pobre filha! A minha Ermelinda... Que mal lhes tinha eu feito para m'a matarem?... Ó anjo do Céo! viver eu para te vêr assim!

E, tirando-a do esquife, cingiu-a contra o peito, cobrindo-a de beijos, que não conseguiam aquecer o gêlo d'aquellas faces.

Raros olhos ficaram enxutos ante aquella sincera dor. Desvanecera-se a ira popular; como que uma nobre vergonha, uma vergonha de boa indole, fazia já renegar aos mais atrevidos os seus excessos passados.

O Cancella continuava:

―Esta frialdade da morte! esta brancura das faces!... isto mata-me, despedaça-me o coração!... Não me morras assim, filha! Não me morras antes de dizer-me uma palavra de amor... de perdão. Sim, tu tinhas que me perdoar antes de morrer! Por que não esperaste ao menos?... Pensar eu que hei de vêr-te partir, sem que me dês um beijo de despedida!... que te não hei de ouvir falar! Só! só! Ficar só! Só n'este mundo, Senhor!... Em que tanto vos offendi, meu Deus, para me castigardes assim!? Em quê?

Magdalena chorava, commovida, ao ouvir estas palavras dolorosas.

O Cancella voltou para ella os olhos já marejados de lagrimas.

―Ó menina Magdalena, pois Ermelinda morreu?... Fale, diga-me. Minha filha morreu? A que horas?... como?... Falou em mim? pensou em mim?... Perdoou-me?... Chora, e não responde... Então não me perdoou? Pois minha filha não me perdoou?

Magdalena respondeu a custo:

―Que tinha ella a perdoar-lhe?

―Não é verdade que eu lhe queria muito? não é verdade que eu vivia por ella? Agora... que me importa o viver? Como posso eu viver! Ai, se Deus me matasse agora, assim! abraçado a este anjo! Se Deus me matasse!

E outra vez a estreitava nos braços.

Depois, voltando-se para o povo que se conservava alli, perguntou com voz alterada:

―Que procuram?... Que querem?... o que fazem ahi armados, ao pé de minha filha morta?

―Queremos que elles a enterrem na igreja―responderam, já tibiamente, algumas vozes.

―Na igreja?... Isso é que não! Sabem quem me matou a filha? Foram elles... Esses que m'a tolheram de mêdos, que lhe roubaram as alegrias... que fizeram d'ella isto que ahi vêdes... Pois não a conheciam? Não a tinham visto ahi nos campos, nas novenas e nas festas?... Viram-n'a nunca com estas côres desmaiadas? viram-n'a sem aquelles cabellos louros, que tão bem lhe ficavam? e que elles cortaram sem piedade? E querem-te ainda guardar, desgraçadinha! Não, não te entregarei. Não, não irás lá para dentro. Quero-te aqui, minha filha; aqui, debaixo dos olhares de Deus... Eu mesmo te vou deitar como tantas vezes o fiz quando dormias no berço, que ficará sempre vazio! Ó meu Deus, que vida vae ser a minha, se te não compadeces de mim, Senhor!...

E suffocado de pranto, que rompia agora abundante, o desesperado pae ajoelhou junto do esquife, onde depoz com cautela o corpo da filha.

―Obrigado, menina Magdalena, por dar á minha pequena um logar ao pé de sua mãe; obrigado. Junto d'aquella santa parece-me que dormirá em socêgo... A minha pobre filha!

E pousando nos labios frios da creança um beijo prolongado, cheio de paixão e saudade, levantou o esquife nos braços para, por suas proprias mãos, o descer ao jazigo. Antes, porém, de fazel-o, beijou ainda uma vez aquella de que mal podia separar-se.

Cêdo baixou sobre o pequeno esquife a pedra tumular.

Nem um só movimento, nem uma só voz tentou oppôr-se áquelle acto, contra o qual momentos antes se erguia irreprimivel a resistencia popular.

Os influentes mais insoffridos tinham abandonado o campo.

O primeiro que o fizera fôra o missionario. Desde que vira assomar a figura do Cancella, vieram-lhe ao espirito umas memorias pouco agradaveis, e julgou avisado retirar a tempo.

Ao terminar esta scena o proprio morgado e o inseparavel Cosme já não estavam presentes. Sairam desde que viram os animos pouco dispostos a secundal-os.

Os circumstantes quasi faziam já côro com as arguições do Cancella contra os excessos do fanatismo e do beaterio.

―A falar verdade―dizia um―este pobre homem tem alguma razão. Isto de metter scismas ás creanças!...

―E a Rosita do Gaudencio olha que vae por a mesma.

―Tambem é de mais.

―Eu por mim se fôsse a elle... Não sei o que faria.

N'estes e n'outros dizeres se iam retirando do cemiterio.

Não seria difficil a um especulador aproveitar aquelles mesmos braços e armas para organisar uma sedição sobre uma divisa opposta á que primeiro os convocára.

Ao vêr cerrar-se a campa sobre o corpo da filha, o Cancella caiu de joelhos, suffocado em pranto.

As creancas presentes, por contagio da commoção, a que é tão sujeita aquella idade, choraram tambem.

Magdalena ia a consolal-o, mas o sentimento proprio não a deixou falar.

Só pôde pousar-lhe em silencio a mão no hombro.

O Cancella apoderou-se d'ella e, levando-a aos labios, rompeu em mais desafogado pranto do que nunca.

A noite crescia; cada vez era mais cerrado de nuvens o firmamento.

Os sons das Avé-Marias vibraram nos ares, prolongados e tristes.

O padre velho pronunciou em voz alta a saudação angelica. Responderam-lhe as creancas!

Tudo concorria para augmentar a extrema melancolia do quadro.

O Cancella a muito custo se resignou a arrancar-se d'alli.

A morgadinha voltou a casa com o coração oppresso de tristeza.

XXVI

Quando Magdalena voltou ao Mosteiro encontrou a casa em completa agitação.

Momentos antes havia sido para lá transportado, quasi sem accôrdo, Henrique de Souzellas, que um criado de lavoura se encarregára de trazer da taberna, onde o Canada o recolhera, até o Mosteiro, sobre um carro de herva que vinha guiando.

Ao vêr n'aquelle estado o sobrinho da senhora de Alvapenha, D. Victoria perdeu totalmente a cabeça, e em vez de tomar as providencias que o caso pedia, deu em ralhar, em fazer exclamações, em andar de sala em sala, de corredor em corredor, sem tenção formada, sem methodo, sem direcção. Levava as mãos á cabeça, ajuntava-as consternada; dava uma ordem ociosa; mandava logo suspender a execução d'ella; impacientava-se; chamava a toda a pressa um criado e não sabia depois o que tinha para dizer-lhe; extranhava a tardança de outro que não mandára chamar, e sem dar a final expediente a coisa nenhuma, nem saber o que fizesse.

Os criados resentiam se d'esta falta de intelligente direcção; paravam embaraçados, ou corriam sem saber para onde, nem para quê, e sem adeantarem serviço.

As creanças concorriam tambem para esta desordem, porque, cheias de susto, andavam agarradas ás saias de D. Victoria, que nem sequer dava por ellas.

Christina foi a unica pessoa que conservou a presença de espirito n'aquella occasião.

Nada do que fazia era inutil: nem uma só ordem dava que pudesse dizer-se ociosa; graças ao methodo com que procedia ás instrucções que ordenava, a tudo se providenciou convenientemente, sem que D. Victoria o percebesse até.

Christina tambem, ao vêr chegar Henrique n'aquelle estado assustador, sentira-se desfallecer; mas disse-lhe a consciencia que lhe era precisa toda a firmeza, visto que estava ausente Magdalena, em quem sómente poderia descançar, e logo achou na necessidade valor, e, com serenidade apparente, só trahida pela extrema pallidez das faces, a tudo attendeu, tudo previu, tudo providenciou.

Sem uma exclamação, sem uma palavra de desespero ou de susto, sem nem ao menos erguer o tom de voz, ou modificar a inflexão affavel, que lhe era natural, preparou um quarto para Henrique e n'elle todos os aprestes que o seu grave estado pedia, dirigiu os primeiros soccorros com intelligencia e efficacia, mandou chamar o cirurgião, enviou a Alvapenha parte do succedido, e ordenou que procurassem Magdalena, occupando n'isto a menor gente possivel, e deixando a outra toda como alimento á impaciencia de sua mãe.

A indole de Christina tinha d'estas energias essencialmente feminis e sympathicas. Não era para o salão que se formára e educára o ingenuo e meigo caracter da prima de Magdalena. Ahi tomava-a um acanhamento, que já não conseguiria vencer, mas nas lides domesticas, na vida do lar era d'essas corajosas luctadoras, a quem a desventura não derruba, cuja intelligencia por tudo se reparte; d'estes genios providenciaes, que pairam sobre o estreito horisonte da familia, activos, laboriosos, achando nas fadigas um prazer, nos sacrificios estimulos para mais amar, nos sorrisos que provocam, nas dores que alliviam, nas lagrimas que enxugam, premio bastante para compensar as penas que soffrem.

Mulheres são estas nascidas para serem esposas e mães, o que é quasi o mesmo que dizer: nascidas para serem mulheres.

A chegada de D. Dorothéa, que acudiu apressada logo que soube o que succedera ao sobrinho, não dispensou Christina d'estes cuidados, que voluntariamente tomára.

Comquanto a senhora de Alvapenha fôsse mais razoavel do que D. Victoria, e de temperamento menos susceptivel d'aquellas inuteis effervescencias, em que esta se deixava arrebatar, não era tambem mulher para casos d'estes.

Na sua longa vida de celibataria sem familia, D. Dorothéa perdera ou embotára a faculdade preciosa de acertar bom caminho em qualquer imprevista occorrencia.

Facto que destoasse dos monotonos habitos do seu viver de muitos annos já a lançava em sérios embaraços. Ella propria confessava que inda havia pouco tempo principiára a afazer-se á estada de Henrique em Alvapenha, e a fazer o que era seu costume fazer antes de elle vir.

É pois evidente que D. Dorothéa pouco mais podia fazer do que rezar, e para isso ninguem estava mais habilitado do que ella. Em relação á côrte celestial era a boa senhora como esses almanachs vivos, que nos sabem dizer todos os canaes por onde os differentes negocios poderão ser melhor conduzidos nas côrtes... terrestres... Conhecia a especialidade de cada santo e para cada um tinha uma fórmula de requerimento particular.

Christina não a consentiu por muito tempo no quarto de Henrique, onde, com as melhores intenções, mais embaraçava o serviço do que auxiliàva; usando de uma debil violencia foi-a levando para a sala do oratorio, onde ella encetou uma reza sem fim.

Quando a morgadinha chegou, ainda perturbada com as scenas do cemiterio, e soube do succedido na taberna, correu, assustada, para verificar a realidade do que lhe diziam.

Nos corredores encontrou um criado caminhando, apressado, n'um sentido, uma criada em sentido opposto, emtanto que, na sala proxima, D. Victoria tocava freneticamente a campainha a chamar por ambos.

Magdalena dirigiu-se para lá.

Quando entrou estava D. Victoria pronunciando uma d'aquellas interminaveis e arrevezadas objurgatorias, de que só a fecunda verbosidade feminina é capaz. Em geral as mulheres, seja dito antes em honra do que em censura do sexo, são oradoras de muito mais folego que os homens que blasonam de eloquentes. O assumpto mais simples, uma colhér que se perdeu, uma peça de louça que se quebrou, por exemplo, fornecem-lhes thema para uma prédica de duas horas.

Encaram o assumpto por todos os lados, paraphraseiam-n'o de mil fórmas e estendem milagrosamente por muitos periodos aquillo que a um homem a custo daria para uma magra oração.

―Mas onde estavas tu? Sim, eu quero saber onde é que tu estavas. Faça favor de me dizer onde é que estava?

Isto dizia D. Victoria a um criado, estatelado deante d'ella com a cara e postura de réo.

―Eu... senhora...―ia elle a dizer.

―Eu senhora... eu senhora... eu nada. Ora é o que é. Um desafôro assim!... Eu só quero saber se vossemecê ganha soldada para andar lá por onde muito bem lhe parece. Por as tabernas... por as vendas... Porque elle não ha mais... Como o dinheiro se vae roubar á estrada... O que tu merecias... Estou eu aqui a chamar ha mais de duas horas e vossemecê apparece-me lá quando é muito do seu gôsto? Isto atura-se? A culpa tem quem eu sei... Tu cuidas que mandriar não é roubar?

―Mas...

―Cale-se! Ouça e cale-se. Tens a lingua muito prompta para responder. Ora toma-me cautela, senão vaes já, já pela porta fóra. Pouca vergonha! Uma pessoa aqui afflicta, com as coisas por fazer, a querer mandar onde é preciso e não apparecer um criado n'esta casa! A pagar-se aqui umas soldadas por ahi além, e, quando se quer o serviço feito, tem uma pessoa de o fazer por suas mãos!... Tu cuidas que isso não é peccado tambem? Deixa, meu amigo, que tens boas contas a dar de ti. Quem é que lhe deu licença para sair sem ordem de seus amos? Faz favor de me dizer?

―A sr.a Christininha...

―Eu não quero saber da sr.a Christininha, quero saber quem lhe deu licença para sair?

―Mas é o que eu estou dizendo á senhora.

―É muito padre-mestre. Ora não seja confiado, e veja como responde.

Emfim, este dialogo promettia ser eterno, não obstante a urgencia do serviço de que falava D. Victoria, serviço que ella propria adiava com este importuno sermão.

A entrada da morgadinha operou uma diversão. D. Victoria esqueceu-se do criado, o qual pôde retirar-se sem ser percebido e sem receber as ordens urgentes para que fôra chamado.

D. Victoria principiou a contar a Magdalena o succedido, conforme ella propria o soubera do moço do carro em que viera Henrique.

―Andam desaforados―concluiu ella.―Já nem attendem a uma pessoa de respeito. É porque não ha justiça n'esta terra. Estão para ahi uns patetas de umas auctoridades, que são outros que taes. Era preciso um exemplo. Ahi está quando eu, se fôsse rei, não tinha pena nenhuma: havia de os esquartejar e era bem feito!

Cumpre dizer que D. Victoria não era capaz de bater n'um gato.

A morgadinha contou tambem rapidamente o que succedera no cemiterio.

Então é que trasbordou a indignação da tia.

―Tu que dizes, menina?... Tu estás a falar sério?... Pois elles?... Em nome do Padre... Que mais teremos ainda de ver?... Oh meu Deus!... E esses malvados ainda estão na rua?... Deixa que teu pae ha de ainda saber... Não, isso não fica assim... D'aqui a pouco põem-nos o pé no pescoço. Nada, nada; para os malvados é que se fizeram as forcas... Ora deixa que... Isto aqui anda trama.

―Não falemos mais n'isso. Agora vou vêr o estado do ferido.

―Vae, e vê se encontras por ahi alguns criados. Eu não sei onde elles se metteram. Ha de ser preciso ir á botica, e muitas mais coisas, e não vejo nenhum!

Magdalena deixou sua tia a tocar outra vez a campainha.

Encontrou-se na sala immediata com Christina, que ia em direcção ao quarto de Henrique, com um copo de agua acidulada.

―Que ha, Christe?―perguntou-lhe Magdalena.

―Que ha de haver, Lena?―respondeu Christina com tristeza, mas com serenidade ao mesmo tempo―uma desgraça, mas que Deus ha de permittir que não seja sem remedio.

―Como está elle?

―Estonteado ainda, mas um pouco mais tranquillo do que quando chegou. Os balanços do carro fizeram-lhe mal. Com as bebidas calmantes que lhe tenho dado, achou-se bem.

―E ainda não mandaram chamar o cirurgião?

―Já mandei, já veio, já o sangrou, já...

―Mas tua mãe não o sabe e ia mandar...

―Deixa-a lá, Lena. Deixa-a lá com os criados, que por ora não convem que venha. Elle precisa de socêgo. Já mandei sair d'aqui a tia Dorothéa, que não adeantava serviço. Queres vir vêl-o?

Magdalena seguiu a prima, e entraram ambas no quarto de Henrique.

Mantinham-se ainda em Henrique as consequencias da profunda commoção cerebral, que lhe produzira a quéda. A tendencia ao estado comatoso, que apresentava, tornava incerto o resultado e melindrosissimo o caso.

Voltára-lhe a razão e os sentidos; mas tardia aquella, e estes sem possibilidade de longa fixação em qualquer objecto. Sobretudo, o que n'elle se notava pouco de tranquillisar, era uma indifferença morbida pelo seu estado e por tudo quanto o cercava.

Acceitou das mãos de Christina a bebida refrigerante, que ella mesma preparára, com os movimentos quasi instinctivos do somnambulo.

No fim, como se o prazer que o frescor do liquido lhe causára lhe avivasse por instantes a consciencia, fitou em Christina um olhar de gratidão, sorriu-lhe, e, pousando a cabeça outra vez no travesseiro, fechou os olhos para dormir. Esta somnolencia era habitual.

Christina não ficou inactiva; preparava um remedio, arrumava um movel, desviava os raios da luz da fronte do enfermo; ia ao corredor mandar calar os irmãos ou os criados, ou desfazer alguma dúvida suscitada por os ultimos sobre o cumprimento de qualquer ordem; outras vezes parava a espiar o aspecto do doente e a escutar-lhe o rhythmo do respirar. E sempre movendo-se agil e sem ruido, diligente e sem confusão.

Magdalena, que se sentára a um canto da sala, quasi subjugada pelas muitas e violentas commoções d'aquelle dia, contemplava a actividade da prima e extranhava-a.

Ella propria, que melhor do que ninguem conhecia Christina, nunca a suppuzera capaz d'aquella firmeza de animo e d'aquelle espirito methodico e providencial de que estava dando agora irrecusaveis provas.

Apreciára-lhe até então os dotes de creança, a bondade do coração, os extremos de affecto que possuia; mas ainda a não tinha visto tomando assim tanto a sério a sua missão de mulher e desempenhando-se d'ella tão dignamente.

Esta ordem de reflexões conduzia naturalmente a outras o espirito da morgadinha. Reparando para Henrique, assim derrubado no leito, e como que sob a protecção de uma timida e debil creança que, mais do que elle, parecia carecer de amparo, Magdalena não pôde reprimir um sorriso benigno e pensou:

―Sim; aquella cabeça estouvada pôde até hoje passar por este anjo sem o conhecer; mas é preciso não ter coração para que, ao erguer-se d'aquelle leito, não seja o seu primeiro movimento o de ajoelhar deante d'ella para a adorar. E Henrique não é falto de coração. Lida, lida, minha boa Christina, que para a tua felicidade lidas. Foi a Providencia que quiz que tu vencesses com as mais abençoadas armas que concedeu á mulher. Confio em Deus que vencerás. Deixar-te-hei todas as fadigas, para te pertencer todo o prazer.

E em harmonia com esta resolução, a morgadinha absteve-se de intervir no tratamento de Henrique.

XXVII

Foi opinião do facultativo, que tratou de Henrique, que a vida d'este correra sérios riscos durante a primeira semana, por não sei que complicação que se lhe manifestou no decurso da molestia. Se se enganou o prático, não nos compete a nós decidir; acceitemos-lhe a opinião, como de legitima fonte, e não profundemos materia alheia ao nosso intento.

Ao fim dos oito dias, porém, começaram a manifestar-se melhoras evidentes, e o proprio facultativo foi o primeiro a assegurar ás senhoras, que sempre o vinham consultar á saida com anciosa curiosidade, que «o homem estava salvo».

De facto, nos primeiros periodos da doença, Henrique caira, como já dissémos, n'um d'aquelles estados de indifferença para tudo e para todos, de que se não pode agourar nunca bem. Agora, porém, começava já a manifestar attenção para os cuidados de que era objecto, e a agradecer, com palavras de sincera gratidão, o tratamento affectuoso que recebia n'aquella casa e especialmente os desvelos de Christina.

Esta fôra effectivamente sempre incançavel, solícita e carinhosa enfermeira.

Os cuidados de que o rodeava, como a um irmão, absorviam-lhe todos os instantes; prevêr-lhe os desejos, adivinhar-lhe as penas, procurar-lhe allivio ás dores physicas ou moraes, era agora para ella a tarefa de cada momento, a preoccupacão permanente de todos os seus pensamentos.

Henrique costumára-se a vêr mover-se no seu quarto aquella meiga e delicada figura de mulher, creança de hontem, a ouvir-lhe o timbre suave e ainda um pouco infantil da voz, a cruzar o olhar com aquelle olhar brando que o fitava com sympathia e meiguice; já se não sentia bem, longe d'ella, e a cada momento, se estava ausente, dirigia as vistas para a porta á espera de a vêr apparecer.

Magdalena espiava estes symptomas, notava a influencia crescente de Christina sobre o animo do rebelde, que até alli fôra insensivel, e exultava. Muito de proposito a morgadinha afastava-se o mais possivel da cabeceira do enfermo, por uma razão analoga á que obriga os pintores a deixar em meias tintas os accessorios de um quadro, para que a attenção se fixe no objecto principal.

Magdalena estava tambem dispondo uma obra de arte, na qual Christina devia ser a figura principal.

N'este intento a morgadinha conservava ás visitas que vinha fazer a Henrique um ar cerimoniatico, que contrastava com a insinuante familiaridade da prima. Para isso teve Magdalena de suffocar os impulsos da sua indole de mulher, e de mulher que tão bem comprehendia os deveres da sua missão, ao mesmo tempo carinhosa e heroica. Apresentava-se o mais extranha que lhe era possivel a estes pequenos cuidados, que tão irresistivel influencia exercem no coração do homem que experimenta a ventura de ser objecto d'elles.

De dia para dia crescia o ascendente de Christina sobre Henrique, e crescia á custa de Magdalena.

Esta percebia-o e não cabia em si de contente com a descoberta. É necessario ser dotado de um grande fundo de generosidade, para que um coração de mulher faça d'estas descobertas, com o intimo contentamento que Magdalena sentia. É tão natural defeito a vaidade! Não se exprime o prazer que Henrique experimentava a cada pequeno incidente da vida domestica, que punha em relêvo o predominio de Christina.

Havia uma hora no dia em que Henrique gosava um d'estes prazeres placidos, de que tão pouco abundante era todo o seu passado.

Ao fim da tarde, D. Victoria, Magdalena e toda a familia do Mosteiro, e a propria tia Dorothéa, reuniam-se no quarto do doente para tomarem o chá. Não era, porém, a presença de nenhuma d'ellas, nem a de Magdalena, que o consolava e obrigava a suspirar por aquella hora, mas uma pequena circumstancia, que fará sorrir um homem de sensibilidade embotada, emquanto o facto se não der com elle. Era que Christina, que em outra qualquer occasião cedia sempre a Magdalena a direcção dos trabalhos domesticos, alli dentro não resignava em ninguem essas funcções. Tomava naturalmente as maneiras de dona de casa, e recebia a mãe, a prima e todas as outras como visitas de intimidade, sim, mas em todo caso, visitas.

Não se imaginam os encantos que Henrique achava áquillo. A elle proprio parecia já que de facto o prendiam a Christina laços mais intimos, laços mais de familia, do que ás outras senhoras. Era assim que qualquer pedido, que tinha a fazer, o dirigia sem hesitar a ella, como o faria a uma irmã; emtanto que naturalmente custava-lhe a incommodar outra qualquer pessoa, e não o fazia sem as desculpas e cumprimentos do estylo, que para ella não usava já.

Outra particularidade o enleiava tanto como esta. Era a maneira despotica por que o governava Christina, fazendo-o cumprir á risca as dietas e as prescripções do facultativo, recusando-se obstinadamente a deixal-o lêr, e até ralhando-lhe ás vezes com severidade quasi maternal: apparencias de dureza, que occultavam thesouros de sensibilidade e de affecto.

O pobre rapaz, que não conhecera familia, que nunca vira do seu leito de doença, nas vezes que caira n'elle, o vulto suave e consolador de uma mãe, de uma irmã ou de uma esposa sorrir-lhe ao despertar, interrogal-o com essas entonações carinhosas, que nos provocam o cobrir de beijos a mão que nos estende a taça do mais amargo remedio; elle, que não sabia ainda o que era sentir-se amparar a fronte, que escalda de febre, pelo apoio de uma debil mão de mulher, a que o amor dá fôrças extraordinarias, commovia-se até ás lagrimas agora, e quasi não pensava sem tristeza na convalescença, que havia de o privar d'aquelles cuidados affectuosos.

O olhar com que fitava Christina, todas as vezes que ella se lhe approximava do leito, era mais eloquente de reconhecimento, do que todas as palavras que lhe dizia, do que todas quantas lhe poderia dizer.

Agora o enleiado e timido era elle, Christina a corajosa.

Um dia em que Henrique parecia soffrer mais do que de costume, e em que se agitava no leito com a inquietação da febre, Christina, depois de lhe dar a beber o calmante que lhe prescrevera o medico, perguntou-lhe, com a mais adoravel candura:

―Não sabe rezar?

Henrique sorriu, respondendo:

―Julgo que desapprendi já as orações que minha mãe me ensinou.

Christina calou-se e ficou tristemente pensativa.

Aquella alma innocente perguntava a si mesma que consolação encontraria nas provações da vida um espirito que não soubesse recolher-se na oração.

Henrique, que a viu sorrir, disse-lhe:

―Quer-me ensinar a rezar, Christina?

Christina fitou n'elle um olhar perscrutador, como para sondar a intenção d'aquellas palavras.

―Juro-lhe que recitarei com o fervor, de que ainda fôr capaz a minha alma, as orações que me ensinar.

Christina respondeu-lhe gravemente:

―Reze, reze e verá como n'isso acha consolação. Vou emprestar-lhe o meu livro de orações, quer?

―Por que me não ha de antes ensinar, como minha mãe o fazia?

Christina ouviu com seriedade a proposta.

E o certo é que um dia, em que Henrique passára peor, Magdalena ouviu, na sala proxima, Christina, recitando uma singela prece á Virgem, e o doente repetindo-a com docilidade de creança.

Como se ririam d'elle os seus amigos da capital, se n'aquelle momento o vissem! Mas rir-se-iam de um phenomeno naturalissimo, de uma d'estas modificações a que todos os caracteres estão sujeitos, quando se dão a actual-os dois elementos tão poderosos, como se davam em Henrique: a doença, que quebra a inteireza das indoles mais rijas, e abre o coração ás doces influencias; e a catechese feminina, a mais poderosa, efficaz e irresistivel de todas.

Não direi que fôsse com inteira fé que o doente orava; talvez que houvesse mescla de sentimento profano no prazer suave que experimentava ao orar assim. É certo, porém, que, desde então, frequentes vezes se lhe desviavam os olhos para o pequeno crucifixo, que Christina trouxera do seu quarto para a cabeceira do leito de Henrique.

