COMEDIA BURGUEZA

O SALLUSTIO NOGUEIRA

ESTUDO DE POLITICA CONTEMPORANEA

POR

TEIXEIRA DE QUEIROZ

Nova edição, completamente refundida, e com uma nota

de CAMILLO CASTELLO BRANCO

ácerca d'este romance

PRIMEIRA PARTE

1909

PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA

LIVRARIA EDITORA

Rua Augusta, 44 a 54

LISBOA

PRIMEIRA PARTE

La plupart des drames sont dans les idees que nous nous formons des choses. Les événements qui nous paraissent dramatiques ne sont que les sujets que notre âme convertit en tragédie ou en comédie au gré de notre caractere.

EXPLICAÇÃO

Corrigir um livro, que se julga imperfeito, é caso de gosto artistico e dever de caracter moral para o seu auctor; mudar-lhe o fundo, alterar-lhe a concepção inicial equivaleria a edificar imaginado edificio moderno, sobre paredes velhas a derruirem-se. Taes reconstrucções poeticas, só se consentem para reviviscencia de lendas, em que a alma collectiva tenha collaborado accrescentando prestigio e encantos.

Melhorei o romance O Sallustio Nogueira até onde me foi dado reconhecer-lhe os defeitos. Todo o trabalho teve como proposito dar impressão cabal do meu pensamento, aspirando a crear na alma do leitor um estado equivalente ao estado da minha alma. A simplificação do estylo, joeirando-o de futilidades pretenciosas, infantis e enganadoras, tem sido a preocupação constante do meu estudo. Esse esforço só me tem feito comprehender as bellezas dos grandes mestres. A transparencia luminosa da palavra humana deve cingir-se intimamente e com harmonia musical ao pensamento com nitidez concebido: -- esta é a regra; quem melhor a applicar será o escriptor maximo. A idéa no seu brotar é obscura, mas pela reflexão aclara-se. N’este momento especial deve ser vestida, dar-se-lhe fórma tangivel. Succede á nossa idéa o mesmo que á nascente d’agua, quando emerge da terra: o primeiro jacto é turvo de impurezas, mais tarde corre limpida, e n’esse estado deverá ser colhida para nos apagar a sede. No trabalho de escrever é sempre proveitoso, quanto amor se empregue em obter a gotta translucida.

O que vulgarmente se chama processo litterario d’um romancista consiste no desenho ou traço para tornar pratico o pensamento global. Cada um tem o seu; porém a experiencia propria e alheia trazem conselhos attendiveis, que devem ser aproveitados, como nos aconteceu ao revêr O Sallustio Nogueira, em que despresamos ou accrescentamos particularidades, consoante a impressão que procuravamos dar. O que era structura geral ficou a mesma nos personagens e seus caracteres, nos conflictos e scenas em que a vida do livro corre, e até no numero dos seus capitulos e conclusão. Repito: o que procurei n’esta nova edição, com entranhado carinho pela verdade esthetica, foi dar mais firme, vigoroso e claro o meu pensamento inicial. Onde reconheci confusão e obscuridade methodisei, onde a fórmula da linguagem não era exacta ou era desharmonica substitui-a por outra, que me pareceu melhor. Terá sido tempo mal empregado, porque as melhorias não correspondam á diligencia?... Talvez, mas não me arrependo do que fiz, mórmente pelo goso experimentado ao descobrir novas maneiras de me exprimir; por dispensar pormenores desnecessarios e encontrar outros, que acrescentaram o relevo dos lances do drama.

Lisboa, 1909.

Teixeira de Queiroz.

ERRATAS

NOTA.-- Apesar da cuidadosa revisão, é certo apparecerem n’esta nova edição d 'O Sallustio Nogueira erros lamentaveis, por serem simples e até grosseiros: comprimento em vez de cumprimento, expontaneo por espontaneo e outros ainda. A que devem ser attribuidas taes culpas? A' typographia que não observasse as emendas, ou á ultima revisão? Talvez ás duas. Porém, como a sentença latina diz que o erro é proprio do homem, ao leitor, que é intelligente, se pede a substituição. Para as graves faltas do auctor, que serão por certo de superior monta, para essas, não se pede nem perdão, nem desculpa. Atirem-lhe.

O SALLUSTIO NOGUEIRA

(estudo de politica contemporanea)

I

A primeira vez que Sallustio Nogueira entrou na camara dos deputados, como eleito do povo, foi sob o patrocinio de uma senhora, D. Josefa Lencastre, que num baile de caridade, no Club, disse ao ministro da guerra:

-- Tenho um grande favor a pedir-lhe, general.

O conselheiro da corôa adorava-a. Inclinou-se cheio de respeito, pronunciando em voz commovida:

-- Que prazer, minha senhora, que grande prazer! Ainda que fosse preciso vencer uma batalha!

A sobrinha da viscondessa de Aguas-santas, affectando engraçadamente certo medo, observou:

-- Não diga isso! Agora que se falla tanto de guerra, poderão julgar que eu tambem sou contra os francezes como minha tia. O meu caso é mais simples...

-- Ouvirei -- disse o general com a voz séria de um homem ponderado.

-- Mas faz-me o que lhe vou pedir?

O ministro da guerra ficou pensativo. Só depois de muita reflexão pronunciou:

-- É negocio de politica interna, ou de politica externa?!

A sobrinha da viscondessa de Aguas-santas pareceu um tanto enleada. Passado um silencio, certificou resolutamente:

-- Ah!... é de politica interna.

O general, com ar mais penetrante, ainda perguntou:

-- Vossa excellencia sabe dizer-me se será coisa dependente do ministerio a meu cargo?!...

-- Ah!.. deve ser -- disse D. Josefa Lencastre com alguma incerteza.

Em virtude d'esta resposta o conselheiro d'estado affirmou com voz decisiva:

-- Seja o que fôr. Porei sobre esse negocio a minha pasta.

-- Então ahi vae o meu pedido: eu quero que o senhor me faça um deputado

Durante um minuto olharam-se muito sérios... O general, porém, rompeu n'uma gargalhada expansiva e um tanto grosseira, chacoteando d'aquelle innocente pedido:

-- Ora adeus!... Era isso ?! Deputados !... faço-lhe dois... faço-lhe vinte de uma vez, se vossa excellencia m'o pedir

E n'um enthusiasmo de expressão rematou inconsideradamente:

-- Faço lhe um ministro aqui de prompto. O presidente de conselho não irá contra a minha vontade.

Quer vossa excellencia que eu lhe faça um ministro?!

Sentia-se loquaz diante da sobrinha da viscondessa, que se ria. Por isso, o general, latejando-lhe d'amor os labios tremulos, concluiu com modo respeitoso e voz de sentimento:

-- Que me pedirá que eu lhe não faça!? Por sua causa faria inclusivamente um rei!

-- Jesus, como está inconveniente! Olhe que nos podem julgar conspiradores!

E com entonação mais circumspecta e bem calculada, acrescentou:

-- Olhe, de rei... estamos nós muito bem servidos.

Entrava no salão do baile sua magestade, levando á

esquerda o conde de Frazuella, presidente da commissão promotora da festa. O hymno real rompeu estrepitoso, caíndo em ondas sonoras da varanda, onde estava a orchestra. As senhoras em pé, diante das suas cadeiras, e os homens amontoados, em curva respeitosa, formavam um assentimento unanime! O monarcha, homem baixo, de tronco grosso, pescoço curto, vestido de simples casaca preta e a banda de Christo ensanguentando-lhe a alvura da camisa, caminhava firme. O seu olhar branco de cordialidade espalhava-se indistinctamente, sorrindo para todos, não desejando dar preferencia a nenhum dos lados. Com a sua apparencia reservada, franzindo ligeiramente os grossos beiços bragantinos por baixo do pequeno bigode loiro, desejava significar a maior imparcialidade, a mais bem ponderada consideração por todos que ali estavam reverentes, representando uma opinião submissa e valiosa. N'este momento o monarcha presentia quanto era acatado pelo seu povo, e como, n'aquelle baile e no paiz, os sentimentos de fidelidade ás instituições, que a sua pessoa resumia, eram profundos, indestructiveis e antigos! Compenetrado d'esta grande verdade, o rei caminhou resolutamente para os quatro fauteuils carmesins que estavam ao fundo, por baixo de um grande espelho... O espelho duplicava o salão e os personagens que iam em sentido contrario ao das suas imagens; mas com identicas expressões faciaes!... Grande espanto do infante, irmão do monarcha, que apreciou este phenomeno sorrindo-se com intelligencia... Considerou que tambem vinha na outra comitiva, mas enleava-o o caso de vêr que os seus movimentos pendulares habituaes, eram inversos d'aquelles, que sua alteza suppunha dar a si mesmo. El-rei, seu pae, percebendo-lhe no rosto esta ligeira confusão, cofiava lentamente a farta pêra, sorrindo com tranquillidade.

As pessoas reaes sentaram-se nas largas cadeiras, afastando burguezmente as abas das suas casacas pretas. A falta de sua magestade a rainha que promettera abrilhantar com a sua elegancia fidalga, com a sua magreza distincta, com a sua toilette cara, este baile de caridade em beneficio de um asylo, era muito commentada. A explicação correra logo nas salas. Um dos camaristas d'el-rei fôra-a levar officialmente ao conde de Frazuella. A esposa do chefe do estado achára-se indisposta antes de jantar. Não saíra, depois, dos seus aposentos, onde lhe foi servido um simples caldo, um bocado de peito de gallinhola, um pequeno copo de chablis. O medico de serviço dera-lhe o conselho de se conservar, por dois dias, no ar temperado dos seus aposentos, no tepido aconchego das suas martas e receitára-lhe a leitura distractiva de qualquer livro futil. Apesar d'isto, a inesperada noticia sobresaltou e todos procuravam solicitos informações directas. Pessoas que mal conheciam as damas do paço e os camaristas, aproveitavam sofregamente esta occasião para lhes fallar, mostrando excepcional solicitude. As respostas eram affaveis, tranquillisadoras, dadas em voz suave, com singeleza sympathica e benevolente. Não fôra quasi nada. Em breve, sua magestade estaria completamente restabelecida. Era muito sujeita a estes ataques subitos, em que entravam para muito os seus melindrosissimos nervos. Qualquer ligeira circumstancia a alterava:--a vista de uma pessoa desagradavel, a narrativa de um caso triste, uma contrariedade independente da vontade dos homens, como o haver chuva quando sua magestade queria sol, ou apparecer o sol quando a rainha desejava chuva. Isto dava-lhe logo a enxaqueca, vinham-lhe alterações de appetite, desejos extravagantes. Era um feixe de nervos, como diziam os medicos do paço. Devia-se lamentar que uma senhora, tão excepcionalmente bondosa, estivesse dependente d'estes imprevistos casos.

Porém, muitas pessoas que haviam concorrido ao baile exclusivamente para terem o prazer de estar, uma vez, na mesma sala onde se encontrava a rainha, sentiam-se irritadas. Era uma diminuição no seu goso, olhavam desoladamente para tudo! Algumas senhoras, escassas de meios, tinham mandado fazer vestidos novos; para quê?! Bem sabiam o que aquillo significava -- não quizera vir, não estivera para maçadas! A culpa tinham-n'a ellas; mas não tornariam a caír em outra. O proprio Lioncio de Mertola -- rico negociante de trigos -- que acceitára o logar de membro na commissão promotora, só com o fim de pedir licença á rainha para lhe apresentar sua filha, estava furioso! Com as mãos mettidas nos bolsos foi junto de Palmira dizer-lhe:

-- Ein?!... Que te parece?! Esta espiga. Peçam-me outra vez que eu lhes darei a resposta! O meu dinheiro gasto para nada! Eu lhes darei a resposta. Peçam-me outra vez!

E apartou-se, n'um espirito rebelde, desejando fomentar a indignação em toda a sala.

Porém alguns mais timidos, e principalmente diante de individuos e de senhoras que frequentassem a Ajuda, exclamavam:

-- Ora sua magestade não vir!...

-- Na realidade é uma pena. Esta salla ficou deserta.

-- Será de grande cuidado o incommodo de sua magestade?

-- Creio que não. Coisa de nervos. -- respondiam.

Ao fundo da sala, ainda sentados nos fauteuils carmesins, os membros da familia real cavaqueavam, planeando uma caçada a Villa Viçosa. Seria um divertimento pacato, sem o fausto dos antigos duques, sem os monteiros e as grandes matilhas. Simples distracção motivada pelo desejo de sair de Lisboa e com o fim de matar algum gado, que n'esse anno abundava, faltando pastagens. Do incommodo da rainha não se lembravam, pois sabiam não ser de consideração. Esse successo, que poderia ter causado algum resfriamento na festa, desvaneceu-se consideravelmente na sua importancia, quando todos viram na primeira quadrilha o monarcha conduzir, com donaire gerarchico, a elegante condessa de Frazuella--uma mulher de distincção, que aprendera nas cortes estrangeiras a arte de dominar. Os hombros nús principiaram a misturar-se com as graves casacas pretas, de entre as quaes resaltavam as verberações das fardas e das condecorações. A maioria dos individuos presentes reconhecia-se feliz, por ter na mesma sala, n'um nivelamento de occasião, aquelle, cujas regias virtudes, prudencia e sagacidade governativa, lhes era um seguro penhor de inexhauriveis felicidades. Porém, quem mais funda e energicamente sentia esta verdade, era Sallustio Nogueira, o protegido da Josefa Lencastre. O seu desvanecimento, a vaidade que enchia a sua rica organisação provinciana, dava-lhe este primeiro impulso para a admiração da grandeza! Inconscientemente, attrahido por uma força a que cedia com prazer, approximava-se d'el-rei sentindo um goso infinito, uma energia vibrante em todos os nervos, quando de perto escutava a pausada voz bragantina do monarcha Este quasi contacto de uma pessoa, que para elle resumia o fausto, o brilho, a ostentação dos seus bellos sonhos de juventude, dava-lhe audacia, fazia-o sentir que em si tinha um poder, uma vontade temeraria. O seu olhar adquirira rapidamente crispações dominadoras, a linha erecta do seu tronco denotava superioridade recondita! Aspirava a longos tragos este ar embalsamado de opulencia, tremia de goso só ao pensar que um dia poderia ouvir confidencias do monarcha, como aquellas que ora escutava o representante de Inglaterra, a cujo braço el-rei se apoiava com benevola familiaridade.

A D. Josefinha Lencastre fez notar tudo isto ao general, dizendo-lhe:

-- É aquelle. Ha de ser um bonito deputado! Minha tia diz que póde dar um ministro.

-- D'aquella massa se fazem--respondeu sentenciosamente o conselheiro.

-- Não vê como está fanatisado com a figura de sua magestade?! Conhece o poder das tradições. Honra a memoria de seu pae, que foi um dos que morreu pela Carta, segundo tenho ouvido.

-- Nas linhas do Porto?

-- A tanto não chega o meu saber.

-- É porque, se foi nas linhas do Porto - tornou com penetração o general -- eu devo conhecer o pae d'esse rapaz. Tambem por lá andei e bastas vezes as ouvi zunir por aqui.

E passou de raspão a mão em gume pela orelha direita, querendo d'este modo significar o silvo perigoso das balas. Josefa Lencastre observou-lhe:

-- Ora que mania essa de conhecer toda a gente, e de acreditar que estiveram nas taes linhas! O pae do meu protegido era homem obscuro. Minha tia, que o conheceu, é que diz ter elle morrido pela Carta. Lá onde foi, é que eu não sei, nem se me dá... Mas deixemos o caso triste. Faça-o deputado e elle lhe contará depois tudo.

E mudando rapidamente de tom, perguntou:

-- Não dansa hoje ? Ande, vá dansar, arranje par.

-- Eu...-- volveu com desdem o ministro da guerra -- faço mal essa coisa.

-- Talvez queira dizer como Napoleão, que nasceu antes para fazer dansar os outros!

-- Não é isso... Não me ageito com macaquices. Só quando me obrigam.

-- Então sou eu que o obrigo. Parece mal um ministro não dansar. Vá arranjar par, ande.

-- Então ha de ser vossa excellencia...

-- Que modo tão simples de convidar uma senhora!...

-- Desculpe -- pronunciou submissamente. -- Eu não sei dizer as coisas como esses... rapazes; mas tenho um coração..

-- Bem sei, um coração leal...

-- Mais do que isso, D. Josefa, mais do que isso! -- pronunciou o ministro com emoção.

-- Bem -- cortou a sobrinha da Aguas-santas -- não me faça declarações. Quer dansar comigo ? Pois seja, arranje vis-à vis.

O general Gonçalo estava rubro e confundido. O seu grande ventre continha-se-lhe a custo no cinto marcial. O farto bigode negro reluzia como o verniz das suas botas, que lhe tyrannisavam os joanetes das antigas marchas. Foi por entre os grupos dispersos no salão procurar um dos collegas no ministerio. Muitos individuos o detinham para terem a honra de o cumprimentar... O general correspondia com apertos de mão, com sorrisos monossyllabados. Na sala de fumo parou diante de um fauteuil onde estava, abandonado a certa preguiça, um homem extremamente magro, cujos ossos se sentiam atravez dos tecidos, sorvendo langorosamente um charuto, seguindo com os olhos vagos o jacto de fumo, que lhe saía da bôca e se diluia na atmosphera. Era o ministro da marinha, a quem disse:

-- Ouve lá. Tu fazes-me de vis-à-vis n'um raio d'uma quadrilha?

-- Não -- respondeu seccamente Evaristo de Mello.

-- E que não vejo ahi mais ninguem...

-- Pois não danses. Faz como eu.

-- Mas se estou compromettido.

-- Ora que tenho eu com as tuas asneiras? Não te compromettesses.

N'este momento, entrou Albano de Mello, seu sobrinho. Condoendo-se do general, Evaristo disse-lhe apontando o rapaz:

-- Olha, entende-te com elle, que é mestre n'essas coisas de pernas.

Foi uma redempção para o ministro da guerra. Albano, verdadeira reputação de sala, valsista insigne, director do cotillon em muitos bailes de Lisboa, encarregou-se de arranjar tudo e tranquillisou o general, que lhe confessara entender pouco de dansas.

-- Deixe estar, fica por minha conta -- certificou o brioso empregado da Junta de Credito Publico, rapaz de cabelleira annelada e luzidia.

Bem confiado no sobrinho do seu collega, foi buscar Josefa para darem uma volta pela sala, que atravessaram com imponencia, affectando conversa animada!...

O conselheiro d'estado andava a passinhos miudos, muito ceremoniosamente, afastando com decencia o seu corpo obeso do franzino talhe do seu par. Os malditos joanetes principiavam em grita; mas elle não os queria sentir. Porém reconhecendo que certos peralvilhos de bigode retorcido se agrupavam para commentar a sua cabelleira postiça, endireitou energicamente o tronco, olhando-os obliquamente... Como percebesse que fallavam do seu par com sorrisos de malicia, passou-lhe pela cabeça a idéa de os correr a pontapés. Ah! que se não fossem as conveniencias!.. Porém a sua respiração alta, o rebolar dos bogalhos nas orbitas, o resfolgar das narinas, a vibração colerica dos seus beiços... chamou a attenção de Josefa, que lhe perguntou!

-- Que tem, general?!

-- Ainda sou homem para os arrebentar! -- desafogou.

-- O quê ?!..

-- Nada, minha senhora!. Cá uma coisa!...

E affectou sorrisos de homem amavel, procurando na memoria todas as expressões banaes com que podesse entreter a sua amada. Porém só lhe occorriam idéas de combate. Aos seus olhos sombreados por sobrancelhas espessas, refluia o sangue n'uma temperatura de febre! Se elle quizesse podia ir buscar a espada e correr á pranchada meio mundo, fazendo um estardalhaço de mil demonios! Porém tinha Josefa pelo braço, estava ali dentro a familia real e a melhor sociedade de Lisboa!... Tudo quanto fizesse para castigar os sorrisos dos imbecis, seria forte asneira. Dominou-se. Com uma habilidade quasi inconcebivel no estado violento do seu espirito, entrou na pequena sala azul, onde se encontrava menos gente.. Porém o seu olhar faiscante brilhava como as condecorações que lhe cobriam o peito. As narinas resfolgavam-lhe..

-- Tem alguma coisa? -- indagou de novo Josefa Lencastre.

-- Não é nada. Bastante calor..

Veiu tiral-o de uma explicação difficil, que se ía tornando imminente, a chegada de um ajudante d'el-rei, que se approximou em attitude militar, dizendo em voz de timbre claro:

-- Sua magestade ordenou-me para dizer a vossa excellencia que lhe dava a honra de o ter por seu vis-à-vis n'esta quadrilha.

A sobrinha de Aguas-santas impallideceu subitamente! O seu vestido de faille côr de rosa, com rendas de pequeno valor, não era para dansar em frente d'elrei, que de certo teria a seu lado alguma senhora rica e altamente collocada, talvez a ministra de Hespanha, que á belleza natural da sua raça e aos seus frescos trinta annos alliava um nome historico e uma grande fortuna. Vêr-se-hia assim involuntariamente diminuida e até ridicularisada por muita gente. Não o tolerava a sua vaidade de mulher formosa e obscura. Disse logo ao general que arranjasse outro par. Porém elle com semblante energico significou-lhe que sustentaria a preferencia, mesmo com o risco de desagradar a el-rei. Pediu licença para ir agradecer a sua magestade a honra que lhe tinha concedido. O monarcha conversava com seu pae na sala que lhes era reservada. O ministro curvou-se, dizendo:

-- Meu senhor, agradeço a distincção...

-- General -- interrompeu el-rei com pausa, distanciando as palavras -- é formosa aquella senhora com quem atravessou o salão.

-- Oh! meu senhor!... Vossa magestade viu-a?

-- Vi. Disseram-me que é sua noiva. E' verdade?

-- Linguas soltas, meu senhor...

-- E' seu par n'esta quadrilha?

-- Não sei se vossa magestade...

-- Com muito prazer. Ha de apresentar-m'a. A tia, a viscondessa d'Aguas-santas, já uma vez a vi na Ajuda.

O ministro da guerra saiu do gabinete radioso, vivaz e ligeiro. Atravessou o salão, arqueando as pernas para supportar melhor as malditas botas de polimento, que lhe apertavam cruelmente os joanetes. Com um dos seus ajudantes, que encontrou no caminho, desafogou: -- Tenho estes callos a ferver! Maus raios! Continuou aos pulinhos, como se tivesse um calcanhar doente. A vista de Josefa Lencastre deu-lhe nova coragem; approximando-se d'ella communicou-lhe:

-- El-rei quer que eu lh'a apresente. Onde estará sua tia...

Mas ella não respondeu. Sempre tão prompta, tão sagaz, tão viva na replica, emmudeceu perante esta exigencia. O ministro da guerra presumira que a sua amada se levantaria contente, orgulhosa por ter de ir á presença do monarcha! Mas ella continuava a julgar-se inferior, humilhada pelo que poderia succeder, olhando com desprezo para a sua toilette incapaz! Chegou a odiar severamente este importuno...

-- Mas disse-lhe que já tinha par!? -- perguntou ao general.

-- Pois se elle já o sabia!... Eu não sei quem foi. Não sei quem diabo foi! Sabe tudo!...

Então Josefa Lencastre observou, alludindo ao seu vestido:

-- Mas eu não estou em termos !...

-- E eu?!... pronunciou o general dando um relance de olhos aos pés opprimidos. -- Venha d'ahi... Onde estará sua tia que tambem devia vir. De mais a mais el-rei conhece-a. Disse m'o.

O ministro da guerra offereceu o braço a sua noiva que o não acceitou logo. Elle insistiu:

-- Venha, ande. Verá que não é de ceremonias... Muito chão. Grande coração! Fica-se encantado.

Porém, como a sobrinha da viscondessa continuasse a conservar-se sentada, offerecendo resistencia passiva, supplicou:

-- Não faça esperar. Palpita-me que este convite até foi por sua causa. Não sei quem foi que lhe disse. Sabe tudo. Um homem assim...

O assombro de Josefa foi completo! Como se poderia acreditar que tivesse sido por sua causa que el-rei tivesse convidado o general para seu vis-à-vis ?! Sua magestade de certo, apesar de conhecer a tia viscondessa, nunca pensára n'ella. Era esta a primeira vez que se encontrava n'um baile, onde compareciam as pessoas reaes. Sua mãe fallecera quando Josefa ainda estava no «Bom Successo». Seu pae, com quem passára os ultimos annos, era um velho colleccionador de livros e de conchas, que só a deixava ir a algumas «soirées» de familias inquestionavelmente pacatas. Depois que elle morrera, havia anno e meio, tinha vindo para casa da tia viscondessa e desde então é que frequentava mais alguma coisa... Porém, baile onde estivesse el-rei era o primeiro. No ultimo que houve no paço, esteve para ser apresentada e ir; porém a morte de um parente proximo obstára. Estas rasões eram sufficientes para a convencer que o monarcha nunca pensára n'ella.

-- Não sei, não sei -- volveu o general. -- Lá que elle me fallou em vossa excellencia é uma verdade ...

-- Mas isso foi por me ver pelo braço do general...

-- Seria, não sei. Fallou-me e até com muito agrado

E passado um momento, o ministro da guerra acrescentou:

-- Sabe tudo. Pois se até me disse que era minha... noiva -- rematou com difficuldade.

-- E o general que respondeu? -- indagou D. Josefa com interesse.

-- Que não era verdade... Que eram as más linguas...

-- E elle que disse? -- perguntou com vivacidade.

-- Não disse nada -- concluiu o ministro com seccura.

-- Ah!... -- pronunciou Josefa desdenhosa.

Acceitou o braço do general de má vontade. Se era

indispensavel ser apresentada a sua magestade sujeitava-se; mas ella preferia que o ministro da guerra fosse tirar outra, para aquella quadrilha. Sentia-se nervosa, inquieta, estava incapaz de dizer duas palavras. Preferia que o general procurasse uma senhora d'essas lá do Paço.

-- Está doida! Não sabe o que está dizendo. Vou chamar sua tia. El-rei ordenou.

-- Pois sim, mas eu não sei o que hei de fazer -- objectou contrariada e nervosa.

N'esse momento sentiram um ligeiro rumor. O general, voltando o pescoço, disse:

-- Olhe elle ahi está.

Era o monarcha que dava a sua volta no salão de baile pelo braço de seu pae, que olhava as pessoas lentamente, passando devagar a sua mão regia na farta pera.

A approximação dos monarchas, Josefa sentiu-se perturbada, e o general, curvando-se, pronunciou as solemnes palavras de apresentação, ás quaes el-rei respondeu:

-- Estimarei vel-a na Ajuda. Parabens, general.

Suas magestades passaram, e Josefa, sem dizer uma palavra, com os beiços exangues e o brilho dos olhos extincto, exclamou:

-- Sou uma estupida! Eu não dizia?!...

-- Mas que foi? -- consolava-a sua tia, que se approximára. -- El-rei fez-te uma distincção, filha.

-- Mas eu não lhe disse nada... Não lhe beijei a mão...

-- Ora!... Isso só se faz á rainha -- esclareceu o ministro da guerra.

Muitas outras pessoas disseram o mesmo, que ella tinha andado perfeitamente. Algumas affirmaram-lhe que sua magestade dissera a seu augusto pae:

-- E' galante, a noiva do general!...

-- E formosa -- confirmara com a sua voz nasal o outro monarcha.

Em todas as salas correu voz d'este acontecimento momentoso. Não era distincção que el-rei costumasse fazer a toda a gente, esta de pedir para lhe ser apresentada uma pessoa. Tiravam-se illações: uns diziam que fôra um meio de confirmar o casamento, ao qual a sobrinha da Aguas-santas ainda não tinha annuido definitivamente; outros emprestavam intenções reservadas a sua magestade, notando que prodigalisára a Josefa Lencastre palavras amaveis, durante a quadrilha... O caso fizera impressão e dava-se como provavel que, por uma graça especial do monarcha, suas magestades assistissem pessoalmente ao casamento do seu ministro, na qualidade de padrinhos.

Certo é que, a futura noiva, depois da quadrilha ficára radiante. Ungida das palavras do rei, que deviam ter para ella uma como perpetuidade de goso, sentia-se maior que as outras, que a invejavam. A sua vaidade de mulher formosa remexia-se-lhe brandamente dentro do seio, como uma cobra entre tepida folhagem em dia de primavera creadora. Não podia occultar o sentimento exuberante de ostentação que a enchia. O seu rosto animado, a vivacidade estranha dos seus olhos eram signaes que a compromettiam... que a denunciavam. Durante as horas memoraveis, que passou no baile, teve alguns espaços em que sentiu necessidade de apasiguar os nervos inquietos, e por isso foi procurar descanço no gabinete reservado ás senhoras, para sósinha se entregar a uma meditação agradavel... Ali, em frente das creadas anonymas, deixou voar a sua phantasia imaginando loucuras. Enterrada n'um fauteuil, com a cabeça apoiada na mão esquerda, emquanto que com a direita abria e fechava machinalmente o leque, soltou os seus pensamentos... Fóra, o sussurro ondeante do baile continuava, emquanto Josefa se apartava, cada vez mais de tudo, voando n'uma atmosphera de gosos desconhecidos e quasi incomprehensiveis, formada de grandezas humanas! Uma das creadas, vendo-a muito tempo n'esta posição fixa, cuidando que estaria incommodada, approximou-se para lhe perguntar:

-- Vossa excellencia tem alguma coisa? Quer que lhe traga chá?...

-- Não, muito obrigada. Estava cansada, já descansei.

E sahiu para o salão, radiante e feliz, indo sentar-se junto da condessa de Frazuella, que n'esta noite a considerou com attenções especiaes.

Porém, algumas senhoras das que mais viviam do que se diz no Paço e na atmosphera temperada das conversas maliciosamente discretas, faziam troça do que se passara, sorrindo por detraz dos seus leques. Aquella distincção d'el-rei fôra um desfructe. Era preciso conhecer bem o monarcha, para se apreciar o seu espirito picante e sagaz, n'aquella apparencia de bom homem. E fallando animadamente para darem interesse ás palavras, encareciam os altos dotes de raça e de elevada cultura, que possuia sua magestade com o seu valioso saber de cinco linguas!

Os que bem conheciam el-rei não ignoravam que ás vezes era observador como Luiz XI, n'outras conheciam-se-lhe as audacias cavalheirosas de Richelieu. Nos factos triviaes da vida interior do Paço, tinha malicias como Talleyrand e como o senhor D. João VI, seu avô, de quem contavam anecdotas e phrases memoraveis. Ora -- rematavam -- não era um homem d'esta tempera, grandemente letrado e artista, com o espirito eivado de todos os brilhantes defeitos de um sceptico, que iria dar consideração a uma lorpa, que não soubera inventar duas palavras de resposta. Algumas senhoras insinuavam que o espirito caustico de sua magestade a rainha se deliciava com as notas que seu augusto esposo lhe proporcionava, colhidas em flagrante, nos momentos de convivencia official com alguns dos seus subditos.

-- Os atrevimentos e as tolices d'esta rapariga, vão-nos dar muito que rir -- disse a ostentosa Souzel.

-- Então com a mordacidade bondosa d'el-rei!... -- completou a grande Maria da Soledade.

Algumas amigas de Josefa ouviram estas palavras de mofa. Levadas por um forte espirito de classe foram-se agrupar do outro lado do salão, rindo-se n'um sentido de desforra. Aquellas beatas de sacristia, aquellas lacaias do paço, que se importavam com as generosas attenções do monarcha? Provavelmente só ellas as mereciam, só ellas eram gente !... Ora não ha!... Sua magestade havia de estar farto de caras amarellentas... Teriam só ellas o previlegio de conversar com el-rei ? Inveja é que era, mas haviam de cegar.

-- Se olha mais para nós, é porque gosta mais de nos ver -- disse a Palmira Freitas.

-- É porque vocencias tem formosura e espirito, que el-rei sabe muito bem apreciar -- concluiu Albano de Mello.

-- Bravo, bravo! -- applaudiram em unisono.

A phrase teve successo. Foi applaudida com os leques nas palmas das mãos. Muita gente olhou para lá, mas o sussurro do baile absorveu aquelle ruido. O ou-ou... das vozes, o roçar das sedas, o multiplicado bater dos tacões no soalho, as risadinhas meticulosas... misturavam-se, interferiam, sommavam-se para dar o brrrou-ahl... das conversas misturadas. O calor nas salas era abafante, opprimia o peito, excitava a pelle. As damas decotadas expunham os seus hombros nús, os seios fracamente cobertos de tecidos transparentes... Os homens sentiam a excitação que vinha de cada uma d'ellas, exprimindo-a para si em pensamentos peccaminosos... Havia um cheiro complexo e inextrincavel de perfumes, de flores, das exhalações carbonicas da pelle e da respiração, dos arbustos que enchiam as escadas e o atrio, dos festões de verdura que guarneciam o salão de baile, cahindo em cachos das humbreiras. A poeira levantada no redemoinho das valsas, engrossava o ar que era da espessura d'uma nevoa. A atmosphera excitante encandecia, a luz tinha reverberações iriadas de sol poente, a conversa provocava os nervos, os maus vinhos produziam perturbações nos cerebros. O brilho de joias era intenso nos pescoços das senhoras ricas. Faiscavam os diamantes junto do tom moderado e solemne das fardas agaloadas e das casacas pretas. O macio das perolas e as pequenas manchas escuras das esmeraldas e das amethystas sobresaíam sobre a pelle nova e bem tratada de algumas meninas. Ondulavam no espaço desejos tenebrosos, que saíam gritando do fundo d'aquellas organisações provocadas, esmorecendo por fim na impotencia da occasião!...

A orchestra, do alto da varanda, fazia ouvir o som ronceiro dos violinos, gastando-se na valsa magnetisadora. Os rabequistas, homens magros, alguns idosos, muitos de luneta na ponta do nariz, barba bem feita, os magros pescoços amparados em collarinhos altos, olhavam por cima dos lentos arcos para os valsistas, que passavam rapidos levando nos braços magnificas mulheres, n'um impeto de loucura e de amor. Alguns conheciam-nos elles perfeitamente e até os tractavam por tu: -- era o Fonseca da alfandega, grande parceiro na Perna de Pau, em dias de pandega. N'esta noite de luxo burocratico, misturava-se galhardamente ás melhores distincções da côrte, da politica e da finança; era outro o Torres do ministerio do reino, critico theatral de polpa, que em S. Carlos se sentava perto d'elles e lhes fallava trivialmente da sua especialidade, que era a musica. Ambos rapazes levados de mil diabos, gabarollas, namoristas e seductores, tendo na vida historias interessantes, ricas em adulterios. Principalmente o Fonseca, que melhor conheciam, era um verdadeiro leão. Estivera para fugir com a filha de um fidalgo morador na Junqueira, rapariga formosa e louca, que depois casou com um brazileiro rico, tornando-se amante de um medico, pelo que o marido a levou para França. A um dos musicos parecia-lhe que o Fonseca se correspondia com esta dama, pois que no ultimo anno esteve para ir a Paris, e não foi por não ter cem libras para despezas. Podia muito bem levar menos dinheiro; -- opinava o do violoncello conversando n'um intervallo com o da flauta -- mas o Fonseca era gastador como mil demonios e queria passar bem, gastar á grande!

Alguns musicos mais obscuros escutavam isto attentamente, sem fallarem. Limitavam-se a contemplar com certa amargura aquelles homens felizes, que íam gosando a vida de um modo tão estrondoso. Ah! as desigualdades sociaes ! Aquelles prazeres não eram para elles, tristes párias no meio d'este mundo dissoluto, destinados na enfadonha viagem da vida a moer perpetuamente valsas, atravez de bailes de mascaras no entrudo. Que terriveis sonhos não sonhavam ás vezes, vasios de gosos reaes e que se esvaíam ao primeiro acordar da manhã!

Os braços amantes íam-se dando reciprocamente, n'um assentimento publico. O requinta e o trompa, dois musicos da municipal, beirões de sangue escandecido, enviavam para a sala catadupas de idéas sensuaes junto com as notas estridentes dos seus instrumentos. Um celibatario adunco e severo, que tocava clarinete, não tirou em toda a noite a vista da Josefa Lencastre. Seguia-a avidamente em todos os momentos e, ás vezes, de tal fremito se sentia possuido em todos os seus nervos, que os sons tirados do instrumento se amorteciam n'um silencio spasmodico, conservando-se elle com o clarinete pendurado, o olhar embrutecido como um fanatico! Não que a conhecia muito bem, era sua vizinha... Elle morava na rua de S. Bento em frente da casa da viscondessa de Aguas-santas e quasi todos os dias contemplava Josefa pela fenda da janella calculadamente entre-aberta, gosando-a no incompleto resguardo da toilette da manhã! Quantas vezes isto acontecêra, quantas vezes procurára surprehendel-a em momentos de descuido! Só elle o sabia! Só elle, Deus e a velha creada, sua confidente!...

II

O casamento da sobrinha da viscondessa de Aguas-santas recebeu, como disse o proprio noivo, a regia approvação no baile do Club e verificou-se mezes depois. Estava todo o ministerio, um ajudante d'el-rei e um camarista da rainha representando suas magestades, amigos da familia da noiva e do general. Sallustio Nogueira, já então deputado, appareceu com o seu ar imponente, fallando com animação a toda a gente:--era um rapaz vivo e de approximação facil, e por isso bem depressa se familiarisára com pessoas importantes, depois de ter sido apresentado a varios politicos pela viscondessa. Em seguida á ceremonia do casamento houve lunch na casa da rua de S. Bento, servido pelo Ferrari, que se esmerou. Cerca das quatro horas da tarde, os noivos, n'um discreto coupé de cortinas azues corridas, partiram para Cintra, onde tinham quartos prevenidos. Como ainda não era a estação, o general e sua gentil esposa passaram n'aquelle local quinze dias, quasi sósinhos. O seu unico companheiro de hotel, durante este tempo, foi um inglez velho e rijo, que estava em casa o tempo propriamente necessario para comer e dormir. Logo ao amanhecer, com o seu pau ferrado, que trouxera do Monte Branco, e com o guia debaixo do braço, saía a dar um largo passeio, voltando para o almoço. Depois desapparecia até ao jantar, que era á noite, e adormecia profundamente, tendo acabado de ler com paciencia alguns dos artigos do Times e da Saturday review.

A noticia do casamento do ministro da guerra foj dada com grande pompa pelos jornaes affectos ao governo. Frisava-se a circumstancia valiosa de os monarchas serem os padrinhos, fazendo-se representar na ceremonia. Affirmavam ser este um signal de quanto o ministerio tinha a confiança da corôa. Entendiam que um largo futuro de venturas estava reservado ao general Gonçalo e a sua esposa, e faziam votos para que os dois conjuges tivessem a estrada da vida sempre juncada de flores primaveris. Estas palavras innocentes provocaram fartura de ironias. Largo futuro o de um velho repintado, que poderia morrer, sem surpreza, na primeira semana de noivo. Estrada juncada de flores primaveris a de um homem que devia usar flanella junto á pelle e de certo dormia com botija! Que riso! Elle que ás vezes estava semanas inteiras preso na cama com fortes ataques de gôta, sendo depois d'essas crises encontrado no jardim da Estrella, a passeiar ao sol pelo braço do camarada, devia ter na realidade um largo futuro e uma linda estrada, juncada de flores primaveris -- sublinhavam.

Josefa Lencastre, aquella mulher de sangue quente, aquella formosa doida, havia de ser a botija e o camarada do general!... Ora adeus! O que ella devia continuar a ser era uma mulher adoravel, um encanto, uma provocação aos corações apaixonados... Aquella cabeça leve e aquelles olhos, que quando fitavam sérios tinham a profundeza mysteriosa das noites escuras, continuariam a tornal-a seductora, ferozmente seductora--concluia o folhetinista Cerveira.

-- Tem as seducções mephistophelicas de todas as Margaridas! -- pronunciou com emphase José Torres, o famoso critico theatral.

-- Desconfio-lhes muito da intimidade d'aquelle Sallustio Nogueira--alvitrou o seductor Fonseca, empregado da alfandega. Elle veio de Coimbra e basta!

Porém o novel deputado, pensava sómente na politica da Nação. Todas as noites sentia ambições illimitadas de poder. Via-se, em sonhos, rodeado de politicos fallando com auctoridade; ás vezes ia soberbo e bem recostado em carruagem da companhia, seguido de um correio que trotava! Tinham-no feito deputado e não tardaria ser ministro. Esta sumptuosa palavra resumia um mundo de aspirações e desejos. N'ella achava condensadas todas as felicidades humanas. Vinha-lhe de longe esta preoccupação de predominio. Em Coimbra entrára, desde caloiro, nos renhidos combates das eleições da Philantropica e do Club Academico. Aqui fôra verdadeiramente a sua iniciação. Nenhum dos seus contemporaneos tinha maior fama de saber viciar esse acto eleitoral inoffensivo! As artimanhas de Sallustio e os seus engenhosos processos de roubar as votações, tiveram celebridade entre os proprios lentes, seus amigos. Impingir listas, substituir urnas, fazer protestos, sophismar a lei, pedir votos promettendo mezadas da Philantropica, fomentar desordens para annular o acto eleitoral, quando este lhe poderia ser contrario... eram coisas que executava com presteza e com talento. Depois, publicamente, diante dos seus parciaes e dos inimigos explicava com clareza o modo como conseguira chegar ao cargo de conselheiro do theatro academico. Taes narrativas eram commentadas á mesa do voltarete, em que Sallustio era parceiro de cathedraticos, que lhe applaudiam as habilidades! Foi o seu começo para entrar no amago da politica do paiz; ali aprendeu coisas muito uteis de homens entendidos, cujas lições applaudia com estrepito.

Por isso, quando acabou a formatura encontrou-se cheio de idéas valiosas, para o seu grande fim, o fim sua vida, que era --fazer carreira politica. Sempre que o acaso o levava á proximidade de algum homem de graduação nas coisas publicas, procurava logo ser-lhe apresentado. Fallava com loquacidade, elogiando, deprimindo, mostrando-se conhecedor de todo o systema de intriga publica. Assim começou de longe desbravando os densos matagaes da estrada pela qual caminharia á candidatura, ao ministerio, ao pariato e á familiaridade do chefe de estado.

-- Deixem-me lá metter um pé, que o resto é por minha conta -- dizia com jactancia.

Lá era no parlamento, nas secretarias do Terreiro do Paço, na Ajuda, nas salas dos homens ricos, que

dispõem de influencia, e onde poderia encontar o casamento rico, necessario elemento á sua vida ambiciosa.

Na abertura das côrtes, que d'essa vez aconteceu em maio, Sallustio foi de vespera alugar uma carruagem ao largo de S. Roque. Queria dar a este primeiro acto da sua vida publica uma solemnidade positiva, e certa grandeza. Desejava um coupé novo, boa parelha, cocheiro bem vestido e com apparencia. No escriptorio da companhia fez recommendações especificadas, concluindo, depois de dizer onde morava:

-- E que esteja á porta á uma hora em ponto, para não chegar tarde á camara.

Sublinhou esta palavra com imponencia, abrindo muito a bôca para lhe dar sonoridade ampla.

Em quanto fallava ía calçando as luvas devagar, dando pouca importancia aos que o escutavam. Desceu depois a rua com passo lento, fumando o seu charuto e olhando para as janellas com fixidez. No Chiado, á porta da Havaneza, um deputado da opposição, homem de linguagem violenta, disse-lhe com rudeza:

-- Verá, é uma maioria de cavalgaduras.

E para adoçar a intenção aggressiva accrescentou:

-- Se ao menos trouxessem mais alguns rapazes de talento, como você !...

Sallustio, em voz pouco contradictora, entendeu, dando um geito de desafogo ao collarinho:

-- Não é tanto assim... Veem rapazes de merito.

-- Quem, diga você?! O Nunes? O José Antas?!... Uns pulhas, uns jumentos... O que querem é comer.

-- Pois sim -- admittiu Sallustio--mas são influentes locaes. Eu bem disse ao marquez que se precisava de gente para fallar, batalhar... mas elle coitado não podia, estava preso.

No dia seguinte acordou ás dez horas. Até ás quatro da madrugada andára pelas redacções dos jornaes, fallára com o Frazuella e estivera em casa da Aguas santas, para se pôr ao facto do que havia. Diante dos adversarios advogava idéas conciliadoras de paz. Sentia-se forte com ser do governo e achava bonito mostrar benevolencia para com a minoria, dar-lhe mesmo a consideração de parecer que a temia. Desejava treguas para que o governo e a opposição fizessem alguma coisa util, em bem do paiz. O azedume nas paixões politicas, leva a extremos injustos. Diante de dois ex-ministros do partido contrario, que tinham saído do poder debaixo de uma chuva de improperios e fama de ladrões, disse com voz sincera:

-- Em Portugal todos os politicos são honestos. Já viram algum enriquecer ?

Não tinham visto. Em Portugal ha uma grande probidade nos homens publicos. Não é assim em toda a parte, nem mesmo na grande republica norte-americana, onde frequentemente se verificam actos de concussão.

-- E por isso que eu não sou republicano na pratica, ainda que o seja, um bocado, em theoria. Não gosto de violencias. A linguagem dos jornaes d'esse partido extremo não me agrada e não é justa.

Foi applaudido. O conselheiro Mauricio Pontino, que sobre este ponto tinha as mesmas idéas, chegou-se a elle com a mão amplamente aberta e disse-lhe:

-- Felicito-o, meu caro, pelas suas opiniões. São raras na mocidade estragada dos tempos que vão correndo. Os taes republicanos ... uma peste.

E o conselheiro, depois de meditar alguns segundos, rematou:

-- Em todo o caso podem admittir-se verduras na mocidade. Quando se tem o talento d'um Sampaio, d'um Casal... até a mudança que depois se opéra serve para consolidar as instituições, que felizmente nos regem.

Sallustio achou bello este pensamento. A respeito dos deputados monarchicos julgava conveniente que fizessem discursos imponentes na camara, para se attrahir gente ás galerias. Parecia-lhe necessario travarem-se nos jornaes polemicas ardentes para excitar o zêlo partidario das provincias. Porém queria tudo bem combinado, nos limites da rasão e da urbanidade, para se não desprestigiarem homens eminentes, como um Fontes, um José Luciano!

-- Se não está tudo perdido! -- concluiu.

Esta attitude deu aos juizos de Sallustio Nogueira reconhecido valor. Os proprios adversarios o estimavam. Convidavam-no para as reuniões de familia, para antares que tivessem significação. Era um optimo parceiro nos jogos de vasa, frequentava o Gremio e o Club, principalmente o Club, onde se reunia ás noites a gemma dos homens auctorisados, dos homens de valor, aquelles que dirigiam a opinião, dispondo das forças do poder. Por um calculo bem pensado preferia a companhia de politicos velhos: --queria que os seus trinta annos tivessem notoriedade pela reflexão, que a fama de madureza dos mais praticos destingisse sobre a sua mocidade. Procurava occasiões de prestar áquelles de cuja affeição se queria apoderar, pequenos serviços de caracter intimo: ao general Gonçalo offerecia o braço para subir o Chiado a pé; ao marquez de Tornai, presidente do conselho, ministro do reino, fallava em publico com intimidade; galhofava como Carlos de Mendonça, a intelligencia penetrante da situação... Nas occasiões em que afiava assim as suas armas para futuros combates, analysava as pessoas que o viam, para calcular a consideração que estava adquirindo.

Com todos os que na sociedade de Lisboa possuiam qualquer influencia, capitalistas como Leoncio de Mertola, pares do reino como o conde de Frazuella, intelligencias reputadas como o ministro da justiça, politicos, senhoras influentes, tinha considerações especiaes... Fallava-lhes a geito lisongeando os nas predilecções e preferencias. Era sagaz, cuidadoso, quando assim procedia.

Com homens sérios fazia-se homem sério, escutando-lhes com humildade os conselhos. Com os patuscos era patusco a valer, tratando com facil intimidade velhos obscenos como o visconde da Carregueira, a quem

fornecia esclarecimentos ácerca de certas casas e de certas mulheres...

-- D'isto sei eu, meu caro conselheiro -- gabava-se. -- De certo ignoro muita coisa do seu codigo civil, mas de mulheres!...

-- Você é o diabo! Você é uma maravilha. Então saiba-me d'isso -- recommendava-lhe o conselheiro do Supremo.

E não se esquecia. Perguntava, indagava, farejava, para ter nota explicita de tudo. Á noite, no vão de qualquer janella do Club, emquanto no chafariz do largo do Carmo alguns gallegos enchiam barris, elle ia dizendo:

-- Não tem nada que saber, conselheiro. Desce a rua do Alecrim, volta á esquerda para a rua do Ferregial, e n'uma portinha pequena entra e toca a campainha. Aqui tem um bilhete meu e n'elle escripto o numero...

-- Muito obrigado... A respeito do seu protegido póde-lhe escrever dando-lhe os parabens. Fallei ao ministro...

E como estavam tratando materia vasta, outros individuos se foram chegando. Sallustio era immensamente apreciado pelas suas interminaveis anecdotas, picantes e sadicas, nas quaes mettia sempre frades, freiras e alguns soldados. Era verboso, inventivo, conhecia o segredo das inflexões para excitar os nervos fatigados e decrepitos dos seus ouvintes, que o tinham em grande preço e o abraçavam pelo tronco com intimidade, repetindo-lhe:

-- Você é o diabo, com as suas historias!... Sabe-as das melhores...

-- Prende a gente tempos infinitos! -- confessava o Carregueira, babando-se de goso.

Ao meio dia em ponto, um coupé da companhia parou á porta de Sallustio, na calçada de S. João Nepomuceno, para o levar á camara.

Era bonito e lustroso, quasi novo, confundindo-se com os dos particulares, como o deputado recommedára. O cocheiro trazia luvas brancas de algodão, e o deputado, antes de descer, chegou-se á janella com o fim de ver se tudo estava bem. Como ficasse satisfeito, voltou-se para dentro, dizendo para a Angelina:

-- Anda ver. Parece o carro do Raio de Braga.

-- É verdade! -- exclamou a boa rapariga, compartilhando mentalmente d'aquella opulencia.

Depois Sallustio desceu as escadas, de vagar, com um longo charuto na bôca. Tirava fumaças piscando os olhos. A' porta parou um minuto, calçando as luvas, para dar tempo a que as visinhas, que estavam pelas janellas a observar, o contemplassem sufficientemente. O cocheiro, levantou-se, cortejando-o; elle correspondeu com desdenhoso meneio de cabeça. Abriu com a sua mão enluvada a portinhola; mas arrependeu-se de não ter mandado vir trintanario, o que sempre lhe daria aspecto de maior grandeza. Com o pé no estribo, pronunciou n'uma voz sonora, que foi ouvida pela interessada visinhança:

-- Ao Hotel Universal primeiro. Depois para a cantara -- accentuou.

Estas palavras produziram-lhe nos proprios ouvidos effeito agradavel. Durante minutos ficaram-lhe a resoar dentro do craneo. Sentia-se cheio d'ellas, o seu cerebro estava entumecido de idéas grandiosas. O rodar lento da carruagem na calçada, imprimiu-lhe aspecto solemne e reflectido. N'aquelle momento era homem de posição, aquelle coupé levava-o para o Capitolio, para o logar onde obteria a consagração do seu merecimento. Respirava bem, a frescura lustrosa e reteza dos collarinhos e dos punhos dava á sua pelle ordinaria a sensação agradavel de uma limpeza faustosa; o fôfo coupé incutia-lhe em todo o organismo a presumpção de enervantes e macios confortos. No Hotel Universal mandou acima chamar o seu collega Gabriel Besteiros, tambem deputado da maioria, com quem combinára o aluguer a meias. Gabriel appareceu logo e Sallustio desculpou-se, fallando gutturalmente do fundo da carruagem:

-- Não subi, para nos não demorarmos.

-- Fizeste bem -- disse o outro, deixando que o guarda-portão batesse com estrondo a portinhola.

E ordenaram ao cocheiro que fosse pela rua do Alecrim. Premeditaram dar uma volta maior e apreciar, indo até Santos pelo Aterro, as alas de tropas nas ruas por onde passaria o cortejo real. Na de S. Bento estava o regimento dezeseis. Os officiaes, aos dois e aos tres, conversavam olhando para as janellas, matisadas pelas sombrinhas das senhoras, que ali permaneciam para

ver... Aos soldados em descanso era-lhes permittido comprar laranjas e comel-as, descascando-as com a unha negra de camponezes. Sallustio julgou isto uma falta de disciplina, uma inobservancia dos regulamentos militares, e disse para Gabriel:

-- Olha que temos muito a reformar.

O outro calou-se, fixando attentamente com ar reprehensivo os porta-machados, que de longas barbas de centuriões e com as pesadas barretinas inclinadas para a nuca em signal de desafogo, bebiam copos de agua, comprados aos vendedores ambulantes.

-- Ha muita coisa a fazer, ha--considerou Besteiros, depois de largo silencio.

Os musicos esperavam conversando, com os instrumentos debaixo do braço. O coronel, um velho magro, sentado commodamente no sellim, como n'uma cadeira, olhava distrahido, ora pela rua abaixo, ora pela rua acima, umas vezes para as janellas, outras para o alferes, seu ajudante, a quem mencionava destacadamente nomes de pessoas conhecidas, que via por ali, a algumas das quaes cumprimentava com um aceno de espada.

Um sol quente illuminava toda a rua, produzindo nas charlateiras dos officiaes, nas chapas das correias, no ferro polido das espadas e das bayonetas, reverberações fortes. Desde perto do Conde Barão até ao largo das Cortes estendia-se o borborinho do povo reunido, sobresaíndo os pregões, levantados em vozes desiguaes, dos homens e mulheres da agua fresca e limonada. Sallustio, n'um silencio alegre considerava orgulhosamente que este movimento desusado, era em

parte motivado pela existencia de elle proprio -- um deputado da nação!

E disse interessado para Gabriel:

-- Muita gente, não achas?

-- Oh! muita gente!

-- Não, que isto tem que ver! -- pronunciou com opulencia.

Dominado pelo sentimento de orgulho, que tanto lhe custava a conter, mostrou á portinhola a sua cara redonda e sagaz, demorando-se a apreciar tudo, com expressão de satisfeito. Era um applauso mudo, que elle sentia evolar-se da alma d'aquella gente alli reunida. Ao voltar da rua de S. Bento para a calçada da Estrella, a carruagem parou. Muitas outras que vinham da rua dos Poyaes estavam igualmente paradas. Os policias encarregados de regularisar o transito, tinham ordenado uma suspensão geral. Sallustio, esperou conversando com Gabriel uns cinco minutos, mas depois mostrou-se impaciente e deitando a cabeça pela portinhola perguntou:

-- Que é?

-- Não deixam passar -- respondeu o cocheiro.

O deputado viu n'aquillo uma irreverencia, uma falta de attenção pela sua categoria. E perguntou a um policia em voz alta e semblante castigador:

-- Não se passa !?...

-- Vae já, estão estes primeiro-- respondeu o agente da ordem, apontando para a outra fila.

Mas Sallustio não se importava com os outros, que podiam não ser deputados e disse imperativamente:

-- Por onde é o nosso caminho? Nós não temos um caminho?!

O policia, comprehendendo que tinha de responder a qualquer alto personagem, approximou-se.

-- Tenham vossas excellencias paciencia por um bocadinho. Apenas alguns minutos.

-- Mas nós não temos um caminho especial? -- insistiu Sallustio.

-- Não, senhor -- respondeu o policia.

-- Pois devia haver. Aquelles que esperem -- rematou, alludindo ás carruagens da rua dos Poyaes, que íam passando.

E atirando se abruptamente para o fundo do seu coupé disse com azedume:

-- E' pessimamente feita entre nós a policia!

-- E' verdade -- concordou Besteiros.

Mas estas iras momentaneas apagaram-se. Sallustio tudo esqueceu quando a carruagem subiu de um modo impetuoso a calçada da Estrella, já desembaraçada. O galope dos cavallos deu-lhe uma impressão de força propria: -- lembrou-se da allegoria mythica de Neptuno levado atravez dos mares n'um carro de crystal, puxado por fogosos animaes a expedirem rios pelas ventas! Os esquadrões de lanceiros para o lado de cima, com as bandeirolas fluctuando, fizeram-lhe lembrar um acampamento militar: -- espectaculo imponente, antigamente só proprio de reis, e hoje, em virtude da civilisação, tambem organisado em homenagem da representação dos povos. Em frente do velho pardieiro das cortes, que tem o aspecto desagradavel e melancholico de uma casa abandonada, estava a artilheria. Para o alto da calçada da Estrella a cavallaria e caçadores a pé, tingiam com os fardamentos escuros o poeirento muro da cerca das Francezinhas.

N'um dado momento, Sallustio sentiu ao longo da espinha um estremecimento forte. O sangue agitou-se-lhe alegremente no corpo, ouvindo, todas as musicas tocar o hymno real. Eram suas magestades que chegavam. Vinham já a entrar na calçada da Estrella. As notas dos clarins levantavam-se estridentes, diluindo-se na amplidão do azul purissimo do céu!

Sallustio disse desoladamente para Gabriel Besteiros:

-- Oh! com mil diabos! Já não podemos ir no cortejo!...

Mas logo que saltaram do coupé, foram-se ambos juntar aos numerosos pares e deputados que aguardavam a chegada das pessoas reaes, dentro do portão fradesco. Sallustio foi-se collocar na primeira fila, quasi encostado ás grades. Desejava apreciar a chegada e ser eventualmente visto pelos monarchas.

Adiante vinham os batedores: -- homens magros, de cara rapada, cabelleiras de estriga, montados em eguas mansas e com chibatinhas de marmeleiro na mão. As fardas vermelhas não se lhes ajustavam bem nos corpos, porque já tinham servido a outros mais gordos. Seguiam-se as carruagens, puxadas a tres parelhas, com fitas de côres constitucionaes nas cabeçadas e nas crinas Nas duas primeiras repousavam os camaristas e as damas. Na terceira, o infante condestavel do reino, sorria incomprehendidamente para os lados com o estoque entre os joelhos. Na ultima via-se o monarcha, vestido de generalissimo d'aquellas tropas, que tocavam o hymno, e sua magestade a rainha, decotada como as suas damas, n'uma evidencia de gala e com diadema crispando em fulgurações instantaneas e multiplicadas na sua cabeça fulva. Esta apparencia de riqueza dava ao povo, que se estendia ociosamente nas ruas, uma idéa magnifica das recatadas alcovas aristocraticas e dos amplos salões dos paços reaes. A'quelles que se descobriam submissos, os monarchas correspondiam com ligeiros movimentos de cabeça, e com vagos sorrisos. A rainha reclinava-se de vez em quando para o fundo da sua carruagem com um cançasso nevrótico, com apparente aborrecimento vago, n'uma especie de sonho a que os seus olhos sem côr davam subtilidade incomprehensivel!... O rei, as mãos apoiadas nos copos da sua espada, conservava-se mais attento e olhava cordealmente a multidão, com o seu costumado bamboleio de corpo, que era uma cortezia permanente.

Os sotas torciam-se nas sellas para trocarem olhares com os cocheiros. Os creados da tábua, de tricornes sobre cabelleiras brancas mostravam as suas caras rapadas, por cima dos coches onde íam encarceradas as pessoas reaes e a comitiva, supportando a tremura originada nos solavancos das rodas. As musicas regimentaes prodigalisavam ao azul transparente as notas do hymno real, que nas bocas dos trombones eram soluços asthmaticos.

Toda a comitiva se apeou junto da poeirenta grade benedictina, sobre um bocado de tapete usado, expressamente estendido desde a porta da entrada até á sala. A grande commissão de pares e deputados recebeu os soberanos com caracteristicos signaes de respeito. Os monarchas precedidos da sua côrte tomaram a dianteira do cortejo. E seguiam todos a direcção determinada pelo velho tapete, passando no claustro e subindo a escada de madeira que dava ingresso no corredor rodeado de cellas. A camareira-mór da rainha apanhava nos braços o manto de sua magestade. O rei ia silencioso, sorrindo com os olhos. Ao apparecimento do cortejo algumas rebecas e outros instrumentos que estavam na galleria tocaram por sua vez o hymno. Depois, quando o corredor ficou vasio, produziu-se um silencio lugubre. Os reis, pares e deputados tinham entrado na sala da representação nacional. Ahi suspenderam-se momentaneamente as conversas encetadas. Os monarchas foram sentar-se nas cadeiras doirados que estavam sob o docel. A rainha caminhava altiva, ao lado do seu esposo, que por seu turno pisava solidamente o tapete azul e branco. As pessoas da côrte tomaram nos degraus do throno os seus logares hierarchicos. Dois destes personagens acalentavam, como extremosas mães, dois rolos de pau, que pareciam objectos de cozinha, proprios para estender massa. O infante-condestavel collocou-se ao lado direito de el rei, seu irmão, com o

estoque no ar. As damas da rainha ficaram do lado direito, perto da cadeira do nobre presidente da camara hereditaria, um velho magro, que recostava a cabeça no espaldar azul, como um convalescente. A' esquerda tinham-se collocado os camaristas, voltando frequentemente a cabeça para observarem a galeria das senhoras, cuja formosura elles commentavam com leves apreciações. Alguns dos legisladores do reino, homens habituados áquillo, mesmo em frente dos monarchas continuavam a fallar de coisas triviaes, voltados uns para os outros, n'uma apparencia de intimidade. Sómente aquelles que pela primeira vez entravam na camara, alguns recem-vindos das suas provincias com opiniões especiaes ácerca do fausto da capital e da côrte, é que se conservavam circumspectos, para escutarem a palavra regia, que em breves instantes se levantaria, sonora e auctorisada.

As damas das galerias binoculavam soffregamente a toilette da rainha, de setim azulado com adornos de pequeninas rosas silvestres e brilhantes tremeluzindo nos apanhados. Algumas que não tinham obtido o favor de um bilhete especial, invadiram a sala e estavam misturadas com os deputados. Grande numero de flores, de plumas e fitas sobresaíam guerreiramente sobre os penteados altos. A tonalidade esmalleitada da pelle lisboeta confundia-se. esbatendo-se nas côres pallidas dos vestidos. No entretanto, apesar da pompa que se desejava exhibir n'este dia solemne, havia em todo o ajuntamento uma vaga tristeza, um sentimento funebre, certa melancholia subjacente!

Um homem alto, o marquez de Tornal, presidente do conselho de ministros, subiu, no momento op-portuno, os degraus do throno, curvando o joelho em frente do monarcha, para lhe entregar um papel. Era o discurso da corôa, que o rei leu com voz alta, sempre igual e de uma sonoridade forte. N'esse discurso dizia-se que eramos amigos da Inglaterra, que estavamos em paz com todo o mundo, que o governo continuaria, sob o patrocinio de Deus a velar pelo bem da nação, cuja prosperidade se ia encetar, d'esta vez a sério, com medidas legislativas de superior alcance. E' o que foi logo depois annunciado ao paiz pelas repetidas descargas da artilheria do Castello, dos navios de guerra surtos no Tejo, e pelo estrondo das musicas, cujos galhardos sons produziam uma confusão caracteristica muito semelhante á do discurso lido pelo chefe do estado.

III

Sallustio, antes de entrar na carruagem, fez sentir ao seu amigo Gabriel Besteiros, que nas tribunas tinha estado grande numero de senhoras formosas, e gabou com pompa de gestos e de palavras aquella ceremonia da abertura das côrtes, que era na realidade imponentissima. Depois, afastando o hombro do seu amigo á distancia de um braço, interrogou-o:

-- E a rainha ?!...

-- Muito magra... -- respondeu desdenhosamente o grosseiro transmontano.

-- Mas elegante!... Todos o confessam, tanto nacionaes como estrangeiros.

Gabriel importava-se bem com o que pensavam os estrangeiros ácerca de mulheres. Desde a infancia, em toda a sua vida provinciana, se habituára a encontrar-lhes abundancia de carne e isso era tudo. Ás raparigas da sua provincia, áquellas que amára impetuosamente, costumava dar-lhes cada palmada nos hombros nús, que as arrasaria se ellas não fossem tão valentes como elle.

-- És um materialão -- resumiu Sallustio, já dentro do coupé, que rodava pela rua de S. Bento.

-- Não é isso. Quando se trata de mulher, quero mulher -- affirmou Gabriel repuchando a longa barba.

-- Também eu. Mas... não somos da mesma opinião.

Tinham chegado junto da rampa da calçada de S.

João Nepomuceno e mandaram parar. Sallustio queria deixar a casaca. Eram sómente cinco minutos e Gabriel escusava de sair da carruagem.

-- Então não te demores-- observou este.

-- Cinco minutos. Marca no relogio.

Pouco mais foi. Angelina ainda o quizera demorar para elle lhe referir como tinha sido aquella festa para a qual passára tanta gente e regimentos da tropa; porém o seu amante não tinha tempo, esperava-o um deputado na carruagem e não podia agora... A' noite, quando voltasse, teria bastante tempo para lhe contar tudo. A rapariga ficou triste; mas resignou-se, vindo á janella para o ver na calçada, descendo com o seu imponente ar de grande-homem... no futuro.

Angelina era uma boa natureza provinciana, trabalhadeira e saudavel. Em Braga, em casa de seu pae, que padecia do figado, e de sua mãe, sempre doente do rheumatico, ella era a ordem, a economia, o riso e a felicidade. Aos seus pequenos irmãos prodigalisava carinhos maternaes, com o seu precoce instincto de mulher meiga e affavel. Pelas cartas que recebia de uma companheira de mestra, as quaes costumava ler e reler nas ausencias de Sallustio, sabia perfeitamente do luto que cobrira toda a sua familia, desde o momento em que ella, em nome de uma allucinação incomprehensivel, tão irreflectidamente os abandonára. Estas noticias entravam-lhe no coração, como frias laminas que lh'o rasgassem. Chorava, as suas lagrimas eram copiosas, denotando talvez um arrependimento, ou melhor, uma alma sensivel e boa. As lembranças da sua infancia tão socegada e sem perturbações não podiam extinguir-se indiferentemente na sua memoria! Depois eram tão tocantes e ingenuos os traços que a sua confidente tomava do natural, narrando a subita transformação operada na vida do pae de Angelina, um pequeno mercieiro dos Chãos de Cima!... No dia fatal em que a desgraça entrára n'aquella familia, as portas e as janellas fecharam-se, conservando-se assim durante um mez, com mais sentimento e dó do que se Angelina tivesse morrido!... E acrescentava Joanninha Silva n'uma das cartas: «Parece que teu pae bae acavar com o negocio e biber prá vossa quinta do Bico».

-- Para que ha de a gente ralar-se e consumir-se! -- dissera na realidade um dia Pedro Alves, á inconsolavel esposa, que estava doente de cama. Vale lá a pena metter a alma no inferno, moirejar de manhã á noite no trabalho, para lhes deixar um pedaço de brôa ?!... Não vale; porque um dia entra-nos pela porta dentro um ladrão e zaz, leva-nos a luz dos olhos. O melhor é passar-se o negocio ao Joaquim, que eu desejava fazer um dia meu genro, e abalarmos para fóra d'esta-maldita casa! Não quero mais saber d'isto. Fazemos de conta que ella morreu e está tudo acabado.

-- Pois sim, home, pois sim! eu tamem quero ir para fóra d'esta terra. Não quero que me ponham mais a bista em cima.

Pedro Alves, com o seu eterno casaco comprido, passeava com lentidão no quarto, parallelamente á cama onde Juliana soffria o seu rheumatismo. Com as mãos cruzadas sobre os rins, apertando na esquerda a caixa de rapé embrulhada no lenço de panninho vermelho, meditava!

As abas pendiam-lhe com o peso das maçãs que sempre trazia nos bolsos para dar ás creanças, quando chorassem. Estava velho, estragado pelos trabalhos e pela doença do figado. O enorme desgosto que lhe dera Angelina, Angelina que era a menina dos seus olhos, arruinára-o para sempre; nunca mais poderia ter alegria, nem gosto pela vida!

-- Lá se elles por ahi entrarem um dia casados, então esqueço tudo, perdôo-lhes -- pronunciou com sympathica bondade.--Se não for assim, antes quero acabar. Tamem se me não dá de morrer! Que faço eu n'este mundo?! Ainda n'outro dia, quando fui á quinta, o rio levava grande cheia. Deu-me vontade de me atirar da ponte abaixo. Um dia faço-o!... Diabos me levem se o não faço!... Quando houver outra cheia, pincho da ponte abaixo, que é um regalo. Depois vão-me lá salvar, que hão de salvar grande coisa!

E tinha uma colera indignada contra tudo e contra todos, não poupando nem os santos da sua maior amisade. Juliana, mais doente, mais perto da sepultura, moderava-o, reprehendendo-o com severidade.

-- Não digas isso, home! Olha que podes ser castigado. Deus não perdôa heresias, como diz o senhor padre Martinho.

Ao ouvir o nome do conhecido sacerdote bracaren-se, o pae de Angelina adquiriu maior vivacidade, gesticulando com o braço estendido, brandindo a caixa de rapé e o lenço vermelho, que tinha na mão.

-- Ora bolas para o senhor padre Martinho! Elle era o confessor d'essa desgraçada, e vê lá se as confissões lhe valeram. Sabes que mais... mais nada!...

E não pronunciou a blasphemia premeditada, com medo de provocar as dôres agudas em Julianna, que as desabafava em gritos. Porém nos seus olhos brilhantes, e na retirada subita da palavra que lhe viera á ponta da lingua, reconhecia-se «que aquelle grande desgosto até lhe ía fazendo perder a fé nos padres, que não servem de nada, não servindo para guiar as mulheres no caminho da virtude!» Com o fim de apaziguar a justa colera que o dominava todo, dirigiu-se aos seus tres filhos pequenos, amimando-os com mil carinhos. Considerava ajuizadamente que, a final de contas, estes innocentes não tinham culpa nenhuma das asneiras dos outros.

Angelina sabia mais ou menos taes coisas. A Joanninha Silva, continuando a frequentar com intimidade a casa de Pedro Alves, referia-as nas repetidas cartas que lhe escrevia. A natureza plebeia, casta e sensivel da pobre illudida, pensava de cada vez com mais afinco em captivar por tal modo Sallustio que o determinasse a dar-lhe com brevidade o nome de esposa. O seu grande desejo, talvez mesmo superior ao de realisar um sonho de amor, era ir depressa á sua terra, levar a seus paes a intensa consolação de se lhes mostrar remida da sua falta, diante de Deus e da gente de Braga! Demais agora (isto tambem lhe alegrava loucamente o coração) tal casamento devia ser causa de orgulho para a sua modesta familia! Sallustio era um deputado e Angelina sabia, por algumas ligeiras revelações que elle, em certos momentos, lhe fizera, ter adquirido alta consideração na melhor sociedade! O bom Pedro Alves ficaria contentissimo ao saber que a sua querida filha, que elle desejára ligar ao lorpa do caixeiro Joaquim, se ennobrecia com um nome justamente conhecido e considerado! Ella, por si, não ambicionava tanto; cheia de ingenuidade propoz ao seu amante que seria melhor casarem immediatamente, podendo depois elle ir estabelecer-se em Braga, advogando como o doutor Penha Fortuna e como o doutor Rasqueja -- homens lá tão considerados! Sallustio poderia fazer como elles discursos no tribunal, diante do juiz de beca e dos jurados confundidos!...

Mas o vaidoso deputado recebeu com desprezo estes conselhos e aspirações modestas. Retorquiu com tal azedume e violencia que lhe aniquilou a singella alegria:

-- Parva, é o que tu és! Sabes lá o que estás a dizer! Olhem que rica coisa, ir-me metter em Braga, n'aquelle aborrecimento, numa permanente cavaqueira de padres debaixo da arcada! Realmente é uma posição de arromba, fazer discursos como o doutor Penha Fortuna ou como o doutor Rasqueja, nas audiencias! -- pronunciava com ironia. Bem mostras que és de Braga e que és filha de teu pae, um tendeiro!

Angelina, ouvindo-lhe as palavras grosseiras, ficou humilde e preoccupada diante de Sallustio, que lh'as dissera com deprimente olhar de soberba! A sua organisação feminina e delicada revoltou se com lagrimas;

-- Sim, meu pae não será um fidalgo; mas nunca deveu nada a ninguem, graças a Deus! Ser tendeiro não é desprezo nenhum...

Ficou muito tempo a soluçar, com o ventre, onde trazia o primeiro filho, comprimido contra a cama e o rosto apanhado nas mãos. Era aquelle o homem de quem dependia a sua sorte, a sua felicidade, a felicidade e a honra da sua familia?! Que fim teria tudo isto?! --interrogava-se mentalmente, estupida, envolvida pela noite do seu futuro.

Sallustio saíu, sem dizer uma palavra de reconciliação. Descendo a escada, batia salientemente nos degraus com os tacões das botas. O modo altivo como o deputado lhe respondêra deixara-a abatida, inerte, quasi aniquilada, e representava-se-lhe na imaginação como de presagio funesto. N'estes momentos lembrava-se com profunda e sympathica saudade do seu passado tranquillo, da felicidade serena da casa paterna, da alegria bulhenta de seus irmãos brincando e rindo! Porém, mesmo n'estes instantes de abandono, a sua rica organisação, forte e resistente, nascida e formada no trabalho domestico, na Iucta obscura das difficuldades quotidianas, retemperava-se n'um sentimento de esperança indefinida, vaporosa e intangivel... Resava fervorosamente á senhora de Guadelupe, e distrahia-se o maior do tempo nas mil occupações da labuta diaria, pois ella fazia tudo, por não ter creada. Fôra Angelina mesmo que dissera a Sallustio, para se passar sem ella. Com o pouco serviço de portas a dentro, podia-se haver perfeitamente, porque estava acostumada. O Bento aguadeiro fazia-lhe as compras e os recados precisos. Tomára-o logo que chegára a Lisboa, e era a unica pessoa com quem a principio fallava, com quem se distrahia das coisas da sua vida. Uma vez, emquanto despejava o barril, e parecendo escutar o glon-glou da agua caindo no fundo da talha, Bento percebêra lagrimas em Angelina, o que o sensibilisou! O bom homem compadeceu-se; mas não a quiz envergonhar com perguntas. Porém, como o preoccupasse a solidão em que sempre encontrava esta formosa rapariga, principiou a demorar-se algum tempo contando-lhe, para a entreter, casos da sua vida trivial, fallando dos seus ganhos, dos desejos que tinha de ir á terra, para o que já tinha juntado quasi um cento de duros! Se Angelina o escutava, Bento, sempre com a piedosa intenção de a distrahir, fallava dos seus freguezes, que nem todos eram ricos, que mesmo a maioria era gente pobre, e n'um ar de confidencia timida, assegurou-lhe com bondade e sem jactancia, que já emprestára dinheiro a alguns:

-- Baia qu'ós fregueces bôs, axim como á xenhora, a xente, não se libra de imprestar quando l'o tenga -- rematou olhando para o tecto.

A filha de Pedro Alves sorriu-lhe agradecida e benevola. Porém com o seu orgulho de mulher nascida na fartura da brôa minhota, sentiu-se diminuida. A magnifica saude de que gosava, a fortaleza que tinha para o trabalho, davam-lhe energia e coragem. Até aquelle dia, Sallustio ainda lhe não faltara com dinheiro para as despezas da casa, que não eram grandes, porque Angelina era poupadissima. Porém as longas horas da noite em que esperava acordada que o deputado chegasse, considerou que podiam ser preenchidas por trabalho rendoso e util, que lhe désse para se vestir. Firmada n'esta lembrança, disse um dia ao Bento aguadeiro:

-- Como tenho tempo, se por ahi apparecer alguma costura ou engommado, traga que eu posso fazer.

O homem, suspeitoso de que aquillo revelava alguma falta em Sallustio, respondeu coçando a nuca:

-- Ah ! ixo arranxa-se, querendo a senhora. Mas elle que l'o dê!...

E teve uma pronuncia adversa referindo-se ao deputado.

Não fôra qualquer precisão de dinheiro que trouxera a Angelina a idéa de trabalhar; mas só encher o vasio da sua existencia. Porém se um dia precisasse ganhar o propio sustento, reconhecia-se forte, capaz de o fazer... No que pensava constantemente era em procurar todos os meios de attrahir Sallustio, para nunca perder a esperança de uma rehabilitação, que a levasse á presença de seus paes. Todos os pensamentos do seu cerebro se cifravam em tornar a Braga, casada com o deputado, para ter a certeza de ser abraçada effusivamente por aquellas pessoas, que a conheceram, que a tinham amado!...

Os domingos eram os seus dias mais infelizes. Esta vida isolada, n'uma cidade populosa como Lisboa, sentada á janella a ver passar gente que ía para os seus divertimentos, abatia-a. Não tinha a distracção da costura, por ser peccado trabalhar ao dia santificado. Sallustio não jantava em casa -- umas vezes ía para o general Gonçalo, outras para o conde de Frazuella, outras para a viscondessa de Aguas-santas... Ella ali ficava sósinha a remoer os seus pensamentos! Como isto era triste e aborrecido e tão differente dos domingos de Braga, respeitados e alegres, em que toda a gente vestia camisa lavada para ouvir missa, e depois de jantar ía passear para o Bom Jesus, para a Senhora de Guadelupe, para as Carvalheiras, para S. João da Ponte, para a estrada dos Arcos, para os lados da fabrica do gaz na estrada do Porto, ou para Frossosl...