Outra vez, quando Christina acabava de fazer-lhe tomar um remedio, Henrique, obedecendo aos impulsos da sua gratidão, beijou-lhe, commovido, a mão, que ella ia a retirar.

―Que faz?―disse Christina, córando e afastando-a.

―Deixe-me beijar a mão piedosa que me prendeu á vida, á vida que só agora comecei a amar.

―Ora vamos―acudiu ella, com um meigo tom de reprehensão.

―Como não quer que a adore, Christina, depois de se fazer anjo para me salvar? Não costuma rezar ao seu anjo da guarda?

―Repare que eu não tenho azas de anjo.

―Mas vôa mais alto ao céo, quando desce assim a velar por um pobre doente como eu, que nenhuns titulos possue para lhe merecer essa dedicação, pobre menina! Que vida tem sido a sua ha tantos dias?

―Nenhuns titulos! que diz?―tornou Christina, com um sorriso adoravel.

―Pois quaes?

―Então não somos primos? disse ella, jovialmente.

E saiu do quarto, com aquelle andar ligeiro e facil, que tanto enlevava Henrique.

Estava já Henrique em convalescença, e o facultativo permittira-lhe alguns passeios pela quinta, mas ainda não a sua transferencia para Alvapenha. O logar favorito de Henrique n'estes passeios era á sombra de umas laranjeiras, que havia a pouca distancia de casa. Das janellas do quarto de D. Victoria descobria-se o logar. Quando as manhãs estavam serenas, Henrique ia para alli, com um livro que não fazia tenção de ler, e apoiando-se ao braço de Christina, que levava a costura para junto d'elle, para lhe fazer companhia.

D. Victoria seguia-os da janella com as suas recommendações.

―Por ahi não, Christe!... Olha que é muito humido... Dá antes a volta pela nora... Assim... Cautela com essas hervas, que hão de estar molhadas... Vê lá que não esteja frio... Olha se esses troncos estão molhados...

Henrique tornava-se melancolico e sombrio n'estes momentos, a ponto de uma manhã Christina o interrogar, n'aquelle tom de familiaridade affectuosa, que principiára a poder ter para com elle, desde que o vira fraco e doente e a carecer do seu auxilio e protecção.

―Que é isso! Por que está sempre triste, agora que vae melhor?

―Estou triste, porque estou melhor―respondeu Henrique.

―Que está a dizer?!

―A verdade. A poucos doentes terá succedido o que succede commigo. Este renascer para a vida, este sangue novo que sentimos circular nas veias, este vigor que de instante para instante conhecemos accumular-se em nós, que tantos gósos dá aos convalescentes, a mim fazem-me entristecer; como que estou presentindo já as saudades d'este tempo, que passei prostrado no leito da doença, Christina.

―Não diga isso.

―E admira-se? Se elle foi o tempo mais feliz da minha vida! Não sabe que me eram desconhecidos inteiramente os ineffaveis carinhos de familia que me fez experimentar? Com a saude vão voltar para mim os dias da solidão, do desconforto, d'aquella vida gelada e inutil que abomino, desde que principiei a conceber outra... desde que m'a fez conceber, Christina! Quando penso em voltar para Lisboa...

―E tenciona voltar?

A esta pergunta, feita com a maior naturalidade, Henrique sentiu uma intima commoção. Ha d'estes effeitos. Ás vezes o olhar menos significativo, a palavra menos pensada, é pelo coração interpretada de maneira tal que elle proprio se sente estremecer.

―E queria que eu ficasse, Christina?―perguntou Henrique, sob o dominio d'essa impressão.

Christina não respondeu logo.

―Deixe-me acreditar que sim; é bastante generosa para isso, para não vêr partir sem saudade o homem a quem salvou com os seus extremos de irmã. Esta ideia será a minha consolação; deixe-me partir com ella.

―Partir?... mas... para que ha de partir?

―Então quer que me fique perpetuamente com aquella boa tia Dorothéa, cuja vida placida vim alterar com os meus habitos cidadãos?

―Pois não lhe custaria a ella mesma vêl-o partir! E depois... que vae fazer para Lisboa? Adoecer outra vez, ou scismar que está doente, que é quasi a mesma coisa.

―E dar-me-ha sempre a sua amizade se eu ficar?

―Por que havia de lh'a negar?

―Tempo virá em que outros me disputarão a menor porção de affecto que me conceder, Christina... e então... então é que eu ficarei mais só do que nunca... ou mais do que nunca sentirei que o estou.

―Anda só, por que quer... Não ha tanta gente por esse mundo?

―Então a menina não sabe que se está só mesmo em companhia? Quem está só é a alma. Ai, a alma está só quasi sempre!

―Por que quer.

―Por que desconfiou das companhias que se lhe offereciam, e por que não obteve a que desejava. Além de que, ha almas tão tristes, que intimidam outras. E a minha é d'essas. Ora diga, se eu lhe pedisse para fazer companhia á minha alma, a esta alma melancolica e sombria com que nasci, não hesitaria? Confesse.

Depois de um momento de silencio e hesitação, Christina respondeu:

―Se a companhia da minha fôsse bastante para desfazer essa tristeza...

―Concedia-m'a?

―E por que havia de negar-lh'a?

Henrique tornou-lhe a mão, apaixonado.

―Christina, sabe que essas palavras podem fazer-me conceber loucuras? Se o meu coração é tão ousado...

Christina, córando, retirou a mão de que Henrique se apoderou, e levantando-se, sobresaltada, disse:

―Julgo que são horas do seu remedio. Vou preparar-lh'o.

E fugiu, correndo em direcção de casa.

Scenas mais ou menos analogas a esta reproduziam-se todos os dias durante a convalescença de Henrique. Reinava o idyllio e uma como perfumada atmosphera, que exercia profundas revoluções no caracter de Henrique e de Christina. Elle ia perdendo de dia para dia aquellas exterioridades artificiosas, que Magdalena por tanto tempo combatera em vão; ella, Christina, ganhando vida, actividade, soffrendo uma d'essas metamorphoses analogas ás da vida de borboletas, da infancia, estado de chrysalida para a imaginação, passava á verdadeira juventude, ao periodo em que a imaginação ganha azas, em que o coração se completa.

Desde que Henrique se achava em estado de passeiar, não havia razão possivel para permanecer no Mosteiro; portanto tornou-se inevitavel a mudança para Alvapenha.

Já se não fez sem lagrimas a despedida.

Choraram as creanças, chorou D. Victoria e a propria Magdalena se sentiu commovida; só Christina não se achava na sala em que se passou a scena.

Encontrou-a Henrique no patamar da escada por onde tinha de sair.

Seria casual esta circumstancia?

Henrique não perguntára por Christina; dizia-lhe o coração que a encontraria alli.

―Volto á minha solidão, Christina―disse-lhe, commovido.―Não lh'o tinha eu dicto?

A pobre menina quiz sorrir, mas do esforço que para isso fez só lhe resultaram lagrimas.

―Não diga mais nada―disse Henrique, levando aos labios a mão que ella não retirou.―Essas lagrimas bastam-me.

Escusado é dizer que estas palavras mais lagrimas produziram.

E Henrique desceu do patamar com a vista ennevoada por ellas.

Christina ficou a chorar na varanda.

A morgadinha veio, sem ser sentida, abraçal-a, dizendo:

―Pago-te hoje o abraço que me déste no outro dia; mas eu escuso de te perguntar... «Pois tu amaval-o?»

―Ai, Lena!...―exclamou Christina, cada vez chorando mais.

―Faltava aos vossos amores este arremêdo de infelicidade, e imaginaram uma separação de duzentos passos para poderem representar a scena das despedidas, e chorarem como Paulo e Virginia. Impostores!―dizia Magdalena, para consolal-a.

Em Alvapenha Henrique passou horas de intensa melancolia. Impacientavam-n'o as conversas de sua tia e de Maria de Jesus, a qual taes mudanças notava n'elle, que chegou a aventar á ama a ideia de que a doença tinha transtornado o juizo ao rapaz, opinião que D. Dorothéa levou muito a mal.

Outro symptoma que se manifestou em Henrique foi a indignação que lhe causou a carta de um amigo que, com o maior scepticismo, lhe perguntava novas dos seus habitos pastoris e das Tirces e Galatéas que o traziam enlevado. Henrique revoltou-se d'esta vez, com todo o fogo do coração, contra aquelle tom frio e sarcastico da epistola, e nem lhe respondeu.

Depois teve Henrique uma visão.

Não se assustem os leitores que antipathisam com o maravilhoso. Nada ha aqui que se pareça com as visões épicas; foi uma visão como muitas, que nós todos, uma ou outra vez na vida, experimentamos; um d'esses espectaculos, que nos prepara de quando em quando a imaginação, esta fertil e poderosissima creadora, que nos acompanha incessantemente. A quem não terá de facto succedido vêr transformar-se pouco a pouco uma perspectiva, desvanecerem-se os effeitos da visão exterior, enfraquecerem as impressões dos sentidos, e avultarem, tomarem fórma, realidade, vida, as imagens de uma mais intima, espontanea e mysteriosa visão?

Estava Henrique á janella do quarto que habitava em Alvapenha. Sabemos já que se gosava d'alli um panorama extenso e amenissimo. A tarde parecia de primavera. Henrique corria com prazer a vista pelos differentes logares da quinta de Alvapenha, com as suas noras e mêdas, colmeias, eiras, cabanas e sebes. Era uma verdadeira quinta rural, resentindo-se, porém, um pouco de ser a proprietaria d'ella uma senhora velha, e com pouca actividade para tratar da lavoura.

Pouco a pouco deixára Henrique de vêr a quinta como ella era.

Principiava a visão interior.

As arvores copavam-se de folhagem; messes aloiradas ondulavam nos campos; numerosos rebanhos cobriam os lameiros extensos; atulhavam-se de cereaes os celleiros; alastrava-se de grão o chão das eiras; gemiam as noras e os lagares; soltavam-se ás prêsas os diques, e uma verdadeira rede liquida envolvia em suas malhas a vegetação dos campos; alvejavam as camisas dos ceifadores e echoavam nos montes e arvoredos as cantilenas aldeãs; e os mais caracteristicos e poeticos episodios da vida agricola desenrolavam-se aos sentidos, deleitosamente allucinados, do sobrinho de D. Dorothéa. Era uma perfeita georgica! E elle a dirigir todos os trabalhos, a regular o serviço, verdadeiro patriarcha ao modo antigo; e ao seu lado, e em toda a parte, á sombra de uma arvore, á borda do tanque, debruçada no muro, por entre os silvados das sébes vivas, uma figura suave, casta, adoravel... a figura de Christina!

Quem mezes antes adivinharia que Henrique de Souzellas, o homem elegante, o homem da moda, em quem estavam encarnadas todas as qualidades boas e más da sociedade que frequentava, havia de ter uma visão como esta!

No quasi extase, em que a imaginação o lançára permanecia ainda, quando soube que o procuravam de mando das senhoras do Mosteiro.

Apressou-se logo a receber a visita.

Era o velho Torquato que vinha saber d'elle, de mando de D. Victoria e das meninas.

O pobre homem era um dos que ficára com affeição a Henrique depois que estivera no Mosteiro.

Henrique ouvia-o com uma paciencia, que elle já em poucos encontrava, contar as longas historias dos seus tempos passados, e isso era o bastante para o velho lhe querer bem.

―Diga ás senhoras que eu mesmo irei ralhar com ellas, pelo incómmodo que estão tendo commigo. E vossê tambem, Torquato, na sua idade, estes passeios.

―Ai, não tem dúvida! Isto faz bem... É exercicio a final... Pois é verdade. Eu d'antes corria a aldeia toda n'um minuto... agora... Olhe que eu já tenho os meus annos! Veja lá, se no tempo dos francezes eu era já homem feito... Inda me lembra...

Seguiu-se um episodio da época, e depois, sem transição sensivel:

―Mas lá emquanto ás senhoras... Isso sempre devo dizer que teem tomado um cuidado!... Todas!... Até a Christininha!

―Sim? Tambem essa?

―Ora se tambem!... Pois a sr.a D. Victoria?

―Mas... mas... Christina... a sr.a D. Christina, então...

―Isso é um coração de pomba. Inda ha pouco, ao sair, já vinha no pateo, e ella veio ter commigo a correr, e disse-me: «Olhe, ó Torquato, ha de reparar-lhe para a cara e vêr se tem ar mais triste.»

―Ella disse-lhe isso?

―É verdade. E eu lá lhe vou dizer que o encontrei alegre como...

―Não, não; não lhe diga isso, homem―atalhou Henrique.

―Então por quê?!

―Porque... porque... porque não é verdade... Então eu estou assim tão alegre como isso?

―Não digo que esteja, mas para a socegar...

―Diga que me achou com saude, mas triste. E não lhe disse ella mais nada?

―A sr.a D. Victoria...

―Falo de Christina.

―Nada... Ai... Agora me lembro... mas isso é segredo.

―Diga, diga.

―Não é nada; é uma promessa que...

―Uma promessa? Que promessa?

―Sim, olhe, eu digo-lhe, mas guarde segredo! Quando o senhor esteve muito mal, que nem o cirurgião dava nada por si, a Christinita prometteu rezar na capella dos Cannaviaes as estações da meia noite...

―As estações da meia noite?

―Sim; as estações rezadas á meia noite á Senhora que está na capella da casa dos Canaviaes; É tão milagrosa que, dizem, nunca recusou favor que se lhe pedisse assim. Contava meu pae...

E vinha um caso comprovativo da tradição popular.

―Sim, lembra-me que já me falaram n'isso―disse Henrique, pensativo.

―É verdade. O peor é que é este seu criado quem tem de a acompanhar até á quinta, depois d'ámanhã á meia noite...

―Então depois de ámanhã á meia noite?

―Sim, mas não diga nada, que isto é segredo da pequena.

―Esteja descançado.

E depois de mais algumas historias contadas por Torquato, e a que Henrique não ligou attenção, aquelle retirou-se.

Ao ficar só, Henrique caiu em nova e profunda abstracção. Elaborava-se-lhe na ideia um projecto. O de ir aos Cannaviaes para presenciar aquelle acto de fervorosa devoção de Christina, que supplicára por elle, enfermo, com o ardor da mais pura crença, com a effusão do mais generoso affecto.

N'este intento tratou de se informar a respeito dos caminhos que conduziam á quinta, que elle ainda não visitára, e sobre como penetrar até á capella da casa, onde devia ser cumprida a promessa.

D. Dorothéa, D. Victoria e Magdalena deram-lhe os esclarecimentos precisos sem que suspeitassem das intenções com que elle lh'os pedia.

XXVIII

A casa e quinta dos Cannaviaes, deshabitadas depois da morte da velha morgada, madrinha de Magdalena, era uma sombria residencia, situada n'um dos mais êrmos e melancolicos logares da aldeia.

O tempo, cuja acção não contrastada se exercera livremente n'ellas, viera augmentar o aspecto soturno que desde a origem apresentava esta casa, ennegrecendo-lhe as paredes, revestindo-lhe de hervas os telhados, de musgo as padieiras e as junturas de pedra, e povoando-lhe de morcegos e de corujas os buracos dos muros. Emfim a superstição popular terminára a obra fazendo divagar as almas do outro mundo por aquellas salas e corredores vazios, e nas ruas d'aquella quinta, entregue á natureza.

A defuncta morgada, que não se recolhera á aldeia senão depois de ter gosado na capital de todos os esplendores da vida das cidades, e brilhando nas mais concorridas e elegantes salas do seu tempo, gosava n'esta pequena terra, onde passára o resto da vida, de uma fama de espirito forte, que em grande parte concorrera para generalisar a opinião de que a sua alma andava ainda penando por cá.

Contavam-se entre o povo anecdotas absurdas, em relação aos annos da mocidade da morgada. A imaginação popular fazia a biographia d'aquella senhora, colorindo-a com as tintas maravilhosas com que costuma phantasiar a vida dos grandes centros, de que vive afastada.

A morgada, que só renunciou ao mundo quando os espelhos começaram a falar-lhe da vaidade das glorias que repousam nos encantos da belleza, passou, como succede muitas vezes, de um extremo a outro extremo, e da vida elegante ás práticas de devoção.

Nos Cannaviaes ouvia missa todos os dias, confessava-se todas as semanas, commungava todos os mezes, sem comtudo resignar absolutamente os habitos de elegancia de que já fizera uma necessidade natural. Trajava sempre com distincção e esmero, e ao corrente das modas.

Tudo isto e as proprias devoções da morgada, acabaram por convencer o povo de que havia grandes culpas no passado d'ella, as quaes procurava remir á fôrça de missas. Dizia-se que a morte a viera tomar antes das contas saldadas, e que por isso a sua alma voltava á terra penando.

Já se vê que o logar era para apavorar as imaginações timidas, e de noite pouca gente da aldeia gostava de passar por lá.

Henrique depois de ter dicto em Alvapenha que ia passar a noite ao Mosteiro, d'onde voltaria tarde, saiu mais cêdo do que a hora devida, e fazendo obra pelas informações da morgadinha, dirigiu-se para os Cannaviaes para escolher posição d'onde pudesse, sem ser visto, observar Christina, não tendo ainda resolvido se lhe appareceria ou se a deixaria imperturbada na sua piedosa tarefa.

A noite fizera-se escura e ameaçava chuva.

Henrique, alumiando-se com uma lanterna de furta-fogo, já um pouco habituado aos caminhos estreitos e escabrosos do campo, atravessou a aldeia, examinando com attenção todos os objectos que lhe deviam servir de indicadores da estrada.

Pouco passava das dez horas, quando se achou em frente de uma casa que por apparencia, julgou ser a demandada propriedade.

Era uma casa escura, crivada de pequenas janellas e peitoril, tendo a um lado um alto portão da quinta, do outro a capella, cuja porta Henrique achou ainda fechada.

O sussurro dos cannaviaes agitados pelo vento era uma garantia de haver acertado.

Principiavam a cair algumas grandes gottas de chuva e a escuridão a fazer receiar grandes aguaceiros.

Henrique achou prudente procurar um abrigo onde pudesse resguardar-se. N'este intento approximou-se do portão. Com grande espanto seu, achou-o aberto.

Já teria chegado Christina?... Enganar-se-ia elle na casa?... Estaria habitada a quinta?

Estas tres explicações do inesperado facto debatiam-se-lhe no espirito, sem que elle soubesse qual adoptar.

Transpoz o portão e entrou na quinta. Nenhuma apparencia de vida.

A chuva caía com mais fôrça. Para se abrigar, Henrique subiu os degraus de pedra, no tôpo dos quaes havia um patamar lageado e convenientemente toldado.

Ao chegar alli achou tambem aberta a porta da primeira sala, e ao fim de um corredor pareceu-lhe divisar luz.

Henrique parou indeciso.

―Decididamente enganei-me. Não é aqui a casa dos Cannaviaes. Sempre perguntarei.

E bateu as palmas.

Ninguem lhe respondeu.

Bateu outra vez; o mesmo resultado.

Aventurou-se a entrar, deu alguns passos pelo corredor e bateu.

O mesmo silencio; seguiu até o fim do corredor em direcção á luz; chegou a uma sala mobilada com antigas cadeiras de alto espaldar, e alumiada por um candieiro de metal, pousando na pedra da chaminé, em cujo fóco brilhavam ainda uns carvões candentes.

―Parece uma historia de fadas!―pensava Henrique.―Dar-se-ha que a alma da morgada goste ainda das commodidades?

Ia a dirigir-se a uma porta para chamar, quando se abriu outra do lado opposto, e appareceu-lhe uma mulher velha, com um vestuario meio do campo, meio da cidade, e trazendo uma luz na mão. Henrique voltou-se e preparava-se para lhe dirigir a palavra, quando ella primeiro lhe disse:

―Procurava alguem, o senhor?

―Peço perdão pelo meu atrevimento. Bati muito tempo á porta, e emfim como a visse aberta, decidi-me a entrar. Desejava saber onde é aqui a casa dos Cannaviaes.

―A casa dos Cannaviaes é esta mesma.

―Mas... eu julgava... suppunha ter ouvido dizer, que não morava aqui ninguem.

―E não o enganaram. Hoje por acaso é que está cá a sr.a morgada.

―A sr.a morgada?―perguntou Henrique, sem bem saber o que devia pensar da resposta e de tudo que via.

―Sim, senhor; a sr.a morgada, e não tarda aqui. Ella esperava-o.

―Ah! A sr.a morgada esperava-me?

―É verdade―disse a mulher, sorrindo.―Adivinhou que o senhor vinha aqui. E o que é que ella não adivinha?

Henrique dava tratos á imaginação para comprehender esta scena.

―Então é a sr.a morgada em pessoa que...

―Que o convida para tomar uma chavena de chá―disse uma voz por traz d'elle.

Henrique julgou conhecer o timbre d'aquella voz.

Voltou-se, viu a morgadinha que entrava na sala, com o sorriso nos labios e a mão estendida, com aquella habitual franqueza de maneiras, que de tantos encantos a revestia.

Henrique exclamou, admirado:

―A prima Magdalena!

―A morgadinha dos Cannaviaes, se faz favor. Competia-me fazer as honras da minha propriedade, que pelos modos está para ser muito visitada hoje. Chamei, para me acompanhar, a Brizida, que viveu muitos annos aqui com a minha madrinha, e hoje vive em casa sua do rendimento do legado que aquella senhora lhe deixou. A Brizida é quem se encarrega de vir, de quando em quando, abrir as janellas d'esta casa, para que os ratos não a destruam de todo, e os tortulhos lhe não enfeitem as paredes.

―Mas como soube que eu?...

―Isso é um segredo. Não o esperava, porém, tão cêdo, nem imaginei que nos viesse ter assim ao intimo da casa. Fiquei embaraçada quando o vi. Ao principio quasi julguei que era a alma de minha madrinha. Mas fez bem em recolher-se... Ouve?

E com o gesto indicava a chuva, que já batia com fôrça nas vidraças.

―O peor é se isto não espalha e a Christina muda de tenção.

―O vento é do mar, menina; isto são aguaceiros―notou Brizida, como para desvanecer aquelle receio.

―Pois sabe que Christina vem?

―Eu sei tudo. Ora sente-se ao fogão, que deve vir muito frio. Accendi o lume, porque estava aqui dentro um ar humido e mofento, muito pouco hospitaleiro.―Brizida, olhe que se não percebam lá fóra as luzes, que podem amedrontar Christina. E feche a porta da sala. Abra o côro da capella e prepare chá para quatro. Aqui mesmo, Brizida, aqui mesmo, porque a cozinha está pouco habitavel.

Emquanto Brizida cumpria as ordens que a morgadinha lhe dava, esta, chegando uma cadeira para o fogão, sentou-se defronte de Henrique de Souzellas.

―Agora conversemos amigavelmente, primo Henrique. E antes de mais nada, responda-me a uma pergunta! O que o trouxe aqui?

―Pois não diz que sabe tudo?

―Até certo ponto, entendamo-nos. Não vão tão longe as minhas faculdades que cheguem a devassar intenções, que por ventura á propria consciencia de quem as fórma, repugne acceitar.

―Não é esse o meu caso; as minhas intenções são reconhecidas e approvadas pela minha consciencia. Vim para assistir ao espectaculo commovente de um anjo que ora por mim. É um espectaculo a que ainda não assistira, prima. Admira-se da minha curiosidade?

―Acho-a natural e até... louvavel. O ponto está que a sua convalescença esteja bastante segura já. Porque o primo Henrique convalesceu ha dias de duas doenças.

―De duas?

―Sim; e a mais rebelde não foi a de que o cirurgião o tratou.

―Então?

―A peor, aquella de que eu havia chegado já a desesperar, era a que lhe tinha descoberto logo na sua chegada aqui, uma doença moral; revelava-se por uma maneira de vêr as coisas, de pensar e de proceder verdadeiramente doentia.

―Estou curado d'isso.

―Estará? eu sei!... É certo que já é bom signal admittir que era doença.

―Dou pelo seu diagnostico, prima, e até pelo tratamento que me aconselhou em tempo; falou-me na vida campestre, no interesse pelos negocios locaes... e sobretudo em uma paixão sincera.

―Ah! e experimentou a receita?

―Experimentei e curei-me.

―Ou tomou por fôrças de saude o que era apenas o falso vigor da convalescença? Convem não abusar; ouço dizer aos medicos que são perigosas as recaidas.

―Pois teme que eu recaia?

―Por que não? Esta sua vinda aos Cannaviaes a horas mortas... comquanto motivada por louvaveis intenções... tem ainda assim uma certa feição romantica... que era bom vigiar... Sempre vim para acudir a algum accidente.

―É um perfeito medico da época; não tem fé na efficacia dos remedios que prescreve.

―Tenho; mas não desacompanho a acção d'elles, isso não. Agora fale-me com franqueza: ao recordar-se de certas ideias com que veio de Lisboa não se lhe figuram algumas extranhas e inacceitaveis já?

―Confesso que algumas...

―E comprehende agora o que eu lhe dizia? o remedio para o mal do coração que o minava, tinha-o a seu lado, desde o primeiro dia em que puzera os pés no Mosteiro, e teimava em ser cego para o não vêr.

―Desde o primeiro dia? Pois Christina...

―Christina deixou de ser creança desde aquelle dia.

―Querido anjo!

―Querido anjo?... Diz bem; deve adoral-a, tal como ella é ingenua, timida, supersticiosa até, se quizer; mas bondosa, mas adoravel, mas uma indole talhada para acalmar as paixões demasiado violentas de um caracter como o seu; para lhe fazer ter mais esperança na vida, mais coragem e mais fé no futuro.

Henrique, depois de instantes de silencio, disse, sorrindo, para Magdalena:

―Diga-me uma coisa, prima Magdalena; comprehendendo tão bem as necessidades do coração dos outros, não pensou ainda nas do seu?

―E quem lhe disse que as tinha?

―Conceda-me tambem um pouco da sua admiravel perspicacia, e não se julgue tão impenetravel, que não offereça leitura aos olhos que a observam.

―Ah! Então leu?

―Uma pagina eloquente de sentimentos generosos, prima; uma pagina que eu só agora estou habilitado para a apreciar como merece; pagina, porém, tão recatada, que julgo que ainda a não leu bem o principal interessado n'ella. Cego, como eu fui.

―Não leria?―perguntou Magdalena, sorrindo.―Está certo d'isso?

―E pode ser que lesse, pode; ou pelo menos que por inspiração a adivinhasse. Ha casos d'esses.

Magdalena tornou, mudando de tom:

―É ainda cêdo para tratar de mim. Quando me resolver a isso, verá que sou um doente modelo. Não hesitarei ante a violencia do remedio.

―E por que demora o tratamento?

―Pois parece-lhe que será urgente o caso?

―Prima Magdalena, o que vejo é que ha mais fortaleza da sua parte do que....

―Silencio!―disse a morgadinha, escutando.―Pareceu-me ouvir...

N'este momento a Brizida, que fôra a uma sala immediata, voltou, dizendo em voz baixa:

―Parece-me que abriram as portas da capella. Devem ser elles.

―Então depressa―disse Magdalena.―Abra-nos o côro; mas antes apaguemos as luzes. Teve uma feliz lembrança em prevenir-se com essa lanterna de furta-fogo. Traga-a e siga-me; mas occulte a luz. Não faça barulho.

Apagadas as luzes da sala, Magdalena e Henrique entraram, por um corredor estreito, no côro da capella, d'onde a morgada costumava ouvir missa, emquanto mandava patentear ao povo o pavimento inferior.

Quando alli chegaram, com as precisas precauções para não fazer estalar as tábuas do soalho, havia já em baixo uma luz escassa, que desenhava longas no pavimento as sombras de duas pessoas, ainda occultas sob a varanda do côro.

Cêdo se adeantaram para o altar, e claramente se reconheceu serem Christina e Torquato.

Caminharam silenciosos até ao altar principal. Torquato subiu os tres degraus, sobre que este ficava elevado e accendeu duas vélas de cera que, em ennegrecidos castiçaes de madeira dourada, ornavam uma imagem da Virgem da Soledade. Espalhou-se no recinto uma frouxa claridade, que não dissipou as sombras dos recantos, nem as que se condensavam no tecto.

Christina fez signal então a Torquato, para que se retirasse; e o velho, com os passos arrastados e tossindo, caminhou para a porta, que dentro em pouco se ouviu gemer sobre os gonzos e fechar-se com estrondo.

Tudo ficou depois em silencio.

Christina então ajoelhou deante d'aquella imagem, que era a de que a tradição popular contava milagres, e em profundo recolhimento ficou immovel a rezar a devoção promettida.

Henrique de Souzellas sentia-se enlevado por esta scena. Aquella angelica creatura viera alli agradecer á Virgem o tel-o salvado! Aquelle anjo amava-o? Havia pois no mundo quem o amasse com um amor puro e candido, em que elle já nem acreditava. E cabia-lhe a suprema ventura de gosar um amor assim!

Magdalena via com alegria a commoção de Henrique.

A oração de Christina prolongou-se por alguns minutos.

Henrique murmurou, ajuntando as mãos:

―Deus te recompense, anjo, a consolação que me dás.

―Não peça a Deus o que está na sua mão―respondeu-lhe em voz baixa Magdalena.

―Que diz?

―Está ou não sinceramente apaixonado?

―Como nunca imaginei que fôsse possivel estar.

―Crê na pureza d'aquelle coração?

―Como na dos anjos.

―Está convencido de que o pode salvar, ella?

―Não ha crédo que professe com mais fé.

―Por que não vae então ajoelhar ao lado d'ella e jurar-lh'o?

―E consente?

A morgadinha respondeu-lhe, conduzindo-o ao principio de umas estreitas escadas que pela espessura da parede iam do côro para a capella-mór.

―Aqui tem o caminho―disse ella.―Siga-me. E, servindo-se da lanterna de furta-fogo, foi descendo com precaução. Henrique seguiu-a.

No fim da escada, Magdalena occultou de novo a luz, e, dados mais alguns passos, parou junto de um reposteiro.

―Agora faça o que lhe dictar o coração―disse ella para Henrique.

Este correu o reposteiro com precaução, e achou-se na capella.

Christina rezava ainda, e como a porta por onde Henrique entrára ficava por detraz d'ella, não o viu chegar.

Henrique ficou a contemplal-a todo o tempo que ainda durou a oração.

Ao levantar-se, Christina, voltando a cabeça, descobriu-o, e soltou um grito de susto. A obscuridade que havia na capella não lhe deixou perceber logo quem fôsse, o que mais lhe augmentou o terror.

Henrique caminhou para ella, dizendo-lhe:

―Não tenha receio, Christina. Sou eu.

Reconhecendo-o, a timida rapariga ficou espantada. Como se explicava a presença de Henrique n'aquelle logar? Nem tempo teve de imaginar explicações. Henrique accrescentou:

―Sou eu, Christina: eu a quem a menina salvou e por quem com tanto fervor veio rezar aqui. Obrigado, mais uma vez lhe digo, obrigado, Christina. Quiz fazer-me comprehender todos os castos e abençoados prazeres da familia; depois de me dedicar as suas vigilias, dedicou-me as suas orações. Deixe-me beijar-lhe a mão com todo o affecto, com toda a paixão que pode haver na minha alma.

E dizendo isto, levou aos labios a mão, que ella, de enleiada, nem ousára retirar das suas.

―Agora peço-lhe, Christina, que, já que me fez antever as delicias do viver da familia, não me condemne para sempre ao supplicio de não as vêr realisadas. Lembre-se de que não conheci mãe, de que não tenho irmãs, de que tenho vivido só, e de que cêdo voltarei a essa vida solitaria e gelada, que me será agora uma tortura. Compadeça-se de mim. Quer vir occupar no meu coração o logar vago que ha n'elle para as affeições de mãe, de irmã, e de...

―Henrique!...―murmurou quasi inintelligivelmente a sobresaltada creança.

―É deante d'esta Virgem, a quem orava com tanto fervor, é pousando a mão sobre os Evangelhos d'esse altar, que eu lhe prometto mais do que uma paixão ephemera de rapaz, prometto-lhe a constante adoração, rodeada de respeito, do homem que as suas virtudes reconciliaram com o mundo. Acceite, Christina, acceite o offerecimento do meu coração.

Christina tremia sem poder responder.

Magdalena entrou por sua vez na capella.

―Não se pode exigir assim uma resposta directa, primo Henrique―disse ella.

Christina, cada vez mais surprehendida por estas successivas e inesperadas apparições, correu para a prima.

―Tu, Lena! Tu tambem aqui?!

―Então não me competia receber em minha casa as visitas? Mas vamos, dize-me aqui ao ouvido a resposta que queres que eu dê por ti ao sr. Henrique de Souzellas, que me parece acaba de te pedir, muito terminantemente, a tua mão.

Christina não respondeu, senão cingindo-a mais intimamente ao seio.

―Não responderam os labios, primo,―continuou a morgadinha―mas falou o coração ao meu na linguagem das pulsações. Estou-o sentindo.

―E disse?...

―Que havia de dizer? Que sim.

E Magdalena, que tinha a mão de Christina na sua, extendeu-a a Henrique, que a apertou apaixonadamente e a beijou de novo.

Parece-me poder affirmar que d'esta vez já houve correspondencia.

O velho Torquato, farto de esperar de fóra da capella, e achando que as rezas se prolongavam de mais, resolveu chamar Christina.

Ao entrar divisou porém tres pessoas em logar de uma só, que esperava, e recuou estupefacto e aterrado.

Suppôz que almas penadas andavam na capella.

O bom do homem não ousava approximar-se.

Magdalena, que o ouvira entrar, animou-o, dizendo:

―Não tenha mêdo, Torquato. A alma de minha madrinha encarregou-me de fazer esta noite as suas vezes. Sou eu.

O espanto do feitor não era agora menor. Esfregava os olhos, como se receiasse estar dormindo, e não passava de olhar para Magdalena, para Henrique e para Christina, sem entrar na explicação do que via.

Custou a fazel-o voltar da sua estupefacção.

Momentos depois entravam todos quatro na sala onde Henrique fôra recebido por Magdalena, e ahi a velha Brizida lhes serviu o chá.

A antiga criada da morgada fez muita festa a Christina, e, como já percebera a casta de sentimentos que havia entre esta e Henrique, soltou algumas insinuações, que a obrigaram a córar, e a rir Magdalena.

Passou-se uma bella noite, conversando-se e rindo-se em perfeita intimidade.

―Que longe estava eu hoje de pensar n'este delicioso serão!―disse Henrique.―Decididamente é de maravilhas esta casa; o povo tem razão. A morgada defuncta foi decerto quem se encarregou de fazer os convites.

―É verdade, como foi que vieram aqui?―perguntou Christina, já mais desenleiada.―Já sei, foi este Torquato que me não guardou segredo. O que merecia!...

―Eu, menina?! Ora essa! Eu até...

―N'este Torquato ha alguma coisa mais para receiar do que a indiscreção―disse Magdalena.

―Que é?―tornou a prima.

―É a discreção.

―Então por quê?

―Torquato é discreto, com umas meias palavras, que exprimem mais do que a verdade.

―Eu...―ia a dizer o velho, justificando-se, quando Henrique o interrompeu.

―Mas emfim, expliquemos mutuamente a nossa presença aqui.

―N'esse caso é justo que fale primeiro Christina.

―Que hei de eu dizer?

―Explica a tua presença aqui. Então não ouviste o primo Henrique?

―Ora, já o sabem.

―Mas talvez não lhe seja desagradavel ouvil-o outra vez da tua bôca.

―Não, não, a minha vinda, essa não tem que explicar.

―Que diz, primo Henrique?

―Não tenho coragem para pedir mais do que tenho pedido já.

―Pedido e obtido, pode accrescentar. Bem, Christina veio aqui trazida por um sentimento de piedade e de...

―Lena!

―Assim mesmo sempre seria curioso ouvir a narração dos sustos que ella sentiu por o caminho desde o Mosteiro até aqui. O Torquato não era decerto bastante para lhe limpar a estrada de visões e malfeitores.

Christina poz-se a rir.

―Mas vamos ás explicações da presença dos mais. A Christina avisou o Torquato, o Torquato avisou o primo Henrique...

―Eu?!

Christina olhou para o velho com um meigo gesto de reprehensão.

―Se eu o soubesse!...

―Eu... eu não disse... eu... só disse...

Henrique tomou a palavra.

―Torquato não é de todo o culpado. Pois acha que não haveria em mim alguma coisa que me ajudasse a adivinhar? Torquato atraiçoou-se involuntaria, inconscientemente. Mas quanto á prima...

―Eu? Soube-o tambem do Torquato.

―Pois tambem a ti o disse? Olhem que homem de segredo!

―Isso é que não. Eu não disse á sr.a D. Magdalena... Ella é que...

―Foi o que eu disse ha pouco. A discreção do Torquato é que revelou o segredo.

―Como?

―O Torquato falou com o seu velho amigo herbanario.

―Eu a esse não disse.

―Não, a esse quiz occultar, e d'ahi é que veio o mal.

―Ora, ora...

―O que eu sei é que Vicente veio procurar-me á porta do Mosteiro, e ralhou-me com uma severidade e uma aspereza, como ainda lhe não tinha merecido nunca. Estava o homem convencido de que eu era a heroina de umas aventuras romanticas que se verificavam de noite n'esta minha propriedade dos Cannaviaes. E tão irritado estava, que me não quiz ouvir, quando eu procurava esclarecer o que para mim era um perfeito enigma. Ao retirar-se, porém, disse-me que não lhe quizesse occultar a verdade, porque do Torquato soubera tudo.

―Eu não disse...

―E depois a prima...

―Eu então chamei este senhor, armei-me de toda a minha gravidade, e exigi que falasse e me dissesse tudo o que havia e tudo o que sabia a respeito de uns passeios aos Cannaviaes; elle estava pêrro, mas a final falou.

―Mas sabia tambem que eu vinha?―perguntou Henrique.

―Pois não se lembra de que pela manhã me tinha cançado com perguntas a respeito do caminho para a casa dos Cannaviaes? Eu já extranhava a insistencia; depois do que soube, tive uma suspeita. Perguntei ao Torquato se lhe falára n'isto. A resposta d'elle, apesar da sua hesitação e ambiguidade, habilitou-me a concluir que teria o gôsto de receber o primo em minha casa.

―E que disseste no Mosteiro? Sabem que vieste?

―Não. Disse que ia visitar Brizida, onde passaria a noite. Bem me viste sair. Viemos ambas para aqui ainda com dia para pôr a casa em arranjo.

―São mesmo coisas tuas―disse Christina, rindo.

―Mas eu não disse nada―insistiu Torquato.

―Porém, por que motivo se irritou tanto o herbanario?―perguntou Henrique.―Que imaginava elle a final?

-Ah!... É porque este sr. Torquato teve a habilidade, com as suas meias palavras, e reticencias indiscretamente discretas, de arranjar as coisas de maneira que o velho Vicente chegou a persuadir-se de que havia aqui um romance em que entrava eu... A discreção do Torquato é das que respeita os nomes, de maneira que as honras da aventura fôram-me todas attribuidas... N'este mesmo romance parece que entrava tambem o primo Henrique...

―Ah! percebo agora―disse Henrique, rindo.―O velho é ciumento por procuração.

Magdalena abanou a cabeça, sorrindo tambem.

Christina, que já estava habilitada para entender a allusão de Henrique, sorriu com elles.

O Torquato foi o unico que nada percebeu.

Eram perto de duas horas, quando a morgadinha lembrou a necessidade de voltarem a casa.

―Choverá?―perguntou Brizida.

―Julgo que não―respondeu Magdalena, e como para assegurar-se correu a vidraça da janella e examinou o firmamento.

Henrique acompanhou-a.

―A noite está serena―disse ella.―São horas de voltarmos.

―Mal sabe a tia D. Victoria por onde lhe anda parte da familia a estas horas―disse Henrique, ―Mal sabe a tia D. Victoria por onde lhe anda parte da familia a estas horas―disse Henrique, debruçando-se á janella, e continuou:―Mas que agradavel noite! Não poder prolongal-a por toda a eternidade!

―Vamos, vamos,―respondeu Magdalena―o dia d'ámanhã deve ser feliz ainda, porque...

N'isto, como se alguma coisa tivesse observado na rua que lhe attrahisse a attenção, calou-se, mal podendo reter um leve grito.

―Que foi?―perguntou Henrique, que o percebeu.

―Nada―respondeu ella, correndo a vidraça e afastando-se da janella.

―Viu a alma da morgada?―perguntou jovialmente Henrique, vendo-a preoccupada.

―Não―respondeu Magdalena, meio a sorrir e meio séria.―Pode porém haver apparições peores.

―Que é, Lena? Que viste tu?―perguntou Christina, assustada.

―Socega, filha, nada que possa transtornar o nosso regresso. Vamos.

E, passados poucos minutos, sairam todos os que até alli animavam aquella habitação solitaria, e ella permanecia outra vez em trevas, em silencio e na sua quasi desolação.

XXIX

No dia seguinte, pela manhã, recebeu-se na Alvapenha noticia da chegada do conselheiro e de Angelo. A impressão profunda que a este ultimo causára a morte de Ermelinda, tinha resolvido o pae a trazel-o comsigo para a aldeia a distrahir e robustecer com ares livres do campo. D. Dorothéa apressou-se, segundo o costume, a visitar o conselheiro; Henrique acompanhou-a e de caminho pôl-a ao facto do estado do seu coração, e encarregou-a de communicar isto mesmo a D. Victoria e de fazer-lhe, em seu nome, um formal pedido da mão de Christina.

D. Dorothéa ficou a principio admirada. Ainda se não desacostumára de considerar Christina como uma creanca. Havia tão pouco tempo que usava ainda vestidos curtos!

Reflectindo porém, acabou por achar a coisa natural, vantajosa e agradavel, e felicitou o sobrinho pela boa escolha que fizera.

Henrique, com o prazer pueril de um verdadeiro namorado, não se fartou de fazer falar a tia nas qualidades de Christina, e d'esta vez as habituaes prolixidades da boa senhora não conseguiram enfastial-o. Estava devéras apaixonado!

Chegaram ao Mosteiro.

O conselheiro recebeu-os com ar de satisfação e apparente tranquillidade de espirito; mas um exame attento conseguiria descobrir-lhe no sorriso o que quer que era forçado a revelar certa preoccupação interior.

É que, desde que chegára, tinha sondado melhor o animo do publico da terra, ou dos influentes que o representavam, e reconhecera que estava muito arriscada d'esta vez a sua candidatura.

Não lhe sobrava muito tempo para trabalhos; porque d'ahi a dois dias realisavam-se as eleições. Tudo estava por fazer, emquanto que os seus adversarios havia muito que tinham tudo feito. Algumas das personagens politicas, com que contava, falharam-lhe, e até nem o visitaram. As auctoridades locaes eram-lhe manifestamente hostis, desde o administrador até o cabo de policia.

Henrique percebeu a violencia que sobre si estava fazendo o conselheiro para conversar em assumptos alheios á questão que o interessava, para sorrir e prestar attenção ao que se dizia.

De quando em quando lia ou relia uma carta, tomava um apontamento, escrevia um bilhete, retirava-se por momentos para receber algum agente eleitoral que o procurava, despachava um emissario; finalmente não podia socegar.

Foi na occasião em que elle consultava mais uma vez a lista dos recenseados d'aquelle circulo eleitoral, emquanto Henrique e Magdalena faziam por distrahir Angelo, conversando em varios assumptos, que entrou D. Victoria, a quem acabava de ser formulado por D. Dorothéa, e em nome de Henrique, o pedido da mão de Christina. D. Victoria trazia bem visivel na physionomia todo o jubilo que a nova lhe causára. Era muito amiga de Magdalena, mas desculpem-lhe esta vaidade maternal, o que mais que tudo a lisonjeára, fôra a preferencia dada por Henrique a sua filha sobre a morgadinha.

―Tenho muito que lhe ralhar, sr. Henrique―dizia ella.―Estou mesmo muito arrenegada comsigo.

―Por quê, minha senhora?―perguntou Henrique, sorrindo.

―Pois então isso é coisa que se faça? Já precisa de embaixadores para se dirigir a mim?

―Perdão, minha senhora! Era meu dever deixar completa liberdade a v. ex.a para fazer todas as reflexões que a proposta lhe suggerisse e discutil-a á vontade, e, por delicadeza, podia v. ex.a ás vezes, sendo eu mesmo quem a fizesse, cohibir-se...

―Ai, eu havia de pôr muitas dúvidas! Na verdade um rapaz de tão má nota! Ora sempre tem coisas!

―Visto isso, posso esperar?

―Da minha parte uma guerra de morte―disse D. Victoria, não resistindo a dar um abraço a Henrique, já com familiaridade de mãe; abraço que Henrique retribuiu com affecto.

O conselheiro não dava attenção á scena.

―Então, mano!―bradou-lhe D. Victoria.―Deixe lá essas politicas que temos negocios sérios em casa.

―Sim?―disse o conselheiro, dobrando os papeis que lia, e simulando um ar de interesse, que realmente estava muito longe de sentir.―Então de que se trata?

―De um negocio importante, em que é preciso que seja ouvido.

―Ah! Então é um caso de consciencia?

―E não o diga a rir, que é. Aqui o sr. Henrique de Souzellas acaba de me fazer um pedido... Isto é, a prima Dorothéa foi que m'o fez.

―Mas por ordem d'elle―acudiu esta.

―Pois sim, o que era escusado.

―Mas então que pede de nós este caro sr. Henrique?

―Nem mais nem menos do que uma das nossas pequenas.

O conselheiro relanceou um olhar para Magdalena. Já, por mais de uma vez, a hypothese do casamento da filha com Henrique lhe tinha passado pela ideia, e de modo algum lhe era antipathica. Henrique tinha um bom nome, rendimentos sufficientes, e, se quizesse, um futuro na sociedade, e o conselheiro tudo isto invejava para seus filhos.

Magdalena, que percebeu no gesto do pae a ideia que elle tivera, quiz tiral-o quanto antes da illusão e disse:

―Quem mais razão tinha para protestar era eu. Ha de fazer-me falta a amizade de Christina.

―Ah!―disse o conselheiro, com um sorriso um tanto contrafeito.―Então quer-nos roubar a nossa Christina, sr. Henrique?

―É apenas uma restituição que peço, sr. conselheiro, porque não me posso resignar a viver sem coração.

―Faz madrigal? Está então apaixonado devéras, já vejo―disse o conselheiro.―Pela minha parte folgo de o vêr assim associado á minha familia, por tão bom caminho. Mas onde está a thaumaturga, que fez o milagre de converter este celibatario emerito, que eu conheci em Lisboa a rir-se do casamento?

―Por piedade, não me recorde esses peccados deante da prima Magdalena, que é tão rigorosa nos castigos!

―Diga antes, que sou tão excessiva nas recompensas.

―Mas o mano tem razão―disse D. Victoria.―Onde está a Christe? Admira-me não a vêr aqui!

―Admirar, não me admiro eu―tornou o conselheiro.―É provavel que soubesse do que se tratava, e eclipsou-se discretamente. Porque isto foi decerto discutido por as partes interessadas, antes de subir ao nosso tribunal.

Henrique e Magdalena sorriram.

―Ora se foi! E parece-me que tu, Lena, fizeste d'esta vez de S. Gonçalo. Deus queira que te não queimes ainda no fogo ao ateares d'estes fachos.

―Eu vou buscar a Christe―disse a morgadinha, rindo das palavras do pae; e saiu da sala como para evitar que a conversa seguisse a direcção que elle lhe deu.

O conselheiro voltou n'este intervallo a consultar papeis e cartas, emquanto D. Victoria falava com Henrique, e D. Dorothéa tentava distrahir Angelo, contando-lhe várias historias de creanças, que elle mal escutava, e que ella tinha a candura de julgar alimento accommodado á intelligencia d'elle.

Passados momentos voltava Magdalena, trazendo Christina comsigo, a qual já vinha com o rubor nas faces e com os olhos no chão.

―Aqui está a accusada―disse a morgadinha ao entrar.

O conselheiro tornou a guardar os papeis e disse jovialmente para a sobrinha:

―Ora venha cá, venha cá, que temos muito que falar.

E passando-lhe a mão por baixo do queixo, para a obrigar a fital-o, continuou:

―Então assim se trama uma conspiração ás caladas? Surprehender a gente com uma noticia de tal ordem! Ainda ha pouco demittido um ministerio de bonecas, e já um golpe d'estado d'esta natureza! Sim, senhora, é energia. Nunca o esperei. Ora dê cá um beijo, emquanto não tenho quem me peça explicações por os que lhe roubar.

E o conselheiro, com perfeita galanteria e affecto, beijou-a nas faces tingidas pelo pejo e pela alegria.

Depois, voltando-se para Henrique, accrescentou, sorrindo:

―São os penultimos.

―Os penultimos?―disse D. Victoria, rindo.―Ora essa! Então para quando ficam os ultimos?

―Para quando a vir com a grinalda de noiva.

―O que eu nunca esperei é que fôsse a nossa Christe que désse o exemplo á prima. Não tens vergonha, Lena―disse D. Dorothéa para a morgadinha, em quem esta reflexão fez nascer um gesto de contrariedade, que trouxe aos labios d'Angelo o primeiro sorriso d'aquella manhã.

O conselheiro e Henrique sorriram tambem.

―Eu prometto casar-lhe a prima Magdalena, dentro em pouco, tia―disse Henrique com intenção.

―Não prometta. Esses negocios deixe-os ao meu cuidado. Bem sabe que sou teimosa e tenho a ingenuidade de acreditar que ainda ha coisas no mundo que se devem decidir pelo coração sómente.

―E Deus me livre de o não consultar. Seria abjurar os meus proprios actos.

―O sómente é que veio de mais, filha―disse o conselheiro.―Attende-se ao coração, embora. Mas só ao coração? Isso era bom se vivessemos em um mundo de corações.

A chegada de novas personagens desviou a direcção da conversa e modificou a scena.

Eram influentes politicos, que obrigaram as senhoras a retirarem-se. Henrique ficou, a pedido do conselheiro. O mestre Bento Pertunhas entrava no numero dos recemchegados. O papel que alli desempenhava o latinista era de suspeitosa natureza.

Vinha tambem a alma politica do partido do conselheiro, o Tapadas, que n'estas épocas não comia, não dormia, não respirava, por assim dizer, senão eleições, e desenvolvia uma miraculosa actividade, correndo a todos os pontos perigosos, conquistando votos, um a um, e lidando por desenredar as meadas politicas dos adversarios e enredar as suas.

―Então que novas temos da campanha, meus senhores?―perguntou o conselheiro, puxando cadeiras para os seus constituintes, e affectando um tom de confiança que não sentia.

―Más, sr. conselheiro,―respondeu o Tapadas―muito más. Vejo isto muito feio.

―Ora a coisa ainda não ha de ser tão má como diz.

―Nada, nada; não me agrada. V. ex.a descuidou-se. Tenha paciencia, mas eu bem lh'o disse. Eu sei como estas coisas são. É preciso não as desacompanhar. V. ex.a devia vir ha mais tempo.

O Pertunhas acudiu:

―Deixe lá, sr. Tapadas, o sr. conselheiro tem amigos decididos, e os serviços que fez á terra...

―Ora com o que vmc.ê vem!―replicou o Tapadas, com modo azedo.―Então não sabe como é esta gente? Então não os ouve ahi berrar já contra as estradas, quando até agora berravam por não as terem?

―Meia duzia de garotos―tornou o Pertunhas.

―Não, senhor, não é assim; não estejamos a enganar-nos. Os que não dizem mal das estradas, sabem muito bem dizer que ao ministerio as devem, e estamos na mesma. A coisa vae mal.

―Então decididamente o Seabra?...―perguntou o conselheiro.

―Esse é o chefe de todos elles―disse um merceeiro.―Á porta da minha loja o ouvi eu estar a dizer ao cunhado do administrador que o traçado da estrada era o peor que podia ser, que se gastava alli um dinheiro louco, sem utilidade para o povo.

O conselheiro olhou para Henrique, dizendo:

―Lembra-se do que eu lhe disse na noite do Natal, a respeito d'este traçado e dos pedidos do brazileiro para elle se adoptar? Admire agora o velhaco.

Henrique sorriu, encolhendo os hombros.

―Arremedos do que se faz em terras maiores―disse elle.―Não extranho.

―E tem razão―respondeu o conselheiro.

―Mas, a final―continuou o conselheiro―o homem não tinha na freguezia grande influencia. Como é que...?

―Tem-se popularisado ultimamente um pouco mais. Deu em franquear vinho por ahi a toda a gente, e depois os padres estão bem com elle e de mal com v. ex.a.

―Mas como se lhe desenfreou tão de repente esse odio contra mim? Deixámo-nos em janeiro nas melhores disposições um para com outro...

―Pelos modos que ahi se falou de uma carta do ministro ou ao ministro...―disse o Tapadas, com maneiras de quem não dera grande importancia ao objecto a que se referia.

O conselheiro mudou logo de assumpto.