Em Lisboa tudo se apresentava differente. De manhã cedo saía com o fim de ir á missa. na igreja mais perto, que era a de S. Paulo. Quando se encontrava na rua populosa e na igreja cheia de povo, sentia maior isolação do que estando só, em casa! Não conhecia ninguem, andava depressa, encostada á parede como um cão escorraçado, sempre com os olhos no chão, a cara escondida na manta de lã, para que não implicassem com ella. Porém este procedimento cauteloso não a livrava... A rapaziada d'aquella hora, creados de servir e marçanos, que, mesmo durante a missa, se conservavam á porta da igreja fumando charutos baratos, com ar janota e provocante, dirigiam-lhe comprimentos, que ella repellia timidamente, passando em silencio. Este contacto com uma multidão insolente e irreligiosa rebaixava-a, ás vezes tinha vontade de dizer a Sallustio que, pelo menos para a acompanhar á missa, desejava uma creada. Porém agora não se atrevia... Percebera que o seu amante andava sem dinheiro e não o queria affligir.

Acabada a missa retirava-se logo para casa, principiando então a labuta, o andar e desandar, barrendo, trabalhando na cozinha, examinando a roupa de Sallustio, que lhe não faltasse qualquer botão. Pensava em ter todas as coisas para o almoço, ou reparava se lhe seria necessario mandar o Bento á mercearia, quando elle viesse com o primeiro barril de agua!... Ao meio dia, o deputado levantava-se, depois de ter lido na cama os jornaes. Preoccupado sempre com a politica, andava pouco fallador, pouco expansivo. Almoçava quasi em silencio, não lhe explicando nada da sua vida. Depois vestia-se, tomava a bengala com ar magestoso, saía com modos de quem pensa em coisas graves, dizendo-lhe um ligeiro adeus.. Só voltava alta noite, ás vezes já com dia. Vinha da politica, vinha da ambição, triste ou alegre, consoante o movimento da sua fortuna!...

Estes dias de ociosidade, Angelina imaginou empregal-os em ler os jornaes, que Sallustio deixava misturados com roupa da cama. Não entendia d'estas coisas que diziam os papeis, não a interessavam os assumptos em debate; porém offendiam-n'a, como se lhe fossem ditas a ella, certas insolencias...! A' sua ingenuidade provinciana repugnava ver que só fallavam de ladroeiras, de bandalhismos, de canalhices, de infamias... e deixava o papel suspirando:

-- Estes homens não têem vergonha nenhuma!

Por isso a attenção se lhe fixou nos romances que se publicavam em folhetim. Prendiam-lhe o espirito como acontecimentos de uma ordem serena e alta, passados n'uma região, sempre de amor e sensibilidade! Com a sua previdencia sagaz, guardava os jornaes de toda a semana, para n'estes dias desoccupados, tão longos e tão sós, ter com que se entreter. Interessava-se pelos personagens, tomando partido pelos bons e julgando abominaveis e de uma convivencia nefasta os paes que torturavam os filhos, os maridos que não eram amigos de suas mulheres, os homens crueis e devassos que abandonavam uma pobre rapariga, depois de a terem seduzido com promessas enganadoras!... Idéas como esta, que resumiam de certa maneira a sua situação, algemavam-lhe o pensamento tanto tempo que nem calculava quanto tinha sido, encontrando-se com o jornal caído no regaço, os braços pendentes em grande desalento, o olhar fixo na ampla e espelhada superficie do Tejo, que se estendia até á outra-banda !... Os pennachos de fumo dos vapores de Cacilhas e de Belem estendiam-se no ar ao sabor do vento, como flamulas, terminando n'uma gaze tenue. Os grandes barcos das carreiras da America, ancorados no porto, dormiam o seu somno de horas, dando no repouso a impressão de monstros que tivessem nos formidaveis musculos uma enorme força latente e nos largos ventres uma di gestão de cetaceos! Os pequenos botes remados a dois homens perpassavam rapidamente por entre as massas escuras dos navios, como leves corpos de passaros por entre bojudas penedias, nos montes escalvados da sua provincia.

D'este divagar Angelina era provocada para coisas mais reaes e mais proximas, por outras impressões que annullavam as precedentes. Da sua janella via-se um pedaço da rua de S. Paulo. Passava muita gente. Reconhecia que em Lisboa havia mais movimento do que em Braga. Muitos desses grupos deviam ser familias de operarios, que tinham trabalhado os seis dias da semana, e no dia santo saíam a passear, para se distrahirem, gosando o bom sol e a benefica natureza. Pareciam contentes, despreoccupados, esquecidos do peso que tinham supportado durante a semana. Esta idéa augmentava a tristeza de Angelina, fazendo lhe repontar as lagrimas aos olhos. Vinham-lhe ardentes saudades da sua terra. Abafava, presa entre as quatro paredes d'esta pequena casa, n'um ultimo andar da calçada de S. João Nepomuceno! O seu temperamento sanguineo, a sua organisação forte, precisava, como as grandes carvalheiras, da amplitude infinita, dos largos horisontes, da energica e vivificante acção da luz do sol. Ha quanto tempo as suas pupillas negras não fixavam as suaves paizagens minhotas, de uma profundidade de vida vegetal, tão salutar e carinhosa! E então revoavam-lhe no cerebro, como um bando de rolas meigas

que viessem pelo espaço, os pittorescos e simples quadros do seu passado, da sua casa de viver patriarchal! Era muitas vezes no Senhor do Monte que íam comer o jantar domingueiro. De manhã, em casa, ainda noite, preparava-se o cabrito, enchendo-o de picado! Como tinham forno na cozinha, accendiam-no, e seus irmãos, com uma grazinada de pequenos demonios, porfiavam em metter-lhe lenha, o que a fazia zangar muito, porque se podiam queimar. Porém na sua memória moça reproduziam-se n'este momento as lavaredas saindo pela porta do forno, como um liquido candente, illuminando os rostos animados das creanças com tonalidades fortes de escaldar!

Sua mãe, sentada n'um banco, com a perna doente estendida ao comprido, lardeava o cabrito com toucinho e cozia-lhe o ventre recheado de optimas coisas. Este trabalho era concluido dentro da longa torteira, onde tinham aprimoradamente estendido este morto distincto, como n'um sarcophago! Em seguida baptisavam-no em agua, ungiam-no com um fio de azeite e golpe de vinagre, cobriam-no de bocados de toicinho, de rodellas de cebolla, tudo condimentado com a pimenta e o cravo em grão. O bocado de folha de louro era mettido com parcimonia, mas os pés de salsa, passada em agua, distribuiam nos com profusão, como se fossem viçosos ramos de flores sobre atahude de pessoa querida. D'este modo lá ía o cabrito para o forno no meio de estridente gritaria infantil! Era chamado o Joaquim, o caixeiro da loja para o metter, com os seus braços fortes, impassiveis ás lavaredas. Ahi pelas dez horas estava tudo prom-pto e marchava-se para o Bom Jesus. A creada adiante com o cesto á cabeça, coberto com uma toalha de estopa sedeira. Angelina, com o guarda-sol aberto cobria seus irmãos pequenos, o mais novo dos quaes usava um vestido de riscado. A traz, com a nobre sobrecasa ca de briche, o lenço vermelho e a caixa do rapé n'uma das mãos, a bengala de castão de prata na outra e o chapéu de palha dos passeios á quinta do Bico carregado para a testa, caminhava Pedro Alves, ao lado de Julianna apoiada a um pausito de marmeleiro, por causa da perna doente. O Joaquim levava o garrafão.

No Senhor do Monte, no alto da famosa escadaria, lá estava Longuinhos, montado no seu cavado de pedra. O pae de Angelina dizia-lhe sempre ao passar, mostrando nas palavras certa acrimonia:

-- Anda, maroto, que foi com essa lança que tu abriste o sacratissimo lado!..

E recommendava aos pequenos que detestassem Longuinhos, e lhe fizessem caretas. Mas logo que subia o ultimo banco do escadorio e se encontrava em frente da principal porta do templo, no largo onde estão os evangelistas, em attitudes severas, lendo perpetuamente nos seus livros de pedra os velhos textos que apontam com dedos musgosos, Pedro Alves concentrava-se em meditação, tirava o chapéu e juntamente com os seus ajoelhava, fazendo uma reverencia.

-- Grandes homens! grandes santos! -- exclamava commovido e persignando-se.

Depois escolhiam na matta um logar apropriado.

Estendia-se a toalha emquanto a creada ía buscar a infusa de agua, a uma das rumorosas fontes do escadorio. Os pequenos acompanhavam a rapariga e aproveitavam a occasião para repetir as caretas ao Longuinhos e aos judeus que estão nas capellas martyrisando Christo. A creada associava-se ás hostilidades, dizendo grosserias e deitando a lingua de fóra ás estatuas, que representassem individuos antypathicos. Então Pedro Alves, sentindo barulho, apparecia no alto a ralhar, recommendando parcimonia na manifestação de sentimentos de odio:

-- Eh lá! seus rapazes! Já basta! Lembrem-se que os desgraçados estão n'esse inferno, e bem grande é a sua infelicidade.

Os pequenos recordavam-lhe:

-- O pae é que mandou.

E a Zefa retorquia, incredula:

-- Ah! estão no inferno! O senhor falia bem. EIles estão, mas é a olhar p'ra mim, com caras de escarne!...

-- Isso são os corpos representativos, rapariga -- instruía o negociante. Os verdadeiros corpos de carne e osso e as almas lá as guardam na caldeira de Pedro Botelho!.. Venham depressa que arrefece de todo, apesar do luminho.

Pouco depois, via-se toda aquella respeitavel familia sentada em volta da torteira, onde jazia o louro cabrito recheado, e do amplo alguidar de arroz, do meio do qual saía um salpicão e as pernas de uma gallinha. Cada qual, incluindo a creada e o Joaquim, que se distinguiam por comerem de pé, estava armado de um pedaço de cabrito, ou tirava arroz com a sua colhér. Comiam monotonamente, mas com appetite, mastigando em socego. A infusa do rascante andava de mão em mão, a agua era para Julianna, a quem os medicos tinham prohibido o uso do vinho. Ao anoitecer voltavam para a cidade. Angelina, as creanças, o Joaquim e a Zefa sempre rindo e brincando. Depois dormiam noites regaladas de um somno inteiro!...

Que tristeza, que saudades intumesciam o seio da amante de Sallustio, ao recordar estes factos do seu passado! Como ella julgava perdida a sua boa alegria de rapariga nova e jovial! As lagrimas vinham-lhe espontaneas. Em Lisboa não encontrára nenhum d'esses affectos desinteressados e simples que perdêra. Havia ruas compridas e de uma grande ostentação, que a tinham deslumbrado nos primeiros dias. Havia grandes palacios, melhores que o do Carvalho, no Campo de Santa Anna. Havia carruagens, onde se recostavam em attitudes soberbas senhoras vestidas de seda--uma riqueza superior á do brazileiro Raio. Mas que beneficio lhe vinha de todas essas grandezas!... Ficára mais acompanhada, mais feliz, só porque podéra um dia ver no Aterro sua magestade a rainha n'um landau a quatro, com batedores que galopavam adiante, chamando a si a curiosidade vulgar dos transeuntes?! .. Nos ultimos oito dias, é certo que adquirira as relações d'uma pessoa, uma alma viva com quem podia trocar sentimentos e palavras. Era a vizinha do terceiro andar, a D. Maria Gomes, antiga mestra de piano, que tinha um filho tenente. Pobre mulher, andava com a vida um pouco atrapalhada; mas resignava-se. O officio estava-lhe rendendo pouco, o dinheiro que o seu Augusto ganhava, mal chegava para luvas, para engommadeira, e para botas de polimento! Um rapaz muito janota, viam-no sempre em soirées, onde era grandemente estimado por causa da magnifica voz de baritono que possuía. Isto trazia despeza, e grande despeza; mas a benevola mãe vivia feliz da gloria musical de seu filho tenente. Assim elle fosse bom para ella, e não lhe estivesse sempre a dar desgostos, por causa d'um namoro desvantajoso! D. Maria fallava frequentemente no grande favor que fizera, em ter dado algumas das suas discipulas a uma rapariguinha magra, a Ermelinda Travassos, que morava na rua de S. José, e principiára, havia poucos annos, a ensinar pelas casas. Logo que seu filho saíra official, ella, que já estava muito gasta, tratou de fazer uma selecção na sua freguezia, conservando algumas filhas de negociantes da baixa, que pagavam bem. E confirmou isto diante da Ermelinda, que escutava agradecida:

-- Dei-lhe grande porção. Muito boa freguezia para uma principianta. Filhas de empregados publicos, bem sei, não é do melhor, porque os paes andam sempre com a sella na barriga!... Mas tenha a menina cautela. Nunca lhes deixe na mão grande numero de lições. Antes do fim do mez principie logo a mostrar-se precisada. Se não fizer assim, não recebe vintém. Digo-lh'o eu, que tenho experiencia!

Ermelinda respondeu com os seus olhos humildes:

-- Quanto lhe agradeço, minha senhora! Por morte do papá só nos ficaram duas libras do monte-pio. Não chega a nada. A minha tia está ceguinha, e mal póde dar uma volta na casa. Custa-me muito se tenho de a metter n'um asylo, porque foi ella que me creou. Preciso muito, e creia a senhora que hei de fazer toda a diligencia para gostarem de mim.

-- Pois ande, ande -- animava a antiga professora.

-- A menina é nova, tem boas pernas, póde andar...

-- Boas pernas! -- exclamou compadecida Angelica

-- ella é tão magrinha!

-- Não -- retorquiu Ermelinda sorrindo--não sou tão fraca como á senhora lhe parece. Ando bem, graças a Deus. Alguns dias, á quinta feira principalmente que tenho lições sem descanso até ás sete horas da noite, lá me sinto um pouco fatigada. Mas nos outros dias saio ás nove da manhã e entro sempre das quatro para as cinco.

-- E não come, durante esse tempo? -- perguntou a amante de Sallustio.

-- Não, minha senhora. Algumas discipulas, minhas amigas, offerecem biscoitos e um copo de vinho, uma vez ou outra; mas eu nunca acceito. Considero que tambem é gente que não é rica.

-- Não acceite nunca! -- aconselhou a D. Maria Gomes. -- Isso é a maneira de lhe não pagarem as lições! Faça como eu no meu principio. Leve um bocadito de pão com manteiga na sua carteira dos bilhetes. Depois, emquanto se sobe a escada, dão-se duas dentadas e está prompto. Não acceite nada em casa de discipulas! Se cae n'essa, não lhe pagam as lições! Tomam confiança... não acceite!

-- Ah! minha senhora -- esclareceu Ermelihda.-- Se isso os obrigasse a pagar!... Mas nem deixando de acceitar...

D. Maria Gomes, que era muito gorda e estava sempre sentada n'um velho fauteuil, levantou-se impetuosamente, com vivacidade desacostumada:

-- Ah! a menina é assim?! Pois faz muito bem! Trabalhará para o prior. Peça-lhes, exija, mostre-se precisada.

-- Pois sim; mas é necessario ter genio... Eu não tenho genio... Elles tambem parecem pobres!...

-- Pois não tenham luxo, pois não mandem as filhas aprender piano. Quem não póde, faz das filhas cozinheiras, não lhes manda ensinar prendas!

Estava colerica a D. Maria Gomes! Diante d'este facto de ver uma pobre rapariga correr as longas ruas da cidade, aturar muita má creação, para se recolher á noite a casa, cheia de fome e de cansaço, e com a carteira vasia, não se podia conter. Esbravejava, praguejava e enrubescia-se-lhe a face, como na imminencia de uma apoplexia! Não era superior, não podia abafar o seu profundo odio contra os caloteiros, contra os que não pagam o trabalho alheio! E depois de fallar e gesticular muito tempo, interrogou Angelina:

-- Não lhe parece que tenho rasão, minha senhora?!

Então quem faz o serviço, não ha de receber o seu dinheiro?!

-- De certo -- respondeu a amante de Sallustio.-- A senhora deve pedir o que tanto lhe custa a ganhar.

-- Mas se elles m'o não dão?! -- insistiu, quasi chorosa, Ermelinda.

-- Mas que dêem. A senhora peça -- aconselhou Angelina com energia, apoiando as opiniões da antiga mestra.

-- Ai! eu, pedir, peço; mas é o mesmo que nada!... D. Maria Gomes veiu ao meio da sala e rematou com gesto largo:

-- Então não lhes dê lições ás filhas! Quem não tem dinheiro, deixe-se do luxo de meninas prendadas!... A nossa arte, o nosso talento não se póde trocar por coisa nenhuma!

IV

Esta scena deu á filha de Pedro Alves a coragem que vem sempre dos infortunios alheios. Comprehendeu n'um momento que, na grande cidade que a fascinára a principio, havia miserias obscuras, sentidas e invenciveis! Como é que uma pobre rapariga de vinte e dois annos póde assim affrontar a vida, correndo Lisboa de um extremo a outro, de botas cambadas chapinhando na lama em dias de chuva, com o fim de ganhar o sustento a ensinar piano! E eram tristes as confidencias que lhe fizera Ermelinda. Ás vezes cansada, os pés humidos, a tosse symptomatica de tuberculose imminente a apoquental-a, tinha de subir a um terceiro andar, mostrar-se risonha quando soffria dores, tocar sem vontade, mas com pericia, uma valsa para agradar ao pae da sua discipula... Tremenda situação, á qual Angelina se prendia sympathicamente, com a fascinação dos fortes, d'aquelles que têem em si poder de resistir, luctar, affrontar a existencia :desventurosal... Por isso, nas differentes conversas que teve a sós com a mestra de piano mostrou-lhe grande sympathia, abriu-se em confidencias, patenteando-lhe a situação em que se encontrava, as esperanças intimas n'um futuro risonho, quando fosse legitima mulher de Sallustio! E n'um aproposito, contou-lhe a sua vida de provincia, as circumstancias do seu namoro:--Tinha sido uma das raparigas mais requestadas da cidade de Braga. Passavam-lhe á porta, para a verem, os primeiros janotas da terra -- o Falcão, o Antonio Maria de S. Pedro e muitos estudantes do lyceu e do seminario... Alguns d'estes sabia que já tinham ordens sacras e estavam para dizer missa!... Repellira-os a todos com um desdem honesto, e a um d'elles, dos taes que já eram quasi padres, que uma noite lhe foi tocar violão á porta, o Joaquim, caixeiro da mercearia de seu pae, desancou-o com uma tranca. Fôra uma grande desordem! O do violão alliciára amigos, que vieram armados de paus, de navalhas e pistolas com o proposito de arrombar a porta e matarem o caixeiro. Sallustio era então administrador do concelho. Chegou com alguns cabos de policia, prendeu os estudantes desordeiros, desaggravando assim os brios de seu velho pae, que tomára abertamente o partido do rapaz, vindo á varanda descompor os malcreados. Por este sympathico procedimento de Sallustio, Angelina ficára-lhe muito obrigada, e quando o via passar para S. Victor, onde elle morava, correspondia-lhe sempre aos cumprimentos... Foi assim, sem ninguem perceber, que o namoro principiou. Quando recebeu a primeira carta que o administrador em pessoa lhe metteu na mão ao saírem da missa de S. Vicente, Angelina sentiu grande perturbação. Ficou n'um estado, que não podia bem explicar, contente e receiosa, ao mesmo tempo. Foi para casa pensar no que devia fazer e, depois de muito reflectir, decidiu-se a responder n'um bilhete, que atirou da janella á rua, n'uma noite em que Sallustio passando, disse para cima: «Muito boa noite, menina».

O que lhe custou mais foi o consentir fallar-lhe com mais demora. Angelina não queria, porque tinha medo de Sallustio. Resistiu durante muito tempo ás repetidas solicitações, que o seu namorado lhe fazia em cartas, para ella apparecer de noite ao muro do quintal, que Java para outro pertencente a uma casa deshabitada, cuja chave Sallustio arranjára em grande segredo. Isto era muito arriscado, porque elle podia saltar dentro, como realmente mais tarde aconteceu. Angelina oppoz-se corajosamente, apresentando razões de todas as ordens: -- a impossibilidade de passar perto do quarto de seu pae, sem ser presentida; o dormir com um irmão pequeno que podia acordar de noite e dar pela sua falta; o ficar para os lados do quintal o caixeiro, que a vigiava aturadamente, porque, para elle, Angelina era a sua promettida noiva; finalmente... o ser um grande peccado e não acreditar que lhe fosse feito aquelle pedido para bom fim! Sallustio zangou-se e esteve tres dias sem lhe passar á porta, indo por outro lado, pelo pé da senhora de Guadalupe, sair ao campo de Santa Anna. Que longas horas foram as desses dias! Não comia, não dormia, todos a julgavam doente e, viu-se tão desesperada, que esteve capaz de sair de casa, para ir ao encontro do seu namorado e dizer-lhe «aqui me tens». Porém não teve coragem. Custa muito fazer uma coisa d'estas! Mas logo que Sallustio lhe tornou a fazer o mesmo pedido, n'uma carta muito bonita, cheia de juramentos de amor eterno, não teve força para se conter mais tempo e prometteu que sim.

-- Ah! a isso, a gente ás vezes não póde resistir--pronunciou com sorriso triste Ermelinda Travassos.

A menina tambem teve já d'estas coisas ? -- indagou Angelina.

Se tive ! -- confessou a mestra de piano, consolada por lhe pedirem a declaração.

-- Pois commigo foi assim. Nas primeiras noites, Sallustio portou-se sériamente. Estava lá no seu quintal, eu estava cá no meu, que era mais alto... Tudo muito bem. Mas uma noite, ao chegar, vi uma escada posta ao muro. Caíu-me logo a alma aos pés! Deu-me um baque o coração, que quasi fiquei sem falia e disse commigo: «Tate! aqui ha coisa!»

Não foi grande o numero de vezes que Sallustio subiu aquella fatalissima escada. Era uma vida anciada, cheia de difficuldades e de perigos. Ella nem comia, nem dormia socegada. As horas do dia em que se furtava ás vistas de sua mãe, e as da noite em que não estava com Sallustio no cabaneiro do quintal, passava-as quasi todas ajoelhada diante das imagens da Senhora de Guadalupe e da do Sameiro, pedindo-lhes ardentemente que a não desamparassem. Consumia-se tambem em orações ao seu Anjo da Guarda, para que a inspirasse e protegesse tanto a ella, como ao seu amante. Receiava muito do Joaquim, que era um doido por ella e parecia até bebêl-a com os olhos, quando a via! Se presentisse uma coisa d'aquellas, era capaz de carregar uma arma, matar Sallustio, matal-a a ella e matar-se a si mesmo! Era um rapaz de muito genio e não via outra coisa no mundo, mais do que Angelina. Quando aventou este receio diante do seu amante, este disse-lhe:

-- Medo, não tenho; mas para nos livrarmos de coisas, o melhor é tu fugires commigo.

-- Fugir comtigo! -- pronunciou suffocada.

-- Sim. Olha, eu vou para Lisboa, porque quero ser deputado e tenho lá quem me possa fazer. Se tu não quizeres vir... então deixo-te.

Separarem-se, já não era possivel! Agarrou-se-lhe ao pescoço e fez-lhe jurar que nunca a abandonaria, que havia de santificar aquelles amores com o casamento. Sallustio jurou-o pela alma de sua mãe. Ella que o amava e por elle se perdêra, acreditou-o firmemente, com todo o poder da sua alma.

A noite em que fugira de casa de seu pae ficou-lhe gravada na imaginação! Chuva, relampagos e trovões nunca os vira tão fortes! As iras divinas caíam impiedosamente sobre a terra, para castigar os peccadores. Para ella, esta tempestade chegou a ter significação de mau agouro! Durante algum tempo hesitou em abrir a porta da cozinha a Sallustio, que a chamava baixinho do lado de fóra. Receou as penas do inferno, receou a ira do Senhor que lhe fallava na voz do trovão. Porém a voz do seu amante, aquella voz que ao ouvil-a lhe fazia tremer o corpo como um vime, foi capaz de lhe dar animo para não escutar nem o céu, nem Deus. Fugiu abandonando a casa paterna sem pensar no que fazia !...

O vento, zumbindo por entre as arvores, ameaçava levantar os telhados e levar a gente pelo ar. Sallustio depois de ter conseguido que ella descesse para o quintal vizinho e de terem passado rapidamente na casa sem morador, cuja chave obtivera, tomou-a debaixo da ampla capa á hespanhola, para a proteger da chuva nas ruas. Assim, ambos unidos, estreitamente abraçados, atravessaram o campo da Vinha, d'uma escuridade e largueza infinitas. Ambos se sentiam batidos pelas bategas da chuva e apupados pelo vento impetuoso, que tinha um gemer ironico como o de demonios subterraneos. N'um certo momento, ouviram duas horas na igreja do Carmo! O relogio, n'essa noite de temporal, tivera um som plangente e agoirento que lhe fez ranger os dentes. Já decorrera um anno depois d'isso; mas ainda lhe retiniam nos ouvidos aquellas duas badaladas sinistras, que se haviam demorado muito tempo quietas no ar, apesar da velocidade do vento. Ao passarem junto do quartel do Populo, encostaram-se á parede do lado do seminario, para não serem presentidos da sentinella.

O seu louco amor continuára, durante alguns dias, n'uma casa da rua da Conega. Não foi muito tempo, porque Sallustio tinha tudo arranjado, e partiram pouco depois para o Porto, n'uma carruagem fechada. D'ali vieram em caminho de ferro para Lisboa. Angelina lembrava-se ainda de que, ao passarem de noite em Coimbra, vendo um monte salpicado de luzes mortiças, Sallustio lhe dissera apontando: «Que bons tempos ali passei!»

A voz de Angelina era meiga, simples e cativante. Reconhecia-se-lhe um arrependimento misturado de esperança, sorria e ficava triste alternadamente. Ermelinda Travassos, com os seus vinte e dois annos, tambem já estava desenganada do mundo, sentindo-se perfeitamente descrente em amores.

Homens, nem queria vêl-os, nem pensar n'elles, porque só lhe haviam dado desgostos e maus pagos. Tivera illusões como todas, mas actualmente considerava-se curada. Tiraria do seu trabalho o sustento de sua tia, o seu e o do seu filho, que estava na ama, sem esperar que o primo Anastacio, que a enganára, cumprisse com o seu dever. Parecia-lhe que o innocentinho de quatro mezes não teria longa vida!... Nascêra n'uma tremenda crise de doença que ella tivera, quando se viu abandonada d'aquelle que tinha direito de considerar seu marido; pois tambem lh'o promettêra, em juramento. Mas o que valem juras de homens!...

-- São uns monstros, minha senhora! Quanta mais amisade a gente lhes cria, mais ingratos se mostram! Só o que eu passei por causa d'elle! A minha vergonha durante o estado em que a menina anda! A morte repentina de meu pae,que foi por causa d'isso!... Ah ! nem me quero lembrar! Passou, está passado. Outro não me torna a illudir.

Angelina ficou triste, por ver esta rapariga, mais nova do que ella, já n'uma hostilidade declarada contra o mundo! Porém quil'a consolar e perguntou-lhe:

-- Está em Lisboa, o seu?

-- Vejo-o quasi todos os dias. Passa por mim e nem me comprimenta, o malvado! É que me não ficou conhecendo bem! -- completou com um sorriso d'amargura.

-- Esse então é muito mau homem! Sallustio ha de casar commigo, creia a menina que ha de casar. Tem-m'o dito. Por ora vivo aqui assim retirada; porque diz que sahiremos juntos só quando tiver a sua vida direita! O que eu desejo é tornal-o feliz, porque o merece. Poupo quanto posso e trabalho de noite para lhe ter tudo de que elle precisa. Faço-lhe boas camisas de peitilhos de bretanha: por uma que elle trouxe dura camiseiro, engommo-lh'as e escovo-lhe o fato... Deve ter visto como elle anda sempre janota! Assim é preciso. Como é deputado, tem de ir muitos dias a esses jantares dos ministros e a bailes!... E' verdade: a menina já viu algum ministro? Eu cá nunca vi. Como serão?

Ermelinda Travassos concentrou-se para responder:

-- Na minha rua, em frente da casa onde vivo, já morou um homem, que meu pae disse ser ministro. Era assim um magro, usava oculos de oiro, tinha bigode branco e era torto de um lado. Um fraca figura, que vivia n'uma casinha quasi tão pobre como a nossa, com uma creada gorda e um moço gallego. Eu ás vezes via figurões procural-o; mas o creado que estava á porta de fraque preto respondia sempre; «Sua ecxellencia não stá em cassa, xahiu». E esses individuos que vinham em carruagens deixavam bilhetes e íam-se embora!

Tambem lhe parecia, que outro homem que passava muitas vezes na rua de S. José, n'um cavallo preto muito gordo, com um municipal atraz, era um ministro. Seu pae, na companhia de quem vivêra sempre, poucas vezes lhe explicava estas coisas. Por isso não sabia com certeza e aconselhou Angelina:

-- Mas se a senhora quer saber, pergunte á D. Maria. Sabe tudo. E' muito boa senhora. Olhe, eu muitas vezes tenho ouvido fallar ao filho d'ella, ao senhor Augusto (ficou um tanto vermelha ao pronunciar tal nome!) no ministro da guerra!...

Angelina exclamou:

-- Ah! esse bem eu sei quem é, é o amigo cá do meu! Vae jantar com elle muitas vezes. Sallustio está sempre a dizer, quando falla commigo: «porque o ministro da guerra vae, porque o ministro da guerra vem, porque o ministro da guerra chega...» E' tambem a razão por que eu queria saber como eram os ministros.

-- Mas pergunte a senhora, á D. Maria, que ella sabe perfeitamente -- insistiu Ermelinda. -- Mostra-lhe logo algum, verá. Eu tenho ouvido fallar tanto n'esses homens, que em Lisboa por força deve haver muitos...

Angelina foi então mais familiar e intima:

-- Eu lhe digo a razão da pergunta. Elle disse-me que ainda havia de ser ministro. Ora eu queria saber ao certo o que era ministro. Creio que é uma coisa muito grande, por ahi além (e fez um gesto largo pela

janella fórá!...) E' por isso que anda mettido na politica! De modo que a senhora bem vê que, se em casa poupo muito e trabalho de dia e de noite, é para o trazer bem vestido e poder andar n'essa roda de senhores que vêem com elle até á porta.

Por muitas coisas que Sallustio lhe dizia, quando estava para lh'as contar, elle frequentava bailes onde appareciam mulheres com grande luxo de vestidos, plumas e fitas, como essas magras que Angelina tinha visto de carruagem, olhando para a gente com despreso! Não se sentia ferida pelo seu amante andar n'essas coisas onde ella nunca poderia ir. O seu bom senso plebeu explicava-lhe que Sallustio, para chegar aos seus fins ambicionados, devia fazer todas essas coisas de se mostrar em S. Carlos, nas festas do rei, ir para os palanques vêr passar a tropa, como ella o vira um dia no Aterro entre tanta gente fidalga. Ainda na terça feira houvera um baile em casa de um conde, e Sallustio fôra de casaca, gravata e luva branca, chapéu de molas, sapatos de verniz e meias pretas como as dos padres, mas com uma risca vermelha ao lado. O deputado empregava sempre grande apuro, quando se vestia para essas circumstancias, perfumando os lenços e a cabelleira... Angelina é que o ajudava a vestir, proporcionando-lhe no momento opportuno a camisa, as meias.. tudo que era necessario. Depois examinava se o engommado do collarinho, do peitilho e dos punhos em que ella empregára tanto esmero e cuidado, estava bonito.. Percorria-o com olhar interessado e contente, desejando que elle fosse o melhor possivel para agradar e parecer bem. E quando Sallustio se endireitava para repuchar o bigode ao espelho, Angelina toda n'elle se revia sentindo-se feliz, esquecendo a sua posição humilde e secundaria, julgando-se legitimamente envolvida n'aquelle problema de ambições em que o via enredado! Uma vez, n'um simulacro de hostilidade, disse-lhe, quando elle se dirigia para a porta:

-- Anda, que estou aqui a arranjar-te para ires fazer namoro a outras...

Elle, voltando a examinar-se diante do espelho, pronunciou meio sério:

-- Eu te digo... Se fossem ahi uns duzentos contos que eu conheço!... Ah! Palmira, formosa Palmira, o teu amor e duzentos contos !...

Angelina ficou sisuda e censurou-o:

-- E eras capaz de casar com ella se te desse corda?!...

-- Olha a duvida! Uma peste de duzentos contos! De -- du-zen-tos-con-tos! -- repetiu espaçando as syllabas.

A filha de Pedro Alves exclamou com a testa vincada:

-- E então eu!? Se casares com ella...

-- Não caso comtigo, é claro. E havias de ficar melhor; porque duzentos contos é muito bonito dinheiro.

Angelina, offendida no seu brio e nas suas esperanças, respondeu, já com os olhos rasos de agua:

-- Foi para isso que me tiraste de casa de meu pae?!

-- Não tenhas susto -- observou conciliador e sorridente.--Não ha annos de fortuna. Anda muito menino bonito atraz d'ella. Quem a pilhará é que se não sabe!

E rematou examinando-se ao espelho pela terceira vez:

-- Bem, agora só falta frisar. Vou ainda á rua Nova do Carmo, ao Augusto.

Saiu, descendo a escada devagar. Angelina ficou profundamente enleiada e triste. A boa rapariga, como forçada consolação, lembrou-se de ir pegar na costura para se entreter; porém a sua imaginação excitada principiou a crear hypotheses infelizes e crueis que lhe voltaram de noite em sonhos. Sallustio seria capaz de casar com outra mulher, só porque era rica, e abandonal-a a ella por ser pobre?! Talvez!.. Lembrou se da historia infeliz da Ermelinda Travassos, que esta lhe contára de modo tão simples e compungido, que a sensibilisára! Os homens são uns ingratos e crueis nos factos do amor! Ignoram os sacrificios obscuros que uma mulher virtuosa lhes faz, entregando-se-lhes pela primeira vez, confiada e sincera. O pudor, a religião, a familia, tudo se quebra n'um momento, impensadamente, como as creanças quebram a boneca mais estimada!... Mas é que, se Sallustio pretendesse casar com outra, Angelina não deixaria. Havia de escrever uma carta a essa senhora fazendo-lhe conhecer os compromissos contrahidos, que actualmente tinham um significado mais real, na gravidez. Este facto, que para ella fôra uma consagração e uma ventura, parecera-lhe ter desgostado o seu amante. Quando lh'o communicou, Sallustio exclamára instinctivamente:

-- Oh! diabo!

Ella, surprehendida, perguntou-lhe incerta:

-- Então não gostas!?

O deputado, depois de reflectir, certificou-lhe que tambem o desejava. Porém, o grito supremo da paternidade feliz, no qual Angelina toda a sua vida acreditára, o pae do seu filho não o tivera, dizendo pelo contrario, com expressão de prejudicado: «Oh! diabo!». Porque não casariam antes do nascimento da creança? O seu amante, com modo terno e confidencial, fallou-lhe longamente de conveniencias... Emquanto não fossem casados, Angelina podia ir vivendo obscuramente e ninguem reparava. Porém, depois d'esse acontecimento, vinha a ser outra coisa: teria de sair com elle pelo braço, de apparecer em algum theatro, de ir a alguma reunião familiar d'amigos, para o que lhe promettia mandal-a ensinar a dansar e a fallar francez. Estava á espera d'esse momento opportuno, quando fosse nomeado para o logar d'um conto e duzentos mil réis, que o ministro lhe tinha promettido. Angelina devia comprehender que a vida de Braga era muito diversa da vida de Lisboa, e que antes de entrar legitimamente na convivencia social de gente, que elle conhecia, era necessario aprender muita coisa.

Angelina, escutando-o com attenção, observou:

-- Aprender o que? Com quem? Não saio de casa, não vivo com ninguem!...

Sallustio, insinuante, esclareceu:

-- Não fallas muito com a vizinha do andar de baixo e com essa senhora que ahi vem? Pois olha, apesar de serem umas pobres que ganham a sua vida, têem melhores maneiras que as senhoras de Braga. Isto de mestras de piano entram em muito boas familias e sabem apresentar-se. Repara no que ellas dizem, pergunta-lhes o que ha pelas casas onde entram. Assim é que se vae aprendendo, pouco a pouco.

Mas Angelina não se importava... Desejava casar com Sallustio, só para ser sua mulher, para santificar o seu amor aos olhos de Deus, para reparar a sua falta dando a seus velhos paes uma satisfação consoladora. Tudo o mais lhe era indifferente. Até preferia continuar a viver aquella existencia obscura e servil, trabalhando para o seu amante como uma creada.

-- Mas eu é que não consinto -- affirmou o deputado com intimativa. Quando fores minha mulher, serás minha mulher. Quero-te a meu lado, onde eu apparecer...

Angelina ficou-lhe agradecida, mas continuou affirmando que se não importava que elle continuasse em divertimentos e theatros sem ella. Preferia ser-lhe util e proveitosa; a sua unica recompensa era continuar a ser amada assim obscuramente. Que a deixasse, pedia-lhe que a deixasse em casa, pois se sentia feliz. Ser sua esposa, viver na sua companhia como esposa, era a unica coisa que lhe pedia. A sua alma subiria direitinha ao céu, no dia em que Deus a quizesse levar d'este mundo, se podesse dizer que aquelle filho que actualmente trazia no ventre, era um filho legitimo e não dos outros. Sallustio tranquillisou-a:

-- Pois sim, isso ha de fazer-se a seu tempo. Mas deixa obter o emprego que me prommetteram... Ao menos quero alugar casa melhor. Isto assim está uma pulhice -- concluia deitando um relance de olhos desdenhoso á sua pobre morada.

E, como estivesse amoravel e loquaz, estabeleceu logo ali um plano de realisação: iriam casar a Braga, e demorar-se-hiam lá uns dois mezes. Depois voltavam para Lisboa, onde Angelina tomaria a valer o logar de sua mulher. Este procedimento claro legitimaria todos os factos anteriores, que ninguem mais havia de recordar.

-- Essas senhoras (referia-se á D. Maria Gomes e á Ermelinda Travassos) é provavel que depois te não tornem a encontrar, a não ser alguma vez na rua. São relações accidentaes, que se devem esquecer, com a mesma facilidade com que foram adquiridas. Por isso, recommendo-te certa reserva no tracto com ellas, de modo que, quando formos casados, não principiem a bater-nos á porta, com o fim de te visitarem.

Angelina observou com modo condoído:

-- Ora... coitadinhas! São pobres, mas é boa gente. Trabalham que é uma cortação d'alma. A tal D. Ermelinda tem uma tia cega em casa. Olha a pobre da rapariga! E então aqui em Lisboa, gasta-se tanto!...

E mudando rapidamente de tom, disse com sorriso ingenuo:

-- É verdade, a mim tambem me chamam D. Angelina. Não sei que me parece. Aqui em Lisboa todos têem dom... Acho que até as pobres da rua são donas. Um costume assim!...

-- São usos -- esclareceu Sallustio. -- Vês? É o que eu te disse, é preciso habituares-te. Quando fores minha mulher, até em Braga te hão de chamar D. Angelina. Pois então!...

A filha de Pedro Alves recusou-se:

-- Ora... deixa-te d'isso! Quero lá que me dêem dom em Braga! Aqui não me importo, que até as cadellas o têem; mas lá, onde toda a gente me chamava Angelininha! Isso não quero, tenho vergonha!

Uma lamparina ardia sobre a mesinha de cabeceira; como estavam na cama, a roupa amoldava-se-lhes aos corpos, pesadamente, como nas estatuetas de granito. O lindo rosto de Angelina, com o seu cabello negro, marcava-se na brancura do travesseiro. Como estava de costas, o ventre redondo avolumava-a. Não dormia, estava pensativa e enleada!...

Sallustio, ao voltar-se para o lado da parede com o fim de adormecer, disse aconchegando-se:

-- Vamos a ver que tal me saio ámanhã da minha resposta a Jorge Agualonga.

-- Deus permitta que andes bem -- pronunciou a filha de Pedro Alves, n'uma voz de prece. -- Eu, em Braga, os sermões de que mais gostava, eram os do conego Figueiredo -- recordou.

V

Para o deputado, o dia seguinte foi como o de uma batalha para um general.

Eram duas horas e meia, quando o presidente abriu a sessão. As galerias estavam apinhadas, havia muitas senhoras. A voz de Sallustio Nogueira era geralmente estimada, pelo seu tom cavo e solemne. Grande numero de pessoas gabavam-lhe o gesto amplo; outras tinham predilecção pela sua estatura de transmontano sadio.

Quando o deputado entrou na sala, das galerias olharam para elle com interesse. Sallustio affectou certo ar de indifferença, como o de um domador de leões, quando entra na jaula das suas féras. Parecia quasi despreoccupado, fingia ignorar que toda aquella gente viera ali por sua causa e de Jorge Agualonga, que replicava n'esse dia ao ministro das obras publicas, na questão das ostreiras. Elle estava marcado para responder ao violento orador da opposição. Emquanto corria a leitura da acta, alguns deputados tentaram a sua facundia em questões insignificantes «antes da ordem do dia». Os dois adversarios conservavam-se parolando um com o outro, junto do fogão da esquerda da presidencia, apparentando certa naturalidade e abandono, para significar deante do publico que se não temiam. Sallustio fallava com excessiva affabilidade, sorrindo para Jorge, gesticulando com moderação, quando lhe dirigia a palavra. Palmira viera com seu pae para o ouvir e estava na galeria a observal-o. Porém elle, apresentando-lhe de frente o seu busto de apotheose, fingia não ter intenção de se mostrar, ainda que fôra quem lhes escolhêra os logares, para verem tudo á vontade. Encontrára difficuldade em conseguir que Lioncio, em dia de tanto aperto, ficasse na galeria das senhoras, perto de sua filha. Aos homens não eram concedidos aquelles logares, mas como tivesse ido acompanhado de Sallustio e o capitalista se contentasse em permanecer de pé, encostado á parede, perto de Palmira, não houve reclamações.

Permanecerem os dois adversarios n'uma conversação apparentemente intima, maravilhou alguns espectadores, que reconheceram n'este facto um toque sympathico, um signal de elevada cultura e educação. Houve no entanto alguem que aventou estarem elles combinando os argumentos com que deviam brilhar mutuamente; esta opinião, porém, não foi compartilhada. Muitas pessoas disseram «isso não é possível»; alguns amigos dos dois oradores accrescentaram como testemunho: «logo os verão».

Quando o presidente, depois de se annunciar por um ceremonioso toque de campainha, disse que eram horas de entrar na ordem do dia, Sallustio e Jorge separaram-se com um aperto de mão affectuoso, indo o segundo para o seu logar n'um passo miudo e tropego, porque era bastante myope. Sallustio dirigiu-se á porta de saída, por baixo da galeria das senhoras, fitando n'essa occasião Palmira, ao mesmo tempo que passava a mão na luzidia cabelleira. A' respeitosa inclinação de cabeça do deputado, a filha de Lioncio respondeu com leve sorriso. Não se demorou muito tempo fóra da sala. Reentrando pela porta que está á esquerda da presidencia, encaminhou-se para o seu logar solemnemente, com passo cadenciado, mostrando o forro branco do seu chapéu alto ! Deixou-se cair na poltrona com desdem, abrindo depois a carteira, de onde tirou papel e um lapis para os apontamentos. Sallustio empregava em todos os seus gestos um commedimento premeditado... Para que o não julgassem presumpçoso, estudára certa desprevenção, enterrando-se na cadeira com o ar modesto do individuo que pretende furtar-se aos olhares impertinentes, que n'esse dia grave o deviam procurar!...

No entretanto, Jorge tinha começado a fallar, e á maneira que a sua opinião ganhava intensidade, o deputado do governo sahia involuntariamente da reserva preconcebida. Voltado para o orador opposicionista, olhava com energia todos os seus movimentos oratorios, sublinhava-lhe as melhores phrases com o avincado de testa, caracteristico de adversario. Aos argumentos que produzia Agualonga, sorria incredulo e desdenhoso, dando a conhecer aos ouvintes, que percebêra a argucia e a rebateria logo que chegasse a sua vez. Isto agitava os animos dos partidarios nas galerias que, face a face, diziam palavras de ataque reciproco, pronunciando os da opposição a cada boa phrase de Jorge «apanha», exclamando os governamentaes com azedume «que forte asneira!»

A voz de Agualonga era falhada, desigual, uma voz usada e velha. Tinha guinchos e momentos expectorantes, que davam, pela má impressão que isto produzia nas senhoras, um goso de victoria antecipada a Sallustio. Mas o ser considerado rapaz de talento e de estudo, o ter nome conhecido na polemica jornalistica quotidiana, garantia importancia aos seus discursos, apesar de terem para os homens, que desejam os negocios resolvidos praticamente, certo fundo theorico e doutrinario que os prejudicava. O deputado governamental temia-o; uma victoria sobre tal adversado dar-lhe-ia consideravel importancia, diante dos homens da politica e diante de Lioncio, que o detestava por causa d'uns artigos de polemica financeira em que o citára desfavoravelmente.

Agualonga, depois de exordio demorado e monotono, em que fallou do desequilibrio economico da sociedade portugueza, das más condições dos operários e das difficuldades da agricultura, por causa dos monopolistas, continuou a referir-se de um modo vago a uma questão, que annunciou como da mais subida importancia, como de um real interesse no actual momento e no assumpto que se debatia-- «a questão dos privilegios de certas classes sociaes, doutrina anti-scientifica, anti-philosophica e repugnante em face da comprehensão do direito moderno». Era a favorecida classe dos intermediarios que Jorge se referia, fazendo d'isto um preliminar, uma como rasão de ordem academica, antes de entrar no amago do assumpto principal. Sallustio, já um pouco fóra de si diante da avalanche de argumentos, citações e ironias tiradas de analisados economistas, tomava vigorosamente as suas notas olhando Agualonga com sorriso inimigo e ironico.

«A classe commercial -- especificava Jorge com a sua voz agressiva -- fundamentalmente parasita e expoliadora, é barreira insurmontavel entre o productor originario e o consumidor! O trabalho nullo d'essa potente classe é pago injustamente com um agio sobre a materia transmissivel, pela numerosa e infeliz classe dos consumidores, que desprotegida pelas nossas leis, aguenta quantas albardas lhe querem pôr. Diga-me vossa excellencia, senhor presidente, e diga-me a camara: o que devemos pensar de um homem que enriquece com milhões durante alguns annos de trabalho fiticio, pois que com elle nenhuma riquesa foi creada!?...

Ficou a olhar alguns momentos de um modo interrogativo, dominando a assembléa. Depois respondeu a si mesmo:

«Devemos pensar que esses milhões vieram ao seu cofre, attrahidos em virtude de especulações cavillosas; devemos pensar que no momento em que esse homem se acha rico, -- muitas vezes, assombrosamente

rico! -- milhares e milhares das suas desgraçadas victimas estarão sem pão sufficiente para matar a fome dos magros filhos e alguns -- talvez! -- agonisem na avulsa enxerga de um hospital, sem carinhos nem affectos! (apoiado de um opposicionista)».

-- Não apoiado -- rugiu Sallustio, escrevendo com precipitação e raiva no seu papel almaço.

Jorge Agualonga parou um momento, dirigindo um olhar severo até ao logar do deputado governamental. Depois continuou voltado para o presidente, que o escutava com a cabeça encostada á mão esquerda, n'uma somnolencia de convalescente. Retomando a palavra, exclamou com energia:

«Não apoiado, senhor presidente!?... Então como é que se explica que certo negociante, traficando dez annos...

Sallustio levantou-se colerico e interrompeu n'uma voz poderosa:

-- Traficando!... Traficando!... Protesto!...

Houve susurro nas galerias e na sala. Alguns partidarios de Sallustio, voltando-se para Jorge, repetiram iracundos o seu protesto, os troncos inclinados n'uma attitude provocante:

-- Protestâmos !... Protestâmos!... Retire, retire!

Agualonga um tanto pallido explicou:

-- Traficar, na accepção etymologica da palavra, quer dizer negociar.

Sallustio insistiu com mais energia:

-- Traficar quer dizer negociar fraudulentamente. Veja os diccionarios.

-- Um diccionario, um diccionario! -- berrava toda a maioria.

Jorge sustentou:

-- Tenho visto muitos diccionarios. Isto é classico. «As nossas naus traficavam na India». Leia Barros -- disse desdenhosamente voltado para Sallustio. -- Isto é classico.

O deputado governamental, que não era versado em litteratura, apesar de ter feito versos, empallideceu e pronunciou com um tregeito deprimente nos labios:

-- Ah! é classico!...

Mas, depois de ter escutado o que lhe disse ao ouvido um ecclesiastico governamental, insistiu com ousadia:

-- Não me importo que seja ou não seja classico. Vem do latim trans, «alem» e efficio, «conseguir». Conseguir alem, quer dizer, negociar fóra dos preceitos da honra.

Nas galerias o sussurro augmentava. Lioncio de Mertola, rubro de colera, pronunciou, alludindo a Agua-longa, de modo que se ouviu: «Grandissima besta! Se o pilhasse aqui a geito, eu lh'o diria com este... (e mostrava no ar um punho cerrado). Pagava-m'as todas juntas.

O presidente, depois de ter tocado insistentemente a campainha, pôde dizer:

-- Visto que o orador não teve em mente uma insinuação, considera-se que retira a mesma. No entretanto convido-o a modificar o estylo no seguimento do seu discurso.

Jorge, ageitando nervosamente a luneta, disse «não tenho duvida», e repetiu:

«Então como é que se explica que certo negociante, lidando dez annos, que eu concedo sejam de um labor assiduo, se encontre no fim d'esse curto espaço de tempo uma ou duas vezes millionario, emquanto que meu pae, homem de uma vida amargurada pelos trabalhos, meu pae que era uma intelligencia respeitada e impoluta, tivesse no dia em que morreu uma libra em casa! Terão os dias do negociante alludido mais de vinte e quatro horas?!... Trabalharia elle com maior numero de braços, com maior numero de pernas, com maior numero de cabeças do que meu pae! ? Onde estará a explicação d'esta injustissima, d'esta... infamissima desigualdade social?! Digam-me onde está!» --pronunciou voltando-se para Sallustio.

-- Logo lh'o direi -- obtemperou o deputado governamental.

«Logo m'o dirá?! Pois antes de vossa excellencia, vou eu dizel-o. O segredo, a explicação d'este monumental escandalo, d'esta injustiça que terá um dia uma expiação social (pronunciou com um dedo prophetico suspenso no ar), encontra-se no agio commercial excessivo e inconsiderado! Isto que se dá com meu pae, que é uma hypothese...»

-- Então não é uma realidade -- disse uma voz da maioria.

«É sim, senhor. A hypothese tem sempre o seu fundo de realidade. Tem a realidade mental. Isto -- continuou em voz de orador, depois de um momento de pausa -- que se dá com meu pae, póde e ha de dar-se com os paes de vossas excellencias, que de certo não têem milhões, como o negociante a que me reporto».

-- Mas quem é esse negociante? -- perguntaram.

Jorge Agualonga ficou alguns segundos silencioso, diante d'esta interrogação. Circumvagou o olhar pelas galerias, parou segundos n'aquella onde sabia estar Lioncio, e ageitando a luneta de oiro continuou:

«Não é ninguem, é imaginario, já disse. E' o commercio em geral. Eu só me refiro ao commercio em geral, convidando-o a ser cordato e a não abusar da sua posição, excessivamente favorecida na sociedade. Senhor presidente e meus senhores, a questão social está por resolver e é necessario, impreterivel, abordal-a de prompto. Se vos descuidaes, senhores deputados, (voltou-se de novo para toda a camara, abrangendo-a n'um olhar supplicante!) vós que tendes a força, que vem do suffragio (risos na galeria) e que tendes o saber que vem do estudo, (novos risos) podeis assistir á mais estrondosa revolução de que ha memoria. A nossa fidalguia acabou: -- bem hajam os homens e bemditos os factos que para isso concorreram! Morto este privilegio, é preciso que se não conservem outros, encobertos com apparencia de justiça. A lei da suppressão dos vinculos, vulgarmente conhecida pela lei dos morgados, foi o ultimo e temeroso golpe na existencia d'essa classe, que significava desigualdade entre irmãos. Bemditos sejam para todo o sempre os legisladores que a promulgaram. A historia não esquecerá os seus nomes venerandos. Os monopolios do sabão e do tabaco tambem não existem. Serão conservadas em letras de oiro, no immorredouro templo do porvir, as memoraveis datas d'estes acontecimentos. E é n'este instante, quando vae tão alta a civilisação, que se pretende conceder o monopolio das ostreiras! Em que tempos estamos nós, senhor presidente! Vamos entregar a um individuo, ou a uma associação formada por um numero restricto de individuos, o exclusivo de explorarem uma parte importante das nossas costas, com o fim de só elles cultivarem ostras, quando por toda a Europa os privilegios vão acabando! É só uma parte das nossas famosas costas, poderão allegar! Ainda que fosse um palmo. O monopolio é odioso em principio e tanto basta. Elle tende a excluir todos, menos aquelle que fica com o privilegio, ou seja uma sociedade ou seja um só homem. Suppunhamos que eu, Jorge Agualonga, deputado e jornalista, desejo ou quero promover a reproducção, a cultura como se diz technicamente, do saboroso mollusco, no mesmo ponto da costa portugueza pedido pelo concessionario ! Podel-o-hei fazer? Não, depois de dado este exclusivo, que eu reputo odioso e absurdo. Absurdo e odioso reputo-o eu, senhor presidente, em nome da sciencia e da humanidade! Se quereis conservar e engrandecer as instituições -- concluiu voltando-se para o banco dos ministros -- é necessario não attentar contra as liberdades, que tanto custaram a nossos paes. Se tendes sincera vontade de firmar em bases seguras o throno, desvelo e empenho de todos nós, só o podereis conseguir promulgando leis e praticando actos, em que sejam sempre acatados os eternos principios

da justiça, em que seja respeitada esta liberdade que tem fomentado o progresso e a prosperidade da nação, desde que o Immortal Dador nos trouxe essa aurora divina no gume brilhante da sua espada immorredoura. Elle quebrou as algemas, não deveis vós outros vir-nos ligar os pulsos. De outro modo sereis subvertidos pela tempestade revolucionaria, que ruge lá fóra. Os desvarios dos homens podem trazer a ruina das instituições, que todos amâmos, pelas quaes eu estou e todos nós estamos resolvidos a dar até a ultima gotta do nosso sangue!»

-- Apoiado! Apoiado!... -- pronunciou-se sem enthusiasmo em diversos pontos da camara.

Jorge Agualonga sentou-se extenuado. Vieram alguns amigos da opposição apertar-lhe a mão e na galeria popular perpassou um sussurro de carroça rodando. Em baixo, na sala, em quanto Sallustio dispunha os seus papeis, como um general os seus soldados para um combate, conversava-se alto e distrahidamente. O presidente, que era obeso, aproveitou as circumstancias para se remexer na cadeira, e n'um tom desvalioso deu a palavra ao deputado do governo. Um ligeiro rumor, vindo da tribuna diplomatica, chamou as attenções de muitos deputados, que logo se voltaram para lá. Sallustio já estava de pé, com o lapis tribunicio na mão e as palavras «senhor presidente» á flor dos labios; mas tambem levantou os olhos, para averiguar...

Entraram n'aquelle instante a condessa de Frazuella, a viscondessa de Aguas santas e sua sobrinha, esposa do general Gonçalo. Isto produziu boa impressão em toda a sala. O deputado reconheceu-o e sentiu-se orgulhoso com este facto, que era uma consagração da sua eloquencia. Passou lentamente a mão aberta na cabelleira, depois cofiou o bigode com esmero. Aquellas senhoras, justamente conhecidas na politica e na sociedade, vinham para o ouvir. Chegavam n'um instante especial, para elle bem decisivo e valioso! Só mulheres de uma alta educação, como a condessa de Frazuella, é que podem inventar estes pequenos nadas de alta significação e valor inestimavel. A seu parecer o momento da entrada fôra calculado para dar maior realce ao apparecimento. Um timido mas saliente descer da sua cabeça e do seu olhar, foi o meio de que o deputado se serviu para agradecer a distincção, que acabava de receber. A condessa correspondeu-lhe atra-vez do seu lorgnon, emquanto Josefa Lencastre cumprimentava Palmira que vira n'outra galeria.

Sallustio principiou o seu discurso em voz pausada e reflectida, considerando o assumpto como um dos mais momentosos, que se podiam debater n'aquella casa. Estimava que a discussão seguisse caminho levantado. Tinha grande acatamento por todas as opiniões emittidas franca e lealmente, exigindo que lhe garantissem igual fôro. No seu espirito recto e imparcial, de tal modo imperava o respeito dos outros, que era o respeito de si proprio que, mesmo no caso presente, apesar de ter sobejos motivos para ser castigador, evitaria o tom aggressivo improprio do parlamento, para seguir a linha de uma argumentação cerrada, desfazendo todos os sophismas, que outra coisa não eram os de um discurso, brilhante de certo modo pelo esplendor da linguagem e pela copia de citações, mas pobre em verdadeiros argumentos e deploravel nas idéas expendidas. E interrogou directamente todo o seu publico incluindo a opposição parlamentar:

«O que pretende o governo, concedendo uma parte da nossa formosissima costa oceanica, para que uma companhia possa explorar a cultura do -- como muito bem disse o illustre orador--saboroso mollusco que se chama ostra?!... Sim, o que pretende o governo concedendo este privilegio!?... Fomentar a riqueza, abrindo aos capitaes caminhos para novos e arrojados commettimentos. Quem fica prejudicado? Ninguem. Quem ganha com a concessão? Todo o mundo. Com este insignificante monopolio (disse com ironia) e pela simples regularidade das leis de procreação, todos nós podemos comer ostras melhores e mais baratas. Ataca-se a liberdade individual por este facto! Como! pois só por se prohibir que alguns desgraçados pescadores continuem uma industria que nunca os livrará da miseria, devemos obstar a que eu, que estimo as ostras, vossa excellencia, senhor presidente, que tambem d'ellas não desgosta, porque lh'as tenho visto comer e o mesmo illustre deputado a quem as ostras não são antipathicas, nem desagradaveis, pela mesma rasão que apontei para vossa excellencia, deixemos de as ter em rasoavel abundancia e por um preço conveniente?!»

Houve uma ligeira galhofa em toda a camara. O presidente sorrindo confessou com um aceno de cabeça a predilecção que tinha pelo marisco; mas por meio de um movimento de hombros e de um gesto em que significava tirar de si alguma coisa, advertiu o orador de que se não tratava da sua pessoa. Sallustio, entrando n'esta troca mimica de sentimentos, tambem sorriu mostrando ter comprehendido... Porém, com o fim de se desculpar, observou n'um áparte «é uma comparação», e retomando a sua attitude de tribuno continuou:

«Isto não se comprehende! Se não fosse conhecer a posição especial do meu sabio contendor, que veiu aqui com mandato opposicionista, não acreditava que tal se dissesse a sério (apoiados). Mas a opposição, ainda que combata o governo, dever que lhe não contestâmos, entendo que melhor fará á propria causa, procurando questões que não sejam tão antipathicas ao publico, que, desejando comer ostras boas e baratas, estima que se faça esta concessão (muitos apoiados). E' preciso não exorbitar, não fazer politica de tudo e por tudo. Fallo á rasão das pessoas esclarecidas e á consciencia dos homens imparciaes. As minhas palavras, inspiradas na mais recta inteireza e justiça, levarão ao animo dos membros da propria minoria o convencimento de que o governo, n'esta como em muitas outras questões, tem procedido sempre com boa vontade de servir o paiz e os altos interesses publicos que lhe estão confiados. Reconheço a minha insignificancia diante dos luminosos astros que n'estas cadeiras têem resplandecido, um José Estevão de gloriosa memoria, um Garrett, um Rodrigo da Fonseca e um Passos Manuel! Porém, quando a causa é justa como a que actualmente se ventila, não me fallecerá o animo para impôr a mim mesmo o dever de pugnar pelos verdadeiros e unicos principios em que acredito e que poderei resumir em duas palavras gigantes, que todos nós temos escriptas no coração!...»

Suspendeu e tomou folego, pois desejava que sobre esta affirmação de doutrina cahissem as attenções dos espectadores, muito especialmente a de Lioncio de Mertola a quem se dirigia mentalmente. Depois continuou n'um tom claro e solemne:

«Essas duas palavras são Progresso e Ordem! (muito bem). Ordem mais do que progresso, porque sem ordem não ha progresso possivel. As instituições que felizmente nos regem, as quaes o illustre deputado não ama... (surpreza de Agualonga e aspecto de reclamante) não adora com mais fervor do que eu (Jorge voltou ao seu aspecto placido, apasiguado com a rectificação); o sabio monarcha que com tanta prudencia, quanta sagacidade preside aos destinos do paiz, devem ser objectos de nosso respeito e de todo o nosso amor (applausos geraes, Agualonga inclina a cabeça). Os notaveis oradores da opposição podem ter a certeza de que os homens, que estão sentados n'aquellas cadeiras, sabem bem as responsabilidades a que se obrigaram. Sabem muito bem, embora a sua modestia lh'o não deixe confessar, que a maioria d'esta casa tudo espera d'elles, pois não ignorâmos quanto empenho, quanto desvelo, quanto talento empregam na resolução das arduas questões, que lhes estão confiadas. Sim, en hores! Elles desejam corresponder ao muitissimo que é legitimo confiar nas suas altas faculdades e pouco viverá quem não verificar como hão de cumprir a sua nobre missão.»

A maioria teve um movimento de enthusiasmo e agradecimento, por estas grandiosas palavras e principiou a vociferar repetidos apoiados. Os ministros, trocavam entre si palavras de elogio ao deputado por Guimarães, enviando-lhe sorrisos d'affecto.

Depois de alguns instantes de silencio, Sallustio continuou n'um tom mais calmo:

«Lamento, e lamento profundamente, que as expressões do meu illustre contendor não correspondam ás verdadeiras idéas de Progresso e Ordem, de amor ás instituições, á familia real e á manutenção dos interesses creados e estabelecidos, principios que -- sempre! -- por sua excellencia foram compartilhados, em numerosos e brilhantissimos discursos, como os que tem pronunciado em occasiões de melhor sorte. As suas palavras de hoje não correspondem ás suas idéas de hontem, e é o que me punge! Esta intelligencia illustrada e ordeira, este homem sensato alimentado no ubere das melhores doutrinas, depois de ter pronunciado notaveis orações, como aquella magnifica e patriotica ácerca do nosso Imperio Africano e a outra excellente a proposito da urna que elle, como eu, como todos nós, queremos livre e desassombrada de pressões nefastas... vem hoje, inesperadamente, atacar a existencia dos intermediarios, atacar a nobre, poderosa, intelligente (olhou para Lioncio de Mertola, que com um aceno de cabeça o approvou da galeria) classe commercial! Que quer isto dizer, meus senhores?! Como se ousa negar a benéfica influencia do corpo do commercio, origem de toda a nossa riqueza e de todo o nosso conceito diante do mundo, que nos admira, que está com os olhos no nosso futuro! O commercio, meus senhores, é na actualidade a base de toda a riqueza, do bem estar do povo, e o mais seguro fiador da ordem e da moralidade. Com o commercio e com a religião conquistámos nós mundos desconhecidos. E' na classe commercial que se encontra maior numero de homens de intelligencia e de fecunda iniciativa. Entre elles eu conto alguns valiosos amigos. O commercio, meus senhores, quereis saber o que é? (suspendeu a interrogação, olhando de novo para o pae de Palmira). Quereis saber? E' o credito, é a prosperidade, é a agricultura, é o trabalho, é o capital, são os melhoramentos materiaes, é o progresso, é a ordem, é a industria e é -- quasi se póde dizer -- a propria sciencia e intelligencia em acção!...»

O commendador Lioncio curvou-se ao ouvido de Palmira para dizer:

-- Hein? Que te parece? Eu não sabia aquillo. E o outro malandro a dizer um chorrilho d'asneiras! (Alludia a Agualonga).

«Não é o descredito, nem a ruina da agricultura, nem a falta de trabalho, nem a depreciação do capital, nem a tibieza nos melhoramentos materiaes, nem a negação do progresso e da ordem, a ruina da industria, o inimigo da sciencia e da intelligencia. (Muitos e calorosos apoiados.) Como é, pois, que o illustre deputado, um dos ornamentos da nossa tribuna oral e jornalistica, tem a... coragem, digo bem, a coragem de atacar a benemerita classe commercial, toda trabalho e riqueza?!...»

-- E' porque é um grandissimo asno! -- resmungou Lioncio na galeria.

Jorge levantou-se e, curvado sobre a carteira, dirigiu-se ao orador:

-- Peço perdão. Eu não ataquei o commercio, onde tambem conto excellentes amigos.

-- Oh! que grandes amigos hade ter! -- exclamou ironicamente o pae de Palmira.

Sallustio Nogueira perguntou:

-- O quê? Vossa excellencia não atacou o commercio?!

-- Não, senhor, porque era um disparate.

-- O valentão recúa! -- disse alto o commendador.

-- Papá !... -- observou Palmira, pedindo-lhe silencio.

-- Então que atacou vossa excellencia?--perguntou Sallustio.

-- Não ataquei coisa nenhuma. Disse que sendo postos actualmente em cheque os intermediarios, por grandes pensadores como Proudhon, os monopolios, que são uma formula fechada de commercio, se se vierem a adoptar em larga escala, poderão provocar uma justificada revolta.

-- E isso não vem a ser a mesma coisa? Uma revolta! Quer dizer uma revolução?! Que revolução?! Aonde?!

Como?! Quando?! Contra quem?! E' preciso sabermos determinar precisamente as condições de um phenomeno, para que as nossas palavras tenham valor. (Apoiados.) Quando tal se não faz, serão bellas utopias, phrases sonoras e retumbantes, mas não poderão convencer homens frios e raciocinadores como eu me prezo de ser.

-- Nem eu pretendi convencer de coisa nenhuma a vossa excellencia-- redarguiu Agualonga.

O presidente:

-- Ordem, meus senhores. O distincto deputado (dirigindo-se a Jorge) se quer a palavra, faça favor de a pedir.

Sallustio, com os olhos vermelhos e injectados, pronunciou, voltado hostilmente para o adversario:

-- Não me pretendeu convencer a mim?! Então quem pretendeu convencer?! Sim, porque o illustre deputado fallou para alguem, quiz convencer alguem. Quem é esse alguem?

Jorge Agualonga:

-- O paiz.

O presidente:

-- Meus senhores, peço ordem. Eu acabo com isto, retiro a palavra, se continuam n'essa cavaqueira.

O orador, fóra de si e sem attender ao presidente, continuou de um modo violento contra o adversario:

-- O paiz! Foi o paiz? Quem é o paiz? O paiz somos nós todos (apoiados): o illustre deputado, o senhor presidente, eu, todos nós que aqui estamos, todos que nos ouvem. O respeitavel corpo commercial é o paiz. O paiz é todo o homem que pensa e que trabalha. E' para elle para o seu engrandecimento, que devem ser dirigidos os nossos esforços, o emprego de toda a nossa actividade. No dia em que o paiz--o verdadeiro, paiz a que me refiro -- deixar de ser isto, senhor presidente e meus senhores..., então está tudo acabado! E completou a phrase abrindo os braços, n'um gesto desolador.

-- Babau !...-- disse um anonymo escarnecendo na galeria.

O orador rematou, mostrando-se cansado:

«Tenho dito.»

Foi muito comprimentado. A condessa de Frazuella D. Josepha e sua tia enviaram-lhe parabens, num ligeiro e intelligente sorriso. Palmira confessou ter gostado muito de ouvir Sallustio. Porém, Lioncio, que se não satisfazia inteiramente com estes processos de polemica, sentindo profunda indignação contra Jorge, disse limpando o suor da testa:

-- Era de outra maneira, que eu lhe responderia ao tal senhor Agualonga, Agua curta, ou que diabo é! Que bom marmeleiro!

Os deputados da maioria accumularam-se em volta do orador, que se lhes entregava a esmo, sentindo-se agarrado pelo tronco, pelos braços, pelos hombros, pelas pontas dos dedos... O presidente do conselho, marquez de Tornal, approvou o de longe com um diplomatico e lento aceno de cabeça. Porém o general Gonçalo, que, durante o tempo que levou o discurso, só pensára em se ostentar diante de sua mulher, calculando que ella gostara de ouvir Sallustio, subiu os degraus da coxia, para apertar affectuosamente a mão do deputado, dizendo-lhe n'uma voz de preço: «Boa impressão!»

As senhoras, á saída, encontraram Sallustio na escada. Vinha para as acompanhar á carruagem. A Frazuella, estendendo aristocraticamente a sua mão branca e fina, certificou-lhe:

-- Meu marido gosta muito de si, creia.

A viscondessa de Aguas-santas, perfeita conhecedora da historia parlamentar portugueza, por n'ella ter vivido intimamente, acrescentou, acompanhando-se de um ar saudoso, pondo os olhos em branco:

-- Oh! quanto me fez lembrar os homens do meu tempo: o José Estevão, o Rodrigo, o Costa Cabral!

Palmira não o elogiou, e Sallustio, reparando n'este silencio, perguntou-lhe:

-- Não é um rapaz de talento, o Jorge Agualonga?

Mas Lioncio é que respondeu furioso n'um tom que não admittia replica:

-- E' um grandissimo asno! Não me gabe esse mariola.

E bufava por fórma que todos entenderam não fallar mais da sessão.

Josefa, lembrando-se no meio da escada que podia levar seu marido na carruagem para casa, disse ao deputado com certa naturalidade:

-- Olhe, vá dizer ao general se quer que espere por elle.

E, durante o tempo que Sallustio Nogueira gastou em levar ao ministro da guerra esta pergunta de sua esposa, as senhoras foram descendo. No atrio, junto do portão benedictino, esperaram a resposta, e então fallaram com elogio do deputado por Guimarães, concordando todas em que este rapaz tinha diante de si um esplendido futuro!...

VI

O ministro da guerra accedeu pressuroso ao convite de Josefa, que elle adorava, cada vez mais lascivo. O casamento tinha-lhe feito bem -- diziam. Parecia outro homem, caminhava na rua e nas salas com tal impeto de juventude que maravilhava... Parecia ter adquirido, no contacto da pelle fina de sua mulher, a frescura e o vigor de uma nova mocidade. Tornára-se menos rigoroso e disciplinador para os proprios inferiores, sorrindo-lhes ás vezes com delicadeza e condescendencia, o que desmentia os seus antecedentes de militar rigoroso e grosseiro. A felicidade amollecêra-o. Os primeiros tempos de noivo vivia-os como se estivesse sonhando n'uma poltrona flaccida, depois de longa marcha.

Aquella carne velha tinha adquirido tonicidade e macieza. O bigode repintado e o chinó brilhavam como azeviche... Porém, os maledicentes assignalavam-lhe» quando o viam de braço dado com a encantadora Josefa Lencastre, enfraquecimentos instantaneos, inconsciencias de organisação caduca, denuncias de velhos rheumatismos, tantas vezes gritados na cama.

A esposa calculava essas ironias ponteagudas, que lhe vinham em sorrisos amaveis. Como mulher altiva, nos primeiros tempos planeou passar sobre ellas triumphantemente, esmagando-as como cabeças de serpe. Por isso nunca se esquecia de affirmar, quer publicamente, quer em conversas particulares e intimas, quanto era feliz no seu novo viver.

-- Olha, minha querida -- dizia á Frazuella--tu bem sabes o que se ouve dos maridos novos. Todos têem fóra de casa mulheres a quem sustentam. Com um marido como este a gente vive mais descançada.

A condessa respondeu com o seu intelligente sorriso:

-- E' verdade, é... Porém eu nunca me importei. Sei que o Paulo tem tido amantes e... até gosto, sabes? Fica a gente mais livre.

-- Não digas isso!--retorquiu Josefa.-- Se tal me acontecesse, dou-te a minha palavra que me separava.

-- Ah! não tenhas medo, não te acontecerá... O general adora-te.

E colhendo uma rosa, pois estavam no jardim, poz-lh'a junto da cara dizendo:

-- Como te vae bem esta côr! Rosas com rosas, costuma-se dizer.

O comportamento de Josefa era conforme ás suas palavras. Mostrava-se infinitamente, quasi infantilmente, amorosa do general. D. Cesaria, a malevola D Cesaria, esposa do magro ministro da marinha, disse um dia que ella fazia todas estas coisas com mêdo de que os outros não acreditassem na sua sinceridade amorosa. Pura maledicencia. Ao contrario d'isso, nos primeiros tempos de casada viam-na sempre na intimidade do general, tanto em casa, como na rua. Saíam frequentemente de carruagem e, ao passarem no Chiado, em frente da Havaneza, onde estavam reunidos rapazes que a tinham namorado, Josefa redobrava de attenções com seu marido, fallando-lhe junto do rosto, chegando-se-lhe n'um contacto evidente para dar publico testemunho da sua felicidade conjugal...

Se tinha de parar no Godefroy para escolher os seus perfumes, ou na Aline com o fim de fallar das suas toilettes, para atravessar o passeio, para ir da carruagem á loja, não prescindia de tomar o braço do marido, apoiando-se-lhe com requebros de juventude. Se casualmente ahi encontrava alguma das suas amigas» d'essas mais tidas por linguareiras e invejosas, Josefa exhibia com audacia o seu bem estar, fazendo despezas só para apregoar a fortuna do general a quem fallava com palavras ternas, chamando-lhe em voz languida filho, amor... Elle correspondia-lhe concordando em todas as prodigalidades e propondo ainda outras. Sentia-se vibrar de sensualidade, exprimia-se enternecido como um galan de theatro, procurava demonstrar ser homem para aquella mulher juvenil e louca. Esta exposição de venturas, principalmente do lado de Josefa, repetia-se tão frequentemente, que uma noite, em casa dos Frazuellas, uma senhora disse depois d'elles sahirem:

-- Tem mêdo que se lhe acabe.. Pois se elle é tão velho!...

Moravam á Estrella, n'uma casa com mobilia rica

muito doirada, conhecendo-se patentemente a intelligencia do estofador, que tivera recommendação de fazer tudo com brilho. Durante o primeiro mez de noivado, o ministerio da guerra esteve a cargo do marquez de Tornal, que o geria com a mesma vantagem com que sobraçava a pasta dos estrangeiros e à do reino. Porém, mesmo depois de reassumir a administração a seu cargo, o general continuou a viver em volta de sua mulher, na intenção de adivinhar todas as exigencias d'aquella organisação delicada, os otimos segredos d'aquelles nervos, que o tinham enchido de felicidade. E, ás vezes, no seu gabinete de ministro, ordenava que o deixassem só, para se deitar a pensar, curvado sobre a larga carteira burocratica, como é que elle, um velho rude, um corpo plebeu, pudéra adquirir o direito de gosar aquella estatua de neve, aquelle encanto de mulher tão appetecida. Chegava a reconhecer-se indigno de tamanha ventura! Tinha a desconfiança dos seus encantos: tirava do bolso um pequeno espelho, que trazia escondido, e examinava-se com demora, tendo momentos de desalento com lagrimas nos olhos! Quando depois entrava em casa, fartava Josefa de carinhos, de palavras de amor, de pedidos exigentes para que lhe jurasse que o havia de amar sempre... sempre...

-- Pois sim, pois sim, -- respondia lhe a galante rapariga, afastando-o benevolamente.

Ao fim de tres ou quatro mezes de casada, Josefa Lencastre, tão viva e desejada, principiou a reapparecer na sociedade, nos bailes, nas festas publicas, d'onde certo pudor convencional a tinha afastado transitoriamente. Aquella convivencia intima com um velho principiava a encher-lhe o coração de tédio, um tédio negro que lhe invadia todo o ser! Já lhe evitava os desejos sem o querer offender... Procurava com delicadeza occultar a tremenda tristeza, que ella ennovelava sósinha nas suas tardes de solidão. Recostada na chaise longue de velludo carmesim, os pequeninos pés calçados em sapatos de mundana, as meias de seda azul apparecendo no meio de espuma de rendas, era adoravel n'este preludio de melancholia... Olhos vagos no tecto, as mãos entrelaçadas sobre a cabeça, entregava-se ao doloroso trabalho de commentar a sua vida estreita. N'este meditar, tanto se exteriorisava que ouvia os risinhos irritantes das suas amigas, no meio de phrases ironicas, que lhe feriam o orgulho. Sentia-se nervosa, queria não tolerar o peso d'aquellas affrontas, e jurava mais uma vez vencel-as, mostrando-se sempre escrava do dever. N'estas luctas de só comsigo, readquiria ás vezes grande fortaleza; mas tambem acontecia ficar aniquilada como se tivesse cahido n'um fundo pégo. Considerava quanto o general era bom, affavel, condescendente e... paternal; porém, se lhe ouvia o ranger das botas, estendia depressa a mão para qualquer dos romances que tinha na étagère e abria-o, fingindo-se absorvida na leitura. Gonsalo queria tirar-lhe o livro e reprehendia-a amorosamente:

-- Sempre a ler, encontro-a sempre a ler... Até póde estragar esses lindos olhos d'amora!...

Mas ella pedia-lhe:

-- Deixa-me acabar este capitulo...

-- Não deixo. Ha mais de cinco horas que estou fóra de casa, que te não vejo!...

Josefa condescendia. Fallavam de coisas futeis; visitas que tinham vindo... pessoas que elle encontrára... O general estivera no paço e tivera a honra de beijar a mão de sua magestade a rainha... Josefa perguntava como era a toilette da rainha, e vendo que seu marido não a sabia esclarecer, afastava-o com desdem dizendo:

-- Não serves para nada!...

Havia, porém, occasiões em que Josefa se sentia, depois do seu muito scismar, contrariada e nervosa. Então, logo á primeira meiguice do marido, afastava-o de si, pretextando com um lindo amúo:

-- Está um calor!... Deixa-me ler. Estou tão entretida!..

Apesar da graça e candura que manava da sua voz flexivel, pronunciando a ultima phrase que era uma desculpa, o general saía triste, indo para o jardim passear devagar, como uma sentinella. Mas... como a adorava, reconhecia, ao fim de certo tempo, que sua mulher tinha rasão, que aquillo não eram termos n'um homem da sua edade, e formulava juras mentaes para se reprimir, para se conter, para calcar dentro do peito todas as caducas sensualidades!... Por isso voltava a encontrar-se com Josefa, circumspecto e cheio de tacto. Fallava em voz natural do ultimo baile do Frazuella, da proxima festa no paço, ou da futura epocha de S. Carlos, que já se discutia...

Foi n'um d'estes dias solitarios, d'um aborrecimento

vago, como nuvens escuras errando sobre um mar infinito, que a mulher do ministro da guerra recebeu a seguinte carta de Angelica de Agramonte, uma intima do collegio, que vivia no Porto.

Minha querida Filha:

Bem cuidei que este anno te encontraria em Lisboa! O papá muito o desejava e já tínhamos tudo preparado para nos demorarmos ahi tres mezes, com o fim de ouvirmos musica em S. Carlos. Rodolpho iria tambem, porque os seus negocios lhe facilitavam o estar ahi algum tempo. Contava abraçar-te, estar comtigo, fazer-te as minhas confidencias, a ti que és a minha melhor amiga. Porém, todos os nossos planos se transtornaram de um modo inesperado, e, apesar do muito que te quero, este transtorno foi-me immensamente agradavel. O meu casamento está proximo, para d'aqui a tres semanas sómente. O meu noivo tem de partir para Londres, com demora de mais de um anno. Como nos adorâmos e elle não póde viver sem mim, quer que eu o acompanhe. E tem immensa rasão, porque eu tambem não posso estar muito tempo distante de Rodolpho...

Escuso dizer-te, meu anjo, que este casamento me dá toda a felicidade que eu pudesse apetecer. Apesar de ser motivo para não gosar da intimidade da minha melhor amiga, não serei tão impostora, que te affirme que me é extraordinariamente penoso deixar-te. Tyrannias do amor, que tu tens supportado gostosamente como eu;

pois já estás casada e pelas tuas cartas reconheço que amas como deves teu marido, o teu general, o teu ministro, como dizes com tão excessivo orgulho. De modo que, boa Finha, dentro de pouco tempo, a tua Gelica, aquella estouvada do collegio, estará no rol das senhoras sérias e verdadeiramente felizes como tu és. Será isto verdade?! Quasi me custa a acreditar, ainda que, se a minha sensibilidade me não engana, tenho a pelle da cara afogueada, pelo calor de um beijo, que o atrevido do meu noivo me roubou no vão da janella, emquanto meu pae conversava despreoccupadamente na sala. Sempre os homens são muito ousados !... O teu general tambem te fazia o mesmo, quando noivavas?... Havia de fazer, e tu havias de consentir, porque elles e nós somos sempre a mesma coisa!...

Como são difficeis de passar estes detestaveis dias, que precedem o casamento! Tratar dos nossos arranjos de enxoval é ao mesmo tempo alegre e fastidioso, não achas? A gente, no meio d'esse encantador trabalho, esquece-se de muita coisa por causa do amor e fica assim com cara de lorpa, a olhar para o tecto... o que é uma vergonha, por causa de quem nos vê. Em que se pensa n'estes momentos ?! Ninguem o sabe; comtudo muita gente deita mau sentido e ri-se de nós. Hontem por causa de um dito de uma senhora velha, que me perguntou, no meio de uma d'estas distracções e diante de gente, em que pensava, fiquei tão envergonhada... Que lhe importava a ella, em que é que eu pensava?! Ora, não ha, um atrevimento assim!

Mas a verdade é que eu pensava em qualquer coisa, não sei bem em quê!... Este entrar em vida nova, para a qual, é certo, estamos de ha muito tempo preparadas, é mais difficil do que muita gente calcula. Tu já casaste e deves saber que uma mistura de contenta mento e de receio, um temor intimo, uma accumulação de desejos contradictorios enchem todo o nosso seio. O que será isto, minha querida Finha ? Diz m'o tu, que tens a experiencia. Porque será que nos sentimos opprimidas diante do doirado sol da felicidade, que nos deve alegrar os vinte annos?!.. Expliquem m'o as senhoras casadas.,. Tu has de por força sabê-l'o! ..

Será porque eu não ame sufficientemente Rodolpho?! Oh! não, não! Risca d'esta carta uma supposição tão estupida. Melhor que ninguem sabes quanto o amo e como elle é digno de todo este immenso amor. O simples som da sua voz musical faz-me estremecer! Mesmo que elle esteja distante de mim, fallando em assumptos triviaes, que me não interessem, a sua voz, o encanto da sua voz, delicia-me e enamora me extraordinariamente. Rodolpho tambem me corresponde por modo que vivo uma vida deliciosa. Até os seus ciumes desnecessarios, porque eu só penso n'elle, me enchem de ventura!... Tu não o conheces; mas hoje, dentro d'esta mesma carta, vou-te mandar o seu retrato e verás como é um perfeito rapaz. Porém, acredita e não te rias de mim, Rodolpho é mil vezes mais bello do que o retrato diz. E' um rapaz alto, muito elegante, desembaraçado como um verdadeiro inglez. A sua barba loira e fina, é a barba mais bonita que tenho visto. O cabello é corredio; mas cae-lhe admiravelmente sobre os lados da testa larga, toda intelligencia. Tem uns olhos azues, de uma penetração languida, mas firme, que só dizem amor e poesia. O seu olhar fascina, dá-me intimas commoções, quando o contemplo; tem sobre os meus nervos tal imperio, que me subjuga. Nem elle sabe o que poderia fazer de mim em certas occasiões. Os dedos das suas mãos, são finos e compridos, adelgaçados para as pontas, como os lindos dedos da nossa amiga Othilie, que nunca nos fartámos de admirar, n'aquellas lindas tardes de maio, na cêrca do convento!...

Estou-me tornando ridicula com a pintura do meu futuro marido, não é verdade? As senhoras casadas, em geral, riem-se d'estas puerilidades; mas as senhoras casadas foram solteiras e fizeram o mesmo que a gente faz!... Demais a mais tu ainda deves estar muito noiva. Ri-te á vontade. Como vives longe não me podes fazer chorar, causando-me perrices como no collegio, quando viamos, atravez das grades, passar aquelle que montava um cavallo preto, e de quem tu gostavas muito...

Esqueçamos velhos peccados!... Creio que já te disse que Rodolpho é nascido no Porto, de familia ingleza. Actualmente é, em Portugal, representante das maiores fabricas de algodões de Manchester. Não vás por isto suppor que elle é algum caixeiro. Sim, tu a mulher de um ministro, has de ser orgulhosa e fazer supposições, talvez pouco favoraveis ao meu Rodolpho. Pois, senhora conselheira, é educado em Londres; esteve annos em Paris, frequentando as Tulherias; sabe a litteratura, a historia, as linguas... até o latim, a ponto de deixar embasbacado um bom padre, nosso amigo, que vem aqui todas as noites ao chá. Os que o conhecem têm por elle fanatismo e admiração. Podéra não, se é o homem mais encantador do mundo inteiro! Do mundo inteiro, digo-t'o eu, incluindo até o teu marido! E' um rapaz de vinte e sete annos, sómente mais cinco do que eu! Possue todas as grandes qualidades que para a mulher tornam o homem dominante: a mocidade, a intelligencia, a bondade e a força. Que mais posso querer?! No collegio, quando resava a Nossa Senhora, sempre lhe pedi que inspirasse meu pae, em propor-me um marido, para o qual sentisse inclinação. Foram ouvidas as minhas resas; pois não póde existir outro, que mais me podesse encantar. Tu, minha Finha, casaste com um homem de posição brilhante -- um ministro !.. Bem sabes com que enthusiasmo saudei as tuas felicidades. Porém, o meu Rodolpho, ainda que de uma vida mais modesta, é rapaz da melhor sociedade e ficarás encantada quando o conheceres.

Apesar de toda esta ventura, que me dilata a vida, sinto um vago receio, uma longinqua tristeza ao pensar que se approxima o dia do casamento! Porque será?!... Os homens não podem facilmente calcular os enormes sacrificios de pudor... as mil resistencias indecifraveis, que uma rapariga sente antes de se lhes entregar, ainda que sejamos dominadas pelo amor mais enthusiasta! Na minha ignorancia e inexperiencia imagino que anda n'isto muito da educação que levâmos.

Vive a gente, desde creança, sempre vigiada, sempre afastada de certas liberdades. Vem um dia -- dia singular! -- em que todas as pessoas que nos punham em tal resguardo, são as primeiras a pegarem nos na mão, para nos entregarem ao inimigo de que nos deffendiam. Deve ser um momento unico em toda a vida da mulher, esse em que nos encontrâmos, pela primeira vez, n'um quarto alumiado por discreta lamparina, sósinha com um homem, para quem foram creados todos os nossos encantos, todos os nossos pensamentos, todos os nossos recatos. Ainda que o amemos louca e perdidamente, a gente não deve estar muito á vontade... Porém, que grande horror se o não amâmos, se nos é indifferente, ou mesmo se nos tem aborrecido!... Antes a morte!...

Quantas doidices terei escripto hoje?! Não faças caso e não mostres esta carta a ninguem, pelas bemditas almas. Não a mostres a ninguem, nem a teu marido, ouviste?! Eu sou uma cabeça de vento, como dizia aquella velha mestra de francez, que tu costumavas arremedar para nos fazer rir na aula. Lembras-te ainda d'ella? Arreméda'-la como n'outro tempo?

Adeus, querida Finha. Escreve-me antes de eu me casar. Quero, como menina solteira, receber uma carta tua, que seja só para mim. Porque as outras hei de mostral-as todas a Rodolpho, entendes?

A tua muito amiga

Gelica.

A mulher do ministro da guerra percorreu as tres folhas de papel escriptas por Angelica, com differentes expressões physionomicas. Depois ficou minutos silenciosa, conservando a carta na mão. Entregava-se a uma corrente de pensamentos incaracteristicos; mas o seu olhar era energico e nas linhas do rosto, um tanto apanhadas, denunciava-se lucta e aborrecimento... Ainda estava sentindo a impressão de desgosto, que lhe causára um beijo do general!... Os seus beiços molles e salibados de velho amoroso, tinham-lhe deixado na pelle fresca e bem tractada uma especie de nodoa viscosa! O ter sido um beijo de marido, não destruía o desagradavel abalo recebido pelos seus nervos delicados e limpos. Josefa explicava, a si mesma, por doença, este mau humor instinctivo, que, algumas vezes, a indispunha contra o general. A leitura da carta de Angelica Agramonte augmentára-lhe a irritabilidade em que se encontrava!... Aquella ventura simples e verdadeiramente sentida, comparada com a sua, marcava um ponto de alta injustiça divina! Ella tambem era formosa como a sua amiga, tambem tinha phantasia e desejos de amar um homem novo! Apossou-se-lhe da alma um forte sentimento de revolta contra o destino! Apesar da sua poderosa vontade, não podia impedir-se de pensar na felicidade risonha da sua companheira de collegio!... Rodolpho tinha vinte e sete annos, o general Gonçalo mais de sessenta!... Examinava, com um olhar fixo de espirito ausente, o retrato que Gelica lhe enviára. Era bella toda aquella mocidade, toda a fortaleza que resaltava do aspecto, ao mesmo tempo meigo e forte, de Rodolpho. Que fina barba, que pelle lisa e setinosa! Como devia ser bom tocal-o, fazer-lhe caricias, receber um beijo dos seus labios frescos! «Ah! Gelica, Gelica! Como és cruel na tua carta, como serás ditosa na tua vida futura! Como eu te amo e te invejo!» -- pronunciou n'uma prostração dolorida, com os olhos razos d'agua.

E por uma natural associação de idéas, lembrou-se de todas as amigas de infanda!... As que tinham casado, haviam-no feito com homens novos, que ao mesmo tempo podiam ser maridos e protectores, companheiros e confidentes. Só ella, por uma ambição medíocre e insensata, se encontrava na excepcional conjunctura de queimar o seu sangue, a sua mocidade tão gabada, no contacto de um velho amoroso e ciumento, um tropego de bigode repintado e chinó. As suas amigas estavam sendo, n'este momento, objectos de inveja illimitada, da raiva cruel que lhe absorvia todas as idéas! As grandezas, a felicidade, que, presumiam, ella teria encontrado, aos vinte e cinco annos, na fortuna e alta posição de seu marido, eram um escarneo e uma mentira. Os que lh'o diziam, mentiam! Ella não sentira, e perdêra para sempre, o receio infantil, vaporoso e encantador, que Angelica manifestava ter do seu amado, n'aquella perfida carta que tinha na mão! Em todo o seu ser, bramia, como um latido de cães, a repugnancia que lhe inspirava o general com as mãos frias e o chinó!... Toda a sua vida tivera repugnancia pelo chinó... Como era, pois, que se encontrava casada com um homem assim?!...

Josefa, olhando sem pestanejar os moveis, as paredes, o tecto do seu boudoir, linha o aspecto de uma desvairada. Sentia dentro de si um turbilhão de coisas a magual-a. Crispava os dedos com movimentos de hysterica! Afastava-se mentalmente de alguma coisa que a sua imaginação lhe representava como repellente, algum horrendo sapo! Ah! falsas conveniencias! Ah! juras sagradas proferidas diante do altar, na presença de tanta gente!... Nenhuma d'essas vaidades que a alta posição de seu marido lhe satisfizera fôra compensação... Só depois de passar assim meia hora numa especie de somno confuso, é que readquiriu a comprehensão dos seus deveres, assenhoreando se da vontade. Levantou-se, foi abrir uma janella, porque se sentia abafar! Acalmaram-se-lhe os nervos irritados, voltou-lhe a sua ironia triste, a sua melancolia... Da pequena secretaria de charão tirou papel, escolheu uma penna... Ia responder a Angelica, agora que se sentia raciocinadora e fria!...

Com letra miuda e pausada, principiou:

Minha boa Gelica:

Que feliz me tornou a tua carta! Bem sabes que sempre soffri com as tuas dores, que sempre gosei com os teus prazeres. Isto já vem das nossas intimidades do collegio, quando as outras se riam, por nos verem sempre abraçadas! Espero beijar-te antes de ires para Inglaterra. Teu marido não ha de ser tão mau e tão egoista, que te queira só para elle, excluindo do teu excellente coração todas as amisades verdadeiras, ternas e affectuosas!... Tu podes vir a Lisboa tomar o vapor e demorar-te aqui, pelo menos, oito dias, antes de embarcarem. Attendendo ás occupações de meu marido, e a esta maldita politica, que tão pouco me deixa gosar da sua companhia, não estranhes que eu te faça o pedido de vires despedir-te de mim a Lisboa, quando o rasoavel seria que eu partisse para o Porto a assistir á tua festa. Mas não posso, crê que não posso. Como tu és ditosa em não escolheres um marido politico! Talvez penses que ser mulher de um ministro é coisa invejavel! Não; amor, não é. Um marido que seja politico, é o peor que se pode encontrar. A gente sente-se um dos atavios do grande homem, uma circumstancia conveniente na sua vida complicada! Não digo isto a respeito do meu general, porque difficilmente se encontrará esposo mais assiduo, terno e amante. Até chega a ser de mais! Quantas vezes me vejo na necessidade de lhe mostrar mau modo, para que me deixe e me não leia os seus projectos de reformas do exercito com que anda enthusiasmado! No outro dia era uma coisa em que se tratava de diminuir o peso das barretinas Ora que tenho eu com isso! Muito ri depois com o barão de Cerdeiral, um nosso amigo, galante rapaz, com immenso espirito, que commentou engraçadamente esta preoccupação de meu marido, em me querer envolver nos assumptos do seu ministerio!...

No entretanto, este esposo é o meu socego e a minha ventura. Não ha nada como ter um marido de quem se não possa ter ciumes! É a vantagem,--e uma grande vantagem! -- dos casamentos com homens de certa idade. São fieis, submissos, assiduos, não pensam senão em nós, não faliam senão nos nossos encantos... Podemos dormir tranquillamente sobre os dois lados, que não teremos esse terrivel pesadello do ciume que, n'uma mulher nervosa como eu sou, formaria um verdadeiro inferno. E' uma das preoccupações que, a teu respeito, me assaltou depois de ler a tua ingenua carta. Não sejas ciumenta, Gelica, por Deus não sejas ciumenta! Olha que então faltar-te-ha toda esta doce tranquillidade, esta minha paz languescente, que é um beneficio incomparável. Mas, poderás tu acceitar o meu conselho, tu que esposas um homem de vinte e sete annos, no ardor da vida, dos enthusiasmos e dos desejos?! Pela tua carta parece-me que não, e se assim succeder lamento-o, porque terás dias verdadeiramente amargurados. Um marido moço deve ser uma infelicidade superior a todas, se um dia imaginamos que elle possa amar outra mulher! Não se pode comer, nem dormir, nem tocar piano com prazer... De todos os lados hão de surgir motivos, que a imaginação engrandecerás annunciando infidelidades eminentes. Toda a mulher formosa, cortejada por esse encantador marido, ha de parecer uma inimiga, uma rival. Tu, por causa do teu Rodolpho, podes ainda soffrer muito... O bem estar, a alegria dos outros, torna-se suspeita e arrelia quando a gente tem ciúmes de seu marido. Deve ser um tormento superior a todos Por isso, Gelica,recommendo te grande frieza de animo e que imponhas a ti mesma a obrigação de amar pouco teu marido, para o poderes gosar muito e por muito tempo. Estou a sangue frio, como vês. Apoquento-me antecipadamente com a triste perspectiva de ciumes futuros, pois a tua carta, minha querida, me faz receiar que appareçam. O teu Rodolpho, que hoje não vê outra coisa no mundo senão a sua Gelica, que só aspira a viver todos os momentos a seu lado, d'aqui a um anno poderá aborrecer-se de ti, procurar uma amante com quem dispenderá mais dinheiro do que com sua mulher. São assim todos os maridos novos, que eu conheço. O teu poderá ser uma excepção, mas é de recear outra coisa. Acautela-te. Tu és ingenua, inexperiente e sobretudo amante. Vê-se que fazes do casamento uma idéa sublime... Imaginas um mar infinito de venturas... Tudo isto devia ser, mas não é! Passado o primeiro fogo, que eu senti como tu, reconhece-se que a vida, depois de nos unirmos a um homem, é mais aborrecida e menos variada do que em solteira. A gente chega a arrepender-se de ter perdido tantas illusões para nada...

Não quero de modo nenhum dizer que tu não tenhas sobejos motivos para idealisar o futuro, esse futuro que se apresenta á tua imaginação com infinitos encantos. Rodolpho, segundo a pintura enthusiasta que d'elle me fazes, e mesmo pelo retrato com que a tua amisade me galardoou, é muito parecido com o barão de Cerdeiral. O barão tambem é loiro, enthusiasta, galante, primorosamente educado. Entende de musica, de pintura, de bailes, de caça, de todas as coisas que tornam a vida alegre. De mulheres diz coisas que ainda não ouvi a ninguem! Que admira!... Teve a grande escola de Paris, onde viveu bastantes annos. Um marido assim como o barão e como ha de ser o teu Rodolpho, comprehendo que se adore, que se deseje, que se soffra por elle um inferno de ciumes. Comprehendo-o; mas não o desejo para mim, que sou muito egoista e perdi o fogo dos primeiros enthusiasmos. Em todo o caso, minha querida, ama com toda a ternura o teu Rodolpho; é necessario que pagues o tributo de todas as raparigas novas e amorosas, gosando o enthusiasmo da paixão... Bem basta o que o futuro reserva de desenganos. Mais tarde chegarás a esta paz feliz em que eu já vivo, encontrarás no socego a verdadeira felicidade e firmeza na vida. E' triste que esta só se possa obter á custa da amarga experiencia.

Se, como te peço, não pudéres vir a Lisboa embarcar, supplico-te que me escrevas depois do teu casamento. Dá-me uma minuciosa conta dos teus primeiros tempos de noiva; verei se são exactas as preoccupações, que me assaltam agora por tua causa... Estarei no caso de M.me de l'Estorade, cuja norma no casamento era: beaucoup de philosophie et pen d'amour? Talvez. Olha, lê, de Balzac, as Mémoires de deux jennes mariés, que é o livro celebre, onde vem o precioso conselho que te envio.

Adeus, boa e querida Gelica. Sabes quanto te adoro, e espero que um marido rapaz não terá o poder de furtar uma amiga á sua amiga. Se isto acontecer, mais

um motivo para não gostar dos maridos novos, que podem desfazer amizades verdadeiras, como a nossa.

Mil beijos da tua adorada

Finha.

P. S. -- Rasga esta carta. Não a deixes ler ao teu noivo. Pode julgar que me sinto namorada do barão de Cerdeiral, o que não é verdade. Além d'isso, póde tambem não gostar dos meus gracejos ácerca dos maridos rapazes. Tudo que disse é brincadeira e Rodolpho ha de desmentir o meu pessimismo. Mas não lhe deixes ler a carta. Prohibo-t'o.

Toda tua

Finha

Josefa encontrou-se mais tranquilla depois que escrevera. Tinha consummido o seu negro humor. Dobrou o papel com todo o vagar, tendo nos olhos visões tristes, melancolias esbatidas n'um ceu cinzento!... Fechou o sobrescripto azul pallido. Chamou com um toque de campainha a sua criada.

-- Para o correio -- disse simplesmente; e recostou-se de novo na poltrona de seda.

VII

N'uma quinta feira de manhã, Sallustio Nogueira recebeu um bilhete familiar da condessa de Frazuella, convidando-o para o jantar d'esse dia, em que reunia alguns dos seus amigos mais intimos.

-- Isto corre ás mil maravilhas! -- exclamou vaidoso.

Com gesto emphatico, appresentou a Angelina o pequeno cartão adornado d'uma corôa, accrescentando:

-- Lê!...

A filha de Pedro Alves olhou confundida! Sallustio, a seus olhos, ía tomando proporções de ente superior, do qual se sentia de cada vez mais afastada. Principiou quasi a temel-o, contemplava-o mentalmente, como pessoa que vivia fóra do seu peito!...

Com a adivinhação natural das almas simples já comprehendia que, n'aquella existencia ambiciosa, ella não era mais que um accidente. Lembrou-se da sua filha, que sonhava quietinha n'um pobre berço de roupa bem lavada. Viria a ter um pae famoso, a pobre innocente! No futuro talvez lhe desse seda para vestidos e brilhantes para as orelhas, porém a ella é que não tocariam taes grandezas... Paciencia; contentava-se com que a pobre innocente as gosasse. Tal consideração obrigava-a a não perturbar com gritos plebeus a marcha triumphal do seu amante! Com o instincto proprio da sua boa indole, n'este dia em que Sallustio foi convidado pela condessa de Frazuella, Angelina mostrou-se mais dedicada e submissa do que nunca, apresentando-se alegre e ajudando-o com palavras de carinho na ascenção da sua vida. Com o desinteresse dos animos simples e generosos, escolheu a melhor camisa para elle vestir, procurou-lhe uma gravata bem engommada, escovou-lhe cuidadosamente a casaca, limpou as botas de polimento, repassou o chapeu com a escova fina... tudo para que Sallustio se apresentasse o melhor de todos esses fidalgos comquem ia jantar.

O conde de Frazuella estava no seu gabinete, quando lhe annunciaram o deputado. Mandou-o entrar para ali, recebendo-o como amigo entre os seus papeis e livros. Veio recebel-o ao meio da sala estendendo-lhe a mão.

-- Conversemos -- disse designando-lhe o sophá.

N'um tom familiar, a cara alta, Sallustio perguntou:

-- A senhora condessa?...

-- Bem... D'aquella semsaboria do figado tem passado melhor...

Offereceu-lhe charutos, puros havanos. Tinha-lh'os mandado o consul portuguez na ilha de Cuba, o Theotonio Mendanha. Fôra elle que lhe obtivera o despacho para aquelle rendoso logar...

-- Ah!... O Theotonio Mendanha!...

-- Conhece?... -- perguntou o conde.

-- Tenho ouvido. Dizem ser rapaz de altos meritos... Grande escriptor.

-- Protejo-o ha muitos annos. Uma recommendação de minha tia Quadros.

-- A senhora marqueza...

-- Sim. Lá vive com as suas nevralgias... Sempre alegre e risonha, apesar da idade. Não a conhece? Não o apresentei ainda?

-- Não tive essa honra... -- respondeu o deputado submisso.

-- Apparece muito pouco. Vive n'uma sociedade de parentes. Em tempo influiu sériamente na política, recebendo todas as semanas o corpo diplomatico e aconselhando os homens d'Estado portuguezes. E' uma senhora de rara cultura...

Sallustio, accendendo com apparato o charuto, que o conde lhe offerecêra, acompanhava o diplomata com expressão de assentimento a tudo quanto elle dizia. Recostou-se, n'um ávontade de inexperiente, com o fim de se mostrar habituado a esta vida de commodidades e mollesas. O Frazuella levantou-se indo até á janella, d'onde se via o Tejo. O seu tronco largo recortava-se no ar como n'um cartão pardacento. De costas para o deputado, que se conservára no goso da sua grandeza occasional, disse:

-- Sabe ? Fallámos hontem muito de si.

-- Não em mal... penso eu -- observou, como gracejo.

-- Não havia de quê. Foi em casa do presidente do conselho, que é seu amigo.

-- Oh!... -- exclamou agradecido.

-- O marquez é experimentado. Conhece muito os homens. Sabe-lhes dar o valor...

E voltando-se para Sallustio, a sua figura tornou-se mais affirmativa:

-- A diplomacia é uma grande escola. N'esta vida ' que o marquez e eu temos levado, trata se com muito insignificante; mas tambem se encontram homens de verdadeiro merito, que, nós os velhos, temos obrigação e até necessidade de empurrar na estrada que todos percorremos.

-- O marquez tem-me distinguida. Sou-lhe obrigado.

-- Dos rapazes novos, é você um dos de melhor futuro. Concordámos ambos n'isso.

Sallustio quiz duvidar. Desencostou-se, fazendo uma reverencia e disse:

-- Os bons olhos... -- agradeceu.

-- Fallo-lhe sério, póde crer. Você tem talento e tem chance. Ou eu sou positivamente um tolo, ou não tardará muito que o veja encarregado de uma pasta.

Esta affirmação fez estremecer de jubilo o deputado. Não a esperava tão cedo e d'esta bocca auctorisada. Mas retrahiu-se, fingiu que duvidava com o fim de provocar rasões...

-- Ainda não. Ha outros mais antigos...

O Frazuella adiantou-se, acrescentando n'um tom sentencioso:

-- Tenho trinta annos d'esta coisa da politica. Nasceram-me n'ella os dentes.

Sallustio, apesar do esforço que fazia para esconder em si mesmo a vaidade que o enfartava, parecia satisfeito. Brilhavam-lhe os olhos, os beiços tremiam-lhe n'um contentamento recondito. Emquanto o diplomata pronunciava a boa nova, que era o echo dos seus pensamentos proprios, conservou-se sereno, mas opprimido. Quantas vezes não dissera coisas eguaes a Angelina, que o escutava absorvida na sua ternura da amante, que n'elle presumia um marido!... Agora eram-lhe confirmadas as risonhas esperanças, por um intimo parente e amigo do presidente do conselho! Já não era uma hypothese longinqua, podia em breve e muito breve tornar-se em realidade deslumbrante, esse carinhoso e opulento sonho!... Não perturbasse elle, com palavras inconsideradas, as combinações dos outros. Era deixar-se ir na murmura corrente, que o levaria ao destino ambicionado.

O conde, depois de passear ao longo da sala, parou junto de Sallustio dizendo-lhe com a mão direita apoiada no hombro esquerdo:

-- Pois é o caso: você tem talento, mas tambem tem muita sorte. E n'esta vida, nas coisas mais simples, como nas mais complicadas, tudo é uma questão de chance e nada mais.

-- Sim, isso de chance não é mau -- pronunciou Sallustio vagamente, sem attingir por completo o ponto exacto, para o qual se dirigia o raciocinar do Frazuella, que acrescentou:

-- Ainda não sabe o melhor!

-- O melhor!... -- repetiu o deputado mais interessado.

-- Sim, o melhor. É o que eu digo, a fortuna é caprichosa como mulher bonita. D'onde menos se pode esperar é que apparece o auxilio de que se precisa. Tem o meu amigo a seu favor duas das mais valiosas opiniões da nossa terra. A do marquez e a...

-- ... d'el-rei?!... -- completou avidamente Sallustio Nogueira.

O par do reino sorriu-se. Que diabo de lembrança!...

-- Não, homem. A de Lioncio de Mértola.

-- Ah! o pae de Palmira!...

-- Sim, o pae de Palmira! Olhem o maganão que pensa em Palmira...

-- Não, meu caro conde, não ha absolutamente nada -- respondeu circumspecto. -- Dou lhe a minha palavra: não ha absolutamente nada.

-- Creio bem -- disse o Frazuella com o seu ar de sceptico. -- Não haverá nada com ella, mas ha alguma coisa com o pae, o que é melhor. Quando se pretende a filha de um homem, como Lioncio, o pae é que se deve namorar. Comprehendo. Você tem namorado o pae?

Sallustio riu-se com franqueza. Pesava-lhe que a segunda opinião, a seu respeito, não fosse d'el-rei, o que o lisongeava; porém, a de Lioncio, tambem não era má...

-- O caso tem uma explicação natural -- disse o deputado, approximando-se do Frazuella. -- Desde que respondi a Agualonga, defendendo o commercio...

-- Basta -- cortou o par do reino, juntando ás rasões do deputado, a sua adhesão. -- Você é novo; mas já é mestre. Percebo. O seu discurso... Lembro-me perfeitamente d'esse discurso. Minha mulher fallou-me n'isso.

O pretendente de Palmira sorriu. Estava inteiramente preso. Acreditou que dentro em si havia qualquer coisa de superior e de arguto, para dominar os homens.

-- Pois a gente não deve perder as occasiões, que se offerecem. Elle estava na galeria... eu tinha sido apresentado... conheço-lhe as idéas...

-- Bem jogada -- continuou o diplomata. E' a primeira vez que ouço Lioncio de Mértola fazer o elogio de um rapaz em quem se possa presumir um candidato ao grande dote de sua filha. Evita-os como os lobos evitam as fogueiras; o menos que lhes chama é vadios e pelintras. De si disse hontem á noite, ser homem sério e de futuro. Não precisa mais para conseguir este soberbo casamento. A filha é submissa, excellente rapariga.

Sallustio abriu-se. Desejava realmente a mão de Palmira, que lhe daria a independencia social e a consideração de toda a gente; mas não sabia como podesse conseguil-a. Nunca fallara a ninguem n'essa carinhosa ambição, arreceava-se d'um mau exito. Lioncio tinha a soberba dos homens dinheirosos e elle temia-o, apesar de desde muito, lhe parecer que o opulento negociante o tratava com certo favor. Homens como este gostam de cordura e tino e elle tratara de se mostrar cordato e prudente. Além d'isso, como não era nenhum pedaço d'asno, podia servir ao capitalista para as suas emprezas ambiciosas no que ellas dependessem da politica. Era pobre, comprehendia a força que lhe daria a riqueza, por isso caminhava com cautella, para não ter algum grande desgosto. E n'um crescendo de aspirações exclamou n'um arranque de sinceridade:

-- Ah! meu caro conde! Seria oiro sobre azul, este casamento! Deixem-me metter esta mão na burra de Lioncio e não tenham pena de mim! Hei-de ser o que quizer, chegar onde a minha phantasia me levar. O dinheiro é a molla real do mundo! E'-o hoje, como o foi sempre -- desabafou. Demais a mais eu gosto d'essa encantadora menina, que acho immensamente sympathica -- concluiu.

O par do reino, sorridente e amavel, com as mãos nos bolsos, fixou o deputado e louvou-o:

-- Muito bem. Sabe muito da vida, vê-se. Tudo isso é assim, mas ignora certamente que para realisar o seu plano eu lhe posso servir. E servir de muito, creia. Tenho para o caso valor especial...

Encararam-se mutuamente com aspectos complacentes. Sallustio queria ouvir o conde, um homem considerado!... Porém, como elle ficasse silencioso coordenando idéas, o deputado, cheio de impaciencia, exclamou:

-- Oh! se póde!... O que é que Vossa Excellencia não poderá!...

O Frazuella concluiu reservado:

-- Pensarei em si. O principio da fortuna de Lioncio foi na administração das vastas propriedades de minha tia Quadros, no Alemtejo. Enriqueceu sem roubar, dizem. Deve ser um dos homens de mais talento do globo!

E sentando-se na ampla cadeira de espaldar, que estava em frente da secretária, continuou fallando e brandindo a faca de marfim, como uma espada de creança:

-- Vou collaborar no seu futuro, está dito. Metterei n'isto minha tia Quadros, para saber o que pensa de si o velho. Tenho palpite em que é o preferido do pae de Palmira. Conquistou aquella montanha, e decerto não será esta a menor victoria da sua vida.

Esta voz desleixada do conde tinha entoação persuasiva. Era attrahente este espirito educado nas finas conversas das sociedades cultas, lá de fóra. Modulava as palavras com esmero, tinha inflexões que por si esboçavam pensamentos, que não cabem na construcção raciocinada da linguagem commum. O deputado via-se verdadeiramente rendido ao imperio d'este homem, que de peito amplo, apresentando as idéas com superior desdem, o envolvia n'uma atmosphera de grandezas, que Sallustio apenas presumira. Sentia approximar-se d'elle a caprichosa fortuna, entregando-se-lhe, como mundana facil. A seus olhos, o Frazuella adquiria a grandeza dos personagens de theatro creados por artistas, potentes individualidades, que com um só gesto dominam os factores da existencia. Até se admirava que um homem sempre envolvido em mundanidades galantes, tão bem conhecesse os enredos simples da vida trivial. O diplomata continuou no mesmo tom indolente:

-- Pois, meu caro, faz um optimo casamento. Dotes como o de Palmira, encontram-se poucos. Tivesse eu hoje a fortuna de Lioncio, que seria n'este paiz quanto quizesse...

E com os olhos fixos no tecto, como quem vae resumindo um assumpto, continuou devagar, separando as phrases:

-- Você... rapaz novo... com talento... mettido na politica... tem ambições... Pois o dinheiro facilita-lhe tudo, facilita. Conheço muito o paiz. Apesar de andar vinte annos pelas chancellarias da Europa, ou talvez mesmo por isso, conheço este paiz como os meus dedos. Se eu tivesse hoje fortuna e me viesse á cabeça fazer a republica, é que a fazia...

E emendou presuroso:

-- De modo nenhum quero dizer, que não possa chegar aos cargos mais eminentes, só pelo valor da sua intelligencia! Porém... é muito moroso. E'-se deputado dez annos... Durante esse tempo necessita de andar de rastos diante de todos os chefes, para não perder a cadeira. A's vezes é quasi indispensavel servir-lhes de moço de recados ás senhoras... Para conservar o seu nome entre o dos candidatos a ministros, precisa fazer todas as semanas um discurso, como já lhe tem acontecido, ácerca de todos os assumptos, fingindo-se sempre competentissimo. Isto é extraordinariamente complicado e homens de verdadeira intelligencia têem sido annullados e eliminados nas secreções d'esta politica reles. Você está na situação de ser ministro brevemente, porque tem inesperadas sympathias; porém, se quer a coisa resolvida de um salto, faça entrar no problema Lioncio. Verá. E' um conselho de amigo. O marquez considera enormemente o negociante, tem d'elle as naturaes dependencias d'um homem sem fortuna...

Indo em direcção á janella, voltou-se rapidamente para dizer:

-- E não deixe de cultivar aquella Josepha Lencastre, que é mulher encantadora! Tem influencia pelo marido.

Sallustio, com o espirito bem disposto e benevolo, por causa da fortuna que via sorrir-lhe, não queria considerar as coisas de modo tão descrente. Havia alguma coisa de verdade, mas tambem havia pessimismo nas palavras do Frazuella. Conhecia muitos homens em Portugal, que tinham subido só pela sua intelligencia, só pelo seu valor. E citou-os:

-- O Fontes, o Avila, para não fallar senão nos mais velhos, foram ministros muito novos.

E levantando-se para fallar de pé, a sua palavra adquiriu vivacidade ao pronunciar estes nomes de alta cotação. Os rudes combates da palavra, os brilhantes torneios da tribuna parlamentar, é que lhes tinham dado as pastas. Foi um periodo memoravel esse que teve a sua phase mais brilhante com o advento da regeneração. Sallustio conhecia-o bem, lêra com interesse os diarios das camaras d'esse tempo, onde se encontravam os discursos de epocha tão agitada, quanto fecunda em resultados para o progresso. Aquillo era atirarem-se uns contra os outros, como leões! Rodrigo, Garrett, José Estevão, o Saldanha, o conde de Thomar... e tantos outros, eram verdadeiros athletas. Herculano não sabia fallar, o que era uma pena; mas tambem andou mettido na contenda. O primeiro discurso do Fontes, em 1848, quando tinha apenas vinte e nove annos, defendendo a sua eleição por Cabo Verde, deu logo a medida do extraordinario parlamentar, que viria a ser. Em 52 a sua defeza dos actos da dictadura de que fizera parte, confirmou plenamente o conceito de que já gosava. Tinha então sómente trinta e tres annos. Avila fôra ministro antes do Fontes, com o conde de Thomar em 49. Conquistou a eminente posição que tinha no paiz, com talento, unicamente com talento. E ao referir, n'uma verbosidade vibrante, esta pagina da historia constitucional portugueza, o seu coração trasbordava de ambições, tinha gestos imponentes e dominadores.

O par do reino disse-lhe com desdem:

-- Conheço essas coisas melhor que o meu amigo. Andei mettido n'ellas. O marechal era um despeitado, e uma ventoinha. A rainha uma orgulhosa intriguista. Fontes foi um mero accidente n'essa comedia que se chamou regeneração. As coisas lidas fazem sempre differença das coisas presenciadas. Eu presenciei as coisas, meu caro.

-- Não... foi uma grande epocha!

-- Sim... foi uma grande trapalhada.

E fallou longamente diante de Sallustio, que o escutava attento, apontando incidentes desconhecidos dos historiadores. Andaram n'isto mulheres e dinheiro. Pouca seriedade. Uns vendiam-se pelas saias, outros compravam-se a poder de contos de réis. Toda a politica se resumia n'estas palavras: mulheres, dinheiro. Sallustio era muito novo e via os acontecimentos a distancia. O mundo o desenganaria.

-- Isto é tudo uma súcia! Você não imagina -- resumiu.

-- Os homens não são anjos -- defendeu Sallustio, para se mostrar já conhecedor de todas as falsidades, apto para todas as corrupções.

-- A quem o diz! E até me parece que são grandes demonios, mas deliciosos e encantadores demonios, quando servem os amigos. Acceitemol-os assim, e vamos vivendo com elles e como elles -- disse sorrindo.

Depois, n'um fallar intimo, referiu-se a coisas da sua vida. O deputado, acceitando esta familiaridade do conde, ouvia-o de pé, frente a frente, como um camarada. Escutava-o sorrindo intelligentemente. Interessava-o esta vida opulenta, gosada em diversas cortes da Europa, entre faustos e difficuldades de dinheiro. Quem lhe dera poder seguir egual carreira!... Fallava, porém, muito mal o francez... A não ser isto, sentia-se capaz de ser ministro plenipotenciario, de gastar duas grandes fortunas como Frazuella, comtanto que gosasse a vida, como elle a gosára. A final reconhecia que o diplomata era um homem bom, franco e amavel, revelando nas suas palavras apenas simplicidade de perdulario. Estava convencido de que tinha diante de si um d'estes individuos, que são victimas do proprio temperamento. O par do reino continuou dizendo:

-- A nação deve-me muito, creia. Representei-a melhor do que ella merece, em Bruxellas, em Florença, em Vienna, Paris e Londres. Não ha maior desgraça do que ser, n'esse grande mundo lá de fóra, ministros de uma nação pequena, desconhecida e pobre como Portugal, não ha.

O diplomata nunca tivera o estoicismo e a coragem de fazer má figura, como acontecia a tantos dos nossos representantes. Limitar-se ao que lhe dava o governo, era quasi viver na mediocre situação dos creados dos outros ministros. Quizera hombrear com os embaixadores das maiores potencias e tivera de o fazer á sua custa. A vida, nas grandes cidades europeias, é cara. Aqui não se imagina: quando em Lisboa póde a gente passar com tres ou quatro contos de réis, lá são precisos quinze, vinte e mais. O luxo é carissimo. Não se faz uma idéa! A palavra luxo, entre nós tem um sentido pelintra e acanhado. Elle sempre representára faustosamente o seu paiz, nunca se deixára humilhar... A um baile respondia com um baile, a um jantar diplomatico com outro jantar diplomatico melhor. Em Vienna fizera epocha. Em Paris era conhecido de todo o alto mundo, tanto da finança como da politica. Em Portugal sabiam-se perfeitamente estas coisas. Obsequiára immenso os nossos homens politicos, quando lá appareciam. De todo este seu viver resultára grande prestigio para Portugal e muitos dos tratados vantajosos que fizera se deviam aos bailes e jantares em que fôra prodigo.

-- Por isso -- resumiu -- não é muito que o paiz me indemnise. E' mesmo de absoluta justiça. Uma concessão qualquer n'esses vastissimos incultos africanos, que possuimos, para um grupo financeiro que eu organise, é do que preciso. Este problema tenho imperiosa necessidade de o resolver brevemente.

Como Sallustio ficasse a olhar para elle, silencioso, com o charuto entre os dentes, o conde interrogou-o:

-- Não acha, que o paiz me deve uma indemnisação?

-- Decerto! -- respondeu o deputado convencido.-- Deve e hade dar-lh'a -- rematou.

-- O marquez conhece a situação. Está de accordo. Ha mesmo mais Alguem que está de accordo.

Sallustio olhou para o diplomata, com brilho expressivo na pupilla arguciosa. Percebera e sorrira sem vangloria, imitando o Frazuella na sua superioridade de considerar os homens e as coisas. Ter na vida a concordancia d'esse precioso Alguem, era o limite das suas ambições!

-- Pois está claro. Se todos estão de accordo... é coisa concluida -- accentuou com o proposito de se offerecer...

-- Mas necessitamos estudar o modo... Isto é um paiz dos diabos. Não se fazendo as coisas com muito geito saltam-nos em cima, e prompto, tudo gorado...

-- Sim, os jornaes...

-- Não são só os jornaes, são todos os invejosos. O que pretendo (ainda não tenho o assumpto sufficientemente estudado) é uma concessão de linha ferrea, ou terrenos no ultramar... qualquer coisa d'essas que possa ser considerada serviço publico a bem do paiz. Dourar a pilula é necessario, se não amarga-lhes e não engolem. O meu grupo de banqueiros francezes anda com vistas sobre Moçambique. Ha lá riquezas escondidas, e estando escondidas não servem para ninguem...

-- Então, ahi está... -- concordou Sallustio.

-- Sim, mas é necessario estudar, vêr as condições em que me póde convir. E principalmente é indispensavel ter no ministerio da marinha homem meu, que seja de confiança...

Fabrice appareceu a annunciar que a senhora condessa e seus convidados esperavam monsieur le comte et monsieur. O Frazuella concluiu o que tinha a dizer apressadamente, em substanciaes palavras, como as d'um post-scriptum, n'uma carta á pressa:

-- Não sei os termos em que estará o marquez com os collegas, mas parece-me imminente uma recomposição ministerial. Precisa-se de gente nova. Na Africa está a nossa salvação. O presidente devia chamal-o a si para a marinha. E' a pasta dos homens desembaraçados, dos homens de iniciativa.

VIII

No dia seguinte, uma sexta feira, apesar de haver partida em casa da Aguas-santas, a condessa de Frazuella não saiu á noite. Esperava as suas intimas, mrs. Cross, e madame Trèvan, que conhecêra em Spa, havia seis annos. Era a segunda vez que madame Trèvan vinha visitar a sua amiga a Lisboa, viajando sempre em companhia de uma velha creada e de um escudeiro allemão. Estava hospedada no hotel Bragança.

O conde despediu-se das visitas de sua mulher, porque tinha de fallar ao ministro da justiça na transferencia de um parente, juiz em Evora, que appetecia uma das varas de Lisboa. E como fosse pelo Gremio, para vêr os jornaes estrangeiros, encontrando-se ali com Sallustio Nogueira, perguntou-lhe n'um relance:

-- Onde se poderá encontrar o Carlos de Mendonça?

-- Em casa da viscondessa d'Aguas-santas certamente, meu caro conde.

Foram juntos. Cerca das onze horas, subiam ambos lentamente a rua de S. Bento, quando se encontraram com o visconde da Carregueira, juiz do Supremo, e com Julio Clovis, que levavam identico destino. Por isso, entraram os quatro ao mesmo tempo no salão da viscondessa, cuja mobilia em damasco carmezim e paredes em papel cinzento com frizos doirados, denunciavam pretenções de elegancia. Ao fundo, no sophá presidencial, mesmo em frente da porta, sorrindo amavelmente aos que íam chegando, via-se logo a dona da casa, senhora idosa, mas com artificios de juventude na expressão. O Frazuella, com o seu habito de homem do mundo, primeiro se dirigiu a ella, curvando-se, beijando-lhe a mão e dizendo:

-- A Gabriella manda-me como seu emissario para explicar o motivo, porque não pôde vir. A maldita enxaqueca... A viscondessa sabe...

-- Tão poucas vezes me vem ver a amavel condessa! Nem por isso deixo de a ter sempre no logar do coração, reservado ás melhores amigas.

Estendendo a mão aos companheiros do Frazuella accrescentou:

-- Já hoje nos vimos, visconde da Carregueira. Com V. Ex.a, senhor conselheiro Julio Clovis, é que tenho de fallar.

E para Sallustio familiarmente:

-- E este nosso Benjamin Constant, que não ha quem lhe tenha posto a vista em cima, ha tres dias!...

-- Os trabalhos da camara. .. -- desculpou-se o deputado.

-- A proposito: gostei da sua réplica de hontem. Li o extracto na Revolução. Tomou-me aquelle Agualonga á sua conta! Benjamin Constant teve Napoleão a combater, Sallustio um deputado pelo Algarve!... -- disse com ironia.

-- Mas para termos Benjamin Constant, é indispensavel uma de Stael!... -- observou o Frazuella.

-- Eu já não estou em edade, nem fiz a Corina; mas adoro o livro e a auctora, meu caro conde.

-- Bem respondido -- applaudiu o juiz do Supremo, revirando os olhos, sempre amoroso.

Como vingança, acrescentou a Aguas-Santas fallando para o diplomata:

-- E em vez de Talleyrand temos Frazuella, que vale o mesmo.

-- Bravo! -- applaudiu o Carregueira, pegando na mão da viscondessa. É forte em historia. Se não fez a Corina, é porque não quiz.

-- Delicioso, ser vencido pelo espirito de uma senhora! São victorias que ennobrecem e distinguem aquelles sobre quem se ganham -- pronunciou o diplomata.

N'este momento interferiu Evaristo de Mello, que era brusco e desattencioso:

-- O seu afilhado, senhora viscondessa, lá vae para a Africa no dia 5.

O Frazuella observou, fingindo voz admirativa:

-- Então mandam-lhe para o degredo um afilhado?!...

A viscondessa esclareceu:

-- Não, bem pelo contrario. E' um favor do ministro. Empregou-m'o em Angola.

Entrou, n'esse momento, um rapaz timido, modestamente vestido de preto, com sobrecasaca comprida de exemplar funccionario publico.

-- Venha cá -- chamou, a dona da casa. O senhor conselheiro Evaristo de Mello acaba de me annunciar o seu despacho. Póde-lhe agradecer, senhor Mendes.

E deixando o empregado ultramarino, curvado diante do ministro, que lhe estendera a mão benevolente, a Aguas-santas voltou-se para Sallustio, approximando o busto para dizer em meio segredo:

-- Fallou ao marquez?!

-- Prometteu que antes de oito dias o homem seria transferido.

-- Mas porque o não transferiu immediatamente? Explicou-lhe tudo bem?

-- Expliquei tudo perfeitamente.

-- N'esse caso não comprehendo! -- disse levantando os hombros. Tenho de ir lá amanhã...

E vendo passar na sala o ministro das obras publicas, ordenou a Sallustio:

-- Diga ao Julio Clovis, que lhe preciso fallar.

O ministro veiu logo. A viscondessa indicou-lhe um logar.

-- Sente-se aqui.

-- Estão os parceiros do whist á espera...

-- Não o demoro...

Agarrou-o com energia pela manga da sobrecasaca, attrahindo-o. Com a sua voz de confiança perguntou:

-- Aquelle negocio da igreja, não se resolve?

O ministro não sabia. Eram tantos os pedidos de subsidios para igrejas em ruina, que se tivesse de os satisfazer todos, não chegaria a dotação do seu ministerio! Parecia-lhe espantoso que as coleras divinas estivessem tanto contra os templos catholicos portuguezes! De certo não poderia haver mais raios no céu, para escangalhar campanarios!...

-- Talvez o Ente Supremo -- observou espirituosamente Julio Clovis -- se não encontre á vontade assim fechado. Diderot disse: Élargissez Dieu! E' com isto que eu responderei aos que me pedirem, d'aqui em diante, subsidios para torres e para telhados de igreja.

-- Pois responda que elles tambem sabem como se abandona um governo. Só lhe lembro que é o circulo de seu primo!... Não comprehendo tantas hesitações, meu caro. Isso é o que se chama não saber fazer politica.

O ministro cruzou energicamente os braços:

-- Onde quer a senhora viscondessa que eu vá busbar o dinheiro? Não ha cinco réis em cofre. Toda a verba orçamental foi-se, como um lambedor. Mais que houvéra!..

E retirou-se de um modo brusco. Á D. Augusta, mulher do ministro da justiça e á D. Cesaria, a collega da marinha, que se approximaram n'este momento, disse a viscondessa:

-- Estes seus maridos não têem expedientes. Talvez ignorem que o meu unico interesse seja ajudal-os! E' um tormento! Eu faço por um lado, elles desfazem pelo outro! Ninguem os entende!

-- O que me admira, é como a senhora viscondessa tem cabeça para todas estas coisas! -- observou D. Augusta.

-- Que quer, minha querida!... Eu, viuva de ministro e filha de ministro, havia de conservar estes habitos. Gosto muito de servir; mas, ás vezes, vejo-me assaltada de tantas difficuldades, que me chego a aborrecer.

-- E eu?!... -- disse D. Cesaria. -- Mas o Evaristo, a mim, não me faz nada, absolutamente nada do que lhe peço.

-- O meu, a mesma coisa -- esclareceu D. Augusta. -- Ando, ha um mez, a pedir-lhe para me despachar um escrivão e ainda não pude conseguir coisa nenhuma.

-- Ah! isso de escrivão é muito difficil! Ha pedidos da rainha! -- advertiu a Aguas santas.

-- Mas devia-m'o fazer, porque é um meu primo...

-- Então já comprehendo -- commentou com malicia a viscondessa. Um ministro nunca deve despachar os primos de sua mulher, principalmente quando é nova e bonita, como a D. Augusta, a não ser para o Ultramar.

-- Ora... não ponha n'isto mau sentido, que não vale a pena. E' um homem casado.

A viscondessa, então, fallou com seriedade:

-- A minha querida amiga não soube procurar a occasião de pedir ao conselheiro...

-- Ora... tenho experimentado tudo! -- confessou, desconsolada, D. Augusta.

A tia de Josefa agarrando-a pelo braço, attrahiu-a para lhe segredar ao ouvido qualquer coisa, que a fez sorrir...

-- Ora, é que o não conhece. Não valem essas coisas... -- insistiu a mulher do ministro.

N'este momento approximou-se D. Brites acompanhada de seu irmão D. Agostinho.

-- Que estará a dizer esta querida viscondessa? Em toda a parte se conhecem os effeitos do seu bom humor -- cumprimentou a velha fidalga.

E D. Agostinho inclinando-se:

-- E' a graça em pessoa. E' a nympha Egeria da situação, como disse ainda ha pouco o nosso Sallustio Nogueira.

-- Que rosario de amabilidades! Todos os meus amigos, que me fazem o favor de vir a esta casa, são tão prodigos de elogios, que se eu fosse vaidosa... O que podem affirmar é que sou dedicada áquelles em quem deposito confiança... Nada mais... E é o meu dever.

Logo depois da meia noite principiou a retirar-se muita gente. O signal de levante foi dado pelo conselheiro Mauricio Pontino, que, ouvindo no relogio do corredor a sua hora, fez um aceno de cabeça a D. Clementina, para que se preparasse, indo elle envolver n'um lenço de lã escuro a garganta doente, em quanto um creado o cobria com a capa antiga. Saíram tambem, ao mesmo tempo, as duas sobrinhas do marquez do Tornai, Lucia e Florinda, acompanhadas da tia Juliana, viuva do general Trigoso. Palmira Freitas, que era seguida de seu pae, o capitalista Lioncio, segredou na escada a uma d'estas meninas, alludindo aos que ficavam:

-- Que terá esta gente que fazer aqui até de manhã?!

-- Ora... divertem-se, é o que é! -- respondeu Florinda, desconsoladamente. -- E nós aqui vamos para o aborrecimento da cama!...

Imaginavam estas inexperientes que, altas horas da noite, se passariam, em casa da viscondessa de Aguas-santas, factos só experimentaveis por gente de vida saciada. Sabiam, pelo terem ouvido, que d'ali se sahia de manhã, quando o sol brilhava magnificamente sobre Palmella. Que promiscuidade seria esta, a deshoras, de tantos homens e senhoras conhecidas, que na vida commum se comportavam de um modo circumspecto e comedido?!... Perdiam-se em conjecturas, em conversas intimas, aventando opiniões extravagantes! Aquillo deviam ser liberdades defesas aos seus verdes annos. Oh! como é desagradavel essa epocha em que, vendo-se considerada uma creança, a mulher começa a sentir desenvolver-se dentro em si uma amalgama de desejos indefinidos!

Na realidade, n'essas falladas partidas da viscondessa d'Aguas-santas, depois da meia noite só ficavam pessoas responsaveis pelos seus actos... Era Carlos Mendonça e sua esposa; Julio Clovis, um solteirão; o ministro da marinha e D. Cesaria! O general Gonçalo, Josefa, o barão de Cerdeiral; madame Augustine Lagrant, uma franceza viuva, residente em Lisboa havia annos e a quem na sociedade chamavam madame Jou-jou, por ser muito pequenina. Sallustio Nogueira e Gabriel Besteiros eram assiduos n'estas noitadas, bem como D. Agostinho, que tinha o habito de se deitar tarde, e sua irmã D. Brites, que adormecia ao canto de um sofá, conservando-se ali, com a cabeça caída para o encovado seio, até que a chamassem. O Frazuella apparecia muitas vezes e demorava-se; a condessa, porem, procedia como as meninas solteiras, despedia-se á meia noite. Eram personagens quasi infalliveis D. Nicolas, um carlista ferrenho, que se exilára voluntariamente em Portugal; sua sobrinha Mercedes, formosa senhora de trinta e tantos annos, mulher de um individuo que negociava no Mexico, uma apaixonada do boston e diziam que tambem de Dramond, secretario da legação franceza, que lhe preferia madame Augustine.

N'esta noite, findos os jogos de vasa, conservaram se todos n'uma certa desoccupação, á espera... A viscondessa de Aguas-santas, no sofá presidencial, continuava cercada de homens a quem fallava animadamente. Sallustio Nogueira, que sabia muitas poesias de cór, recitou «O Desterrado» para D Cesaria ouvir!... A mulher do general Gonçalo escutava o barão do Cerdeiral, que lhe continuava a descrever os bailes das Tulherias, encarecendo-lhe Paris, o seu fausto, as grandezas do mundo imperial em que vivêra. O conde de Frazuella, rindo-se á gargalhada do que lhe contava, em meio segredo, madame Augustine, exclamou alto, de modo que todos se voltaram:

-- Mais, c'est épatant!...

Entraram no salão dois creados com bandejas, onde as taças de chocolate fumegavam Cada cavalheiro procurou mostrar-se pressuroso e gentil, servindo as senhoras do seu grupo. O Cerdeiral, apresentando a chavena a D. Josefa, preveniu-a:

-- Está muito quente.

D. Agostinho, depois de entregar o chocolate a D. Mercedes, offereceu-lhe bolos, esforçando-se por fallar hespanhol.

-- Quer usted algo d'isto? -- perguntou.

No entretanto, um terceiro creado, na sala azul, ía preparando a mesa para o baccará. Cobriu-a com um panno verde, collocando em cada extremidade dois candelabros de seis lumes, que accendeu. A sala era sobre o comprido. Para o fundo havia escuridade e um amplo sofá, que convidava ao somno e á meditação dos desenganos da sorte, quando o dinheiro se acabasse. O creado ía de um lado a outro, trazendo cadeiras, que collocava symetricamente em volta da mesa. As paredes desguarnecidas, davam a impressão de casa em mudança. Julio Clovis, apparentemente distraido, tinha vindo mais d'uma vez á porta, observar como o trabalho corria e disse com bondade familiar ao creado: «Anda, João, avia-te. Já tomaram o chocolate...» O rapaz, magro e tresnoitado, assegurou com um sorriso dependente: «Quasi prompto, senhor conselheiro. Em dois minutos póde-se começar a brincadeira!» E interrompeu o serviço para perguntar:

-- E o emprego do meu irmão, meu senhor?

-- Ha-de-se arranjar... Mas anda com isso que é agora o essencial!...

Alguns baralhos de cartas foram collocados depois, sobre o panno verde. As chavenas vasias já estavam accumuladas na bandeja, sobre um buffete, como multidão de gente opprimida. O ministro das obras publicas, homem verdadeiramente perdido pelo jogo, disse em voz interessada e pressurosa ao collega da justiça:

-- Vamos a isto?!... Chame essa gente, que são horas...

Sem nenhum esforço, tacitamente todos entenderam que se devia começar o baccará. De um modo natural e simples, as senhoras, conversando com os homens, foram-se encaminhando para aquelle lado... Sallustio Nogueira, derrubando os baralhos encastellados, pronunciou:

-- Vejamos quem principia...

-- Olhe, sou eu -- disse D. Augusta, toda contente, depois de ter voltado um az de espadas.

A viscondessa de Aguas-santas, vindo tomar assento n'um sofá perto da mesa, observou desinteressando-se:

-- Vão a esse baccará ?

-- E' verdade... -- respondeu Evaristo de Mello, fingindo que desejava esclarecel-a.

A dona da casa, agarrou-o familiarmente pelos dedos da mão esquerda, recordando-lhe:

-- Com estas coisas, não me vá esquecer o negocio de Gôa. O homem, já lhe disse, deve estar ern Bombaim e o nosso consul conhece-o.

-- Ah!... -- certificou o ministro da marinha. Não tenha medo. Pela proxima mala, escreverei ao governador.

A este tempo, íam-se sentando em volta da mesa as pessoas que jogavam. O carlista D. Nicolas conservou-se em pé, um tanto afastado, e D. Agostinho perguntou-lhe:

-- Não juega usted?

-- Yo?! No. -- respondeu soberanamente o tio de Mercedes, com as mãos cruzadas sobre os rins.

Ambos ficaram observando, por cima das cabeças dos que estavam sentados.

O barão do Cerdeiral ficou no sofá, do lado esquerdo de Josefa Lencastre.

-- En voulez-vous? -- perguntou-lhe maliciosamente a viva madame Joujou, mostrando-lhe uma carta.

-- Pas encore -- respondeu contrariado o barão, olhando-a de relance.

Entrava-se n'um periodo animado. D. Augusta, mulher do ministro da justiça, depois de ter misturado os baralhos, disse a Sallustio Nogueira, que lhe ficára á direita:

-- Parta, ande...

Mas Julio Clovis, interpoz-se exigindo:

-- Não, senhor, quero eu partir.

O dinheiro que D. Augusta poz de banca não chegou senão para os quatro mais proximos parceiros. Julio Clovis, que não era d'estes, disse para os outros, pondo diante de si uma bolsa de prata, recheiada de libras:

-- De não chega; joguem.

-- Seja cauteloso, conselheiro... --observou-lhe a viscondessa, n'uma voz de carinho.

-- Ora!... tenho perdido muito dinheiro -- respondeu o ministro.

-- E tambem o tem ganho! -- emendou D. Cesaria, que lhe era hostil.

Como todos já estivessem attentos, D. Augusta principiou a dar cartas. Ninguem teve baccará de mão, nem o fez depois de pedir. Esta circumstancia, verdadeiramente excepcional n'uma roda de tanta gente, augmentou o interesse do jogo e pareceu de bom agoiro. D. Agostinho e D. Nicolas, approximaram da mesa os seus bustos. A mulher do ministro da justiça disse voltando-se:

-- Seis!...

Tinha um rei e uma sena! Todos ficaram circumspectos e reservados, não desejando cada um, pela sua expressão facial deixar perceber o ponto em que se ficara. D. Augusta sorriu com certa amargura. Tinha mais cartas com que perdesse, do que para ganhar! Era uma situação melindrosa... Pensou em mandar dizer, só alguns parceiros. Julio Clovis surpreendeu-lhe o estado hesitante do espirito; depois de a fixar, disse resoluto e impaciente:

-- Ande, tire carta.

Mas ella ainda se conservou algum tempo inerte, com o maço na mão esquerda, olhando para todos. Sentia-se cada vez mais indecisa e pronunciou com expressão triste, na voz e no rosto:

-- Mas, vou passar!...

O ministro das obras publicas observou-lhe:

-- Se perder, ainda eu perco mais.

-- Vae fazer um lindo baccará -- affirmou o conde de Frazuella, com o charuto entre os dentes. Tenho palpite.

Madame Augustine disse, entre suspirosa e cómica:

-- Ah! mon argent chéri!...

A mulher do ministro da justiça, tomada subitamente de impetuosa resolução, puchou uma carta bradando com desafogo:

-- ... e tres nove! Baccará! -- celebrou com alegria.

-- Não lhe disse? -- recordou o Frazuella fleugmatico, aproximando-lhe a parte do dinheiro que lhe tocava e D. Augusta recebeu contentissima:

Aconselharam-lhe que passasse as cartas. Podiam-lhe levar tudo na vez seguinte. Tinha vontade de acceitar o alvitre; porque não estava para mais sustos. Julio Clovis comprava-lhe a mão; porém os outros não consentiram. Carlos de Mendonça, o marido, julgou-se com direito a fazer banca em logar de sua mulher, propondo-lhe sociedade; mas ella respondeu desimpedidamente:

-- Comtigo?!... não quero. E's muito ladrão. Já me tens ferrado varias partidas.

Este bello exemplo de confiança conjugal produziu hilaridade e foi celebrado com gracejos. A viscondessa levantou-se do sofá, para dizer a D. Augusta, depois de lhe dar um beijo:

-- Deixe as cartas. Ganham-lhe tudo.

Por isso ella as entregou a Sallustio Nogueira, que era quem se seguia. O deputado tomou os baralhos, com aquelle modo imponente e magestoso com que praticava todos os actos. Alongou os braços, lançou um olhar solemne em volta, provocando assim as paradas, apesar de não ter muito dinheiro. E com voz guttural disse «vamos lá», como se tora esta, uma resolução filha de meditado calculo... Perdeu logo a primeira mão, pronunciando com desconsolo:

-- Sou um tumba! Sou uma besta !...

-- Sou una bestial -- trauteou Julio Clovis.

D. Cesaria estava ao lado de Sallustio e a ella tocava fazer banca. O seu olhar ambicioso fulgurava-lhe no rosto magro e chupado. Gostava immenso de dinheiro,de o possuir fechado na mão, de perceber o telintar alegre do oiro que lhe enebriava o espirito. «O que eu queria -- disse uma vez, gracejando -- era ter um monte de libras, para me rebolar sobre ellas! Teria immenso prazer em dormir um somno n'uma cama de libras.» Por isso poz pouco dinheiro de banca, a maior porção em prata, para não sentir o desgosto de lhe levarem o oiro, que era o seu demonio tentador :

D. Agostinho commentou com sisudeza observadora ao ouvido de D. Nicolas:

-- Esta senhora seria capaz de commetter um roubo metalico, se circumstancias favoráveis se apresentassem.

-- Lo creo yo -- concordou o solemne hespanhol.

D. Augusta perdeu logo á primeira e attribuiu tudo ao marido, que a estava encalistando. Madame Joujou seguia-se á mulher do ministro da marinha, mas não acceitou as cartas... Estava ali só para se divertir e gastava o tempo a olhar para Dramond, que collocado na outra extremidade com o cabello em bandós, era objecto de uma lucta tremenda entre ella e a ardente Mercedes. Passou os baralhos ao Frazuella, que affirmou risonho:

-- Agora vão ficar todos sem dinheiro...

Ganhou o primeiro e o segundo baccará.

-- Não lhes disse? Vão perder tudo quanto têem -- commentou.

Proseguiu sorrindo com o seu canto de labio ironico arregaçado. Commentava mentalmente a anciedade e a soffreguidão de todos os semblantes! Tomou mais cartas do grande monte d'ellas, que estava ao centro da meza, misturando-as com gesto froixo. Queria-os fazer soffrer docemente, entretinha-se a apreciar as contracções faciaes de D Cesaria, que estava com vontade de o estrangular pela demora.

Mercedes, tambem muito nervosa, remexendo-se na cadeira, indicou a seu tio o dinheiro que via diante do Frazuella:

-- Mira!

D. Nicolas respondeu com gravidade:

-- Esto mirando!

-- Asi si, que me gusta -- affirmou a sobrinha n'uma voz energica.

Julio Clovis, apesar da fortaleza da banca, como tivesse grande palpite, disse:

-- Joguem á vontade. Eu levo o resto.

Pousou em cima da mesa um masso de notas de vinte mil réis. Estava furioso contra o Frazuella, por causa da estupenda sorte, que lhe via. O conde, sereno e chasqueador, tirou o charuto da bocca para lhe dizer:

-- Então é um duello de morte, que me propõem?...

O ministro conservou-se callado, o queixo assente nas mãos, emquanto o banqueiro, com o vagar de homem habituado áquellas situações, ia dando cartas e dizendo palavras agradaveis a cada pessoa a quem as entregava. Como depois de pedirem ninguem se declarasse, o Frazuella, sempre com os seus modos de saciado, voltou-se com um baccará de cára.

-- Não ha duvida -- entendeu -- sáio d'aqui milionário. Tenha paciencia, conselheiro.

Julio Clovis sorriu com azedume, dizendo:

-- E' muito feliz!

-- Dou a desforra. Não o quero ver assim.

Todos reconheciam no conde o homem para quem o jogo não tinha surpresas, nem commoções novas. Sabia-se que, em Nice, tivera noites de perder dezenas de milhares de francos, sem a menor contracção facial de desgosto, bebendo groselhas e fumando constantemente o seu optimo havano. Esta nobre insensibilidade, perante os rigores ou os beijos da fortuna, só a póde dar o habito d'uma vida de largas despezas, e é privilegio dos homens de altivo coração--considerou mentalmente Sallustio, que admirava o diplomata.

A' porfia, como na ancia d'uma febre de desforra, os parceiros apontavam de cada vez mais forte e o banqueiro sorria-lhes de cada vez mais tranquillo, tomando de novo cartas das que estavam em monte ao centro

da mesa. D. Nicolas, cedendo a D Agostinho que lhe puxára pela manga, deu um passo para melhor apreciar, ficando erecto, com a mão na abertura da sobrecasaca, olhar alto, n'uma insensibilidade despotica.

-- Esta agora é d'arromba! -- exclamou o deputado Besteiros.

O ministro das obras publicas, com o seu formidavel rancor contra o Frazuella, por causa da estupenda sorte, que lhe via, tirou grande porção de notas d'um bolso e collocando-as sobre a mesa, apregoou:

-- Está parado o resto!...

O conde tinha de mão sete, e passou com o cinco de espadas. Todos ganharam e os semblantes abriram-se em sorrisos de satisfeitos. As cartas tocavam a Julio Clovis, que apreciou avulsamente:

-- Tambem já era demais...

Foi breve a suspensão no jogo, e houve desafogado ruido de conversa. Algumas cadeiras afastaram se: era o general Gonçalo, que se retirava e vinha dizer adeus aos collegas, que estavam na banca do baccará, indo depois ter com sua mulher sobre cujo hombro esquerdo o Cerdeiral n'esse momento inclinava a cabeça, para lhe dizer qualquer precioso segredo, que os maliciosos commentavam com sorrisos. Porém, o barão, fallando ao conselheiro com intimidade d'amigo, observou-lhe, mostrando o relogio:

-- Olhe que são apenas duas horas, general.

-- E' que sinto não sei o quê na cabeça, que m'a torna pesada -- justificou-se o ministro.

-- A enxaqueca; não vale nada -- insistiu o Cerdeiral.

Josefa secundou-o:

-- Vae conversar um boccado com D. Agostinho. Pode-te fazer mal sair assim de repente para a rua. Ao entrar na carruagem, sempre se apanha ar.

Mas a tia viscondessa, percebendo que sua sobrinha estava alimentando a maledicencia, disse-lhe ao ouvido:

-- Vae, menina. Se te arranja alguma doença, estás servida. Não te lembras da ultima massada, que tiveste, com elle de cama ?

Josefa levantou-se, estendendo a mão ao barão, que a acceitou, affirmando em segredo:

-- Fallei-lhe com a maior sinceridade, creia.

-- Pois sim; mas eu não o acredito. Tenho este dedo minimo, que adivinha e me diz outra coisa.

-- E' muito má-- rematou com olhos brilhantes.

Apartaram-se. A sobrinha da viscondessa acenou a um creado para lhe trazer os seus abafos, que se não fizeram demorar. O Cerdeiral, emquanto lhe depositava cautelosamente a capa sobre os bellos hombros, foi dizendo como n'um monologo:

-- Ainda hei de descobrir, porque me quer tanto mal. Alguma intriga; procurarei saber...

-- Não procure que não acha -- respondeu Josefa graciosamente.

O ministro da guerra e sua mulher despediram-se das pessoas, que encontraram no caminho até á porta de saída. A D. Agostinho, de quem o general fôra antigo camarada, deu um aperto de mão intimo, accrescentando como de costume:

-- Velho amigo. Nós somos dos que as ouvimos zunir pelas orelhas em Torres Vedras. Lembras-te?

-- Se me lembro! -- pronunciou D. Agostinho com saudade.

O Cerdeiral, depois de Josefa sair, tomou logar á mesa do baccará, começando a jogar com furia, muito callado, o charuto entre os dentes.

-- Assim é que eu gosto -- applaudiu-o D. Cesaria.

-- Talvez estejas feliz... -- observou maliciosamente Julio Clovis.

-- Non accrrredita -- disse com malicia madame Legrand.

Realmente a entrada do barão reanimára o jogo, que, pela ausencia do Frazuella, ia esmorecendo. A atmosphera côr de opala entorpecia; mas todos se entregavam, sem encommodo, ás sensações da caprichosa fortuna.

Os olhos das senhoras, d'uma vivacidade tresnoitada, sobresahiam na pelle amarellenta dos seus rostos. A mulher do ministro da justiça, que era nutrida, disse «abafa-se» e a viscondessa mandou abrir uma janella na sala proxima, para purificar a atmosphera. Depois de fazer algumas recommendações, em voz baixa, ao seu creado, dirigiu-se para o interior da casa, e a mulher do ministro da marinha, que a vira sahir do salão, explicou:

-- Vae-se deitar... E' a sua hora.

D. Mercedes pediu a seu tio D. Nicolas uma cigarrilha hespanhola e madame Legrand acceitou um lafer-me da mão de Dramond. A esposa de Evaristo de Mello zangou-se; porque o francez, quando, para dar o cigarro, passara o braço por cima da sua cabeça, lhe ia desfazendo o penteado, soltando-lhe os rolos. A mulher do ministro da justiça, depois de perder tudo, implorou um emprestimo do marido, e como este lh'o negasse pretendeu tirar-lhe dinheiro á força. O conselheiro não consentiu, agarrando-a com força pelo braço e dilacerando-lhe um enfeite de renda. D. Augusta levantou-se chamando-lhe bruto.

D. Agostinho, vendo sua irmã, D. Brites, a cabecear na poltrona, que estava ao canto, resolveu ir para casa. Como justificação, disse, olhando vagamente a calcular as horas:

-- Hão de ser mais de tres...

E chegando-se á janella para observar por dentro dos vidros, acrescentou:

-- Deve estar frio, lá fóra.

Por isso se dirigiu ao conde de Frazuella, seu parente, com o fim de lhe pedir emprestada a carruagem.

-- Mais por causa de Brites -- justificou o velho fidalgo.

-- O' meu querido primo! Usa da minha carruagem e de tudo quanto eu possuo. Essa nossa querida Brites não havia de ir a pé, para tão longe.

E fallando-lhe ao ouvido, acrescentou:

-- Não vás depois para casa das meninas, meu grande corrupto! E's capaz de por lá te esqueceres e deixar-me aqui até de manhã, á espera.

-- Qual, filho!... Estás enganado. Olha que já ha muito tempo que...

-- Te deitas com as gallinhas... Malandro! -- rematou o Frazuella chasqueador.

O velho sorriu, indo despedir-se individualmente de todas as pessoas presentes. Andou de grupo em grupo n'este dever de ceremonia. Quando se dispunha a sahir, lembrou-se subitamente que não tinha visto D. Augusta, mulher do ministro da justiça, de quem sempre recebera deferencias, que não podia esquecer. Como a não encontrasse no salão, depois de ter levado a todos os cantos o seu olhar indagador, dirigiu-se a Carlos de Mendonça perguntando solicito:

-- Sua mulher?... Queria ter a honra de me despedir ...

O conselheiro, como estivesse perdendo, respondeu bruscamente, com um saliente encolher de hombros:

-- Sei lá!... Deve estar por ahi...

D. Agostinho ficou perplexo, o rosto alto, á procura... Porém, o creado da viscondessa, calculando o motivo do seu enleio, esclareceu-o apontando-lhe o lado para onde a vira passar. D. Augusta, depois do marido lhe haver recusado o empréstimo de dinheiro, dirigira-se para um gabinete, onde um bico de gaz ardia com escassa luz. Sentindo-se cançada, sentára-se no sofá e adormecera. O irmão de D. Brites para ali se dirigiu; porém, no limiar da porta suspendeu de subito os meudos passos. O magnifico corpo da mulher do ministro expunha-se inerte, n'uma attitude de abandono, os braços cahidos, os opulentos seios n'uma respiração larga. Por baixo do ultimo folho do vestido via-se-lhe, além de toda a botina, uma nesga de meia de seda escarlate, bem repuchada. O velho fidalgo conservou-se um comprido minuto, de olho soffrego, n'um desvairamento de imaginação sadica, indo surrateiro dar mais vida ao gaz... A reflexão pesou-lhe depois na cabeça branca e pensou que seria melhor acordar D. Augusta para que outrem a não viesse surprehender n'aquelle desalinho. Tambem se lembrou de prevenir Carlos de Mendonça, o marido, do que se passava; mas logo uma idéa de prudencia lhe acudiu:

-- Para que ?... Para lhe ouvir alguma das suas?!...