―E os padres? os padres? Que heresia disse eu, que peccado grande commetti, para me terem esse odio?

―Dizem que v. ex.a é mação―respondeu um lavrador.

―O diacho da questão do cemiterio...―acudiu o Tapadas.

―Isso acalmou já.

―Não acalmou, não senhor. O povo não está contente. É certo que lhe passou a furia do principio, depois d'aquella historia com o Cancella, mas...

―Quando me lembro de que aquella canalha se atreveu a insultar minha filha!

―É melhor não falar n'isso―aconselhou prudentemente o Tapadas.―O que lá vae, lá vae. Os homens estão meio arrependidos, e até o missionario perdeu um pouco entre o povo, porque o Herodes tem por ahi berrado que foi elle quem lhe matou a filha, e o pobre homem mette pena. Até me dizem que por causa d'isso o padre já se retirou da aldeia. O que era bom era vêr até se se falava ao Herodes; porque talvez elle possa agora ainda arranjar alguns votos―accrescentou o Tapadas, disposto a servir-se da dôr de um pae como arma eleitoral.

E continuou-se fervorosamente na edificante obra de combinar tramas politicos. Discutiram-se os diversos processos de angariar as potencias eleitoraes do circulo. Estudaram-se as ambições de cada uma; ponderaram-se as exigencias feitas por uns, os desejos adivinhados em outros, para este o emprego de um afilhado, áquelle o bom exito de uma demanda, a outro o pagamento de uma divida, ou o resgate de uma hypotheca, e a alguns até nua e descaradamente o dinheiro. N'esta empresa de subornar consciencias e sophismar a urna entreteve-se o conciliabulo, sem que nenhum dos membros d'elle sentisse remorsos por o que estava fazendo alli.

Entre os discutidos foi o sr. Joãozinho das Perdizes um dos principaes.

―Então sempre é certo que me roeu a corda esse basbaque?―perguntou, ao falar-se n'elle, o conselheiro.

―É dos mais assanhados―responderam-lhe.

―Mas quem diabo lhe virou a cabeça? Um velhaco a quem tantas vezes tenho tirado de apuros!

―Tanto lhe atordoaram os ouvidos com a historia dos cemiterios...―disse o Pertunhas.

―Deixe lá, alli andou tambem um presente que lhe fez o brazileiro. O morgado está muitas vezes com a corda na garganta―explicou malignamente o Tapadas, cujo scepticismo, robustecido no uso das demandas e da politica, não achava explicações tão plausiveis como a corrupção.

―E depois o homem tomou as dores pelo Vicente herbanario―insistiu o tendeiro.

―Ora adeus!―disse o Tapadas.―Bem me fio eu n'essas compaixões. Quem não os conhecer...

―E que tem o tôlo com os negocios do herbanario?―insistiu o conselheiro, de mau humor.

―Então? Deu-lhe para alli.

―Qual historia! Para mim é que vem com isso?!―teimava o sceptico Tapadas.

―Tambem uma coisa que buliu com elle foi aquillo no outro dia na taberna com este senhor―disse o Pertunhas, designando Henrique.

―Sinto, sr. conselheiro―disse este―se de alguma maneira concorri...

―De modo nenhum. Aquelle selvagem vae para onde o empurram. Á ultima hora é capaz de mudar de tenção. E por causa d'elle é que ficou despachado professor um pateta em vez de Augusto.

Depois de dizer estas palavras, o conselheiro accrescentou, com despeito:

―Mas até certo ponto foi bom para me desenganar a respeito do caracter de certos homens. Ha vinganças tão torpes e mesquinhas, que nenhum aggravo as justifica.

Henrique procurou defender Augusto; achou porém o conselheiro obstinado na sua crença.

Henrique alludiu ao brazileiro Seabra, como o mais plausivel promotor da intriga.

―Embora o fôsse―respondeu o conselheiro―mas que tem isso? O Seabra não veio a minha casa, não suspeitava da existencia de tal carta. Alguem houve que a leu primeiro e que lh'a foi entregar depois, e já é ser muito indulgente suppôr que fôram só cegueiras de vingança e não a sordidez da cubiça quem o moveu a essa infamia.

Henrique viu que perdia o seu tempo em defender Augusto; comtudo jurou pela innocencia d'elle.

O conselheiro ia a responder-lhe, quando o distrahiu uma altercação travada entre Pertunhas e o Tapadas.

Aquelle estava sendo fertilissimo em alvitres para vencer resistencias eleitoraes. O Tapadas, que desconfiou d'elle, disse-lhe subitamente:

―Olá, ó sr. Pertunhas, é melhor parolar menos e fazer coisa que se veja; ou deixa só as obras para o seu amigo Seabra?

D'aqui protestos energicos do Pertunhas, e a altercação virulenta, que o conselheiro teve de apaziguar.

A conferencia durou até ás horas do jantar.

XXX

Chegára o prazo e dia assignalado de se dar perante a urna a batalha eleitoral.

A azáfama politica activára-se n'estes ultimos dias consideravelmente. De parte a parte tinham-se posto em campo todos os influentes e em exercicio todas as armas. Promessas, alliciações, pressão de auctoridades, exigencias a dependentes, subornos, ameaças mais ou menos declaradas; de tudo se lançava mão.

Ás vezes até o calor das discussões degenerava em pugnas menos pacificas; os argumentos physicos, que figuram no catalogo das razões mais convincentes, haviam já sido invocados a pleitear ambas as causas, berrando-se depois, de um lado contr Ás vezes até o calor das discussões degenerava em pugnas menos pacificas; os argumentos physicos, que figuram no catalogo das razões mais convincentes, haviam já sido invocados a pleitear ambas as causas, berrando-se depois, de um lado contra a violencia e o despotismo do governo, do outro, contra os manejos sediciosos e anarchicos da opposição.

Em algumas freguezias que entravam n'este circulo eleitoral, eram os padres que arvorando a cruz e o estandarte, prégavam a cruzada contra o conselheiro e instavam com o povo para que não elegesse para representante um atheu e um pedreiro-livre; em outras eram os agentes do brazileiro e os da auctoridade, fazendo promessas aos caudilhos populares, resgatando penhores, levantando hypothecas, remindo dividas, empregando afilhados, e conquistando assim para o seu partido.

O conselheiro e os seus parciaes não desprezavam tambem nenhum d'estes mesmos meios, e grossas quantias circulavam a combater as do brazileiro Seabra.

Os periodicos do Porto e de Lisboa recebiam os echos d'esta batalha. Havia muito que em longas e diffusas correspondencias os gladiadores dos dois campos se mimoseavam com as mais descabelladas verrinas, assignando-se: o Amigo da verdade; o Epaminondas; o Vígilante; a Sentinella; o Alerta, etc., e pondo ao soalheiro as máculas da vida privada uns dos outros, e todas as bisbilhotices da terra, correspondencias que, felizmente para crédito da humanidade, por ninguem mais, além dos interessados e dos que já os conheciam, eram lidas.

O brazileiro era um dos mais activos e fecundos collaboradores d'esta secção periodistica. Os seus communicados eram estirados, compactos, obscuros e enrevezados tanto ou mais do que os seus discursos. Perdia-se em minuciosos incidentes; em labyrinthos de orações secundarias, d'onde a grammatica da principal saía frequentemente maltratada, deixando ficar por lá o sujeito, o verbo ou qualquer complemento necessario. Mas o brazileiro imaginava que o paiz inteiro aguardava com ancia os seus escriptos. Era frequente abrir uma resposta a alguma zargunchada de um seu adversario, por estas palavras: «Os leitores hão de ter notado o meu silencio, depois das calumniosas asserções...» Os leitores não tinham notado nada.

Finalmente a aldeia achava-se em plena fermentação politica.

Eu tenho a fraqueza de a não amar debaixo d'aquelle aspecto.

A vida politica tem isso comsigo. Quanto mais estreito e mais apertado é o circulo social onde se manifesta, quanto mais vizinhos e conhecidos são os que vivem d'ella, tanto mais acanhada, mexeriqueira e antipathica se torna. Se a politica do nosso paiz é já pequena, como elle, e degenera em desavença de senhoras vizinhas, que fará das terras pequenas d'este paiz, em que muito acima dos principios e dos partidos estão os mexericos e as vaidadesinhas que brotam como tortulhos á sombra das arvores do campanario?!

Que desconsoladora distancia da realidade ao ideal da vida dos povos!

Henrique de Souzellas não ficára indifferente ao movimento politico da aldeia. Pegára-se-lhe a febre eleitoral. Impedido de votar, auxiliava, porém, os parciaes do conselheiro com os avisos da sua experiencia. Um dia lembrou um meeting. O conselheiro poz-se a rir.

―Que utopia! Com que especie de eleitores imagina que está tratando? Um meeting, para quê? Não se esqueça de ir domingo á igreja e lá se desenganará por os seus olhos. O espectaculo não é muito para alegrar, porque mostra como em geral o nosso paiz está ainda pouco educado no regimen constitucional. Mas em todo o caso é instructivo.

Os manejos dos amigos do conselheiro e principalmente do infatigavel Tapadas, conseguiram ainda resultados importantes em relação ao tempo em que principiaram a operar com mais energia. Algumas freguezias havia com que já se podia contar.

A eleição, porém, estava muito arriscada ainda. O sr. Joãozinho das Perdizes devia decidir a contenda. Para onde se inclinasse o morgado, com todo o peso dos seus comparochianos, desceria o prato da balança.

Contra elle assestou, pois, o conselheiro toda a artilharia; mas sem o menor resultado. O homem evitava subtilmente encontrar-se com elle, e aos seus emissarios respondia com insolencia. O Seabra pela sua parte nunca o largava, vigiava-o como um precioso thesouro, não se descuidava de o manter nas disposições hostis contra o conselheiro. A todo o momento fazia-lhe sentir o insulto que recebera na taberna, e a necessidade que tinha, para se desaffrontar, de infligir uma lição ao conselheiro, com quem Henrique estava ligado. Depois disse-lhe que o conselheiro se gabava de ter dinheiro para comprar o morgado e toda a freguezia.

O morgado, sob estas e analogas instigações, praguejava e jurava despejar na urna ministerial o suffragio da sua freguezia.

Assim, pois, todas as probabilidades eram a favor do candidato do governo, homem desconhecido d'este povo, o qual tambem era desconhecido para elle, um empregado de secretaria, que nunca saira de Lisboa e que era o primeiro a rir-se do campanario obscuro de que se propunha a ser representante; creatura dos ministros, que o desejavam eleger a todo o custo, por terem n'elle um voto complacente e um parlamentar de boa feição.

Logo pela manhã do domingo, marcado para a grande solemnidade civil, o adro da igreja parochial apresentava uma animação fóra do costume. Grupos formados aqui e alli conferenciavam, entreolhando-se com desconfiança, ou correspondendo-se por signaes de intelligencia, conforme pertenciam á mesma ou a opposta parcialidade. Os agentes eleitoraes, os influentes dos dois campos acercavam-se d'este, apertavam a mão áquelle, segredavam com um, batiam no hombro a outro, discutiam com um terceiro, e, sempre que era possivel, distribuiam listas ao maior numero.

O brazileiro era a alma do partido governamental. O Tapadas capitaneava a phalange do conselheiro. Pertunhas falava com todos, esfregando as mãos e sorrindo. O regedor passeiava com importancia por entre os grupos, recommendava ordem e respeito ás auctoridades, e dava de olho aos cabos, seus subordinados, para que se não esquecessem de cumprir as instrucções recebidas, votando no candidato ministerial.

Approximava-se a hora, e principiavam os trabalhos para a constituição da mesa. O parocho, o administrador e o regedor foram occupar o seu logar. Ficou presidente o brazileiro, e o resto da mesa formou-se d'entre as duas parcialidades.

Emquanto se organisavam assim os trabalhos, eram discutidas no adro as probabilidades da victoria.

N'um dos grupos formados, junto da porta da igreja, por os partidarios do brazileiro, dizia-se:

―Vencemos por uma maioria de mais de duzentos votos; verão!

―Só a freguezia de Pinchões enche-nos ahi a urna.

―E estará bem seguro o morgado?

―O sr. Joãozinho!? Ora! Está de ferro e fogo contra o conselheiro.

―Pois se te parece! Depois d'aquelles mimos que lhe fizeram na taberna, e do que d'elle se tem dicto no Mosteiro!...

―Não é só por isso. Elle já estava do nosso lado, desde que soube tinham deitado abaixo a casa do herbanario, e que o pobre homem estava succumbido de todo.

―É verdade! ahi temos mais um a votar contra o conselheiro d'esta vez.

―Quem? O Vicente? Esse sim. Então não sabes que o pobre velho já se não levanta da cama?

―Ai, não?

―Andava já muito fraco e doente; mas ha tres dias, sobretudo, tem ido de peor a peor, e com uma pressa, que, segundo ouvi dizer, aquillo está por pouco tempo: nem deita a semana fóra.

―Coitado!

―Ahi vem quem ainda hoje o viu. Não é verdade, sr. Pertunhas?

―O quê, meus amigos, o quê? o que é que é verdade? o que é que dizem?―perguntou o mestre de latim, esfregando sempre as mãos.

―Não é verdade que o Vicente herbanario está a ajustar contas?

―Oh! pobre de Christo! Aquillo corta o coração! Sempre eu digo que uma crueldade assim, como a do conselheiro!

―Muitos do povo d'aqui veem votar contra o conselheiro, só por causa do mal que fez áquelle santo velho.

―E com razão.

―E então para quê? senhores, para quê?―continuava Pertunhas.―Para fazer uma estrada em que se gastam rios de dinheiro, e que a final não presta! Pois eu passei por a casa do herbanario ha pouco, quero dizer, por a casa do Augusto, que é onde vive agora o Vicente. O rapaz estava á porta. Então, sr. Augusto, disse-lhe eu, á urna! vamos á urna! Elle encolheu os hombros como quem diz: «bem me importa a mim com isso.»

―Ahi está outro, que tambem não é pelo conselheiro.

―Por que não? Pois não é elle todo do Mosteiro?

―Foi, foi―replicou o Pertunhas.―Então vmc.ê não sabe que o conselheiro, depois de lhe fazer a fineza de lhe arranjar a demissão, inda por cima o poz fóra de casa, porque pelos modos o rapaz... fez publicar umas certas cartas... que compromettiam o homem? A falar verdade, tambem não foi bonito.

―Fez elle muito bem.

―Mas, como eu dizia, puzemo-nos a falar, e eu estava-lhe dizendo que o povo o vingaria da affronta que lhe fizera o conselheiro, porque ia dar a este um cheque de que elle se havia de lembrar toda a vida; quando o Vicente, que me ouvia de dentro, chamou-me e mandou-me entrar. Foi então que eu o vi... Parecia-me outro!... Imaginem vossês, outro tanto de magro e outro tanto de velho... Mettia dó! Poz-se a perguntar-me muitas coisas, o que havia, o que não havia, por quem estava este, por quem estava aquelle... Eu disse-lhe tudo; que o conselheiro, por mais que fizesse, já não podia vencer; que não arranjaria os votos precisos para cobrir a freguezia de Pinchões. O velho ficou admirado quando eu lhe disse que o sr. Joãozinho era dos nossos. E lá o deixei a remoer a noticia. Ao menos resta-me a consolação de lhe ter adoçado com ella os ultimos momentos.

N'este ponto da conversa viram passar por elles Henrique, que ia ter com um agente eleitoral, a suggerir-lhe uma ideia para vencer não sei que eleitor recalcitrante.

―Ahi anda este―disse um dos do grupo, seguindo-o com a vista.―Era bem feito que lhe dessem outra lição, como a da taberna do Canada.

―Ordem, ordem e prudencia!―disse o Pertunhas.―É preciso manter a liberdade da urna, senhores, e as garantias constitucionaes!

―Mas que tem este senhor com as nossas eleições?

―Quem o manda metter-se cá n'estas coisas?

―Ora é boa! Então não sabem que elle casa no Mosteiro?―disse o Pertunhas, que andava sempre informado das vidas alheias.

―Sim?!

―É verdade. Ha pouco, quando eu estava falando com o Augusto, veio a nós o José Barbeiro, que nos deu essa novidade, que lh'a dissera o Manoel da Quinta, que a ouvira á Gertrudes, criada do Mosteiro.

―Casa com a morgadinha, já se sabe?

―Pois vêdes! não que a bolada convida! A mim logo me farejou isso, quando vi chegar esse figurão cá á terra. Mas querem vossês saber uma coisa engraçada?... Pareceu-me que o Augustito do doutor não gostou da novidade.

―Não? Então por quê?!

―Vi-o fazer-se de mil côres quando a ouviu... Pois ter-se-lhe-ha mettido na cabeça... Hein?!

―Tinha graça. Mas olha o milagre!...

―Ah! ah!... Este mundo é muito divertido!

N'isto saiu a correr da igreja um influente politico, e principiou a olhar para todos os lados, como procurando alguem.

―Que temos nós lá, ó sr. Luiz?―perguntou-lhe o Pertunhas.

―Onde diabo estão os de Pinchões?―perguntou o interpellado.

-Inda não vieram.

―Diabos os levem! Vae-se principiar a chamada, e elles não apparecem. O morgado é homem para se esquecer a catar os cães.

―Mas vamos nós principiando, e no emtanto elles virão―disse o Pertunhas, que fôra nomeado para revezador do secretario da mesa.

―Mas a primeira freguezia que vota é justamente a d'elle. O sr. Seabra está como uma bicha!

E, dizendo isto, o homem voltou para dentro.

A mesa eleitoral, instituida no meio da igreja, com grande escandalo do beaterio, que pela voz dos padres chamava áquillo artes do demonio, ia principiar a funccionar. O conselheiro, que viera mais tarde, de proposito para não formar parte da mesa, requereu, com o relogio na mão, que se abrisse a urna aos eleitores, visto ser a hora marcada no edital.

Este requerimento, simples e justo como era, suscitou discussão.

O brazileiro allegou que, sendo os de Pinchões os primeiros a votar, em virtude do artigo 62.º do decreto eleitoral, que manda votar primeiro a freguezia mais distante, e não estando na assembléa ninguem d'aquella freguezia, convinha esperar.

O conselheiro insistiu, dizendo que a lei não mandava esperar por os eleitores, mas apenas indicava a ordem da chamada, e que portanto votassem os presentes, e que na segunda chamada, ou nas duas horas de espera, votariam os ausentes que depois viessem.

Esta questão não se resolveu de prompto. Trocados alguns alvitres, lida a lei, discutidos os artigos d'ella, consultados os recenseamentos e mappas, pedidos esclarecimentos ao regedor, ao administrador, e ao parocho, é que se approvou a proposta do conselheiro e principiou a chamada.

A freguezia de Pinchões faltou em pêso.

O brazileiro estava perturbado; olhava para a porta, olhava para a lista dos recenseados, olhava para os amigos, olhava para os adversarios, e sobretudo para o conselheiro, em cuja insistencia em principiar a votação julgou descobrir cavillação. Na urna não tinha entrado uma só lista. Pregoou-se o ultimo nome dos eleitores de Pinchões. Ninguem ainda!

Passou-se a outra freguezia.

O brazileiro já não estava em si.

Os primeiros votos recolhidos mal os pôde introduzir na urna, de trémulo e sobresaltado que estava.

O homem suppunha que lhe tinha sido roubada á ultima hora uma freguezia inteira. Não estava muito longe de acreditar que os agentes do conselheiro a haviam arrasado completamente.

A freguezia que se seguia na votação era uma das que se conservavam fieis ao conselheiro, circumstancia que augmentava a indisposição do Seabra.

A votação ia, porém, correndo, interrompida apenas por algumas questiunculas sobre a identidade de um ou de outro eleitor e sobre a regularidade d'esta ou d'aquella lista, graças aos futeis pretextos de que os contendores lançavam mão para disputarem, voto a voto, o suffragio popular.

Ia adeantada a votação, quando correu na igreja uma voz, que veio infundir alento no animo desfallecido do brazileiro.

-Veem ahi os de Pinchões!... Ahi estão os de Pinchões... Ahi vem o sr. Joãozinho e toda a sua gente!―dizia-se de toda a parte.

Esta nova passou de bôca em bôca, a ponto de produzir um sussurro na assembléa.

Muitos sairam para ir receber ao adro os annunciados.

Chegára de facto alli o sr. Joãozinho das Perdizes, á frente da sua freguezia.

Leitor, se tens, como eu, esperança e sincera fé no systema representativo, perdôa-me o obrigar-te a assistir a uma scena que faz subir a côr ao rosto de quem, como nós, abençôa os sacrificios por cujo preço nossos paes nos compraram a nobre regalia de intervir, como povo, na governação do Estado, as franquias que nos emanciparam da caprichosa tutela de um homem, revestido de direitos impiamente chamados divinos, contra os quaes o instincto e a razão igualmente se revoltam. A scena, porém, humilhante como é, não envolve a minima censura á excellencia do systema; mas apenas aos que nos quarenta annos que elle quasi tem de vida entre nós, não souberam ou não quizeram ainda fazer comprehender ao povo toda a grandeza da augusta missão que lhe cabe executar.

Depois das nossas luctas civis, já muitas creanças se fizeram homens; se a escola fôsse entre nós o que devia ser, já haveria sobra de eleitores com perfeita consciencia dos seus direitos civis.

O atrazo e ignorancia d'elles, contristando, sómente devem impellir os homens de intenções sinceras e puras a applicar os esforços de intelligencia e de acção para ministrar com a educação a moralidade, e para acordar a consciencia d'esta entidade social.

Era o sr. Joãozinho das Perdizes á frente da sua freguezia, disse eu.

E é justamente este o espectaculo humilhante de que falava.

Tendes visto um guardador de cabras á frente do seu rebanho, conduzindo com acenos e assobios todas as barbudas cabeças d'aquelle regimento quadrupede? Pois vistes o mais perfeito simile da scena que se presenciava agora no adro da igreja matriz.

O povo, o povo soberano, que n'aquelle dia tinha nas mãos o sceptro da sua soberania, não era menos docil do que os irracionaes que recordamos.

O dia em que devia mostrar-se orgulhoso, era quando mais se humilhava; quando podia dispôr dos destinos dos seus senhores, era quando mais vergava a cabeça sob o pêso que estes lhe assentavam.

Não é similhante esta fôrça inconsciente do povo á do boi robusto e válido, que uma creança dirige e subjuga? Forte como elle, como elle docil, como elle laborioso, como elle util, não vê que a mesma fôrça que emprega no trabalho lhe poderia servir para repellir o jugo. Ou quando o vê, é quando o desespero e a furia o cegam e o impellem a revoltas tremendas.

Mas o povo de Pinchões, o povo do sr. Joãozinho, estava muito longe d'esses excessos.

O morgado vinha, como já disse, á frente.

A barba por fazer, as melenas despenteadas, o lenço do pescoço sôlto, sem botões o collarinho da camisa, com as mãos mettidas no cós das ceroulas, o chicote no bolso da jaqueta de pelles, as botas enlameadas até o joelho, a ponta do cigarro ao canto da bôca, o palito atraz da orelha, o chapéo sobre o occiput, dois galgos adeante de si, e o inseparavel Cosme quasi à latere. Entrou no adro com ares triumphantes, sorrindo e piscando os olhos para os seus amigos e partidarios, como para lhes fazer notar a numerosa procissão que o seguia e a docilidade dos membros d'ella.

Atraz vinham os eleitores de Pinchões, velhos e moços, ricos e pobres, mas todos com o olhar timido e estupido, todos com movimentos enleados, todos com os olhos no caudilho, para saber o que deviam fazer. Se elle parava a cumprimentar um amigo, paravam todos com elle; a direcção que tomava, tomavam-n'a todos a um tempo; apressavam ou demoravam o passo, segundo a velocidade que elle dava aos seus; se ria, sorriam; se praguejava, tudo ficava sério. O cortejo parou á porta da igreja.

O morgado passou revista á sua tropa, á qual deu instrucções.

Os homens, com os cabellos para deante dos olhos, os braços estendidos e a cabeça baixa, não ousavam fazer um movimento, e conservaram-se enfileirados até nova ordem do sr. Joãozinho.

Pareciam envergonhados de serem precisos a alguem.

No bolso de cada um d'estes homens havia um oitavo de papel almaço dobrado, no qual estava escripto um nome; o nome de um homem que elles nem sabiam se existia no mundo. No momento devido, cada um d'elles, chamado pela voz do escrutinador eleitoral, responderia: «presente»; approximar-se-ia da urna, entregaria ao presidente da mesa aquelle papel, e retirar-se-ia satisfeito, como se descarregado de um pêso que o opprimia.

Se lhes perguntassem o que tinham feito, qual o alcance d'aquelle acto que acabavam de executar, não saberiam dizel-o; se lhes perguntassem o nome do eleito para advogado dos seus interesses e defensor das suas liberdades, a mesma ignorancia; se lhes propuzessem a resignação do direito de votar, acceitariam com jubilo; se, finalmente, lhes dissessem que n'aquelle dia estavam nas suas mãos e dos seus pares os destinos do paiz, abririam os olhos de espantados, ou sorririam com a desconfiança propria dos ignorantes.

Innocente povo!

Querem-te assim os ambiciosos, a quem serves de cómmodo degrau.

Quando disseram ao sr. Joãozinho que já tinha passado a sua vez de votar, o homem rompeu pela igreja dentro, berrando, bracejando, ameaçando céos e terra, sem attender a quantos lhe clamavam que tinha de se proceder a nova chamada, e que portanto socegasse.

O Cosme seguia-o, prompto a ser executor de suas justiças.

Custou a serenar o morgado, e não o fez senão depois de duas pragas contra as pessoas dos senhores da mesa, pragas que razões politicas fizeram engulir ao brazileiro, sem nem sequer lhe tirarem dos labios o sorriso com que saudára a vinda do morgado.

Caindo em si, o sr. Joãozinho deu ordem á sua gente para que entrasse para a igreja, e ahi a enfileirou a um dos lados d'ella, promptos á primeira voz.

A chamada proseguia, e a votação não ia já muito favoravel ao conselheiro, a julgar pelos indicios, que não escapam aos olhos amestrados dos mirones.

O brazileiro exultava comsigo mesmo, principalmente quando, por sobre as cabeças dos que se agrupavam em volta da urna, divisava as phalanges do morgado, compactas e decididas.

O conselheiro ainda tentou uma investida com o sr. Joãozinho, indo cumprimental-o affavelmente; este, porém, grunhiu-lhe um monosyllabo sêcco, e voltou-lhe as costas, envolvido n'uma nuvem de parciaes do brazileiro.

Era caso desesperado.