De novo abriu, mais largamente, com sentimento peccador, os seus olhos ávidos. No rosto floria-lhe um sentimento de goso sensual. Veio-lhe á lembrança D. Constança e o seu corpo roliço... D. Constança tinha agora uma casa de hospedes, onde vivia em escandalosa mancebia com o padre Brito, um mariola com quem elle tivera relações pessoaes. Bons tempos, tempos fartos e alegres os da rua do Alecrim, onde a viuva do Germano morava antes de casar a filha com o Gustavo, que tambem desapparecera de Lisboa, sem dizer palavra. De Arminda poucas noticias tivera depois que se separára do marido, para ir viver com João Dantas. A mãe é que ainda encontrava, ás vezes, sendo a ultima na quinta feira-mór, no largo do Loreto, cumprimentando-se ambos de leve, como se fossem apenas conhecidos. «Ah! perversidade das mulheres! São umas viboras ingratas»!--pensou D. Agostinho. Em casa da sogra do Gustavo conhecera elle o Sallustio Nogueira, quando viera a concurso para delegado...Que somma de recordações, que amalgama de saudades do tempo em que tinha o seu conchego, os seus chinellos junto do leito, como se fôra um marido, em casa da viuva do Germano!

Quasi perdido na resurreição d'esse passado tão vivo e ainda tão proximo, sentiu forte sacudidella em todo o seu corpo, percebendo a voz forte de Carlos de Mendonça, que dizia ao creado: «Viste para ahi a senhora D. Augusta ?» D. Agostinho previu que ia ser encontrado em flagrante e impropria curiosidade!... Promptamente, como exigiam as circumstancias, com dois passos lateraes entrou na sala carmesim, que estava ás escuras, reapparecendo no salão, de casaco no braço, chapeu e bengala na mão direita, rosto alto de quem indaga.

Sua irmã D. Brites esperava-o no corredor, a cabeça envolvida em mantas de lã. O ministro da justiça, encontrando-o de frente, ainda teve tempo de lhe perguntar:

-- Viu por ahi minha mulher?...

-- Não, querido conselheiro, procurava-a justamente, para lhe apresentarmos os nossos respeitos.

IX

Sallustio Nogueira engrandecia-se a seus proprios olhos: -- vivia feliz no engodo das relações que adquirira entre homens de vulto na politica e orgulhava-se principalmente da intimidade com que era tratado pelo conde de Frazuella. Quem lhe diria, poucos annos antes, que elle, filho de um obscuro camponez, havia de, com tanta sorte, adquirir importancia e ingresso entre politicos e pessoas da côrte, intimos de el-rei!... Bons tempos, os tempos da infancia, passados no meio d'ar-vores e penedias, tempos alegres, simples e despreoc-cupados! Não tinha d'elles a minima saudade, não appetecia voltar a essa epocha sympathica, cuja me-moração amesquinhava o seu engrandecimento actual! Conhecia de mais a provincia, a sua vida farta de coisas pueris e estupidas. Recordava tudo isso com benevolos sentimentos de affeição; mas, retroceder ás caturrices dos politicos cabisbaixos e barbudos, homens tremendos, que por causa de uma misera questão de junta de parochia, escangalhavam solidas mesas a murro-- por Deus! -- não o apetecia!... O seu espirito tinha-se alargado amplamente na convivencia de homens como o marquez de Tornai, o Frazuella e outros. Sentia-se um civilisado. Em Lisboa, n'uma agitação de idéas e interesses, que lhe enchiam a existencia de cuidados pomposos, achava-se bem. Gostava de ver as coisas de alto, com um franzir de labios desdenhoso, a palpebra ligeiramente caída. Para elle, o encarar o facto mais grave, sorrindo com um ar intencionalmente machiavelico, era signal de superioridade intellectual, que imitava para dar de si, a si mesmo, uma idéa alta! Pensava em se mostrar homem de penetração arguta, aproveitava todas as occasiões, até deante dos intimos, para se arrogar importancia de politico consultado por outros politicos.

Em casa do Frazuella encontrara, nas proprias mobilias e nas cores dos estofos, um gosto discreto e premeditado que o maravilhára! Concentrou-se em longa reflexão, comprehendendo longinquamente, na vida d'esta sociedade que não conhecia, certo espirito de agudeza e subida educação, que só lhe fora permittido presumir, até ali, na leitura de alguns romances francezes e no theatro de D. Maria, quando via o actor Santos representar dramas de Sardou, ou de Dumas. N'esse meio famoso até os proprios creados, apprumados e attenciosos, tinham magnificencia para engrandecer as pessoas a quem serviam. Poderiam lá, os da sua terra transmontana, imaginar sequer um homem como Fabrice, o creado particular do Frazuella, alto, barba escrupulosamente feita como a d'um conego, meia de seda preta, sapato de verniz com fivella de prata, calção de setim, a offerecer-lhe ceremonioso charutos n'uma bandeja de prata! Isto, nem em sonhos provincianos da maior opulencia! Fabrice acompanhára em viagens principes russos, antes de estar ao serviço do fidalgo portuguez. Era um homem por quem Sallustio tinha tanta admiração, que até lhe copiava gestos para ornamentar os seus discursos em S. Bento. A delicadeza de Fabrice, quando depois de satisfazer o deputado em qualquer minimo desejo, que este lhe manifestasse, se retirava dizendo merci, monsieury até. o vexava. Era o requinte da polidez, agradecer a alguem o favor de lhe ter acceitado uma chavena de chá, ou um copo d'agua! Achava isto delicioso; entendia que as pessoas, mesmo de posições differentes, devem umas ás outras toda a urbanidade. Viver n'uma sociedade assim, poeirada de pequenos nadas, que são o tudo na existencia, é que se chama viver; o resto é vegetar, é andar no mundo por vêr andar os outros, é levar o corpo á sepultura com mais ou menos semsaboria.

E a condessa?!... Sublime! A distincção d'esta mulher, formosa aos quarenta annos, maravilhava-o. As suas palavras tinham ao mesmo tempo condescendencia e nobreza, afagavam como um arminho a face da pessoa a quem eram dirigidas. D'isto só na alta sociedade se encontra: -- é o resultado do conflicto de interesses delicados, de sentimentos prevenidos, de idéas herdadas!... Não era uma fidalga de antiga linhagem --ouvira dizer. Quem são, pois, os fidalgos? interrogava-se sobranceiramente, como plebeu orgulhoso! Seriam aquelles com quem vivêra na provincia e que se jactavam de serem de estirpe mais antiga que os proprios reis?!... Ah! esses conhecera-os, eram bem pobres e estupidos! Ainda um mez antes, elle, Sallustio Nogueira, filho de um desconhecido proprietario, arranjára um emprego de guarda de alfandega para um misero que se chamava Moscoso, homem a quem por força do habito e tradição costumavam na terra tratar por senhoria dando-lhe dom. Tinham-se mudado os papeis. Agora era o tal Moscoso que se approximava de chapéu na mão, implorando-lhe o valimento, para que não morressem de fome quatro creanças, que lhe haviam ficado de sua mulher--uma das de antiga linhagem, que morrera phtisica.

Fidalguia, a verdadeira fidalguia moderna, era esta da condessa de Frazuella, formada no convivio de in-telligencias cultas, no meio de uma sociedade rica de idéas grandes, como parecia a sociedade dos estrangeiros! Só isto ainda tinha poder de o enthusiasmar, de produzir deslumbramentos no seu espirito. O que o estava horrorisando, provocando-lhe repugnancia invencivel, era o conservar-se mais tempo n'este desleixo de estudante ou de militar, em que sempre vivera e ainda se encontrava com Angelina!... Ah! seria um ambicioso?! Era, um ambicioso de consideração publica, de riqueza, dos altos gosos, que ainda não saboreára d'uma maneira completa. Chamassem-lhe tolo, que se ficaria rindo de quem lh'o chamasse.

A esta hora matinal, quando o dia começava a romper, Sallustio seguia vagarosamente no caminho de casa, agasalhado no sobretudo e construindo mentalmente o maravilhosa edificio do seu futuro! A providencial collaboração que recebia do Frazuella envaidecia-o. Se em breve lhe daria boas esperanças do casamento com Palmira Freitas!... Este problema, a resolver-se favoravelmente, seria o cumulo da sorte! Como bem disse o conde, seria dar um salto a tudo n'um momento... N'este imaginar temerario, subia a ingreme e suja escada do predio onde morava e julgava-se como Rastignac, no alto de Paris, ameaçando a grande cidade das suas ambições com um punho cerrado. Um longo calefrio, porém, lhe subiu pela columna vertebral, obrigando-o a parar desgostoso. O choro de sua filha, a Amelinha, que já tinha tres mezes, era nota bem dissonante para os seus ouvidos!.. Que diabo de espiga esta ligação com Angelina! Sempre a gente, quando não pensa maduramente as coisas, faz muita tolice!... Mas tal acontecimento não poderia ser um obstáculo á realisação dos seus ambiciosos projectos; Angelina e a filha não haviam de ser para elle uma grilheta perpetua. A rapariga comprehendelo-hia a bem; não o querendo comprehender a bem, tanto peor para ella. Se tivesse juizo seria muito feliz, vivendo n'uma casinha para os lados da Estrella, na companhia da pequerrucha. Sallustio não tinha tenção de os abandonar. Mesmo depois de casado poderia proteger Angelina e frequentai a. Não era o primeiro homem de posição que, sendo casado, tivesse uma amante. Porém, -- reflectiu -- se Palmira fosse ciumenta e o quizesse exclusivamente para ella?! Era o diabo! uma grande espiga! Resignar-se-hia e só lhe restava dispor de algum dinheiro, para fazer um pequeno dote á filha de Pedro Alves e casal-a com qualquer rapaz sério, cujas precisões aconselhassem tal alliança. Esta idéa simples, que tão logicamente lhe veiu ao cerebro, sobresaltou-o !... Gostava de Angelina, habituára-se aos seus carinhos, não podia deixal-a com facilidade. Palmira escusava de saber Havia de, com recato e prudencia, conservar a amante n'um logar retirado da cidade, para continuar a gosal-a ás furtadelas, indo lá de trem algumas noites. O casamento com outro homem talvez a rapariga o repellisse. Era altiva e sensivel. Não... não, tal lembrança partindo d'elle, tinha mesmo o seu quê de infame. Angelina entregára-se-lhe pura, honesta, confiada, quebrando, n'um momento de paixão, todos os laços de familia, todas as suaves algemas que a prendiam ás suas crenças religiosas... Sempre lhe fôra fiel, modelo de abnegação e de trabalho, servira-lhe de muito durante estes dois ultimos annos difficeis... Não era digna de que lhe dissessem: «Vae-te, já me não serves». Sallustio era homem bastante compenetrado dos seus deveres, para nunca praticar acção tão canalha. Sim, porque era uma canalhice, uma coisa verdadeiramente vil... -- pensou com integridade.

Insensivelmente, misturando se-lhe todas estas idéas na cabeça, encontrou-se junto da cancella. A escada era escurissima. A esta hora matinal, elle mesmo, não tinha consciencia dos limites do seu corpo. Sentia-se annullado na propria individualidade, confundido na massa de treva illimitada, como se estivesse no fundo de um mar de breu. O charuto apagára-se lhe, nem esse ponto incandescente avivava aquella negridão! Tomado de certa perplexidade, procurou, tacteando, o cordão da campainha e tocou... Foi Angelina que veiu abrir, perguntando do lado de dentro:

-- E's tu ?

-- Sou, abre -- respondeu.

-- O que estiveste a fazer tanto tempo aqui parado á porta?

-- Eu? tanto tempo parado!... Ah !... é que me pareceu que fallavam lá em baixo e escutei. Tu não te deitaste?

-- Não. A menina tem chorado muito...

Dias depois, Sallustio Nogueira estava ainda na cama, saboreando, encostado á travesseira, um bem pensado artigo do Jornal do Commercio, quando Angelina entrou no quarto para lhe entregar uma carta, trazida por um homem, que, vendo-a assim formosa, cofiára magestosamente a suissa. Logo pelo sobrescripto, o deputado, que n'esse dia almoçára na cama, conheceu a letra do conde de Frazuella; mas quando leu, n'uma folha de papel azul com o brazão no alto, estas simples palavras: «Venha-me fallar impreterivelmente ás duas horas» sobresaltou-se, exclamando: «Que diabo será?!»

-- Aconteceu alguma coisa? -- perguntou com interesse a boa rapariga.

-- Nada. Traz-me agua morna depressa--respondeu Sallustio preoccupado.

Depois de se lavar pediu as meias de fio de Escocia, uma camisa bem engomada, os sapatos de polimento. Angelina apresentou-lhe todas essas coisas, não ousando interrogal-o. Como mulher amante e sensivel, reconhecia intuitivamente que na vida do pae de sua filha se passava um momento de goso e não queria minorar-lhe a preoccupação que o tornava feliz.

-- Luvas, não tenho nenhumas? -- inquiriu, em quanto Angelina lhe escovava a sobrecasaca no corpo.

-- Não tens nenhumas novas -- respondeu sem se distrahir.

E ao sair da porta, Sallustio, fallando de lado, disse sobranceiramente, como quem deixa cair as palavras:

-- Se eu não vier á hora de jantar, não esperes por mim.

-- Pois sim -- concordou Angelina resignando-se.

Continuavam a ser tão frequentes e tão longos os seus dias de isolamento! Cobria-lhe toda a existencia um negro véu de tristeza, ao sentir-se em frente de mais doze horas, sem fallar a ninguem, a não ser ao Bento aguadeiro e á D. Maria Gomes, que estava doente! Com os olhos rasos de agua, escutou attentamente as passadas de Sallustio descendo... Ainda foi á janella para o ver na calçada, que subia com lentidão. No alto de Santa Catharina, o deputado deitou de relance um olhar soberbo á larga, bacia do Tejo e, antes de ir a casa do Frazuella, dirigiu-se á rua Nova do Carmo, para fazer a barba.

Quando Fabrice, o invejado Fabrice, com o seu aspecto de embaixador, o annunciou ao conde, abrindo amplamente a porta do gabinete, o diplomata escrevia cartas para o estrangeiro. Pediu-lhe sorrindo que entrasse e offereceu-lhe a poltrona que estava ao lado da secretária. Sallustio reconheceu que era esperado com interesse e isto fez com que n'elle crescesse a preoccu-pação da sua importancia. O Frazuella ameigou com demora e em silencio o que ia dizer.

-- Grandes novidades, meu caro...

-- Grandes novidades?! -- repetiu o deputado cheio de curiosidade.

-- Sim. Nada menos que... u-ma cri-se mi-nis-te-ri-al!

-- O ministerio cae?! -- perguntou assustado, danda um pulo na cadeira.

-- Não, homem -- volveu o diplomata -- recompõe-se. Está combinado com el-rei.

E ficou-se sorridente a apreciar o effeito d'esta novidade. Ella continha uma esperança perceptivel, e a rapida illuminação do rosto de Sallustio mostrou que um sentimento de homem ambicioso enchêra rapidamente aquelle coração. O Frazuella continuou com o seu fallar vagaroso, accentuando as syllabas:

-- A crise, por emquanto é absoluto segredo. Poucas pessoas o sabem, peço-lhe que o não divulgue, nem aos seus intimos.

-- Oh!... -- exclamou Sallustio, desejando merecer inteira confiança.

-- Creia que nem mesmo todos os ministros presumem esta crise; porque ella ainda não rebentou. Talvez seja no conselho d'esta noite.

-- Mas o motivo ? -- indagou o deputado sentindo-se feliz, por obter esta confidencia, que lhe garantia alto valimento.

-- O motivo, não, o pretexto -- emendou o Frazuella com riso intelligente. -- O pretexto é a reforma na circumscripção diocesana, com a qual o marquez e mais alguem (accentuou intencionalmente) não estão de accordo. Carlos de Mendonça é uma bella cabeça de certo; mas, talvez mesmo por isso, leva as coisas muito longe, pelo menos mais longe do que convém. O presidente do conselho, homem timorato e conservador, não lh'o póde consentir. El-rei tambem não gosta muito de arrojos e tem o maximo empenho em que se não bula com o clero... Tal procedimento, n'esta occasião, traria complicações de mil diabos. Eu fui convidado para substituir Evaristo de Mello na pasta da marinha, passando este para a da justiça.

-- Muitos parabens.. -- disse Sallustio Nogueira, com a voz moderada do homem, que soffre uma desillusão.

O conde levantou-se e principiou a passear, em silencio, ao longo do gabinete. Depois, como quem sae de um raciocinio, fallou de modo vago, com as mãos nos bolsos:

-- Não acceito, nem podia acceitar, ainda que o meu prazer fosse grande em aplanar as difficuldades a el-rei e ao marquez. Tenho de sair do reino.

-- Pois é pena, grande pena -- pronunciou Sallustio com emphase -- que não possa fazer este serviço ao paiz...

-- O paiz passa admiravelmente sem mim, cá dentro. Prefiro continuar a represental-o, lá fóra. Ainda que não seja uma posição das melhoras, a de ministro por-tuguez no estrangeiro; porque os nossos ordenados são uma miseria, estou habituado a esta vida vagabunda da diplomacia. Minha mulher tambem quer sair...

-- Mas isso poderá collocar o marquez em grandes embaraços! Sua magestade mesmo...

-- Qual! tudo se arranjará. A crise foi-me communicada confidencialmente por uma carta do presidente do conselho, recebida esta manhã, e fazendo-me o convite. Por aqui o meu amigo calcula o absoluto segredo que é. A não ser el-rei, o marquez, a condessa, e nós ambos, ninguem mais o sabe. Carlos de Mendonça, nem suspeita da sorte que o espera...

O diplomata recomeçou o passeio em volta do gabinete, demorando-se a combinar idéas em frente da janella, d'onde abrangia o Tejo, n'um amplo olhar. Sallustio, um sanguineo, sentia-se abafado por aquelle silencio, o peito enchia-se-lhe de impetos d'acção, no cerebro batalhavam-lhe os pensamentos. Se lhe fosse per-mittido, exporia opiniões sobre a crise; a sua palavra impedida na garganta, era como um tumor que o estrangulasse. Ergueu-se da cadeira, e n'um movimento de hombros significou a sua energia recondita. Para gastar toda essa força perdida no seu espirito inactivo, começou a vaguear em frente das estantes, commentando calado os titulos escriptos nas lombadas dos livros.

O Frazuella retomou a palavra, como na continuação d'uma conversa, não interrompida:

-- Porém, visto terem a delicadeza de m'as offerecer, não devo abandonar as vantagens, que me propõem. Acha que faço mal? -- consultou.

-- Por fórma nenhuma. Até me parece que procede optimamente. Então acceita?... -- disse interessado.

-- Não, meu caro, não. Ficar aqui, por fórma nenhuma. Minha mulher está com a nostalgia de Paris, eu tambem... Velhos habitos, antigas amizades que precisamos refrescar. O meu pensamento é escolher pessoa que me substitua. Mas tenho interesses ligados, combinações feitas com emprezas coloniaes estrangeiras. Não posso abandonar os amigos. O futuro ministro da marinha será pessoa da minha inteira confiança.

Sallustio pareceu-lhe comprehender o diplomata. Alegrou-se-lhe o coração n'uma radiosa esperança. Para que é que o mandára chamar? Qual o motivo d'estas confidencias, d'estes segredos, que só el-rei, o marquez e a condessa sabiam? Era transparente, tudo claro... Teve vontade de se lhe offerecer incondicionalmente : elle seria o homem que o Frazuella procurava. Um rubor de sangue lhe purpureou o rosto, o cerebro ficou-lhe envolvido n'uma deliciosa e estupida voluptuosidade. Porém, readquirindo o governo da sua vontade, affectou de indifferente, pois seria ridicula qualquer declaração, que da sua bocca saísse.

Porém o Frazuella, homem experiente e sagaz, medico entendido nas turbulencias da ambição, calculando que aquella alma soffria e precisava de ser arejada, deu maior intimidade as suas palavras, dirigiu se patentemente a Sallustio, tomando-lhe uma das mãos no meio d'um sorriso, e disse-lhe no rosto:

-- Ora, podendo eu designar pessoa para a pasta que me offerecem, é claro que a escolherei da minha particularissima confiança e que seja ao mesmo tempo homem intelligente e desembaraçado. O meu amigo por certo já adivinhou...

Conservaram-se passivos durante segundos, o olhar d'um no olhar do outro: o Frazuella sceptico e captivante, Sallustio reservado e medroso, temendo que a bola de goso, que já se lhe revolvia no peito, rebolasse de modo inconveniente.

-- Adivinhar... -- disse.

-- Sim -- insistiu o diplomata decidido -- já adivinhou. O meu amigo será o meu substituto... se quizer. Nem eu podia escolher outro...

-- Eu, senhor conde !.. .

-- E' muitissimo capaz, deixemo-nos de tolices. A lembrança não é só minha. Gabriella, que toma sempre parte nas minhas resoluções, approvou-a. Minha mulher vale um homem para estas coisas, creia. E' immensamente perspicaz. Além d'isso interessa-se muito por si.

-- Captiva-me realmente esse parecer da senhora condessa, um espirito superior...

O Frazuella fallou mais á vontade :

-- E' sua amiga e sabe dar o valor a quem o tem. Como lhe disse, convém-me antes voltar para a carreira. Na mudança de pessoal, que se projecta, podem dar-me Paris. Se eu quizesse Londres tambem o obteria; mas GabrielIa tem as suas melhores relações em França, e depois, o clima de Inglaterra não lhe convém. Os meus interesses tambem me aconselham a França, o meu grupo financeiro é francez. O que pretendemos é de incalculsvel vantagem para Portugal. O chamamento de capitaes estrangeiros para fecundaremos vastos terrenos incultos, que possuimos em Africa, é obra patriotica, creia. A' gente de iniciativa pertence o futuro. Do que o nosso paiz tem extrema necessidade é de ministros, que não sejam tacanhos, que se não prendam com futilidades, com pequenas intrigas de soalheiro.

Sallustio conservou-se n'um silencio condescendente e approvativo. O diplomata continuou:

-- O que desejo, ou melhor, o que pede o grupo de banqueiros a que pertenço (o meu nome não figura em coisa nenhuma, entende-se) é justo, como verá. A estas horas, um engenheiro de grande competencia percorre e estuda a nossa riquissima provincia de Moçambique. Elle dirá quaes os terrenos que se devem pedir. Mr. Trente é homem habilissimo e muito sério. Trará de Africa um relatorio luminoso sobre o assumpto. Nós temos alli coisas espantosas, que não sabemos aproveitar: cultura de borracha, de sementes oleosas, minas sem a menor pesquisa... Um inferno de ignorancia, a nossa administração. Precisamos que os estrangeiros nos venham abrir os olhos e nos venham enriquecer. O relatorio que submetteremos á sua intelligente apreciação, antes de se fallar em nada, illucidal-o-ha. Até o projecto de lei lhe posso mandar fazer por pessoa com grande pratica do assumpto. O meu amigo só terá o trabalho de o assignar, de o apresentar ao conselho de ministros e ao parlamento. Não precisa ter nenhum incommodo, verá. Acha que assim não é melhor }

-- De certo... Quanto á materia de que se tracta, estou que nos entenderemos. Precisamos de politica nova, certamente, politica de negocios, politica pratica...

O conde, com evidente satisfação, poz-lhe no hombro a mão de amigo.

-- Ahi está a palavra justa, politica nova, politica de negocios, politica pratica. De estadistas resolutos é que o paiz anda ha muito necessitado--repisou. Possuimos riquezas em que não temos pensado. Essas nossas ilhas oceanicas, pela posição geographica, valem um imperio. A Madeira é um torrão d'assucar, que todos desejariam trincar. A nossa costa oriental africana, aberta ao commercio do mundo, reserva coisas inesperadas. Será um débouché de primeira ordem até para nós. O ministro da marinha, que comprehenda os seus deveres e responsabilidades perante a civilisação, póde deixar na historia geral e na portugueza um nome de primeira ordem. O que precisamos é de dinheiro. Não o temos, vamos buscal-o onde o houver. Uma concessão, como a que lhe indico para o meu grupo, outras que venha a fazer pelo mesmo typo, ennobrecerão a sua gerencia. Capitalistas não faltam, eu lhe trarei outros, quando o primeiro pedido fôr satisfeito. Apresentar-lhe-hei gente da melhor para estas coisas.

-- Monsieur le comte...

-- Entrez -- pronunciou o Frazuella, com o rosto levantado.

O creado abriu amplamente a porta, dizendo com a mão no puxador;

-- Monsieur le marquis, est là, dans le salon;

-- Ah! -- disse o diplomata para Sallustio -- E' o presidente do conselho. Espere-me aqui um momento. Quando voltar, talvez lhe traga excellentes novidades.

Sallustio Nogueira ficou no gabinete, entregue a si mesmo, ao turbilhão das suas idéas! No meio da casa, o olhar fixo na porta por onde saíra o Frazuella, os braços pendentes, raciocinava vaga e confusamente. Uma corrente sanguinea galopante lhe irrigou o cerebro, perturbando-lh'o pela subita violencia. Passou-lhe diante da vista uma nuvem, como de cegueira repentina. Conservou-se assim alguns minutos, voltando pouco a pouco d'esse entorpecimento, d'esse cahos, como se a sua personalidade fosse evocada n'uma resurreição suave e demorada, depois de morte casual. Esta posse da consciencia, a nova conquista da sua vontade, deu-lhe um momento de alegria singular, como se fugisse suffocado do centro d'uma fogueira, para uma atmosphera refrigerante. Principiou a passear agitado, com o fim de encontrar nos movimentos do corpo, no ruido dos proprios passos, uma occupação, um sentimento de realidade, emquanto o Frazuella não apparecesse. «Porque não seria admittido agora a intervir nas combinações da crise ministerial latente?!..» -- pensou desgostoso e irritado. Entrou depois n'um periodo de sensatez, explicando tudo pelo natural. «Era exigir de mais: ainda o seu nome não estava acceito nem pelo marquez do Tornai, nem por sua magestade. N'esta ordem de coisas costuma haver muitas conferencias--pourparlers, como dizia o conde--antes de se chegar a um accordo. De mais a mais o seu negocio não era com o marquez, nem com el-rei -- era positivamente com o Frazuella e mais ninguem. Se fosse ministro dentro em algumas horas (subia-lhe a espinha uma quentura de goso!) sómente ao conde o devia. Por isso lhe consagraria toda a sua gratidão, uma gratidão eterna! Ah! podiam estar certos que seria grato, estava resolvido a provai-o por todas as formas. A combinação do diplomata não era inteiramente desinteressada, nem isenta de cubiças pessoaes, bem o sabia. Apesar da seriedade e apparente patriotismo, com que se acabára de exprimir, já, em outro momento de maior franqueza, lhe ouvira fallar em indemnisações, que a nação lhe devia, por serviços não recompensados. Conhecia perfeitamente este amor do torrão, que tanto se apregoa!... Afinal, o que todos procuram é os seus interesses. O pais, o famoso paiz de que tanto se orgulham, é a barriga de cada um... E faziam todos muito bem. Tolo é simplesmente aquelle, que pensa de maneira differente... Fica logrado e os outros vão-se rindo. Ver as coisas como o Frazuella as via, era não ter peneiras nos olhos.» E exprimiu-se alto, sem temor de ser ouvido, com impudecia recondita:

-- Deixemo-nos de puritanismos. Os amigos são para servir os amigos, que os consideram. Mutualidade de serviços, como dizia mestre Brito na Universidade. O positivo probabilissimo é eu estar ministro mais cedo do que esperava; o resto... uma santa historia.

Como rebentariam de inveja certos figurões da sua terra, que o haviam despresado na infanda, por causa do seu nascimento modesto! Agora ajoelhariam deante d'elle, pedindo-lhe empregos, acolhendo-se á sua protecção. O principal da sua desforra era apparecer em Chaves, acompanhado d'um esquadrão de cavallaria, e ver todas as auctoridades a recebei-o e a pronunciar discursos laudatorios, que elle ouviria circumspecto. Esses mediocres não tinham adivinhado n'elle o futuro ministro? Tanto peor para elles, que se encontravam assim desmentidos pelos factos. Pagariam em zumbaias os amargos, que lhe fizeram supportar com passados desdens. Sallustio Nogueira encontrava-se n'um instante de intimo e forte contentamento; occupava nu superficie da terra um espaço maior que muitos outros homens. Collocando o seu magnifico busto deante da ampla janella, pronunciou desvanecido:

-- Ora, quem havia de dizer, aqui ha meia duzia de annos, que eu chegaria tão cedo a estas alturas!

Sentiu passos na sala contigua: era o Frazuella que voltava. Compoz o rosto no sentido de trivial indifferença, sentou-se rapidamente na poltrona tomando da mesa a Revista dos dois mundos que abriu para inculcar prendimento na leitura. A perna traçada, o corpo em recosto exagerado, ficava com o livro a cobrir-lhe os olhos. O diplomata entrou com aspecto, que não era aquelle com que saíra. Vinha simples e natural.

-- Está a ler o artigo de Charles de Mazade? Magnifico, não acha? -- disse.

-- Oh! magnifico! -- concordou Sallustio, deixando cair nos joelhos o volume.

Mas o Frazuella, que relanceara o olhar sobre a pagina aberta, observou chalaceador:

-- Ah! mas é o romance de Cherbuliez que estava lendo!

-- Abri ao acaso -- respondeu.

Picado pela ironia do Frazuella, atirou a revista sobre a mesa acrescentando:

-- E massador este homem...

-- Não, Cherbuliez, mesmo como erudito, tem grande reputação em França.

-- Sim... mas sempre os mesmos amores... -- disse desdenhoso pela litteratura, pela paixão, por todos os enthusiasmos frivolos, que não tenham por fim engrandecer o individuo, diante da multidão illudida!...

E principiou a fallar de coisas diversas, sempre num sentido de louvar aquelles que encaravam a vida de modo positivo e pratico, attendendo só aos resultados. Gabava-se de conhecer muito os homens e de para elle ter passado o tempo dos idealismos. Aprendera á sua custa, porque fôra logrado por muitos. Entendia das coisas de Portugal, como poucos. Em Coimbra, a terra onde se vae reunir a mocidade de todos os pontos do paiz, tratara com rapazes de indoles bem diversas, de genios muito differentes. Estivera no Porto, magnifica cidade de negociantes, homens de trabalho, muito sensatos e pouco letrados, gente de uma tenacidade e energia heroicas na lucta dos interesses individuaes. Administrara durante quasi dois annos, a bella cidade de Braga e conhecia sobejamente aquelle districto de povo bulhento, principalmente para os lados de Bouro e de Prado. Na sua aldeia transmontana e em Chaves, experimentára toda a ronha do provinciano, minando instante a instante os interesses do vizinho. Finalmente estava em Lisboa, ia em mais de dois annos. Aqui, onde se reune o que ha de melhor no paiz, aqui onde concorrem diversissimas ambições, que se entrechocam, para se destruirem mutuamente, aprendera immenso, escutando todos os que podiam dar bons conselhos de vida pratica com soluções á vista...

O conde ouvia-o passeando, com distrahida attenção, dizendo-lhe de vez em quando: «sim!» «é boa!» «curioso!» E como d'esta forma o applaudisse. o deputado inflammava-se, fallando com mais impeto. Quando terminou, o Frazuella parou diante d'elle gabando-o:

-- Gosto de o ouvir discorrer assim. E' um homem velho... Conhece o mundo, vê-se que tem experiencia das coisas...

-- Para mim, as theorias fizeram o seu tempo -- certificou Sallustio com emphase.

Quando julgou que o Frazuella fosse narrar o que se passara momentos antes com o marquez do Tornal, entrou inesperadamente a condessa, que vinha perguntar a seu marido se n'esse dia escreveria para França. Desejava que izesse umas recommendações especiaes, para que, no proximo vapor do Havre, lhe viessem as toilettes, que encommendára. Seria bom avisar o nosso consul em Paris, para que mandasse um empregado saber d'isto com urgencia Realisava-se brevemente um baile no paço e seria um desastre que estas coisas chegassem depois do dia em que deviam servir.

Encontrando ali Sallustio, a condessa fallou-lhe muito affavel, sentando-se alguns instantes no sophá.

O deputado conservou-se de pé, attento ao que dizia aquella mulher radiante, que o cobria benevolamente com o seu olhar meigo. Ella apparecia-lhe inesperadamente na vida, como uma protectora intelligente, e elle queria mostrar-se digno de escutar aquella voz cantante. Esse fallar ligeiro como aza voando, memorava coisas de Paris, a cidade sonho, d'onde lhe costumavam enviar os seus chapeos, os seus vestidos, coisas frivolas, que lhe assignalavam logar proeminente nas festas de Lisboa. Oh! Paris! o incomparavel Paris, onde o viver corre imperceptivel, como a brisa da primavera na ramagem dos platanos das Tuileries, em cujo faustoso palacio os amaveis imperantes recebem, encantadora e brilhantemente, todos os estrangeiros de distincção. Oh! Paris! o incomparável Paris cujos theatros são os primeiros do mundo!...

-- Não faz idéa, não póde fazer idéa, sem a ver, d'essa encantadora terra, o paraiso do mundo. Na sociedade poucos da vieille roche. Metteram-se nos seus castellos á espera de retomarem o antigo prestigio, no que me parece se enganam. Não fazem falta; o incomparável charme da Imperatriz tudo substitue. Creio que a vieille roche não fez bem.

-- Até fez muito mal -- exprimiu o conde com energia. O passado, que elles querem restaurar, não volta. E' incompativel com a civilisação moderna, com a democracia triumphante, até no espirito dos reis. Hoje o merecimento pessoal é tudo...

-- E assim deve ser -- entendeu absolutamente Sallustio. A verdadeira nobreza é aquella que cada um conquista por si -- apregoou este ambicioso.

A condessa achou brutal o tom violento e convicto do deputado ao pronunciar estas palavras. Pareceu-lhe inconveniente e plebeu. Reconhecia-se-lhe esse desgosto no ligeiro franzir de labios e de palpebras com que o commentára. Ella vinha d'uma familia conhecida em Portugal, em duas gerações de gente rica. Ainda que não pudesse mostrar velhos pergaminhos, entendia-se nobre pela longa pratica da gente civilisada. Principalmente o que a melindrava eram os modos altaneiros dos democratas, c o deputado, na sua pronuncia expontanea, manifestara esse mau gosto. Sempre com o seu riso amavel, d'uma doçura que desfazia todas as asperezas da convivencia, levantou-se estendendo a Sallustio a linda mão, dizendo:

-- Estavam certamente a tratar de negocios e não os quero prejudicar na conversa que encetaram. Não te esqueças das toilettes, Paulo. Escreve hoje mesmo, temos pouco tempo.

-- Escrevo immediatamente para me não esquecer. Tenho mesmo de tratar outro assumpto com a legação. De lá podem mandar a tua modista, que é na rua?...

-- De Rivoli, -- informou a condessa. Na legação, sabem ; e no consulado lambem sabem.

O Frazuella sentou-se á secretaria de pau santo, abandonando o deputado, que assim se julgou desmerecido, pois esperava anciosamente a narrativa do que se passara com o marquez de Tornai. A' espera d'esse gôso atirou-se para uma poltrona ao lado da janella. O diplomata terminada a primeira carta, começou outra, sempre em silencio, silencio que ia irritando gradualmente Sallustio. Acaso já não haveria crise?! acaso já não haveria pasta?!... -- pensou tristonho. Houvesse ou não, era despresador o procedimento d'aquelle homem, que meia hora antes o enchera de confidencias e palavras amaveis. Com aspecto de offendido, Ievantou-se, para de novo retomar a leitura da Revista. O conde ergueu a cabeça e, n'uma palavra breve, disse:

-- Desculpe. Tenho urgencia de concluir o meu correio. Leia o artigo de Mazade. E' o homem que hoje melhor conhece a politica da Europa.

Esta lembrança deprimiu-o. Talvez o diplomata adivinhasse que elle não conhecia Mazade.

Na realidade, a Revista, só uma ou duas vezes a folheara, para ler uns artigos sobre economia politica, quando fôra discipulo do Forjás, em Coimbra. Leitor assiduo não era. Aterrava-o o ter de confessar essa falta, no momento em que lhe estava sendo indispenssvel mostrar-se ao corrente dos grandes interesses internacionaes, que se degladiam no mundo. Abriu no logar indicado pelo diplomata. Tinha apenas lido as primeiras tres paginas, quando o Frazuella concluiu a correspondencia. Sallustio levantando-se disse:

-- E' um artigo magnifico!

-- Um grande critico, não acha?

-- Excellente! Eu leio-o sempre. No gremio ha a Revista. Não me escapa um só numero.

-- Faz bem, muito bem -- louvou o conde. -- Para quem vive na politica, Mazade é o melhor director espiritual!

Novo espaço de silencio, em quanto o diplomata escolhia papeis n'uma gaveta, que abrira com uma chave. Este abandono do assumpto que ali os reunira, era como a morte d'um sentimento delicado entre duas pessoas que se amaram.

Sallustio, no limite da sua paciencia, perguntou:

-- Então o presidente do conselho?...

O Frazuella desvalorisou o acontecimento dizendo em voz natural:

-- Fallámos de si. O marquez estima-o; porem a crise fica adiada por alguns dias. E' necessario fazer passar o projecto da divisão de comarcas, uma d'essas coisas a que os senhores ligam importancia cá na terra -- rematou desdenhoso...

Sallustio ficou triste, remoendo a sua desillusão. Era quasi um roubo, o d'essa pasta, que sentira ao alcance da sua mão. O Frazuella comprehendeu a amargura espalhada n'aquelle organismo como um veneno, e de novo procurou reconfortal-o, approximando-se muito intimo:

-- Nem uma palavra ácerca do que se passou. E' apenas o adiamento de duas ou tres semanas. Approveite o tempo para estudar um grande discurso acerca de colonias. Faça um discours ministre, entende? E' conselho do presidente. Alguns velhos que por ahi ha, homens sem valor, mas presumpçosos, podem reparar que lhe dêem uma pasta a si tão cedo, quando elles ficam de fóra. E' necessário justificar. O marquez é homem experiente e assim o entende.

Ia sahir. Pediu dois minutos de espera a Sallustio, em quanto ia fallar á condessa. O deputado tornou a ficar só, estupido e desilludido. Achavam-no ainda novo para ministro? Para que lhe fallaram em tal?! Melhor teria sido não lhe terem dito nada. Quando o Frazuella voltou, deu com elle sorumbatico, passeando meditativamente.

Desceram a escada silenciosos, o par do reino calçando as luvas, o deputado desgostoso da vida.

A' porta da rua, o diplomata ainda repetiu n'um conselho precioso:

-- Um discurso em cheio, ácerca das vantagens das concessões coloniaes. Aproveite qualquer pretexto. E' necessario attrahir os capitaes estrangeiros; rufe-lhe n'isto dos capitaes estrangeiros O dinheiro não é indifferente a ninguem, e vir elle de sua vontade da casa dos outros pata a nossa casa, é seductor, faz sempre effeito. Trabalhemos ambos para enriquecer o paiz que alguma coisa nos tocará. E d'aqui a algumas semanas vel-o-hei ministro. Olhe que da sua edade, deputado só em duas sessões... Mas um discurso que produza effeito. Não se esqueça dos jornaes; convide jornalistas para jantar comsigo no dia em que fallar. Entre a pera e o queijo é que estas coisas se combinam. Sem jornaes, não se faz nada...

Ao entrar na carruagem forrada de seda branca, apertou a mão do deputado com affecto. Ao mesmo tempo dizia ao trintanario:

-- Para a Ajuda.

Sallustio não ficara satisfeito. Principiou a caminhar sósinho, n'uma ausencia das coisas, não sentindo nos pés a dureza do pavimento da rua. Espalhára-se-lhe a bilis no sangue, mordia os beiços de despeitado. Afastavam-no das combinações politicas, que dariam a solução da crise?... E' que o consideravam apenas um comparsa. O Frazuella ia conferenciar com el-rei e de certo lá se encontraria com o marquez de Tornai. Disporiam d'elle como d'um dependente. Era uma escravatura politica esta; mas tinha de se submetter para chegar aos seus fins. No alto da rua da Emenda pronunciou aborrecido, mas glorioso:

-- O mundo é isto! Mais tarde farei o mesmo a outros...

Seguiu indifferente e sceptico pela rua da Horta Secca, o cerebro batido por idéas contradictorias. Em todas as physionomias reconhecia o stygma da sugeição moral em que elle mesmo se encontrava. Todos mercenarios dos gosos materiaes, da vaidade, do dinheiro, do mando, da infima cubiça humana...

-- Se o mundo é isto e eu não posso reformar o mundo... -- raciocinou philosophicamente.

X

Porém, de novo fortemente preso do pensamento do (que levaria o Frazuella a ir fallar com el-rei, sem lhe ter dado palavra de explicação, sentia no cerebro nova onda sanguinea de revoltado, revoltado contra esse mysterio, que o envolvia. O presidente do conselho, a dois passos d'elle, conferenciara com o diplomata e não o chamaram; o diplomata em caminho do paço, certamente que se encontraria ahi com o presidente do conselho e ambos discutiriam com o chefe do estado a crise politica!... Talvez a resolvessem n'esse dia, ao menos assentariam as bases da nova combinação ministerial.

E elle desconhecedor até da summa de todas essas conferencias, para escutar as quaes seria capaz de commetter baixezas! Sentia despeito, amargura dolorosa a adoentar-lhe o coração, já doente, como agua lodosa que entrasse na bacia d'um pantano, para augmentar a turvação. E monologou tristemente ralado:

-- Isto é só para elles, para esses grandes magnates!...

Julgavam-no incapaz de entender das artimanhas da politica elevada? Seria por desconfiança na sua discreção, ou não lhe attribuiriam intelligencia para taes combinações?!... Era então só metterem-lhe debaixo do braço uma pasta, como a um manequim?!,.. Pois encanavam se redondamente: para intrigas e planos cavilosos é que se sentia impellido; era a sua verdadeira paixão. Da politica o que mais o encantava era poder achar-se envolvido em acontecimentos defezos ao maior numero; era guiar com mão firme os homens, como os cocheiros governam cavallos. Dispôr em caprichoso alvedrio dos outros, eis toda a sua ambição. A sua vaidade ostentosa, gostaria que lhe attribuissem força e poder dominantes, ainda que fosse mentira. Attrahiam-no irresistivelmente as manhas, os raciocinios complicados, o proceder enigmatico e labyrinthico dos estadistas de nomeada no estrangeiro. A astucia, o ardil, o engano, eram qualidades que desejava possuir, por serem, no seu entender, as que distinguem os governantes dos governados.

-- Tudo o mais pouco vale! -- affirmou com jactancia.

Sentia-se esvaido no seu enthusiasmo, picado no seu orgulho, pelo Frazuella nem a consideração lhe ter dado de lhe revelar para onde ia. Por acaso é que lhe ouvira dizer ao trintanario «Para a Ajuda...» Abandonara o no meio da rua, com o vulgar aperto de mão, que se dá a toda a gente. Tal procedimento maguava-o e era incomprehensivel. Tel-o-hia na conta d'um simples verbo de encher, d'uma creatura de quem podia dispôr a seu talante?!...

-- Talvez... Mas quem lhe disse que se não engana?! Eu ainda tenho a faculdade de dizer redondamente: não!

E pronunciando de rijo esta desagradavel palavra, cuja sonancia lhe gerou calefrios, olhou espavorido! Parecera-lhe que outra pessoa a tivesse proferido... Os cocheiros que cavaqueavam á esquina da rua da Horta Secca, indifferentes á batalha d'aquelle espirito comsigo mesmo, vieram offerecer-lhe as carruagens; porém Sallustio, respondendo com gesto enfadado, passou carrancudo e severo, entrando no largo de Camões. Tinha tanto azedume calcado dentro do peito que a sua vontade seria gastal-o em bengaladas nos indifferentes, que passavam. O que lhe faziam não se podia tolerar. Não era nenhuma bola de bilhar ou pedra de xadrez, para inconscientemente entrar no jogo do conde de Frazuella, do marquez de Tornai, ou de el-rei. Veiu-lhe á lembrança procurar qualquer dos chefes da opposição para lhes entregar o grande segredo, que sabia. Escangalhava tudo, ía a situação pelo ar, não obtinha n'aquella occasião a pasta ambicionada; mas ao menos saborearia o prazer da vingança!... Sentado n'um banco, roia as unhas com frenesi... O seu olhar era fixo e accintoso!.. .

-- Que borra esta politica portugueza ! -- considerou desalentado.

Para elle tudo se cifrava n'um compadrio abjecto de meia duzia de figurões, que haviam tomado o paiz á sua conta, corrompendo-o para melhor o poderem explorar em proveito dos seus interesses inconfessaveis. Todos uma sucia, a que seria bem applicada uma correcção energica de justiça social, um segundo 93... As coleras humanas rugiram então pelas formidaveis gargantas de aço de Vergniaud, o eloquente; de Danton, o forte; de Marat, o homem tremendo, que ainda assombra a historia, com os roucos gritos sahidos da sua caverna, na rua de l'École de Médecine. A culpa de tudo tinha-a o Povo, que são todos os que trabalham e cujos esforços obscuros se perdem contra a forte barreira formada pela malta dos traficantes!

O originario espirito plebeu de Sallustio adquiriu n'este momento uma generosidade benevola e inesperada! Deixando-se arrastar na corrente de idéas que lhe inflammavam o cerebro, apresentavam-se á sua imaginação formosos quadros illuminados por um bello ideal, interessantes assumptos de fraternidade e justiça! Sentia-se brando e cheio de sentimento, pensando com sinceridade em que, instruir a grande massa dos ignorantes, para lhes dar o instrumento de bem poderem comprehender os seus direitos e deveres, seria a politica sabia e proveitosa a empregar no futuro. O homem de boa vontade, que a podesse realisar, teria as bençãos da nação. Elle mesmo bateria as palmas diante do inspirado patriota, cujo apparecimento lhe parecia necessario. O que não podia soffrer, o que o revoltava, vibrando-lhe no coração uma força inedita era ver o monopolio de combinações, que alguns sujeitos reservam para si: «Com que direito!? -- aggredia-os mentalmente. São mais espertos que a outra gente!?»

A tenacidade de Sallustio n'esta idéa dominante, era tal que, a principio, nem deu pela presença de um andrajoso, com parecer de esfomeado, que se viera sentar na outra extremidade do mesmo banco, onde elle roía os seus despeitos. Mas logo que reparou no infeliz, sentiu repellencia pelo seu trajar miseravel: o vestuario em pedaços, o peito á mostra, e chapéu esburacado a cahir-lhe sinistramente para os olhos. Diabo! podia apegar-lhe algum piolho! Tinha aspecto insolente, este esfarrapado, olhava com desagrado para todos (que passavam. E' bem mal feita a policia em Lisboa!-- pensou. São frequentes estes encontros designativos de ulceras moraes, que é conveniente esconder, como os doentes do corpo escondem as suas, para não causarem desgosto aos sadios. Taes infelizes são muitas vezes perigosos: -- em virtude de necessidades ou de maus instinctos tornam-se facinoras e ladrões, pondo em desassocego gente pacifica, que tem vida regular e precisa dormir com pachorra, para continuar na lida dos trabalhos quotidianos! Brilhante assumpto, largamente tratado por philosophos, legisladores e romancistas em sentidos muitas vezes diametralmente oppostos; mas sempre com sabedoria, eloquencia e paixão!

A proposito do caso presente, Sallustio era partidario da rigorosa repressão policial. O maior numero precisa de garantias, emquanto houver sociedade. Nos outros paizes, a miseria está melhor regulamentada. A ociosidade é mãe de vicios e produz abortos, como este que ali veiu sentar-se, olhando-o aggressivamente de soslaio!... Se este homem, em vez de vir adormecer n'um banco de praça publica, houvesse adoptado qualquer officio, teria em casa a sua cama, a sua mesa, a sua roupa lavada. O mundo havia de pagar-lhe os serviços recebidos, quizesse-os elle prestar. Thema soberbo o da miseria e do trabalho, digno de ser tratado com elevação em assembléas de gente culta e satisfeita! Sallustio não o despresaria: ficava para quando se lhe deparasse ensejo.

Emquanto pensava n'estas coisas, procurando dar ao seu espirito direcção audaz e firme n'um sentido de progresso social, o andrajoso ergueu lentamente a cabeça, olhando em volta e fixando-o a elle. Levantou-se depois, tirou uma ponta de cigarro detraz da orelha e com voz branda em que se percebia o desejo de se mostrar polido, disse: «O cavalheiro faz-me o obsequio...?» Sallustio hesitou alguns momentos, formulou um raciocinio, entregou por fim ao desconhecido o seu charuto meio gasto, levantando-se e dizendo:

-- Depois... deite fóra.

O homem mal vestido, conservou o pedaço de charuto entre os dedos, olhando ironica e tristemente o janota, que seguira para os lados do Chiado. Com o labio superior arrepanhado n'um desdem, arremeçou-lhe a palavra «asno!» Conservando-se alguns segundos pensativo, guardou no bolso do collete o charuto despresado e acabou a sua ponta de cigarro espreguiçando-se ao sol.

Passava de uma hora. Sallustio Nogueira, calculára que o seu amigo Gabriel Besteiros estivesse no hotel e foi procural-o com o fim de irem ambos para a camara. Encontrou-o, colerico e agitado, passeando em volta do quarto, como uma panthera n'uma jaula! Parecia positivamente furioso! Em menos de quinze minutos estragára um maço de cigarros, atirando-os ao chão, por não poder accender um só! Puxava violentamente pelas barbas, com força de as arrancar... Ao perceber Sallustio, estacou no meio do quarto dizendo em voz medonha:

-- Esse teu governo é uma corja de patifes! Eu devia ir hoje á camara, correl-os a pontapés pela porta fóra, quebrar todas as bancadas e acabar com aquillo de uma vez para sempre!

Sallustio teve-lhe medo! Nunca o vira com tamanha colera no rosto! Gabriel de certo herdava aquellas furias de sua mãe, senhora tão robusta que amamentava sempre duas creanças ao mesmo tempo, para lhe não encaroçarem os peitos. Devia ser uma segunda Gargamella, mãe do sempre bem memorado Gargantua, que, segundo a chronica do bom Rabelais, lhe tirava, de cada vez que mamava, mil quatrocentas e duas pipas e nove potes de magnifico leite!

Mas Sallustio sabia que sempre tivera grande imperio sobre o testudo e valente Gabriel. Do limiar da porta, fallou-lhe com rosto sério, encontrando gozo em deparar com alguem, que, como elle, estivesse inimigo da situação.

-- Meu governo! Arreda para lá... Mas que diabo te fizeram para estares assim furioso?!

-- Uma porcaria, como fazem todos os dias; porque são uns pulhas -- respondeu exaltado. -- Lembras-te d'aquelle padre, que tem em casa filhos de tres moças e é meu inimigo declarado?

-- O padre Joaquim Cabresto? lembrou.

-- Esse mesmo facinora -- rugiu Besteiros. -- Pois despacharam-no abbade da minha propria freguezia!

-- Oh! com mil demonios! -- exclamou Sallustio.

-- Puzeram-me na situação, logo que elle me faça a primeira, de lhe despejar no bandulho um bacamarte cheio de zagalotes. E aqui está como um homem se perde, por causa da estupidez de um ministro! -- rematou, expondo terrivelmente a sua larga figura de braços cruzados, em frente de Sallustio boquiaberto!

Era caso sério, não se podia occultar. Admirava-se porém do presidente do conselho, homem prudente e conciliador...

-- Tu, Gabriel, tens sido sempre um fiel correligionario, um burro de carga nas eleições e em todas as manifestações políticas, que elles tem querido organisar... -- lamentou.

-- Pois é isso que me damna! Eu que faço tudo que elles me pedem; a mim que estou sempre prompto para todas as malandrices, é que prégam uma destas!... -- disse com dôr na voz.

Sallustio, reconhecendo sagazmente que seria conveniente. excitar qualquer animadversão contra o ministro da justiça, insinuou:

-- Coisas d'esse Carlos de Mendonça, que não é boa peça...

Besteiros enfureceu-se. Agarrou-lhe violentamente pelas bandas do fraque, como se elle fôra o inimigo ao qual se propunha aggredir e declarou exaltado:

-- Eu sou peior que elle! Tu conheces-me. Diz-lhe que sou capaz de o arrebentar...

E batendo, com o pé uma forte pancada no soalho, representou:

--... diz-lhe que lhe ponho este no bandulho e não lhe deixo nada lá dentro. Ha de deitar tudo pela bôca fóra! Grandissimo patife! concluiu já com os punhos no ar, ameaçando Carlos de Mendonça, cuja physionomia ironica a imaginação lhe representava a olhal-o provocador.

Sallustio desejou socegal-o e ao mesmo tempo fazer-se valer:

-- Deixa que eu fallarei hoje ao marquez. Carlos de Mendonça é torto; mas no ministerio ha homens sérios.

Gabriel, a quem os successivos aggravos já soffridos, de ha muito traziam a cabeça transtornada, disse caminhando violento para o seu amigo:

-- Homens sérios, homens sérios o que?! Todos uns garotos, uns canalhas, deixa-te de contos. Prometter e faltar é para elles a mesma coisa. Esse tal presidente do conselho acaba de despachar administrador para o meu circulo, sem me consultar. Estes homens querem-me deitar a perder, mas eu faço-lhes uma de dar brado! Um dia, se me chega a mostarda ao nariz, esborracho qualquer d'elles, como quem esborracha um percevejo e vou para a costa de Africa.

E como estivesse verdadeiramente desorientado e o desespero lhe désse para chacota acerba e mordente, pronunciou ás gargalhadas:

-- Olha que não é tão má como dizem, a tal costa de Africa! Come-se lá pão e ha pretas para a gente se regalar. Esses homens estão positivamente illudidos commigo!.. Diz-lh'o tu, desengana-os. Esbandalho um!

O deputado de Guimarães conhecia bem o seu conterraneo e acreditou que uma grande semsaboria podesse acontecer. Tremeu por si, que estava para entrar no ministerio e tremeu pela independencia do poder executivo. Havendo na camara meia duzia de deputados como Besteiros, -- adeus opiniões desassombradas!... Os ministros teriam de viver sob um verdadeiro regimen de terror. Por isso, usando de tacto e moderação, quil-o levar a outra ordem de sentimentos, salvar da responsabilidade o ministerio, o marquez do Tornal, ainda que desejasse uma situação desfavoral para Carlos de Mendonça, que, a bem dizer, já estava condemnado em mais elevada instancia.

-- A gente não faz tudo quanto quer, Gabriel. O presidente do conselho se andou assim, é que teve rasões poderosas. Um ministro vê questionado um ponto de administração por influencias de valor egual e contrario; quando se decide, o que muitas vezes é forçoso fazer-se, ha de desagradar a uma das partes.

Como defendia, por assim dizer, a propria causa, ainda acrescentou:

-- A quem está de fóra, tudo lhe parecem rosas; mas ha verdadeiros espinhos no meio d'essas rosas... E' bem pesada ás vezes uma pasta! -- observou suspirando, como se já lhe sentisse os dissabores. -- Perdem-se os melhores amigos, os parentes zangam-se, os grandes influentes... esses, então, são implacaveis, terriveis, medonhos!... Ah! Gabriel, Gabriel, não desejes essa cruz ao homem que mais detestes -- concluiu supplicante, pondo-lhe a mão no hombro.

Mas o outro era sceptico e bruto; ouvia-o sorrindo, abanava a cabeça, produzindo exclamações trocistas, emquanto Sallustio se lamentava em voz minguada. E retorquiu-lhe, quasi aggressivo:

-- Não te me ponhas com alanzoados. No meu circulo quero eu mandar. Se não me deixam fazer o que eu quizer, passo-me para a opposição, ou então, vou lá para Traz-os-Montes, pego n'uma clavina, mando tocar os sinos a rebate e faço-lhes uma bernarda, entendes?

Sallustio fallou como homem de governo:

-- Deixa-te d'isso! Has de receber uma explicação, digo-to eu. Sabes lá as rasões que o presidente teve para fazer o que fez! Nas coisas pequenas, como nas grandes, um chefe politico não póde dar a todos os momentos conta dos seus actos... Ha segredos... ha melindres...

E terminou n'um tom, que parecia conter um pensamento profundo:

-- E' coisa muito difficil, dirigir uma politica. Tu nunca soubeste como ellas mordem...

Gabriel, homem de explosões bombardeiras, entrára no periodo de cansaço. As palavras de Sallustio tinham produzido effeito. Porém continuava n'um aspecto e n'um arremedo de opposição, por traz das cortinas da janella, com as costas para o Chiado, roendo as unhas. O futuro ministro continuou a envolvel-o n'uma atmosphera de branduras, de considerações nublosas, que enfurnavam o entendimento de Besteiros... «A's vezes não era possivel dizer todas as coisas, nem aos mais intimos, nem aos proprios interessados. As resoluções de um homem d'Estado deviam ter um caracter decisivo de promptidão, o qual perderiam se fossem divulgadas. O contrario seria perder força, diminuir desnecessariamente a acção governativa, alienar auctoridade.

-- Já leste Machiavel?--perguntou imponente e sobranceiro.

Gabriel, que era bronco e desdenhava todo o saber, olhou-o com estranheza:

-- Para que ?... Quem é esse lérias?!...

-- Ah! não o conheces e chamas-lhe lérias. E' o auctor do Principe, é o grande florentino, mestre de toda a politica moderna, politica de subtis combinações para altos entendimentos. Se o tivesses lido saberias quão difficil é governar um imperio. Pois olha, diz Machiavel, no seu famoso livro, que o homem d'Estado digno d'este nome, deverá na pratica do governo «pôr sempre o interesse acima da justiça.» E' d'um grande philosopho, acredita.

Grabriel sentiu-se quasi offendido com esta declaração. Serenamente, como homem que despreza certas finuras, disse com a testa vincada:

-- E tu achas bonita essa theoria, essa marmelladar!

-- Não acho bonita, nem feia; mas comprehendo que um politico se veja muitas vezes, na conjunctura de a empregar. (E dando duas passadas para Gabriel, como quem tinha tido uma idéa subita): Digo-te mais: o bem estar geral, que é aquillo a que se mira, lucra sempre com a applicação d'este principio e tanto basta para que elle se empregue e seja de grande sabedoria e de maior utilidade.

-- Sois todos os mesmos! -- retorquiu com amarga galhofa Besteiros, voltando-lhe as costas e ficando a olhar para a rua.

Esta phrase deu uma viva alegria a Sallustio, vendo-se envolvido n'uma generalidade tão elevada. Por isso continuou a fallar com mais loquacidade e entono, mesmo nas costas do conterrâneo. Deviam-se desculpar muitos actos dos homens politicos, mormente quando se não comprehendem. A's vezes tem de se jogar com elementos diversos e contradictorios, sem que os envolvidos nas melindrosas combinações o possam saber. Os homens, na mão dos estadistas, terão sempre de ser pobres coisas inertes, movidas por uma força superior, a que obedeçam inconscientemente. Peças de xadrez, ou pedras n'um taboleiro de damas, nada mais.

-- Pensas que o marquez de Pombal teria sido o marquez de Pombal que foi, se deixasse de antemão adivinhar os seus segredos?

-- Já te disse -- repetiu Gabriel olhando sempre para a rua -- tu defendel-os, porque és tão bom como elles. Sois da mesma panellinha -- resumiu, desprezador.

Era uma especie de consagração esta que encontrava nas palavras, ingenuamente offensivas, do seu amigo. Parecia-lhe que, n'aquelle momento, uma enorme multidão o estava apontando, vendo n'elle um companheiro posthumo, o discipulo amado de Machiavel!... E, como a cobra, que, aquecida pelo sol da primavera, se revolve voluptuosamente na tepida folhagem, com o fim de prolongar sensações agradaveis, o deputado por Guimarães exclamou n'uma fingida invectiva:

-- Da mesma panellinha!.. Não sei o que queres dizer com a facecia!... Eu sou um homem que defendo as minhas idéas, que ponho os meus princípios e combato por elles. Se Pedro, Sancho, ou Martinho entrarem no meu modo de pensar, muito bem; se não entrarem, aggrido-os !... Da mesma panellinha! da mesma panellinha!. .. One diabo queres tu dizer com isso? -- interrogou de cara alta, exigindo uma resposta.

Gabriel Besteiros deu-lh'a clara. Voltou se e explicou accentuadamente:

-- Que tu, o marquez, o ministro da justiça, e todos esses ministros e marquezes, e o proprio rei, vos entendeis perfeitamente, sois os mesmos canalhas e impostores. É o que quero dizer!

Sallustio, querendo mostrar-se offendido e irritado, conservava nas palavras, na expressão do rosto, qualquer coisa de benignidade, de agradecimento...

-- Sou eu porventura membro do gabinete para ter culpa do que te fazem?! -- apostrophou.

-- Mas quando o fôres, praticarás os mesmos actos! Acabas de o confessar!

-- Quando o fôres!... quando o fôres!... -- exclamou n'uma voz moderada e inqueritiva... Isso é muito distante, muito problemático.

-- Talvez não!... -- aventou Gabriel.

Este dizer vago surprehendeu Sallustio, que o ouvira alterado... Pareceu-lhe encontrar intelligencia e reserva nas palavras de Besteiros... Esteve algum tempo callado para calcular o caminho a seguir num inquerito necessario. Seria simples palpite, mero gracejo, ou, na realidade, a noticia da crise ministerial havia transpirado!... E, como Gabriel sorrisse de modo equivoco, Sallustio, por decoro pessoal e interesse politico, pareceu-lhe conveniente dizer:

-- Talvez não?!... Quem diabo te metteria na cabeça que eu havia de ser brevemente ministro! Ora o desfructe!... -- e deu uma gargalhada para espalhar.

-- Chama-lhe desfructe; mas eu que o digo...

-- E' porque o sabes! Disse-t'o el-rei ? -- chacoteou.

-- Mas ouvi-o a pessoa que o sabe tão bem como elle -- insistiu Besteiros com rosto sério, indo para a janella.

Houve um espaço de silencio. Aquella idéa começou a afagar Sallustio como se fôra mão lasciva. Accendeu o charuto apagado, passeou ao fundo do quarto, fingindo indifferença. Sem mostrar grande empenho, ainda pronunciou avulsamente:

-- E' boa tolice!...

-- Será -- insistiu Besteiros ainda a olhar para a rua. -- Mas faço uma aposta comtigo...

O futuro ministro agarrou-lhe por um braço, trazendo-o para junto do sofá, onde o fez sentar e elle, de pé, em frente do amigo, exorou-o em voz supplice e captivante:

-- Diz para ahi, com mil demonios, o que ouviste. Sabes que é assumpto que me interessa.

-- Não posso -- insistiu Besteiros, cofiando a longa barba, querendo tambem fingir que tinha importancia, que se entendia com pessoas lá do alto.

Sallustio, vivamente interessado, pallido e nervoso, abandonou Gabriel á sua recusa intoleravel, pondo-se a passear, com as mãos nos bolsos, o charuto apagado entre os dentes, a olhar para o chão. Conservou-se assim uns bons minutos, mas de repente veio-lhe uma coisa á cabeça, foi direito á cadeira onde deixára o chapéu, pegou n'elle, disposto a sair. D'esta maneira queria manifestar o seu desgosto. Aquelle silencio não era de um amigo. Que diabo! se sabia alguma coisa, se tinha algum segredo valioso, que o interessasse, era da sua obrigação communicar-lh'o. Não são admissiveis mysterios entre velhos camaradas, condiscipulos desde a escola de aldeia e lyceu de Braga!...

-- Adeus, vae á fava!... -- despediu-se furioso, quando Besteiros o chamou :

-- Não te zangues, vem cá. Sempre queres saber o nome da pessoa?

-- Quero -- respondeu decisivamente, já do lado de fóra, o chapéu enterrado na cabeça.

-- Então entra, fecha a porta.

Sallustio entrou, fechou a porta, veiu collocar se em frente de Gabriel, com rosto mal humorado, continuando a fazer-lhe sentir quanto reprehendia aquella falta de franqueza. Besteiros, bonacheirão e sorrindo, explicou:

-- Pois é um palpite. Foi realmente coisa da minha cabeça.

Ao futuro ministro subiu-lhe ás faces o rubor da vergonha por esta troça da parte d'um asno como Besteiros. Altivo e cheio de dignidade, quiz desaggravar-se e desfechou-lhe:

-- Pois adivinhaste. Ha uma crise ministerial e entro eu para substituir o Carlos de Mendonça!...

Saciada a sua vingança, sahiu. Então o valente Gabriel, tomado de um pasmo subito, deu um salto do sophá, agarrou-o no corredor, trazendo-o de novo para dentro:

-- Homem, diz para ahi tudo, se não estoiro!

Passou-lhe rapidamente pela mente que Sallustio, vindo a ser ministro da justiça, ainda poderia obstar a que o padre Cabresto fosse collado na sua freguezia. Por isso o tomou orgulhosamente entre os braços d'amigo, levou-o para a janella, e, n'um sorriso humilde, n'uma voz dependente, confessou-lhe:

-- Homem, tu sabes que te julgo digno de tudo! Somos intimos do tempo de rapazes. Conta o que ha, dás-me uma grande alegria, acredita.

Sallustio Nogueira, ainda no proposito de desaggravo, disse-lhe o que havia, com voz decisiva e triumphante. Era verdade: Carlos de Mendonça sairia por causa da reforma das dioceses, que desagradava a el-rei, por ser combatida pelo alto clero. Estivera, elle, n'essa manhã em demorada conferencia com o conde de Frazuella, por causa d'isto. O marquez de Tornai tambem appareceu, e combinara-se que a crise se manifestasse d'ahi a semanas, para dar tempo a discutir-se primeiro a nova divisão das comarcas.

-- E' para veres -- terminou, ufano d'orgulho -- que eu tinha algumas rasões, para desejar conhecer a verdade do que affirmavas. Não eram palavras á tôa, as que eu te dizia -- concluiu em tom maguado.

-- Oh! filho! -- disse Gabriel com o braço esquerdo em volta do tronco de Sallustio, -- o mal que eu te quero, para mim venha. Estimo sinceramente os teus triumphos, que são tambem os meus e da nossa terra! Mas, oh! meu rico menino, rico Sallustinho da minha alma, tu ainda poderás fazer com que não vá para a minha freguezia aquelle patife do padre Cabresto?

Com a ponderação de quem já se sentia com as responsabilidades do poder, o deputado observou:

-- Para onde queres tu que eu t'o mande, se o decreto já appareceu?

-- Manda-o p'ró inferno, fal-o bispo; mas tira-me de lá aquelle ladrão, se não pode haver uma grande desgraça. Ou eu o mato a elle, ou elle me mata a mim.

Não prometteu nada, mas disse: «pois sim, veremos», apesar de presumir que a pasta que lhe destinavam seria a da marinha... Queria mostrar-se homem de valimento diante do seu amigo. Porém, de novo sereno e senhor do seu raciocinio, reconheceu que fôra de leviana a declaração que fizera a Gabriel. Para lhe apanhar a cumplicidade do silencio prometteu:

-- Isso do padre Cabresto ha de conseguir-se; mas, até por teu proprio interesse, nem uma palavra a respeito do que te revelei da crise. São coisas sérias; estes segredos da politica são coisas muito sérias.

-- Faz de conta que o disseste áquella cadeira -- prometteu Besteiros, apertando-lhe solemnemente a mão. Pela vida de minha mãe!... Bem sei que sou um estupido, mas honradinho...

-- Fio-me em ti -- concordou Sallustio, fixando-o sizudo.

Foram n'esse dia juntos para o parlamento. Gabriel estava contente e gastador. Chamou uma carruagem com um aceno de bengala, fazendo entrar primeiro o futuro ministro. Não fallaram mais n'este assumpto, receando cada um melindrar o outro, se se recordasse a singular attitude em que se tinham encontrado face a face. Porém, Besteiros, com o explosivo odio ao padre Cabresto, um mariola que lhe roubara uma rapariga de que elle gostava, foi contando, durante o trajecto, episodios d'essa inimisade antiga, conservando-se Sallustio silencioso, dorso apoiado ao encosto da carruagem, na attitude de quem remoe profundas combinações. E como ao entrarem no largo das Côrtes, Gabriel visse ao longe, junto do largo portão benedictino, o marquez do Tornai apear-se do coupé, disse ao companheiro, na intenção blandiciosa de o lisongear: «Olha, lá vae o teu presidente do conselho». Porém o deputado, sem alterar o seu rosto pensativo, respondeu apenas :«Deixal-o ir».

Sallustio Nogueira entrou na camara, com aspecto altivo, atirando um olhar valioso por cima de toda a representação nacional. Alguns segundos lhe bastaram para comprimentar o grupo de deputados e pares do reino, que estavam junto do fogão, á esquerda. Depois subiu as escadas indo collocar-se no alto, por traz da cadeira presidencial, numa evidencia calculada, olhando sobranceiramente. Tinha a mão entre a sobrecasaca e o peito, do lado do coração, o chapéu fincado na ilharga esquerda e assim se conservou solemne como um celebrante. Com certo ar interrogativo, em que havia ao mesmo tempo benevolencia e magestade, apanhava na sua area visual a camara e a galeria dos jornalistas. Em seguida, voltando a cabeça para a esquerda, fixou as senhoras, que n'esse dia eram numerosas, porque se esperava uma questão irritante ácerca de arrozaes. Tirando a mão do seio, passou-a duas vezes na fronte e na corredia cabelleira, sentindo nas pontas dos dedos a sensualidade do agiota em contacto com um precioso thesoiro. Ao presidente, um velho calvo e obeso, de olhar somnolento, comprimentou com aperto de mão egualitario. Desceu para o lado direito, procurando encontrar-se com o ministro da fazenda, visconde de Serrato, de quem obteve uma conversa de apparencia interessada, em que Sallustio Nogueira fallava ao ouvido do conselheiro, olhando para os lados, com grande desejo de ser notado ... Acompanhou o visconde até á sua cadeira, comprimentando n'essa occasião o presidente do conselho, que lhe correspondeu affectuosamente, o que Sallustio interpretou em sentido favoravel á realisação das suas ambições. Bamboleando o corpo com certa vaidade, foi-se sentar no seu logar, apparentando naturalidade. Determinou escrever algumas cartas; mas, antes de começar a correspondencia, susteve a penna entre os dedos, o olhar sorridente e piedoso para Carlos de Mendonça, que n'esse momento se defendia com excessivo calor das arguições, que lhe faziam, por haver transferido, com fundamento disciplinar, um delegado do procurador regio, que desagradara aos influentes d'uma terreola.

-- Tudo politica, a maldita politica! -- rugia um deputado opposicionista, passeando indignado, com as mãos atraz dss costas, junto dos bancos dos ministros.

Sallustio chacoteava no seu fôro intimo o ministro da justiça, que tão vivaz se mostrava na defesa da pasta, que não lhe estaria por muito tempo nas mãos. «Não te cances, pobre diabo, (dizia mentalmente), não luctes pela vida ministerial, que para ti será breve!...»

XI

Na noite d'esse dia, as pessoas reunidas em casa do Frazuella foram sobresaltadas pelo signal de fogo dado em grande numero de torres da capital! A sensibilidade das senhoras commoveu-se, muitos homens preparavam-se para ir ver se o incendio seria em suas casas!... Das janellas apreciava-se uma claridade de aurora, para os lados do Aterro. Algumas pessoas raciocinando avulsamente calculavam onde o pavoroso sinistro se localisaria, quando D. Agostinho, que tudo observava por sobre o hombro do general Gonsalo, disse com voz quasi indifferente:

-- Aquillo, póde muito bem ser no paço da Ajuda!

Empallideceram subitamente, entreolhando-se mudos e estupefactos! Aquella palavra serena e breve teve os ribombos estrondosos da dos antigos prophetas anathematistas, quando annunciavam a ruina da santa Jerusalem!... Podiam morrer suas magestades e não se salvarem os principes!... Havia cuidados preventivos em volta do palacio real -- sabia-se -- mas essa incalculavel fatalidade seria impossivel?!.. Sallustio, pegou commovidamente no chapéu e desapareceu sem se despedir. Muitas pessoas o seguiram e houve tropel na escada. Porém, o deputado, que a todos se adeantara, na rua principiou a andar n'um passo perturbado. Encontrando uma carruagem que recolhia, precipitou-se dentro, e teve sé força de dizer suffocado: «Para a Ajuda!» O cocheiro principiou a chicanar o preço, por causa da hora adiantada da noite, e Sallustio atirando-lhe com a desprezivel palavra canalha, correu desorientado para o lado abaixo, no proposito de ir a pé e, se tanto fosse necessario, clamando com o fim de acordar o generoso sentimento popular.

No Aterro, um policia que fumava tranquillo, vendo-o n'aquelle fugir, deteve-o, julgando ter ali um criminoso ou um louco. Porém, depois de se explicarem mutuamente e informado Sallustio de que o fogo, que d'ali se via distinctamente, era no populoso bairro de Alcantara, ficou mais tranquillo. Aquelle sinistro havia perdido todo o seu alcance de cataclismo social. Voltou á rua da Emenda, com o fim de socegar os animos alterados, -tornando a sair immediatamente a pedido da condessa e d'outras senhoras, que desejaram saber, antes de se recolherem ás suas camas, se n'essa immensa catastrophe haveria victimas a lamentar. D. Agostinho foi muito censurado pelas palavras pronunciadas, de que resultara todo aquelle alvoroço !...

-- Ora que infeliz ideia havia de ter ! Sempre nos pregou um susto!

A Aguas-Santas acrescentou:

-- Eu já não posso dormir bem esta noite. Credo! para longe vá o agouro.

O velho fidalgo, magro e erecto, para se justificar considerou:

-- Vale mais a pena prevenir do que lamentar... Conhecemos nós, todos os designios da Providencia?!

-- Ora a Providencia, a Providencia!... A Providencia podia lá fazer uma tolice d'essas, de pegar fogo no Paço da Ajuda!? -- ainda retorquiu irritada a viscondessa.

Só no dia seguinte se conheceu a extensão da miseria em que ficaram dezenas de familias pobres por causa do sinistro! Haviam desapparecido seis crianças e tres velhos! Pelas ruas estreitas e tortuosas, foram encontradas mulheres em camisa, fugidas da pobre enxerga com tenros filhos apertados contra o seio. O corajoso esforço dos bombeiros, arriscando temerariamente a propria vida para salvar a dos infelizes que pediam soccorro, foi justamente louvado. A's duas horas da noite, quando as lavaredas eram mais brilhantes, formando uma corôa de fogo sobre o apinhado das casas, appareceu em cima de um dos telhados uma louca cantando o Bemdito em voz de timbre claro e entusiasta. A multidão, que presenceava o medonho espectaculo, sentiu-se, ao ver isto, possuida de tremura nervosa e violenta. Aquella apparição tinha o quer que fosse de terrivel e grandioso! Era um d'estes episodios, que se encontram pouco na vida corrente. Alguns espiritos mais serenos e requintados, que o conheceram pela leitura dos jornaes, o compararam á scena da Hebrea, em S. Carlos, no lance em que a formosa judia, ainda cantando, se lança cheia de fé no seio das chammas!..

Porém, este primeiro abalo (tambem o diziam os jornaes; transformara-se n'um pasmo mudo e impres sionante, quando foi visto um homem no telhado, com o claro proposito de salvar a vida da louca! Approximava-se sereno e resoluto, apesar do risco de vida que o acompanhava. A velha hysterica, julgando-o um companheiro, igualmente possesso do santo enthusiasmo do martyrio que a absorvia, bateu as palmas, chamando-o com palavras sympathicas de coragem e louvor. Porém, logo que foi agarrada e percebeu que a queriam roubar ás chammas purificadoras, principiou berrando n'um desespero damnado, chamava demonio ao seu salvador, fazia esforços complicados para se desagarrar d'elle e poder precipitar-se na enorme fogueira que a seduzia! O pasmoso desconhecido sustinha-a energicamente pelo magro tronco, apertando-a contra si. Se este homem não fôra um valente e se a mulher não estivesse magra e debil como um phtisico, teriam ambos caído nas guelas sanguineas da enorme lavareda! Ainda assim, n'um dado momento de perigo, elle teve de se segurar a um poste telegraphico, para não rolarem ambos pelo declive!...

Ò andar firme d'aquelle homem á borda d'um brazido monumental, tendo por fim poupar uma vida inutil, commoveu toda a cidade. «Quem seria o heroe sublime e dedicado?!» --exclamava-se. Ningue o soubera na noite do acontecimento, ignorou-se nos dias seguintes. A manica encontrada depois vagueando pela rua, chamava-lhe satanaz, mostrando no semblante desespero, quando a interrogavam a tal respeito. Porém, um jornal, não se conformando com a delicadeza d'este heroismo obscuro, poz os seus melhores adjecti-vos a prumo, exigindo do governo que descobrisse o heroe temerario para o recompensar publicamente, dando-lhe uma condecoração. Este proceder seria de sympathico ensino, podendo provocar outros commettimentos semelhantes.