Passára já a votar a ultima freguezia, que era justamente aquella onde estava constituida a unica assembléa de que se compunha o circulo eleitoral, e onde o leitor tem passado commigo todo o tempo que dura a nossa narração.

Foi então que votou o conselheiro e os outros conhecidos nossos, entre os quaes o Zé P'reira.

Com este deu-se um episodio comico, que merece menção.

O brazileiro ao receber a lista que elle lhe offerecia, sabendo-o parcial do conselheiro, recusou-a, allegando que estava marcada, o que era contra a expressa determinação do artigo 61.º, § unico, da lei eleitoral.

Sabidas as contas, a supposta marca era de natureza de que seria quasi impossivel isentar papel ou objecto qualquer saido das mãos do Zé P'reira. Era uma nódoa de vinho.

Discutiu-se, ainda assim, se a nódoa era marca ou não era marca, e se lhe deviam ser applicadas as disposições do § unico do artigo 61.º.

A discussão intrincada foi cortada por o Zé P'reira, que disse com a maior candura:

―Se essa está suja, sr. Tapadas, eu tenho aqui mais d'aquellas que vocemecê me deu.

O proprio conselheiro desatou a rir.

O brazileiro resmungou:

―Então ha suborno aos eleitores? Como se entende isso?

-Ora, não bula na chaga, senão temos muito que ouvir―disse o Tapadas, e accrescentou:―ande para deante; deite a sua lista, sr. Zé.

Os governamentaes, que iam de cima, mostraram-se tolerantes, e a lista caiu na urna.

Estava a findar a primeira chamada.

Já se liam os ultimos nomes, segundo a ordem alphabetica.

A gente de Pinchões, á voz do sr. Joãozinho, apromptava-se para breve entrar em acção na segunda chamada, que ia principiar.

Faltavam uns doze nomes, quando muito, e dos ultimos era o do herbanario, cuja inicial era um V.

Até alli a victoria podia ainda talvez questionar-se, porque a actividade do Tapadas tinha expremido as freguezias, que lhe eram affectas, até deitarem o ultimo eleitor; velhos, doentes, mancos e paralyticos fôram transportados em cadeiras e em padiolas até a urna para votarem. Mas a freguezia de Pinchões ia abafar a eleição inevitavelmente.

O conselheiro perdeu as esperanças, e o proprio Tapadas sentiu-se desfallecer. O brazileiro estava vermelho e febril de contentamento.

O escrutinador chamou finalmente pelo herbanario.

―Vicente Rodrigues da Fragosa―disse elle, preparando-se já para voltar o caderno.

―Adeante. Esse vae votar a uma assembléa mais longe―disseram alguns.

E ia-se proceder a segunda chamada, quando se ouviu do fundo da igreja uma voz trémula, mas sonora ainda, responder:

―Presente.

Voltaram-se todos ao escutar aquella palavra.

Adeantava-se lentamente, pallido, curvado, acabrunhado como nunca, o velho herbanario, a quem o braço de Augusto servia de apoio.

Dir-se-ia um cadaver resuscitado do tumulo.

Com as faces pallidas, o olhar amortecido, os passos incertos, o herbanario adeantava-se e trazia já de longe o braço estendido, segurando a lista que vinha lançar na urna.

Apoderou-se de todos os circumstantes um sentimento quasi de pavor, perante aquella figura anciã e alquebrada, que se dissera erguida do tumulo para responder á voz que a evocára. Todos se lhe afastavam do caminho com respeito, senão com supersticioso terror.

Fez-se alli dentro o maior silencio, silencio só interrompido pelo som dos passos arrastados do Vicente sobre o lagêdo da igreja.

O conselheiro não pôde mais desviar os olhos do vulto venerando do herbanario; n'aquelle velho, que fôra seu companheiro de infancia, parecia-lhe estar vendo agora um severo accusador da sua insensibilidade politica, a personificação de um remorso pungente, a primeira apparição de um espectro, que devia perseguil-o no futuro.

Todos os da mesa se levantaram instinctivamente, e, immoveis, viam approximar-se o velho eleitor, que já suppunham á borda da sepultura.

Aquella assembléa, erguendo-se silenciosa e reverente, á chegada de um pobre velho, trémulo e enfermo, que seguia apoiado ao braço de um pallido mancebo, tinha uma apparencia profundamente solemne.

O morgado das Perdizes, devéras affeiçoado ao herbanario, não teve mão em si, ao vêl-o assim doente e enfraquecido, que lhe não viesse ao encontro, dizendo commovido:

―Ó tio Vicente! pois n'esse estado?!...

O velho fez um gesto energico para afastal-o de si.

―Arreda-te!―disse com severidade―deixa-me, serpente, que mordes a mão do teu bemfeitor! Não me appareças, que não quero ter-te na ideia, quando estiver a expirar!

O morgado ficou transido de espanto e de consternação ao ouvir estas palavras.

―Ó tio Vicente!...―exclamou, ajuntando as mãos―pois eu que lhe fiz?

―Cala-te. Deixa-me passar, quero, como homem d'esta terra, protestar contra a iniquidade que tu e os teus praticam hoje, apedrejando aquelle a quem deveis tudo. Vendei-vos como cães, e ficae-vos com esse remorso: eu não o quero para mim.

E, caminhando para a urna, parou defronte d'el-la, fitou o brazileiro, que não pôde sustentar-lhe o olhar com firmeza, e disse-lhe:

―Ahi tem o voto do herbanario, sr. presidente.

O brazileiro recebeu-lhe a lista, e introduzia-a na urna.

Então o herbanario, cada vez mais anciado, correu os olhos pela assembléa a procurar alguem. Viu o conselheiro que não ousava approximar-se, olhou-o algum tempo com uma expressão singular e no fim estendeu-lhe a mão. O conselheiro apertou-a nas suas, commovido.

―Manoel,―disse-lhe o velho em voz sumida―não me cegava tanto o resentimento, que te negasse esta justiça. Eu era ainda teu amigo.

―E sel-o-has sempre, Vicente.

―Sempre que o seja... por pouco tempo será―respondeu o velho, sorrindo tristemente.

―Que dizes?... Mas... que tens tu, Vicente? Que sentes?

―Tio Vicente!... exclamaram tambem Augusto, o morgado das Perdizes, e outros mais.

A physionomia do herbanario transtornára-se assustadoramente; parecia luctar energicamente para falar ainda, mas a voz embargava-se-lhe na garganta.

―Já não posso...―murmurou elle.―Queria dizer-te...

E apontando para Augusto, e olhando para o conselheiro, disse-lhe ainda:

―Era... d'este... Elle é... elle está...

Os braços de Augusto, do conselheiro e do morgado das Perdizes, ampararam-lhe o corpo que ia a cair por terra.

Foi nos braços dos tres que expirou o herbanario, porque estava devéras morto, quando o fôram a erguer.

O alvoroço foi geral na igreja. Todos a abandonaram, correndo para o adro, para onde foi levado o velho, a vêr se era possivel reanimal-o. Todos, á excepção do brazileiro, que ficou a vigiar a urna, e de um agente do Tapadas, que ficou a vigiar o brazileiro.

Os soccorros prestados ao herbanario fôram inuteis.

Todos se convenceram depressa de que era de facto um cadaver.

Os indifferentes voltaram a continuar a eleição.

Ia principiar a segunda chamada.

O morgado das Perdizes, impressionado devéras por a scena, andava desconsolado por o adro, e só de má vontade entrou na igreja.

O conselheiro, Augusto e Henrique, e mais alguns homens do povo, acharam-se sós junto do cadaver.

A commoção tirava a Augusto a frieza de animo para dar as ordens precisas. Henrique tomou isso a seu cuidado. Houve assim um momento em que o conselheiro esteve só com Augusto.

N'aquelle instante o coração do homem politico era superior ao resentimento.

―Augusto―disse elle a meia voz―a morte não deixou este infeliz completar a ultima recommendação, que parecia querer fazer-me. Eu adivinhei-lhe porém o sentido, e para prova offereço-lhe a mão de amigo.

E, dizendo isto, estendia-lhe a mão.

Augusto não lhe correspondeu, e disse-lhe, ainda com a voz commovida:

―A mão que v. ex.a me estende é a mão do homem que esquece e perdôa as injurias, e eu não posso ser perdoado, porque me não julgo criminoso. Desde que uma vez v. ex.a formulou a accusação e se fez juiz, prefiro, a ter de ser julgado sem provas, uma condemnação a uma absolvição. Fico mais em paz com o meu orgulho.

A presença de alguns curiosos obrigou a interromper este curto dialogo.

Henrique voltou com os aprestes para a conducção do cadaver.

Augusto acompanhou a casa o herbanario.

O conselheiro, impressionado pelas ultimas scenas, sentia-se pouco disposto a permanecer alli.

―Fique se quizer―disse elle para Henrique.―Não estou em estado de receber á queima-roupa a noticia da minha derrota; haviam de attribuir a mortificação que estou sentindo a essa causa, e eu não lhes quero dar esse gôsto. Vou para casa; lá me levará a noticia, e não me dará grande novidade. Adeus.

E, apertando a mão de Henrique, retirou-se para o Mosteiro.

Causou grande pesar alli a nova da morte do herbanario, e das varias circumstancias que a acompanharam.

Não houve quem fôsse indifferente ao successo, que o conselheiro narrou ainda sob a oppressiva influencia que elle lhe deixára.

A morgadinha absteve-se da menor allusão á causa que apressára o fim da vida do herbanario, e evitou sempre que D. Victoria ou Christina alludissem a ella tambem. Presentia que a consciencia do pae lh'o estava exprobrando e por um delicado instincto abstinha-se de se applaudir das suas previsões, infelizmente realisadas.

Passada a primeira commoção, que a lembrança d'aquella scena produzira, o conselheiro principiou de novo a sentir pungente e vivo o despeito pela derrota que se lhe preparava na urna.

Fazia o possivel por se mostrar indifferente a isso; mas a affectação era demasiado transparente, para até nem D. Victoria se illudir.

Assim, por exemplo, dizia elle á filha:

―Ora vão realisar-se os teus votos, Lena; aqui me vaes ter a viver uma vida patriarchal. Se queres que te diga a verdade, está-me a appetecer; a vida politica ia-me cançando já.

Mas como dizia elle isto! Com que sorriso contrafeito, com que mal simulada satisfação!

Pouco a pouco, porém, a impaciencia começou a apossar-se d'elle e nem estas exterioridades lhe permittia já.

Áquella hora devia estar a proceder-se na assembléa ao apuramento de votos.

Esta ideia lançava o conselheiro em um d'aquelles estados febris, que só pode conceber quem já alguma vez soube o que é ter a sorte dependente de uma votação, e aguardar a cada momento a noticia do resultado d'ella.

Devora-nos uma impaciencia insupportavel; tudo o que ouvimos nos afflige; as conversas sobre assumptos indifferentes, irritam-nos; se nos tentam alentar com esperanças, revoltamo-nos contra ellas; se procuram preparar-nos para um desengano, prevenindo-o, repellimos com energia a ideia d'elle. O silencio não nos é mais agradavel; as apprehensões ganham corpo no meio d'elle; falam os presentimentos do mal. Tentamos sorrir, gela-se-nos o sorriso nos labios. A quietação é-nos tão intoleravel como o movimento. Anciamos sair da incerteza, e de cada individuo que chega, trememos de saber a nova fatal. Vae mais longe o effeito moral d'este estado do espirito; chegamos quasi a querer mal a todos quantos estão assistindo n'aquelle momento á decisão lenta da sorte. O nosso egoismo, exacerbado em taes momentos, irrita-se com a ideia de que os nossos amigos tenham coração para assistir áquillo; e comtudo não lhes perdoariamos se se retirassem. Sensações d'aquellas exgotam mais vitalidade, em cada instante, do que annos de vida isenta d'ellas.

O conselheiro luctava comsigo mesmo para dominar-se; procurava preparar-se para receber o golpe, que bem podia dizer infallivel. Que esperava elle! Não lhe era quasi possivel contar, um por um, os votos de que dispunha? Não ficava, por mais alto que elevasse o cálculo, uma grande maioria a esmagal-o? Tudo isto era assim, mas o convencimento prévio recusava estabelecer-se-lhe no espirito, para lhe dar a tranquillidade da certeza.

É um vivedouro sentimento o da esperança! Não succumbe senão perante um desengano inevitavel. Por que lhe chamam verde, senão talvez por, como as plantas exuberantes de seiva, resistir ás mutilações e renovar os ramos cortados?

O conselheiro, dominado por todos estes tumultuosos pensamentos, passeiava agitado na sala, olhando ás vezes para a janella, á espera de vêr assomar ao portão do pateo um dos seus partidarios, cabisbaixo e melancolico, e armando-se de coragem para lhe dar o desengano.

Apesar de todas as prevenções, o que é certo é que a nova, quando viesse, feril-o-ia como imprevista.

Sempre assim succede.

No meio de um d'estes passeios agitados que dava em todas as direcções por o meio da sala, ouviu-se a detonação de algumas duzias de foguetes.

O conselheiro parou e fez-se excessivamente pallido.

Os corações de Magdalena, de Christina, de D. Victoria e de Angelo bateram precipitados.

A causa estava, emfim, decidida.

A girandola apregoava uma victoria, mas não proclamava o nome do vencedor; porém, que dúvida podia haver a respeito d'elle?

O conselheiro sentiu fraquearem-lhe as pernas; sentou-se, e, com um sorriso amargo, disse para a familia:

―Estou desautorado pelos meus antigos mandatarios!

―Quem sabe, mano? Ás vezes...

Isto principiava a dizer D. Victoria, para dizer alguma coisa, quando Angelo que ficava mais proximo da janella, exclamou:

―Ahi vem um homem a correr a toda a pressa!

―A correr?!―disse o conselheiro, em quem esta simples noticia infundira novo alento a todas as esperanças, e dissipára a sombra das pesadas apprehensões; e caminhou pressuroso para a janella.

As senhoras seguiram-n'o alli.

O homem que Angelo vira de longe, divisava-se ainda por entre os silvados de um atalho, que vinha dar á avenida da entrada do Mosteiro.

―Parece o Domingos, o criado do Tapadas...―disse o conselheiro, affirmando-se.

―Mas que pressa elle traz!―notou D. Victoria.

―Já nos viu―disse Angelo.

―Lá acenou com o chapéo―exclamaram todos.

―Que quer elle dizer com aquelles signaes?―tornou o conselheiro, nervoso.

―Querem vêr que é o que eu digo! Olhe que venceu, mano.

―Qual! É impossivel. Pois eu não sei como a votação correu? É boa!―disse o conselheiro com certo tom irritado, como de quem não quer que lhe descubram uma esperança.

Passou-se um pouco de tempo, em que o homem se perdeu de vista. Subia n'aquelle momento a ladeira dos sovereiros.

Os olhos fitavam-se todos no portão do pateo á espera de o vêr surgir alli. Mal se respirava.

―Eil-o―disseram instinctivamente todas as vozes, quando elle appareceu.

―Viva! sr. conselheiro, viva!―bradou elle de lá, apesar de esfalfado.

O conselheiro teve quasi uma vertigem.

―Elle que diz?... Como pode...

Não o deixaram continuar as senhoras, que já o beijavam e abraçavam com frenetico enthusiasmo.

Magdalena, a propria Magdalena, cujos mais ardentes votos eram vêr o pae desistir da vida politica, deixava-se tomar pela febre do triumpho e celebrava-o como se n'elle fundasse a sua felicidade. É que, na occasião da lucta, não ha animo tão indifferente a estimulos, que não abrace um partido; ao principio frouxamente talvez, mas a incerteza augmenta o ardor com que se esposa a causa; os gêlos da indifferença fundem-se nos momentos decisivos, e a anciedade que precede a victoria augmenta a commoção que esta produz, se se realisa.

O conselheiro queria acalmar aquellas effusões, mas em vão bradava:

―Esperem! esperem! Deixem ouvir! Isto não pode ser... Ha engano...

Mas o animo feminino não entra facilmente na ordem, se chega alguma vez a sair d'ella.

Só a entrada do mensageiro na sala, é que serenou o tumulto.

O conselheiro interrogou o.

―Então que dizes tu? Que vivas são esses?

―Digo que vencemos―respondeu o moço, usando ingenuamente o verbo na primeira pessoa do plural.

―Estás a sonhar?

-O sr. Tapadas, o meu amo, foi quem me mandou aqui a toda a pressa para lh'o dizer. Quando eu saí da igreja tinha vmc.ê... tinha v. s.a mais cento e cinco votos do que o outro, e só havia na caixa uns trinta por junto. No caminho ouvi a girandola...

―Mas é impossivel! Cem votos!... ahi ha engano. Não pode ser!

―Cento e cinco!

―Estás bem certo no que te disse teu amo?

―Ora se estou. E lá vi a cara do brazileiro. Mettia mêdo.

O conselheiro perdia-se em conjecturas. Agora parecia-lhe irrealisavel aquillo que lhe annunciavam.

Não pôde mais tempo conter-se. Sobresaltado, ancioso, preparou-se para ir por seus proprios olhos averiguar do facto.

Mas antes que o fizesse, uma onda popular, trazendo á frente a bandeira nacional e a philarmonica da terra, invadia o pateo e atordoava os ares com vivas, hymnos e foguetes. Mas antes que o fizesse, uma onda popular, trazendo á frente a bandeira nacional e a philarmonica da terra, invadia o pateo e atordoava os ares com vivas, hymnos e foguetes. Á frente da musica estava radiante mestre Pertunhas, embocando a trompa com mais arreganho que nunca!

O conselheiro chegou á janella, e então é que as acclamações fôram estrondosas.

A desafinação da banda chegou a roçar pelo sublime.

O conselheiro agradeceu ao povo aquella manifestação.

Passados momentos entravam na sala Henrique, o Tapadas, e outros chefes eleitoraes, e com elles o Pertunhas, sobraçando a trompa.

―Que quer dizer isto?―perguntou o conselheiro, abraçando-os.

―Cento e trinta e cinco votos a maior, sr. conselheiro, nem mais nem menos―respondeu o Tapadas, rindo ás gargalhadas.

―Cento e trinta e cinco―repetiu o Pertunhas.

―Mas d'onde vieram!

―Ora essa é boa! De Pinchões.

―De Pinchões―repetiu o Pertunhas.

―Como?... Pois o morgado?...

―Votou comnosco como um homem. Ora pudéra!

―É verdade... votou... comnosco―dizia mestre Pertunhas.

―Mas não se viu ainda ha pouco...

―Que estavam com metralha inimiga?―concluiu o Tapadas.―Que tem lá isso? Mas vão lá á igreja e verão as buxas que estão pelo chão. É um destrôço! Parece a loja de um farrapeiro.

―Mas explica-me isso, Tapadas.

―Então não ouviu a rabecada que aquelle santo do herbanario, que inda que não fôsse senão por isso deve estar assentadinho no Céo, deu ao morgado? Pois aquillo lá resentiu o homem. E quando, depois do Vicente expirar, elle voltou para a igreja, vinha a dizer: «Diabos me levem, que se tivesse aqui listas á mão, havia de ensinar os tratantes que me metteram n'esta dança». Vieram-me dizer isto, e eu que, para o que désse e viesse, sempre levava um sortimento de listas, cheguei-me por a calada ao morgado... Hein?... e metti-lh'as assim á cara. Hein!... Ora! Foi um momento! Emquanto a mesa se senta e abre cadernos, sim, senhores, e se põe tudo em ordem, estava armada a freguezia de Pinchões á nossa moda. Agora se se queria rir, era vêr o brazileiro! Como elle encafuava para a urna as listas que eu tinha trazido no bolso, e com que fogo! E eu a vêl-o enterrar até ás orelhas e a fazer-me carrancudo! No fim então é que fôram ellas, quando principiaram a apparecer as nossas listas ás cargas cerradas. O homem enfiou! cuidei que lhe dava alguma coisa no fim. Berrou, protestou... fez coisas do arco da velha. Agora chia contra o morgado, e se o encontra é capaz de o comer... Para coroar a festa, á girandola, que aqui o mestre Pertunhas tinha preparada para elles, pegamos-lhe nós o fogo e, estourou que foi um gôsto!

E o Tapadas terminou com outra gargalhada.

O Pertunhas quiz protestar contra a accusação, mas o Tapadas voltou-lhe as costas, dizendo:

―Ora adeus, meu amigo! O melhor é calar-se.

E elle seguiu o alvitre, limitando-se a dizer a meia voz para os que estavam proximos:

―Este Tapadas tem cada graça!

Assim pois a victoria do conselheiro era devida ao herbanario. Tinham-lhe falhado todos os seus cálculos politicos, transigira com exigencias, nem sempre justas, o que de nada lhe servira, e salvára-o o elemento que desprezava. Acontece ás vezes d'isto aos homens que muito calculam.

As senhoras, que estavam sabendo de Henrique o succedido, renovaram as suas demonstrações de alegria.

O conselheiro, porém, ficou preoccupado no meio das festas de familia e das festas populares que se faziam no pateo.

XXXI

A morte do herbanario deu muito que falar na aldeia, não só pela qualidade de homem que era aquelle, como pelas circumstancias, no meio das quaes o facto succedêra.

O resultado da eleição, comquanto momentoso, não distraía do assumpto as attenções; pois que, tendo sido successos simultaneos, associavam-se naturalmente nas conversas e discussões, e um chamava o outro.

O herbanario não fôra colhido desprevenidamente pela morte; havia muito tempo que fizera as suas disposições e por ellas legára a Augusto tudo quanto possuia, isto é, alguns livros, entre os quaes a Polyanthea, e o preço, quasi intacto, que recebêra pela casa expropriada.

Logo que estas disposições fôram sabidas, não faltou quem achasse n'ellas a explicação da amizade desvelada com que Augusto sempre tratára o velho, e do piedoso acatamento com que o recebêra em casa, assim que da sua o expelliram.

Nós que, por um direito legitimo e inauferivel, podemos julgar a fundo do caracter de Augusto, asseguramos que eram inexactos taes juizos.

É uma triste verdade esta da pouca ou nenhuma fé que se tem no desinteresse dos outros!

Não ha explicação mais difficil de ser recebida do que a que se fundamenta n'um sentimento nobre de abnegação ou de generosidade.

É preciso que duvidemos muito de nós mesmos, para assim desconfiarmos do proximo. Porque a final o que é verdade é que a mais exacta e infallivel sciencia do coração humano só se adquire pelo estudo do proprio coração: esse é o unico que nos está bem patente. É por isso que as melhores almas são de ordinario as mais crentes.

Um homem, a quem a desconfiança tenazmente escuda contra todas as apparencias de virtude, ainda as mais insinuantes, tem já tão inquinado o coração como suppõe o dos outros.

O enterro do herbanario verificou-se no dia seguinte ao da morte e foi muito concorrido.

Fez-se no cemiterio, e, por expressa determinação do fallecido, em campa rasa, e não no tumulo da familia do Mosteiro, como o conselheiro desejára.

Tudo se passou sem o menor signal de opposição.

Não se explicam bem estas versatilidades da opinião publica. Uma medida que hoje ateia uma revolução, ámanhã executa-se no meio do indifferentismo geral, e sem apostolado prévio, sem providencias repressivas, nem castigos. Mysterios das massas, que mais convem ao legislador estudar, do que tentar destruil-os; offerecem a resistencia das leis naturaes.

O conselheiro e toda a familia tomaram lucto como parentes do herbanario, e receberam as visitas de pêsames, que em parte eram tambem de parabens pelo exito do suffragio popular.

Ao fim da tarde em que se realisou a cerimonia funebre, quando soavam na igreja matriz as badaladas das Avé-Marias, Augusto entrou no cemiterio, já deserto, e approximou-se lentamente da sepultura, inda coberta de pouco, como o denunciava a terra revolvida.

Elle, cujo coração era decerto o que a morte do herbanario mais dolorosamente ferira, não recebêra pêsames de ninguem. Passára a tarde só com o seu pensamento, o qual, como o leitor prevê, lhe não devia ser muito jovial companheiro.

Quem observasse Augusto n'aquelle momento, seria decerto impressionado pelo ar abatido, revelador de uma profunda prostração de animo, que lhe quebrára as fôrças.

Que era feito d'aquella energia, com que se revoltára contra as perseguições da sorte, e que lhe animára os primeiros passos para obter a justificação devida ao bom credito do nome que lhe haviam legado sem mancha? Vimol-o sair do Mosteiro resolvido a luctar, vimol-o repellir nobremente as ironias de Henrique, vencel-o, obrigal-o a pedir-lhe perdão; vimol-o recusar o auxilio que este já lhe offerecia, e considerar-se moralmente obrigado a conquistar elle proprio as provas da sua innocencia.

Que é feito d'essa energia?

O que é feito d'ella? leitor, talvez o teu coração te possa responder por mim, se és uma d'essas victimas, para quem a sorte parece personificada em um espirito malfazejo, que se compraz nos martyrios lentos.

Quando, uns após outros, se repetem os golpes da adversidade, quando todos os males parece cairem sobre uma existencia, como uma maldição de Deus, é raro encontrar-se têmpera de alma tão rija que resista e não ceda, quasi convencida, como o Jacob dos livros sagrados, de que lucta com um poder superior.

A razão mais clara deixa-se tomar então da cegueira do fatalismo, e eivado d'esta grave doença dissipa-se a fortaleza do espirito, como se extinguem as fôrças do corpo, quando gira no sangue um veneno enervador.

Então encontra-se quasi um d'estes prazeres paradoxaes, a que é tão sujeita a natureza humana; sente-se uma especie de gôso em succumbir sem lucta. Experimenta-se, por assim dizer, o orgulho da extrema infelicidade.

Em poucos dias Augusto conheceu as maiores provações da vida: a miseria em perspectiva, a ingratidão, o insulto que avilta, a calumnia que ennodôa, e o infortunio de um verdadeiro amigo. Repellira com dignidade o insulto e a calumnia: sorrira á miseria e á ingratidão, e dera á amizade as consolações que a amizade lhe inspirára.

Mas não desfallecêra com tudo isto.

Maior provação lhe estava reservada, porque ha maiores provações para a alma humana, do que todas estas adversidades juntas. Apagae-lhe de subito a estrella que a guiava; acordae-a do sonho em que se esquecia, dormindo no meio de uma desencantada realidade; privae-a da ideia querida, que havia muito concebêra, que comsigo vivia, que para si guardava, ciosa dos olhares extranhos, e vêl-a-heis desnorteada, perdida, louca, contorcer-se em desespero e succumbir.

Se resiste e sobrevive, se não desfallece, nem vacilla, é porque é de essencia mais elevada do que a humana.

Ás vezes aquella ideia era tão irrealisavel, aquelle sonho tão chimerico, que a pobre devia estar prevenida para o perder um dia, e julgou que o estava.