A sumptuosa narrativa do incendio, architectada em columnas compactas de gazeta, impressionou. No Chiado e nas ruas da baixa, muitos individuos de rosto animado, mostravam o papel ás pessoas que o não tinham lido. Tomava-se no acontecimento interesse mais que litterario, commentando se com viveza a narrativa depois de enriquecida com pormenores de bocca em bocca. O Fonseca da Alfandega, por exemplo, affirmou categoricamente que sua magestade a rainha tambem estivera presenciando o incêndio. Este facto ninguem o presumia e causara profunda e lisonjeira impressão. Era estranhavel que certo jornal dos bem informados o ignorasse. Porém, o Fonseca, que em tudo quedizia respeito a senhoras da capital, qualquer que fosse a sua categoria, se mostrava sempre sabedor, affirmou ser verdade e que a rainha se conservara sempre dentro do coupé estacionado no largo do Calvario, fallando interessadamente com a dama de serviço e confrangendo-se de nervosa, quando encarava a montanha de chamas irrompendo da casaria. Albano de Mello confirmou diante de alguns incredulos, o facto referido pelo Fonseca. Porém, completava-o n'um ponto: -- sua magestade saíra uma vez da carruagem, para melhor observar o grandioso espectaculo. Envolvida cuidadosamente numa longa capa, a formosa cabeça coberta com mantilha preta de rendas, quem poderia presumir estar ali a esposa do chefe da nação, a rainha de Portugal?!

-- Esse pormenor escapou-me -- disse o Fonseca. E admira; porque o considero de summa importancia.

Porém, Alberto da Cerveira não admittiu facilmente o que lhe contavam. A ser verdade constituiria uma rica particularidade para o seu folhetim da semana. Infelizmente a rainha estava doente: nem pudera ir a S. Carlos, na noite do triste acontecimento.

-- Ora se ella hão appareceu em S. Carlos, o seu mais dilecto divertimento, como poderia ter presenciado, o incendio?... -- argumentava com sagacidade o Cerveira.

-- Mas se nós a vimos! -- affirmou solemnemente o Fonseca.

-- Podiam enganar-se, confundil-a com outra senhora...

-- Ah!... então a nossa rainha conlunde-se com outra senhora?!.. . -- chasqueou.

Todos ficaram calados, durante segundos. Algumas pessoas applaudiram, dizendo: «E' verdade, não se confunde». Alberto da Cerveira, um tanto vexado pelo triumpho do seu contradictor, ainda observou, já em retirada da polemica:

-- Mas podia acontecer... Enganos dão se todos os dias.

Que estivera el-rei montado n'um cavallo castanho, conversando com o presidente do conselho, com o governador civil e com o commandante das guardas municipaes a quem offerecêra um charuto, sabia-o todo o mundo; porque o jornal que melhor informado se mostrara, mencionava o facto com todas as suas valiosas minudencias, como, por exemplo, a de ter sua magestade tossido, a ponto de o julgarem constipado! Tambem pelas revelações da gazeta se sabia que, no dia seguinte de manhã, o senhor infante viera ver as ruinas do incêndio e dissera de um modo profundo: «Foi um fogo de mil demonios!» O pae de el-rei, contava-se que perguntara ao seu particular, quando lhe appresentara o primeiro almoço: «Então que tal o incendio em Alcantara?» A' simples narrativa do acontecimento, infeitada de poucos mas interessantes pormenores, respondera o monarcha (englobando na sua a opinião de sua esposa): «Temos sincera pena da pobre gente, que com isso tenha soffrido..» E mostrara desejos de que o seu nome apparecesse em qualquer acto publico, tendente a beneficiar as victimas de tam impressiva desgraça.

Sallustio Nogueira, tomou n'este acontecimento o papel de propulsor da religião da caridade, que se desenvolvia em ondas de alteroso mar. No Chiado, no Gremio, no Club, nos corredores das camaras, debaixo da Arcada... em toda a parte se fallava do caso pungentissimo, pondo sempre adiante, com encarecido respeito, o nome de todos os membros da familia real. Em S. Carlos especialmente, onde se reune o que ha de melhor em Lisboa, Sallustio fomentava, com a sua palavra sonora, o entusiasmo por tudo quanto se fizesse. No camarote da condessa de Frazuella appareceu a idéa de se organisar um grande espectaculo, com preços caros, para gente rica. Como sua magestade a rainha se interessava por tudo quanto se fizesse n'este sentido, esse espectaculo podia ser uma coisa linda, ao mesmo tempo artistica e rendosa. Esta ligação da grandesa dos opulentos com a miseria dos pobres, encerrava além d'um bello exemplo de solidariedade, estimulo para o respeito social das instituições, que se radicam pelo alto prestigio do nascimento e subsidiariamente pela utilidade que produzem. Um capitalista, havia pouco chegado do Brazil, assignante d'uma cadeira de S. Carlos, onde todas as noites expunha soberbamente o seu largo peitilho engommado, disse a Sallustio que para essa representação daria cem mil réis pelo seu logar! Este bello offerecimento fôra secundado por outras pessoas, com menos generosidade, sim, mas com identico fervor. Era um crescer magnifico de sentimentos bons, no meio de agradaveis felicitações e desejos, semelhantes ao do empolar do Atlantico no equinocio da primavera, quando se levanta grandioso á vista da paisagem florida e deslumbrante dos nossos campos e encostas. Poucas vezes, coma n'esta noite, no theatro de S. Carlos, os olhares de todos tiveram tanta alegria, os labios tantas palavras cordeaes, os sorrisos foram tão expontaneos e caridosos. E em homenagem comovida, tudo isso evolava para o camarote real, d'onde desejavam que partisse o impulso necessario, para se organisar a phalange dos que tivessem no peito um coração, que soubesse sentiras infelicidades das victimas do incendio d'Alcantara. E como n'essa noite se cantou o Trovador, em estado de tão vibratil sensibilidade se encontrava o publico, que no momento em que a sybilla é queimada e apparece o clarão da fogueira fingida entre bastidores, houve comoção em olhos bem formosos, nos quaes (disseram) tinham apparecido lagrimas com o brilho de diamantes. Sallustio avaliando o acontecimento pronunciou enthusiasmado:

-- Bello espectaculo este! Digam os scepticos que não ha sentimentos religiosos!...

Assim aquecida a opinião, muita gente expontaneamente se lançou na febre de inventar modos de soccorrer as victimas do fallado acontecimento. De toda a parte surgiam alvitres enfeitados galhardamente de palavras calorosas. Foi lembrada a toirada á antiga portugueza; um concerto monstro no Passeio Publico, formado de todas as bandas regimentaes da capital; uma feira em Belem, com entradas pagas em recinto fechado, onde as fidalgas da côrte, as proprias damas da rainha venderiam sardinhas fritas e salada, com o fim de dar ao divertimento caracter popular.

-- Isso até eu lá iria comer meia duzia d'ellas -- disse o sensual visconde da Carregueira, esfregando as mãos.

-- E dois -- applaudiu D. Agostinho.

-- E tres -- secundou com voz forte Gabriel Besteiros

Muito se esperava da subscripção publica lembrada por Lioncio de Mertola, principalmente recommendando-a o governo para o Brazil e para a Africa. Daria um rendimento consideravel com que até se poderia mandar construir um bairro operario em terrenos que o capitalista possuia a montante de Alcantara e que estava disposto a vender. A camara municipal, n'uma brilhante sessão commemorativa, fallou vagamente em considerar filhos da cidade, os filhos das victimas, «victimas elles mesmos» como ponderadamente commentou o conselheiro Mauricio Pontino. Esta generosidade dos procuradores da capital produziu excellente impressão.

Sallustio Nogueira entrava em todas as combinações, applaudindo, corrigindo, ampliando os pareceres suggeridos. A sua grande phrase era: «Os reis sempre.Se querem um verdadeiro e optimo resultado não esqueçam o nome da rainha.». O marquez de Tornai é que lhe imposera a idéa n'um dia em que o teve ao almoço, dizendo-lhe: «A familia real em tudo e por tudo. Devem approveitar-se as occasiões de a popularisar. A politica, meu caro, serve-se de todos os meios para chegar aos seus fins.»

O deputado comprehendeu o alcance e valor do conselho avisado. D'ahi em diante mostrou-se incansavél, febril, vigilante para que fosse seguido á risca. Nas subscripções, nos espectaculos, em todas as festas, sem-

pre o nome do chefe do estado e o da sua augusta esposa! Quando o presidente do conselho lhe tornou a perguntar com o seu riso de velho experimentado como iam os trabalhos, Sallustio respondeu satisfeito:

-- A's mil maravilhas. Eu nunca suppuz que os soberanos estivessem tanto no coração do povo! Olhe que a gente sente mesmo cá dentro esse penhor de felicidade publica. Cá por mim... faço o que posso... e o que devo...

O marquez approvou-o com um lento e reflectido meneio da sua cabeça branca.

Para que as projectadas festas tivessem o lusimento desejado, trabalhava-se febrilmente. Na sociedade o numero que maior interesse dispertou era o da representação, que seria em D. Maria, ou em S. Carlos. O barão do Cerdeiral, um verdadeiro parisiense, lembrou que se devia escolher uma d'essas deliciosas peças francesas, obra de alta elegancia, que tem feito a reputação da casa de Molière, e se procurassem os interpretes na entourage da condessa de Frazuella, que logo lhe observou:

-- Onde descobrirá você senhoras para representarem uma comedia espirituosa e de intenções? Não é por falta de intelligencia; mas são muito prudes...

Seria realmente difficilimo resolver qualquer das que por talento e distincção fossem capazes. Viriam os paes, as mães, os maridos, principalmente os maridos, com observações exageradas de prudente recato. Uma ciumeira antiga, propria d'outras eras, doutros costumes...

-- Lembra-se, barão, em Vienna, da princesa de Metternich, que era deliciosa nos seus papeis de soubrette ? Não se esqueceu decerto da propria imperatriz dos franceses representar em Fontainebleau, debaixo da direcção intelectual de Mérimée...

-- E que deliciosa veia ella tinha, condessa !--recordou saudoso o Cerdeiral.

Josefa Lencastre, que ouvira attentamente o que diziam, enthusiasmada com tão elevados exemplos, disse em voz desejosa:

-- Se eu tivesse geito!..

-- Experimenta -- encorajou a condessa. -- Alguma vez ha de ser a primeira.

Mas Josefa, arrependendo-se, tornou:

-- Nada, nada... Tenho medo...

-- Viu?! -- observou a Frazuella para o barão.-- Todas querem ser espectadoras.

As pessoas presentes ficaram silenciosas, atravessadas por uma enorme difficuldade. Quando princezas e imperatrizes representavam, não se comprehendia este embaraço nas senhoras de Lisboa.

-- Por esta dalta de senhoras--affirmou a condessa um tanto contrariada -- deixam de apreciar um artista de superior merecimento.

-- Quem é ? -- perguntaram.

-- O barão. Um dos primeiros galans amorosos que tenho visto.

-- Oh! condessa !..-- exorou o Cerdeiral.

-- Não é, oh! condessa! Lembra-se do successo que obteve em Fontainebleau?

E voltando-se para os que a escutavam acrescentou:

-- Foi um dos poucos estrangeiros admittidos no elegante theatro imperial.

Esta novidade, que não sabiam, causou assombro! Todas as pessoas: as sobrinhas do marquez, Palmira, e Sallustio pediram á mulher do general que representasse. Ella recusava-se. Com as palpebras frouxas, a cabeça encostada ao espaldar da cadeira, dizia que não.

-- Estou bem certa de o ver no seu papel de Philippe d'Anjou -- continuou a Frazuella. -- O imperador applaudia-o com o sorriso condescendente e vago de homem entendido. Usando aquelle gesto seu particular de passar os dedos no bigode, sua magestade mostrou-se satisfeito. A' imperatriz ouvi eu dizer, voltando a linda cabeça para o embaixador d'Austria, que o barão poderia entrar na Comédie, se quizesse. E para lhe provar quanto lhe agradára, mandou-lhe um ramo de violetas, lembra-se?

-- Lembro, se lembro! -- pronunciou o Cerdeiral com longinqua saudade. -- Bons tempos!

O conhecimento d'este facto, com suas minudencias significativas, foi motivo de verdadeiro goso! Aos olhos de toda a gente, o parisiense adquiriu rapidamente a importancia d'um homem que vivera na intimidade da côrte imperial, tão faustosa, tão sympathicamente leviana e tão attrahente para todas as imaginações desejosas. Florinda, sobrinha do presidente do conselho, fixou-o intensamente, acommettida do vivo desejo de o possuir. Porém, Josefa Lencastre, adivinhando lhe o pensamento, anavalhou-a com um terrivel olhar de ciume, e fixou logo na sua mente o proposito de representar.

-- Em que peça entrou, senhor barão? -- pergunta-lhe Palmira Freitas com a leviana graciosidade da sua voz innocente.

-- No Bijou de la reine, uma deliciosa comedia de Dumas fils -- informou o Cerdeiral.

A condessa de Frazuella completou:

-- Fez o papel creado por Delaunay, quando essa linda joia foi pela primeira vez no palacio Castellane. Na reprise de Fontainebleau, que foi a unica que houve, muitas pessoas que tinham visto no mesmo papel o grande actor francez, depois de conhecida a opinião da imperatriz, diziam que le gentil portugais podia soffrer perfeitamente a comparação.

Todos os rostos se voltaram para o barão, admirando-o. Elle, sorridente, passeava um tanto afastado, fingindo-se estranho aos gabos da condessa, mas pronunciou com entono theatral:

-- «Fignore, en vérité, ce que vous voulez dire.»

-- Bravo!.. Bravo!... E' assim mesmo, lembro-me perfeitamente -- applaudiu a condessa batendo as palmas.

E para as senhoras que sorriam encantadas, acrescentou:

-- Uma das suas melhores phrases! Um verdadeiro Fillippe V, meigo e amante. A imperatriz ao ouvir-lh'a disse para o imperador: charmante!

Todos se revoltaram contra Josefa, censurando-a pelos prohibir de gosar um espectaculo perfeitamente novo em Lisboa. Tal procedimento não era de bom gosto, nem de quem deseja fazer sociedade. Profetisavam-lhe um triumpho. Sallustio Nogueira, que tinha presumpção de saber de theatro, pois representára n'uma peça de Ernesto Biester em Chaves, affirmou-lhe:

-- Estou convencido que será uma actriz de primeira ordem!

-- E eu tambem estou convencido d'isso! -- secundou-o D. Agostinho.

Outras pessoas confirmaram, com as suas opiniões, este parecer, animando Josefa, pedindo-lhe, exorando-a...

A mulher do ministro da guerra não resistiu por mais tempo. Desde que vira Florinda olhar para o barão de modo tão provocante, improprio d'uma menina nova, já se tinha decidido, mas ainda empregou tom duvidoso:

-- Eu... por mim... -- disse sorrindo.

-- Então consentes?! -- perguntou-lhe a condessa beijando-a agradecida. Dás-me um grande prazer.

Consentia -- concordaram todos ao mesmo tempo -- é claro que consentia. A mulher do ministro da guerra conservou-se calada, sorrindo com fraca resistencia. Como n'esse instante visse entrar na sala seu marido, que procurava distrair-se um pouco, deixando substituto na mesa do whhist, levantou-se ligeira, recommendando:

-- Por ora não digam nada...

-- E' que vae convencer o general -- interpretou D. Agostinho. E' um baboso por ella e concordará.

A sobrinha da viscondessa de Aguas-santas tomou o braço do marido, com familiaridade conjugal, levando-o para a outra extremidade da sala. Sentaram-se junto de uma console, separados de toda a gente.

-- Tens ganho ao whist? -- perguntou.

-- Não tenho perdido.

-- Venho de estar com a condessa. É encantadora! Comprehende-se que os homens gostem mais d'ella do que de nós. Talvez tu sejas tambem d'esses. Quem sabe se a vês com melhores olhos do que a mim...

O conselheiro surprehendeu-se com a abstrusa suspeita! Era uma amabilidade rara em sua mulher, sempre esquiva aos seus carinhos!... Pareceu-lhe que n'aquelle momento se dera inesperada transformação na sua felicidade conjugal. Sentia-se tremulo e bebado de felicidade...

-- Eu gostar da condessa!? -- exclamou.

-- Que duvida! Não has de ser differente dos outros ...

Estavam bem junctos, e Josefa com malicioso sorrir significou-lhe que o julgava capaz de uma infidelidade. O ministro desejou estar n'aquelle momento longe de vistas estranhas para a amachucar ferozmente nas suas mãos plebêas, reduzindo-a, escangalhando-a, com a braveza omnipotente d'um marido louco de amor.

-- Eu gosto só de ti! Eu não posso gostar d'outra mulher! -- rugiu apertando-lhe um braço com força.

-- Olha que me magoas... Estão a reparar em nós... -- observou Josefa afastando-se.

E mudando para voz mais caridosa, communicou-lhe:

-- Queres saber uma novidade? A condessa vae organisar uma representação em beneficio d'aquelles desgraçados do incendio d'Alcantara.

-- Boa lembrança! -- applaudiu o general. El-rei e a rainha interessam-se muito por todas essas festas a favor dos que perderam o que tinham na grande desgraça! Dizem que são muitos. No conselho de ministros d'hontem quasi se não conversou em mais nada. Eu tinha o meu projecto de fardamentos, com as barretinas novas e...

Josefa interrompeu-o.

-- Deixa os fardamentos e as barretinas... Mas haverá uma representação em que entram senhoras e homens da sociedade...

-- Não acho bonito -- entendeu o general francamente-- que senhoras sérias se occupem d'essas coisas. Tu não entras decerto...

-- Pois olha, sem mim, diz a condessa, é que se não pode fazer nada. Obrigou-me a dar-lhe a minha palavra e agora...

-- Quê! Tu representares! Tu, a mulher d'um ministro, e d'um ministro da guerra, fazeres de comica! Póde lá ser!...

-- Serei differente das outras? -- disse amuada. Lá por fóra, senhoras da mais alta roda fazem o mesmo, disseram-no ali. Demais a mais, irão outras, as sobrinhas do marquez, a Palmira que tem um pae tão esquisito...

O general cobriu-se de suor frio, considerando:

-- Isso, filha, não sei como ha de ser! Poderei eu consentir que tu digas a qualquer d'esses janotas que o amas, ainda que seja a fingir! Isso nunca, sem que me venha logo vontade de o arrebentar ali mesmo.

-- Que grande confiança depositas em mim! Eu não t'o mereço...

-- O' querida Josefa, não te zangues commigo -- pediu em gemida supplica! Essas modernices lá de fóra ainda não vieram para cá, e muito para desejar é que não venham. Tu fazeres de comica! Tu, a mulher do ministro da guerra de Portugal ouvires palavras d'amor da bocca d'um d'esses bonifrates, que eu posso esmigalhar entre dois dedos! Não tem geito, filha !

Josefa continuou em voz sentida:

-- Olhem que grande disparate! De mais a mais sendo uma coisa porque se interessa a rainha! Eu até desconfio que ella já sabe tudo...

O general sentia-se estrangulado. O pescoço não lhe cabia no collarinho, que alargava com o dedo.

-- Sua magestade não pode exigir de ti uma coisa d'essas! -- exclamou.

-- Exigir não exigirá; mas de certo não ha de ficar muito satisfeita, quando lhe disserem que não representei, por tu não consentires. Se eu não entrar, as outras não entram e a representação não se realisa.

Com voz exaltada o ministro defendeu-se:

-- Sou e fui sempre um fiel servidor da monarchia constitucional!.. Ajudei a plantar a arvore da liberdade, que reguei com o meu sangue! Sou dos que padeceram fome e cadeia pela Carta. Que mais querem de mim?

-- Ora... querem que deixes representar a tua mulhersinha, talvez porque a julgam bonita e graciosa -- insistiu Josefa, persuasiva e conciliadora.

Porém, este marido zeloso não podia levar isto á paciencia. Repugnava-lhe ver sua mulher n'um palco!... Julgava isto uma abominação. Sempre considerára as actrizes creaturas deshonestas, impudicas, que passam noites vendendo o proprio corpo. Com rasão ou sem ella, attribuia-lhes o desvairamento dos rapazes, a perturbação das familias pela loucura dos maridos. Toda a immoralidade social era gerada na atmosphera pestilenta dos camarins! Havia alguem, que ignorasse as famosas historias da vida d'essas creaturas audaciosas, frageis e esqueleticas como phtisicos, mas insaciaveis devoradoras de naturezas preciosas, como verdadeiros vampiros?!... O mundo estava cheio d'ellas: as senhoras virtuosas tremiam de susto, ouvindo o que se contava de coisas passadas por detraz dos bastidores dos theatros. O ministro da guerra continuava já frouxamente na sua negativa, por um certo desfallecimento cerebral que lhe dominava a energia muscular, como um banho morno. Conservou-se amuado durante um minuto, quando Josefa, fallando como se se dirigisse a alguem, que ali não estivesse, considerou:

-- Não sei que mal poderá vir de fazer um papel sério, de tia ou de mãe, com cabellos brancos...

O general, já meio vencido pela idéa de desagradar á rainha, sentiu quasi uma alleluia no seu magoado coração. Deante d'esta imagem, de ver sua mulher de cabellos brancos, conservando no corpo todo esse encanto e frescura que faziam a sua felicidade de velho, era um quadro que de repente o deslumbrou. Nunca tinha pensado em tal; mas só a figuração da scena lhe captivava a mente debil. Sorriu com a imbecilidade d'um homem feliz, ao considerar Josefa n'uma caracterisação veneranda, em que não podesse ser cobiçada pelo Cerdeiral, nem por outros franganotes, que a cortejavam. Ia-lhe a dizer um sim agradecido, quando se approximou Sallustio Nogueira a quem perguntou já desanuviado:

-- Que lhe parece, isto de minha mulher representar em publico?

-- Acho de grande tom! -- pronunciou magestosamente o deputado.

O conselheiro, pondo as mãos sobre os quartos, com os cotovelos para fóra, interrogou-o com maior firmeza:

-- Então, parece-lhe bem feito?!

-- Parece, general. Dá-se em todos os grandes centros. Ainda agora ali contou a senhora condessa de Frazuella que em Paris vira representar a imperatriz Eugenia e em Vienna a princeza de Metternich.

-- Bem -- concordou submettendo-se. -- Faze o que quizeres. Eu cá por mim, sempre me pareceu não ser uma coisa bonita; mas se as outras pessoas o comprehendem d'outra maneira, é porque eu não entendo bem. Faze o que quizeres -- rematou já consolado por ver que sua mulher entrava na camaradagem de nomes tão celebres.--«A imperatriz dos francezes! Uma princeza austriaca!...» -- rememorou.

E quando Josefa se ía levantar para dar a resposta á condessa, o marido observou, impondo-lhe como condição:

-- Mas ouve lá. Então de mãe, ou tia velha, com cabellos brancos!...

Com a sua formosa e doida cabeça fez um leve signal de assentimento. Sallustio, continuando a fallar com o general, certificou-lhe:

-- Eu mesmo, se houvesse algum papel de centro, não se me dava de o fazer. Recordaria os meus bons tempos do theatro academico

O ministro, dando uma gargalhada de homem satisfeito, exclamou:

-- Homem, só essa, agora, me faria rir! Então vossê já foi comico ?!

-- Passei por um artista, em Coimbra! -- informou com entono.

O conselheiro pronunciou como n'um julgamento :

-- Lá isso é verdade. Quando falia na camara, o amigo parece-me, ás vezes, o Tasso, ou o actor Rosa de que ainda gosto mais do que do Tasso.

-- O Rosa -- confirmou o deputado por Guimarães -- ensaiou-me numa peça em Coimbra e disse que eu tinha talento.

O velho militar apreciou desdenhoso :

-- Ora essa! Lá para representar não é preciso talento. Talento é preciso para a política e isso tem-n'o você em barda.

O deputado contrapoz solemnemente:

-- Talento é necessário para tudo. A vida é um grande drama, em que cada um representa o seu papel! -- resumiu.

Apertou a mão do general e retirou-se. O ministro da guerra ficou só, estranho aos diversos grupos, que na sala formavam ruido de conversa animada. Esta isolação tornou-o pensativo. Só com as suas idéas, commentava o caso da representação. Em sua consciencia continuou a reprovar o facto. No palco todas as mulheres são excitantes, e os homens apetecem-n'as com desejos violentos. Isso já lhe acontecera a elle, quando era novo, com uma actriz de Vizeu. Além do mais, por dever de representar o seu papel, uma senhora mesmo casada e honesta terá de ouvir, com apparencia de verdade, palavras de paixão incendiaria, que muitas vezes convidam ao adulterio. Em certos momentos a ficção apparece com tal realidade no palco que os espectadores chegam a convencer-se que todo aquelle amor, expresso com eloquencia gemedora, é sentido e authentico, e que a actriz responde com affecto verdadeiro á paixão declarada.

Quem sabe se Josefa se viria a encontrar n'uma d'essas situações equivocas, claramente melindrosas, que os mal intencionados podiam envenenar, dando ás palavras que proferisse um sentir que não tinham?!... Quem poderia affirmar que lhe não dariam um papel no qual a obrigassem a adorar, publicamente, um homem moço como o barão do Cerdeiral, que elle odiava, tendo de lhe fazer, com lagrimas na voz, patheticas juras de amor, deixando-se abraçar com ternura, ouvindo-se talvez o ciciar de beijos e suspiros de paixão dominadora?! Esta hypothese aterrava-o! Devia ter mantido inflexivel a sua primeira recusa. Levantou-se para ir pensar, n'outra sala, ácerca d'este caso, que, depois que ficára só, lhe continuava a parecer medonho! No caminho encontrou Sallustio Nogueira que, tendo-lhe adivinhado a amargura interior, principiou a contar-lhe para o distrair engraçadas e innocentes peripecias de quando representára em recitas particulares em Chaves.

O deputado, fallando sempre de peito amplo e com a verbosidade propria do seu temperamento, entendia que este era um meio decentissimo de se passar o tempo e até de a gente se educar. Aprendiam-se muitas coisas que se não sabem, enriquecia-se a memoria com preciosos factos historicos. Mesmo como escola de declamação, não era indifferente a quem seguia a politica e tivesse de fallar em assembléas publicas... Ouvira dizer que José Estevão representára, quando rapaz, e acreditava-o. Só assim se poderia comprehender a maravilhosa força de seducção d'essa palavra historicamente enthusiasta e convincente.

-- Se estivesse para essa maçada, meu caro general, eu ainda lhe aconselhava que representasse uma vez...

-- Quem, eu! -- exclamou abysmado.

-- Que duvida! Assim um papel de militar velho, que lhe estivesse a caracter.

-- Não, não... Deixe lá Josefa. Ella gosta, deixe-a lá.

Retirou-se desgostoso e até aborrecido d'esta lembrança, que o maguára. Militar velho sabia que o era; mas não queria que lh'o lembrassem. Esteve a ponto de dar uma descompostura em Sallustio... Reconhecêra, porém, que fôra uma phrase inconsiderada. Não queria pensar mais no caso. Condescendia em tudo, com tanto que não o obrigassem a fazer de pae de sua mulher, emquanto que, qualquer d'esses rapazes novos como ella (veiu-lhe outra vez á idéa o nome do detestado barão!), a apertavam contra o seio, dizendo-lhe palavras ternas. Isso não, deixal-a a ella que tinha prazer em ir ao palco, deixal-a a ella que era nova e formosa.

Abandonou a sala, pensativo e com a magua que lhe dispertára o dizer do deputado escondida no seio como uma vibora. De relance olhou para o grupo, onde Josefa conversava animadamente. Era a Frazuella, Palmira, Lucia e Florinda, o barão de Cerdeiral, monsieur Franza, encarregado de negocios da Austria, o visconde de Pomarini, addido á legação italiana, Dramond, o secretario da legação de França !... Todos fallavam em francez e com enthusiasmo. Planeavam o espectaculo que desejavam fosse grandioso.

O jornalista Alberto da Cerveira, applaudindo o que se passava dizia n'um grupo d'amigos alludindo a que o corpo diplomatico tomasse a melhor parte na projectada recita:

-- Não faz gosto a gente ser d'um paiz como o nosso! Os que vêm de fóra, é que nos ensinam a comprehender a vida!

O conselheiro Mauricio Pontino oppoz-se-lhe com intimativa:

-- Não, meu caro amigo, não! Cá tambem ha coisas grandes. A igreja dos Jeronymos, por exemplo. Encontrou em outra parte do mundo uma igreja dos Jeronymos como a nossa?!... O Tejo, é verdade, o Tejo... Já viu o Tejo grandioso como em frente de Lisboa, em qualquer outra capital ?...

FIM DO PRIMEIRO VOLUME

SEGUNDA PARTE

La plupart des drames sont dans les idées que nous nous formons des choses. Les événements qui nous paraisant dramatiques ne sont que les sujets que notre âme convertit en tragédie ou en comédie, au gré de notre caractére.

H. de Balzac -- Modeste Mignon.

SEGUNDA PARTE

I

Toda a sociedade andava contente na perspectiva do espectaculo protegido pela rainha. Porém, a mulher do ministro da guerra, para a qual os ensaios tinham o encanto de uma festa nova, é que se mostrava mais interessada. As sensações inesperadas que d'aqui lhe vinham, a especie de independencia de que gosava por este facto, recordavam-lhe a liberdade das suas manhãs de cricket, na quinta do marquez de Vianna, ou na tapada da Ajuda, quando no mez de setembro estava fóra do collegio.

N'um dia, depois do almoço, já a carruagem estava á porta para ella sair, teve grande accesso de alegria, pela sympathica novidade que acabava de receber. A sua querida Angelica Agramonte, actualmente Mrs. Whitte, chegára de Inglaterra, achando-se hospedada no hotel Durand. Na carta que Gelica lhe escrevia, perguntava-lhe o modo de se verem, antes de partir para o Porto. Josefa Lencastre, logo depois do ensaio, haviam de ser quatro horas, foi procural-a. Como o marido de Angelica tivesse sahido, as duas amigas recordaram, com intimidade de raparigas, coisas passadas; fallaram das antigas companheiras de que não tinham noticia, muitas espalhadas por terras de provincia; alludiram no meio de risos, que voavam como passaros, á vida do convento:

-- Lembras-te da mother Mary, com os oculos de oiro e a voz fanhosa?... -- disse chasqueadora a mulher do ministro.

-- E' verdade, lembro. E aquella menina Torres,que nós detestavamos, por andar sempre a bajulal-a com o fim de ter melhor sobremesa? Tem-l-a encontrado?

-- Ah!... Casou com um homem pobre e teve de ir para o Brazil com o marido. Disseram-m'o, que eu, quando a via em Lisboa, quasi lhe não fallava... Bem vês, não era da nossa roda -- pronunciou com desvalor.

Angelica Agramonte não gostou de lhe ouvir aquillo. Recordava-se perfeitamente de ver aos domingos o pae de Josefa, quando a ía visitar. Era um modesto empregado, de longa sobrecasaca, ar fastiento, mas impertigado. Nunca lhe parecêra homem de posição, nem por esse tempo a sua amiga pensava em toleimas. Emfim os tempos mudam e as pessoas tambem.

-- Estás linda -- observou Mrs. White, depois de um silencio. Vives feliz, pelo que vejo...

-- Não tenho nada que me contrarie... -- disse com mimo.

-- Teu marido adora-te, és a senhora ministra, deves ter grande côrte -- observou.

Josefa Lencastre respondeu:

-- Não o nego, tenho-me divertido depois de casada. Esta sociedade tem fogo, imaginação. Meu pae adorava-me, mas a vida em nossa casa era semsabor.

-- E filhos ?... Não os desejas?

-- Pelo amor de Deus, não me falles n'isso! Nem vêl-os. As que os têm são umas victimas! Não se póde fazer nada, com elles não ha divertimentos, nem prazer em coisa nenhuma. Nada, estou muito bem assim.

Angelica Agramonte reprehendeu-a. Em Inglaterra não se julga o casamento completo e feliz sem filhos, e muitos filhos.

-- Pelo menos meia duzia -- acrescentou.

-- Oh! que horror!

-- Mas a vida sem elles é fastidiosa. Cá por mim estou doida com o meu Carlos, que é uma formosura... Queres vel-o ?. ..

Levou-a junto do berço, onde o pequeno dormia, vigiado por uma creada da Escocia.

Josefa achou encantador o filho da sua amiga. Extasiou-se diante da sua carinha papuda, e rosada. Evitou dar-lhe um beijo, para o não acordar. Como era bello! Que pelle fina, que bochechinha tão gorda, parecia um balão cheio de gaz. A sua cabeça annelada, com os caracolinhos loiros, era de um verdadeiro anjo. E a pequenina bocca, com os dois beicinhos grossos e vermelhos, por entre os quaes uma respiração suave, como um murmurio, saía?!...

-- E' encantador, é um verdadeiro apetite o teu filho.

Angelica observou-lhe:

-- Ah! mas tu gostas de creanças!...

-- Então não havia de gostar do teu Carlos! E's tu que o crias ?

-- Sou.

-- Isso faz mal! -- reprehendeu Josefa. Tenho ouvido dizer que estraga... As mulheres do nosso mundo devem poupar-se. Para ser velha, ha sempre tempo.

Depois, quando iam a reentrar na sala, disse Angelica:

-- Mas sem filhos, com teu marido nas suas occupações, deves ter dias aborrecidos.

Não tinha. A vida de sociedade, trazia-lhe sempre a imaginação occupada. De inverno os bailes e S. Carlos; de verão Cintra e Cascaes, onde todos se mexiam muito. Em Cintra o tempo passava-se em deliciosos e divertidos piqueniques, nos Capuchos, na Pena, na Praia das Maçãs, ou na Pedra d'Alvidrar, d'onde se vêem vapores passando, com penachos de fumo a desenrolarem-se no ar. As tardes eram animadissimas nos Sitiaes, na estrada de Collares. Havia conversas deliciosas debaixo de frondosas arvores, n'um conchego intimo. Davam-se passeios em vistosos ranchos, rapazes misturados com raparigas, n'uma alegria victoriosa pelos commentarios. Até ás dez horas, havendo luar, iam á Estephania, ou demoravam-se no terraço do Victor, depois o whist em casa da Maria Kruz, ou n'outras casas conhecidas. Ali se tocava, cantava, recitava e se faziam leituras no genero do que se usa em Inglaterra. Era encantadora a estação de banhos em Cascaes, com a côrte, o corpo diplomstico e tudo quanto se encontra de melhor em Lisboa. Os bailes do Club, um perpetuo gôso. As regatas em que se distribuiam premios da familia real e das senhoras mais distinctas, apresentavam grande animação.

-- Não fazes idéa, não fazes uma idéa! -- exclamou.

Actualmente mesmo, um divertimento inesperado lhe enchia deliciosamente as horas. E referindo o projecto de espectaculo iniciado pela condessa de Frazuella e como os ensaios lhe occupavam os dias, concluiu:

-- Gosto immenso! Parece-me que fico com a paixão do theatro.

Angelica Agramonte, conhecia pela ter lido a comedia, Le bijou de la reine, em que a sua amiga entrava. Mostrou, portanto, certo interesse em saber quem faria o papel de Filippe d'Anjou:

-- O barão do Cerdeiral, um verdadeiro artista! -- esclareceu com subita espontaneidade a mulher do ministro.

-- Ah !... -- exclamou Mrs. White, recordando-se. Aquelle de quem n'uma carta me dizias parecer se com Rodolpho?...

-- Esse mesmo -- respondeu Josefa com rosto animado, olhos brilhantes.

-- Se meu marido se não oppozer, ficaremos; porque desejo ver-te no papel de Luiza de Saboia.

-- Monsieur Franza, o encarregado de negocios da Austria, que é nosso ensaiador, está satisfeito commigo. Eu... não sei... -- pronunciou desconsolada.

-- Como é um espectaculo protegido pela rainha, teu marido deve andar contente.

-- Não se importa -- respondeu Josefa, significando pouco apreço.

Josefa Lencastre illudia a sua amiga. O general importava-se e até vivia desgostoso por causa d'isto. Um dia dissera a sua mulher, com resentimento: «Não pensas em mais nada !» Ella, porém, muito vermelha, respondera-lhe agastada: «Não quererás que vá fazer má figura...»

Entendia a mulher do general que a metter-se uma pessoa nas coisas, é para se sahir bem d'ellas. Tambem Florinda e madame Augustine Lagrant, que entravam na outra comedia, L'Ermitage de Feuillet, estudavam ainda com mais interesse do que ella os seus papeis. Josefa não lhes queria ficar atraz... Para que a não vencessem nos ensaios, empregava horas em cada dia a decorar aquelle que lhe tinham confiado. De noite pensava n'isto, logo que acordasse de manhã, saía da cama precipitadamente... Ajudada pela sua creada, enfiava um roupão de cazimira e ía enterrar-se na poltrona de velludo, a um canto do boudoir, lendo e relendo a sua parte, para não lhe escapar uma só palavra. Porém, como desde o collegio não tornára a decorar nada e a sua memoria estivesse preguiçosa pelo deshabito, vinham-lhe frenesis e impaciencia, chegando a chorar lagrimas verdadeiras, por se persuadir de que seria incapaz de saber o papel! Era realmente para desespero! Versos, que momentos antes dissera facilmente, se procurava repetil-os a declamar, já lhe tinham esquecido ! Ficava triste, enleada em pensamentos de abandono; mas readquiria energia nova, levantava-se n'um impeto de esperança e, sósinha, recomeçava a dizer alto as palavras, accentuando energicamente as syllabas. Então o rosto animava-se-lhe com singular vivacidade de sentimento, abria os olhos com fixidez, querendo, pelo duplo meio da vista e do ouvido, conquistar definitivamente algumas phrases mais rebeldes e difficeis de reter. O general, no quarto contiguo acordava ao ruido d'este batalhar de sua mulher contra a precaria memoria. Encolerisava-se regougando expressões de azedume sob a roupa da cama, com a qual cobria a cabeça, para se separar d'aquillo, para não ouvir. Porém, como não conseguisse adormecer, espraiava-se de costas á escuta do que Josefa dizia. E quando percebia, com frequência, as palavras amour, passion ditas com emocionante sentimento, elle, o antigo revoltado contra as violencias cabralinas, pronunciava rancoroso e vingativo avolumando a voz:

-- Isto só a tiro!...

Com tão decidido empenho, Josefa vencia as suas competidoras. O ensaiador gabou-lhe a magnifica memoria e rara comprehensão de alguns versos difficeis. Ficou lisonjeada, mas recusava-se a admittir que soubesse bem a sua parte. No dia era capaz de não dizer palavra. Aterrava-a, como um sonho de creança, esta idéa que lhe vinha frequentemente.

Eis a razão porque desejava muitos e repetidos ensaios, e pedia com insistencia que não admittissem gente a presenceal-os, além das pessoas que entravam na representação:

-- Principalmente Gonsalo, principalmente meu marido, que me faz esquecer tudo.

A condessa de Frazuella cedera para essas reuniões uma sala retirada, da banda do jardim. Ali não seriam perturbados, nem pelas suas visitas de dia, nem pelas que vinham á noite, que era o ensaio mais importante, por ser de repetição do que se estudára de tarde. Para o effeito accendiam-se quatro candelabros, cujas luzes se desdobravam nos espelhos fronteiros nas paredes, dando já antecipadamente uma illusoria multiplicação de salas, como nos scenarios de S. Carlos. Todas as pessoas n'isto interessadas viviam contentes e animadas na esperança d'um bom exito. Até Josefa por fim acreditou no seu talento d'actriz, mostrando-se d'uma perspicacia admiravel, para reproduzir tudo que lhe ensinavam. O velho actor Rosa, chamado para os ensaios d'apuro. sentado no seu fauteitil de mestre, a distancia, n'uma penumbra discreta, interrompia uma vez ou outra o seu silencio valioso, para applaudir Josefa com ligeiros bravos e palmas moderadas. Se acontecia levantar-se para marcar qualquer scena ou inflexão, fazia-o com a grandeza do sacerdote na pratica da sua religião e era escutado com o respeito, que se deve ao revelador d'um mysterio. No verso de sentido duvidoso, entre ironico e reprehensivo: «Oh! vons êtes ce soir en verve poêtique», o celebre actor portuguez, depois de combinar com Mr. Franza, dirigiu-se com o seu pausado andar á mulher do ministro da guerra para dizer:

-- Isso com mais doçura e magestade, aflorando-lhe aos labios sorriso d'ironia.

E logo que elle se foi collocar na conveniente perspectiva da scena, Josefa repetiu com melhor enfase o dizer da rainha. Porém o velho actor não achou ainda bem marcado o sentido obscuro e tornou a pedir-lhe de longe:

-- Mais doçura e magestade. Metta-lhe um poucochinho de despeito...

Havia na pronuncia certa brevidade impropria de uma mulher educada na fina convivencia dos letrados da côrte de Saboia e da opulenta litteratura dos vassallos de Luiz XIV. O gesto tinha-o por sacudido de mais, pouco adequado ás maneiras de uma princeza, que o encarregado de negocios d'Austria, um sabedor, affirma-va ter sido gentil, entre as mais gentis. O desdem, quando manifestado por senhora de elevada educação e cultura, tem muito mais da graciosa tolerancia, que se reduz n'um ligeiro sorriso, n'um imperceptivel olhar ou franzir de labios, do que do azedume e impertinencia, que se encontra nas modernas categorias sociaes, ridiculas, burguesas e pretenciosas -- concordou o viscondede Pomarini, orgulhoso da aristocracia da sua patria: Este verso, no sentir do actor portuguez e do ensaiador Franza, esprimia a delicada sensibilidade de uma mulher joven, formosa e rainha, cuja vaidade se vê humilhada pela recusa que, o seu rei e seu esposo, lhe faz de um collar que valia a bagatella de um milhão.

-- Ah! Uma bagatella, um milhão! Quem me dera um milhão -- accentuou Florinda.

O artista portuguez replica-lhe com o gesto lento da sua auctoridade indiscutivel:

-- Para o rei de Hespanha, para Filippe d'Anjou, um milhão ou um cento de milhões era nada!

Com o fim de se avaliar a situação com intelligente relevo, Mr. Franza pediu ao barão de Cerdeiral, que desse de novo a deixa a Josefa. Assim melhor se poderia comprehender, como na leveza d'um só verso, se pode resumir um tractado de psychologia. Na expressão que se lhe desse, a rainha appareceria zombeteira e senhoril; mas sempre com a magestade encantadora d'uma princeza altiva. Para tudo ser apreciado como devia, os assistentes afastaiam-se: as senhoras sentando-se em cadeiras, os homens encostando-se ás umbreiras das portas.

Ao centro da sala, ficou Josefa Lencastre, em face do barão, que lhe sorria... Os dois julgadores, Franza e o actor Rosa, um de cada lado, explicavam o sentido do verso difficil commentando-o de differente maneira, mas com a mesma intenção. Ao Cerdeiral não faziam reflexões, porque todo o seu papel era dicto irreprehensivelmente. Tinham-lhe até perguntado se fôra o proprio Delaunay que o ensaiára; porém elle, confessando tel-o consultado em alguns pontos delicados, affirmava haver adivinhado a interpretação do grande artista, a quem não tivera a fortuna de ver no Bijou de la reine. O caracter magestoso e meigo, o fundo nobre de Filippe d'Anjou, era por elle apresentado com surprehendente e maravilhosa interpretação. Todos lhe encareciam o trabalho. E, como na scena de que se tractava, a rainha, sem justificar o seu procedimento, pretende retirar-se aos seus aposentos, fugindo, assim, ao desejado convivio do joven esposo, este pergunta-lhe com ternura:

«Etes-vous donc souffrante ?.............»

Josefa Lencastre, abaixando reservadamente os olhos, n'um recato de timidez e accinte, responde sem encarar o interlocutor, mostrando-se-lhe por este modo hostil e melindrada:

«................Un peu..................»

Teve applauso unanime a inflexão da rainha. Todos concordaram em que n'essas duas palavras d'um significado humilde, ditas como Josefa as dissera, se podiam condensar volumes de despeitos femininos; todos reconheceram quanto n'ellas se indicava que a gentil princeza estava maguada pelo procedimento do seu rei. Mas para se conseguir o prodigioso effeito era indispensavel acompanhal-as de gesto comedido e nobre, com retrahimento delicado, ainda que profundamente sentido, como o fizera a mulher do general!... Só os grandes artistas podiam realisar tão bello effeito, e entre elles já contavam Josefa.

O barão de Cerdeiral deu-lhe então a deixa, brando, amoroso, mas reprehensivo. Era o justo melindre de um rei, mal tractado pelo procedimento injustificado

de sua esposa. E na voz dolente do barão, repassada d'essa meiguice dorida com que o incomparavel diseur sabia enfeitar o pensamento do auctor, muitos dos ouvintes procuraram sentido occulto e alcance especial... Disse elle gracioso e subtil:

«........................ Quelle nouvelle!
«Jamais, sur mon honneur, je ne vous vis si belle,
«Vos yeux brillent en feu sur vos fraiches couleurs;
«On dirait deux rayons se jouant dans des fleurs.»

E' então que Luiza de Saboia, com velada ironia accentua a sua amargura e despeito, sorridente e esquiva:

«Oh! vous êtes ce soir en verve poétique!
«Phébus de ses accords distrait la politique.
«Cest très-bien, monseigneur, gardez ces beaux élans,
«Car je prendrais plaisir à ces sonnets galants
«Si je n'étais d'humeur triste et toute contraire,
«Et n'avais fait le voeu de ne m'en point distraire.
«Bonsoir donc...»

-- Muito bem, assim mesmo -- applaudiu com benevola superioridade o actor Rosa, indo lentamente para o fundo da sala sentar-se na sua poltrona de juiz.

-- Muito bem, muitissimo bem -- repetiram outras pessoas, batendo ceremoniosas palmas.

-- Bonsoir donc... -- pronunciou a Frazuella imitando Josefa. -- Magnifique!

-- Superbe! -- acrescentou o visconde de Pomarini.

A mulher do ministro, animada pelos applausos, sentiu grande calor no rosto! Aquella organisação emocional teve, n'este momento, forte impulso para as regiões livres da arte. A sua existencia monotona, na convivencia de um marido sem paixão de coisas sublimes, foi de repente arejada pelos repetidos bravos, que o seu talento provocára. O dia da representação, quando diante de publico mais numeroso renascessem os enthusiasmos uniformes, devia ser para elle de grande contentamento!... Já sentia que nos ensaios estivesse pouca gente para a applaudir. Na realidade a condessa, a todos os estranhos que lhe pediram licença, (já porque isto fôra convencionado e talvez presumindo que podesse haver ligeirezas e amabilidades de bastidores, que não desejava sabidas cá fóra) respondêra inflexivelmente: «Esperem pelo dia. Até lhe encontrarão mais graça.»

Além d'ella, que assistia como dona da casa e senhora de alto criterio, poucas mais pessoas havia. Entre essas poucas estava Sallustio Nogueira, que representava o aquecimento do enthusiasmo exterior a respeito d'esta festa galante. Pelos seus amigos dos jornaes, fazia apparecer diariamente noticias excitadoras da opinião! Com a sua verbosidade magnifica, nos sitios onde apparecesse, encarecia tudo quanto estava em projecto, dando a factos insignificantes alcance litterario, valor determinante de progresso intellectual do paiz, representado pela iniciativa da melhor sociedade. A quem lhe pedia informações dava-as acrescentadas; porém, como sempre as julgasse incompletas, aditava:

-- No dia verão! Ainda se não fez em Lisboa coisa semelhante!

E concluia, condoido e humilde:

-- Eu é que não sei como descalçara minha bota!...

A sua bota era o discurso que promettêra pronunciar na abertura do espectaculo. Preoccupava-o immenso o delicado trabalho. Era caso novo e sentia-se em difficuldades, por falta de modelo. Deveria ser uma peça oratoria, apropriada ao logar e á intenção d'aquella festa de caridade: -- exigia caracter ao mesmo tempo mundano e religioso. O elogio da sublime virtude que protege os fracos e indefesos, cobrindo os nús, alimentando os esfomeados, consolando os tristes... era thema brilhante, digno da eloquencia de um Lacordaire. Porém, attendendo ás circumstancias do logar e do publico a quem era destinada a sua palavra, Sallustio premeditava acentuar-lhe o caracter politico, elegante e litterario, como de conferencia sobre thema social e philosophico de altruismo. Era indispensavel calcular tudo, para chegar ao effeito desejado, por isso durante quatro noites successivas se recolheu ás dez horas, com o proposito de compor o discurso. Que momentos de amargura e desconsolação, se se sentia estupido, a cabeça vazia de idéas grandiosas e a bocca secca para expressões sublimes! Mas lá vinham instantes de melhor felicidade compensal-o: era quando lhe arquejava dentro do craneo o demonio da inspiração, sahindo-lhe da penna, como d'um rheophoro electrico, correntes de periodos vigorosos, amplos e cheios de magestade tribunicia. Então sósinho no quarto, ou casualmente na presença de Angelina, batia orgulhosamente na testa com sorriso de triumphador e olhar violento de inspirado, dizendo:

-- Que diabo! Tenho talento. A's vezes não me parece; mas tenho talento.

Lia Castellar, a eloquencia sonora da Peninsula; lia Bossuet, o pomposo ornamento da tribuna catholica; lia o padre Vieira, fino e audaz argumentador, de uma fecundidade surprehendente com subtilezas de alcance philosophico e social! A ornamentação pomposa do estylo de Latino Coelho, nos seus elogios academicos, desejava Sallustio imital-a, por lhe parecer perfeitamente adequada ás circumstancias e ao genero de oratoria, que preferia. Era ambicioso de celebridade, tinha desejo de impressionar aquelle publico, o melhor de Portugal, por isso procurava nos livros e na imaginação comparações e imagens selectas. Estudava phrases e gestos especiaes: -- curvaria ligeiramente a cabeça, baixando as palpebras de modo respeitoso, quando se dirigisse á rainha; seria com o braço direito estendido e a mão amplamente aberta que havia de designar a commissão de senhoras, dilectas filhas de S. Vicente de Paula» que organisaram tão sympathica quão proficua festa.

A subscripção, aberta por Lioncio de Mertola na classe commercial, déra significativo resultado. O conde de Frazuella aconselhara o a que se referisse a isto pois seria de grande alcance no animo do pae de Palmira. Em virtude da preciosa indicação e depois de muito cogitar, encontrou os seguintes periodos de effeito seguro de que tomou nota: «As nossas antigas glorias, que todos os povos, de norte a sul, de oriente a occidente, nos tem invejado, são ao mesmo tempo obra religiosa e mercantil. A idéa piedosa de catechese e o fim patriotico e commercial de alargar os nossos dominios, por mares nunca d'antes navegados, guiou os portuguezes nas descobertas. Os nossos famosos Gamas, Pachecos, Albuquerques, o Castro forte, um Cabral, um Sepulveda... e outros em quem poder não teve a morte, eram ao mesmo tempo guerreiros, sacerdotes e commerciantes: -- combatiam, baptisavam e estabeleciam governos e feitorias. Isto é confirmado nas palavras do grande epico, quando narra a troca de artefactos, entre Vasco da Gama e o rei de Melinde.»

Para apreciar o effeito, que o discurso produziria foi lel-o a Gabriel Besteiros: não era valiosa auctoridade, sabia-o, porém tinha n'elle um admirador sincero e frequentador assiduo de todos os logares em que a eloquencia faustosa abundasse. Sallustio recitou-lh'o de pé, no meio do quarto da hospedaria, voltado para o deputado, que, estendido de costas n'um sophá de palhinha, o escutava cofiando a longa barba. No final Besteiros disse-lhe: -- Está bom e catita. Faz-me lembrar o doutor Garcia, quando nos ensinava economia politica e fallava do operariado e das reivindicações sociaes. Está mesmo bom e catita.

Sallustio queria observações, que o seu amigo lhe notasse defeitos, lhe indicasse emendas.

-- Qual -- disse Besteiros. Está d'arromba! Essa dos navegadores, eu não a sabia, nunca a ouvi a ninguem.

O exito deante dos homens estava-lhe assegurado, porém, ás senhoras, é que principalmente queria agradar. São ellas que fazem a opinião, que marcam os maiores triumphos aos que têm a missão de fallar em publico. -- Coisa de que as mulheres gostem... -- pensou.

A quem, a que especie de senhoras entregaria elle a apreciação do seu trabalho?... A' condessa de Frazuella ?... A Josefa Lencastre com a tia viscondessa?... Nada!... Perante essas justamente, queria Sallustio passar como orador de inspiração occasional e pujante, queria que o tivessem no conceito de improvisador com arrebatamentos e scintillações! Fóra da roda escolhida, só lhe lembrou Angelina, a D. Maria Gomes e a Ermelinda Travassos. O. bom Molière lêra as suas comedias á propria creada, que era sua cosinheira.

Decidindo-se por esta prova, que lhe conservaria a fama de repentista no conceito do publico a que destinava o seu discurso, incumbiu a Angelina de convidar as mestras de piano, para o ouvirem A ingenua rapariga ficou satisfeita, pois attribuia as suas amigas primores de gosto litterario e educação, que n'ella minguavam.

-- São pessoas muito bem creadas. Andam por casas boas. A D. Maria agora ensina a filha d'um marquez...-- informou.

-- D'um marquez! -- repetiu Sallustio. Quem é esse marquez?! Eu conheço todos os marquezes de Lisboa!

Angelina, coitadita, não soube explicar. Era um nome muito arrevesado. Porém logo lhes perguntaria, visto n'esse mesmo dia Ermelinda vir jantar, segundo o costume, com a sua antiga professora e com ella passar um boccado de noite.

-- Então pode ser hoje a experiencia -- entendeu o deputado. Convida-as para virem á noite cá para cima.

Sallustio fingir-se-hia constipado. Elias fariam serão todas tres, á luz do candieiro da casa de jantar. Elle havia de apparecer com um papel na mão, fingindo ser o discurso d'um amigo, que lh'o enviava, para ouvir o seu conselho. Angelina achou engraçada a simulação e animou-se para n'ella collaborar. O seu ditoso peito transbordava d'alegria, por ver n'este procedimento de Sallustio intimidade a que não andava affeita. Esperou anciosamente pela noite.

Quando eram umas nove horas, a D. Maria Gomes e a Ermelinda Travassos, convidadas a subir, objectaram que Angelina não estivesse só e que ellas pouca confiança tinham com o doutor. A amante de Sallustio facilitou-lhes o caso, dizendo:

-- Elle está para o seu escriptorio, embrulhado em cobertores. Constipou-se...

A D. Maria, que presumia de delicada e não desejava de modo nenhum ser importuna, insistiu:

-- Mas incommodaremos ?

-- Não, minha senhora. Elle gosta; porque não quer dormir já. Está habituado a deitar-se tarde... Como se constipasse, não pode sahir...

-- Porém nós é que não sabemos dizer coisas bonitas, como essas que elle está costumado a ouvir ás senhoras da alta sociedade (enriqueceu as palavras com a pronuncia), que tiveram educação com viagens no estrangeiro!...

Apesar d'este reparo, sempre subiram e até ficaram agradecidas, pela grande consideração. Para fazerem os seus cumprimentos ao deputado, coisa em que a velha insistiu, atravessaram a casa de jantar a passos ceremoniosos, com semblantes bem compostos. A antiga mestra de piano ia adeanle, gorda e com ondulações de fragata nos movimentos dos amplos quadris. Ermelinda seguia-a com o seu ar humilde e dependente, sorrindo... Já com a mão no fecho da porta do gabinete de Sallustio, Angelina disse para as suas amigas:

-- Dêem-me licença de ver se se póde entrar.

Podia. Pouco depois as duas senhoras acharam-se em frente do deputado, sentado em cadeira de braços, os pés embrulhados n'um cobertor, o pescoço envolvido n'um lenço de lã roxo, o tronco protegido por um paletó forte. Elle fez menção de se levantar:

-- Peço desculpa, minhas senhoras...

-- Ora, por quem é, senhor doutor! -- exorou a D. Maria Gomes, adiantando-se com a mão aberta.

O gabinete era um quarto pequeno, para as trazeiras da casa. O deputado ficava do lado da parede, por de lá da escrevaninha de mogno, sobre a qual um candieiro de petroleo, com quebra-luz verde illuminava

os livros e os papeis misturados a esmo. Uma pequena estante conteria duas duzias de volumes, mas, por cima das cadeiras, viam-se jornaes e mais livros, distinguindo-se as grossas lettras do titulo do Diario do Governo.

-- Uma grande constipação? -- perguntou a D. Maria.

-- E' verdade. Não sei como arranjei isto -- respondeu tossindo.

-- E além da molestia, ainda tem paciencia para aturar maçadoras! -- insistiu a velha, no intento de ouvir qualquer palavra amavel.

Sallustio disse-a: «Oh! minhas senhoras!» e, para completar o quadro do seu padecimento, produziu dois espirros, no intervallo dos quaes ficou de bocca aberta e com a respiração suspensa, como homem que vae abafar.

-- Ih! como elle está! -- apreciou a antiga pianista. -- Pôz-se bonito! Havia de ser depois de algum discurso.

-- Não... foi ar... -- esclareceu o simulado doente.

-- Foi discurso, senhor doutor, olhe que havia de ser discurso -- insistiu D. Maria. -- Nós bem temos ouvido dizer que vossa excellencia os faz muito bonitos, nas cortes.

Sallustio inclinou o tronco pronunciando a meia voz: «Obrigado...»

D. Maria continuou:

-- Eu tive um tio padre -- grande prégador! -- que no fim das semanas santas, estava sempre de cama quinze dias. Diziam os cirurgiões que era de puxar pela voz e pelas idéas, e eu acredito; porque elle prégava, no mesmo dia, em duas e tres igrejas. O senhor doutor, talvez tenha ouvido fallar no nome d'elle. Era o conego Mendes, muito conhecido, confessor das senhoras Infantas.

Ermelinda Travassos, que se conservára calada, em posição secundaria, ao lado da D. Maria, observou:

-- Isso tambem aos cantores succede o mesmo. O primo Anastacio é por causa das saídas da igreja, que anda sempre de lenço de lã ao pescoço.

O deputado, com o delicado desejo de chamar aquella timida rapariga á animação da conversa encetada, perguntou-lhe:

-- A senhora tem um primo Anastacio?

Ermelinda ficou silenciosa e rubra!... Porém D. Maria, simulando olhos de pessoa que faz uma grave revelação e calca dentro de si um sentimento de odio, disse:

-- Tem... e não é boa peça. E' o tal...

Suspendeu aqui a palavra, por lhe parecer que não era preciso dizer mais nada, para explicar tudo... Talvez mesmo não dissesse o resto por certa delicadeza para com o deputado, que se podia julgar envolvido na censura dirigida áquelle homem perverso... O primo Anastacio era o tyranno da pobre Ermelinda, fôra elle quem a enganára, sob promessa de casamento... O fructo d'esta malvadez estava em Loires, n'uma ama, a quem a mãe pagava quatro mil réis mensaes. E como Ermelinda, casualmente, trouxesse uma camisinha de creança, em que trabalhava no momento em que Angelina as convidára a subir, a antiga mestra de piano desdobrou-a indignada e mostrou-a a Sallustio rematando, como esclarecimento:

-- E' o pae d'esta!...

Ermelinda sensibilisou-se com a recordação pungente! Levou um lenço aos olhos para enxugar as lagrimas, que lhe despontaram. E n'uma voz um tanto abafada queixou-se:

-- Agora dizem que vae casar com outra...

O deputado, para não supportar a comparação que d'aqui resultava, retomou o assumpto cortado, levantando a cabeça e exprimindo-se com auctoridade:

-- Eu nunca me canso de fallar. Posso fazer um discurso de um dia inteiro...

A D. Maria Gomes certificou:

-- O meu Augusto, uma vez que esteve de guarda ás côrtes, ouviu o senhor doutor e ficou gostando muito.

-- Tenho pena de não conhecer seu filho. Como sou intimo do ministro da guerra, se lhe prestar para alguma coisa... -- offereceu.

Aos olhos da D. Maria Gomes vieram repentina-mento lagrimas...

-- Ah! senhor doutor! Não me falle n'esse meu filho! -- pronunciou maguada.

-- O quê!... Está doente?...

Angelina recordou ao seu amante:

-- Eu já te disse que não era bom para ella...

Sallustio não se recordava... Ermelinda Travassos exclamou com verdadeira e sincera magua na expressão:

-- E o que elle deve a esta mãe! Não se faz uma idéa!...

O deputado quiz acompanhar a pobre senhora na sua justificada dor:

-- E' triste! Quando uma mãe faz gosto n'um filho... E' triste!

A velha mestra de piano, mais desopprimida, acrescentou:

-- Elle era o melhor rapaz do mundo, senhor doutor! Quando, ha tres annos, saíu tenente, obrigou-me, á força, a despedir muitas das minhas discipulas. Queria que eu descançasse. Com o soldo d'elle e com mais alguma coisa, de umas inscripções que eu tive de meu pae, podiamos viver como Deus com os anjos. Alugámos uma casa á Sé, porque elle é de caçadores. Sempre entendi que ia morrer descansada. O meu filho com aquella paixão da musica... Tem uma voz muito bonita... Passavamos noites e noites como Deus com os anjos: elle a cantar e eu a fazer o acompanhamento! Não era para mim tamanha felicidade!... Ha um anno, principiou a seguir mau caminho...

-- O jogo, talvez! -- interferiu Sallustio, com interesse.

-- Não, senhor doutor. As mulheres! Foi uma mulher má, que m'o perdeu!

-- Ah!... as mulheres! -- pronunciou o deputado, n'um sentido vago, mas de pouco favor.

Angelina tinha-se levantado para arranjar o chá, que desejava offerecer ás suas amigas. Ermelinda Travassos, alludindo de certo a ella, mas envolvendo-se provavelmente a si mesma, defendeu n'uma voz clara de desforço:

-- Nem todas! Algumas ha...

-- Sim, de certo -- concordou Sallustio -- nem todas são más.

-- Essa que deitou a perder o meu Augusto -- continuou D. Maria Gomes -- é das peiores. Come-lhe tudo. As nossas inscripções estão no Monte-Pio, o soldo que d'antes me vinha todo á mão, ha um anno que não vejo d'elle nem uns tristes cinco réis! Tive de me agarrar de novo ao trabalho, para o sustentar a elle e vestil-o de boa roupa branca. Não ha meio de guardar uma libra, para uma doença. Depois, para mim, já não é o mesmo filho. Não o acompanho ao piano, já me não conta dos seus triumphos nas salas, com a sua linda voz de barytono. Até perdeu o gosto á arte! Nem copia musicas como d'antes, nem faz gosto em ir ás soirées das pessoas delicadas que o convidam!... Todo o tempo é para essa serpente venenosa... Perdôe-me, senhor doutor, que tenho vertido muita lagrima! D'esta idade vejo-me coberta de trabalhos e desgostos!...

A infeliz chorava. Sallustio, fingindo uma expressão de sensibilidade, disse: «Pobre senhora!» Ermelinda Travassos acrescentou: «Sempre é muito desgraçada !»

-- Veja se me dá algum remedio, meu rico senhor doutor! -- exorou a mãe de Augusto. -- Acuda-me, acuda-me por quem é.

-- Acuda-lhe, acuda-lhe, meu senhor! -- intercedeu tambem a discipula.

O deputado sentia-se maçado. Até se esquecêra de continuar a fingir a tosse e os espirros symptomaticos da sua doença. O escriptrorio era pequeno e respirava-se mal... Depois, como diacho havia de acudir ás desgraças d'esta mãe!

-- Eu não lhe posso fazer nada! -- disse.

-- Ah!... é porque não quer!

N'uma voz menos chorosa, a D. Maria Gomes, explicou a idéa, que ha muito tempo lhe andava na cabeça. Tinha-se lembrado de se ir lançar aos pés de el-rei, para lhe pedir justiça. Sua magestade, querendo, podia tirar o seu filho do caminho desgraçado em que se mettêra. Bastava só chamal-o á sua presença e dizer-lhe algumas palavras de conselho e reprehensão. Os monarchas têm grande imperio sobre toda a gente. Queria que Sallustio lhe désse um parecer a este respeito.

-- Se eu fôr a palacio -- perguntou a desditosa -- lançar-me aos pés de sua magestade, pedindo-lhe com rogos e muitas lagrimas, elle ouvirá as minhas supplicas?

-- Estou que sim -- respondeu o deputado, fazendo grande esforço, para se mostrar sereno. E' pessoa muito amavel e carinhosa, el-rei.

No rosto de Ermelinda Travassos irradiou um clarão de alegria. Pareceu-lhe que encontrava inesperadamente um meio de reconquistar toda a felicidade que perdêra. Por isso disse:

-- Então tambem poderá fazer com que meu primo seja um homem de bem! Anastacio é cantor da capella real. Elle enganou-me, senhor doutor! -- certificou baixando as palpebras e desfiando a franja do seu vestido de lã.

-- Mas então vão-lhe fallar -- opinou Sallustio em voz de forçada benevolencia.

A D. Maria pôz a questão em termos claros:

-- O senhor doutor entende que devemos ir a palacio, apresentar as nossas petições?

-- Entendo, minha senhora, entendo -- disse Sallustio, cheio de furia recondita, desembaraçando-se do lenço de lã, que o abafava.

A antiga mestra de piano levantou-se para corrigir este desproposito de um constipado se descobrir... «São lá coisas que se façam! Estes senhores são todos umas creanças! E' preciso um cuidado n'elles!...» Podia-lhe apparecer molestia de mais circumstancia, alguma pneumonia, que o limpasse. De doentes entendia ella muito, porque tratára grande numero durante a sua vida! E embrulhando de novo, com as suas proprias mãos, o pescoço do deputado, foi-lhe perguntando:

-- E como poderemos chegar á presença de sua magestade?

-- Isso, só o presidente do conselho, que é ao mesmo tempo ministro do reino, o poderá dizer -- respondeu Sallustio, resignado a que a D. Maria fizesse d'elle o que lhe aprouvesse.

Ambas exprimiram um sorriso verdadeiramente infeliz. Como poderiam, umas pobres mulheres desprotegidas, chegar á presença do marquez de Tornal? De certo eram precisos empenhos, apresentar a recommendação de alguma pessoa de valor.

-- Se o meu tio conego ainda fosse vivo!... -- considerou a velha, infinitamente desconsolada.

A Ermelinda Travassos aventurou-se a pedir:

-- O senhor doutor é que nos podia fazer esse obsequio. Não temos ninguem!...

-- E' verdade... podia-nos dar uma cartinha -- corroborou a mãe de Augusto.

A colera de Sallustio Nogueira enchia-o ! Estava mudo de raiva, já não pensava em experimentar o valor do seu discurso! Só tinha vontade de se desembrulhar do cobertor, que lhe prendia as pernas, agarrar a cada uma d'ellas por um braço, pôl as fóra da porta da escada e dizer-lhes abruptamente: «Ora vão para o diabo, que as leve!» Não ha coisa peior do que gente estupida! Que tinha elle com as historias do tenente Augusto, ou do primo Anastacio ?! Que falta de sorte! -- considerava.

Porém a culpa fòra d'elle e só d'elle! Para que as chamára, para que as tinha mandado convidar?! Podia-se esperar alguma coisa de gente, que nunca soube conviver ? Devia ter previsto o resultado, e como não o adivinhara alcunhava-se mentalmente de besta, de cavalgadura, de grandissimo asno ! Mordia os beiços de raiva, rugindo no cerebro, emquanto D. Maria Gomes e Ermelinda Travassos lhe contavam a longa historia das suas infelicidades. Mas estava resolvido a escutal-as até ao fim, com paciencia e coragem. Para melhor as soffrer acceitava benevolamente o rosario de lamentações com que o entretinham, acompanhando-as com promessas de auxilio em tudo. Porém, como temesse qualquer ataque do seu genio irrascivel, não se sentindo bem seguro no proposito de ser delicado, deitava-se a pensar em coisas indifferentes, emquanto ellas fallavam, para que lhe passasse o tempo despercebido.

Com furtivos olhares para a porta de entrada do gabinete esperava em vêr Angelina annunciando o chá. Depois não mais o veriam, porque se metteria immediatamente na cama. Mas ia-lhes promettendo a desejada recommendação, para o presidente de conselho conseguir d'El-rei que as recebesse e as ouvisse na longa narrativa das suas desventuras.

Angelina entrou e logo, ao encarar o rosto frenetico e congestivo do seu amante, adivinhou a recondita furia, que dentro d'elle fervia. Conhecia-o sobejamente em todas as suas modalidades. Aquelle sorriso externo era contrafeito; aos seus olhos experimentados representava grande malestar. Sallustio ao vel-a disse, n'um alivio:

-- Ora vão tomar o seu chá, que eu preciso muito de me deitar. A'manhã tenho camara e quero estar bom. Muito boa noite...

D. Maria Gomes pretendia á viva força obrigal-o a tomar uma chavena de qualquer coisa peitoral: chá de casca de limão, vinho quente e mel -- coisas optimas para constipações. O deputado oppôz formal recusa, limitando-se a mestra de piano a observar:

-- Havia de fazer-lhe muito bem. Um chá de casca de limão, ou um peitoral d'alcaçuz e avença com figos, cosia-lhe essa tosse.

As duas saíram juntamente com Angelina, que lhes ouviu, durante meia hora, uma ladainha de elogios ao seu amante -- muito bom senhor, delicado e sem ceremonias. Podia-se lá comparar com alguns tolos, que não sendo nada, morrem de presumpção?! Estavam certas de ter encontrado em Sallustio um protector valioso. Elogiavam-lhe o modo de fallar, as boas maneiras e o coração de pomba, que tanto se sensibilisava com as infelicidades alheias.

-- E se elle nos arranja o que nós queremos?!... -- disse Ermelinda, com olhos vivos de esperança.

-- Ah! filha! -- exclamou a antiga mestra com uma torrada suspensa nos dedos -- dou-lhe dois beijos. A menina ha de consentir que eu lhe dê dois beijos, se elle faz com que o meu Augusto volte a ser o que era.

II

O espectaculo determinou-se que fosse no salão da Trindade. Seria mais brilhante e mais rendoso se escolhessem o theatro de D. Maria; mas quiz-se evitar a comparação occasional, de senhoras com actrizes de profissão. Bilhetes pessoaes a libra, encarregando-se a Frazuella de distribuir os das primeiras filas de cadeiras, ás principaes famílias de Lisboa, era meio de arranjar publico selecto e bom rendimento. Assim se dava á sala aspecto familiar, intimo e aristocrático, e ao mesmo tempo se conseguia tornar populares os sentimentos de caridade da rainha e da alta sociedade. As cadeiras restantes seriam occupadas por gente menos conhecida, que ainda assim, a libra cada bilhete, deviam ser pessoas de certa cultura mundana e gosto pelas coisas elevadas da arte.

Os jornaes, dirigidos n'esta campanha por Sallustio Nogueira, proclamavam o valor intellectual e o exemplo democrático de tão requintada festa. Em que época se vira a melhor gente da capital, aquella que em si resume o que Lisboa possue de intelligente, rico e bem nascido, dar esta prova de deferencia pelo publico, expondo-se ao seu julgamento?! Só pelo sagrado impulso de minorarem as maguas e afflicções dos humildes, na vida tão impiedosamente experimentados pela sorte, é que tal se concebia! Seria também (ninguém o contestava) um triumpho para as idéas nivelladoras do seculo, e tal facto só podia servir de louvor aos que assim procediam. «Bem hajam (escrevia o jornal a que temos alludido), bem hajam esses nobres e levantados corações, para quem a caridade é uma religião e o amor da arte um decidido enlevo!» Para sustentar bem quente e vibratil o enthusiasmo, que se avolumava dia a dia, o mesmo poderoso orgão da opinião envolvia, em palavras da mais requintada ceremonia e respeito, todas as nobres damas que, cheias de abnegação, andavam «na bella cruzada em prol dos malaventurados, para os quaes a vida é inferno» conglobando nos epithetos mais facetados -- a rainha, para quem lembrava o cognome de «consoladora dos afflictos»; a nobre condessa de Frazuella; a virtuosa esposa do general Gonçalo de Moura; a sympathica sobrinha do illustre marquez de Tornai, D. Florinda; e, finalmente, «a dis-tincta estrangeira (madame Augustine Lagrant) que nos faz a grande e nunca esquecida honra de considerar esta, a sua verdadeira patria D.

Mas, apesar do seu grande respeito e mesmo temor da imprensa, o ministro da guerra continuava a nutrir surdas preoccupações ácerca d'esta exhibição da formosura de Josefa, n'um palco!... Não tinha mais na sua mão e, ainda que fossem formidaveis os esforços que fazia para se conformar, não lhe era possivel... Seria honesto, irreprehensivelmente honesto, o papel que tinham distribuido a Josefa?!... Duvidava, apesar de lhe terem affirmado que sim. Sallustio Nogueira é que o poderia certificar explicitamente, e, n'um dia em que o deputado foi ao seu gabinete no ministerio da guerra, o general levou-o para um vão de janella, perguntando-lhe com sorriso de homem, que se deseja mostrar conforme:

-- Que tal esse papel que minha mulher representa ?...

-- Magnifico! E' de rainha! -- pronunciou Sallustio, dando ás palavras excessivo valor.

O general ficou a olhar para a rua, construindo mentalmente nova pergunta, que viesse a ter resposta mais explicita:

-- Mas essa rainha é pessoa séria?

Sallustio Nogueira, fixando-o com dureza, mas compassivo, observou lhe:

-- Oh! general!... Veja o que diz !...

-- Tem rasão... tem rasão ... sou um asno -- volveu o ministro, caindo em si. As palavras sahem pela bôcca fóra, sem a gente dar por isso...

Sorria automaticamente e para desfazer a parvoice accrescentou:

-- Ora a grande asneira!... E' claro que todas as rainhas são pessoas sérias. Esta coisa da gente não tomar tento no que diz... Mas é um papel bonito, já se sabe... -- terminou, fingindo-se confiante.

O deputado, vendo-o contricto, esclareceu:

-- Soberbo! Representa de Luiza de Saboia, a virtuosa esposa de Filippe V de Hespanha! E' um papel magnifico, verá.

O tom grandioso com que Sallustio fallára, a nobreza do facto historico e o adjectivo castíssimo junta ao nome da personagem... triumpharam mais uma vez das incertezas do general, que n'este momento teve intimo desdem por si mesmo, pela sua falta de cultura... Com o fim de se penitenciar, elle que era rigoroso e disciplinador, mostrou-se benevolo para o pedido aa qual a principio oppozera formal recusa :

-- Terá hoje mesmo passagem de corpo o seu capitão ... Mas o espectaculo sempre é na quinta feira?

-- Sim, general. Não imagina a pena que tenho em que não vá uma peça de força, como o Pedro da Mendes Leal! A senhora D. Josefa poderia então mostrar o seu grande talento.

Esta censura referia-se ao que se passára em casa da Frazuella, quando definitivamente escolheram as peças para o beneficio. Sallustio pugnára sempre a favor de um verdadeiro drama! Queria situações fortes e empolgantes, que commovessem os espectadores, arrancando-lhes lagrimas. Pleiteou calorosamente, invocando os nomes famosos dos grandes tragicos estrangeiros e das glorias nacionaes: -- o Rossi, o Salvini, a Pasquali, a Casalini, a Emilia das Neves, o Tasso... artistas que admirára no theatro Academico de Coimbra, e no de S. João do Porto. A grande arte subjugava-lhe a rica imaginação, que sempre tendia para se exhibir em opulento espectaculo, deante de platéas soluçantes. As personagens em attitudes de estatuas, fallando com vozes portentosas de tempestade, empregando no desenho dos grandes sentimentos gestos magnificos de deuses, eram o seu fanatismo. A pequena arte moderna, com a naturalidade e a interpretação fina e requintada, detestava-a. O que era digno de se vêr, era o Salvini no Othello, com os seus berros de ciume, que desafiavam os das vagas do oceano, ou produzindo gestos portentosos no papel de Samsão, os quaes faziam tremer de susto os homens mais valentes do auditorio e seriam capazes de derruir outra vez o templo de Dagon...

Para mostrar a sua sinceridade, rematou:

-- N'uma coisa d'estas, ainda se me não dava de entrar, palavra!...

D. Agostinho, que tinha sobre o assumpto a mesma opinião, approximou-se de Sallustio, pondo-lhe a mão direita no hombro:

-- O amigo viu a Ristori na Izabel de Inglaterra?

-- Não vi.

-- Pois, meu caro!... Isso foi d'entupir !...

-- Não, D. Agostinho, não: o Rossi no Hamlet, e o Tasso no Pedro de Mendes Leal, foram positivamente extraordinarios!

O Cerdeiral, que os escutára silencioso, com a nuca apoiada no espaldar da cadeira, interferiu com ironia, rebatendo estas opiniões caturras:

-- Será o que quizerem, mas em festas como a projectada usam-se comedias ligeiras, n'um ou dois actos. Quer-se espectaculo, que não mace e alegre o espirito.

O Bijou de la reine já estava escolhido e Florinda, como não tivesse ainda peça, perguntou ao barão:

-- Lembra-se de alguma outra comedia bonita, n'esse genero?

-- Para mademoiselle, ha uma magnifica de Feuillet, L'Ermitage. O papel de Helena é um encanto.

-- Nós vimos isso em Paris, não é verdade, Cerdeiral? -- perguntou a condessa.

-- Oui, madame, no Palais Royal. E' a historia de uma interessante viuva de vinte e dois annos, a quem os revolucionarios de 48 mataram o marido, antes de consummado o matrimonio. O pobre rapaz, official do exercito, é chamado ao château no momento em que vae da mairie para a igreja de Saint-Jhomas-d'Aquin, e é-lhe ordenado levar uma ordem ás tropas que estavam na Baslille. Ao passar junto da Porte Saint-Diniz, os ronges mettem-lhe uma bala no corpo, e, tres dias depois, a pobre Helena era viuva, sem ter sido propriamente casada.

-- E' interessante! -- disse Lucia.

-- Ah! -- pronunciou o barão, com jactancia arregaçando o bigode -- muito interessante. Mas o que mademoiselle não sabe é que Hélène, que jurára eterna viuvez, veio depois a casar com um tal Paul de Kardic, a quem teve a felicidade de encontrar, casualmente, como em todos os casos identicos, n'uma floresta da Normandia, durante a saison des eaux.

Monsieur de Franza conhecia perfeitamente esta comedia e applaudiu a lembrança do barão. O papel de Paulo cabia perfeitamente ao visconde de Pomarini e o de Général du Kardic a Dramond. M.me Augustine Lagrant, ficaria com o de Baronne d' Orthez, que representara em casa da viuva Ratazzi, em Paris. Para Florinda reservavam o da encantadora heroina.

O resto do espectaculo, como depois se combinou, seria em portuguez. Julgou se conveniente dar satisfação ao espirito nacional, que poderia melindrar-se. Os jornaes gabaram o delicado pensamento, exaltando-o como favor e gentileza dos nobres estrangeiros, que por tal maneira nos honravam com a sua sempre desejada hospedagem. A gazeta, que tomara a dianteira ás outras na propagação dos sentimentos de caridade alliados á monarchia, querendo dar interpretação diplomatica a este acontecimento, chamou-lhe «espectaculo internacional» e considerou-o «como uma prova de confraternidade dos povos, nas grandes expressões do pensamento humano.»

Attendendo a todas estas considerações «e para se fazer honra ao velho Portugal», é que se assentou em que Sallustio abrisse o espectaculo com um discurso em lingua patria. Alberto Cerveira recitaria uma nova poesia, melhor ainda que essa famosa Deusa, que lhe grangeára reputação de inspirado. Albano de Mello, sobrinho do ministro da marinha, habilissimo e bem conhecido prestimano, fechava o espectaculo com uma sessão. Assim, a festa seria variada, com numerosas distracções. Era necessario sentir-se a alta protecção,

que patrocinava o espectaculo; era necessario dar-lhe significado de coisa maior que um trivial acto de caridade. Todos assim animados proseguiam com acurado enthusiasmo. A noite de quinta feira, acreditava-se entre a gente da sociedade e da politica, devia ter grande importancia para o prestigio das instituições, que nos regem.

O exterior do theatro, vistosamente illuminado, com as armas de Portugal e Saboia ao centro, convidava o publico vagabundo a rcunir-se na rua da Trindade. Annunciava-se alguma cousa de excepcional, reunia-se ali o que havia de famoso, bello e distincto em Lisboa. Por isso as proximidades estavam cheias de gente curiosa.

As carruagens subiam magestosamente pelo lado do Chiado, parando no alto da rua, em frente do largo da Abegoaria, para depois seguirem conforme os seus destinos. Numerosos policias regularisavam o transito, afastando o povo. e mandando opportunamente continuar os trens, de onde tinham saído senhoras novas vestidas de claro, com scintilações de pedras preciosas nos cabellos e no fascinante decote, labios de vivo carminado, sorrindo alegres como um coração de melancia. Nas velhas o empastamento da pelle embranquecida e desenrugada pelo cold cream e agua de Ninon fazia lembrar uma parede caiada de pouco. Os indivíduos que as acompanhavam, todos de casaca, gravata e luvas brancas, no braço o paletó forrado de seda, subiam as escadas do salão, os troncos em porte altivo. No cimo trocavam os bilhetes de admissão pelo programma, que os empregados entregavam cerimoniosamente, pronunciando com respeito: «senhor conde... senhor marquez... senhor conselheiro...» Era um pequeno cartão assetinado, com perfume de violeta, e no qual, em letras doiradas, se marcava a materia e ordem do espectaculo. Em toda a sala se viam numerosos exemplares, passando de mão em mão, cada pessoa commentando-o diversamente. Esse programma era da seguinte fórma:

BENEFICIO

A favor das victimas do fogo de Alcantara, promovido, por uma commissão de senhoras, sob a alta protecção de Sua Magestade a Rainha, e em que tomam parte distinctos amadores.

PRIMEIRA PARTE

Discurso de abertura, apropriado ás circumstancias, pelo notavel orador, o Ill.mo e Ex.mo Sr. Sallustio Nogueira.

II

Quarteto de violino, violeta, violoncello e flauta, sobre motivos da opera Faust de Gounod, executado pelos notaveis amadores MM. le Vicomte de Mambra, le Baron Test, Grasset e Carlos Affonso.

III

L'ERMITAGE

Comédie en I acte par Octave Feuillet

PERSONAGES

La baronne d'Orthez.......Mme. Augustine Lagrant

Hélène.................... Mlle. Florinda Trigoso

Général de Kerdic.........M. Dramond

Paul...................... M. le V. de Pomarini

La scène se passe aux eaux de B... en Normandie

Intervallo de meia hora

SEGUNDA PARTE

I

Luz e Caridade poesia composta e recitada pelo Ill.mo e Ex.mo Sr Alberto da Cerveira.

II

LE BIJOU DE LA REINE

Comédie en I acte, par Alexandre Dumas, fils

PERSONAGES

Louise de Savoie.......... Mme. Lencastre de Moura

Philippe V, roi d'Espagne... M. le Baron do Cerdeiral

La scène se passe en Espagne, vers 1708

III

Sessão de prestimano, dada pelo distincto amador, o Ill.mo e Ex.mo Sr. Albano de Mello.

O espectaculo principia ás nove horas da noite, depois da chegada de Suas Magestades.

Antes d'esta hora já a sala se sentia cheia do ou-ou... das conversas animadas. Havia muita gente e a linha movediça de um publico inquieto desenhava-se successiva e inconstantemente no ar, como acontece ás ondulações das vagas, que se repetem sem descanso. A condessa de Frazuella, á maneira de Paris, procurava reunir n'este espectaculo, que a rainha se empenhava que fosse brilhante, tudo que se pudesse encontrar com um nome conhecido e estimado em Lisboa, e conseguira-o.

Viam-se na sala homens descobertos, mostrando as largas frontes emmolduradas em bellas cabelleiras de talento, e que tinham a intenção de se mostrar vaidosamente em publico: -- eram escriptores, jornalistas, actores, musicos, pintores... as reputações intellectuaes, mais ou menos consagradas.

A viscondessa de Aguas-santas lá estava do lado direito, em frente ao camarote real, sempre de pé para ver quem entrava, animando o publico com o seu riso perpetuo, attrahente e de boa educação. Até as pessoas que a não conheciam, que lhe não fallavam, se sentiam agradadas com a sua presença, que era de uma senhora, que distingia cordialidade em toda a sala. Mulheres de ministros e de influentes na politica, íam-se agrupar em volta d'ella, por uma convenção tacita, inculcando-se subordinadas eacceitando gostosamente o seu protectorado. D. Cesaria, com a sua cara sumida de invejosa, dirigia-se-lhe frequentemente, com o fim de transmittir as suas impressões de pessoa insaciavel. O que ella melhor apanhava no binoculo sempre assestado, eram as toilettes caras de algumas sephoras de vida apparentemente normal e bem estabelecida, mas cujos gastos ninguem sabia explicar. Aquelle luxo, claramente superior ás posses de cada uma d'ellas, tinha de certo origem impudica, que D. Cesaria envenenava com palavras acidas. E como se reconhecesse isenta de todo o peccado, manifestava evidente goso em ver a Concha (uma hespanhola amante de um banqueiro, vestida de setim branco com perolas e diamantes no pescoço e no cabello) entre essas senhoras, ostentando-se soberbamente com riqueza superior á d'ellas. A peccadora, era uma censura ali posta, para todo o publico honesto apreciar. O accaso faz, ás vezes, officio de castigadora providencia.

-- Quem as vê não as differença, não achas?--insistiu a esposa do ministro da marinha, para D. Augusta, a collega da justiça, como lhe costumava chamar familiarmente.

Mas a mulher de Carlos de Mendonça não tinha em si o mesmo accinte e retorquiu-lhe:

-- Deixa lá, não tenhas má lingua...

D. Cesaria enfureceu-se:

-- Desculpa-as se te parece!... A mim custa-me mandar fazer um vestido... ellas é aquillo!

O carlista D. Nicolas, com a mão direita mettida entre o coração e o collete, levantava a fronte espaçosa, analysando aquelle publico. O seu aspecto de patriarcha biblico, a longa barba cobrindo-lhe o peito, davam á sua nobre figura suavidade encantadora, que se impunha. Encostado a uma das columnas que sustentam a galeria, tinha breves respostas ás perguntas frequentes de sua sobrinha Mercedes, que binoculava com notada insistencia Dramond, apesar de ser publico que o secretario de França a trocára definivamente por M.me Lagrant.

D. Agostinho andava de cadeira em cadeira, de grupo em grupo, em cumprimentos. Conhecia gente de todas as cathegorias, e não lhe soffria a indole cordeal o faltar aos seus deveres para com ninguem. Depois de ter permanecido algum tempo nas cadeiras da frente, no circulo da viscondessa de Aguas-santas, foi ter com Arminda, que obtivera logar nas ultimas filas e apparecia publicamente em companhia de João Dantas! D. Constança estava com elles, e o velho fidalgo vendo-a hesitou em se' aproximar... Recordou maguado o que se havia passado na rua do Principe, d'onde elle saíra por causa do padre Brito, de quem se conservaria inimigo durante o resto dos seus dias... Porém, apesar de D. Constança lhe ter sido infiel e ingrata, a boa educação, a polidez, o nascimento, que designa a superioridade do sangue, primeiro que tudo... D. Agostinho subiu a coxia, atravessou ao fundo para o lado esquerdo, indo dar uma volta para se approximar dos seus antigos commensaes, que estavam sob a galleria n'um sitio de onde não podiam apreciar, em todo o seu explendor, o soberbo aspecto da sala.

-- Se m'o tivessem mandado dizer, poder-lhes-ía ter arranjado coisa melhor. Eu sou sempre o mesmo, querido Dantas -- pronunciou sorrindo, com certa amargura.

-- Obrigado, meu amigo. Resolvemos á ultima hora -- agradeceu o bacharel.

D. Constança excluiu-se, talvez no proposito de não desejar serviços de D. Agostinho:

-- Se não fôra esta senhora, nem cá vinhamos.

Referia-se a Arminda, que D.' Agostinho no seu interior considerou estar um pouco mais magra, porém cada vez mais formosa. O peccado não damnifica tanto como dizem os partidarios da virtude; o mundo da felicidade e do goso parece ter sido inventado expressamente para os que prevaricam. E, com o fim de dizer alguma coisa que interessasse os seus interlocutores, reatando uma conversa perdida havia annos, observou:

-- Vamos ouvir hoje o nosso Sallustio...

O nosso Sallustio resumia todo um passado intimo e venturoso. Era uma multidão de factos de sensibilidade e carinho enfeixados numa phrase trivial: -- era a vida folgazão e alegre d'esse lindo verão de Bemfica, em que João Dantas conseguira amortecer as resistencias d'Arminda; eram os dias contentes da rua do Principe,

n'aquella fraternidade de camaradas, na casa de hospedes. Todos sentiram como a recrudescencia de alegrias e dores extinctas!... Ficaram um momento silenciosos, fazendo cada um o seu inventario mental...

João Dantas, condiscípulo do deputado, notou que Sallustio fôra bom estudante, sempre com tendencias para a politica. Já em Coimbra se mettia fervorosamente nas eleições do Club Academico e da Philantropica. Lá ninguem o via senão com homens de posição elevada, com lentes que tivessem sido deputados ou ministros !...

-- De todos os rapazes que conheci na Universidade, é o que tem pulado mais -- disse.

-- Espera-se muito d'estc discurso de hoje -- considerou D. Agostinho.

-- Ah! elle é um orador!...

Arminda confessou irreflectidamente:

-- Quando o vi, pela primeira vez, em Bemfica, não fiz boa idéa d'elle ...

Ficou um tanto vermelha; porque, sem o querer, atraiçoara os seus pensamentos. .. Aquelle mez passado na companhia da Affonsina tinha preparado a sua queda... A scena do moinho, quando João Dan as a agarrára atrevidamente pela cintura... representou-se-lhe na imaginação, com toda a nitidez e com todo o relevo... como se passára. Tivera um instante virtuoso de arrependimento, fugira para Lisboa na companhia de Gustavo, para evitar o perigo... mas Arminda lembrava-se que, depois que perdêra a falia e ficára inerte por instantes entre os braços nervosos de João Dantas, ella mesma considerára a sua perdição inevitavel!... Foi uma questão de tempo, como mais tarde se verificou. D. Agostinho tinha sido uma testemunha presencial e um confidente das peripecias d'esses amores. Por isso não podia olhar para os dois amantes que não reconstruisse tudo quanto se passára. O velho fidalgo despedia-se deixando-os a fallar de Sallustio... D. Constança considerou:

-- Cá por mim, sempre me pareceu que este rapaz iria longe. Era muito atrevido.

D. Agostinho, ao retirar-se, estendeu-lhe a mão e, n'um intuito de desculpa, disse: «Preciso dizer uma coisa á prima Frazuella.» A mãe de Arminda, ao contacto d'aquella pelle sua conhecida, perturbou-se-lhe o coração; mas apparentou heroica indifferença. Este diabo de homem ainda exercia grande imperio sobre a sua carne... Ou predomínio de raça, ou distincção individual, elle era superior ao proprio padre Brito, por quem o trocára e com quem se mantinha... Emfim passou... não queria saber mais d'isso.

A condessa de Frazuella estava do outro lado, em pé, envolvendo toda a sala n'um olhar soberano,-- benevolo e dominador. Os seus magnificos quarenta an-nos, a fórma desenvolvida, completa e definitiva como pessoa e como mulher de sociedade, augmentavam-lhe a magestade e o prestigio. Ria, fallava, gesticulava com sobriedade e arte, conservando em volta de si, uma atmosphera vibrante de sensibilidade e espirito. Tornava-se evidente e respeitada, era a personagem marcante da sala não desprezando nenhuma circumstancia, espargindo, a todos os momentos e n'um largo perimetro, cumprimentos, olhares e sorrisos... A' viscondessa das Aguas-santas, que lhe ficara distante, appro-vava o excellente trabalho de collaboração e fez lhe comprehender, com um imperceptivel aceno, que o sorriso de sua magestade a rainha, quando viera apreciar o aspecto da sala, fôra de contentamento approvativo.

As senhoras mais distinctas pela educação e nascimento, tinham-se vindo juntar á condessa, realçando-a, fazendo-lhe côrte, que lhe acrescentasse a influencia. Eram tudo pessoas a falar linguas estrangeiras, leitoras habituaes do Figaro e da Revne des deux mondes, gente de alta prôa imperialista, educada na leitura da prosa guttural de Mazade e Feuillet. A mulher do ministro inglez, Mrs. Cross, com a sua fria cara de porcelana, mencionava-lhe, sem gesticular, pequenos incidentes vistos atravez da sua luneta d'oiro, que lançava sobre a platéa, com firme solemnidade. M.me Trèvan, outra confidente, mulher de boa presença, alta, magra, perfil energico, assestava o binoculo, expondo num destaque magnifico o seu optimo busto, que, dez annos antes, tivera grande acceitação em Longehamps, nas Tuileries, na Comédie, onde apparecia duas vezes por semana, sendo uma em representações de Molière, de quem se dizia fanatica.

A mplher do diplomata portuguez era muito cumprimentada por todos os estrangeiros de nome, que se lhe approximavam com olhos submissos, fallando e gesticulando pouco, em signal de respeito e vassalagem. Depois de terem estado com o conde, que, n'uma cadeira da frente, ria alto conforme o seu temperamento de peninsular, vieram apresentar os seus cumprimentos á condessa: o ministro inglez, aspecto osseo c severo, magnifico caçador na serra de Cintra; le comte Jubkeff, representante do czar, homem letrado e pacifico; Mr. Franza, encarregado dos negocios da Austria, que mostrava confiança no exito de Bijou de la reine. Palmira Freitas ficára contrariada, porque seu pae a separára, n'esta festa publica, da roda elegante a que andava habituada. Lioncio de Mertola, estimando essas relações com que se inchava a sua vaidade burgueza, tirava-lhes por vezes a filha precavendo-se, como elle dizia, contra a esperteza dos fidalgos pobres e dos intrujões estrangeiros. Por isso, n'esta noite de aparato, buscára a companhia menos saliente da familia do conselheiro Mauricio Pontino.

O visconde da Carregueira, tendo a commenda da Conceição do lado esquerdo, gastava a restante viveza da sua senectude na procuradas meninas novas e bonitas, a quem prodigalisava amabilidades de que ellas se riam e offerecia bons-bons, d'um saquinho côr de rosa, que trazia na mão.

Até começar o espectaculo estivera na sala Josefa Lencastre, que só entrava na segunda parte. Seu marido trazia-a pelo braço, garantindo-a contra a maledicencia, com o respeito aos seus annos e á sua farda. A condessa saiu da cadeira para a beijar ; outras senhoras cercaram-n'a dando-lhe antecipadamente parabens. Todos os binoculos a procuravam, querendo muita gente descobrir-lhe a commoção de quem se arreceia do papel. Foi n'esse momento que tambem se approximou d'ella uma senhora nova, loira e formosa, acompanhada d'um individuo que tinha todo o aspecto de inglez. A maioria da gente não os conhecia, conceituando-os, á primeira vista, de estrangeiros, que estivessem accidentalmente em Lisboa; porém vendo que eram conhecidos da Frazuella, de Josefa, da Aguas-santas e de mais senhoras, o Fonseca da Alfandega estava intrigado por não saber quem fossem... Como ali passasse occasionalmente Sallustio Nogueira, de gravata e luvas brancas, chapéu de molas sobraçado, o empregado publico deteve-o para lhe dizer:

-- O' doutor, eu conheço aquella ingleza ; mas não me posso agora lembrar quem seja!...

-- Não é ingleza -- esclareceu o deputado.-- E' uma senhora do Porto, casada com aquelle sujeito, que se chama White, inglez de sangue, mas nascido em Portugal. Amiga de M.me de Moura. Em solteira chamava-se Angelica Agramonte.

E como se approximassem o critico Torres, Albano de Mello e Alberto da Cerveira para ouvirem a explicação, Sallustio accrescentou:

-- Gente de importancia no norte.

O Fonseca, apanhando o labio inferior entre o indicador e o pollegar, ficou ruminando:

-- Angelica Agramonte!... Angelica Agramonte!... Não é filha d'um general que morreu?

Sallustio Nogueira não sabia, mas elle affirmou logo, sem hesitação:

-- E' isso, é ella, a Angelica Agramonte! Conheço muito bem! -- exclamou sorrindo, querendo inculcar saudade de amores extinctos. Passei com ella bons tempos na Foz, ha tres annos. E' filha do general Agramonte, que morreu.

D. Agostinho, que ouvira casualmente o Fonseca, a quem detestava, por causa de uma hespanhola, que ambos tinham conhecido, communicou ao visconde da Carregueira:

-- Este homem mente como um bebedo! Aquella senhora nunca foi filha de nenhum general! Nem mesmo nunca existiu general Agramonte.

-- Bem sei. O pae d'ella é meu collega, está na relação do Porto -- concluiu o conselheiro do Supremo.

O murmurio do publico, ao approximarem-se as oito horas, ondeava animado e fremente. Era a amalgama de conversas comprimidas n'uma sala, o sommatorio de sorrisos, exclamações, palavras trocadas ... Os espectadores das ultimas cadeiras, como se não conheciam, mostravam-se menos sociaveis, conservando tacito sentimento de hostilidade contra os que intencionalmente se tinham reunido adeante, n'uma separação, que os desvalorisava a elles. Alguns, por tal feridos na sua dignidade, zombavam de tudo aquillo: -- do programma, meio em francez, meio em portuguez; de não terem procurado representar n'um theatro como o de D. Maria, que entendiam ser mais adequado. «Porém isto -- chasqueavam -- é ainda a demonstração dos sentimentos caridosos de certa gente, que vive de orgulho e vaidade». Seria para não trilharem um palco, onde actrizes tivessem exhibido os seus attractivos? Talvez; mas toda a gente honesta se devia rir de tal meticulosidade em mulheres, cuja vida era um tecido de intrigas amorosas e picantes. «Muitas d'aquellas fidalgas -- commentavam ironicamente -- têem factos na vida, bem publicos e bem conhecidos, que as equiparam áquellas de quem se querem distanciar, as quaes só podem perder na comparação!» Regosijavam-se porque a Concha estivesse entre ellas, abatendo-as com toda a insolencia da sua belleza carnal e do seu rico adereço de perolas e diamantes, sobre vestido enfeitado de rendas caras. O seu banqueiro, para satisfazer o capricho da rapariga, obtivera um bilhete das primeiras filas, comprando-o por muitas libras -- affirmavam gostosamente. Fizera elle muito bem, applaudiam-n'o por ter realisado uma idéa, que por si só destruia toda esta combinação ridicula, de haver logares separados, para aquellas tolas, que eram tanto filhas de tendeiros, como toda a gente. E' o corpo esbelto da Concha, envolvido em setim branco, tinha toda a soberba magestade de uma estatua. O perfil correcto e a tez morena, faziam-n'a sobresair. As suas joias de alto valor, abatiam as das que as possuiam de menor preço. Por tudo isto, os das ultimas cadeiras approvavam explicitamente a famosa idéa do capitalista, que ali fôra collocar a sua amante.

O famoso critico theatral, José Torres, no meio da sala, cercado de actores portuguezes, com quem discutia acaloradamente, vinha disposto a um julgamento severo, se o não satisfizessem. Esqueceram-se de o distinguir com o bilhete de fator, por isso as ouviriam duras ...

-- Ora imaginem vossês -- perorava -- o papel de Luiza de Saboia, que só podia ser feito pela Manuela Rey, se fosse viva, representado por uma senhora qualquer, que d'esta coisa chamada -- Arte! -- só ouviu pronunciar o nome! O Rosa diz bem do desempenho; mas eu não o posso acreditar.

N'esse momento approximou-se o novel actor Amado, já celebre nas sociedades dramaticas da capital e que, diziam os seus amigos, estava para entrar em D. Maria, onde esperavam que prehenchesse o logar do Tasso recentemente fallecido. A sua larga fronte de inspirado, o pequeno bigode em croc, a casaca lustrosa e nova, a larga mancha da camisa sobre o magnifico peito de tragico, tornavam-n'o evidente. Escutou com seriedade e orgulho a opinião desfavoravel de José Torres, dizendo repetidas vezes: «Está claro!». Ao mesmo tempo passava a mão na lustrosa cabelleira de artista, significando com vaidade que, dentro do craneo, presumia ter alguma coisa. E como n'esse momento se encontrassem junto do palco D. Josefa Lencastre e o barão de Cerdeiral, que trocavam opiniões ácerca do aspecto da sala, o actor Amado destacou-se para ficar isolado e fixou os dois com o seu provocante binoculo. A mulher do ministro da guerra dirigiu casualmente o olhar para aquelle lado, e elle, expondo-se-lhe todo vaidoso da sua reputação e optima figura, disse fixando-a:

-- Póde ver, minha senhora, póde ver á vontade que sou eu mesmo!

Parecia-lhe, a este genio, que occupava toda à sala com a sua fama. O riso vaidoso das senhoras da sociedade, a soberba dos homens conhecidos, o brilho das luzes fulgurando nas joias, o macio das sedas contendo corpos desejados, os magros rostos diplomaticos confrangindo-se myopemente para olharem com monoculos, a presença das pessoas reaes, que já se tinha assignalado no camarote... eram factos que esta organisação sumptuosa, semelhante á de Sallustio, referia só a si, concentrando-os n'uma apotheose, de que era elle o unico objectivo!...

III

Toda a sala escutou de pé o hymno real, como formula de vassallagem e respeito. Os monarchas, ao tomarem os seus logares, exprimiram n'um sorriso e n'uma ligeira curvatura, quanto se sentiam agradecidos por esta ruidosa attençào. Os espectadores corresponderam sentando-se, sem despregarem os olhos do camarote real. Depois, quando a apparatosa figura de Sallustio Nogueira veiu collocar-se deante de uma pequena mesa, que estava á bôca do palco, estabeleceu-se silencio precioso, seguido de imponente salva de palmas, restabelecendo-se após digno e interessado socego. O deputado mostrou-se reconhecido, n'uma inclinação de cabeça e mudou o copo de agua, coadjutor da eloquencia, da esquerda para a direita. A expressão do seu rosto era vivaz, sem deixar de ser modesta!...

A cabelleira abundante e negra, penteada para a nuca deixava-lhe a fronte espaçosa numa evidencia clara. Os seus olhos pardos abraçaram rapidamente a platéa n'um rasgo de ambição, indo-se amortecer submissos nas augustas pessoas reaes. Repuxou os punhos e de-

safogou o curto pescoço, dando aos largos hombros o movimento de quem sustentasse o peso d'uma gloria immensa! Ia fallar : estendeu o braço direito e com a mão aberta indicou hypotheticamente qualquer coisa, que estaria longe, n'uma região de luz...

Senhor.

Senhora.

Minhas senhoras e meus senhores.

«Na poética e melancolica paizagem da Judéa, appareceu outr'ora um Homem, com a palavra redemptora correndo-lhe a flux dos labios!-- «Deixae que os pequeninos se cheguem para mim!» -- disse elle, e esta phrase de uma simplicidade divina, correu mundo levada na lingua dos Apostolos galileus, que de rudes se tornaram -- oh! maravilha! -- rapidamente em sabios, que de humildes pelo nascimento, foram depois grandes pela virtude. Singular e extraordinaria transformação, que em si resume e por si attesta quanto é celestial esta religião de caridade e de fraternidade, que o Homem-Deus proclamou e estabeleceu! Facto novo e superior ás nossas miseras inteliigencias, que se engrandecem com a verdadeira crença religiosa, se os sublimes preceitos do evangelho as fecundam! (Rumor approvativo).

«O Mestre divino, que nos trouxe a maxima redemptora do -- «amae-vos uns aos outros» -- sentia derruir em volta de si o velho mundo, materialista e pagão, que bem representado está nos livros santos pela infame Sodoma, cuja punição foi o famoso incendio! E, na sua previdencia infinita, comprehendeu o ousado Nazareno, com a rapidez do raio, cuja fraca imagem não póde dar idéa dos clarões da sua intelligencia fulgorosa que no momento em que pedia para consentirem «que os pequeninos se chegassem para elle», lançava a base d'uma nova misericordia e da definitiva felicidade humana! Desde então nunca mais houve desgraçados; porque elle propoz uma philosophia que reconhece em todos o direito á ventura, desde o mais inutil até ao cidadão prestante, que com a penna ou com a palavra, com a espada ou com a bigorna conquista imperios para a hodierna civilisação, derruindo as cidades do vicio, nefastas e prevaricadoras! (Novo rumor de applausos).

«Quando, segundo Herodoto, Thomyris, rainha dos Seythas, metteu a cabeça do famoso rei Cyro n'um vaso de liquido tirado das veias, exclamando: -- Monstro! sacia-te do sangue de que sempre foste sequioso! -- esta mulher forte e energica pretendeu claramente punir com severidade, n'uma parte inerte do conquistador da Asia Menor, as culpas do celebre ambicioso.

«Assim nós hoje, comparando a miseria, que é devastadora, ao genio do mal que se personifica no filho de Cambyses, rei da Persia, poderemos repetir este symbolo, não afogando em sangue a torva inimiga dos infelizes, mas abafando-a com as flores de que vejo enfeitada esta sala, e dizendo-lhe n'uma apropriada antithese:

«Monstro! sacia-te dos perfumes de que sempre foste inimiga!»

«Porque a miseria, minhas senhoras e meus senhores, é feroz e implacavel, como os tyrannos da antiguidade:--ella tudo assola e devasta, passando sobre a pobre humanidade, como esses ventos do deserto, que mirram nos campos, de preferencia, as hervas mais tenras, não poupando as gran ies arvores, ainda que resistentes. A' sua voracidade infartavel não bastam velhos incapazes, que, indo-lhes a vida no occaso, difficilmente se furtam ás aduncas garras; é-lhe necessario, á proterva, destruir creanças, que são a esperança do futuro, que são os tenros arbustos, de que se formarão os formidaveis robles! Mas não conseguirás -- ó infame dos seculos! -- (exclamou energicamente Sallustio, fixando no ar um ponto indeterminado) -- levar-nos os debeis e os infelizes que nós protegemos. Contra o teu abominavel nome -- miseria! - inventou-se outro preciosíssimo, que se chama caridade. Vem a este recinto, desgraçada, cuja missão é gerar lagrimas, e aprenderás como debaixo das mais opulentas e ricas toilettes, se occultam sensiveis corações, e como os risos angelicos, que vejo desabrochar em labios purpurinos, pertencem a anjos, cuja missão é destruir o teu indigno poder!»

Muitos e prolongados applausos interromperam o orador, que submisso e curvado abrangia toda a sala no seu reconhecimento. Serenado o estrepito das palmas, Sallustio continuou, em tom de voz mais calma:

«Quando a eloquentíssima aguia de Meaux, o perceptor do delphim de França, o sapiente Bossuet, fez o elogio da bonissima princeza palatina, Anna de Gonzaga de Cleves, enumerou entre as melhores qualidades, que exornavam esta illustre dama, a caridade! «Em todos os cataclismos extraordinarios -- disse elle -- a sua caridade fazia novos esforços». Que expressões teria de inventar a voz magistral d'este S. Paulo moderno, se hoje lhe fosse dado encontrar se n'esta sala e neste mesmo logar em que estou, eu o mais humilde e desconhecido dos admiradores d'esse grande genio?!... Como poderia fazer levantado elogio ás virtudes das nobres senhoras, que tomaram a seu cargo apanhar as lagrimas dos que choram nos seus finos lenços de cambraia ?! Seria necessaria a suave eloquência do cysne de Cambrai, o grande Fénelon, para com tenue delicadeza de estylo, cujo segredo morreu com o sabio arcebispo, podermos enumerar, uma a uma, todas as graças, todos os maravilhosos dons, que matisam almas tão bem formadas!..»

Fixou audazmente o auditorio, durante alguns momentos de silencio. Os espectadores sentiam os cerebros comprimidos, mixto de admiração e incerteza! Que iria dizer Sallustio, das promotoras da festa de caridade, que ali se achavam reunidas ?! Os indifferentes procuravam com os olhos a rainha, a condessa de Frazuella e outras senhoras... Todas ellas receavam um formal e claro elogio, que poderia ser inconveniente perante um publico desconhecido. Porém, o deputado calculara sagazmente esta circumstancia, sentindo-se ferido, quando composera o discurso, de identica delicadeza. Por isso, com expressão facial, serena e respeitosa, fallou da rainha em periphrases cheias de melindre, servindo-se, para a dar a conhecer, da locução «consoladora dos afflictos», o que provocou claros signaes de assentimento, que obrigaram sua magestade a inclinar a cabeça agradecida. Depois de ter indicado a esposa do monarcha conglobou, em applauso generico, a commissão de senhoras da melhor categoria social «que assim prescindiam dos confortos e recreios privativos da sociedade em que vivem, para se dedicarem nobre e devotamente á santa causa de minorar os soffrimentos dos infelizes, que muitas vezes supportam com resignação admiravel, dores cruciantes de intensidade ignorada!» Mas, referindo-se em especial á condessa de Frazuella, applaudiu-a pelo brilhante resultado d'aquella festa memorável, affirmando que era em grande parte devido «á illustre dama, presidenta da commissão executiva, senhora que, á mais elevada cultura de espirito, junctava os melhores dotes de coração.» Um bravo saiu do enthusiasmo de D. Agostinho, que foi secundado por outras pessoas. A condessa, reparando no rosto de incomprehensão de madame Trèvan, que estava a seu lado, disse-lhe rindo-se por traz do seu leque: -- Il me flatte...

Mas, a parte do discurso mais applaudida pelo grosso publico, foi aquella em que o orador, com a eloquencia imitada de Lacordaire ou de Castellar, fallou nitidamente da sublime virtude da caridade. Considerou-a no seu aspecto religioso vendo-a proclamada nos divinos preceitos de Jesus, que rememorou segunda vez; praticada nas obras immortaes de um S. Francisco de Assis e de um Santo Antonio de Padua, que fundaram conventos mendicantes; ensinada por Vicente de Paula, que recolhia recemnascidos abandonados!... Nos tempos modernos, a virtude da caridade, tornando-se social, chamava-se philanthropia, e era exercida por todo aquelle que tem um peito e dentro d'esse peito um coração para sentir e amar! Atacou vivamente «certa classe de philosophos doentios, perpetuos inimigos da religião e da humanidade, que dizem a caridade desmoralisadora, humilhante e anti-religiosa, quando exercida com ostentação e orgulho, de modo a saber a mão direita o que faz a esquerda !»

E proclamou, o fogoso orador cheio de emoção:

«Pois quê! Não será esta maneira brilhante e attractiva de exercer a excelsa virtude, a mais efficaz para chamar ao seu exercicio muitos indiffrentes, muitos rebeldes ás coisas do sentimento!? Não poderemos assim, com mais facilidade conseguir que esses se lancem vigorosamente na sympathica estrada aberta pelas distinctas damas, que organisaram esta festa, tão commo-vente pelo seu fim, como esplendorosa nos seus meios! ? A caridade, porque tem um vestido de setim, perolas e diamantes, porque cinge um diadema, não será a mesma virtude que ennobreceu o illustre mestre de Bossuet, que andava de noite recolhendo as desafortunadas creancinhas, guiando-se, para os encontrar, pelo lamentoso som dos seus vagidos?! A historia humana menciona fartura de princezas, que foram excelsas pela sua caridade. Sem sairmos de casa e referindo-nos ao passado, lembrarei a rainha santa Izabel, cuja memoria ainda se não apagou da mente do bom povo portuguez, e também D. Leonor, esposa de D. Duarte -- o Eloquente! -- senhora que, dois séculos antes de Vicente de Paula, estabeleceu em Portugal a instituição das rodas!»

Houve movimento de aquecido orgulho na platéa. A maioria do publico desconhecia o facto. Sallustio continuou :

«Vemos aqui os arminhos ligados á pratica da nobre virtude; vemos além o habito de estamenha exercel-a igualmente !... Ora, só porque era de pobre o vestuário do apostolo francez, a sua caridade deverá ser considerada de melhor quilate?! O modo actual de praticar o bem, não será mais fecundo em resultados ?! De um lado a purpura, do outro o vestir humilde--sempre a caridade. Qual a differença?! Andae, respondei-me, magníficos Catões da philosophia doentia!... -- exclamou ironicamente, ficando com um optimo sorriso suspenso sobre o publico admirado, que lhe mostrou compartilhar aquella opinião, applaudindo-o. Suas magestades sorriram, batendo palmas. O deputado seguiu fallando em tom de quem vinha de um pensar demorado, trazendo placidez no espirito, por ter encontrado na reflexão a verdade:

«O nosso grande século devia distinguir-se dos precedentes, n'isto, como em tudo se differenceia. Depois dos grandes inventos, a philanthropia devia apparecer, para nos demonstrar que podemos ser homens do mundo, homens de sociedade, homens de elegancia, amantes do luxo e, ao mesmo tempo, sentirmos o amor dos outros. Era indispensável proclamar como principio que o culto da religião se póde casar com o culto da arte; que no theatro se póde trabalhar para a virtude como se estivessemos n'um templo; que a tribuna sagrada não differe essencialmente da outra sua irmã, a tribuna profana! O grande século xvi casou o christianismo com a pintura, em Italia; o nosso allia a caridade com o espectaculo! Haverá n'isto alguma coisa de antinómico ?! Não, de certo ! Eu amo infinitamente mais Lope da Vega, que era um santo, quando fabricava autos religiosos, para divertir o povo e os reis de Hespanha, do que o chocarreiro Boccacio, quando fazia contos obscenos, para desmoralisar a Italia e o mundo! (Com grande energia e calor):--Digo, proclamo, affirmo hoje e affirmarei toda a minha vida, que a virtude ha de ser eternamente superior ao vicio, que aquella póde ser alegre como a infancia e este triste como a decadencia!..»

-- Bravo! bravo! bravo! .. Muitissimo bem! -- ouviu-se em toda a sala.

-- Boa cabeça! Boa cabeça! -- pronunciou Lioncio de Mertola.

-- Uma perola! -- accrescentou o visconde da Carregueira. Está ali um ministro.

-- Tempo virá -- disse com azedume o conselheiro Marido Pontino, que principiava a sentir em Sallustio um concorrente á ambicionada pasta.

No trecho em qué o orador se referiu á valiosa subscripção obtida entre os membros da classe commercial, envolvendo a pessoa do seu «illustre iniciador» que era o pae de Palmira, este sentiu-se commovido, por lhe parecer que el-rei olhára para elle ! No fim teve para agradecer ao deputado, um energico aperto de mão e a simples palavra: «Obrigado!»

Sallustio terminou, penhorado pela benevola attenção com que o tinham ouvido, e foi acclamado com repetidos bravos e palmas. Elle sorria, inclinava-se com dignidade, agradecia aos monarchas com olhos respeitosamente velados. Assim engrandecido, não encontrava desproporção de tão vivos applausos para os seus meritos. O bom sangue de montanhez circulava-lhe no mesmo rythmo; estava senhor de si, habituára-se a encarar friamente a gloria, de tanto que a ambicionára. Tinha certesa e o orgulho da energia paciente, que empregára no seu trabalho. A força muscular que possuia, dava-lhe consciência de que chegaria a dominar. Continuava a sorrir affavel e simples aos que vinham para elle, entregando-se aos abraços com certo desprendimento. Procurava lançar na conversa assumptos vulgares, para o não julgarem envaidecido. Porém, quando o Frazuella lhe segredou: «El-rei está contente» sentiu vibrar de goso todo o seu corpo e, n'um aperto de mão, agradeceu ao diplomata.

Aquelle temperamento exhuberante era uma força. A pratica dos homens augmentara-lh'a. Isto que neutra epoca o exaltaria, deixava-o agora sereno. Era como o general que dorme socegado após a victoria. Podia encarar audazmente a vida, sentia-o. «Avante Salustio!» -- pensou de si para si, olhando a sala com exterior calmo e natural.

O quarteto de violino, violeta, violoncello e flauta, sobre motivos da opera Faust de Gounod, foi muito applaudido e bisada a ultima parte. Evolavam-se os sons amorosos de canções ternas no jardim de Margarida ! A musica ondulava no ar, com a cadente tremura de murmurio de fonte campestre!... Logo depois, as notas infernaes das gargalhadas mephisto-phelicas assobiavam irrompendo n'um escarneo, ou então, resumindo a scena á porta da cathedral, eram sons profundos e serenos, de uma amplitude cabalistica, como os esconjuros das feiticeiras á bôca das cavernas, nas lendas escandinavas! A seguir tocaram uma valsa de Strauss: aquella musica nervosa, salpicada de notas altas de tom estridente e aspero, a cortar a melodia de effeitos adormecedores, atirava-se para o ar, alegre e espantada, como as azas de um pombo, escorraçado de sobre a seara! Depois o panno abriu-se para os dois lados, como os cortinados de um leito... Um quadro de parque, com antigas arvores comprimidas em espaço restricto, appareceu por baixo da bambinella côr de céu, que ficara a ondular, agitada pelo ultimo repellão das cortinas. Percebia-se ao fundo um valle, em que fortes pinceladas de azul e branco designavam irregularidades da superficie de um lago ; em que, ainda mais longe, certas manchas negras, accumuladas n'um sentido de despenhadeiro, fingiam de penedos suspensos de collinas... Por entre gargantas escuras caíam cataractas de agua, cuja corrente era significada em filêtes de papel prateado, que reflectiam a luz branca produzida entre bastidores.

E' de tarde, no bello paiz normando, tão poético pelos rios murmurantes orlados de choupos, como pelas suas lendas e pelos velhos fidalgos, de compridas barbas e irreconciliáveis com os modernos tempos... Os raios do sol obliquo produzem crispações instantaneas nas superfícies das aguas e alegram, n'uma suavidade de despedida, as rijas folhas das carvalheiras. A' direita, uma orla de floresta, apontada n'um bello renque de troncos annosos, dá a impressão tranquilla e mysteriosa das noites patriarchaes, dos poemas campesinos, dos gosos simples e monotonos em valles ferteis e amenos. A inclinação do feixe de luz solar torna o ar sereno e calmante... Tudo convida ao amor pantheista e vago... A perspectiva da paizagem é habilmente tomada, distanciando-se o horisonte e elevando-se o céu... Intelligentes combinações dos bicos de gaz das gambiarras e da ribalta projectam claridades sobre fofos arbustos e pyramides de verdura do parque, atravez de vidros corados, que dão á atmosphera artificios de sombras, bem distribuídas. Deusas!... nymphas!... chimeras!... povoae o espaço, vinde em bando tornar paradisíaco e feliz este pôr-de-sol cheio de poesia !...

Mas não!... Entra em scena a baroneza de Orthez, senhora de cincoenta annos! Toda offegante e correndo atravessa um tabolleiro de relva, com as botinas ensebadas de lama. A pequena touca bretã, com laços e fitas roxas, por cima de cabellos brancos, vae excellentemente ao rosto oval e menineiro de madame La-grant. Deram lhe carinhosas palmas á entrada, o que a perturbou; porque o papel lhe determinava que se encontrasse com um maldito carneiro, que se lhe opporia á paisagem, e não era facil ao mesmo tempo acceitar as investidas do cornifero e agradecer a delicadeza do publico!... Valeu-lhe, porém, o animal não ter, como devia, surgido a tempo da floresta, apesar de vigorosamente empurrado de entre bastidores. O publico percebeu que os papeis se tinham invertido: -- em vez da baroneza ser amedrontada pelo lanigero, era este que fugia da castellã. Porém, madame Joujou não se perturbou : -- fingindo evitar o inimigo, que se conservava teimoso com a focinheira no chão, foi dizendo graciosamente, significando afflicção:

-- Va-t-en!... je n'aime pas ces animaux, qu'on ne connait pas!

Evitava o pobre bruto, que tinha evidente empenho em fugir da scena...

-- II me tient! mon Dieu ! mon Dieu ! Mais c'est qu'il me tient vraiment! Au secours ! Au secours ! -- gritava a baroneza excessivamente tremula...

D'esta situação embaraçosa veiu tiral-a um magnifico general burguez de Luiz Filippe: calça larga, bota de cano, presilhas, sobrecasaca com anquinhas, pançudo, chapéu alto, grande nariz, bigode recortado á thesoura e dois quadrilongos de barba presos ás orelhas. -- Eh ! que figura ! -- disseram na platéa. Provocou hilaridade o magnifico abraço dado na baroneza, que, apesar de presumir na pessoa que a vinha livrar do medroso carneiro, que a não perseguia, alguma antiga amisade, continuava a debater-se como se fôra o diabo que a tivesse prendido. Dramond desfigurado em general de Kerdic mostrou-se-lhe então claramente e ella, sorrindo com serenidade, disse: «Que le bon dieu vous pata fiole, par exemple!» e perguntou-lhe pelo seu gamin, ao que o militar respondeu pedindo-lhe informações da sua espiègle. Esta scena prazenteira fez crescer o bom humor de alguns espectadores Sabiam que M.me Lagrant era amante de Dramond e, apesar da séria e respeitavel caracterisação, descobriam sensualidade nos abraços trocados, segredando-o de ouvido para ouvido. Porém elles continuavam no seu dialogo simples e natural fallando dos filhos: Paulo de Kerdic que andava na floresta á caça do écureuil e Helena, que a baroneza informou encontrar-se para o mesmo lado, talvez a copiar qualquer nesga de paisagem melancolica.

Helena, coitadita, viuva aos vinte e dois annos, sem propriamente ter sido casada! Vivia presa na sua dôr singular, considerando a desventura que a enlutára, como aviso do céu predizendo-lhe eterna viuvez... Helena, pobre filha, nunca mais a veria alegre...

Mas como succedera o caso triste e singular ?

A desolada mãe conta-o compungida: No espaço de tempo entre a mairie e o altar catholico, Mayram, o malogrado noivo, é chamado ao serviço com extrema urgencia. Não se póde recusar, elle um official ás ordens do rei! Abandona Helena, a sua noiva apetecida, deixa os convidados, que eram todos parentes e amigos do coração.

Como ella não ficaria inquieta, tenebrosamente inquieta e afiicta! Como todos se sentiram preocupados no peregrino lance! Mayram vae levar ordens ás tropas dispostas na Bastilha, para atacar os populares. Era n'um dos perturbados dias de Fevereiro de 48, em plena fervura de paixões democráticas, aquecidas pela palavra ingénua, mas enthusiasta do tribuno Luiz Blanc. Os revolucionários, reconhecendo no destemido Mayram um inimigo, matam-no no caminho e é por este motivo que a pobre Helena se encontra viuva, sem nunca ter tido esposo.

« -- Ah ! sacredié !» -- exclama o general gesticulando largo.

Toca-lhe a vez, a de Kerdic, de informar a baronesa ácerca de Paulo. Descreve desconsolado, o estado de espirito doentio do seu rapaz. Um triste da peior especie, fruto das pessimas idéas da epoca! O velho, homem pratico, verbera a actual civilisação com algumas sargentices malsoantes para os ouvidos preten-ciòsos da baroneza. Paulo é um poeta á procura da mulher ideal -- ora vejam a maluqueira! Sempre embrenhado em florestas, fugindo do nosso lindo mundo, que só procura gosos continuados. E' um poeta, um pateta, um tolo, tres vezes tolo -- remata em voz de commando o general de Kerdic.

Agora é a baroneza que se mostra desconsolada e rabugenta. A edade já lhe pedia um neto, que lhe enchesse o vasio da existencia, que a espairecesse na velhice. As travessuras d'uma creança trazer-lhe-hiam alguma coisa de inesperado e novo, que conseguisse espantar-lhe a melancolia. Seria para ella uma imaginação infantil e rebelde a entrar-lhe no coração entristecido e a alegrar-lh'o, como o sol atravessa o nevoeiro denso e o desfaz em luz. O velho militar sorria-lhe baboso, acompanhando-a com intergeições approvativas. Por fim explodiu n'um grito do fundo d'alma:

«-- Je suis aussi bête que vous !...»

Mas para elle, homem e bravo militar, o que mais convinha era uma neta rosada e linda. Sobre os seus joelhos, ainda desemperrados, havia de obrigal-a a saltar como uma bola. Só as risadas cristalinas que seria capaz de lhe provocar com frequentes momices, elle, official das campanhas napoleonicas!... Para o sonhado ente, que a imaginação lhe representava como um cherubim, creára com o maior esmero dois lindos carneiros inglezes, dois Diskley, bem conhecidos em toda a Normandia, que haviam de puxar o carrinho da filha de Paulo.

Tão vivo e forte era o desejo de tal descendencia nos dois velhos--verdadeiras creanças ao imaginal-a -- que o general de Kerdic, apesar de espirito revolucionario e livre de crendices, chega a concordar com a mãe de Helena em irem ambos accender duas velas de cêra a Santa Marcella, advogada de casamentos difficeis. A risonha ermida viam na d'ali mesmo, ao longe, na orla da floresta. Como espirito forte, de Kerdic, a principio troça d'estas capucinades, d'estas receitas de bonne femme, mas sempre acompanha a baroneza no seu voto á pastora milagrosa, cuja lenda poetica affirma ter sido esposada d'um principe.

-- N'aquella parvoice não cahia eu! -- segreda o general Gonçalo ao seu ajudante.

Talvez caísse, se tivesse um filho como Paulo e possuisse os dois famosos Diskley, a inveja de todas as redondezas, pela formosura da sua lã e corpulencia taurina. A hora da tarde adormecedora, o ar inebriante conquistando o homem sentimental para o espirito absoluto e ingenuo da natureza omnipotente, podiam-n'o convencer. Depois era tão intima... tão escondida ... aquella devoção !... A velha ermida de santa Marcella, que fazia na paizagem uma nodoa parda, attrahia pela simplicidade. Os dois paes, desconsolados pela falta de segunda descendencia, ligavam as suas aspirações n'esta communhão mysteriosa e de vago presentimento! Paulo e Helena não eram livres? não poderiam casar um com o outro ?!... Oh! nada se oppunha, como cumprehenderam sagazmente os espectadores, penetrando a fina subtileza d'esta comedia repassada de engenhosa candura. A providencia, mãe e protectora caroavel dos que soffrem, se encarregaria de guiar os passos dos predestinados para se encontrarem no copado bosque e talvez -- quem sabe ?! -- na capella da santa!... As duas personagens retiram-se, parece que na procura de seus filhos. Um panno de fundo levanta-se... Ao longe apparece a espessa floresta, na sua complicação de sombras e clareiras traçadas com mestria. Fôra o proprio Cinatti quem pintára o scenario!... A illusão era completa. Uma nesga da ermida da santa apparece com a sua cruz poeticamente entrançada de hera.

A encantadora Helena triste e devaneadora, vestida de roxo avivado de branco, apresenta-se com ar sentimental. Traz debaixo do braço o seu album d'apontamentos de paisagem. E' saudada com vivíssima salva de palmas. A sua presença dá satisfação á perspicácia da platéa, pois que logo se encontra com Paulo de Kerdic, adormecido de espingarda ao lado, á sombra d'uma recatada moita. E' pela respiração alta que Helena conhece a proximidade de creatura humana!... Afastando ousadamente o macisso de verdura exclama, com uma candidez quasi infantil:

« -- C'est un homme !»

O visconde de Pomarini sae de entre a ramagem estremunhado e um tanto confuso. Ao ver uma senhora vestida de escuro, com um album sob o braço, espanta se:

« -- Voilà !... Qu'est ce que c'est ?!»

-- Ora que havia de ser ? Algum urso branco! -- chasqueou o critico Torres, que desde o principio da noite, se mostrára em espirito hostil contra a representação.

Mas a parte selecta e valiosa da platéa era d'outro entender e saudou vivamente o diplomata. Logo ás primeiras palavras a condessa de Frazuella, applaudindo-o, accrescentava para uma parenta do italiano, que lhe ficava perto:

-- II est adorable, ce diseur !

Helena e Paulo ficam timidos em frente um do outro ! ella arrependida da sua ousadia, elle sem compre-hender logo a situação. A filha da baroneza pede-lhe desculpas da temeridade, e Lioncio de Mertola, que era pouco entendido em engenhos de comedias, diz por entre dentes:

-- Então para que diabo o acordou ?

-- Papá!... Podem ouvir ! -- observou Palmira.

-- E' mesmo assim! -- insistiu o capitalista, forte com a verdade da sua observação, applaudida pelo conselheiro Maurício Pontino, que também encontrára tolice na surpreza da sobrinha do marquez de Tornai.

Os, até ali desconhecidos, bem depressa se tornam familiares nos seus pensamentos, servindo-se de um magnifico dialogo, tecido de banalidades e coisas lindas! Em discorrer indefinido durante quinze minutos, cada um ostenta o brilho seductor de uma linguagem culta, chegando Paulo de Kerdic, talvez mesmo sem o querer ou esperar, a ter nos lábios vibrateis d'enthusiasmo a fatidica palavra -- amor! -- que pronunciou dando-lhe sonoridade d'ocasião.

«-- Oh ! l'amour -- exclama a gentil viuva, com sympathica reserva, eivada de descrença.

O visconde de Pomarini caminha para Florinda em dois passos verdadeiramente theatraes. Levanta a magnifica cabeça, atirando para a nuca as loiras madeixas, e ostenta-se nas seguintes palavras, pronunciadas com emphase:

«--Je l'ai nommé!... C'est que l'amour, visible ou eaché, alimente seul les légers commerces du monde et seul leur donne le mouvement et la vie! II forme, entre vous et nous autres, la trame subtile et inaperçue des dialogues les plus irréprochables: supprimez le, tout intérêt s'affaisse ettoute conversation tombe. On cause de toute autre chose; on le croit bien loin: il est là cependant, et si, par exception, il n'y est pas et ne peut y être, on meurt d'ennui.»

-- Bravo ! bravo! bravo!... -- ouviu-se em diversos pontos da sala.

A nervosa platéa mostrou-se enthusiasmada significando-o em applausos! Sympathica apotheose do amor, pronunciada com nitidez de mestre! Não a declamaria melhor, nem com mais bravura de coração, qualquer dos primeiros actores da Comédie, diziam-no entendidos. O visconde parecia ter na garganta a suavidade de Romeu e a estridencia commovida de Otheles. Florinda ouviu-o nervosa e quasi espectadora de tão bello dizer.

-- Oh! como é bello, como é bello! -- exclamou transportado o visconde da Carregueira, dirigindo-se á filha de Mauricio Pontino. -- Quando nos julgámos mais distantes do amor, mais presos estamos em seus braços divinos ! Este mundo sem o amor é um aborrecimento !...

Ali bem perto ouviu-se uma voz magnifica dizer de modo que foi ouvida:

-- Formoso trecho!... Admiravelmente pronunciado !...

Era o glorioso Sallustio que fallava gesticulando como se estivera n'uma tribuna.

O dialogo continua agora complexo e sem objecto. Helena, a inconsolável viuva, mais familiar e quasi irónica, dá alvitres a Paulo, o sonhador das mulheres impossíveis, para sair da situação. Esposa submissa, que deixe a vida tranquilla de ciúmes, só uma velha! «Les vieilles sont plus communicatives» -- diz aquella joven, que não tivera marido.

-- Elles sont trop !» -- responde o austero Paulo de Kerdic em tom «bourru».

N'esse momento apparece a coincidencia prevista e esperada desde o começo. Helena descobre a ermida de santa Marcella ! Encantada coma nesga da paiza-gem normanda, principia logo a transportal-a para o seu album. Elogia-lhe, o filho do general, o lapis certo e ligeiro. Porém, como a ideada e gentil viuva de Mayran mettesse, por um capricho de sua imaginação, n'aquella paisagem recatada, um elephante, Paulo fica apprehensivo sem a comprehender !...

Vai cair a noite, começa a diluir-se a luz na treva. A noite, com os seus mysterios, accarreta receios, se na mesma clareira d'um bosque se encontram, á hora do crepusculo, duas creaturas novas, capazes de amar. Mesmo que seja a poderosa mão da Providencia, que os tenha guiado, o perigo não deixa de existir. Helena reconhece-o e quer retirar-se. Paulo mostra-se penalisado por esta resolução, confessando poder estar ali horas infinitas a ouvil-a. Mas obedece-lhe e vae buscar a espingarda, que deixára encostada a uma arvore, com o fim de acompanhar a filha da baroneza d'Orthez a sua casa.

Este era o verdadeiro motivo que levára Helena a acordal-o, ainda que no momento se fingisse surprehendida. Aqui tinha Lioncio de Mertola a explicação. A este tempo já Kerdic estava preso do mal de amor. Sentindo-se louco e enamorado, declara abruptamente, que n'elle tem fallado o orgulho, porém que tira a mascara para se declarar. Evoca o nome de Deus, como symbolo do sentimento puro ! Ama-a, deseja-a para sua mulher: é esta a primeira vez na vida que crê no casamento.

Helena digna e sorridente, estende-lhe a mão, como signal d'adieu -- de bon souvenir -- d'amitié. Paulo, timido e receoso acceita-lh'a submisso e vae a beijar-lh'a, quando o general de Kerdic entra, seguido da baroneza de Orthez, e grita numa voz trovejante de commando:

« -- Sur la joue, mon garçon ! sur les deux joues, ou tu n'est qu'une poule mouillée!»

Os dois paes casam os dois filhos. A platéa levanta-se transportada de enthusiasmo! Ramos, coroas de largas fitas com dedicatorias e pombos brancos são levados a madame Augustine Lagrant e a Florinda, por tres das desgraçadas creanças soccorridas com este opulento beneficio, e que para a circumstancia tinham sido vestidas de branco. Os homens e senhoras das primeiras filas de cadeiras applaudem com os braços estendidos, os rostos animados de riso bom e cordeal. Por fim, da parte da rainha, entraram creados de sua libré, com dois ricos bouquets. Pomarini e Dramond entregam as regias flores ás suas companheiras. Depois, todos quatro, numa curva respeitosa de vassallagem, collocados diante do camarote real, agradecem a benevolência carinhosa do applauso de suas magestades, significando cada um, com a mão sobre o peito, visivel commoção !

A poesia de Alberto Cerveira Luz e Caridade, expressamente escripta para esta noite, não recolheu applausos sufficientemente remuneradores do magistral trabalho. Por isso, os seus amigos e camaradas nas lides da imprensa pediram em clamoroso unissino, que elle recitasse A Deusa, que sempre fôra a sua corôa de gloria. Queriam ver levantado á altura merecida aquelle enorme talento.

A Deusa, era uma composição no genero lamartiniano toda fogo e sonho. Compozera-a n'um arrebatamento de amores loucos por sua prima Gabriella. Essa entidade sublime, essa deusa abstracta, viera do cinzel de Phydias, tinha estado nas festas impudicas de Roma, ressuscitára-a Raphael na Renascença, e nos clarões da revolução franceza appareceu encarnada nas formosas guilhotinadas. A Deusa era a Mulher, o paganismo, a carne turbulenta, a fatalidade organica, a perdição pelo amor. O publico distrahido e misturado d'esta noite não lh'a podia comprehender, e por isso ainda Alberto da Cerveira não foi acclamado, como os seus amigos entendiam ser de justiça. Isto irritou o poeta, que exprimiu o seu resentimento perante o amigo Fonseca, da Alfandega, que o lamentava, dizendo:

-- Deixa estar ! E' uma corja! (referia-se aos das primeiras filas de cadeiras). Hei de pagar-lhes na mesma moeda. Acinte por acinte. No meu folhetim da semana verás tu. Eu quando quero sei-as dizer -- ameaçou de fronte erguida.

IV

O mais interessante acontecimento da noite seria, por certo, a representação do Bijou de la Reine, em que entravam Josefa Lencastre e o Cerdeiral. Nos dias antecedentes ao da festa desejada, em palestras e jornaes, muito se fallou e alludiu a isto. Sallustio Nogueira, com a magnificencia da sua voz baritonal disse n'uma reunião de pessoas selectas: «Verão: não se representa melhor em Paris, nem em D. Maria» -- opinião que se divulgou em salas e botequins, como vinda de pessoa que tinha auctoridade e assistira aos ensaios.

Mas o que verdadeiramente acirrava a curiosidade era saber-se das presumidas relações amorosas entre os dois principaes interpretes. Consideravam o barão homem perigoso e bom tactico em conquistas que a moral prohibe; Josefa, nova, fresca, bonita, era uma provocação, um optimo morango para aquella bôca de guloso. Além d'isto, cabecinha leve de lavandisca, que em solteira muito doidejára na procura d'um marido, novo e elegante, que não encontrára por não ter um dote. O general Gonçalo definiam-no como velha náu em que a viscondessa d'Aguas-santas embarcára a sobrinha, para viagem incerta. Tudo isto se rememorára no correr do espectaculo, e foram muito binoculados Josefa e o marido, quando no começo estiveram junctos, mesmo em frente d'El-rei, onde o ministro se collocára de proposito, para fazer de modo assignalado os cumprimentos á familia real. Troçavam-no por entre risadinhas, chalaçavam do seu aspecto de movei velho envernisado de novo; as malicias attingiam-lhe a honra domestica. No intervallo que precedeu o abrir do panno, para principiar a representação do Bijou, crescera a malevolência, o sussurro das conversas envenenadas ia pela sala, forte e galhofeiro, como zumbido de milhões d'abelhas. O maldoso folhetinista Cerveira certificava a um grupo d'amigos alludindo ao general:

-- Elle sabe-o perfeitamente, mas não lhe faz conta dar-se por entendido.

-- O homem ignora-o -- disse circumspecto o critico Torres.

-- Então é burro -- rematou Cerveira.

O Fonseca, da Alfandega, sempre no proposito de se mostrar, ao corrente do que se passava nas alcovas lisboetas, esclareceu, affirmando de modo a não consentir duvida, que tudo era verdade: que o general estava bem instruido por cartas anonymas que recebêra. E concluiu como esclarecimento:

-- Os dois já estiveram para se bater. A coisa apasiguou-se, para não serem desagradaveis áquelle.

Designou a pessoa do monarcha, que, com olhar attento, mas vago, analysava a composição da platéa incaracteristica.

Na roda da mulher do ministro da guerra, a espectativa era ainda mais interessada. Circulavam de novo certos boatos, repetidos e commentados com phantasia. As observações d'estes maliciosos eram mais certeiras e perfurantes!

Dizia se, como sabido e bem averiguado que, no anno precedente, em Cascaes, o Cerdeiral fizera um verdadeiro cerco a Josefa. Algumas pessoas levavam o facto á conta d'essa especie de galanteio inoffensivo, praticado em todos os grandes centros: assim se entende o flirt em Inglaterra, trocar flores, dar no banho a mão a uma senhora assustadiça, etc... Que diabo! -- são, estas, coisas triviaes, sem alcance peccador, delicadesas proprias da sociedade, onde se usa e ama passar alegremente as horas, sem mazorrices burguesas de mau gosto. «Havia mais que isso!»--clamavam as linguas farpadas dos censores. Bastava attender ao que se passava nas soirées em Cascaes, que era muito, certamente : o Cerdeiral dançava todas as noites com Josefa e só um cego é que não veria como a chegava a si, os segredos que lhe dizia e o modo como lh'os dizia. Isto era impudico! N'outros logares : na praia com o pretexto de mostrar os vapores que passavam, nos passeios, nos pic-nics arranjavam sempre meio de ficarem sós, longe do marido e de toda a gente. Um verdadeiro escandalo, pelas pessoas honestas reprovado. Pareciam noivos, pombinhos a arrulharem no cimo de telhados ao sol... N'uma magnifica noite de luar, na Bocca do Inferno, afastados do seu grupo, o barão dissera a Josefa: «Eu é que o não posso tolerar!» Isto ouvira-o Albano de Mello, que estava atraz d'um penedo, e todas as pessoas a quem elle o repetiu, entenderam que se referia ao general. Ainda por cima, depois de o deshonrar, lhe tinha odio! Só uma boa estocada, que lhe atravessasse o coração. N'essa mesma noite no Club, Josefa acceitára tres valsas do Cerdeiral, o que completava o escandalo e confirmava as suspeitas.

Podia-se julgar tal procedimento proprio de mulher honesta? -- perguntavam. Qual o seu dever depois da declaração de lhe detestar o marido ? Nunca mais o consentir ao pé de si, isto até no caso de já serem amantes, como era verosimil.

-- Fraquesas desculpaveis -- entendeu o sensual visconde da Carregueira. O caso é que o tratante do barão se lambe com um optimo boccado.

-- Oh ! se lambe ! -- concordou D. Agostinho.

-- Aquillo é toicinho do céu, amigo ! E que rico toicinhinho! Quem me dera...! -- commentou o libidinoso juiz do Supremo, todo tremuras.

Tambem no entender de Dramond e da viuva La-grant, estes amores vinham d'essa brilhante temporada de Cascaes. Costumavam elles ambos tomar banho junctos, como era seu direito, porque eram livres. Dirigiam-se á praia, bras dessus, bras dessous, como dois camaradás, n'um dia em que a barraca de Josefa ainda estava armada, apesar de passar das onze horas. A creada estava a distancia de vigia; quando os reconheceu, deu alarme, e o Cerdeiral surgiu com rosto sobresaltado... Como os não podesse evitar, passou rápido, dizendo: Allez, allez, le bain est superbe. A' mulher do general só a viram apparecer muito depois... Isto dera-se numa quinta feira, dia em que o general partira cedo para Lisboa, com o fim de preparar o despacho para a assignatura real Pois apesar de terem sido presentidos n'esta aventura, nem por isso á noite deixaram de se apresentar no Club muito chegados e intimos.

A magra e invejosa D. Cesaria, mulher do ministro da marinha, ouvindo taes revelações, corroborou-as, certificando que antes d'isso já tinha havido coisas bonitas em Cintra. Pessoa de toda a confiança vira sahir o barão de casa do general em noite em que elle ficára em Lisboa, por causa do conselho de ministros. Como o caso fôra conhecido, ella não podia esconder o que sabia, pois de contrario vinha a envolver-se n'uma cumplicidade infame. Procurava sacudir á agua da sua capa, julgava isto procedimento honesto, attendendo á camaradagem dos dois maridos no ministério! A consciencia mandava-a ser explicita, portanto dizia o que era do seu conhecimento. E proseguiu: Antes de Cascaes, já em Cintra se tinham passado coisas muito esquisitas. Todos tinham percebido que os dois se namoravam, não é verdade?... Pois ella, D. Cesaria, por si observára, certa noite, um caso que ficava agora explicado pelo subsequente da barraca de banhos, e pelo da sahida furtiva da casa do general. Fôra passear depois do jantar com muitas outras senhoras, para os lados da Estephania. O luar era claríssimo e ella, pelo braço de Lucia, sobrinha do marquez do Tornai, alongára-se na estrada de Mafra. N'um sitio quasi ermo, perto de uma casa isolada, encontraram um trem parado. As lanternas estavam apagadas e o cocheiro assobiava na almofada. Lucia, talvez receiosa, propoz retrocederem; mas ella, como atraz'vinham os outros, disse-lhe sem mais explicações:

-- Que belleza de luar! Só até ali adiante, minha pomba. E' uma pena ir a gente metter-se em casa com uma noite tão linda.

Lucia accedêra sem presumir o seu intento. Deram mais alguns passos. Fôra uma inspiração... Adiante passeava Sallustio, que, pilhado de surpreza e apertado com perguntas por D. Cesaria, titubiou algumas explicações, pretextando que esperava um amigo, cujo nome não revelou:

-- Temos mysterio, doutor ? -- dissera a mulher de Evaristo de Mello.

-- Não, minha senhora! Uma pessoa que vem da Ericeira.

Não acreditara. Sabia-se da protecção que Josefa dava a Sallustio. Fôra ella quem o fizera deputado e o apresentára na sociedade. Por isso não custava muito a crêr que se prestasse a ser o encobridor de tão criminosos amores !... Bons estomagos, que aturam toda a especie de comida, sem engulhos !... Mas D. Cesaria protestou não ser enganada. Respeitando a innocencia e os dezeseis annos de Lucia, não lhe communicou as secretas desconfianças, que tinha; mas, logo que chegou a Cintra, o seu primeiro cuidado foi procurar Josefa.

Não estava; tinha ido para casa da tia viscondessa -- disseram-lhe. Correu lá, sentindo augmentar o interesse por esta peripecia galante. Qual Josefa! Quem é que a tinha visto?!.. . Julgavam que estivesse para S. Pedro, em casa do ministro inglez. Pouco depois chega a mulher do general, de carruagem. Tinha ido esperar o marido, que devia chegar de Lisboa -- disse. Porém o ministro não viera e ella voltava só! Todos em casa da viscondessa acreditaram esta enorme patranha, que a simulada pespegou com ar de seriedade, só proprio das mulheres, que andam acostumadas a taes aventuras! Um descaramento assim !... Se as outras pessoas tivessem o espirito prevenido como ella, não acreditariam com tanta simplicidade as palavras d'aquella descarada. A situação acabou de se definir e aclarar para elles, quando entraram o Cerdeiral e Sallustio, muito intimos, pelo braço um do outro. O amigo, que o deputado esperava da Ericeira, também não tinha apparecido. Podéra ! Esse amigo e o general eram um e o mesmo, que se reuniam no barão. Ficára verdadeiramente furiosa ! Para não fazer o disparate de lhes dizer tudo na cara, retirára-se mais cedo da casa da viscondessa. Tivera toda a noite uma enxaqueca, que a não deixou pregar olho !... E resumiu grosseiramente :

-- Aquillo estavam lá ambos, na tal casinha isolada, e o outro a fazer de sentinella.

-- Eu jurava-o sobre umas Horas, -- disse o visconde da Carregueira, que entrava sempre em todas as maledicências galantes.

Por isso todas as pessoas que sabiam d'estasminucias tinham o maior interesse na representação do Bijou de la Reine. Antegostavam o momento de ver os dois dissimular os sentimentos, que os ligavam, sob a emprestada capa de personagens de comedia. Não havia de ser mau ouvil-os fallar de amor publicamente, diante do general!... Talvez se abraçassem com ternura, talvez dessem beijos fervorosos... E o marido ultrajado, mesmo sabendo da falta de sua mulher, não poderia levantar-se diante do rei e da rainha, a denunciar-lhes a adultera! Cómica situação!--consideravam. Os infames haviam de impunemente incluir nas palavras decoradas abomináveis desejos! Recordariam, talvez, scenas lascivas da árida charneca de Cintra, á luz da lua amorosa; ou, então, as torpezas escandalosas da barraca de banhos, sobre a branca areia da praia de Cascaes! Oh ! como o impudor póde tomar aspectos caprichosos e accommodaticios !...

O juiz do Supremo Tribunal considerou philosophica, mas benevolamente:

-- Os factos dignos de censura, tanto se encobrem sob velludos, como debaixo de pobres andrajos!

-- No emtanto temos de confessar que tudo isso é muito divertido! -- rematou D. Agostinho, que, reparando na Aguas-santas, que estava perto, acrescentou prudente: -- Cautella! A tia olhou agora para nós.

Depois da orchestra ter tocado a symphonia da Semiramis, as cortinas do panno de bôca principiaram a afastar-se. O silencio da parte dos espectadores interessados era comprimido e attrahente!...

A scena appareceu vasia: representava sala de aspecto architectural, no gosto das de Versailles, ornamentadas sob a direcção de Le Brun. Pilares de carvalho de Hollanda, com incrustamentos de bronze, para dividir as paredes, conforme os verdadeiros lavrados pelo inexgotavel buril de Lepantre, fingiam se em diversos painéis; uns rectangulares, outros ovaes cercados de simples baguettes. Misolas de pau entalhando, similhando escuro ébano e madeira violeta das índias, enchiam graciosamente os espaços vasios de quadros, sustentando pequenas jarras do Japão e estatuetas antigas. Sobre a porta principal, ao fundo, satyros graciosos, copiados das estampas que representam o celebre cabinet d'amour, imaginado por Lesueur, eram sustentados por columnas de mármores de variadas côres. As decorações de Ramanelle, Herman e Patel, tinham sido imitadas em diversos claros das paredes, em volta das janellas lateraes e das portas, a cujas almofadas barrigudas se pegavam as armas de Castella. Ao fundo-esquerda, fingia-se em perspectiva conveniente a chaminé à la royale, encimada de um magnifico espelho. Tudo isto era do pincel do proprio Cinatti.

Um rico e verdadeiro movei de Boule, em pau rosa e prata, ficava á direita. Em frente da rara preciosidade, pertencente a um opulento estrangeiro residente em Lisboa, via-se uma mesita d'ébano, propriedade d'um titular portuguez. Aos cantos do fundo dois candieiros de bronze, luz d'azeite quebrada em globos brancos, espalhava claridade leitosa. Cadeiras e poltronas, em seda e veludo antigo, espalhavam-se pela sala.

Pouco depois entraram a rainha pela mão do rei de Hespanha, precedidos dos altos dignitários da sua côrte faustosa. Todos se curvaram reverentes á sua passagem! A toilette dejosefa, por certo copia de estampa representativa da grande Pandora, boneca annualmente enfeitada por M.me de Maintenon, para dar ao mundo a lei da moda, deslumbrou. A magnifica saia de seda de Lyon era guarnecida de rendas d'oiro e prata, conforme as inventou Langlée, de feiticeira memória no fim de século XVII; o corpo do vestido, direito adiante, terminado em bico, fazia sobresahir a amplitude da saia. Na cabeça, não quiz supportar os phenomenaes penteados do tempo, que o duque de Saint-Simon affirma chegarem a dois pés de altura: -- uma pyramide de estofo engommado em fórma de tubos de orgão, com laços, fitas, plumas, musselina trabalhada a oiro e prata, tudo sustentado pelo arrimo de metal denominado palissade! Preferiu o commodo laço, que usára mademoiselle de Fontage, para prender no alto os cabellos, deixando-os depois escorrer em caracoes graciosos, que lhe enquadravam o rosto. O diadema de rainha exornava-lhe a fronte airosa, um rico collar de pérolas e diamantes cobria-lhe a garganta magnifica, das orelhas pendiam-lhe brincos luzentes como estrellâs! Porém, todas estas joias, talvez presentes do famoso avô de Filippe de Anjou, que tinha a trabalhar para si os dois Courtois, Laburre, Vincent e Roussel, não podiam supprir o querido bijou, que a joven princeza ambicionava e cuja falta lhe trazia o rosto annuviado.

O rei e os fidalgos da sua côrte tinham-se vestido a primor. O tricorne de abas levantadas, presas com botões de diamantes, era ornado de pennas vermelhas. A farta cabelleira, frisada como o pêllo dos cães de agua, chamada no tempo juba de leão, cobria-o até meio corpo, polvilhada de branco e perfumada de violeta. Quando os grandes de Hespanha tiraram solemnemente os seus chapéus, para se despedirem dos regios esposos, viu-se que usavam, o famoso topete imaginado pelo marquez de Fontange, com o fim de conservar os cabellos graciosamente levantados e repartidos para traz e para os dois lados.

A espada horisontal saía por debaixo do amplo justaucorps do rei, especie de gibão de abas compridas, no caso presente de velludo, agaloado de arminhos, que tanta magestade garantia, quando se moviam, aos que o usavam. O cordon bleu, insiinia de cavalleiro do Espirito Santo, trazia-o o monarcha sobre a sua veste ornada de botões de oiro. A' direita via-se-lhe suspenso o regalo de pelle de marta. Os sapatos de tacão alto, à la cavalière, com a comprida pestana, afivelavam-se em prata coberta de brilhantes. A chaconne de setim azul e rendas de Alençon cobria-lhe o peitilho e estava presa á gravata, por um grosso diamante, que brilhava como um olho de luz. Este rico trajo, em que os cabellos da juba de leão talvez tivessem vindo, como outr'ora, das camponezas de Flandres, completava-se com a alta bengala de castão coberto de esmeraldas e rubis, tendo pendente o laço franjado de oiro.

Todos os fidalgos, apesar de simples comparsas, que em scena se demorariam segundos, vinham primorosamente vestidos, como o barão. Eram rapazes da melhor sociedade portugueza e do corpo diplomatico. Os seus amigos, que estavam na platéa, desejando perturbar a seriedade de sua natural compostura, fizeram ligeiro sussurro, á sua entrada, o que logo foi reprimido com um psiuh!... de censura. Contiveram-se os provocados no indispensavel respeito; depois de saudarem os monarchas, retiraram-se ás arrecuas, compassadamente e com os olhos no chão, até desapparece-rem. O rei Filippe V, gracioso, mas com altivez real despediu-os:

«Dieu vous garde, messieurs!.........................»

Todos os binoculos da sala, principalmente os interessados binoculos das senhoras, caíram sobre a deslumbrante toilette de Josefa Lencastre! Os homens, esses, apreciando-a na frescura da sua carne, achavam-n'a deliciosamente formosa, formosa a ponto de lhes crear estremecimentos de goso pelas imaginações que provocava. Parecia uma verdadeira rainha na doçura e magestade do seu porte! Muita gente, instinctivamente, levantou os olhos para o camarote real, fazendo imprópria comparação. E quando Josefa Lencastre, após a saída dos fidalgos, se curvou reverente e disse, imitando a phrase de seu esposo: «Dieu vous garde, mon roi!» o general Gonçalo ficou desalentado; porque reconheceu não merecer aquella soberba mulher!

Da pronuncia sentida d'esta simplçs phrase, a platéa concluiu quanto Josefa estava possuiria do seu papel. O rei, surprehendido pela inesperada despedida, pergunta á rainha se o deixa. Ella responde com voz maguada:

«............................Oui, je rentre, chez moi.»

Filippe de Anjou acha incomprehensivel que Luiza evite os seus ternos carinhos. Não a quer assim inimiga, n'este momento em que tanta formosura o inebria! Aquelles seus olhos são feixes de luz brincando com flores, brilham como o fogo, d'esse fogo que lhe incendeia os nervos. Aos madrigaes do esposo, exprimindo fremente sensualidade, a rainha responde como quem sente no coração a ponta de um espinho e, ao mesmo tempo irónica e reprehensiva, pronuncia a celebre phrase, cuja interpretação tão discutida fôra nos ensaios:

«Oh! vous êtes ce soir, en verve poétique!