Mas illudira-se. Se nos dermos de coração a uma chimera, se ella, nas fórmas vagas e aereas que reveste, nos sorrir e namorar, em vão julgamos têl-a por o que verdadeiramente é; ha sempre um ou outro momento em que a acreditamos realisavel e até realisada.

E, ao convencermo-nos devéras da sua impossibilidade, sentimos a dor profunda que nos causa a perda de um objecto querido.

Como certos deuses do paganismo, que nos seus amores com os mortaes vestiam a fórma humana, assim o impossivel, quando nos apaixonamos d'elle, apparece, para nos seduzir, sob a feição da realidade aos nossos olhos namorados.

E ao revelar-se como impossivel, destróe o coração que o abraça, como Jupiter sacrificou a imprudente Semele, ao apparecer-lhe em toda a sua gloria de deus.

Qual fôsse a ideia constante, o pensamento recatado de Augusto, sabem-n'o os leitores: era o amor de Magdalena. A natureza d'esta paixão dizia elle conhecel-a. Não tinha outra aspiração além de existir, era como o culto pela Virgem do Christianismo, era que se adora por adorar, em que na mesma adoração se acha o premio do culto, em que o deixar-se adorar é o mais que pode pedir-se ao objecto d'elle.

De tudo isto estava sinceramente convencido Augusto.

Mas por que foi que, desde os primeiros momentos em que viu Henrique, sentiu quasi aversão para elle? por que foi que, amavel e bondoso para com todos, só para com um desconhecido se mostrou frio e irritante? por que foi emfim que, ao persuadir-se, por certos indicios, de que Magdalena e Henrique se amavam, caiu no desalento, em que tantas causas de infortunio o não tinham lançado ainda? Porque a verdade era que foi este o golpe que o venceu.

Por quê? porque amava Magdalena, porque este amor não tinha nada excepcional; era inconscientemente apprehensivo, ambicioso, devaneador e ciumento, como todos os amores verdadeiros; porque era aquelle o seu sonho mais querido, e desde que era obrigado a convencer-se de que não passára de um sonho, não se sentia de animo para fitar a realidade; porque era aquella a luz da sua alma, e ao vêl-a apagar, vacillou nas trevas e parou. Desde que não avistava um alvo, não havia para elle retrogradar nem progredir; era um movimento sem fim, que não valia mais do que a quietação.

Esta fôra a causa do desalento de Augusto, que só então conheceu que se illudira com o estado do seu coração, que o que em si se passava era o verdadeiro amor.

Desde que teve de renunciar a elle, não fez mais um esforço para justificar-se da calumnia que pesava sobre si. Sentia-se indifferente á condemnação do mundo. Já nem lhe importava justificar-se para com Magdalena; era quasi uma vingança, que tirava d'aquella por quem soffria, obrigal-a a ser injusta.

E a sua consciencia quasi achava voluptuosidade n'isto!

O herbanario fôra victima da mesma illusão de Augusto, e concorrêra involuntariamente para o levar a este estado moral.

Das explicações dadas por Magdalena na casa dos Cannaviaes, sabemos como das meias palavras e meias revelações de Torquato, o herbanario acreditára que a morgadinha combinára imprudentemente com Henrique uma visita nocturna á quinta dos Cannaviaes. O velho, que suspeitára sempre da natureza dos sentimentos de Henrique para com Magdalena, julgou vêr n'aquillo a confirmação das suas suspeitas, e encontrando Magdalena, reprehendeu-a, e, de irritado que estava, nem escutal-a quiz.

Voltando a casa, o velho lidou por muito tempo com a dúvida, se deveria ou não revelar tudo a Augusto.

A noite cerrou de todo e deslizou com a lentidão de uma noite de inverno, sem que elle tivesse resolvido o que faria. O dia seguinte passou-o na mesma indecisão. Mas a inquietação do herbanario crescia; desassocegava-o a ideia do perigo a que suppunha exposta Magdalena, cuja confiança em Henrique a podia perder.

O herbanario continuava a desconfiar de Henrique.

Chegára a noite, aquella em que Torquato lhe dissera ter com uma das meninas de visitar á meia noite, por causa de Henrique, a casa dos Cannaviaes. O velho não pôde mais tempo conter-se e disse a Augusto, depois de muito luctar comsigo:

―Não devo calar-me. É preciso coragem, meu filho. Arranca do coração a loucura que lá tens ainda, embora o deixes em sangue, ou estás perdido.

Augusto estremeceu, olhando-o com sobresalto.

O velho proseguiu:

―Tu vaes sair para te desenganares por teus proprios olhos, e se o que vires te não curar, se é sem remedio esse mal, ao menos sê generoso, e acode e salva, se fôr possivel, quem, perdendo-te, se perde tambem.

E após estas palavras vagas, cujo mais claro sentido Augusto tremeu de investigar, o velho mandou-o aos Cannaviaes, n'aquella mesma noite, recommendando-lhe que fôsse preparado para receber uma grande dor.

Augusto seguiu as indicações do herbanario, e foi.

Era d'elle o vulto que fizera estremecer Magdalena, quando na noite da piedosa devoção de Christina, a vimos chegar á janella dos Cannaviaes.

A morgadinha reconhecêra Augusto através das sombras nocturnas, e tivera um presentimento do que significava a presença d'elle n'aquelle logar e n'aquella occasião.

Por concentrada e discreta que fôsse a paixão de Augusto, não era um mysterio para Magdalena.

A extranhar alguem esta penetração de vista não será decerto nenhuma das minhas leitoras.

Magdalena adivinhára havia muito Augusto, e não lhe fôra difficil explicar até a instinctiva hostilidade com que elle sempre acolhêra Henrique.

Por isso, ao vêl-o alli, previu que pesava sôbre ella uma suspeita, que era victima de uma illusão, e que as apparencias a podiam condemnar.

De feito Augusto chegára tarde aos Cannaviaes, porque só tarde o herbanario vencêra a hesitação que experimentára ao dizer-lhe que fôsse. Por isso só pôde reconhecer a voz e a figura da morgadinha e de Henrique no curto dialogo, que entre os dois se trocára, quando vieram examinar á janella o estado da noite.

As palavras que escutou prestavam-se a ser interpretadas de uma maneira cruel para o seu coração. Assim as entendeu Augusto, e, sem mais querer vêr nem ouvir, retirou-se como um louco.

Foi n'essa occasião que Magdalena o viu.

Quando voltou a casa, o herbanario que, ainda acordado, o esperava, viu-o pallido, e com uma expressão singular no rosto.

―Então?―interrogou-o anciosamente o velho.

―Tinha razão, tio Vicente. Tem sido uma longa e má loucura a minha. Verei se me curo d'ella.

E, sentando-se, encostou a cabeça ás mãos e permaneceu silencioso.

O velho não lhe perguntou o que se tinha passado.

D'ahi em deante foi em rapido progresso a prostração de animo em Augusto.

A doença do herbanario que se exacerbou consideravelmente tambem, era o unico motivo de uma fôrça ficticia que ainda o sustentava. Os seus desvelos pelo enfermo tornavam-lhe todos os instantes.

A unica voz, echo da vida exterior que lhe chegava aos ouvidos, era a do cirurgião que tratava do herbanario.

Falador por indole e por cálculo profissional, o facultativo contava á cabeceira do leito as novidades do dia. Entre essas trouxe uma das que mais vogavam, que era a de que Henrique casava no Mosteiro com a morgadinha.

Um equivoco dizer do Torquato, na presença dos criados do mosteiro, uma das meias discreções do velho, mais perigosas do que a propria indiscreção originára esta versão.

Augusto escutou a nova sem que o gesto o trahisse: mas o herbanario, que o fitou com olhos interrogadores, leu claro n'aquelle rosto impassivel.

No dia das eleições, o estado do velho Vicente era mais grave ainda. O cirurgião prolongou a sua visita e falou da campanha eleitoral. Assegurou que era certa a derrota do conselheiro, desde que contra elle se manifestára o sr. Joãozinho das Perdizes.

O herbanario escutou-o com admiração e sobresalto.

Porque a verdade era que o herbanario sentia pelo conselheiro uma predilecção que a tudo sobrevivia, que nada podia destruir. Similhava o affecto que alguns paes sentem pelos filhos, de quem só teem recebido desgostos, affecto que parece robustecer tanto mais, quantos mais motivos ha para a esfriar.

Pouco depois mestre Pertunhas confirmou a noticia do facultativo.

Foi então que o herbanario, dominado por energia febril, quiz erguer-se do leito, e, apoiado no braço de Augusto, que em vão tentou dissuadil-o, se dirigiu á igreja para votar. O resultado sabem-n'o os leitores.

Todas estas causas, e a ultima, a morte do amigo, acabaram por quebrar o alento a Augusto. Facil é, pois, de conceber qual o estado do seu espirito ao entrar no cemiterio.

Oração ou meditação, por muito tempo durou aquelle tributo de saudade, que o aspecto sombrio da tarde e a melancolia do logar e da hora mais solemne faziam.

Passados alguns momentos, sentiu Augusto que alguem se approximava d'elle. Voltou-se. Era o Cancella, que tambem viera rezar junto do tumulo da filha.

Não era o Cancella já o mesmo robusto e alegre aldeão que vimos, dominado pelo enthusiasmo, sobre o tablado rustico, representar com applauso o tyranno perseguidor do Messias. Desde a morte da filha parecia outro. Triste, avelhentado, emmagrecido, nem tinha fôrças para o trabalho, nem coração para alegrias.

Dir-se-ia que a filha lhe partira com a alma, e que era um cadaver o que se movia alli.

―Ah! logo vi que era o sr. Augusto―disse o pobre homem, estendendo a mão, que Augusto apertou com affecto.―Só nós temos amigos aqui.

―É verdade, Cancella. Ou só nós, fóra d'aqui, não temos outros, pelos quaes esqueçamos estes, que ahi dormem.

―Eu decerto que não! Está-me toda a alegria, está-me todo o coração debaixo d'aquella pedra―disse o Herodes, apontando para o tumulo da filha.―Com mais de quarenta annos, que nova vida se pode principiar?

―Ha quem aos vinte já não tenha coragem para principiar outra!

O Cancella olhou fixo para Augusto ao ouvir-lhe estas palavras.

―Fala de si, sr. Augusto?... Não tem razão. Que são as suas dores ao lado da minha? Se ainda não experimentou o amor e as alegrias de pae, como ha de imaginar a dor, que a morte de uma filha unica nos traz ao coração?... A minha pobre Ermelinda!... Parece-me ainda impossivel o têl-a perdido!... Queria a esse velho, sr. Augusto!... E com razão, que era seu amigo e quasi um pae para si... mas não é sem remedio a sua saudade, verá... A minha porém...

Augusto sorriu amargamente.

―Tu sabes lá, homem, o que eu tenho no coração?

N'isto chegou-lhes aos ouvidos um vozear distante, com um rumor de acclamações e applausos. Eram os clamores dos grupos populares, celebrando a victoria do conselheiro.

Os sons da trompa do mestre Pertunhas dominavam todos os mais.

―Uns riem, emquanto outros choram―disse o Cancella.―Ha alegria acolá.

E designou com o dedo o Mosteiro, cujos telhados se avistavam d'alli.

―Ha...―respondeu Augusto, pensativo.―Somos de mais n'esta terra, meu pobre Cancella; nós, os infelizes.

―Por isso parto ámanhã.

―Partes?

―Se eu não posso viver aqui! Se tudo isto me está falando na filha!... A cada passo estou á espera de vêl-a... É como se a todo o instante me morresse. Vou para a cidade; dizem que estão engajando por lá trabalhadores para o Brazil... Quero vêr se o trabalho me mata, antes que o desgôsto me não tente a morrer de outra sorte.

―E dizes que partes ámanhã?

―De madrugada. Já tenho tudo prompto.

Augusto reflectiu por algum tempo.

―Far-te-hei companhia.

O Herodes olhou-o, admirado.

―O sr. Augusto?! Pois quer?...

―Quero que me batas á porta, quando passares.

―Mas que tenções são as suas, sr. Augusto?

―As mesmas talvez que as tuas. Não dizes,que queres vêr se o trabalho te mata? Por que não hei de eu tentar o mesmo tambem?

―Mas... não lhe morreu uma filha.

―E cuidas tu que só um amor de filha nos pode prender á vida? que só a morte de uma creança nos pode ferir no coração?...

O Herodes esteve algum tempo calado, com os olhos em Augusto; depois disse, com hesitação ainda:

―Não é por certo a morte d'este santo velho que o faz falar assim, sr. Augusto. Se quizesse desabafar commigo... talvez que lhe fizesse bem. Bem vê que eu sou infeliz e... havia de entendel-o...

Augusto apertou-lhe a mão, commovido.

―Pobre amigo! Não, não me entenderias; porque não basta ser infeliz para me entender. É necessario ter sido louco como eu fui.

―Louco?!...

―Sim, louco, meu bom Cancella, louco. Não te lembras d'aquelle desgraçado do Pé do Monte, que se suppunha rei? Como ria n'aquelle tempo! Um dia voltou-lhe o juizo, mas ficou tão triste até morrer, que parece que tinha saudades da loucura! Talvez que lhe devesse os unicos instantes de felicidade que sentiu na vida.

O Herodes já não comprehendia Augusto, o que lhe fez crêr que o não entenderia se elle o tomasse por confidente.

Augusto mudou de tom, dizendo-lhe:

―Promettes passar por minha casa esta madrugada?

―Pois sempre quer?...

―Se não partir comtigo, partirei só.

―N'esse caso...

―Espero-te. Aonde vaes agora?

―Ao Mosteiro.

―Ah!... vaes ao Mosteiro?...

―Vou despedir-me d'aquella santa familia, que tão bem me tratou da filha, e de Angelo, d'aquella alma de cherubim, que ainda se não consolou tambem da morte da minha pobre Linda.

―Angelo?... É um nobre coração... Espera... Não quero partir sem lhe dirigir algumas palavras... Devo-lh'as.

―Só a elle?

―Só elle m'as agradecerá.

E Augusto approximou-se do tumulo da mãe de Magdalena, e á frouxa claridade d'aquella hora escreveu com um lapis em um quarto de papel estas palavras:

«Angelo.―Escrevo-lhe sobre a pedra do tumulo, em que repousam sua mãe e Ermelinda, duas imagens que serão sempre para o seu coração rodeadas de todo o prestigio da saudade. Ouça-me, que em nome d'ellas lhe falo. Dentro de algumas horas deixarei para sempre estes sitios. Se as memorias da infancia me prendiam aqui, as sombras de grandes soffrimentos as offuscaram. Parto quasi sem custo. Não o tornando talvez a vêr, Angelo, tinha um dever a cumprir para com a sua generosidade. Hão de ensinal-o a desprezar-me, Angelo. O seu nobre instincto de creança recusar-se-ha a isso ao principio talvez: mas a razão do adolescente talvez venha a ser mais docil. Não podendo justificar-me, deixe-me ao menos jurar-lhe que parto com a consciencia tranquilla. Não é por mim que faço este protesto, é para lhe evitar, se fôr possivel, a dúvida no caracter dos homens. Para um coração, como eu lhe conheço, deve ser um martyrio. Os mais que me condemnem; nem necessidade sinto já de me justificar. Parto com um desalentado como eu. O que vou procurar não sei. Tudo acceito com indifferença.―Seu amigo, Augusto.

Fechando a carta, entregou-a ao Cancella, e ajustando outra vez a hora a que deviam encontrar-se, separaram-se.

O Cancella dirigiu-se para o Mosteiro e ainda a pensar nas palavras que ouviu a Augusto, e sem que atinasse com os motivos d'aquelle desalento.

Não pôde, porém, chegar tão depressa ao Mosteiro como esperava; distrahiu-o no caminho o seu compadre Zé P'reira.

A harmonia do par conjugal de que constituia a parte masculina o nosso Zé P'reira, estava cada vez mais transtornada.

A beatice azedára o animo da sr.a Catharina do Nascimento de S. João Baptista.

A saida precipitada do missionario, que não se sentiu seguro na terra depois da scena do cemiterio, e do desespero do Herodes, com quem elle imaginava a cada passo esbarrar, rodeára aquelle santo varão do prestigio dos martyres perseguidos; e as saudades por elle e devoção pela sua memoria augmentaram consideravelmente na aldeia.

Se mal corria ha muito a casa e o governo domestico da familia Zé P'reira, peor se tornou depois d'essa época.

A mulher passava todo o tempo em devoções na igreja. O marido, desconsolado, procurava lenitivo na taberna.

Descuidou-se cada vez mais de trabalhar. A embriaguez era n'elle estado habitual, e já menos inoffensiva e pacifica do que nos primeiros tempos.

A miseria ameaçava invadir aquelle lar, até alli remediado.

Tudo isto exacerbára a acrimonia das discussões conjugaes.

Marido e mulher fustigavam-se com os menos amaveis epithetos e attribuiam-se reciprocamente as honras da ruina do casal.

De noite desencadeiava-se a tempestade domestica e cada vez mais ameaçadora.

Um dia, o marido, excitado pelo vinho, foi mais além do que a sua timidez habitual o permittira até alli, e a sr.a Catharina soube, pela primeira vez, que o osso de que ella era osso não tinha a brandura que lhe suspeitava.

Deu-se uma scena escandalosa, em que interveio a vizinhança. D'ahi por deante fôram frequentes iguaes espectaculos.

Na noite em que o Herodes o encontrou, o Zé P'reira, em completa embriaguez, acabára de fazer sentir mais uma vez a sua mulher toda a fôrça da auctoridade marital. Ella revoltou-se e abandonou os penates, jurando que nunca mais voltaria a elles.

O pobre do homem andava agora perdido nas ruas á procura d'ella, arrepellando-se, chorando, praguejando, que mettia dó. O Cancella condoeu-se d'elle, e dando-lhe o braço, para lhe firmar os passos cambaleantes, conduziu-o a casa, promettendo restituir-lhe a mulher fugida.

E n'esta tarefa de reconciliação passou grande parte da noite, conseguindo a final harmonisal-os, mas convencido de que não seria muito duradoura a paz.

E tinha razão o Cancella em pensar assim. Ao lar domestico, onde uma vez se passa uma scena d'aquellas, nunca mais volta o anjo da concordia.

O pobre do Zé P'reira estava condemnado a levar assim o resto da sua vida de familia.

Esta occorrencia demorou o Herodes, que só tarde entrou no Mosteiro a despedir-se da familia que tanto lhe estimára a filha.

XXXII

Augusto, ao voltar a casa, sentiu que estava inevitavelmente votada á insomnia aquella noite, a ultima que devia passar na aldeia, não porque os preparativos da jornada lhe impedissem o repouso, mas a lucta de tantos pensamentos e paixões encontradas, decerto lhe disputaria o espirito.

Partir é já uma palavra, que quasi nunca se pronuncia com indifferença; partir para não voltar é uma ideia afflictiva, que mais violenta commoção desafia; partir sem esperanças no futuro... poucas torturas de alma se podem comparar a esta!

Experimentava-a Augusto.

Era quasi uma resolução de suicida a sua. Nenhuma ambição tivera poder sobre elle para o arrancar d'alli; tivera-o o desespero.

A cada momento, elle proprio surprehendia-se immovel, abstracto, com os olhos fitos na chamma da véla, com a cabeça entre as mãos, sem saber em que pensava, sem consciencia de si.

A noite estava socegada, e apenas o som monótono de uma fonte proxima interrompia o silencio d'aquellas horas adeantadas.

Augusto abria um livro, mas lia como por certo o leitor sabe que se costuma ler em situações identicas.

Levantava-se para fazer os aprestes da jornada, mas havia em todos os seus movimentos uma indecisão, uma falta de consciencia, que não deixava dúvidas sobre o estado do animo que os regia.

Como que a todo o momento estava esquecendo a que fim convergiam as suas acções; e no meio do cumprimento de uma tenção, perdia a consciencia d'ella.

Parava defronte de um livro, como se irresoluto em saber se o levaria comsigo; mas cêdo afastava-o de si com enfado.

Examinou depois os papeis e as cartas; queimou tudo. Vestigios de passados devaneios, effusão de uma alma sensivel, fructos da juventude e da solidão, a que a primeira inspirára o enthusiasmo, e a segunda a melancolia, tudo consumiu; com certo prazer amargo via atear-se a chamma, desapparecerem as lettras, reduzir-se tudo a cinzas.

Respeitou apenas as cartas de Angelo, que releu commovido. Falava-se em algumas de Magdalena. O sobresalto do seu coração, ao ler aquelle nome, era então mais violento que nunca.

N'estas pesquizas veio-lhe ás mãos um pequeno masso, que pertencêra ao herbanario.

Ia para as queimar tambem, quando a inscripção, que viu por fóra da cinta que as enfeixava, o fez hesitar.

Liam-se estas palavras:―Cartas de Magdalena.

Cartas de Magdalena! Este nome tinha no animo de Augusto o valor de uma tentação.

Cartas de Magdalena! Era quasi ouvil-a falar, prazer a que já tinha renunciado; era entrar em communhão de pensamentos com ella, e infeliz de quem não concebe a casta voluptuosidade d'este gôso.

Mas ao mesmo tempo hesitava.

Pertencia-lhe tambem aquelle legado? Não seria um abuso lel-as? Devia antes queimal-as, mas... eram cartas de Magdalena. E depois, que mal poderia vir da indiscreção? Não tinha elle um coração que não devia abrir-se mais a ninguem? Encerrar alli qualquer segredo era encerral-o quasi em um tumulo.

E que segredos podiam ser os de Magdalena e Vicente?

De que se poderia tratar alli, a não ser de algum affectuoso cumprimento da morgadinha ao velho, que sempre tratára com intima familiaridade, ou algumas meigas reprehensões por a sua porfiada ausencia do Mosteiro?

Augusto recordava-se até do velho lhe ter falado na indole d'estas cartas.

Nas vesperas de renunciar para sempre á felicidade, devia-se perdoar a tentação.

Abriu-as.

Não ia muito adeantado na leitura, quando já todos os signaes de hesitação cediam o logar aos da mais irreprimivel avidez. E terminada a primeira, abriu, leu ou devorou outra, e após outra e outra, até a ultima; da ultima voltava de novo á primeira, e cada vez mais profunda commoção parecia dominal-o.

Transcreveremos algumas d'aquellas cartas, para o leitor julgar de todas.

Dizia uma:

«Meu bom amigo.―Hontem, depois que nos separámos, recebi de Lisboa a encommenda que esperava. O Angelo não se esqueceu. Mando-lh'a, para que mais uma vez faça de feiticeiro, adivinhando os gostos do seu amigo.

«Afianço-lhe que vae acertar com os desejos d'elle. Ha tempos que o vejo, emquanto espera na sala por os pequenos, procurar de preferencia na estante os livros de historia franceza. Custa-me a perdoar-lhe os attractivos que tem para elle a Revolução, mas emfim seja feita a sua vontade. Escuso de lhe recommendar discreção. E, quando nos virmos, peço-lhe que me não torne a falar nos laços em que diz que eu estou a prender o coração. Mette-me mêdo.―Sua amiga, Lena.»

Esta era uma das mais remotas em data. Outras diziam:

«Meu amigo.―Hontem separámo-nos de tão mau humor, que hoje acordei com remorsos, e não pude socegar emquanto lhe não escrevi para lhe pedir perdão. Espero que perdoará a este rebelde genio que tenho.

«Mas tambem para que me está sempre a ralhar? Não se assuste pelo meu coração; o maior perigo que o tio Vicente receia para elle, faz-me sorrir.―É o de me apaixonar?―Então que tinha? Não sonhe com nuvens, e vá representando o seu papel de adivinho, que é uma generosa acção que pratica.―Sua arrependida inimiga, Lena.»

«Meu bom tio.―Ahi vão uns livros, de que eu não entendo nada. Augusto falou d'elles ao filho do administrador, que veio de Coimbra. Conheci n'elle desejos de possuil-os. Tomei nota. O Angelo remetteu-m'os hontem. Para Augusto não desconfiar, finja atraiçoar um pouco o mysterio, e fale no filho do administrador. Do mais, já nada digo.»

A de mais recente data dizia apenas:

«Tio Vicente.―Pensei no que me disse do estado do coração do seu... do nosso amigo. Parece-me que exaggera. Mas, se fôsse verdade, podia tranquillisar-se. Eu lhe afianço que d'ahi nunca para elle virá a infelicidade. No entretanto, discreção por ora.―Sua affeiçoada sobrinha, Magdalena.»

Por a amostra, que lhe damos, o leitor não deve estranhar que estas cartas estivessem causando a Augusto o effeito que dissemos.

Cada uma era uma revelação.

Augusto vivera sem o saber, sob a influencia benefica da morgadinha; d'ella lhe viera pois grande parte da instrucção que recebera, alli, na solidão d'aquella aldeia!

O mysterio dos presentes do herbanario, a que tão diversas explicações dera, esclarecia-se emfim. Havia-os attribuido a Angelo; suspeitára, pelo menos, que era a elle que o herbanario se dirigia para escolher os livros.

Nunca, porém, se lembrára de Magdalena; agora, que sabia de que origem provinham, beijava-os, como sagradas reliquias, venerava-os com expansões de verdadeira idolatria. Já não tinha coração para se separar d'elles.

Nas cartas em que Magdalena se referia, mais ou menos jovialmente, aos cuidados que parecia dar ao herbanario esta sympathia manifesta d'ella por Augusto, não havia para elle menor encanto. Pelo que tantas vezes lhe dissera o herbanario, conjecturava de que natureza deviam ser as reflexões a que Magdalena alludia.

O velho Vicente estava, por assim dizer, no meio d'aquelles dois corações, estudando-os a ambos, receiando por ambos, lidando por extinguir n'um e n'outro a sympathia que via crescer e que ameaçava degenerar em paixão. Toda a sua intervenção consistia em fazer com que elles se não revelassem; era o meio isolador que impedia que se ateasse o incendio. Nas suas mãos paravam os dois fios da corrente, só elle a interrompia.

Esta situação do herbanario era para elle causa de grandes iuctas.

Amando Augusto com sentimento paterno, tinha ambições por o amigo; e, ás vezes, movido d'ellas, sentia-se tentado a favorecer aquella paixão. Por outro lado, não estimava menos Magdalena, e prevendo as resistencias e repugnancias com que ella teria a luctar, e os tormentos a soffrer, hesitava e desejava poder abafar no coração dos dois os germens de pesares futuros.

Tivemos occasião de o vêr sob estas diversos impressões. Umas vezes reprehendendo Augusto, outras quasi deixando-lhe entrever esperanças. A chegada de Henrique de Souzellas e os successos subsequentes despertaram no velho uma especie de ciume, e fizeram-n'o mais ardente partidario de Augusto.