«Phébus de ses accords distrait la politique.»

E depois mais severa e accentuadamente:

«C'est très bien, monseigneur, gardez, ces beaux élans,

«Car je prendrais plaisir à ces sonnets galants,

«Si je'n'étais d'humeur triste et toute contraire,

«Et n'avais fait le voeu de ne m'en point distraire.

«Bonsoir donc...»

Sente-se offendido o esposo com tal desprendimento.

Pede-lhe a mão, que Luiza lhe estende com simpleza conjugal. Conservam-se ambos silenciosos, o barão com o braço de Josefa n'um contacto, que na platéa se principiou a julgar demorado. Palpal-a-ía elle com sensualidade, deixar-se-ia ella possuir com deleite?!... Josefa com entoação, que parecia conter malicia, pergunta:

«Que voulez vous encore, dites?......................»

Pareceu pergunta, esta, menos própria de senhora casada. Duvidou-se que fosse correcto, mesmo no theatro, uma esposa honesta, dizer a um homem, que não era seu marido, se elle queria mais alguma coisa, do que possuir d'ella um braço de pelle fina, orvalhada de desejos!...

O conselheiro Mauricio Pontino perguntou ao visconde de Carregueira, que ficára a seu lado:

-- Acha aquillo decente ?

O juiz do Supremo, que entretinha toda a sua vista e attenção a binocular a magnifica carnadura de Josefa, não respondeu e o pae de Clara insistiu:

-- Ella, mulher do general Gonçalo, já consente que o barão lhe tome um braço, o qual possue muito á sua vontade, como vê... Não vê?!...

-- Vejo, é theatro.

-- E' theatro, é theatro! D'aqui se vae ao mais. Attenda como elle se demora. Acha decente ?

-- Acho, conselheiro, e peço mais; porque estou a gostar.

-- Pois o meu caro amigo é de bom comer! Se um dia tiver mulher, deixe-a com elle, que ficará bem arranjado. Olhe que lh'a prega...

O severo olhar de Mauricio encontrou-se com o do ministro da guerra no momento em que este affastava a vista da scena, que o incommodava.

O barão, emquanto ía ameigando graciosa e demoradamente a setinosa pelle de Josefa, inquiria dos motivos occultos de tanto agastamento. A rainha, irónica e adversa, censura-lhe a linguagem, os olhares ternos, que mais parecem de estudante amoroso do que d'um marido e d'um rei! Filippe responde, dando ás palavras inflexões de amante surprehendjdo duma recusa, que tanto lhe está augmentando o appetite da carne:

«Pourquoi donc un mari n'aurait-il pas le droit

«De parler comme il sent, quand il sent comme il doit?»

-- E' verdade, é verdade! -- pensou enrubecendo o general Gonçalo. Em casa recordaria a sua mulher estas sensatissimas palavras. Castigaria, por esta fórma, a má vontade incomprehensivel de Josefa para com elle, em certas occasiões...

Mas o rei continuou n'um crescendo de amor, fallando em linguagem caprichosa, repassada de brandura ineffavel. Com a bôca muito chegada ao rosto da princeza, dizia-lhe coisas ternas, em modulação cantada e lubrica. Porventura, seu avô ter-lhe ía entregado a corôa, para o tornar incapaz do goso do amor?!...

Mocidade, illusões, esperança. .. poderiam caír-lhe da fronte, arrancadas pela mão sêcca do velho rei? Esse que o collocára n'aquelle throno, conceberia a insensata idéa de lhe transformar rapidamente a côr dos cabellos e tornal-o insensível ao fogo dos olhares da sua amada, da sua esposa? Perguntasse antes Luiza a rasão pela qual na primavera creadora os bosques se enchem de ninhos; perguntasse antes porque na aurora o céu se incendeia; mas não lhe perguntasse, outra vez, o motivo pelo qual se sentia ebrio, louco, verdadeiramente louco de paixão, quando a tinha juncto a si!.. E, apertando-a mais contra o seio, na terna liberdade de um marido, olhando-a meigamente na expressão indefinida de quem a ama com elevação e transporte, pronunciou as seguintes palavras, que eram uma evocação formidável do seu fremente sentir :

«Vous avez les cheveux blonds avec les yeux noirs,

«Toute votre être m'apporte une extase suprême,

«Je suis jeune, il fait nuit, tout repose... et je t'aime !»

D. Cesaria, triumphante por ver corroboradas as suas denuncias, segredou á mulher do ministro da justiça:

-- Podéra! E' noite... não ouve ninguem... amam-se... e toca. Ora a pouca vergonha!...

O general Gonçalo, na galeria, afastára o busto de modo a não ser visto da plateia. Tinha o cerebro batalhado de funestas apprehensões! A sua cólera crescia!... Unia nuvem sanguínea lhe passou diante dos olhos, ao ouvir um escandaloso beijo, que o barão deu em Josefa! Do seu espirito apoderaram-se com força idéas tremendas de vingança! Tudo aquillo, assim começado, poderia redundar n'um verdadeiro ultraje ao seu nome. Tinha a pobre alma repassada de ciume e vergonha. Considerava-se o verdadeiro culpado de sua mulher receber em publico beijos d'aquelle canalha, que lhe estava enodoando a vida austera. Aquelle seu odio era de brazas e escaldava-lhe dolorosamente o coração. Poderiam dizer-lhe: «Isto é fingido, isto é simulação de comedia.» Com taes coisas não se brinca; não se dão em publico beijos n'uma senhora casada! Aquelle que o Cerdeiral dera em Josefa fôra muito verdadeiro e Josefa acceitára-o com naturalidade e quem sabe se o recebera com goso! Quantas pessoas o teriam commentado malevolamente! Bem vira que muitos olhares ironicos o procuraram na galeria, quando elle se subtraíra á tremenda flagelação, retirando-se para não ser visto.

Mas lá lhe veio certo allivio e compensação no modesto e recatado retrahimento da rainha, recusando ao seu rei e ao seu esposo a continuação da posse da sua carne. Fal-o constrangida e docemente, mas sempre se livra do malicioso contacto. O general desafogou n'um suspiro largo, ainda que não gostasse d'ouvir Josefa dizer com tristeza attrahente :

«Vous m'aimez, n'est-ce pas, dites ?...»

Pois deu logar a que o miserável do Cerdeiral respondesse com transporte, que muito bem poderia não ser fingido:

«......................Avec délire!»

Para se distrahir e patentear que tinha toda aquella scena como dever de representação simulada, perguntou a um dos seus ajudantes:

-- Então que lhe parece?

-- Admiravel! São dois verdadeiros actores !

Também este achava magnifico ! Ora não ter a liberdade de lhe dizer que trouxesse para, ali sua mulher, que era egualmente nova e bonita, sugeitando-a a receber publicamente beijos d'um mariola como o barão ! Havia de saber-lhe a pimenta, se é que a amava, como elle amava Josefa. E resumiu com secura o estado da sua alma :

-- Muito palavriado. Não acho natural.

-- Oh !... -- discordaram os dois officiaes. O mais natural possivel...

Ao mesmo tempo, o Fonseca, d'Alfandega, á vista das palavras de paixão do simulado Filippe d'Anjou, que mettia excessivo calor e sensibilidade nos seus juramentos, dizia para Alberto da Cerveira, ratificando as suspeitas anteriores:

-- Então quel-o mais claro ?

-- Tudo uma desmoralisação! -- rugiu o poeta, apanhando n'um relance as cadeiras de frente. Aquellas são peores do que as que se vendem, porque se entregam por vicio e não por necessidade de viver.

Tracta-se a seguir do collar tão desejado pela rainha. E' uma insignificante joia, de valor não muito subido. Um capricho dos dezesete annos, juvenis e fogosos, da duqueza de Saboia. O rei, apesar do seu amor, recusa-se a satisfazer o appetite da esposa, em nome dos interesses da nação! Os seus deveres de príncipe, sentado n'um throno estrangeiro, impõem-lhe, com maior força do que se nascera hespanhol, a necessidade de poupar o seu povo, que sendo, de caracter brando e submisso, não deve ser insensatamente expoliado. Luiza não comprehende taes motivos, só sabe que, quando era solteira, em casa de seus paes, lhe satisfaziam as vontades. Via que a troca da corôa ducal pela corôa de soberana, não era tão vantajosa como lhe tinham feito acreditar !... Que proveito tirava ella de compartilhar as rudes fadigas de um esposo, todo envolvido nas intrigas da diplomacia e nas aventuras da guerra!... Deu-se-lhe com todo o amor, não como rainha, mas como namorada. Elle recusa-lhe a unica recompensa de tantos carinhos e de tantos gosos, como os que ella lhe prodigalisava. Muito bem, diz a joven princeza :

«Chacun a son trésor qu'il garde ou qu'il dépense ;

«J'ai le mien...................................

«Bonne nuit, monseigneur........................

e fecha-se no quarto de modo brusco e accintoso.

O monarcha, contrariado e febril, fica só em scena. Durante um longo minuto, n'um silencio de quem se vê injustamente incomprehendido, fixa o olhar na

porta por onde desapparecêra a sua esposa, a sua amada. O Cerdeiral, com expressão melancholica, de realidade flagrante, diz:

«Dans ces discussions la femme est la plus forte!

«Elle a le droit du faible, et, lorsque son époux '

«Veut lui parler amour, elle répond verrous '»

Com ser rei não se julga tão feliz, como o mais humilde dos seus vassallos! A'quella hora da noite, quando, até na mais pobre choupana, todos se sentem compellidos a viver para o amor, o joven monarcha, sem a mulher que adora, vae gastar horas, que desejaria empregadas no prazer, folheando papeis de negócios de estado !... Mas elle se vingará encontrando meio de punir aquella estranhavel recusa. Quando Luiza perceber que o esposo já não é o amante, o seu orgulho de rainha se abaterá diante das necessidades da mulher ! O rei Filippe V recolhe-se, assim mal humurado, aos seus aposentos!

A scena fica vazia por alguns instantes, durante os quaes na plateia cresce o sussurro dos commentarios. Na roda da Frazuella manifestavam enthusiasmo pela superior interpretação da comedia. Sallustio disse com entono: «Admirável, admiravel!» A condessa acrescentou, alludindo a Josefa: «Parece que nasceu no Louvre!» D. Cesaria, apesar dos signaes de assentimento e admiração, que fazia para serem vistos pela viscondessa d'Aguas-santas, segredou ao Carregueira, indicando o ministro da guerra:

-- E aquelle grande palerma sem perceber !... Mette-me uma raiva!

-- Ha de ser o ultimo! -- considerou, todo contente, o juiz do Supremo, esfregando as mãos com intima satisfação de confesso peccador.

Entra de novo Josefa Lencastre. A sua presença altiva e preoccupada, conquista o Fonseca, da Alfandega, que exclama enthusiasmado para os seus amigos: «Digam vocês o que quizerem, é uma soberba mulher, caramba !» Na mão, traz jum pequeno cofre de malachite, onde a formosa princeza suppõe existirem cartas reveladoras de occultos amores de seu marido ! O ciume torna-a mais attractiva dando-lhe vibratilidade excitante, tornando-a apaixonada e dominadora. O orgulho de rainha e a superioridade de mulher joven e amante sentem-se amesquinhados pela recusa do collar, o que não póde ter por motivo senão qualquer escondida paixão de Filippe de Anjou! Arreceia-se de o chamar para obter as indispensáveis explicações!... A magnifica frescura dos seus dezesete annos não deve expor-se ao ultrage de uma hypothese impura!... Por isso hesita, pronunciando com voz nervosa, em que se sente a commoção de organismo provocado:

Non ; ne lui donnons pas la satisfaction

De me voir revenir, de peur qu'il ne suppose

Au besoin de vengeahce, une tout autre cause.

Josefa sublinhou de tal maneira as ultimas palavras, que uma parte da plateia lh'o conceituou de exagero, e até proposito de dar mau sentido a uma phrase innocente. Uma princeza de dezesete annos poderia sentir tanta malicia, como ella inculcara?! -- commentavam.

-- Mas se aquillo é do papel!... -- defendia incendiado o visconde da Carregueira.

Porém, a formosa Luiza, com a idéa fixa de conhecer o conteúdo do cofre, afasta de si todas as idéas de humilhação e chama em voz alta á porta do quarto do rei: «Sire !... Sire !...» Filippe de Anjou apparece-lhe já em robe-de-chambre, de velludo encarnado, bordado a matiz. Consente benevolamente que a rainha examine aquella caixa, que contém simplesmente um milhão! A princeza diz com ironia mordente, alludindo á desculpa que seu esposo lhe déra, para não comprar o collar:

«...................Ah ! monseigneur, vous êtes

«Bien peu le petit-fils de votre illustre aíeul,

«Qui, craignant avant tout qu'on ne le laissàt seul,

«Dépensait, sans trouver que la chose fût chère,

«Plus de cent millions pour loger la Vallière.»

Então o rei, em tom nobre e altivo, censura, justiceiro, o procedimento de seu avô, de Carlos VII, de Luiz XII, que exhauriam o povo submisso e bom com tributos, para entreter faustosamente impudicas amantes. E tendo fallado, vehemente e nervoso, termina com esta phrase, que fez com que muita gente olhasse a medo para o camarote real:

«Car un roi doit savoir, c'est mon avis à moi,

Qu'il appartient au peuple, et non le peuple au roi.»

O milhão tão previdentemente guardado no precioso cofre, tinha como destino pagar a policia secreta, que andava na pista de uma conspiração. A joven rainha, estranha a taes suspeitas, diz não acreditar que os queiram expulsar do throno. Aconselha seu esposo, que, em vez de gastar dinheiro com espiões, chame antes aos conselhos da corôa homens novos e energicos, como Melgar, o irmão de madame de Luys, sua camareira. Porém, Melgar é o chefe dos conspiradores, affirma o rei, o que Luiza de Saboia não póde acreditar, e propõem uma aposta:

«Bien; que parions-nous?»

Filippe V responde:

«............................Que parie un mari,

«Amoureux d'une femme incessament rebelle,

«Quand pour parler d'amour il s'enferme avec elle?»

E com tão significativa malicia o barão de Cerdeiral formulou esta delicada questão, que o austero carlista D. Nicolas disse a um seu compatriota:

-- Pero, és una obscenidad!..

A mulher do ministro da guerra, de cada vez mais excitada pela successão de phrases amorosas, ciumentas, de duplo sentido, que tivera de pronunciar, e tambem pelos signaes approvativos, que percebia no publico ao escutar-lh'as, observou, agora com meiguice encantadora:

«Cela n'est pas très-clair; je parie avec vous...»

O marido preenche a reticencia:

«Que vous ferez amant celui qui n'est qu'époux.»

e deu-lhe outro beijo mais demorado ainda do que o primeiro, o que fez com que o general Gonsalo se tornasse rubro até ás orelhas.

-- Bravo, bravo! -- applaudiu Albano de Mello com fogo.

-- Luiza promette tacitamente satisfazer o pedido da rei. Porém como ainda duvidasse que a sua amiga intima, madame de Luys, a atraiçoe, quer que o esposo pague caro, se perder. Filippe, seguro das suas informações, promette.

N'este ponto chega o correio de Allemanha, portador de uma pequena caixa de dominó, que Melgar envia a sua irmã. Que lindo cofresinho em pau-rosa marchetado a oiro ! A policia tinha-o apprehendido, cumprindo as severas ordens que recebêra. «Aqui está a prova, eis aqui o conspirador Melgar descoberto !» -- pensam os espectadores. E' aberto o cofre diante da curiosidade de toda a platéia. Dentro encontra-se, acompanhando as pedras, apenas um bilhete anodino! O monarcha fôra evidentemente enganado! A formosa princeza, triumphante, pensa em se retirar aos seus aposentos. O esposo pede-lhe a desforra n'uma partida de jogo, o que ella graciosamente concede, talvez com vontade de perder!... Porém a sorte, ainda n'este transe decisivo, entretem a deliciosa comedia, que tanto agradava. Luiza ganha. No dia seguinte ella receberia os seus prémios -- faculdade de nomear novos ministros e o famoso collar.

O rei fica outra vez só, lamentando de todas as maneiras a má sorte que o persegue ! No seu desespero, atira ao chão a caixa apprehendida ao correio de Allemanha! Desfaz-se em mil pedaços a preciosidade! E' n'este| instante que se encontra o bilhete de Melgar a sua irmã, fallando claramente da conspiração urdida. Não o haviam descoberto, porque vinha cuidadosamente mettido n'um segredo. Filippe de Anjou, transportado de contentamento pela victoria inesperada, chama pela rainha, que não quer apparecer. Porém elle mette-lhe por baixo da porta o bilhete denunciante... Momentos depois, entra Luiza já em traje de noite, entregando-se, como simples amante conquistada:

«.............................Elle est écrite

«De la main de Melgar. Me voici, monseigneur.»

E desculpando-se, talvez, pelo modo como está vestida acrescenta:

Je viens comme je suis !....................»

Evidentemente era assim mais desejada do que anteriormente, quando trazia o pesado vestido de rainha!

Sem diadema, os seus longos cabellos espalhavam-se em caudal d'oiro, leves sobre as mimosas espáduas, cobertas de fina cambraia e rendas!... A transparencia do tecido deixava perceber a pelle crea-dora de desejos !... Os braços nús, de um rosado carnal, macios e avelludados, viam-se-lhe até acima do cotovelo, pela largura da manga do roupão. O soberbo corpo de Josefa, na sua attitude de deusa, por todos era adivinhado, n'uma especie de nudez de estatua grega!

A tremura contente d'aquella carne nova e bem tratada, presumiam-na os que tinham pensamentos lascivos!... Os seus olhos negros, fixando-se amorosamente no barão de Cerdeiral, envolviam-no em magnetico fluido, que lhe percorria todas as fibras do corpo.

A mulher do general affectava o ondear de serpente tentadora, augmentando assim a seducção e o império do seu amor. Dramond, ao aprecial-a, exclamou:

-- Oh! qu'elle est belle!... Charmante!...

-- Et vous êtes un imbécile! -- retorquiu-lhe a ciumenta viuva Joujou.

O Cerdeiral, outra vez de posse de Josefa, disse com dolente meiguice:

«...............................Et cela fait honneur

«A votre probité. D'ailleurs, ma blonde tête,

«On est toujours très-bien, quand on paye une dette.»

E apanha-a com effusão, com ternura copiosa, conservando-a muito tempo contra o seu corpo de mancebo ardente, desejando confundil-a em si mesmo.

«Sire que faites-vous ?..........................

pergunta a esposa.

O rei, depois de a beijar amantissimamente pela terceira vez, responde com graciosa ironia:

«......................Mais, comme vous voyez,

Je viens remettre encor mon amour à vos pieds,

«Tout en vous rappelant, sans que je m'en effraye,

«Qu'une dette de jeu le lendemain se paye.»

Este proceder generoso apaga toda a immoralidade da peça, que as circumstancias do instante dirigiam para um final claramente obsceno. O proprio general desafogou, recebendo aquellas palavras como indispensável satisfação ao seu pundonor de marido!... Mas a sympathica espectativa desvanece-se !... Josefa, com uma candura ideal, embebe a sua linda voz na mais innocente e terna meiguice de mulher apaixonada, passa, agora ella, amoravelmente o braço em volta do tronco do Cerdeiral, offerecendo-se:

«Lorsque celui qui perd n'a pas l'enjeu sur lui;

«Mais, moi, j'ai mon argent et je paye aujourd'hui.

E os dois assim enlaçados, como se estivessem longe de vistas interessadas, entram no quarto da rainha, ao mesmo tempo que as cortinas do proscenio se unem para melhor os separar da plateia curiosa.

Os bravos, as palmas e as chamadas resoaram magestosamente, como alegre fragor de tempestade de gloria. As amigas de Josefa Lencastre saudavam-na com sorrisos, com applausos, agitando lenços. Os homens em pé, braços estendidos, rostos animados palmeavam, clamando arrebatados: «bravó, bravó...» repetidas vezes. El-rei, secundava o vibrante enthusiasmo, galardoando os interpretes da comedia, com expressões faciaes de approvação. A rainha mais recatadamente, com a reserva premeditada da sua alta posição, apenas acompanhava el-rei e o publico nos seus testemunhos d'apreço. O general Gonçalo, do outro lado, no meio dos seus dois ajudantes, não podendo, por dever, discordar de suas magestades, apparentava de satisfeito!... E o barão de Cerdeiral, carregado de coroas, ramos e pombos enfeitados, que a rainha, a Frazuella e outras pessoas tinham mandado a Josefa, como preito ao seu talento, entregava-lhe tudo sorrindo e apertando-lhe effusivamente as mãos.

-- Um enorme successo! Nunca se viu coisa egual -- apregoava Sallustio.

-- Ah!... são dois actores! -- confirmou com voz indolente o conde de Frazuella.

V

Angelina esperava com anciedade a noticia do espectaculo, em que tão sériamente vira empenhado Sallustio. Ouvira-lhe dizer emquanto se vestia: «Esta noite decide-se a minha sorte»... Logo que elle entrou radiante, interrogou-o com vivo interesse. A' pergunta que a sua amante lhe fez, o deputado, de pé no meio da casa de jantar, o rosto expansivo a rebentar de orgulho, chapéu para a nuca, respondeu:

-- O rei mandou-me cumprimentar por um dos seus camaristas... Caspité! Isto sobe!...

Angelina, rapariga simples e natural, não comprehendia em todo o seu significado taes palavras, que decerto conteriam grande valor. No entanto arfava de goso, ao estender a toalha na mesa, para Sallustio comer alguma coisa, pois quasi não jantara de preoccupado com o exito do discurso que tinha de pronunciar. Agora impando de vaidade, em mangas de camisa, á vontade, comia famelicamente carne fria e ovos, emborcando copos de vinho. Sentia-se feliz e verboso, ia narrando as magnificências d'essa festa, como Lisboa não presenceára ainda outra: o brilho das joias e a sumptuosidade dos vestidos das senhoras; os reis no camarote, olhando para elle com apreço ; os ministros e diplomatas tendo nos peitos condecorações! O seu discurso, extraordinariamente applaudido, toda a gente a festejal-o com palmas e abraços!... Fallou a seguir do interesse, que por elle tomaria o monarcha, interesse revelado n'uma palavra, que ao ouvido lhe dissera o conde de Frazuella. Mas voltou a descrever o espectaculo abrindo os braços para significar a grandesa do que vira!... A comedia de Dumas, tão ricamente posta em scena, tivera superior interpretação. O barão de Cerdeiral admiravel, verdadeiramente admirável! Josefa Lencastre encantadora, soberba de iritelligencia e formosura! Mulher divina, os homens na plateia sorviam-na com os olhos! O Cerdeiral que era seu amante, sentia todas as palavras d'amor e paixão que lhe dirigia. Elle, Sallustio, não percebera tudo por não estar bem calhado no francez, que fallado assim, como elle o ouvira, era uma musica, uma deliciosa musica... Apesar d'esta sua incapacidade de comprehender tudo, a perfeição do representar apreciára-a pelo gesto, pelo jogo physionomico, pela voz commovida, ora apaixonada, ora risonha. Um encanto, uma maravilha, felicissimo aquelle Cerdeiral, gosando uma das mulheres mais encantadoras de Lisboa! Pobre general, pobre amigo! Tinha pena d'elle ; mas evidentemente não merecia Josefa. Casos da vida social... -- rematou desprendido.

A ornamentação de toda a salla e do palco, com grande quantidade de flores, arbustos e colchas de seda, melhores do que as que se viam nas janellas em Braga, em dia de Corpus Christi, descrevia-a deslumbrado. Só a condessa de Frazuella, mulher superior, de immenso gosto e finamente educada n'essa maravilhosa sociedade lá de fóra, podia assim reunir tantas coisas bellas, para dar forte e inolvidavel impressão de grandesa e luxo! Só quem tivesse vivido como ella e gosado a vida como ella, podia chegar áquella comprehensão sumptuosa do luxo! Também para isso gastára uma immensa fortuna e agora andava o marido a ver se arranjava mais dinheiro, para continuar no estrangeiro, a vida a que estavam habituados. Elle havia de auxilial-o n'este empenho; quem a ajudava, como o Frazuella, no realisar das suas aspirações e lhe proporcionára o goso d'essa noite inolvidavel, merecia toda a sua collaboração.

-- Não imaginas -- rematou já saciado de comida -- mulheres, ornamentações, fardas e espectaculo, tudo como eu nunca imaginei. Rico! rico ! rico! Os do corpo diplomatico estavam embasbacados. Assim !...

E abriu desmesuradamente a bocca, para significar assombro!

Levantando-se da mesa, em caminho do quarto, collete desabotoado, a gravata branca n'um trapo, pesado no andar e já somnolento, acrescentou em voz regougada:

-- Os pobres d'Alcantara foram o pretexto. Uma léria, a caridade. As senhoras o que quizeram foi divertir-se e nós os politicos fazermos o nosso jogo. O presidente do conselho e o Frazuella aconselharam-me o discurso e julgo com isso ter ganho a partida contra Carlos de Mendonça, ou contra Evaristo de Mello, isso é-me indifferente. Tudo se reduz a que o patrão d'Ajuda fique satisfeito; porque a final elle é quem manda, entendes? O Frazuella, um finorio, pucha os cordellinhos e o que quer é dinheiro. Pois dê-se-lhe dinheiro e que o vá gosar em Paris com a condessa. Como não é do meu... E o paiz não fica mais pobre, nem mais rico, com mais ou menos uma centena de contos...

Angelina não podia alcançar o verdadeiro valor das confidencias de Sallustio, contidas n'este seu parolar de homem bem comido! Eram coisas que se passavam n'um mundo que desconhecia. Mas a palavra ministro, sempre misturada nas conversas mais intimas, revelava-lhe qualquer coisa, em que o seu amante resumia todo um immenso sonho de grandezas! Seria ministro mui brevemente e tudo obra do maravilhoso conde, que lhe apparecera na existência, como um d'esses inapreciaveis genios, que nos contos de fadas são príncipes sob roupagens de pegureiros. A filha de Pedro Alves, com tanta coisa que n'esta noite lhe ouvira, deitou-se confusa, a cabeça batalhada por maravilhas, que lhe tiraram o somno. Sallustio, a seu lado, de costas na cama, resonava com magestade! Ella adormeceu tarde e apesar d'isso, como o dia seguinte fosse dia santo, levantou-se cedo para ir ouvir missa a S. Paulo, deixando o deputado ainda a dormir. A modesta rapariga trazia agora a sua alma mais agitada e triste do que nunca! Resou com fervorosa devoção a Nossa Senhora do Sameiro, para que lhe mettesse claridade na vida incerta. Ao sahir da egreja, com os olhos húmidos de lagrimas, percebeu, ao transpor da porta, que uma voz sua conhecida lhe fallava, causando-lhe subita perturbação. Havia no som d'essa voz alguma coisa d'esse mysterio que os corações sentem instantaneamente, como de accusação ou libertação.

-- Bons dias, senhora Angelininha, como tem passado, menina?!...

Voltou-se rapidamente, obedecendo a um impulso que lhe viera de dentro. Forte rubôr lhe subiu ao rosto, vendo deante de si, risonho e encolhido, Joaquim Neves, o antigo caixeiro de seu pae e seu pretenso noivo. O rapaz, de chapeu na mão, fazendo enorme esforço para a encarar sereno, cumprimentava-a quasi recuando de receio. Tambem a filha de Pedro Alves teve de se encostar, para não cahir, dizendo com surpreza...

-- Olha quem! O Joaquim!

-- E' verdade, menina. Sou eu mesmo. Cuidei que já me não conhecia...

-- Então não havia de conhecer ! -- pronunciou mais senhora de si. A que vieste a Lisboa ?!...

-- Agora estou cá, na rua da Prata.

Em frente um do outro, a nenhum occorria palavras com que destrinçasse as idéas confusas, que lhe tumultuavam no cerebro. Teriam por certo muito que dizer, sentiriam necessidade de encher o vasio dos dois annos decorridos depois de Angelina ter fugido da casa paterna, mas a suffocação não lh'o permittia. Joaquim Neves, n'um arranque d'animo, varreu da sua memoria tudo quanto fosse triste e pungente e com voz d'amigo deu noticias triviaes:

-- O paesinho, a mãesinha e manos vivem agora na quinta do Bico. Já foram para lá ha muito tempo, antes mesmo do outro S. João.

Isto marcava uma epoca, o tempo mais alegre e festivo de Braga. Angelina fez potente esforço para represar as lagrimas, mas ainda assim os olhos vidraram-se-lhe e Joaquim Neves afastou os seus, pois ao perceber aquella commoção, pensou que iria rebentar n'um choro copioso e soluçado!. .. Ambos se mostraram heroicos n'este recalco de sentimentos maguados; ambos tornaram a sorrir olhando-se, e agora no proposito de tomarem este encontro perturbador, como encontro festivo. Angelina disse com a sua voz doce e limpida:

-- Bem sei... Tenho tido noticias...

Mas de que poderiam elles fallar senão do passado ?! Como impediriam o coração e a voz de referir coisas que ambos viveram n'um desprendimento natural e sincero ?! Joaquim Neves era bronco e infecundo em expedientes de conversa. Por isso, sem querer voltou ás melindrosas referencias, referindo coisas que lhe dissera a Joanninha Silva, a amiga dilecta de Angelina... Esta atalhou-o :

-- Bem sei, tem-me escripto. Então tu agora cá em Lisboa ?. ..

-- E' verdade, menina, caixeiro dum homem de lá... Se for prestável...

-- Obrigada. Mas que idéa a de vires p'ra cá !...

-- Ora... a gente... tem suas coisas, gosta de ver mundo. Ah! menina, isto aqui, sempre lhe é muito grande !...

Angelina sorriu toda bondosa, já mais senhora de si. Na realidade, Lisboa era superior a Braga; mas lá também se podia ser feliz. A nossa terra é aquella em que estão as coisas de que a gente mais gosta; e ella tinha saudades da provincia e andava com idéas de lá ir breve... Talvez no anno seguinte podesse realisar este ardente desejo. E acrescentou, fazendo menção de se retirar:

-- Pois eu moro ali na calçada de S. João Nepomuceno, com meu marido.

O caixeiro tornou-se subitamente branco e ficou estupido! Não sabia que Angelina tivesse casado ! E balbuciou :

-- A senhora Joanninha disse-me o numero. Se me dá licença, vou-lhe um dia fazer uma visita.

-- Vae... Quando quizeres, vae...

E despediu-se estendendo-lhe a mão, o que confundiu bastante o caixeiro, que não estava habituado a tanta delicadeza. Tinha agora uma bella mão de senhora; mais branca e mimosa do que a de muitas fidalgas de Braga !... O contacto d'aquella pelle fina deu ao rapaz sobresaltos nervosos, sensações irradiantes e commovedoras; porque sempre a amára. Todo elle ficou attonito, sentindo pular dentro de si uma multiplicidade de coisas contraditórias, que o podiam arrebentar. Conservou-se algum tempo encostado á esquina da egreja, a ver a sua antiga patroa caminhar pela rua de S. Paulo: saia cinzenta ondeante; o casaco de panno preto, affeiçoado ao busto airoso; o chapéu simples com laço preto na frente, o véu a cobrir-lhe o rosto... eram modestos atavios agasalhadores do precioso corpo, onde residiam as causas das suas noites de sonho. Para coordenar as complexas impressões d'esse instante, logo que Angelina desappareceu, foi até ao Aterro, movendo-se n'um passo vagaroso, as mãos enterradas nos bolsos, o olhar no chão, como homem preoccupado!...

Estava casada! Esta simples palavra resumia uma situação bem tremenda: -- eram todas as suas esperanças condemnadas, Angelina definitivamente perdida para elle! Escusava de pensar mais n'ella, inútil imaginar um abandono do amante, com o qual elle se resignaria a luctar -- tão fundo e sincero fôra sempre o seu amor, a sua loucura!... Com quem casaria ?!... Com o deputado, já se vê ! A final -- confessava-o -- Angelina fôra bem feliz. Amava aquelle homem, que lhe dava na sociedade uma posição... Elle, um bruto, um patego, não a merecia. Seria até um caso triste se ella o preferisse!... Quasi perdoava a Sallustio! Todo o rancor, que fôra, dia a dia, juntando dentro de si, para ser expellido n'uma vingança memorável, desfizera-se de repente, sentindo-se agora socegado e tranquillo. A grande cólera, contra o malvado que seduzira a virtuosa filha de Pedro Alves, sua promettida esposa, estava apasiguada. Se o deputado não tivesse dado esta solução honrada ao seu infame procedimento, elle, Joaquim Neves, seria capaz de o estoirar no meio da rua! Fôra até, qualquer coisa como isto, uma idéa de castigo, que o trouxera a Lisboa... Ao partir não definira bem o seu confuso sentimento; mas dois annos passados a recalcar no peito uma paixão, que de cada vez era maior, tinham acabado pelo moer, e pelo revoltar. Um dia, á missa, entre o calix e a hóstia, fez sagràda jura, dizendo que aquillo acabaria de um modo trágico, se o patife não casasse com Angelina!... Casou, que mais desejava?! Nada, absolutamente nada... Sentia-se completamente sereno: sorria, commentava as pragas das peixeiras da Ribeira Nova, em quanto enchiam de sardinha as suas canastras !..

Mas digam-me cá: -- reflectiu Joaquim Neves. «Porque é que Joanninha Silva me não fallou a mim d'este casamento de Angelina com o deputado?» Talvez o não soubesse. Em Braga, todo o mundo parecia ignorar tal acontecimento, que, logo que fosse conhecido, faria barulho. Por sua parte tinha orgulho, em ser elle quem primeiro desse a novidade ao seu antigo patrão. Que grande contentamento, que alegria, que festa, não haveria n'aquella familia envergonhadá por causa da fugida de Angelina!... Esse desgosto estava desfeito, o grande peccado remido: a senhora Julianna e o senhor Pedro íam ter um verdadeiro dia de felicidade. Quem lhe déra estar lá, no momento de receberem a carta, que lhes ía escrever!...

Porém não atinava muito bem com os motivos que teria tido Angelina, para não participar o extraordinario acontecimento a seu pae, a sua mãe, ou á Joanninha Silva, visto ser esta a unica maneira de se reconciliar com todas as affeições perdidas. Talvez fosse a idéa de fazer a seus paes uma surpreza; ou, então, oppunha-se a isso o marido, o tal deputado, que sempre fôra um cara de burro, muito presumpçoso, puxando para o alto, cuidando que ninguem o merecia ?!... Pois o seu antigo patrão, comquanto não fosse fidalgo, era homem de muito boas contas, muito respeitado de toda a gente, que com elle tratava ! Mesario da confraria da Senhor do Monte e de muitas outras, todos o viam nas festas de igreja hombreando com a melhor fidalguia da cidade -- os das Carvalheiras, os de Infias, os Baratas, os Freires da rua de S. João...

N'este espirito de hostilidade contra Sallustio, os seus olhos caíram, naturalmente, sobre a corôa de prédios que se estende das Janellas Verdes a Santa Catharina. Contemplou a magnificência de Lisboa, com as grandes casas e magestoso rio. «Que diabo! isto é grande !» E pareceu-lhe que Angelina (a unica mulher que a sua organisação pedia, desde que principiára a despontar n'um sentido de amor) fizera bem em o desprezar, para se unir a um homem, que lhe dava o goso de tantas maravilhas! Foi bom que assim acontecesse! -- tornou a pensar. O que lhe repugnára até ali, era vêr aquella que sempre considerára como ente superior a todos os outros, na baixa condição de concubina!...

Quando resolvera, em Braga, vir empregar-se em Lisboa, no systema de forças, que o attrahiam para a capital, entrava o sentimento de obscura dedicação por Angelina.

Podia ser-lhe util n'uma terra onde ella pouca gente conhecia. Rapaz simples, saudavel e forte, desejava empregar todo o préstimo, que tivesse, em favor da unica creatura, que ainda lhe occupava o coração. Este sentimento protector era desinteressado, tinha muito de pureza e renuncia. A capital, vista lá de longe, apparecia-lhe como um grande forno onde a virtude se consome no meio de gemidos, onde o crime e o vicio se engrandecem como empolas.

No seu scismar desoccupado, sustentava intensas luctas com seres imaginarios, que porfiavam em prejudicar Angelina, essa querida imagem, que se lhe representava sempre n'um altar, como as pallidas santas, cercada de luzes e florés. Ser inconfundivel, alma tão bella, que nem todas as nodoas humanas podiam macular, a sua falta fôra devida á influencia do demonio, perdição dos proprios anjos. Contra o sedu-ctor iam as suas iras, ficando a sua amada purissima e incorruptivel! Por isso, obedecendo á fatal attracção, o seu animo, assim purificado apesar do coração se sentir dolorido, disse um dia: «Não ha remedio, não posso mais, vou tornar a vel-a !»

E desde que escutára esse grito formidavel, que lhe clamára do mais profundo do seu ser, a mudança para Lisboa ficou resolvida Por intermédio d'um carteira seu amigo, Joaquim sabia que Angelina sustentava correspondência com a Joanninha Silva. Certificára-lh'o a lettra d'um sobscripto. Já por esse tempo o commercia da loja, depois da retirada de Pedro Alves para o Bico, tinha peorado. O patrão só apparecia, uma vez ou outra na cidade, montado na egua branca, para tractar das encommendas para o Porto. Fazia mal os fornecimentos e os freguezes abandonavam-lhe a loja. O pae de Angelina, doente e enfraquecido pelo grande desgosto que o enlutára para sempre, pensou em passar-lhe o negocio, se elle arranjasse fiador competente.

Outr'ora, tal proposta teria enchido de legitimo orgulho o modesto rapaz. Ser um dia dono d'aquella casa, fôra a sua grande aspiração !... Elle a pedir fazendas para o Porto, escrevendo cartas em largas folhas de papel pautado; elle a receber as encommendas pelos almocreves, e a formar as pilhas de saccas de arroz detraz da porta; elle a contar libras aos caixeiros das cobranças, rapazes vaidosos de ar insolente e gastador, cinta vermelha, chapéu de viajante, charuto na bôcar fallando de cara alta!... Toda a sua vida, toda a sua actividade, se enchera com tal perspectiva. Teria tambem um caixeiro, mandaria roupinhas novas a suas irmãs, iria de vez em quando á terra, tillintando com a sua corrente do relogio, usando botas de elatico e chapéu fino. Que opulencia! Como todos o respeitariam! Como seria benevolo e generoso para com os rapazes da sua creação, que tinham ficado na humildade da lavoura !...

Tanto no seu espirito, como no do seu antigo patrão, os dois projectos do trespasse do negocio e do casamento com Angelina, andaram sempre intimamente ligados. Porém, tendo-se alluido a melhor parte do seu castello de illusões, que era o casamento, não podia habitar a outra, e, a idéa de ir para Lisboa, assentou-se definitivamente, visto ter lá um parente, que o admittia como caixeiro e que, n'um futuro mais ou menos proximo, lhe poderia dar sociedade. Foi então que procurou na missa da Sé, a Joanninha Silva, e lhe perguntou noticias da sua amiga, com quem se correspondia.

-- Pouco lhe sei contar, senhor Joaquim. Ha muito que não tenho noticias.

-- Mas sempre me poderá dizer onde ella mora?...

-- Então vae a Lisboa?

Contou-lhe n'um tom grave os seus projectos. Tinha na capital meio de se arrumar bem; o negocio em Braga estava perdido, não se passava do pé do pecegueiro. Aspirava a vida mais ampla e aventurosa, queria fazer-se homem a valer, opulentar-se n'um commercio de grossas quantias. A presença de uma pessoa que fosse devotamente amiga de Angelina, não poderia ser conveniente á sua felicidade d'ella ?

-- Mesmo, com pouco prestimo como eu tenho, quando ha vontade.. .

A Joanninha Silva adivinhou quanto de affectuoso e delicado havia n'aquellas palavras. Deu-lhe os esclarecimentos, que podia dar, escrevendo-os elle mesmo com um lapis n'uma carteira, que comprara na rua do Souto, e ao despedir-se aconselhou-o:

-- Diga-lhe tudo, senhor Joaquim. O pae d'aquella maneira, a mãe de cama... Que nunca mais houve Natal, nem Paschoa n'aquella casa... Diga-lhe tudo, falle-lhe ao coração ..

-- Ah! hei de dizer, hei de fallar...

A Joanninha teve esta opinião sensata e condoida:

-- Que, apesar do que se passou, se ella por ahi voltasse, mesmo sem ser casada, o pae não lhe fecharia a porta...

-- Fechava, menina, fechava! -- affirmou com viveza o caixeiro. E' que não conhece o senhor Pedro Alves. E' dos antigos. Morreria d'algum estupor; mas fechava-lhe a porta, se ella viesse para casa, sem ter passado pela igreja com,o homem que a enganou.

-- Tudo uma grande desgraça! -- considerou a Joanninha Silva, conformando-se e despedindo-se de Joaquim.

Esta Joanninha era uma rapariga de rosto oval e alegre, muito galhofeira com as pessoas que estimava. No tempo de Angelina, quando ella lá ia por casa, o caixeiro gostava muito de a ver, de se rir com ella, de pensar na fecundidade d'aquella carne exuberante. Chalaceavam juntos, considerando-a elle capaz de ter muitos filhos se casasse, e ella a responder-lhe com modo sério, que já contava com isso, que o seu casamento havia de ser com o prior de Santa Cruz, um velho latinista de oitenta annos, muito conhecido em Braga. Tudo lhe era levado a bem. Como fiadores da sua castidade tinha, entre outras condições, uns braços valentes, que podiam pegar n'um homem atrevido, que lhe desagradasse e atiral-o por uma janella. Era este, talvez, o segredo do predominio que ella exercia sobre Angelina, organisação mais senhoril, melindrosa e affavel. Se Joanninha tivesse adivinhado a loucura premeditada pela sua amiga, a filha de Pedro Alves não a teria feito; ainda que «uma rapariga enamorada, seja peior que um burro teimoso»--como disse, a proposito d'este caso, um medico bracarense, homem de grandes sentenças. Mas a apaixonada de Sallustio escondera até ao fim a gravidade das suas combinações e só de Lisboa é que escrevera á sua amiga, pedindo perdão da falta de confiança; «mas que tudo que acontecera, tinha de acontecer». A resposta de Joanninha Silva, apesar de consoladora e benevolente em parte, era em muitos pontos reprehensiva, insistindo em todas as cartas subsequentes, em que forcejasse por tornar a sua posição legal, diante de Deus e do mundo ! Emquanto houve risonhas esperanças, a correspondência sustentou-se; porém, logo que estas se foram desvanecendo, Angelina não teve mais coragem de mentir e callou-se. De mais a mais, as. ultimas cartas de Joanninha Silva, talvez aconselhadas pelo confessor, eram carrancudas e severas, fallando sempre das penas do inferno, da implacável justiça divina, das rigorosas contas que tinham de ser dadas no dia de juizo final, n'esse valle de Josaphat, onde, ao som de trombetas clamorosas, as almas serão reunidas aos corpos e onde ella teria necessariamente de comparecer diante de seu pae, de sua mãe, do senhor padre Martinho e de toda a gente de Braga!... Ainda era tempo, ainda se podia salvar, voltasse a casa como esposa do homem, que a deshonrára, e só assim Deus e sua familia esqueceriam as faltas commettidas.

A pobre rapariga, tão falta de consolações, limitava-se a chorar. Uma das cartas de Joanninha Silva mostrou-a a Ermelinda Travassos, queixando-se de que a sua amiga fosse tão aspera para com ella. A organisação sensivel e doente da mestra de piano, escandalisou-se com aquella linguagem rude, que tinha a magestade desenganadora de uma sentença de morte. Sentia-se envolvida n'aquellas censuras, parecia-lhe que as ameaças de tantos castigos lhe eram igualmente dirigidas, e perguntou com acrimonia:

-- Esta sua amiga nunca amou homem nenhum?!...

E a imagem do primo Anastacio, musico da capella real, sempre com o pescoço envolvido n'um lenço de lã escura, passou-lhe sympathicamente na imaginação, como um branco froco de nuvem, n'um céu pallido de outomno.

Angelina esclareceu-a, dando ás suas palavras uma sensibilidade chorosa:

-- Amou... amou um estudante do seminario, que se fez padre...

Ermelinda Travassos, cheia de nobre indignação, ergueu-se como um personagem de tragedia pronunciando altiva:

-- E é ella, então, que vem ralhar com a gente ?!...

Angelina procurou defender Joanninha Silva:

-- Mas arrependeu-se... Fez uma confissão geral e arrependeu-se.

-- Bem me fio eu n'isso !... -- retorquiu a mestra de piano, com descrença.

Por ter cessado a correspondência entre as duas amigas, é que Joaquim Neves também explicou o não ser conhecida em Braga a grande novidade do casamento de Angelina.

-- E' mulher d'elle !... Foi melhor assim, foi assim muito bom -- disse, procurando absolver e estimar Sallustio, pelo acto de nobreza que praticára.

Mas, apesar d'esta apparente conformidade com a sorte, conservava-se macambusio e enleiado. Passeava indifferente, junto á muralha do Aterro, olhando para a vastidão do rio. Já se arrependia de ter vindo para Lisboa, visto não servir ali de nada. O casamento de Angelina inutilisava toda a sua dedicação. Até lhe veio a lembrança de regressar a Braga, a terra da sua mocidade, onde um sonho querido lhe engrinaldara a phantasia.

Se voltasse (idéa que principiava a verrumar-lhe o cerebro) levaria comsigo uma novidade de preço, que serviria de consolação aos que amassem Angelina. Entre todos esses só elle ficava infeliz; porque perdia toda a esperança. Mas de que servia pensar em si, quando os outros estivessem contentes!...

No entretanto continuava a reprehender o procedimento da filha de Pedro Alves, por não ter mandado dizer nada a seus paes. Ao menos não lhe parecia bonito. Devia ser coisa do marido, o tal Sallustio, sujeito emproado, um basofia, que não dava confiança a ninguém, e só tirava o chapéu por favor. Em Braga, embirravam com elle. Podéra, um presumpçoso d'aquelles !... Comtudo, apesar d'este secreto odio, a imagem deslumbrante do antigo administrador de concelho impunha-se-lhe! Via-o em imaginação, passando á porta da loja todos os dias, quando ía para S. Victor, onde morava!... Botas de polimento, brilhando como espelhos ; calça de casimira clara; andar auctoritario, de quem podia mandar prender os outros! As mulheres perdem-se por estas coisas -- pensou amargurado Joaquim Neves! Muito grande que fosse o seu amor por Angelina, ainda que o patrão estivesse, como estava, apostado a fazer-lhes o casamento, elle havia necessariamente de ser vencido, logo que apparecesse um concorrente como Sallustio,--janota, bem parecido, doutor e auctoridade, indo sempre nas procissões afraz do pallio, ao, lado do governador civil. Achava natural a preferencia, humilhava-se até a reconhecer, ainda que a não podesse applaudir, pois que isso lhe repugnava... E d'um modo doloroso confessou pensando em Sallustio:

-- E' bem feliz! Tem a mulher mais linda do mundo! E agora uma perfeita senhora... Aquelle chapeu, aquella redinha pela cara... davam-lhe uma graça!...

Sentado n'um banco, o olhar perdia-se-lhe no infinito. A sua alma vagueava por esse mundo d'além, como alma penada, que não encontrasse paragem, nem conforto. Sentia vontade de morrer, só a morte lhe daria o desinteresse do mundo, d'este mundo onde não tinha valor a sua dedicação immensa! A expressão do seu rosto era de mortal desalento; irremediavel o seu infortunio! Angelina estava casada e teria por certo algum filho... Esta lembrança deu-lhe um arrepio de desgosto. Aquelle corpo ideal, diaphano como o dos anjos, conspurcado pela brutal luxuria de Sallustio! Oh! magua infinita! O seu puro amor em cinzas!... Não podia permanecer em Lisboa, juncto da sepultura do seu coração. Aborrecia esta grandeza que admirára, a turbulencia da vida nas ruas da baixa, o luxo provocativo das mulheres, que tanta admiração lhe causavam, quando iam de carruagem. Tudo que o deslumbrara, enfastiava-o agora. Melhor fôra ter acceitado o trespasse da mercearia de Pedro Alves! Fornecer-se-hia do Justino José Teixeira de Carvalho, do Porto, seguiria as normas exemplares do seu antigo patrão, viveria uma vida calma, honrado e sem surpresas que lhe trouxessem desasocego. N'este momento doloroso reconhecia o mal que andára, acabando bruscamente com esse passado, em que vivera tão feliz.

Talvez ainda o podesse reconstituir... Escreveria n'esse mesmo dia uma carta para retomar a situação na mercearia dos Chãos, ainda que fosse como caixeiro. Todo o seu empenho era tornar a ser o que fôra, viver na intimidade das coisas que presencearam a sua felicidade, quando tinha esperanças de namorado. Aquella loja escura para onde entrára aos doze annos, as estantes sujas de moscas, o balcão com o rebordo chapeado de pintos e coroas falsas, a talha d'azeite? as rumas de saccas d'arroz e d'assucar, os costaes de bacalhau em pilha... tudo para elle formava agora deleitoso quadro em que lhe brincavam os olhos, como se fôra paisagem creadora e florida. E os dias de feira, bulhentos e occupados, que não davam tempo sequer para comer!... Era um conjunto de coisas e factos saudosos, que lhe provocavam lagrimas. Sentir outra vez tudo isso de perto, resuscitar o passado carinhoso, seria rejuvenescer o coração. Perdera Angelina, perdera a sua promettida noiva; mas ninguem teria poder para lhe arrancar da mente a sua querida imagem, que conservaria para todo o sempre, emquanto vivo fosse, em logar escolhido da sua alma, nimbada de luz como uma Nossa Senhora. Seria este seu scismar permanente, as coisas mudas de envolta concorreriam para a realisação da chimera, formariam um conjuncto, um templo dentro do qual tornaria a residir a sua amada, viva e sorridente, tão real e formosa, como quando vinha á loja ordenar-lhe qualquer serviço. Então, Angelina dizia-lhe palavras equivocas de namorada, fazendo-lhe acreditar na possibilidade de um dia serem ambos donos d'aquella casa dos Chãos. Que tempo! Que memorias! Que passado !

Novo impulso de reflexão veio entristecel-o mais. Tudo para elle estava perdido com o casamento de Angelina. As palavras que lhe ouvira á porta da egreja foram desenganadoras, para que não continuasse a pensar n'ella. Paciencia; viveria do trabalho e para o trabalho.

Occupar a existencia com o moirejar do corpo, é tirar á imaginação elementos de martyrio. Em Braga, de novo mettido na loja, estaria sempre entretido. Fallaria com a Joanninha Silva ácerca da sua amiga, agora casada com um homem de posição. Consolaria os velhos, seus antigos patrões, mostrando-lhes a filha redimida para a honra, para a consideração social e para Deus! Calcaria dentro em si todos os resentimentos e fiava que vendo os outros felizes, elle tambem o havia de ser.

N'este momento ouviu um garoto apregoar o Diario de Noticias. Para se distrahir de tantas idéas melancholicas e visões antigas, comprou o jornal.

Ainda tinha mais d'uma hora de liberdade, antes de se abrir a loja; precisava de enchel-a com o que lhe contassem da vida dos outros, da vida da multidão que passava. Foi percorrendo a primeira pagina do jornal, lentamente, com a attenção esparsa... Porém ao deparar com o nome de Sallustio Nogueira, em parangona a marcar noticia de importancia, sobresaltou-se-lhe o coração. Sempre, mais ou menos, a lembrança de tal homem lhe fazia correr o sangue ao cerebro, lhe incendiava as faces... Nas circumstancias actuaes, em que esta pobre alma estava tão cheia de amargura, o interesse e emoção foram mais accentuados. Com olhos soffregos leu o seguinte:

DR. SALLUSTIO NOGUEIRA

«Diz-se estar tractado o casamento do illustre parlamentar, o dr. Sallustio Nogueira, com a filha d'um rico negociante da nossa praça, senhora de rara formosa e muito prendada. Parabéns ao nosso amigo.»

O assombro de Joaquim Neves foi completo!

Se lhe mettessem uma faca no peito, não colheriam d'elle pinga de sangue! Conservou-se sentado como jornal nos joelhos, pallido, olhos fixos n'um ponto indeterminado, bocca legeiramente aberta, os musculos faciaes em rigidez spasmodica, estupido e sem atinar com o valor do seu sentir. Nada do que em volta corria o interessava e desentorpecia. Esteve minutos n'este estado de ausência, semelhante ao da pessoa que acordasse d'um sonho, em que resvalava ao desamparo n'um abysmo!... Depois d'esse largo instante de estupor, rompeu subitamente n'uma gargalhada de louco, erguendo-se e fallando alto:

-- Só isto me faria rir! Ah!... Ah!... Ah!... Só isto me faria rir!...

Tres senhoras, as inoffensivas manas Vinagres, que passavam muito junctas para a missa de Santos, assustaram-se e olharam-no com pavor; porém, Joaquim Neves, que lhes percebera a desconfiança, repetiu:

-- Palavra, que só isto me faria rir! Não fujam que não sou nenhum maluco! Malucos são os outros! Malucos e grandes patifes!...

N'um andar desvairado seguiu para o lado do Caes de Sodré, levando n'uma evidencia provocadora o papel em que lêra as palavras de fogo, que lhe haviam escaldado os olhos. O esforço gasto no movimento accelerado, a indifferença dos transeuntes pelo seu estado interior, socegaram-no, dando-lhe sentir mais exacto e real. Já abatido por dolorosa impressão esternal, pronunciou com lagrimas na voz:

-- Ora esta! Não estará casada, ou casaria com outro homem, arranjado em Lisboa!...

A imaginação apavorada, representou-lhe logo a sua idolatrada Angelina vivendo uma vida escandalosa de vergonhas! Talvez pelas suas loucuras a tivesse abandonado Sallustio! Quem sabe quantos desconhecidos teriam gosado aquelle corpo angelical! Quem sabe como ella teria empregado abjectamente, em affectos mercenarios d'occasião, a sua linda alma! Uma existencia conspurcada, como a das maiores desgraçadas, que vivem em prostibulos, é a que elle representava na sua mente.

Casada com Sallustio não podia estar; elle devia tel-o logo adivinhado, ao apreciar a modestia do seu vestir. Porém ficára tão perturbado quando vira diante dos olhos aquella figura de encanto, sempre viva no seu coração juvenil, que não conservára serenidade para qualquer demorado e justo exame. Agora percebia tudo n'um relance; comprehendia o acervo de falsidades, que formavam a alma de Angelina, ao fim de dois annos de ausencia, a ponto de lhe dizer que estava casada, quando a verdade seria muito outra!

Horrendo tudo isto!

Até aqui desculpava-a em nome do desvairamento d'um primeiro amor; mas agora que a suppunha n'uma convivencia de opprobrios, não podia. E era aquella creatura superior e divina, feiticeira da sua mente, que sempre comparára aos anjos, que respiram no ceu uma atmosphera de innocencia e balsamos; era essa adoravel imagem, que sempre comparára á das virgens cobertas de tunicas de pureza; era esse sonho de mulher, que lhe enchera de luar noites escuras de tristeza... que elle vinha encontrar na vida abominável d'uma...

Suspendeu o amargoso pensamento, ainda mal esboçado... A palavra dura e venenosa gelou-se-lhe nos labios... Tremenda affronta ao seu passado, ao seu proprio pudor! Amava ainda Angelina e portanto não podia apunhalar-se a si proprio. Porém comprehendia tudo... O acabar da correspondência com Joanninha Silva, estava explicado. Ainda era signal de vergonha, o não jquerer que fosse lembrado o seu nome entre gente virtuosa e honesta. Se perdera o temor de Deus, restava-lhe ao menos o temor dos homens...

Que immensa tristesa a sua, vendo alluir-se o transparente edificio formado de visões formosissimas! Era rude de espirito; mas sentia este desengano com alma sincera e apaixonada.

Quem poderia suppôr que uma tal infelicidade viria a acontecer! Em Braga, Angelina, era tão composta e séria que no seu rosto repousavam todos os olhos e todos os corações!... Linda, como não havia outra; religiosa, como nenhuma! Não passava semana que se não confessasse ao senhor padre Martinho, que d'ella dizia publicamente com a graça natural do seu rosto galhofeiro: «E' a mais linda ovelha do meu rebanho; o homem que a levar, leva um thesouro!» Joaquim Neves, encostado á muralha do Atterro, na extenuação de todo o seu ser, viu deante dos olhos a figura do popular missionario, gordo e vermelho, percorrendo a cidade, d'um extremo ao outro, risonho e prazenteiro, barriga saliente de mulher gravida. Toda a vez que passasse nos Chãos, entrava na loja do seu amigo Pedro, pedindo uma pitada com os dois dedos já promptos a recebel-a e sorvia a com estrondo satisfatorio. Santo homem, a bondade e alegria em pessoa, quando dizia: «Dá cá, Pedro, dá cá uma bôa!» O honrado negociante, sempre acatador, levantava-se pressuroso, estendia o braço com a caixa aberta, exclamando:

-- Oh!... O senhor padre Martinho! Como vae vossa senhoria?!

-- Sim... sim, vou bem com a graça de Deus. E a pequena, a minha ovelha?

-- Nos arranjos, lá por cima -- esclarecia, movendo a cabeça no sentido do primeiro andar.

-- E' uma santa. Devia chamar-se Maria, para que a cognominássemos beata, pela sua innocencia e bondade, sem a podermos comparar á outra, que essa é mãe de Christo e Rainha dos ceus! Adeus Pedro, adeus Pedrinho.

E depois de ter sujado a batina com a demasia da abundante pitada, acrescentava:

-- casa-a. Não ha conventos, casa-a. Aquelle rapaz (alludia a Joaquim) parece-me dos que servem, temente a Deus e respeitador da sua santa religião. Casa-os. E. adeusinho, que vou ali ao de Infias.

Do limiar da porta, voltava o rosto expansivo, concluindo:

-- Coisas de eleições... Não me deixam! D'esta vez queremos mandar, cá pela Roma Portugueza, um dos nossos, dos que acreditam na Egreja e na bulia.

Desapparecia, andar orgulhoso e medido!

Joaquim, azedo e atormentado pela sua enorme dôr, alludindo a estas palavras do sacerdote por elle tantas vezes escutadas com delicia, pronunciou sarcastico e infeliz:

-- Que grande espiga, se me casam com ella!...

Mas a sua cabeça era uma tempestade e todo o seu corpo uma paixão! As idéas sobrevinham-lhe incoherentes em catadupas, como aguas procellosas, despenhando-se de ingremes montanhas!

Andava agitadamente, parecia-lhe digno de feroz desprezo tudo quanto se passava em volta. Só uma grande dôr, um grande desengano, poderiam ter operado tão inesperados effeitos no seu espirito bronco, sem illustração, sem cultura para exprimir o lado meticuloso das idéas e dos sentimentos! Ia escrever para Braga, n'esse mesmo dia; queria-se ir embora, fugir d'este inferno, que o atormentava. Mas, apesar da resolução de abandonar Lisboa, procuraria saber quem era o marido de Angelina, faria diligencias para conhecer a historia da vida desregrada da antiga beata, quantos amantes tivera entre Sallustio e aquelle que a possuia agora legitimamente. Ao menos teria muito que contar aos papa hostias da ecclesiastica cidade! Havia de levar as coisas ao verdadeiro apuro de a desacreditar de tal maneira que a sua reputação nunca mais podesse ser restabelecida, nem por um casamento com o rei! Que diria a tudo isto o gordo senhor padre Martinho?!.. Ora adeus! Este facto desenganava Joaquim Neves, acerca das coisas da egreja. A final de contas, quem tinha rasão era um brazileiro de Braga, chamado Preguncia, feroz inimigo de Deus e dos santos, que considerava todas as mulheres, que andavam em confessos repetidos, amazias de padres. Os ecclesiasticos detestavam-n'o, chamando-lhe hereje e condemnado, faziam projectos de o envenenar, como o proprio Preguncia affirmava saber. Talvez fosse esta a opinião sensata a respeito d'essa coisa chamada religião. Quem sabe até, se Sallustio Nogueira fôra o primeiro amante de Angelina! Quem sabe?!... -- calumniava com acinte e desespero.

O seu rancor contra a mulher que tanto amára, crescia como labareda -- era uma columna de fogo que tudo abrazava, que lhe envolvia os pensamentos e desejos. A reputação de Angelina era um cadaver de animal abandonado n'uma leziria, e elle negro corvo, que se lhe mettera nas entranhas, com o fim de as roer e conspurcar, tornando patente toda a miseria e abjecção d'aquella mulher, que adorára, como ideal intangivel! Seria implacavel! O seu odio levava-o a desejar uma vingança tão estrondosa, que teria coragem de despir n'uma praça publica aquella que fora a sua amada puríssima e expôl-a ao escarneo de um publico grosseiro, consentindo que todos lhe cuspissem, no meio de gargalhadas e insultos!...

Estava esvaído de tanto batalhar no inferno da sua dôr! Sentou-se de novo n'um banco do Aterro...

Poderia despedir-se n'aquelle mesmo dia do estabelecimento, onde estava... Porém, para que o patrão o não julgasse um louco, e mandasse para Braga más informações a seu respeito, faria um poderoso esforço, e entraria na loja com apparencia de homem socegado, mas que acabasse de receber a noticia triste da chegada do Brazil d'um seu irmão, que áquella hora se encontrava muito doente n'uma hospedaria da Ribeira Velha.

Assim procedeu e com este fingimento obteve licença para sahir, e logo se foi postar em frente á casa de Angelina, na esperança de que alguém appareceria, para lhe dar esclarecimentos ácerca da situação da sua amada. Algumas libras que tinha de seu metteu-as no bolso do collete e uma navalha no do interior do jaquetão. Ia para uma lucta sombria; queria preparar-se para morrer ou para matar, se tanto fosse preciso. A sua alma agitava-se em turbilhões de fumo; recalcava-a para exteriormente se mostrar sereno.

Tinham decorrido apenas minutos da sua atalaia, quando appareceu no limiar da porta Sallustio Nogueira, que o não reconheceu, nem n'elle attentou bastante para isso.

Era o mesmo soberbão magestoso, dentro da sobrecasaca. Calçava as luvas amarellas com vagar, tirava fumaças do charuto ao canto da bocca. Cortejou com leve sorriso um sugeito de bonet militar, que estava á janella e desceu lentamente a rua com evidente desdem por tudo quanto via. Joaquim ficou estarrecido e perplexo!

A confusão das suas idéas augmentou com o apparecimento do deputado! Procurava no seu craneo uma resposta a instantes interrogações, e não a encontrava. Angelina estaria ou não casada!... E com quem? Não atinava com resposta por mais que a procurasse, e então exclamou, n'uma indizivel candura:

-- Quem me podia dizer aqui alguma coisa era a bruxa da rua das Conegas!... Quem me déra estar em Braga, ao pé d'ella!

E permaneceu quieto e estupido, irresoluto sobre o intrincado problema!...

VI

Deveria subir as escadas de Angelina e exigir-lhe explicações da sua vida?! Com que direito e sob que pretexto?!...

Começou a passear em frente á casa, remoendo idéas, a ver se a filha de seu antigo patrão chegaria casualmente á janella. Esperava debalde, pois a amante de Sallustio, mal este sahiu, tinha descido para fallar á D. Maria Gomes, ácerca do encontro, que tivera n'essa manhã, com o caixeiro de seu pae! Ao deputado não communicára coisa nenhuma, apesar de ser uma novidade que os interessava. A familiaridade entre ambos tinha diminuido muito. Angelina apenas lhe respondia, quando elle lhe fallava. Havia dias em que não trocavam meia duzia de palavras; viviam n'uma separação de casados, que se odeiam. Mas a perturbação, que no espirito lhe lançára a presença de Joaquim Neves, precisava communical-a a pessoa, que lh'a apreciasse com sagacidade; desejava desabafar com alguem que lhe pudesse dizer se aquelle rapaz traria alguma intenção reservada, para intervir na sua vida.

-- Porque elle sempre foi um perdido por mim! -- affirmou.

A D. Maria Gomes, sentada no seu fauteuil côr de borras de vinho, a cabeça encostada á mão direita, ouviu Angelina com ar de tanta piedade, que esta lhe perguntou:

-- Doe-lhe alguma coisa? O seu filho continua a não ser bom para si?

-- Não é isso... São outras historias!...

A amante de Sallustio respeitou essa dôr, que se concentrava, que não pedia consolações. Entrou de novo no assumpto que a enchia e sobre o qual procurava conselhos. Repetiu factos da sua vida passada, de como desprezára o caixeiro, preferindo-lhe Sallustio; mas, insistindo sempre em que o Joaquim concentrára n'ella incalculaveis esperanças de felicidade.

-- Como já lhe disse, minha senhora, meu pae queria-nos casar -- recordou.

-- E teria feito bem -- opinou D. Maria Gomes com melancholia.

-- Mas se eu não gostava d'elle!... -- resumiu a filha de Pedro Alves.

-- Não é preciso gostar-se de um homem, para a gente casar com elle. Ponha os olhos aqui -- designou-se. -- No fim da minha vida, sem um amparo, só porque tinha o mesmo modo de pensar... Se eu seguisse os conselhos de meu pae!...

-- Sim... mas a gente...

-- A gente não tem juizo... Depois o futuro... Ah! minha filha! Olhe que a vida é triste! -- exprimiu n'um desabafo de asmatica!...

Ficaram algum tempo calladas. A D. Maria Gomes olhando para o Tejo, com a cabeça encostada á mão, Angelina, um pouco na penumbra da janella, com ar abatido, sem saber porque. Tinha um presentimento triste, que o silencio tambem triste de D. Maria augmentava.

-- Ai! A! -- suspirou a mãe do tenente Augusto, olhando para o Diario de Noticias, que ainda tinha na mão e onde lêra a tremenda novidade do proximo casamento de Sallustio.

E depois de um silencio, em que passou mentalmente em revista muitas formulas, das que lhe poderiam servir para fallar d'este caso a Angelina, assentou n'esta:

-- A menina acredita na sinceridade do amor d'esse rapaz, que a encontrou hoje ?

A filha de Pedro Alves ficou hesitante. Não penetrára o alcance da pergunta condoída. Respondeu sem intenção:

-- Uma vez, em Braga, elle disse que se não casasse commigo, havia de morrer solteiro.

A expressão de D. Maria Gomes illuminou-se com um clarão de bondade e aconselhou:

-- N'esse caso, se elle ainda a quizer, abandone este homem com quem está. Olhe que a anda illudindo.

-- Ora qual! Não anda... -- sorriu confiada. A's vezes tem suas aquellas, que me fazem chorar. Ha dias que entra e sae de casa sem me dizer palavra... Coisas lá da sua vida da politica... Porém, é meu amigo e se o não fosse era-o por causa da pequena, que elle adora. Como eu não pude acabar a creação, poz-m'a n'uma ama em Loures e manda-a vir todos os sabbados, para a vermos e deixa-m'a o dia inteiro. Não anda a enganar-me, não: elle não é mau. Terá genio esquisito, mas não é mau.

D. Maria Gomes, accentuando a sua convicção, mais preoccupada com a lizura do proceder que as circumstancias impunham, do que com o mal que podia resultar das suas palavras, insistiu:

-- E' o que lhe digo, anda-a a enganar. Ponha os olhos em mim, que tambem fui victima.

E, n'um accento commovedor, recordou a historia simples da sua seducção: Havia bons trinta e cinco annos, fôra amada por um, tambem do commercio, actualmente casado e com filhos, homem tão considerado, que já fôra uma vez camarista! Seu pae, prudente e avisado, aconselhou-lhe o casamento, mostrando-lhe as vantagens: marido de futuro certo, com estabelecimento afreguezado; rapaz comedido e da melhor indole, perdidamente enamorado d'ella, que era rapariga bonita e muito requestada.

-- Eram aos dois e aos tres a passarem-me á porta! Não faz uma idéa! -- recordou vaidosa.

Mas ella andava com um alferes encasquetado na cabeça e não attendeu, nem quiz saber dos conselhos de seu pae, que só fallava para o bem d'ella. Repelliu, até com actos de má criação, o caixeiro que lhe propunham. Ao vêl-o passar debaixo da janella, ou a fechava violentamente para o desfeitear, ou escarrava para a rua, com ruido, significando que lhe escarrava na cara --insolente provocação, propria de uma doida e d'uma creança, como então era. O namorado apparentou sempre a maior cordura, mostrando-se submisso apesar de taes grosserias, e ainda hoje, que é negociante rico na rua dos Fanqueiros, cumprimenta-a delicadissimamente, quando a encontra na rua! Foi bem castigada por tudo quanto fez!... Que grande loucura a sua! De arrependida que estava, dava-lhe, ás vezes, vontade de se lançar aos pés d'aquelle homem, que tanto a amára e respeitára! Pensava agora d'este modo; porque tinha soffrido muito; n'outro tempo, o demonio da farda tirára-lhe o juizo a ponto de, por embirração contra o rapaz do commercio, ter tido o atrevimento de dizer a seu pae «que antes iria para o militar sem casamento, do que para o outro como mulher legitima.»

Meu pae respondeu-me: «Olha que ainda te has de arrepender!» E arrependi. Assim eu o estivesse tanto dos meus peccados!

A sua queda (entendia-o agora) devia servir de exemplo. Por isso lhe contava tudo. Seu pae morrêra de um aneurisma, oito dias depois d'ella ter fugido com o alferes. A vida difficil, cheia de desgostos e de faltas de dinheiro começou em breve. O soldo era insignificante, e apesar de umas inscripções que herdára, viu-se em grandes apuros. Foi por esse tempo que, como tivesse a prenda do piano, principiou a dar lições. O militar, natural das Ilhas, quando se aborreceu, arranjou para lá uma transferencia, deixando-lhe ás costas um filho de seis mezes, que era aquelle mesmo que Angelina conhecia. Conservára algum tempo a esperança de que o amante a mandasse embarcar, para se unirem matrimonialmente, como lhe promettêra; porém o desengano não tardou muito... Um anno depois soube, por terceira pessoa, que o malvado casára rico, com uma prima.

-- Ah! aquillo só com mil forcas! -- terminou rancorosa.

Estas revelações, em parte já suas conhecidas, entristeceram Angelina, que apesar d'isso, agarrada á sua esperança, não podia conceber que tal fatalidade lhe succedesse. Que não fosse por ella, já o admittia; mas seria ao menos por amor d'esse lindo encanto, que estava em Loures.

-- Ha de casar commigo, verá a senhora, que ha de casar commigo.

-- Não casa, menina -- insistia a mestra de piano. -- Se o caixeiro de seu pae ainda a quer, aproveite.

Como era humilhante este modo de se referir aos seus merecimentos! «Se ainda a quer!» Parecia indicar que a considerava uma infeliz sem nenhum préstimo. Esta convicção da mestra de piano offendia-a e fez-lhe rebentar lagrimas dos olhos. Teve vontade de se levantar e ir-se embora. Achava duro e insultante aquelle modo de a considerar, e estranhava-o em D. Maria Gomes, que para ella sempre tivera meiguices maternaes, consolando-a nas suas tristezas, fortificando-a nas suas dôres. Palavras tão desagradaveis como aquellas, era a primeira vez que lh'as ouvia... O choro de Angelina e a sua suffocação indicaram á antiga mestra de piano quanto fôra cruel e deshumana... Por isso procurou corrigir-se, dizendo:

-- Não se afflija. Eu só quero o seu bem. Quem lhe diz que esse homem com quem está, não casa comsigo, é porque tem a experiencia. Também fui victima !...

-- Mas nem todos os homens são eguaes. Esse da senhora não a amaria, nem ao seu filho...

A D. Maria Gomes sentiu-se por sua vez melindrada e depreciada; retomou a dureza convicta de quem tinha em sua mão a prova do que affirmava.

-- Minha senhora, perca a idéa do doutor; porque elle não casa comsigo.

Angelina alvoroçou-se perguntando:

-- Como é que o sabe ?

-- Olhe -- concluiu apontando-lhe a local do Diário de Noticias...

Angelina leu com apressada e perturbada curiosidade, o que D. Maria lhe indicára. Depois olhou-a com ar de incomprehensão, sentindo-se esvair... A vista ennegreceu-se-lhe, abandonaram-n'a as forças no momento em que um sorriso de loucifra lhe ía a despontar nos labios. Penderam-lhe os braços, todo o corpo se amolleceu n'uma inercia de morte súbita... O rosto exangue e decomposto, a pupilla amaurotica a ver por entre as palpebras froixas, abandonada da felicidade da vida em marcha, cahiu redonda no chão, como ave ferida ou aerolitho despenhado do céu!

A mestra de piano não calculára tal desenlace para o seu imprudente desengano! Era pessoa muito nervosa, attreita a desfallecimentos e vadiices de cabeça!...

Em que pessimas circumstancias isto acontecia, sem ter o filho, nem a creada em casa! O seu primeiro impulso foi o de ir á janella chamar soccorro; porém querendo levantar-se faltaram-lhe as pernas e para gritar extinguira-se-lhe a voz, estrangulada por um nó na garganta. O perigo e a sua afflicção eram enormes, mas ainda pôde lançar mão d'um jarro d'agua para borrifar o rosto exangue de Angelina e molhar-lhe as fontes com um lenço ensopado em agua. Ao mesmo tempo chamava-a com palavras lamentosas, desdizia-se do que affirmára, pedia a Deus que lhe valesse em tamanha difficuldade, percorria a casa com a cabeça perdida, procurando não sabia o quê. Na visinhança quasi um silencio de charneca. Era domingo, e muitos tinham saido para os seus passeios; Esta persuasão tornára-lhe o rosto mais congestivo e o aspecto tumultuoso. Nem sentia o peso do seu corpo obeso; movia-se com a ligeiresa fluctuante d'um papel ao vento. Apparecia na cosinha, na sala, na janella; entrava no seu quarto, sem um proposito declarado, sem intenção firme. Chegava-se ao corpo de Angelina estendido no chão, chamava-a com toda a sua alma, para lhe provocar ligeiro signal de vida que fosse; pegava-lhe nas mãos, mexia-lhe na cabeça. O corpo da amante de Sallustio entregava-se-lhe docilmente, obedecia-lhe aos impulsos; mas sempre inerte, na apparencia de passividade suprema.

Apesar de todo o seu carinho de mãe, não conseguiu aquecer-lhe a pelle, animar-lhe o rosto, abrir-lhe os labios n'um sorriso ou queixume, desunir-lhe as palpebras n'uma simples curiosidade ou interrogação. Apossou-se-lhe do animo timorato a possibilidade de que estivesse em companhia d'uma morta, d'uma creatura que ella propria matara com as palavras desnecessárias e imprudentes, que dissera.

Primeiro sentiu assombro, depois medo. Toda a sua vida tivera grande repugnancia em estar sósinha juncto d'um cadaver! Nem mesmo o de seu pae ou o de sua mãe, tiveram o poder affectivo de lhe incutirem a dedicação suprema: agenciara a companhia de parentes e visinhos para as angustiosas noites em que velara os entes queridos. Além de tudo o mais, este caso de Angelina não poderia acarretar lhe desgostos e responsabilidades?!... Se algum malvado se lembrasse de lhe attribuir culpa n'uma morte assim repentina e inexplicavel?! Pelo menos teria de se justificar perante a policia, de comparecer na Boa-Hora para responder a perguntas suspeitosas d'um juiz, que insistentemente lhe vasculharia a alma, para n'ella encontrar ao menos vestigios de cumplicidade.. Não se dera coisa parecida com a sua visinha da rua da Bombarda, a quem morreu de repente em casa uma senhora que com ella fôra tomar chá?!... Soffrera grandes incommodos, pensou-se na possibilidade d'um envenenamento e os jornaes fallaram...

Os seus olhos espavoridos tornaram a cahir sobre o corpo inanimado de Angelina. Extendida no chão, que bella estatua no meio d'um vasto campo silencioso! Era linda com a sua commovente pallidez de morta!... D. Maria sentia-se attrahida, pela piedade, para este grande infortunio!... Porém, não podia mais; ali sósinha faltava-lhe o ar e o animo, n'um arrancado esforço exclamou:

-- Virgem da Penha, senhor dos Passos da Graça, valei-me!

Dirigiu-se para a porta da escada no proposito de gritar por alguem, que estivesse no predio. Ao abrir a cancella deparou-se-lhe um individuo de semblante inqueritivo e suspeito... mas era pessoa viva, que lhe poderia prestar auxilio. Adquiriu fortaleza, sentiu consolação ao encarar esse alguem que a Divina Providencia lhe enviava. O desconhecido fallou-lhe humilde, de chapéu na mão, voz carinhosa e de respeito:

-- A senhora precisará d'alguma coisa? Ouvi um grito...