Tudo isto estava agora transparecendo ao espirito de Augusto.

Beijou as cartas da morgadinha, releu-as, apertou-as ao coração, e tão enlevado estava pelo perfume do affecto que rescendia de todas, que nem se lembrava já da hora proxima da partida do motivo que a originára. Motivo que era o desmentido da sua illusão.

Mas esta ideia amarga acudiu a final, e a impressão que produziu foi dolorosa. Pela primeira vez, n'aquella noite lhe vieram as lagrimas aos olhos, a fronte pendeu-lhe, quasi desfallecida, sobre os braços, e assim permaneceu por muito tempo.

Depois levantou a cabeça n'um impeto de desesperação, exclamando:

―Para que me haviam de vir á mão estas cartas? Que espirito diabolico se compraz de martyrisar-me assim? Saber que um anjo me acompanhava com a sua vista protectora só quando elle me vae deixar para sempre! E dizia ella que me não podia vir o infortunio d'aqui!... Não contava com as mudanças do proprio coração.

Na vidraça da sala terrea, em que se achava Augusto, soaram algumas leves e rapidas pancadas que o fizeram estremecer.

―O Cancella já?... É pois certo que vou partir?

Levantou-se para abrir, e os passos vacillavam-lhe como os do condemnado ao caminhar para o supplicio.

Chegára o momento de romper com todas as esperanças.

―Estou prompto―disse elle, abrindo a porta e voltando para dentro, sem reparar em quem entrava; e poz-se a reunir e a ordenar os papeis que tinha dispersos na mesa.

―Cuidei que era mais cêdo―continuou elle.―Distrahi-me a ler umas cartas que estive a pôr em ordem, e o tempo correu. Vamos lá, meu pobre amigo, deixemos esta terra para os venturosos.

E, dizendo isto, desviou o olhar para o sitio onde julgava que devia estar o Herodes; mas, em vez d'elle, achou deante de si Angelo e Magdalena, que, parados no meio da sala, o fitavam com melancolico sorriso.

Augusto estremeceu, soltando um grito de surpresa, e com o olhar fito em Magdalena, ficou por bastante tempo n'essa muda contemplação.

Magdalena foi a primeira que falou.

―Admira-se de nos vêr aqui?―disse ella.―Que ha de mais natural? Angelo recebeu a sua carta e mostrou-m'a. Tivemos ambos o mesmo pensamento; viemos para dizer-lhe... pelo menos o adeus que lhe deviamos... visto que vae partir.

E havia n'estas palavras de Magdalena um mal pronunciado tom de recriminação, que feriu Augusto.

―E é certo que quer partir?―perguntou Angelo.

―Sim... parto...―respondeu Augusto, perturbado.

―Mas por quê? Que significa essa resolução? Lena contou-me ha pouco tudo. Eu nada sabia. Disse-me que o offenderam com uma suspeita infame, e em nossa casa! Mas, já resolvemos; ámanhã, eu e Lena, havemos de falar, havemos de conseguir...

―Não, Angelo. É inutil. Deixe-me com o meu destino. É a elle que eu obedeço.

―Não fala verdade,―acudiu a morgadinha―diga que obedece á sua phantasia, e commette uma ingratidão.

Á palavra «ingratidão», Augusto não pôde reprimir um sorriso de amargura.

―Uma ingratidão, sim―repetiu Magdalena, respondendo com firmeza e serenidade áquelle sorriso.―Ha dias, depois de uma scena dolorosa para todos nós, quando saía do Mosteiro subjugado por uma mysteriosa e cruel fatalidade, encontrou alguem no limiar da porta, que lhe pediu que não partisse sem se despedir... de quem através de tudo, o acreditaria innocente. E para esta pessoa não houve uma só palavra na carta de despedida que mandou a meu irmão! E escreveu-a sobre o tumulo de minha mãe!

Estas palavras fôram ditas com tão sentida commoção, que Augusto esteve quasi a lançar-se-lhe aos pés, para pedir perdão; reteve-se, porém, e respondeu turbamente:

―Porém, minha senhora, por essa occasião eu jurei tambem á pessoa de quem fala, e a quem serei sempre grato, que não procuraria tornar a vêl-a, nem falar-lhe antes de me poder mostrar aos olhos de todos digno da sua generosa confiança.

―Foi isso que jurou, ou antes que não procuraria ser visto?―perguntou Magdalena, sorrindo.―Veja qual d'esses juramentos será mais em harmonia com os seus actos.

A lembrança da excursão nocturna aos Cannaviaes, para espiar Magdalena, tirou a Augusto o animo de responder.

Magdalena comprehendeu aquelle embaraço, e não insistiu.

―Mas supponhamos que assim foi; visto isso, parte para buscar as provas da sua justificação?

―Não, minha senhora, parto, porque desisto d'ella. Basta-me estar justificado para com a consciencia.

―Não tem direito para o fazer. Uma alma, que é nobre, deve homenagem a si propria. Resignar-se á suspeita, é como um suicidio moral.

―Justamente, minha senhora; e não concebe que haja casos em que o suicidio seja natural?

―Meu Deus, Augusto―exclamou Angelo―como eu o estranho! o que o levou a esse desespero?

A morgadinha sorria, ao responder ao irmão:

―É uma febre que passa, verás. Quer que lhe fale com franqueza, sr. Augusto? Tenho um secreto presentimento a dizer-me que, apesar d'essa descrença, apesar d'essa carta, e apesar de estar por minutos o momento da partida, não só não partirá, mas até ha de tomar parte na nossa primeira festa de familia, a do proximo casamento de Christina.

Estas ultimas palavras fizeram impressão em Augusto, que instinctivamente repetiu:

―Do proximo casamento de Christina?!

―Pois não sabia que Christina vae casar?-perguntou Magdalena com a maior naturalidade, mas fitando os olhos em Augusto.―É verdade, o sr. Henrique de Souzellas teve pressa de legitimar o titulo de primos, com que arbitrariamente nos tratavamos.

Augusto olhou para Magdalena, com indefinivel expressão, dizendo:

―Quê?... pois é com Christina... pois Henrique vae casar com...

Só depois de lhe romperem dos labios estas palavras, é que, reconhecendo a indiscreção da sua surpresa, accrescentou com mal simulada indifferença:

―Ah! não sabia!

―Devéras? Pois não tinha ouvido falar d'este casamento? Oh... querem vêr que suppunha tambem que era eu a que me casava?... Digo isto, porque o Cancella tambem estava na mesma crença. Parece que correu essa voz na aldeia. Estes boatos!... E acham logo quem se fie n'elles!

E, mudando de inflexão, proseguiu:

―São dois noivos exemplares, Henrique e Christina, perdidos um por o outro. Christina, com a sua timidez, exerce um forte imperio sobre aquelle incorrigivel da capital. Mas para isso foi preciso encontral-o doente. Tenho orgulho de ser eu a primeira a legitimar, de alguma maneira, aquella sympathia. Fôram singulares as circumstancias em que isto se effectuou. Eu lhe conto. Foi de noite, e noite de chuva, na capella-mór da minha propriedade dos Cannaviaes, onde Christina fôra rezar, pela saude de Henrique, as estações da meia noite; onde Henrique foi para seguir e observar Christina, e onde eu fui, com a Brizida, para os vigiar a ambos e preparar-lhes o futuro; intervenção algum tanto perigosa, porque podia haver quem me seguisse a mim com menos generosas intenções de que as de qualquer dos tres, e que, ao vêr-me em tão extraordinario sitio, a taes horas, não me concedesse a confiança precisa para acreditar, através de tudo, na minha innocencia.

A allusão era clara, e mais clara a fazia a inflexão com que foi pronunciada.

Augusto curvou a cabeça e murmurou:

―Tem razão, algum miseravel.

―Ou algum infeliz―corrigiu delicadamente Magdalena.―Os infelizes são tambem sujeitos a perderem a fé. Mas quem lhes pode levar a mal isso?

Houve alguns instantes de silencio, no fim dos quaes a morgadinha disse mais jovialmente:

―Mas afiancei ha pouco que não partiria. Acaso me enganei?

Augusto, como o leitor concebe decerto, já não tinha animo nem razão para dizer que partia. Calou-se.

Angelo, a cuja prompta intelligencia não tinha ficado latente o verdadeiro sentido d'este dialogo, graças tambem ao conhecimento que elle tinha, havia muito, do coração de sua irmã e do de Augusto, respondeu por elle:

―Não te enganaste, não, Lena. Tambem eu já digo que Augusto não partirá.

E Augusto sem protestar!

Magdalena tornou-se de subito mais séria e grave do que até alli, e a mesma gravidade tinha na voz, quando de novo se dirigiu ao irmão, dizendo:

―Para vir aqui, pedi o auxilio do teu braço de creanca, Angelo, como se fôra o de um homem. Deixa-me considerar-te por mais algum tempo ainda da mesma maneira, emquanto não termino a minha missão. Ha pouco, depois que me leste a carta, que a ti tinha sido dirigida, perguntaste-me: «Que tencionas fazer?» Não é assim?

―Foi, e tu respondeste-me o que eu esperava. Pediste-me que te acompanhasse aqui.

―Has de já ter percebido que o pensamento que me obrigou a este passo, que não sei se me deverão censurar, creio até que devem, que esse pensamento não está cumprido ainda.

―Vejo que não.

―Pois é deante de ti, Angelo, que considero como um homem, como um bom conselheiro, é deante de ti, como seria deante de quem quer que ahi estivesse em teu logar a ouvir-me, que eu vou concluir o meu pensamento.

E voltando-se para Augusto, Magdalena accrescentou com firmeza, que só um demasiado rubor trahiria, se a luz fôsse bastante para o denunciar:

―Augusto, está pobre, sem familia, sem amigos, e, para ultima provação, até as traições e as suspeitas lhe não pouparam o nome honrado que herdou. Essa posição dá-lhe direitos que eu sei comprehender, creia. É uma especie de nobreza, de que se não pode exigir humilhação alguma. Por isso, sem hesitar, com toda a lealdade, vim aqui em companhia de Angelo para estender-lhe a mão e dizer-lhe que se, como tenho razão para crer, as sympathias de uma alma que ha muito o comprehende, Augusto, se essas sympathias podem bastar ás aspirações da sua, se, para ganhar coragem, os meus affectos lhe podem servir, conte com o auxilio da minha alma... e dos meus affectos. É deante de ti, que faço esta confissão, Angelo. Terás que me ralhar por causa d'ella?

Ao ouvir aquellas palavras, Augusto esqueceu toda a hesitação, e tomando entre as suas a mão que Magdalena lhe estendia, cobriu-a de beijos apaixonados.

Magdalena não teve pressa de retiral-a.

Angelo veio tambem beijar as faces da irmã. Era assim que respondia á pergunta d'ella.

Pobres creanças! Porque a final eram creanças todos tres, creanças a quem ainda os romances namoram, sem que se lembrem de que, ao transplantal-os para a vida real, todos os desconhecem e censuram, e só regando-os de lagrimas é que as mais das vezes se consegue nutril-os.

O olhar de Augusto radiava já com o vivo fulgor da alegria.

―Obrigado, Magdalena, deu-me a vida com essas palavras generosas. Deixe-me adoral-a, anjo, anjo libertador! Comprehendo os deveres que tenho a cumprir. Hei de ter fôrça para conquistar as provas da minha innocencia. Preciso agora d'ellas; hei de obtel-as, e depois...

Aqui reteve-se de subito, e uma nuvem de tristeza toldou-lhe de novo o rosto.

Magdalena, como se o comprehendesse, concluiu:

―E depois sou eu quem tem o direito de exigir que não pare. Bem vê que, depois do passo que dei, se algum escrupulo ou orgulho pesasse no seu coração, Augusto, seria uma dolorosa offensa que me fazia. Acceitou a mão, que eu com lealdade lhe offereci; a lealdade obriga-o agora a seguir o caminho do Mosteiro.

Depois de alguns instantes de reflexão, Augusto respondeu outra vez com firmeza:

―Tem razão, Magdalena. Terei coragem para cumprir o meu dever.

Escusado é dizer que o Herodes teve de partir só.

O bom homem ficou espantado ao encontrar em casa de Augusto tão inesperada companhia, mas não lhe foi difficil, depois do que viu e ouviu, conjecturar qual a natureza dos motivos que tinham feito mudar de resolução o seu companheiro de jornada.

Partiu, desejando todas as felicidades aos seus amigos.

Estes não conseguiram dissuadil-o de partir.

Não havia já estimulo para arrancar aquelle coração ao desalento.

Magdalena e Angelo voltaram ao Mosteiro.

O resto da noite de Augusto passou sob a influencia de tão violentas paixões, que desisto de descrevel-as.

XXXIII

Na manhã do dia seguinte estava toda a familia de Magdalena, na qual incluimos já D. Dorothéa e Henrique, reunida em uma das salas do Mosteiro.

As duas primas, Magdalena e Christina, trabalhavam em costura; Angelo e Henrique jogavam o xadrez; D. Dorothéa e D. Victoria conversavam a respeito do preço de umas meadas de linho, que esta tinha dado a córar, e da pessima qualidade do fiado, effeito evidente, segundo D. Victoria, das criadas que tinha, que nem para fiar serviam. O conselheiro examinava distrahido varios memoriaes e cartas de empenho, que recebera, já a pedir empregos e graças em paga dos serviços eleitoraes, ás vezes hypotheticos.

A cada passo, porém, Magdalena suspendia o trabalho, para olhar para a porta da sala, principalmente quando nos immediatos aposentos se escutava algum rumor; ou trocava olhares com Angelo, que não com menor frequencia os desviava das pedras do taboleiro para encontrar os da irmã.

Henrique tambem, de quando em quando, tinha que perguntar a Christina, e esta, para lhe responder, julgava-se obrigada tambem a afastar os olhos da costura.

D. Victoria e D. Dorothéa não era raro metterem-se na conversa dos outros, d'onde facil transição achavam logo para voltarem aos seus assumptos favoritos: meadas e criados.

O conselheiro interrompia a cada momento a leitura com bocejos, ou fazia notar alguma mais exorbitante pretensão de tantas que examinava.

Era evidente que todas aquellas cabeças estavam pouco preoccupadas com os assumptos apparentes das suas cogitações.

―Ó Lena!―dizia Christina, que pela terceira vez chamava a prima, sem conseguir ser ouvida―que tens tu esta manhã? Que distracções são essas, que não respondes quando te chamam?

―Pois falaste-me?

―É o que eu digo! Ó menina, ha que seculos te estou eu a perguntar em que tempo é que as laranjeiras teem flor?

―Ah! Christe!―acudiu o conselheiro do lado, sorrindo.―Esse pensamento é linguareiro; ficamos todos sabendo aquillo em que tens estado a scismar.

Christina córou intensamente, ao perceber o sentido das palavras do conselheiro, e tentou defender-se, dizendo:

―Ora, não era isso, tio. Eu perguntava, porque...

―Socega, quando o véo estiver prompto, a laranjeira não nos faltará com ramos e flores.

―Não, mano―disse D. Victoria―olhe que se não trata de vêr o que é que está dando nas laranjeiras, dentro em pouco não ha uma só na quinta. Que tambem para serem comidas as laranjas pelos criados... Porque quasi que são só para elles. Não que não faz ideia!...

E continuou com D. Dorothéa a narração dos abusos de que os criados eram culpados.

D'ahi a momentos foi o conselheiro o primeiro a falar.

―Esta é galante!―disse elle, examinando uns papeis e rindo.―Ora ouça isto, Henrique. Aqui está um homem que deseja que eu lhe empregue nada menos do que sete sobrinhos que tem. Sete! É uma geração como a de Jacob; se estivessemos na côrte de Pharaó!...

―Se se satisfizessem cada um com uma pasta?... Era um ministerio completo―disse Henrique.

―Oh! oh!―disse o conselheiro, passados alguns momentos.―Cá está o meu amigo Pertunhas, teimando com o logar de recebedor.

―Pois o maroto ainda se atreve?

―E que despeza de estylo que faz! É uma ode congratulatoria em prosa.

N'estas entremeadas conversas e dialogos curtos e interrompidos passou-se o tempo até a chegada do correio, successo que marca época n'uma manhã passada na aldeia.

N'aquelle dia sobretudo eram esperadas com ancia as cartas e os periodicos, que deviam trazer noticias do resultado das eleições dos differentes circulos do paiz.

O conselheiro já por tres vezes consultára o relogio, extranhando que o correio se demorasse.

Emfim, chegou. O conselheiro poz de lado os memoriaes e requerimentos; Henrique deu subito desfecho ao jôgo com um lanço absurdo, e ambos se precipitaram sobre os periodicos e cartas; Angelo veio encostar-se ao espaldar da cadeira de Henrique.

O conselheiro principiou por ler uma carta.

Henrique rompeu a cinta do primeiro periodico.

―Oh! oh!―disse o conselheiro, logo ás primeiras linhas que leu.―Temos crise ministerial. As eleições fôram pouco favoraveis ao governo; perderam-se em quasi toda a parte!

―Assim tambem se deprehende do estylo em que vem escripto este artigo de fundo―disse Henrique.

―Dizem-me n'esta carta que já se fala em que o ministerio vae pedir a sua demissão.

―Este artigo allude apenas a uma reconstrucção do gabinete.

-«O governo―proseguiu o conselheiro, lendo,―nem espera pela constituição da camara e cáe por estes dias, infallivelmente. Quando vossê receber esta, já talvez elle pertença aos livros findos.»

―«Diz-se que ha para esta noite conselho de ministros para resolver sobre qual o seu procedimento, visto a indole provavel na futura camara»―lia Henrique no periodico, que logo em seguida pôz de lado, para consultar outro.

―«Não imagina―continuava o conselheiro, lendo a carta―o movimento de ambições que vae já por aqui». Ora se não imagino!

―Um numero do Suffragio Nacional!―exclamou Henrique, abrindo segundo periodico.―Provavelmente é alguma amabilidade que lhe dirigem, sr. conselheiro; elles que lh'o mandam!

―Sim, decerto. Como da outra vez. Veja lá,―disse o conselheiro, sorrindo―aos moribundos tudo se perdôa.

Henrique correu a vista pela folha, para saber o que motivára a remessa d'ella para o Mosteiro, onde não costumava vir.

―Ah! temos correspondencia cá da terra!―exclamou por fim.

―Deve ser isso. Já tardava. É communicado do Seabra. Leia, que são curiosos. O homem a apreciar as eleições de domingo deve ser soberbo. Isso não se pode perder. Leia, leia.

―Assigna-se um eleitor indignado.

―Justo. É o estylo do homem. Vamos lá a vêr isso.

Henrique principiou a ler em voz alta o communicado do brazileiro.

A peça litteraria, de precioso lavor, em que o sr. Seabra contava ao mundo os factos eleitoraes da sua terra, muito desejaria eu transcrevel-a aqui, se, pela sua extensão, não tomasse demasiado espaço, e se, pela sua unidade e estreita ligação logica, se não subtrahisse á menor tentativa de fragmentação.

Aquelle communicado era indivisivel.

Apesar d'esta forçada omissão, espero que os leitores farão a justiça de suppôr o escripto digno do distincto economista, que ouvimos discursar com tanta proficiencia na taberna do Canada.

O homem escrevia recheado de indignação pela serie de illegalidades, escandalos, subornos e pressões de todo o genero, de que, dizia elle, fôra theatro aquella pacifica aldeia do Minho.

Em linguagem chã e rude ia tornar patente, accrescentava, aos olhos de todos uma pestifera chaga do organismo social. Sophismára-se a urna e calcára-se aos pés a Carta. As phrases em italico são d'elle. Depois de um exordio por esta afinação, em que fazia a conveniente razão de ordem, entrava o homem na materia. Era um modêlo de impertinente bisbilhotice o escripto; desfiava-se alli a vida de todos os eleitores com uma minuciosidade esmagadora.

Contava-se como o compadre de Fulano dissera isto e aquillo ao sobrinho de Sicrano, e como tal individuo fizera e acontecera; e como tal disse que havia de fazer, e não fez; e como aquelle nem disse nem fez; e como aquell'outro dissera e fizera, e assim por deante. Um dos mais maltratados era o sr. Joãozinho das Perdizes. Dizia o auctor da correspondencia que o morgado se tinha vendido por vinho; que exercera pressão sobre os eleitores da sua freguezia; que era homem de pessimos costumes e moral depravada; jogador, bulhento, beberrão cheio de dividas, amigo de malfeitores, et coetera.

O conselheiro e Henrique seguiam a leitura com gargalhadas.

O communicado passava depois a occupar-se com o mestre Pertunhas.

O brazileiro não lhe perdoára a pressa com que este celebrára a victoria do conselheiro, á frente da philarmonica que regia.

Por vingança chamava-lhe todos os nomes injuriosos, que a raiva lhe suggeria, inclusivé o de estafador de trompa, e fechava por estas memoraveis palavras:

«Para levar á evidencia o caracter infame e intriguista d'este sevandija, basta que diga que foi elle que, poucos dias antes, subtrahiu de uma pasta aquella celebre carta politica, que tanto deu que falar no paiz. E este homem exerce o cargo de administrador do correio. Proh pudor!»

Como o leitor imagina, esta parte da correspondencia produziu sensação no auditorio.

Logo que Henrique concluiu a leitura, saiu de quasi todas as bôcas uma exclamação de surpresa ou de alegria.

―Como é?... como é?...―perguntou o conselheiro.―Diz que...?

―É o mysterio que se explica―respondeu Henrique.―A traição encarrega-se de a si propria se desmascarar.

―Então foi o Pertunhas?!... Mas... diz-se que tirou a carta de uma pasta!

―Era a de Augusto.

―Mas como estava ella ahi?

―Lá isso sei eu como foi,―disse D. Victoria―fui eu que, por engano, lh'a tinha dado junta com outras para elle escolher alguma para a leitura dos pequenos.

Christina celebrou a descoberta, beijando com effusão a morgadinha, e dizia:

―Venceste, Lena! agora está bem provada a innocencia d'elle, até para os que mais duvidavam!

―E quem não duvidaria?―acudiu o conselheiro, como para se desculpar da desconfiança.

―Quem o conhecesse bem, meu pae―respondeu Magdalena, a quem a commoção recebida dava animação ao olhar e ao semblante.―Eu e Angelo, por exemplo.

―E então eu?―accrescentou Christina.―Eu não entro na conta?

Esta reclamação valeu-lhe da parte da prima a paga do beijo que recebera.

―Olhem o pobre rapaz!―dizia D. Victoria, sinceramente consternada.―E eu que o tratei tão mal! Bem me dizia elle: «Não tenha pressa de dizer nada a seus filhos, minha senhora, não lhes ensine a duvidar de um homem que elles se costumaram a amar e a respeitar.» E o caso é que eu, desde que lhe ouvi dizer aquillo, de um modo tão sério e triste, fiquei resentida, e não disse nada ás creanças, que todos os dias me perguntavam ainda por elle.

―Mas...―dizia D. Dorothéa, deveras embaraçada―eu não sei ainda bem do que se trata. Pois suspeitavam de Augusto?... Mas o quê?...

―Ó tia Dorothéa―atalhou ―Ó tia Dorothéa―atalhou Henrique―por quem é, não insista na pergunta. Depois que se sabe que uma suspeita é falsa, não ha nada que mais escalde os labios do que obrigal-a de novo a passar por elles.

―Tens razão, menino. E que precisão tenho eu de saber uma coisa que não é verdadeira? Mas na verdade! Suspeitaram de Augusto! Ah! Henrique, está-me a parecer que tambem tu tens esse peccado a pesar-te na consciencia. Ora anda lá.

―Não, tia. Ha muito que lhe faço justiça. Ao principio não digo que não. Mas durou pouco tempo e já estava arrependido. Augusto convenceu-me pela maneira com que me falou, convenceu-me sem provas: e até se, em expiação, me não puz em campo a auxilial-o a justificar-se, é porque elle exigiu que me abstivesse d'isso, e depois, o meu desastre... quero dizer―emendou, olhando para Christina―a felicidade que me procurou sob a fórma de doença...

Christina pagou-lhe com um sorriso o galanteio.

O conselheiro, que ficára pensativo depois das primeiras reflexões que lhe ouvimos fazer, disse, suspirando:

―Estou sentindo verdadeiros remorsos pelo mal que por certo causei áquelle rapaz com as minhas suspeitas. Mas que havia eu de fazer? As apparencias eram-lhe contrarias!... E depois, n'esta vida de politica, apprende-se tanto e tão depressa a duvidar! É sorte minha! Homens, a quem eu estimava devéras, fôram exactamente os que mais fiz padecer! Senão, vejam: o herbanario, meu companheiro de infancia, e que sempre me teve amizade, apesar das apparencias rudes de que a revestia, dispuzeram-se as coisas de modo que o privei da casa em que nasceu e talvez lhe apressasse com isso a morte... E elle, coitado, vingou-se nobremente; mas vingou-se, porque nunca mais me sairá da ideia aquella scena da igreja. Augusto, um rapaz que conheci pequeno, e já então de viva intelligencia e de sentimentos nobres... pois tudo se conspirou para o perder, e não só o privei do modesto logar que elle exercia, mas até levantei contra elle uma accusação infamante, e quasi o expulsei de minha casa... É triste que a vida politica me tenha obrigado a estas crueldades! Preciso de compensar de alguma sorte o mal que fiz. De que maneira lhes parece melhor?

―Eu se fôsse―disse D. Dorothéa―fazia como a morgada, e o rapaz, em vez de vir a ser só padre havia de se formar em Coimbra, como o reitor de Friande...

―Isso era se elle quizesse ser padre;―acudiu D. Victoria―mas parece-me que não quer. Nada, nada, eu o que fazia era demittir aquelle velhaco do Pertunhas, e dava a este o logar de mestre de latim, e arranjava que ficasse tambem com o correio. Ora anda, já que o outro foi tratante!...

O conselheiro sorriu ao expediente da cunhada, e não pôde deixar de dizer:

―N'esse caso deixava só ao Pertunhas a regencia da philarmonica? E tu, Lena, qual é a tua opinião?

Magdalena respondeu sem vacillar:

―A minha opinião é que o pae deve ir a casa de Augusto, pedir-lhe humildemente perdão pela offensa que lhe fez.

―Mas involuntaria―ponderou o conselheiro, em tom de despeito, que não pôde bem disfarçar.

―Mas offensa―repetiu Magdalena, sem que o sorriso dissipasse totalmente a fôrça da expressão.

―É um pouco dura de cumprir a sentença, sobretudo esse adverbio humildemente... Não lhe parece?―perguntou o conselheiro, voltando-se para Henrique.

―Eu tinha vontade de dizer tambem a minha opinião―respondeu Henrique;―mas receio certos melindres... Comtudo, parece-me que encontraria uma recompensa, que poderia fazer esquecer a Augusto a offensa e dores muito mais pungentes do que as que soffreu em virtude d'esta desagradavel occorrencia.

―Qual é?―perguntou o conselheiro.

Henrique olhou para Magdalena, respondendo:

―Repito que tenho escrupulos em dizêl-o, porque talvez não seja eu o mais competente para o fazer.

―Tem razão, primo―disse Magdalena.―Elle proprio o dirá. É mais natural.

―Mas sábel-o tambem tu, Lena?

―Sei.

―Então dize-nol-o. Melhor para mim, se puder prevenir desejos.

Magdalena hesitou.

―Vamos, Henrique―disse Cristina, sorrindo―não esteja com tantos escrupulos. Diga o que pensa.

―Pois quer? mas se sua prima me não perdôa?

―Eu o protegerei. Fale.

―Então, Christe?―tornou Magdalena.

―Bem; n'esse caso... Visto que m'o ordena quem pode.

―Fale, fale―disseram a um tempo o conselheiro, D. Victoria e D. Dorothéa.

―Falarei. A recompensa a que Augusto aspira é a de fazer parte da familia de... da nossa familia―respondeu Henrique, olhando para Magdalena, que já não tentava retêl-o.

―De fazer parte da nossa familia?―repetiu o conselheiro.―Mas como?

―Como ha de ser? visto eu não estar resolvido a prescindir de Christina, e Marianna ser ainda creança, facil é de conjecturar o unico meio que ainda resta de realisar aquella pretensão.

O conselheiro comprehendeu a final, e fitando Magdalena poz-se a rir, dizendo:

―Pobre rapaz! Pois metteu-se-lhe isso na cabeça?

―Mas que é a final? eu não entendo―dizia, embaraçada, D. Victoria.

―É uma coisa muito simples―respondeu Henrique.―Augusto sentiu o effeito dos encantos da minha prima Magdalena, mas sentiu-os a ponto de ligar a elles a sua felicidade, e de cair em adoração para com a magnetisadora.

Esta explicação foi recebida com espanto por D. Victoria.

―Ora! está a brincar, primo Henrique? Não ouve aquillo, prima Dorothéa?

―Mas que é, que é?―perguntou esta.

-Diz que o Augusto aspirava...

―Perdão, eu disse que o Augusto adorava e não aspirava. Quem pode tomar contas a um coração do culto que elle guarda religiosamente em si? A prima Lena é adorada por aquelle rapaz, isso affirmo eu, porém...

―É possivel!―exclamou tambem D. Dorothéa, espantada.―Por essa não esperava eu. Olhem para o que lhe havia de dar! Pobre Augusto!

O conselheiro ria ainda da noticia que recebera.

Magdalena córou ao ouvir todas aquellas exclamações de estranheza. Cedendo ao impulso energico do seu caracter impetuoso e apaixonado, disse com vivacidade:

―Não sei que haja no que diz o primo Henrique nada que mereça esses espantos. Pois quem sou eu a final? Que distancia me separa da humanidade, para que se tenha por um desacato uma affeição que inspire? É verdade. Julgo que não se enganou o primo Henrique. Tambem eu descobri esse affecto em Augusto. Nasceu-lhe no coração e não na cabeça, meu pae. Ha muito que o sei, e nunca a descoberta me causou o espanto que vejo nos outros. Digo mais, causou-me orgulho. Orgulho, sim, porque é natural sentil-o por ter inspirado sentimentos d'aquella ordem a um caracter generoso que, experimentado pelo infortunio, saiu sempre da prova mais nobre e mais puro do que d'antes.

O conselheiro, que ouvira a filha com impaciencia, acudiu, em tom profundamente irritado:

―Bem, bem, deixemo-nos de loucuras e de poesias, Lena. Vê lá se me queres fazer acreditar que a vida da aldeia te estragou o natural bom senso, até o ponto de tomares a sério phantasias e creancices.

―Não é phantasia nem creancice, é uma resolução de mulher―respondeu Magdalena, com firmeza.

―Uma resolução de creança, que está na minha mão remediar―tornou o conselheiro, como quem desejava cortar o incidente.

Porém para o génio de Magdalena já não era possivel recuar nem parar; replicou:

―Talvez não. E deixe-me então dizer-lhe tudo, meu pae. Augusto nunca me revelou esse segredo do seu coração. Adivinhei-lh'o eu. Longe de procurar ser entendido, occultava-se e fugia; ainda hontem estava resolvido a deixar a aldeia para sempre.

―Mas ficou―notou o conselheiro com ironia.

―Ficou―respondeu tranquillamente Magdalena―porque eu lhe pedi que ficasse.

O conselheiro, ouvindo estas palavras, estremeceu de surpresa e fitou a filha com olhar severo e interrogador.

A morgadinha proseguiu com uma serenidade, que occultava um esfôrço interior:

―Ficou, porque eu lhe disse que o havia comprehendido e que acceitava a affeição desinteressada e pura que elle guardava no coração; ficou, porque eu, que só tarde soube do desespero que o obrigava a partir, e que o sabia tão leal como pobre, tão innocente como perseguido pelo infortunio, eu, que o vi quasi expulsar d'esta casa, sob o pêso de uma accusação em cuja verdade nunca pude acreditar, julguei do meu dever ir eu propria procural-o para lhe estender a mão e dizer-lhe: «fique, e prometto-lhe que todos lhe farão justiça em breve.»

Quando Magdalena acabou de dizer estas palavras com firmeza e exaltação crescentes, ninguem ousou falar na sala; e os olhos de todos dirigiram-se quasi instinctivamente para o conselheiro.

Christina tremia; as outras senhoras pasmavam: Henrique e Angelo sentiram-se profundamente inquietos.

Todos viram passar por differentes côres as faces do conselheiro, os labios agitaram-se n'um tremor convulso, e com a voz evidentemente alterada pela cólera, disse para a filha, passados alguns instantes:

―Pois, saiba, senhora, que para as leviandades de uma rapariga estouvada, ha meios mais racionaes do que esses que parecem naturalissimos á sua razão estragada pelos romances. Eu ainda não prescindi da minha auctoridade paterna, e ella me servirá para corrigir essas levezas, de que deveria envergonhar-se.

Esta scena de familia augmentava cada vez mais a difficuldade da posição de todos os que estavam presentes. Ninguem ousava intervir, ou, desejando-o, ninguem sabia a maneira de o fazer.

Entre as falsas situações, em que nos achamos ás vezes n'esta vida, poucas se podem comparar no incómmodo que produzem, á de assistir a uma questão domestica, por qualquer motivo que seja originada.

Quem se conservou d'aquella vez menos inactiva foi Christina, que prendeu Lena nos braços, não sei se para instinctivamente a defender, se para reprimir-lhe o impeto de reacção que receiava n'ella.

A morgadinha effectivamente repelliu-a com brandura de si e respondeu ao pae:

―Ás vezes aos caracteres levianos estão confiadas tarefas generosas. Cabe-lhes sanar muitas injustiças que por cálculo os mais reflectidos, e por isso mais desconfiados, praticam sem piedade. Não me envergonho nem arrependo do passo que dei. Não fiz mais do que salvar do desespêro uma alma nobre e magnanima, que, se se perdesse, talvez um dia a sua consciencia, senhor, o accusasse de não ser innocente n'essa perda. Quiz evitar-lhe remorsos, meu pae. Se isto foi leviandade, que os annos m'a não dissipem, como dizem que costumam fazer, porque prefiro ser leviana assim, a ser cruel como...

O pae atalhou-a, e cada vez com mais vehemencia replicou:

―Pois siga, se quizer, a sua phantasia, senhora, mas terá de escolher entre os seus caprichos e a minha approvação. Fique certa que, com o consentimento meu, nunca um rapaz pobre, sem familia e sem posição, especulará com o estouvamento de uma herdeira rica, que, tão esquecida do que deve a si e aos seus, não hesitou em o procurar na propria casa, sem reparar que estava sendo victima de uma comedia armada á sua credula sensibilidade.

Antes do conselheiro concluir estas palavras estava alguem mais na sala.

Era Augusto.

Da sala proxima, onde chegára muito antes, ouvira elle o que o conselheiro dizia em tom elevado, e o sentido das palavras que ouviu venceu-lhe toda a hesitação e obrigou-o a entrar.

O conselheiro, reparando de subito n'elle, interrompeu-se e parou.

Augusto, respondeu-lhe então com dignidade e tristeza:

―Esse rapaz pobre, sem posição e sem familia, tem n'esse triplice infortunio outros tantos titulos para ser respeitado dos felizes, como v. ex.a, e eu não prescindo d'esses direitos.

O conselheiro continuava silencioso, como hesitando no que devesse responder a Augusto. A irritação dictava-lhe uma violenta resposta, mas já lh'o não permittia a consciencia.

Augusto continuou:

―Sei que v. ex.a está já convencido de que as suspeitas, que pesavam sobre mim, eram injustas. N'esse periodico, que ainda tem na mão, veem as provas da minha innocencia. Vi-o em casa do Seabra, d'onde venho agora. Procurei-o, decidido a saber toda a verdade por qualquer preço que fôsse; elle não m'a negou; contou-me tudo. Por isso, ao vir aqui, sr. conselheiro, ao voltar a esta casa, onde era recebido como amigo, antes que me expulsassem d'ella como infame, esperava encontrar a receber-me a justiça e a amizade... Enganei-me; em vez d'ellas, foi o insulto, mais pungente e menos justificado do que o primeiro, que eu encontrei!

―Menos justificado?―repetiu o conselheiro, azedadamente.

―Menos justificado, sim, muito menos; porque v. ex.a podia julgar-me criminoso, pode julgar-se com direito de duvidar de mim, mas não tem o de duvidar de sua filha; porque a sr.a D. Magdalena pedindo a seu irmão que a acompanhasse a casa de um pobre, que ella sabia ser victima de uma immerecida accusação, e a quem o desalento e o desespêro faziam succumbir, não se esqueceu do que devia a si e aos seus; pelo contrario, aos seus devia aquelle acto de sublime generosidade, porque das mãos dos seus viera o golpe que me ferira. Eu tinha sido expulso d'esta casa, sr. conselheiro, como um miseravel e infame; os filhos de v. ex.a, que sempre fôram meus amigos, a quem v. ex.a ensinára a sel-o, vieram á minha dizer-me: «Não parta, deve á nossa confiança a justiça de ficar».

―É verdade―disse Angelo―eu acompanhei Magdalena. O pae diz-me muitas vezes que não tenha pressa de principiar a duvidar; eu não podia principiar por Augusto. Não duvidei.

O conselheiro respondeu a Augusto com reserva e mal disfarçado despeito, ainda que em tom moderado:

―Sei que fui injusto comsigo, Augusto, e sinto-o do coração, creia. Ainda que as apparencias o culpassem, arrependo-me de não ter tido mais fôrça a minha confiança para não ceder. Peço-lhe por isso... humildemente... perdão. Iria a sua casa pedir-lh'o se não viesse aqui. Que mais quer? Acha-se com direitos a exigir mais? Será isso motivo para antevêr realisadas loucuras de rapaz?...

Augusto não o deixou continuar.

―Ouça-me, sr. conselheiro―disse elle placidamente―deante de todas as pessoas que me escutam, lealmente e sem hesitar, patentearei o meu coração. É verdade que essas loucuras se apoderaram de mim, que desde creança até hoje, tenho sido todo d'ellas; mas que importam aos outros, se eu commigo as guardava? se nunca por ellas regulei os actos da minha vida? Occorrencias imprevistas me arrancaram este segredo, que eu fiz sempre por suffocar. Nem ambições me despertou, como meio de realisal-o, porque nem eu realisal-o pensava. Resignar-me-hia a morrer com elle, sem o revelar a ninguem; mas adivinhado por quem o fizera nascer, e, deixe-se-me o orgulho de o dizer, adivinhado e correspondido, que muito era que me tomasse a vertigem, e que eu por momentos me deixasse cegar pelo fulgor de imprevistas esperanças? Perdôe-se-me a fraqueza. As illusões duraram pouco; as palavras de v. ex.a dissiparam-n'as... um tanto cruelmente, mas em todo o caso acordei. Creia, sr. conselheiro, que o ser pobre, sem familia e sem nome, impõe tambem uma certa ordem de deveres, a que eu serei fiel. Não é o de humilhar-me, é o de manter a unica dignidade que me resta, a dignidade moral. Já vê v. ex.a que se enganou de duas maneiras: nem da parte do rapaz pobre houve especulação, nem da parte da herdeira rica estouvamento.

E, acabando de dizer estas palavras, Augusto inclinou-se respeitosamente deante do conselheiro, e ia a sair, depois de lançar a Magdalena um extremo olhar de despedida.

A morgadinha, porém, ergueu-se, e, apesar dos esforços de Christina para a reter, veio collocar-se no caminho de Augusto, e estendendo-lhe a mão disse:

―Não saia, Augusto. Em nome de meu pae lhe peço que não saia.

―Magdalena!―disse o conselheiro com severidade.

―Sim, em seu nome, senhor; porque quero livrar-lhe o futuro de remorsos; sim, em seu nome, porque hei de fazer-lhe ouvir a voz do coração, que tantas vezes desattende, arrependendo-se amargamente depois.

―Magdalena!―repetiu o conselheiro com mais fôrça.

―Minha senhora! disse Augusto.

Porém a morgadinha obedecia agora inteiramente á vehemencia do caracter apaixonado.

―Sinceramente revelei ha pouco os sentimentos do meu coração; todos me ouviram; todos ouviram agora Augusto. Fale, senhor, com a mesma franqueza e lealdade, com que nós o fazemos; poderá confessar a natureza dos escrupulos que o obrigam a essa resistencia? Não se envergonharia d'elles? E quer que lhe obedeça! mas obedecer-lhe seria offendel-o, porque seria acreditar na constancia d'essa má paixão que o domina, e no seu bom coração não pode ella durar muito tempo.

O conselheiro, no auge da irritação, ia talvez a responder violentamente. Christina e Angelo tinham-se approximado de Magdalena; as outras senhoras principiavam a ensaiar em surdina as primeiras tentativas conciliadoras; Henrique meditava um plano de intervenção, que elle suppunha já indispensavel, quando um incidente veio interromper esta scena e modificar a feição critica do caso.

O incidente foi a chegada de um criado de farda, pertencente ao serviço de um proprietario da villa proxima. Este criado era portador de uma mensagem para o conselheiro.

O velho Torquato tinha adormecido na sala immediata; o lacaio dispensou-se de o acordar, e guiou-se pelo som das vozes para chegar á presença do conselheiro.

A chegada do lacaio acalmou a tempestade domestica, que principiava a carregar-se.

O conselheiro, conhecendo-o, interrogou-o sobre o fim d'aquella visita.

O criado respondeu:

―Venho para entregar a v. ex.a esta parte telegraphica, que chegou a meu amo logo depois que tinham partido as malas do correio, de maneira que não pôde mandal-a com ellas.

O conselheiro, agitado ainda, pegou no papel, que o mensageiro lhe deu, e correu-o com a vista.

Immediatamente um raio de alegria lhe fuzilou nos olhos.

Acabando de ler, disse ao criado, que esperava resposta:

―Dize a teu amo que recebi, e que pode responder que sim.

O criado saiu.

N'este meio tempo as senhoras e Christina rodeavam Magdalena e combinavam um projecto de harmonia domestica; Angelo e Henrique desempenhavam-se junto de Augusto de quasi identica tarefa.

O conselheiro estendeu a Henrique a parte telegraphica, emquanto que uma visivel satisfação se lhe desenhára no semblante.

―Leia e admire―disse elle.

Henrique leu, e não reteve uma exclamação de surpresa.

A parte dizia:

«Avise o conselheiro Manuel Bernardo para quanto antes se apresentar em Lisboa. Estou encarregado de organisar ministerio e quero que elle acceite uma das pastas.»

Assignava-a um dos mais notaveis vultos politicos do paiz.

Henrique, que sabia o valor de certas opportunidades, e a quem a surpresa da noticia não fez esquecer a crise domestica a que assistira, disse, logo que acabou de ler, e dirigindo-se a Magdalena:

―Prima Magdalena, compete-lhe ser a primeira a dar ao novo ministro os emboras pela sua nomeação.

A palavra «ministro» produziu sensação na sala. D. Victoria exclamou:

―Ministro! Pois quem é que está ministro? O mano?... Ora, sim senhor! acertou sua magestade!...

―Mas... valha-nos Deus! O ponto está que não façam por ahi alguma revolução para o deitar abaixo―acudiu D. Dorothéa, em cujo animo os factos das nossas dissenções civis tinham deixado sinistras ideias ligadas á palavra ministro.

Magdalena, Angelo e Christina correram a abraçar o conselheiro; Henrique reteve, porém, os dois ultimos dizendo:

―Primeiro Lena. Talvez tenha a pedir alguma mercê a s. ex.a, e á primeira não ha caracter de ministro que não ceda.

O conselheiro sorriu já.

Magdalena beijou-lhe a mão, e o pranto, provocado pela violencia das scenas anteriores, e até alli a custo reprimido, rebentou agora abundante, banhando as mãos do pae.

Henrique afastou-se a conversar com Augusto, para o não deixar sair da sala.

O coração do conselheiro não era de pedra. Duas causas poderosissimas conspiravam-se para abrandal-o. Como homem politico, havia a satisfação da maxima ambição de todos, a noticia de ser chamado ao ministerio. Nos momentos em que vemos satisfazer-se qualquer ardente desejo do nosso coração, abrimo-nos ás sympathias para com os desejos dos outros; se de nós depende realisal-os, cedemos de boa vontade. Como pae, havia as lagrimas da filha a convencel-o, e a eloquencia d'este argumento das lagrimas em olhos de mulher, é geralmente sabida: quanto mais se a mulher é joven e bella! quanto mais se a mulher é filha!

Sem o menor vestigio da irritação anterior, o conselheiro ergueu Magdalena, apertou-a ao seio e disse-lhe meigamente:

―Por que choras tu, Lena? Creança! Então promettes-me ser muito feliz, se eu te deixar fazer as tuas loucuras?

Magdalena respondeu-lhe, abraçando-o affectuosamente, e beijando-o.

Ha argumento mais convincente do que este? Conhecem arma mais poderosa contra as severidades de um pae?

O conselheiro beijou tambem paternalmente nas faces a filha, e voltando-se depois para Augusto, disse-lhe, em tom de voz quasi affectuoso:

―Augusto, vou confiar-lhe a minha felicidade, confiando-lhe a felicidade da minha Lena. Vingue-se da injustiça e do mal que lhe fiz, tornando-m'a venturosa. É a unica vingança á altura da sua alma.

Augusto não teve tempo para responder. Se uns restos de orgulho tentassem luctar ainda com o amor, suffocal-os-hiam os esforços combinados de Christina, de D. Victoria e de D. Dorothéa, que o arrastaram quasi para junto do conselheiro.

E toda aquella familia, em que não havia n'aquelle momento um só coração triste, confundiu-se por algum tempo no mais desordenado, pueril e pathetico grupo, que pode desenhar um artista.

Para mais tocante confusão ainda, as creanças, que voltavam dos seus brinquedos na quinta, entraram então na sala, e de boa vontade se associaram áquella manifestação de alegria, sem querer saber o que a motivára,

São assim as creanças. Alegres por instincto, saudam as scenas alegres sempre que as vêem, sentem-as antes de as explicarem.

Fôram innumeraveis os beijos, os abraços, as palavras de affecto, os sorrisos, as lagrimas, as exclamações pueris que se trocaram entre os diversos actores d'esta scena de familia.

Chegado a este ponto da minha narração, nada melhor posso fazer do que deixar á imaginação dos leitores concluil-a.

Haverá algum tão malfadado, que na sua vida não tenha visto representada uma scena assim?

Esse mesmo, se existe, obriga-me a não proseguir.

O quadro que reproduzisse, exacerbar-lhe-hia o desconsolo da alma, de que por certo é victima.

Paremos aqui, para que nos fique nos ouvidos este jovial rumor de beijos, de risos e de vozes de alegria, porque, a prolongarmos mais a narração, vêl-o-hiamos abafado pelos sons revolucionados e anarchicos da philarmonica da terra, que não tardará a festejar a nomeação do conselheiro, e sobretudo pelo estridor da tuba do mestre Pertunhas, tuba verdadeiramente épica, e capaz de mudar a côr ao gesto, como a de que fala o poeta.

Fechemos pois aqui a historia, dando apenas succinta conta dos acontecimentos ulteriores.

CONCLUSÃO

O conselheiro partiu no dia seguinte para Lisboa, para tomar parte na pilotagem da nau do Estado. Estive tentado a dizer, para satisfação de animo dos meus leitores, que, sob a direcção dos talentos e aptidões do novo estadista, se locupletou a fazenda publica, prosperou a agricultura e a industria, refulgiram as artes e as lettras; e que Portugal, como a Grecia, sob Pericles, causou o assombro das nações do mundo.

Mas receiei que, phantasiando no nosso paiz um governo fecundo e prospero, a inverosimilhança do facto prejudicasse no espirito dos leitores a dos outros episodios narrados, e, lhes entrasse com isto a desconfiança no chronista. Resolvi pois ser franco, declarando que sob a direcção do conselheiro e dos seus collegas, Portugal regeu-se, como se tem regido sob as duzias de ministerios, que nós todos havemos já conhecido.

O conselheiro, já ministro, voltou tempos depois á aldeia, para assistir aos casamentos de Magdalena e de Christina, que se verificaram no mesmo dia.

Christina e Henrique foram viver para Alvapenha, para condescender com D. Dorothéa, que não podia resignar-se a viver só.

Sob a superintendencia do novo administrador, transformou-se completamente a quinta, e é hoje uma das mais rendosas e bem geridas propriedades d'aquelles sitios.

Henrique, o elegante do Chiado, o frequentador do Gremio e de S. Carlos, está um rico e laborioso proprietario rural. Apaixonou-se pela agricultura, e promette realisar o typo do antigo patriarcha.

Cumpriu-se a sua visão.

Das mil e uma molestias, com que saira de Lisboa, já nem memoria lhe resta.

Christina, além de ser adorada pelo marido, vê-se rodeada pelo amor e carinhos de D. Dorothéa e de Maria de Jesus, as quaes, sem o menor despeito, a viram tomar o sceptro da realeza domestica, que usa com adoravel brandura, desenvolvendo de dia para dia os seus talentos de mulher.

No Mosteiro não correm peor as coisas, sob os cuidados de Augusto e de Magdalena, que ahi ficaram, por exigencias de D. Victoria. Augusto, além de se occupar de agricultura, alimenta a imaginação, já não a fazer versos, mas em outra fórma de poesia: a organisar a escola sob bases mais racionaes, e dotação mais fecunda; a generalisar e educar os processos agricolas; a implantar industrias novas.

É assim que a sericultura, graças aos seus cuidados, é hoje alli cultivada com bons resultados, e outras já principiam a ensaiar-se.

Magdalena é sempre a mulher que foi; se é que as nobres qualidades já reveladas nos seus actos de juventude, não se vão caracterisando inda melhor, á medida que de mais graves deveres se incumbe a sua missão de mulher. Intelligencia temperada por um bom senso natural, que a educação esmerada não estragou, como a tantas acontece, caracter apaixonado, mas de trato affavel e insinuante, meiga sem indolencia, grave sem severidade, acompanha-a o encanto que a todos prende, que não faz sentir a ninguem o peso da obediencia.

É hoje quem tudo dirige no Mosteiro; querida pelos primos, querida por D. Victoria, adorada pelo marido e abençoada pelo povo, que soccorre com esmolas e conselhos, pode bem dizer-se que reina n'aquelles sitios.

D. Victoria resignou na sobrinha todos os encargos domesticos, salvo o direito de ralhar com os criados, que ella sustenta serem os peores do mundo; prompta sempre a intervir a favor de qualquer d'elles, quando despedidos.

Em relação ás personagens secundarias d'esta historia pouco teremos a dizer.

O brazileiro fez as pazes com o conselheiro, porque este, logo que entrou para o ministerio, mandou lavrar o decreto em que se nomeava visconde de não sei quê o seu antigo inimigo. Foi este o primeiro acto politico do gabinete, que o paiz ingrato teve a sem-razão de não applaudir.

O brazileiro, em paga, entrou com Augusto em competencia de melhoramentos locaes, com grande proveito da aldeia.

O sr. Joãozinho, em vista d'esta fusão de partidos, achou-se encorporado na liga, e em pouco tempo teve occasião de demonstrar de novo a sua influencia eleitoral, trazendo compacta á urna a freguezia de Pinchões, para reeleger o conselheiro que, pela sua nomeação, perdera o logar de deputado. D'esta vez ninguem lh'o disputou, e era edificante vêr o brazileiro ao lado do Tapadas, esquecidos antigos odios, votando de commum accordo e de boa harmonia.

A reconciliação entre dois adversarios commove sempre a alma.

O sr. Joãozinho não mudou de habitos, e cada vez tem mais dividas, mais cães e mais bebedeiras.

O Pertunhas foi perdoado, e continua imperturbavel nas suas funcções de ensino e na commissão do correio, odiando os irmãos Virgilios e desafogando as suas mágoas na embocadura da trompa.

O homem queixa-se de ter sido victima de uma vingança. Confessa que por brincadeira tirára uma carta da pasta de Augusto, mas que a tornára a collocar no seu logar e por isso...

A familia Zé P'reira vae em rapida decadencia; o homem já nem tem fôrça para fazer resoar o zabumba. É esta uma das que mais deve á caridade de Magdalena.

O conselheiro, ainda hoje no gôso imperturbado dos votos unanimes d'aquelle circulo eleitoral, vem de quando em quando retemperar o animo exhausto nas fadigas parlamentares e nas diversões da capital, no seio da sua feliz familia, e volta melhor.

Angelo, logo que principiam as ferias dos seus estudos superiores, corre com alvoroço de creança a gosar na aldeia os dias que elle já pressente terem de ser os mais felizes de toda a sua vida.

A quinta dos Cannaviaes, á qual andam ligadas suaves recordações dos dois venturosos pares, que os incidentes d'esta historia reuniram, foi transformada por Magdalena n'uma habitação de recreio, onde as duas familias celebram, durante o anno, algumas festas em commum.

Estes melhoramentos vieram confirmar o titulo de que Magdalena havia muito estava de posse.

E hoje é ella ainda entre a gente do povo conhecida pelo nome de «Morgadinha dos Cannaviaes».

FIM DO SEGUNDO E ULTIMO VOLUME


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