A boa vontade com que este homem se offereceu não só despertara confiança em D. Maria, mas teve incalculavel poder calmante sobre os seus nervos sobresaltados. Pareceu-lhe que estaria ali um generoso coração, o auxilio do céu era-lhe enviado em circumstancias bem afflictivas e extraordinarias...

-- Oh! senhor!... Se deseja fazer uma caridade, entre. Uma senhora, que estava aqui de visita, cahiu com uma coisa repentina. Estou só, não tenho sequer quem me chame um cirurgião...

Entraram na sala, apontando D. Maria o corpo exanime... O desconhecido approximou-se solicito, porém, ao ver o rosto de Angelina, transfigurou-se repentinamente o seu, como se aquelle corpo fosse o de sua mãe ou o da sua amada!... Ajoelhou n'uma ternura convulsiva, agarrou-o pelo tronco e pelos braços chamando n'uma voz clamorosa:

-- Senhora Angelina!... Senhora Angelina!. .. Que foi isto, que lhe aconteceu !... -- perguntava.

O inesperado de taes palavras, de tal reconhecimento, em vez de alarmar D. Maria socegou a... Logo viu que estava bem acompanhada... E o seu espirito reflectido interrogou-se:

-- Será o tal caixeiro?!... Hade ser!.. Comprehendeu de subito a razão do inesperado encontro na escada. E' que vinha visitar Angelina, como promettera e era natural e sympathico. Joaquim Neves, dizendo quem era e ao que vinha, confirmou as suspeitas, accrescentando «que tendo de partir para Braga vinha perguntar á senhora Angelininha se queria alguma coisa para a familia». Como batesse á porta de cima, sem obter resposta, retirava-se desanimado, quando ouviu um grito que o fizera parar. Tanto elle como a mestra de piano reconheceram a poderosa intervenção de Deus n'este caso singular...

Procuravam meios de soccorrer o corpo desfallecido: antes de tudo leval-a-hiam para a cama -- a força dos braços do caixeiro era sufficiente para isso. Já sustentava Angelina contra o proprio seio, quando ella deu o primeiro signal de vida, abrindo os olhos, uns olhos grandes de pasmo, que interrogavam vagamente... Joaquim Neves depositou-a no fautenil que viu ao lado, com a precipitação de quem é encontrado na pratica d'um acto reprehensivel. Podia a filha do seu antigo-patrão não gostar de que a conservasse n'aquelle contacto carinhoso...

O aspecto da doente era de incomprehensão!... Passou a mão na testa e nos olhos, com o fim de varrer de si a nuvem que a cercava. O rapaz amparava-a ajoelhado no chão, para que o seu tronco, ainda frouxo, não resvalasse... Tinha uma attitude e expressão facial de supplica e prece. D. Maria, já de todo senhora da sua fria razão, commentava mentalmente o acontecido e analysava o quadro, que tinha deante dos olhos. Não receiava nada de mau e com vagar dava-se á comparação de Sallustio com Joaquim. Este era claramente inferior ao deputado. Desculpava a preferencia de Angelina para se desculpar a si, que praticara identico desatino com o alferes das ilhas. «E' louca a mocidade -- pensou -- mas loucura natural nas edades em que o sangue passa com enthusiasmo no coração das raparigas...» Cahindo, após, em si e na realidade da situação ainda commentou: «Mas d'estes é que se fazem os bons maridos. Os outros só servem para nos enganar, para nos desfructar»...

Já tranquilla de todo, sentou se n'uma cadeira para continuar a sua especulação mental, analysando o acontecido. Vendo Angelina ainda inconsciente, com o olhar á procura de qualquer explicação, perguntou-lhe com o proposito de lhe despertar sentir verdadeiro:

-- Acha-se melhorsinha, não é verdade? Diga...

-- Acho... melhor.. . De que?... Que foi?

-- Que havia de ser!... Cahiu ahi sem sentidos, com uma coisa que lhe deu pela cabeça. Eu estava em casa só... Se não fosse este senhor, que a Virgem da Penha mandou passar ali na escada na occasião...

E acrescentou com suspiro amplo:

-- Vi-me e desejei-me!... Foi uma fortuna... De mais a mais são conhecidos...

Angelina confirmou em voz debil:

-- Sim, é o Joaquim... Foi nosso caixeiro...

-- Vinha saber se a menina queria alguma coisa.. . Volto para Braga... -- disse o rapaz.

D Maria, com o seu espirito romântico e fatalista observou d'uma maneira vaga, só para si:

-- Notavel coincidencia!... Este encontro, é um milagre d'Aquelle que tudo manda!...

Depois, todos tres se quedaram mudos, o pensar incerto, a palavra difficil...

O caixeiro perguntou á mestra de piano:

-- Então a senhora Angelina cahiu ?...

-- E' verdade... Estavamos a conversar em coisas, da nossa vida. N'um repente... zaz... redonda no chão...

Joaquim esclareceu:

-- Já teve coisa assim, n'um sermão do senhor missionario padre Antonio, que préga lá no Populo, em Braga... Lembra-se, menina ?... -- perguntou carinhosamente.

-- Lembro; foi do calor...

Angelina desejou um copo d'agua, que D. Maria foi buscar pressurosa, os amplos quadris trementes. Offereceu-lh'o com verdadeiro carinho de mãe, amparando-o para que não cahisse das mãos de Angelina, que lhe agradeceu:

-- Muito obrigada... Que grande incommodo lhe tenho dado! Hade-me perdoar...

-- Não diga tontices. Senti uma grande afflicção, senti... Este senhor é que me valeu. Boa alma, alma de lei. Encontrei-o na escada e veio logo, sem saber para quê...

-- A Senhora do Sameiro guiou-me os passos; tive sempre grande devoção com ella -- disse o rapaz.

-- Não, cá para mim foi a Senhora da Penha, ou o Senhor dos Passos da Graça. Um d'elles com certeza -- pareceu á D. Maria.

O Joaquim para esclarecer a filha do seu antigo patrão informou-a:

-- Alem de procurar a menina para saber se precisa alguma coisa para Braga, tambem lhe trago muitas visitas da senhora Joanninha Silva... Era ao que vinha...

-- Ah!... -- pronunciou a amante de Sallustio -- Não quero nada. Faz as mesmas da minha parte á Joanninha e que escreverei logo que possa...

Como a memoria lhe principiasse a voltar, trazendo grande copia de coisas tristes, para sahir da embaraçada situação, que já comprehendera, acrescentou:

-- Tenho um peso na cabeça... Preciso de me deitar um pouco...

Fez menção de se erguer. Joaquim amparou-a; porém ella dispensou com gesto delicado este contacto, afastando-o.

-- Mas a menina é que não póde subir sósinha a escada. Vamos comsigo.. propoz D. Maria.

-- Não é necessario, minha senhora. Sinto-me melhor. Adeus -- disse estendendo a mão a Joaquim Neves.

-- Ao menos vou eu -- insistiu a carinhosa visinha. -- Não póde ficar lá só. Póde repetir-se...

-- Não repete -- certificou Angelina. -- Já estou boa...

Joaquim Neves comprehendeu que se devia retirar.

Reconhecia-o dolorosamente, apesar do coração lhe dictar que ficasse, pois o seu prestimo poderia ser ainda preciso. Porém Angelina com o sêcco tratamento quasi o despedia... Apesar da sua pouca agudesa, adivinhou os motivos. No emtanto ainda pediu:

-- Queria vir ámanhã, saber da sua saude, se me désse licença...

Angelina condescendeu:

-- Olha, bate aqui á porta da senhora D. Maria, que ella te dirá como estou. E' pessoa muito minha amiga.

E acrescentou com sorriso maguado:

-- Mas não foi nada. Já passou. Do que preciso é de algum descanço.. Fico-te muito obrigada por tudo, Joaquim.

Só D. Maria acompanhou Angelina. A mestra de piano ao despedir-se do caixeiro, quando elle se retirava, offereceu-lhe amavelmente: «Quando quizer venha, que lhe darei noticias...» O rapaz com os olhos razos d'agua disse-lhe á porta da escada: «Muito agradecido. Se me faz a esmola, voltarei ..» Como procurasse esclarecimentos ácerca da verdadeira situação de Angelina (se era casada e com quem) e só esta senhora lh'os poderia fornecer, viria pedil-os á sua piedade, para com uma alma atormentada como a d'elle andava. Em troca, Joaquim dar-lhe-hia conhecimento completo de tudo que se passara em Braga, d'esse tristissimo abandono da casa e da familia, por uma menina toda religião e virtude. Com taes intimidades satisfaria a natural curiosidade de quem lhe parecia tão boa e caridosa. O pobre rapaz, sem bem saber explicar o facto, reconhecia que o seu amor por Angelina augmentara nos ultimos instantes, perante a extraordinária visão da morte da suá amada. Nunca a vira tão formosa, como quando a julgara sem vida e com aquella pallidez fidalga das santas dos altares!... O seu rosto sereno e angélico era d'um encanto e de uma belleza superior á do rosto das mais lindas mulheres... No meio da sua grande afflicção gosara um indefinivel momento de ventura, emquanto a tivera nos braços. Este prazer só lh'o poderia proporcionar a desgraça! Quasi bemdizia o acontecimento que tanto o atormentara!...

Com a imaginação replecta d'um deleite angustioso, consumiu o resto d'esse dia, vagueando pelas ruas de Lisboa, sem comer, cheio de sentimentos nobres, que o collocavam acima das condições triviaes. Assim andou até á noite passando e repassando muitas vezes na Moeda, sitio onde parava sempre, contemplando de longe as janellas d'Angelina, sem proposito definido, n'um goso de louco dentro da sua loucura.

A D. Maria Gomes acompanhara a amante de Sallustio, que subiu a escada socegada, mas abatida. Avaliando lhe o parecer de quasi indifferença, como de pessoa que vivesse ausente da propria infelicidade, julgou que da memoria de Angelina se varrera como um fumo a noticia do jornal. Não seria ella quem lh'a recordaria; bem lhe bastara a primeira experiencia de que tão difficilmente sahira...

Porém, pouco depois, do peito oprimido da amante de Sallustio sahiu um ai! denunciativo de que a sua dôr se conservava profunda e inolvidavel. D. Maria comprehendeu immediatamente que se enganara e logo se preparou para novo golpe! Com piedoso intento de valer á pobre rapariga, assentou em não a abandonar em quanto a visse n'aquelle mau estar. Com voz cheia de carinho suspirou:

-- Ah! minha rica filha! Este mundo é de afflicções e desenganos; todos nascemos para tristesas.

Angelina sentara-se com o cotovello encostado á mesa, a cabeça apoiada na mão. Olhava com funda tristeza o soalho. A voz lamentosa da pianista, despertando-lhe o soffrimento, recomeçou um choro copioso, que enchia de tristeza o ambiente.

-- Não seja assim esmorecida -- pedia-lhe a mãe de Augusto. -- Olhe que me afflige tambem... N'este mundo ha remedio para tudo, menos para a morte. Essa sim, essa é que não tem remedio.

-- Pois a morte é que eu queria -- pronunciou soluçante Angelina.

-- Para isso ha sempre occasião. Não diga coisas sem juizo. Vamos conversar, ouça-me...

Não a ouvia. O seu pranto era de cada vez mais sentido, corriam-lhe as lagrimas em bagas como gottas de fonte milagrosa. Dizia-se a mulher mais infeliz do universo, não havia outra que tanto houvesse soffrido.

-- Estou condemnada por Deus e pelo mundo!

-- Não é -- contraditava-a a mestra de piano. Lembre-se da Magdalena. A menina conhece a historia da Magdalena, a quem Nosso Senhor perdoou?... Pois lembre-se d'ella....

Eram perdidas as consolações, que Angelina não acceitava. A sua culpa era maior que a de todas as Magdalenas, que não abandonaram um pae e uma mãe como a sua, que a estimava tal-qual a menina dos proprios olhos. A felicidade quieta, que despresara n'essa tremenda noite de chuva em que fugira de casa, nunca mais a encontraria! Tal loucura só se podia comprehender, admittindo-se que fôra o demonio em pessoa que lhe tomasse o corpo virginal, para a descer do muro e a levar pelo campo da Vinha, entre lufadas de vento e chuva! Ah! aquellas badaladas fatidicas, que ouvira cahindo espaçadas d'uma torre quando ia a fugir, em toda a sua vida, de seculos que ella fosse, sempre lhe ficariam no ouvido, como dobre de finados! ... Que infinita dôr lhe despertavam taes lembranças!...

-- Minha santa mãe, meu querido pae! Muito vos tenho feito soffrer!... Perdoae-me! -- exclamava.

-- Isso! Isso! Se a gente escutasse os conselhos d'um pae e d'uma mãe, não haveria tantas desgraçadas. Nós ambas o sabemos por experiencia. Mas o que não tem remedio, menina, remediado está...

Nem consolações, nem meiguices, nem conselhos podiam abrandar o estado afflictivo de Angelina. D. Maria abraçava-a, beijava-a, pedia-lhe em nome do Senhor dos Passos da Graça e da Virgem da Penha, sem nada conseguir. Como assim não podesse amortecer-lhe o soffrimento, lembrou-se de lh'o diluir em maior caudal de lagrimas. Talvez esta nova tactica désse melhor resultado, já a vira praticar com exito, em muitas circumstancias...

-- Chore menina, chore. Isso allivia. Deixe sahir toda essa afflicção, que tem lá dentro.

Angelina, com o rosto escondido entre os braços assentes na mesa, dizia palavras incoherentes, phrases sem ligação, irraciocinadas como era a sua dôr. Com o incitamento de D. Maria cresciam-lhe os soluços, os gritos e os lamentos...

-- Nasci em má hora !... Melhor morresse ao vêr a luz do dia... E deixo cá no mundo uma infeliz, que não tem culpa do meu peccado... Rica filha da minha alma !...

-- Jure, descarregue, falle na sua filha, que lhe hade fazer bem.

Passado tempo, veiu o natural cansaço, o abandono das forças, que davam incremento ao soffrer. A expressão do sentir era mais branda, as queixas já espaçadas, o pranto reduzido. A mestra de piano percebeu a approximação do periodo de calma. Quasi triumphante, porém em voz que não fosse provocativa, opinou:

-- Eu não disse? Chorar faz bem. E' remedio muito antigo.

E quando a pobre Angelina só interrompia o seu silencio com suspiros desligados, a sua amiga accrescentou:

-- Bem. Agora diga-me uma coisa: Que tenciona fazer?...

-- Nada. Perguntarei a Sullustio se essa noticia é verdadeira.

-- E se o fôr?

-- Afogo me.

-- Tolice. A mim não me succedeu o mesmo e afoguei-me?

-- Eu afogo me! -- repetiu Angelina.

-- Mas a senhora tem uma filha, como eu tenho um filho -- reprehendeu.

-- Afogamo-nos ambas -- insistiu a amante de Sallustio, mostrando na accentuação das palavras coragem para tamanho acto de desespero..

-- Nem a pequena está cá, nem que estivesse a policia deixava! -- ameaçou D. Maria Gomes.

Angelina não respondeu; mas que se importava com a policia? Ninguem a poderia impedir de, ella só, ao menos, abalar de casa, de noite, dirigir-se ao Aterro, procurar sitio onde a agua fosse muita e latejasse contra a muralha, para se atirar abaixo e desapparecer no fremito das ondas. Seria a solução simples e logica da sua vida desastrada. Que fazia n'este mundo, tendo perdido a unica consolação que desejava, a de ir um dia a Braga, já casada com Sallustio, receber as bênçãos e o perdão de seus paes ?!... Se o deputado preferia outra para companheira legitima, a vida transformava-se-lhe n'uma vergonha, n'uma coisa repellente. Qual a maneira, então, de tudo acabar ? (Era matar-se, desaparecer para sempre, que ninguém mais a visse!... Afogada ou por outra maneira, o essencial era sair do mundo, terminar este existir, que se lhe tornara intolerável.

D. Maria Gomes não querendo provocar de Angelina outras respostas desarrasoadas, mudou d'assumpto, perguntando-lhe:

-- Que quer que se diga a esse rapaz, que ahi virá saber da menina ?!...

-- Que me deixe em paz pelo amor de Deus !...

-- E se tiver lido a noticia do jornal e fallar n'isso...

-- Tem elle alguma coisa comigo?! E' meu parente?!... -- pronunciou com altivez.

-- Bem... bem -- tornou-lhe a mestra de piano, vendo-a tão falta de cordura.

Mas em tom maternal, proseguindo n'um longo ar rasoado, de como podia dirigir-se a Sallustio para o reconquistar, aconselhou:

-- Falle-lhe ao coração. Chore. Mande buscar a pequena e mostre-lh'a nos braços, lembrando-lhe os juramentos. Quer que a venha ajudar?...

-- Muito obrigada... -- respondeu com simplicidade. -- Fallarei só !...

D. Maria ao achar-se no patamar da escada, depois de sahir, exclamou comsigo mesma:

-- Ah! homens!... Ah! verdugos!. .. O que vós quereis é desfructar! Goso e mais goso e as escravas que se aguentem. Carrascos !... Algozes!...

A amante de Sallustio, logo que ficou só, principiou a sondar a profundidade da sua desgraça. A existência apresentava-se-lhe como confusão inextrincavel! N'um dos romances do Jornal do Commercio, lêra (e este quadro ficára lhe na memoria) que surgiam no alto mar nevoeiros tão densos, que os navios permaneciam quietos durante dias e noites, por não conhecerem o rumo a seguir, nem os perigos mais proximos. Assim se sentia ella na vida. Que devia fazer? Interrogar altivamente Sallustio ?. .. Procurar abrandar-lhe o coração com rogos e lagrimas ? Matar-se na sua presença, no caso de ser verdadeiro e irrevogavel o tal casamento ?

Tudo escuro, tormentoso e desesperado! O sol do dia seguinte amanheceria para ella triste e sem esperança de novos risos. Só poderia ver augmentados os seus desgostos, já enormes! Assim, por uma especie de reminiscencia inconsciente, propria das pessoas extremamente sensiveis, lançou-se no vago das crenças religiosas, que tinham enchido toda a sua infancia e mocidade.

Foi a uma gaveta da commoda buscar a imagem da virgem do Sameiro, da qual fôra sempre excepcionalmente devota. Tinha-a guardada com outras e com o retrato de Sallustio n'uma caixa, cofre das coisas preciosas, estimadas do seu coração: eram veneras de santos e santas, estampas coloridas representando virgens de rostos menineiros, suspensas n'um céu azul, com flocos de nuvens ao redor. Santa Ursula e Santa Thereza tinham olhares denunciativos de cilicios occultos, revelados nas lagrimas de aspiração celestial. Santa Cecilia, conceituada mestra de musica em toda a christan-dade, estava em attitude de extasis, tocando orgão, ainda que entre os prégadores de Braga corresse que o seu instrumento predilecto era a harpa, a qual se via a um lado, para attestar o valor historico d'esta opinião. Santa Cecilia tivera sempre, entre as meninas minhotas, apreciáveis cantoras de novenas, consideravel reputação musical.

Porém, só as imagens suas familiares prendiam, n'este momento doloroso, o coração d'Angelina -- a da senhora de Guadelupe e a do Sameiro, que lhe sorriam cercadas d'anjos. Como todas estas divinas creaturas eram felizes, tendo passado à sua vida de pureza, no santo amor de Deus! Nenhuma das baixas misérias terrenas haviam maculado as suas reputações e os seus corpos. Existir n'esse invejavel estado virginal, n'esse meigo estado de sensibilidade, que gera o sereno equilibrio d'alma, em que se criam as aspirações candidas e sublimes da ventura eterna, considerava-o a antiga confessada do padre Martinho, como prazer unico e sublimado, sempre puro, sempre grande!...

Entre as diversas estampas benzidas, estava o retrato do deputado!... Apesar de todo o mal que este homem lhe estava causando, olhou-o com indizivel doçura, conservando-se muito tempo a contemplado. Era a mesma photographia que elle lhe mandara, quando haviam começado o namoro. Que amalgama de recordações tristes, mas impregnadas de carinho, este bocado de cartão resumia!.. Então, Angelina era para Sallustio... anjo, amor e vida!...

-- Agora não sou nada! -- pronunciou deixando cair a cabeça, n'um desfallecimento dolorosissimo.

Veio-lhe pelo peito acima uma onda de fervor e crença viva. Talvez aquellas funestas palavras do jornal incluissem qualquer mentira insensata. Tinha um vehemente desejo de absolver o seu amante, de acreditar o contrario do que lêra .. Mas não tinha ella a confirmal-o, a desenganal-a o procedimento dos últimos tempos, em que se via tão despresada? Passavam-se dias em que Sallustio mal lhe dirigia a palavra; outros em que vendo-lhe lagrimas, lagrimas saudosas pela sua terra, pela sua gente, pelo seu amor extincto, pela sua dedicação desapreciada, nem uma leve pergunta de vulgar interesse lhe dirigia... Já a não acarinhava, como nos primeiros tempos de Lisboa... Mas ella era boa, esforçava-se por não reconhecer o deshumano procedimento do amante. Ser-lhe util e proveitosa, era a sua maior consolação. Queria continuar sua escrava, servil-o humildemente, só para não sahir da sua companhia... Estava habituada á vida de sujeição, sem fito em qualquer especie de recompensa. Fôra sempre este o pendor do seu espirito: em casa de seu pae trabalhava dia e noite, como qualquer creada assoldada. A mudança para Sallustio, não lhe diminuirá a coragem na dura e obscura labuta da existencia. Viver para o homem que o seduzira com promessas, que desfolhara a flor de candura do seu corpo, era sacrificio necessario á sua generosa alma. Empregar-se em bem o servir era a mais ardente aspiração da sua alma simples. Só impunha uma condição -- que Sallustio a não trocasse por outra. Agarrou-se a esta idéa, salvadora da sua felicidade, com tal força de querer que até os seus lindos olhos vertiam lagrimas contentes. A senhora do Sameiro, á qual nunca deixava de fazer as suas orações e supplicas diarias, havia de ouvil-a, havia de protegel-a. N'ella residia todo o poder: Rainha do ceu e da terra, nada lhe era impossível; todos os mortaes tinham a sua vontade sujeita áquella poderosa influencia. Sup-plicou, pois, á imagem querida, n'um enlevo de prece, como se a tivesse ali, ao alcance do seu olhar devoto, tal qual a adorara na sua capella:

-- Minha rica Senhora, não me abandoneis. Elle prometteu casar comigo e não póde ir agora casar com outra. Inspirae-o para que não desgrace uma pobre rapariga, que não tem hoje nenhum amparo n'este mundo, a não ser o d'elle. Haveis de fazer este milagre, minha rica Senhora do Monte Sameirol... Haveis de estender a vossa infinita misericórdia sobre esta infeliz, que sempre foi vossa escrava!...

Beijava fervorosamente a estampa, com o retrato de Sallustio sobre o coração. Assupplicas distribuiam-se pelos unicos grandes poderes, que lhe promettiam ventura eterna -- a incomparavel força divina e a força do amor, que lhe nobilitava a alma. Achava-se enlevada na confusão d'estes dois sentimentos. A imagem tinha-lh'a dado sua mãe por occasião d'uma festa; o retrato fôra prenda de Sallustio, que lhe afirmara que, ao tiral-o no Campo da Vinha, em Braga, a tivera sempre no pensamento. Como se considerara feliz quando isto lhe ouvira!... Tempos lindos, tempos ditosos os de outr'ora, em que as promessas do namorado lhe enchiam de magia os sonhos e acordava de manhã com a idéa unica de o vêr!

-- Oh! mas isto não póde acabar! E' imposivel! Elle não é um monstro.!...

VII

Depois de tamanha lucta, Angelina encontrou-se abatida, n'um desconsolo marasmatico, mas raciocinador. Era indispensável aclarar a situação, pedir explicações a Sallustio, logo que elle chegasse. Porém que palavras empregaria para o interrogar ?... Todas as que lhe vinham á mente, acariciando-as com esperança de que lhe assegurariam o amor do amante, em breve as regeitava por inconvenientes ou precipitadas. Podiam-lhe trazer um desengano, que ella mais temia do que o desejava... .O seu receio justificava-se pelo abandono em que se encontrava: era só no mundo, Sallustio o seu unico arrimo, pois coragem não tinha de voltar á familia, com o testemunho queridíssimo da sua vergonha nos braços. O deputado entrou alta noite, deitou-se alegre, almoçou risonho no dia seguinte, saiu calçando as luvas, com a bengala debaixo do braço; ella ficou, sem ter tido o valor de soltar um só gemido, que conduzisse ao melindroso assumpto.

D. Maria Gomes, essa, no andar de baixo, conservara-se todo o santo dia com o ouvido álerta, n'uma anciedade maternal, que lhe oprimia o coração. Calculara que poderia haver altercação violenta, que fôsse necessario acudir a alguma desordem, pois julgava aquelle malvado capaz de maltratar a pobre rapariga, mesmo de a matar, se a cólera a isso o levasse! Estava-lhe com raiva desde que o deputado não fizera caso do seu pedido, para que ella conseguisse chegar á presença de el rei!...

Alem d'isto consubstanciara-se com a immensa infelicidade de Angelina, a sua imaginação vivia dentro d'esse drama obscuro e tremendo, sentindo-o vigorosamente, com tanta força, como a desventurada protagonista. Na inquietação de saber os pormenores e de acompanhar a sua desditosa amiga, andou toda a manhã á escuta, apparecendo na janella da cosinha, nas da rua, sahindo á escada e subindo até á cancella, n'uma anciedade de mãe. O seu olhar era perturbado, apprehensivo, nem tempo tivera de almoçar, mettendo apenas na bocca duas colheradas d'açorda. Ao meio dia, ainda despenteada, o vestido roçado e velho, toda condoida pela tristesa que lhe dominava o animo, esperava seu filho que viria da guarda do Paço... Logo que elle chegasse contar-lhe-hia tudo pelo meudo e havia de convencel-o a que ficasse em casa, até que Sallustio sa-hisse, pois a sua presença poderia ser necessária para intervir em qualquer conflicto ou desgraça. O infame poderia espancar a mãe de seu filho, quando esta lhe exigisse a reparação á sua honra, e tal é que ella não podia consentir, ainda que tivesse de chamar soccorro da janella, n'um alarido capaz d'alarmar a cidade !...

Por isso, quando sentiu descer o deputado com passadas lentas, cantarolando, ficou mais esperançada; logo que o ávistou na rua, subiu offegante e ainda de fóra da cancella perguntou com palavra urgente:

-- Então ?!... Então ?!...

-- Nada... Não tive animo -- respondeu Angelina n'um deploravel abandono de toda a sua energia.

-- Ah ! filha! Que manhã e que noite! Não lhe preguei olho...

E gesticulava baralhadamente com as mãos, para significar um estado complicado de espirito.

A noite para ella -- disse -- talvez tivesse sido mais atormentada, do que mesmo para Angelina. Passara-a quasi sem dormir, a todo o instante na imminencia d'um ataque asmatico provocado pelo susto. Tinha-se deitado vestida, prompta ao primeiro rumor que sentisse. O apito ficara-lhe á cabeceira com o fim de chamar a policia, se fosse necessario. Como désse grande valor á coragem dos homens e seu filho não estivesse em casa. chegou, por mais de uma vez, a sahir alguns passos fóra da porta, para prevenir o vizinho do segundo andar, um de oculos e barba toda... Queria pôl-o ao corrente do que se passava no prédio, inteiral-o de que em breve se poderia dar uma grande tragédia, em que elle teria de tomar a sua parte. Que somno cheio de sobresaltos com allucinações auditivas, em que chegara a perceber gritos de estrangulamento e o estrebuchar d'uma victima no ultimo arranco da morte !... Quantas vezes julgou chegado o momento de acudir áquella rapariga indefesa, atormentada pelo verdugo da sua honra e da sua vida!... D'uma vez sentara-se na cama no intento de alarmar a vizinhança, gritando da janella; mas como readquirisse o sentimento da realidade, e auscultando a escuridade da noite ouvisse apenas o tic-tac do seu relogio na casa de jantar, deitou se outra vez, porém sempre attenta, na generosa idéa de sacrificio e soccorro. O coração e o cerebro nutriam-se-lhe de piedade por tamanho infortúnio, o procedimento de Sallustio considerava-o de tal modo barbaro, que poderia arrancar lagrimas a uma fera dos sertões africanos.

Ao apreciar o rosto sereno, ainda que de uma expressão maguada, de Angelina, indagou, sentando-se n'uma cadeira da casa de jantar:

-- Então não lhe disse nada?

-- Não, minha senhora.

-- Mas a menina está assim a modo de mais alegre...

Esta reflexão offendeu a amante de Sallustio, como se a acusassem de não ter sentimentos, nem vergonha! Começou de novo a soluçar, com a cara escondida, de bruços sobre a mesa. O seu tronco tinha movimentos de angustia, todo o corpo lhe estava possesso de dolorosa afflicção. Abafava os suspiros, queria esconder o choro, sem o conseguir, apesar dos potentes esforços para se calar. D. Maria Gomes mais uma vez se reconheceu responsavel d'aquellas lagrimas, que provocara. Por isso, principiou a dizer-lhe: «Bem, bem!... Não se ponha com essas coisas! Se eu soubera...» Queria tranquillisal-a,recommendar-lhe coragem e fortaleza, era melhor esquecer tudo aquillo. «Mas, porque não tinha fallado ao doutor ? -- reprehendia-a docemente -- porque se não desenganara? Era necessario cada um saber a lei em que vivia!

Terminada esta nova explosão de lagrimas, Angelina explicou: Não tivera coragem. Chegara a abrir a bocca, mas faltara-lhe a palavra. Vira-o durante o almoço, com um rosto tão alegre!... Estivera communicativo e contente, inteirando-a de coisas da sua vida de aspirações, affirmando que em breve a collocaria melhor, promettendo-lhe mais vantagens na existência. Sallustio parecia feliz e, n'esse dia mais do que nos outros, procurara envolvel-a nos variados accidentes da sua ventura.

A antiga mestra de piano, sorrindo com amargura, duvidou. Ella também fôra illudida com promessas, que eram tanto mais risonhas, quanto mais proximo vinha o momento do desengano. Não devia acreditar tão facilmente no que diziam os homens, que só fazem caso das mulheres, quando precisam d'ellas. Provavelmente o riso, o contentamento, a alegria exce-pcional que lhe encontrara, era antes um signal de tudo ir bem com a outra, que era rica, do que uma prova de não haver nada.

Angelina rebateu calorosamente a malefica interpretação. Não acreditava na sua boa estrella, pois em todas as coisas tinha sido infeliz; mas, aquella noticia conforme a déra no jornal, não podia ser verdadeira... Talvez apenas algum simples namoro, d'estes que todos os homens teem, para passar o tempo!... Nos papeis mente-se muito -- ouvira dizer Sallustio, quando lhe fallara das suas esperanças, referia-se, de certo, ás de ser ministro, que era o que elle principalmente ambicionava, desde que era deputado. Do tal casamento não lhe vira parecer... Sallustio nunca fôra fingido e, se estivesse para praticar uma acção tão infame, de certo teria cara de crime e de remorso, que lhe não descobrira, pois até a fez sentar junto d'elle á mesa, o que nem sempre fazia e dera-lhe muitos beijos n'essa manhã, perguntando-lhe como estava a pequena.

D. Maria Gomes mostrou-se pertinaz na incredulidade:

-- Ora, minha rica, a senhora anda a ler ! Desconfie-me delles : Quando fazem d'essas coisas, ou já a pregaram, ou estão para a pregar. O alferes Carvalho não foi o mesmo comigo ?! Quando partiu para a ilha, só queria que o visse, chorava que parecia creança! A bordo apresentou-me aos seus amigos, como a sua noiva. Ora, depois, eu soube por um d'esses, que passados tempos tambem me namorou, que elle, quando saiu de Lisboa, já tinha o casamento justo com a tal prima, que era rica ! A quem a menina vem dizer d'essas, a uma mulher desenganada !...

Angelina soffria immenso com taes palavras. Empregava toda a força, para as repellir da sua alma; mas não o conseguia completamente. Os olhos quasi lhe rebentavam com lagrimas represadas ... E para se defender, defendeu Sallustio:

-- A senhora não conhece o meu... Gosta muito de mim e não é como os outros...

-- Gosta muito de si ?... E o alferes Carvalho não gostava de mim ?... São todos os mesmos -- opinou scepticamente D. Maria Gomes. Verá se elle lh'a não prega... Tão certo, como dois e dois serem quatro...

A amante do deputado não se pôde conter. Por mais energica que fosse a vontade com que se oppunha ás palavras desanimadoras da sua amiga, tinha uma voz interior a gritar-lhe que eram verdadeiras ! Os olhos embaciaram-se-lhe. Grossas lagrimas principiaram a rolar pelo seu formoso rosto, de uma serenidade contradictoria e artificial... A expressão d'aquelle soffrer silencioso mostrava-se assim mais profunda e grave; pois que Angelina procurava não a deixar sahir de si, oppondo-se energicamente a desalentos. Era de uma dignidade tocante a intenção d'esta infeliz, que não acceitava consolações, só para evitar censuras ao procedimento do unico homem que amava. D. Maria Gomes reconhecendo-o apiedou-se e mais uma vez se arrependeu de atormentar aquelle santo coração. Em virtude d'isto principiou a desdizer-se :

-- Que de modo nenhum lhe quero tirar as esperanças. Esperança até ao fim ! Quem sabe ?! Talvez o jornal minta, como a menina diz. Mas isso mesmo é necessário saber-se, para seu socego. Viver assim é um inferno ! Mil vezes um desengano ! Um desengano é que é necessário. Falle-lhe. Hoje quando elle vier ao jantar falle-lhe claro, diga-lhe que quer saber a quantas anda.

Para minorar a dôr de Angelina, cuja erupção ella de novo occasionara com imprudentes palavras, é que se mostrava resolvida a fazer entrar o problema n'um caminho mais pratico. O seu espirito exigia uma solução prompta. Angelina não devia permanecer n'esta incerteza, peior que a verdade; ainda que a verdade fosse má. Chegava a parecer cruel ao dar taes conselhos, n'uma voz natural e confidente, concluindo com certa parcialidade na pronuncia:

-- Esse pobre rapaz, o caixeiro que foi de seu pae, desde hontem que me não deixa a porta. Olhe que a ama lá de dentro, fique certa d'isso... Eu conheço bem, quando elles são fingidos !...

A amante de Sallustio não recebeu de bom agrado estas palavras. Seccaram-se-lhe as lagrimas. Que se importava Joaquim com a sua vida ? Era, porventura, sua irmã, sua parenta, ou promettêra-lhe, ella, algum dia a sério qualquer coisa? Sallustio ameigara-a, n'essa manhã tinham conversado muito a bem... Que mais podia desejar para ser feliz ?! O jornal de certo mentira. Ainda que ella no primeiro momento tivesse succumbido, dando uma prova de fraqueza acreditando-o, isso já passara e agora poucas duvidas lhe restavam ácerca das boas intenções do deputado.

D. Maria, continuava a ter um aviso diverso, ainda que fallasse com prudencia, para lhe não causar outro ataque de choro. Angelina devia ser mais difficil e até mais exigente nas explicações com o deputado, para saber em que pé viviam... Um desengano que lhe viesse mais tarde, seria mil vezes mais doloroso. E de pé, approximando significativamente o seu busto com certo imperio na expressão, disse:

-- Ora ouça. Isto é para seu bem. Que perde a senhora, se pegar no jornál, que aqui lhe trago (mostrou o Diario de Noticias que tirou de um bolso) e o pozer diante dos olhos do doutor, perguntando-lhe se isto é verdade ! ? -- rematou, indicando com o dedo o ponto do periodico, onde estava a funesta noticia.

-- Elle póde zangar-se! A's vezes tem tão mau génio... -- objectou Angelina.

-- Faça como lhe parecer! -- disse a antiga mestra de piano com despeito... Eu cá era logo, não tinha paciencia... nem papas na lingua. Se fôr mentira, melhor, ficamos todos descançados.

-- N'isso tem a senhora rasão... -- considerou a amante de Sallustio, um tanto indecisa.

A D. Maria Gomes, como lhe parecesse~o momento azado, insistiu:

-- Elle não vem hoje a casa ?

-- Vem...

-- Então ahi está ! No fim do jantar ponha-lhe esta sobremesa diante (estendeu de novo o braço, com o Diario de Noticias na mão). Ou cova, ou dente... Que responda! -- aconselhou triumphante, calculando um golpe de effeito.

Angelina não se decidia... Ella offereceu-se:

-- Quer que eu cá venha pol-o entre a espada e a parede ?! Não me custa nada. Entro, mostro o jornal, como quem leu a noticia por acaso e lhe vem dar os parabens pela rica obra (pronunciou sarcastica e aggressiva) e veremos o que elle responde. Sempre hade responder alguma coisa...

Talvez para não consentir na desarrazoada interferência de D. Maria, Angelina mostrou-se resolvida:

-- Quando elle hoje vier da camara... -- prometteu.

-- Isso. Mas deixe-o jantar primeiro. No fim pregue-lh'a. Quer que eu venha ? -- tornou a prestar-se.

-- Não, minha senhora, fallarei só.

-- Bem -- rematou satisfeita. -- Então espero da sua palavra... E a D. Maria cá está em baixo, p'ró que der e vier, seja o que fôr .. -- concluiu energica e resoluta.

Quando, depois das seis horas da tarde, Sallustio Nogueira subia a escada, com aquellas suas passadas imponentes, que todos os vizinhos já conheciam, a mestra de piano ficou ainda mais inquieta do que estava ! A prolongação d'este estado indefinido e cheio de mysterio excitara-a... Seu filho Augusto, ao corrente dos acontecimentos que se preparavam, permaneceu em casa a seu pedido, para acudir, se fosse necessario. O ruido das botas rangentes do deputado, andando no pavimento superior, era cuidadosamente seguido por D. Maria, pelo tenente e pela creada, todos de ouvido á escuta. Uma catastrophe estava imminente e os tres haviam concertado um plano de apropositada intervenção: Ao primeiro barulho, D. Maria subiria a escada só, tocaria a campainha e se a deixassem entrar, apreciaria, por si, como as coisas se passavam. Se considerasse o caso mal parado, principalmente havendo violencias contra Angelina, daria alarme. Fóra da porta, na escada fieava seu filho, em baixo a creada com o apito na mão para chamar a policia, logo que ella désse duas pancadas fortes, com o tacão no soalho. O tenente Augusto, que se arreceava de complicações com um deputado de tanta influencia perante o ministro da guerra, observara: «Mas que diabo temos nós com isto! Sua mãe, que via uma inqualificavel injustiça no procedimento de Sallustio, rebateu energicamente este modo egoista de considerar o facto:

-- Que temos nós com isto ! Mas é uma pouca vergonha ! Teu pae...

Ia a vociferar, mais uma vez, contra o seu antigo amante, censurando-lhe o infame procedimento ! Porém o filho, com medo de que sobreviesse algum d'aquelles apparatosos ataques de nervos, que exigiam a procura de medico, e o obrigavam a ficar em casa, não podendo ir ver a sua rapariga, concordou logo, pedindo lhe silencio com a mão aberta:

-- Pois bem, pois bem... Vamos lá...

O incidente esperado pela mestra de piano, ainda se não produziu n'essa noite. Sallustio, depois de jantar, desceu as escadas com a lentidão de um ventre farto, sem se ter produzido qualquer barulho !... Em cima um socego de felicidade. D. Maria ficou mais contente, ainda que bastante desilludida em relação á sua perspicacia. Mas fôra melhor assim -- pensou. Se se tivesse verificado que a noticia era verdadeira, aquella pobre rapariga morreria de dôr e ao desamparo; porque alem do amante, não tinha mais ninguém no mundo, visto os paes a terem abandonado completamente.

-- Para que se dizem certas coisas nos jornaes, para que se inventam estas mentiras ! -- apostrophava indignada.

-- Para fazer sensação -- esclareceu o tenente Augusto, ao despedir-se de sua mãe.

A mestra de piano, toda esperança, subiu ao quarto andar para conversar com Angelina e dar-lhe os parabens. Esperava encontral-a alegre, contente e feliz. Foi grande o seu espanto, vendo-a verter copiosas lagrimas, as olheiras afogueadas e rosto de suprema affiicção.

-- Então que é ? -- perguntou surprehendida.

E como a amante de Sallustio não respondesse logo, acrescentou:

-- Sempre é verdade ??...

Angelina não sabia ao certo. Sallustio entrara em casa com um rosto tão carregado, que ella não se atrevera a dirigir-lhe a palavra. Porém tinha uma voz lá dentro a segredar-lhe que tudo era como o jornal annunciava. O coração agoirava-lhe alguma coisa de funesto... Triste sorte, triste sorte!... Merecia melhor a Deus! Nunca praticara grandes peccados, para que fosse tão duramente castigada pela Providencia! A não ser a falta de se entregar dedicadamente áquelle homem, desobedecendo aos conselhos do confessor e a seus paes, dando-lhes um grande desgosto, não tinha mais nada de que se arrepender ! A sua vontade era matar-se, atirar comsigo de uma janella abaixo, espapar-se no pavimento da calçada, antes de vir ao conhecimento positivo e terminante da sua infelicidade! Queria morrer, queria acabar de uma vez, procurando modo de terminar esta vida tão cheia de ralações.

D. Maria Gomes, n'este instante, vendo Angelina triste e apoquentada, entendeu que lhe devia dar coragem. Por isso sorrindo de um modo trivial, para lhe amesquinhar o acontecimento disse-lhe:

-- Tolice, grande tolice! Quem é que falla aqui em mortes ?!... A senhora tem muito para que viver, tem a sua filha. Demais, acredite em Deus que é grande e bom. Explique-se hoje com o doutor, para saber no que devem ficar. Ponha-lhe a faça aos peitos, logo que elle entre á noite, ou o mais tardar ámanhã de manhã... Conforme responder, veremos.. -- concluiu com modo protector.

Parolou muito tempo diante de Angelina, que, toda entregue á sua afflicção, mal a escutava. O que tivesse de ser estava escripto e a gente tem obrigação de pôr o coração á larga. O que não tem remedio, remediado está. Ella não passara pelo mesmo?... Passara, e comtudo vivêra, trabalhara, organisara a sua vida. N'este momento dizia-lhe as coisas com a maior franqueza: -- nunca tinha acreditado nas promessas do deputado. Parecia-lhe fidalgo e soberbo de mais para ligar o seu destino ao de uma rapariga, sem outro merecimento alem do muito amor que lhe tinha !... O amor -- pronunciava irónica -- elles importam-se bem com o amor... O que querem, estes senhores, é gosar e o mais adeusinho... Havia exemplos de indivíduos de grande posição, casarem inclusivamente com as suas creadas ?!... Havia, ella mesma conhecia alguns desses homens raros, tão raros, que se podiam contar pelos dedos. Era milagre, que se dava poucas vezes. Sallustio não tinha cara de ser d'esses !...

-- Oh ! minha senhora! Não me diga isso que me despedaça o coração ! Eu ainda tenho esperanças !.. .

-- Lá esperança, até á ultima -- concordou D. Maria. Falle-lhe, accuse-o, chore, mande buscar sua filha, supplique-lhe com ella nos braços, se tanto fôr necessario. Se o monstro já não tiver resquicios de piedade no coração, no céu ainda encontrará remedio. A Providencia é grande, minha rica filha, fiemo-nos sempre na Providencia, como dizia meu tio conego, o grande pregador da Sé.

N'esta lucta de incertezas e palavras Angelina perdia a força própria para resistir; ficara mais fraca e abatida, entregava-se submissamente a esta vontade que já a dominava. A sua desforra era chorar, e se com lagrimas não podesse mover Sallustio á compaixão, só a morte lhe traria descanso. Quando D. Maria Gomes lhe repetiu, mais uma vez, que Joaquim Neves se lhe não tirava da porta a perguntar noticias d'ella, a interessar-se e fazer perguntas ácerca da sua vida, a amante do deputado ainda teve energia para se revoltar, pois via no procedimento do caixeiro de seu pae qualquer inquerito e talvez uma reprehensão á sua falta.

-- Que não volte cá; porque Sallustio póde encontral-o e temos desordem... Eu disse-lhe que tinha casado, o melhor é a senhora fazer o obsequio de lhe dar a entender que meu marido é muito desconfiado e zeloso ...

D. Maria Gomes sorriu:

-- Então pensa que elle comeu a patranha?... Pelos geitos com que me fallou, vi que tambem tinha lido o jornal...

Angelina tornou-se pallida!... Tumultuou-lhe no cerebro o seu passado de candida pureza, agora transformado em vergonha! Joaquim conhecera-a virtuosa e vinha encontral-a concubina de um homem que ía casar, e provavelmente lhe fazia a affronta, como todo o mundo, de acreditar que, apesar d'isso, continuaria a servir-lhe como amante ... Se Joaquim Neves lêra a noticia, como havia de julgal-a mulher despresivel, pois necessitava mentir para esconder a sua situação abominavel! Todo o sangue se lhe recolheu ao coração e ao cerebro. Esteve alguns minutos sem fallar, calculando o que faria. N'essa noite, ou quando muito no dia seguinte, havia de explicar-se com o deputado. Se o caixeiro lêra a noticia do casamento de Sallustio!... Como havia de pensar mal d'ella, encontrando-a ainda na mesma casa com um homem que a ía trocar por outra... De repente a alma transformou-se-lhe e adquiriu energia bastante para seguir caminho determinado, depois de assentar n'uma resolução.

-- Deixe-me a senhora escrever uma carta a uma amiga, que isto agora vae ... -- prometteu á mestra de piano.

Pelo tom decidido com que assegurara o intento em que estava, D. Maria acreditou que, d'esta vez, sempre seria certo. Sentiu-se a mestra de piano aliviada de um grande peso. Àpressou-se em sair, encorajando Angelina e repetindo o offerecimento para a ajudar, se necessário fosse. A filha de Pedro Alves agradeceu, mas não acceitou. Os seus olhos enxutos significavam certeza no cumprimento d'um determinado proposito! Logo que ficou só, começou atarefadamente nos seus arranjos, como se plapeasse longa e demorada ausencia.

Toda a sua roupa e a de sua filha metteu-a no mesmo bahu. As coisas mais estimadas (joias de insignificante valor, que trouxera da casa paterna, imagens de santos e retratos) guardou-as cuidadosamente em caixas de papelão verde. Principiou a arrumar tudo na casa, preoccupada, como sempre, com a boa ordem e o asseio! Não queria que qualquer mulher mercenaria, se ali viesse a entrar alguma, tivesse que dizer em seu desabono.

Qual o fim de taes preparativos? Ella mesma o não sabia... Porém, a sua idéa era que poderia ter de sair precipitadamente d'aquella casa maldita, se o amante, nas respostas á pergunta que lhe ia fazer, fosse tão malvado que lhe tirasse toda a esperança. Em certos momentos sentiu necessidade de se sentar n'uma cadeira, para contemplar alguns d'esses objectos, que lhe recordavam um passado modesto e feliz... A sua vontade de chorar crescia, as lagrimas vinham-lhe desprevenidamente aos olhos; mas ella seccava-as logo, levantando-se com energia a continuar a sua tarefa...

Antes da meia noite Sallustio subiu a escada. Raras vezes vinha tão cedo! Angelina armou-se com expressão facial commum e até prazenteira... O seu fim era esconder os tormentos do espirito, sob falsa apparencia de tranquillidade e conservar animo para dizer tudo que tinha a dizer.

O deputado entrou de rosto alegre e expansivo; parecia que excepcional ventura lhe enchia a existencia. Cantarolava a aria do Fausto: salvè dimora casta e pura, trecho que n'essa noite tivera successo em S. Carlos, havendo elle assistido ao espectaculo, do camarote de Lioncio de Mertola. Palmira mostrara-se excepcionalmente afavel, compartilhando acerca da opera as opiniões do deputado, que eram contrarias ás do critico José Torres, publicadas no Jornal do Commercio. Sallustio percebia muito pouco de musica; porém, a um homem da sua esphera, não era permittido ignorar coisa alguma, diante da mulher a quem desejava agradar. As suas apreciações ácerca d'aquelle poema de amor, gerado n'uma influencia mysteriosa e sobrenatural, a explanação prolixa que da sua idéa fizera, surprehenderam Lioncio, que sempre considerara o Fausto como uma d'essas enormes patranhas theatraes, de proposito inventadas para a gente se não deitar antes da meia noite! Sallustio, dando grande valor ás suas palavras accentuou:

-- Não, meu caro commendador, este drama é a interpretação, por assim dizer mythologica, da lucta entre a intelligencia e o amor, entre o coração e o cerebro. De um lado o saber do velho doutor Fausto, decrepito e descorajado, não encontrando consolação possível no seu grande armazém de conhecimentos; do outro a joventude e a força, renascendo sob o influxo e poderio extraordinário de Mephistopheles, que representa a natureza nas suas grandes revoltas... Oh ! é grande!... E é poético, creia!...

O commendador retorquiu, com o seu largo riso de homem satisfeito :

-- Seja como o amigo quizer; mas a verdade é que eu gosto immenso d'aquelle diabo, e das suas gargalhadas, que me fazem cocegas cá por dentro.

A permanencia do futuro ministro, no camarote do rico negociante de trigos, durante dois actos, fôra commentada e tida na conta da confirmação publica da noticia do casamento, que no dia anterior apparecêra. Sallustio, tendo percebido esta idéa a circular, fez completa exposição de sua pessoa, tomando logar á frente no camarote, fallando a Palmira animadamente, a inculcar pela conversa, familiaridade de noivo. Lisongeava-a com o desmerecimento propositado das senhoras de quem fallavam: todas eram menos distinctas, nenhuma tinha formosura, que se approximasse da de Palmira.

-- Estão-na invejando immenso, acredite -- affirmou passeando em redor o binoculo.

-- Não diga tolices -- reprehendeu a filha de Lioncio. -- Todas valem mais do que eu.

Angelina, logo que Sallustio entrou em casa, de parecer tão prasenteiro, disse-lhe:

-- Vens muito contente...

-- Podéra! As coisas correm.. -- retorquiu, atravessando a sala de jantar, com a bengala ao hombro, na inclinação das espadas dos soldados da opera, quando voltam contentes da guerra.

Depois, parando, explicou:

-- O ministerio em crise por estes dias... certa a minha entrada para a pasta da marinha... Lioncio de Mertola amigo cá do rapaz !...

Suspendeu rapidamente a informação, como quem se arrependesse...

Angelina observou a mêdo:

-- Bem sei... E' o pae da tal formosa Palmira...

-- Formosa Palmira! Como é que tu a conheces !

-- Não conheço, não... Tu é que um dia fallaste n'ella... e hontem, cá em baixo, em casa de D. Maria, tambem me leram n'um jornal...

Sallustio atalhou:

-- Ah! sim, uma coisa que vinha no Diario de Noticias! Acreditaste n'aquillo?

-- Não é verdade ?.... -- perguntou com sorriso de supplica.

-- Não sei...

-- Se não sabes ... é porque o é ...

-- Talvez seja.. .

A filha de Pedro Alves, como já tinha o espirito prevenido, supportou corajosamente a declaração ... Porém no seu rosto exprimiu-se tamanha tristeza dizendo: «Bem, fico abandonada», que o proprio Sallustio, ao ouvir-lhe estas palavras, foi invadido por um sincero sentimento de piedade... Veiu para ella meigo e carinhoso, abraçou-a com extremo affecto, promettendo:

-- Mas eu serei sempre o mesmo para ti, pódes crêr! Succeda o que succeder, nunca te deixarei.

A Angelina rebentaram-lhe lagrimas com mais força do que se elle a tivesse injustamente esbofeteado! Deixou-se cair n'uma cadeira, escondendo o rosto nas mãos, para occultar a grande afflicção que a dominava e não vêr o homem cruel, que assim lhe esmagava o coração. A sua dôr enchia aquella casa, enchia a terra e o céu com soluços, que eram caudaes de choro. Sallustio procurava consolal-a; sentou-se junto d'ella, pegou-lhe na mão, fallava-lhe com ternura de namorado ... Eram as exigencias sociaes que a isto o levavam; bem sabia que elle não podia amar outra mulher, senão ella! Porém... era pobre, n'este mundo não se vive unicamente de palavras, estava farto de andar sempre com precisões de dinheiro a pedir a este, a pedir áquelle... Se ia ser ministro em breves dias devia-o ao conde de Frazuella; devia-o a Leoncio de Mertola, que o empurrava com a sua influencia de capitalista. O dinheiro póde tudo, pelo dinheiro tudo se move -- considerava com certa pronuncia desolada e descontente. Mas nunca a abandonaria, -- repetiu -- havia de consideral-a sempre como a unica mulher a quem amava... Este casamento, que estava tratado e já agora era indubitavel, concedia-lhe meios para a poder sustentar com mais abundancia do que até ali. No futuro não lhe havia de faltar nada...

-- Mas é isso que me prometteste ha dois annos ? -- disse Angelina com palavra nitida no meio do seu desespero.

-- Ora adeus, ora adeus! Não te ponhas com essas coisas. A gente não vive de tolices. O que lá vae, lá vae!

-- Era melhor não me teres desencaminhado. Eu estava feliz em casa de meu pae -- retorquiu aspera e reprehensiva.

-- Mau! Se principiamos n'essa afinação...

E pôz-se de pé, com aspecto de mal humorado. Estava-lhe parecendo que eram sufficientes as explicações que tinha dado. Angelina devia considerar-se satisfeita, em o vêr humilde e supplicante diante d'ella. Que mais queria, que mais poderia desejar? Com ar casmurro deu, silenciosamente, uma volta á mesa. Depois perguntou-lhe com voz firme:

-- Ora dize-me cá: se tu encontrasses por ahi um ricasso, um millionario que quizesse casar comtigo, eu teria o direito de me oppôr para te conservar n'esta pelintrice ?...

-- Mas eu é que não casaria com nenhum outro homem, ainda que elle me offerecesse o mundo inteiro.

-- Pois eras bem tola. Não encontrarás duas pessoas da tua opinião -- respondeu sceptica e friamente.

Angelina, apesar de não poder exprimir com clareza as suas idéas, sentiu que o seu amante apresentava uma hypothese absurda para se defender. Não havia comparação possivel, entre os dois, para o caso. Qualquer que fosse a sua formosura, não estava ella depreciada por Sallustio ? As mulheres não são como os homens, ellas teem de morrer agarradas ao seu erro. Não ha remissão, não pôde haver esquecimento, todos faliam d'isso, todos dizem: «E' a amiga de Fulano !»

-- Sou uma grande desgraçada! Antes eu morresse no ventre de minha mãe!... -- pronunciou quasi exhausta.

O deputado irritou-se com a nova manifestação de queixa. Não tinha outras rasões para a convencer. Se era parva, se não entendia as coisas, tanto peior para ella. Outro no seu logar faria peior; abandonal-a-ia sem palavras consoladoras. Propunha-lhe compensal-a, tornar-lhe a vida abundante, até com luxo e ostentação... Não queria ? Adeus: sua alma, sua palma. Não tinha mais nada a dizer, não achava digno de si rebaixar-se mais, estar a pedir-lhe perdão. Talvez ella quizesse vèl-o ajoelhado e de mãos erguidas! Ora adeus!...

-- Um casamento como o de Palmira Freitas, não havia homem nas minhas circumstancias que o recusasse -- affirmou com as mãos enterradas acintosamente nos bolsos, passeando junto da parede.

Então, a filha de Pedro Alves, levantou a cabeça dignamente e pronunciou com energia:

-- Mas eu é que vou ter com essa senhora, e digo-lhe o que tu me deves. Ella hade ter coração.

O deputado irritou-se com a ameaça e com a revolta d'aquella, que sempre fôra'submissa. Caminhou dois passos para ella e exclamou em tom irritado:

-- O que eu te devo !... O que eu te devo !... O que é que eu te devo ?!

-- O casamento que me prometteste, que juraste pela alma da tua mãe! -- respondeu altiva.

-- Ora deixa a alma de minha mãe socegada lá onde está... -- disse sorrindo ironicamente.

Porém, depois, tomando alento, cresceu para ella n'um arranque aggressivo, chasqueando:

-- Então pensas que um homem como eu, vae casar com uma mulher como tu?! Ora, minha rica, outro officio! E' preciso verem-se as coisas como ellas são.

E voltou-lhe as costas, encaminhando-se para o quarto, com a luz na mão, empurrando a porta com força...

Angelina ficou só na escuridade immensa! Não se sentia e não se lamentava: era uma pobre coisa esquecida n'um sitio ermo, só acarinhada pelo olhar innocente das aves do céu. Mas depois, n'um protesto cheio de lagrimas, começou a evocar baixinho, para não ser presentida de Sallustio, os nomes queridos de seus paes. Agachada, a face coberta com as mãos, conhecia-se perdida, misero ponto n'um espaço infinito. O risco de luz marcado na porta do quarto, onde Sallustio, extranho áquella dôr, lia socegado o seu jornal, era o unico signal de realidade exterior. Como um fogo que fosse rebentando d'um rescaldo, a sua consçiencia principiou a surgir com um sentir de forte dignidade, e o seu corpo erguia-se, vibrando d'uma altivez heroica. A sua desgraça era incomparável, o desamparo em que ficavam, ella e sua filha, completo; porém pelo homem que tanto mal lhes estava fazendo, sentia desprezo. N'este momento lugubre, sem pesar o que ia fazer, cedendo ao impulso gerado n'um estado cerebral anomalo, encaminhou-se para a porta da escada, agarrando-se ás paredes, como guia. Andava cautelosa para não ser presentida e parou subitamente ouvindo tossir Sallustio. Por fim deu com a sahida, abrindo a cancella devagarinho. Estava no patamar e ao contacto do corrimão soffreu perturbador abalo, como se tivesse encontrado o começo d'essa eternidade pavorosa de trevas, com que a tinham ameaçado em creança!

Fixara a sua idéa n'uma decisão tremenda e dolorosa !... Abandonava de vez aquella casa, onde tivera tantos contentamentos e desgostos. Nunca mais voltaria, não desejava tornar a ver o verdugo da sua existencia, o consumidor luxuriento da sua virtude e castidade. Tinha-o por mais nojento do que um sapo. A sua vontade era possuir um punhal, para lh'o enterrar no coração! Grande acto de vingança e merecido castigo, como os haviam executado com justiça, muitas heroinas dos romances que lera na Revolução de Setembro e no Jornal do Commercio. Mas não lhe cabiam na indole branda, nem se lhe demoravam no peito generoso, sentimentos de ira e com olhar piedoso assentou em fazer o sacrifício da sua vida, dar morte a si mesma, para que todos sobre a terra continuassem felizes!...

Desceu a escada com o maior cuidado para não ser presentida... Parecia um criminoso que procurasse evitar um castigo, parecia o gôso humilde a fugir da matilha fidalga... Demorou-se um minuto junto da porta da D. Maria Gomes, reflectindo... Tirou do seio a carta que escrevêra, antes da chegada de Sallustio. No sobrescripto ía o nome da antiga mestra de piano, que, n'este instante supremo, Angelina considerava como segunda mãe, pelos muitos carinhos com que a fortificara em todas as suas amarguras. Lembrou-se de lh'a metter por debaixo da porta; mas não o fez, considerando que podia ser encontrada, antes de tempo, aquella folha de papel, onde escrevêra as suas ultimas vontades! Era por assim dizer um testamento. O conteudo, desejava que fosse conhecido só no dia seguinte, quando já ninguem lhe podesse valer, quando tudo estivesse acabado. N'essa carta, escripta n'uma linguagem simples e sentida, Angelina encarregava D. Maria Gomes de participar a seu pae o triste fim que ella tivera. Devia explicar-lh'o como um acto de desespero pela má sorte que a perseguira, e como sendo a penà com que se castigava a si mesma, por todas as suas faltas e muitos peccados. No seu espirito sempre existira a idéa do casamento com Sallustio, e logo que o conseguisse iria lançar-se aos pés de seu pae e de sua mãe, pedir-lhes absolvição do passado. Logo que esta unica esperança e consolação lhe era negada, não podia viver por mais tempo. Resolvia acabar com os seus dias, com o fim de não ser motivo de vergonha para a sua familia. Pedia humildemente perdão aos que lhe deram a vida, supplicava-lhes, n'este ultimo adeus, que lhe mandassem rezar tres missas por alma, na igreja dos Congregados de Braga. Queria que fossem para sua filha todas as coisas que possuia e deixava convenientemente accommodadas n'um bahu que estava no seu quarto, menos o retrato de Sallustio que levava comsigo. Não poderá tornar a vêr a pobre innocente. Sabia que se a tivesse mais uma vez nos braços, a abandonaria a coragem de se matar. Em nome da religião, como recompensa dos soffrimentos da sua alma afflicta, exorava de seus paes que adoptassem aquella netinha, até como simples acto de caridade. A innocente não era culpada da maldade dos outros; por isso não lhe infligissem o castigo immenso de não ter uma familia. Desejava que lhe deitassem a sua bênção, pedia perdão diante de Deus a todas as pessoas a quem offendêra. Ella nunca fôra, nem má mulher, nem falta de religião; todo o seu crime vinha de ter amado muito.

Na rua de S. Paulo deitou n'uma caixa de correio a carta que prevenidamente trazia estampilhada. N'este momento exclamou, num gemido supremo:

-- Como a minha vida tinha de acabar, rica Senhora do Sameiro!...

Encaminhou-se pela rua Occidental da Moeda, para os lados do Tejo. Dois marujos altercavam junto da porta de uma taverna. Ao verem-n'a, um propoz ao outro, de modo que Angelina ouviu:

-- Lá vem uma fadista. Vamos nós agarral-a?...

Tentaram oppondo-se-lhe á passagem; mas ella, n'uma corrida desesperada, fugiu-lhes, e elles, como estivesse chovendo copiosamente, abandonaram-na, dizendo o menos borracho:

-- Pareceu-me velha. Deixal-a ir. Vamos ali a S. Paulo, á Magána, que lhe veio hoje peixe fresco.

VIII

Angelina com o chale pela cabeça, ao reconhecer que não era perseguida, parou, entrando depois no pequeno jardim, D. Luiz, onde se escondeu entre os arbustos. Já passava da meia noite, a chuva diminuia; mas o vento continuava a ulular varrendo as ruas, como metralha em campo de combate. O barulho das aguas do rio sentia-se como fremito de estertor de milhões d'homens. Os lumes da longa fila de candieiros parallela á muralha do Aterro, amorteciam-se á passagem das lufadas. Os pequenos pharoes, marcando ancoradouro das embarcações espalhadas no Tejo, eram como olhos esgazeados de féras a tornarem de maior pavor a escuridade mysteriosa da noite. Os raros transeuntes, chapinhando lama, passavam como sombras. O ceu caliginoso fazia mêdo, a terminação em fogo rubro, da alta chaminé da fabrica de gaz, semelhava um bolide suspenso no ar, um olho aberto na densa negrura, a qual gerava receios, enfraquecendo o sentir real da propria existencia. Espreitavam das suas guaritas os guardas d'alfandega, passavam os ultimos americanos atulhados de passageiros, o aspero ramalhar das arvores tinha uma estridencia de risada cruel.

No meio d'esta confusão formada de sons que se sommavam e de frouxos cambiantes de luzes, permanecia a amante de Sallustio, tremendo como se estivesse n'um cemiterio com a visão de mortos a sahirem das campas. Dominada pela obsessão do proprio fim da sua vida, escondida entre o arvoredo, todo aquelle cortejo de terrores lhe preannunciava a eternidade, em que ia entrar... Por vezes faltava-lhe o animo para seguir na via dolorosa, que marcara ao seu destino; timida e fraca pedia treguas á dôr, que a impellia para a morte, com o pensamento de ainda se demorar alguns instantes entre os vivos ...

Sentou-se n'um banco, por lhe fraquejarem as pernas. Lembrou-se com sentir piedoso da sua filha, que a essas horas estaria dormindo tranquilla. Que formoso sonhar o da innocente, n'um ceu povoado de pombas brancas e sorrisos de anjos tão formosos como ella! Feliz convivencia a d'esses entes, que moram nas doiradas regiões da ventura perfeita! Angelina, cujo sentimento maternal era forte, vivo e grande para encher a terra vasia de todo o bem, acreditava que sua filha sonhava assim. Seria ainda este amor, se n'elle continuasse a pensar, que a poderia deter contra a força do demonio, que a attrahia para o eterno e insondavel abysmo ... Tornar a ver a sua Amelinha... beijal-a... estremecel-a contra o seio... sorria-lhe á imaginação !... Mas teria depois animo de se desapegar d'aquelle fragil corpinho, que era um maravilhoso thesouro?... Afastou com fortaleza a lembrança seductora. A sua vida, depois do desengano d'essa noite, era detestável, uma vida de misérias e vergonhas, que não poderia continuar a viver. Devia arrancar do coração, de uma vez para sempre, taes desfallecimentos... Era indispensavel inspirar-se sómente em idéas de desespero, de odio ao mundo, de desprezo pelos seus enganos. O suicidio, que premeditava, era principalmente um acto contra Sallustio, que depois d'ella morrer assim, nunca mais poderia ser feliz, pois sentiria, em quanto vivo, em volta de si o desprezo de toda a gente, e na alma infeliz o desamor do proprio Deus. O remorso morder-lhe-hia o coração como uma serpente; nunca mais poderia gosar contentamento, nem felicidade. A própria noiva, cuja riqueza ambicionava, o despresaria, quando viesse a conhecer o negro procedimento que com ella tivera. Ficava na cidade de Lisboa, D. Maria Gomes, para o apregoar. Mas ainda que viesse a casar, o Deus vingador dos fracos e dos infelizes, o flagelaria com todas as desgraças. Não podia ser ditoso, quem no mundo causara tamanho infortúnio como este seu. E visto acreditar em que as almas dos mortos, podem voltar á terra, para exercerem as suas vinganças, ao preparar-se para desapparecer da vida, levava em si o odio, que lhe permittiria resuscitar em fórma de sombra, para o affligir, dia e noite, recordando-lhe a existência desventurosa que lhe causara... Não lhe perdoava, havia de se lhe metter, como uma doença, no corpo d'elle, ou no corpo da mulher, ou de algum filho, se o viesse a ter, para lhes amargurar toda a felicidade, que se propozessem gosar. No outro mundo, estava certa que a colera divina seria cheia de castigos para o causador da sua morte. Com o fim de o atormentar, os demonios occupar-se-iam eternamente na invenção perpetua de tormentos, uns mais cruéis que os outros.

Sentia-se prostrada pelo rancor immenso que lhe refervia no seio! Um sorriso triste lhe veiu ao rosto, como brisa consoladora, lembrando-se de que ao longe, n'uma pequena aldeia minhota, existiam seus paes e seus irmãos. Que pensariam elles, quando soubessem do triste fim que tivera ?! Haviam de choral-a e perdoar-lhe. Acreditava-o com toda a força da sua alma; porque sempre foram doidos por ella !... As lagrimas e o luto d'aquelles que tanto a tinham amado causavam-lhe remorsos !...

Taes lembranças, posto que lastimosas, inundavam-lhe agora o coração de sentimentos ternos e amoraveis. Começou a chorar suffocada. Quem lhe dera, ao menos, que a sua memoria fosse abençoada, já que em vida soffrera tanto!... Principiou a considerar no socego e tranquillidade da casa do Bico, para onde todos os seus tinham fugido!... Era a hora da paz e do somno para elles... N'essa mesma noite, emquanto ella planeava um projecto de suicidio, havia de ter estado toda a familia, em volta da lareira farta de lenha, resando piedosamente o terço e a coroa a Nossa Senhora... Outrora, Angelina era quem dirigia estas orações. Seus irmãos cabeceavam, quasi a cahir sobre o lume.

A' sua voz reprehensiva. como a de uma mãe, logo se endireitavam, abrindo demasiadamente os olhos e replicando á Ave-Maria e ao Padre Nosso, que ella dissera n'uma toada monotona de devoção. O brazido crepitava espirrando faúlhas, os pequenos recebiam taes iras do lume com sonoras gargalhadas, que espantavam o cão enroscado aos pés de sua mãe, obrigando-o a levantar a cabeça. Terminada a reza em côro, era Angelina que trazia para junto de seu pae a pequena mesa de pés baixos e ali estendia a toalha de estopa sedeira... A ceia era frugal -- um caldo de farinha, o naco de toucinho e a grande brôa de mistura, que todos comiam com appetite. No fim davam «graças a Deus» e iam-se deitar, para no dia seguinte se erguerem com o primeiro chilrear dos passaros.

No tempo das castanhas, appareciam motivos de grande risota, por causa dos magustos regados de agua-pé. Seus irmãos andavam todo o santo dia aos ouriços, que depois vinham esbulhar na cosinha, abrindo-os com os calcanhares. Arranjada uma cesta de castanhas, o pae dava licença para metterem algumas no rescaldo. Quando principiava aquillo a que Pedro Alves chamava o bombardeamento (em attenção ao cerco do Porto, onde estivera do lado dos migueis) as crianças fingiam-se assustadas, correndo pela cosinha fóra. Estoiro que se ouvisse, era acompanhado d'uma nuvem de cinza semelhante a fumo de polvora. O pae de Angelina dizia então a sua phrase favorita: «Eh! com mil bombas, que lá se foi um malhado!... Apanhae esse demonio, rapazes!» A este grito, já esperado, seguia-se da parte das creanças grande enthusiasmo: «Eh! malhado! Eh! cão !...» -- exclamavam. Procurava-se depois, com todo o afan, a castanha arrebentada, que era entregue triumphantemente ao velho, no meio de gargalhadas infantis.

Talvez que n'essa mesma noite, quando Angelina estava perto da morte, lá em casa tivesse havido algum alegre magusto! N'esse caso de certo se reproduziria a ralhaçào de sua mãe, que estava sempre com susto de que os pequenos se queimassem e chamava ao marido, que consentia taes coisas «uma criança como os filhos».

Estas recordações tiravam-lhe a necessaria força de que precisava para cumprir o seu triste destino. Poder ainda gosar, uma hora que fosse, d'esta paz feliz, d'esta quietação e tranquillidade, era surprema ventura, que não merecia a Deus! Sentia-se fatal e indubitavelmente excluida da sua familia. Ainda que tivesse a certeza de que todos a receberiam carinhosamente, ella não tinha, animo de lá voltar! Nunca mais podia tornar a ser aquella Angelina de outr'ora, tão respeitada e bem-quista na sua simplicidade. Sentia-se emporcalhada por dois annos de vida de concubina. A sua remissão estava na morte ! Que ao menos o Altissimo lhe acceitasse o arrependimento do ultimo instante, para não ficar sujeita no outro mundo ás penas tão afflictivas do inferno ! Só pensar n'isto a enchia de pavor, e lhe paralisava todo o sangue no corpo. Mas tambem considerava não haver para ella maior tormento do que este seu de agora! O verdadeiro inferno nunca podia ter maiores castigos! Deus havia de apiedar-se da sua alma. Esquecer este mundo, esquecer-se de si mesma, era o maior dos seus desejos.

-- D'esta maneira acaba tudo cá na terra. Na outra vida, Deus hade ser misericordioso com os que soffreram, como eu tenho soffrido! -- monologou.

Levantando os olhos, reconheceu que, a pequena distancia, estava um individuo parado. Quem seria este homem? Que teria com ella, para assim a espiar com patente insistencia?! Viu no desconhecido, sem comprehender claramente os motivos, um obstáculo inesperado aos seus desígnios. Isto fez com que lhe voltasse a coragem prestes a abandonal-a, amolecida pelas Recordações sympathicas da familia. Se era algum da policia propunha-se a illudir-lhe a vigilancia... Aquelle homem não lograria obstar a que ella cumprisse o triste fadario de morrer afogada nas ondas do Tejo. Com a instinctiva sagacidade de quem procura esconder um designio, Angelina levantou-se do banco onde estava, e, n'uma certa apparencia de socego, principiou a andar pelo Aterro adiante, como quem procura eximir-se á chuva, que, justamente n'aquelle instante, recomeçava copiosa.

Porém uma mulher só, áquella hora da noite, com tal maneira de andar, que denunciava mocidade, provocou maior interesse no individuo, que parara perto d'ella, no jardim D. Luiz. Por isso elle a seguiu de perto, e Angelina, para experimentar se assim era, atravessou a rua e caminhou até junto da muralha quedando-se a ouvir o arquejar das ondas. O desconhecido acompanhou-a com insistencia e já se lhe aproximava, quando Angelina, recomeçando a andar compressa, murmurava fervorosas preces á Senhora do Sameiro e de Guadelupe, para que a protegessem n'este lance angustioso. Sentia-se transida de mêdo, como n'um ermo suspeito de lobos. O coração apertava-se-lhe em suprema angustia. Repetia a Magnificai e a Salve-rainha, caminhando cada vez mais acceleradamente. Porém as saias encharcadas collavam-se-lhe ás pernas, os sapatos embebidos de agua pesavam-lhe como chumbo e dificultavam-lhe os movimentos, o vento vergava-a como se fosse arvore desamparada... A afflicção, dentro do seu peito, crescia n'uma ancia tormentosa; allucinações de vista, tinha-as como na proximidade de enorme perigo. Já só procurava metter-se por traz detudo que a pudesse esconder... Occultou-se com o kiosque que está perto da rampa de Santos, para vêr se illudiria o seu perseguidor. .. Mas o indivíduo, apesar de ebrio, seguia-a collado ao seu rasto, como a propria sombra. Já estava perto, percebia-lhe o fallar entaramelado, a pedir-lhe que parasse...

-- «Meu Deus valei-me! Nossa Senhora, acudi-me!» -- exclamou, em voz de supplica, fugindo sempre...

Vendo-se quasi alcançada, tomou a resolução de retroceder e mudar de novo para o lado dos predios; porque ali, abrigado sob a hombreira de uma porta, illuminado pela luz de um candieiro, vira um policia fumando. Se aquelle atrevido se quizesse metter com ella, pediria soccorro. O expediente, julgou ter sido de seguro effeito: durante o espaço de dois minutos, não viu ningue atraz de si. Sentia-se mais tranquilla, respirou com muita mais dcsoppressão. Já lhe parecia o ar menos tempestuoso; o rugido do mar, murmurio de regato. Ainda bem, ainda bem, demonio de bebedo! Até parecia esquecida do motivo que para ali a guiara. Caminhou depressa, convencida de que o perseguidor a perdera. Mas quando adiante, perto da fabrica do gaz, atravessou para o lado do rio, sentiu a distancia de quatro metros um vulto, que lhe fallou do interior da sombra: «Pára lá, que te quero dizer uma coisa». Era o mesmo. Evidentemente tinha proposito igual ao dos marujos, que estavam altercando e lhe tinham chamado fadista. Cresceu-lhe o desgosto de si mesma e do mundo! Receiou da parte do desconhecido algum atrevimento, que a degradasse. O vento soprava mais rijo; a chuva caía com ruido aspero sobre a rua calcetada; todos aquelles sons complexos de forte borrasca vindos d'um ceu longinquo e negro envolviam-na. Perturbada por tantos e dolorosos accidentes, presentia, ainda por cima, o seu pudor conspurcado. Teve um momento em que ficou parada, como ausente de si mesma. Porém, depois, ouvindo a mesma voz que se approximava, resolveu correr em direcção ao caes do Sodré. O vento agora impellia-a, empurrava-a para aquelle lado.. Mas não tinha os movimentos livres. As saias agarravam-se-lhe ás pernas, a lama collava-se-lhe aos sapatos, tudo a entorpecia. Angelina n'um completo desespero e afflicção quiz gritar por soccorro, mas não tinha força, não tinha voz. O bebedo fallava-lhe já de muito perto: «Anda cá, moça. Tenho dinheiro... Olha, não fujas, elle aqui está.» Chamava-a com voz roufenha, convidando-a. Batia com a mão no bolso das calças, onde tilintavam coroas. Angelina perdêra completamente a serenidade, já fugia espavorida, esbracejando sem resguardo, não se importando que a conhecessem. «Queres? Tenho dinheiro... Olha...» -- repetia o mesmo homem, continuando a mexer ernpratas, quasi a deitar-lhe a mão.

O ruido dos passos, que a seguiram, era cadente e baço. Um tudo nada mais e seria agarrada. Aquella voz repulsiva quasi a sentia sobre a nuca. Alguns instantes ainda... e o insulto seria consummado. Ali perto estava o rio mugindo dolorosamente, como uma vacca com saudades do filho que lhe roubaram. Ia-se metter para sempre no esquecimento eterno da morte!... Já caminhava resolutamente em direcção á muralha, afflicta, offegante, impellida por uma enorme dor. Abandonou o chale que lhe escondia o rosto, no momento em que passava junto de um candieiro. E, n'um ultimo esforço, para ser ouvida pelo guarda da fiscalisação que vira a distancia, clamou:

-- Jesus! Minha mãe! Nossa Senhora!... Valei-me!

O borracho perturbou -se com aquelles gritos e susteve-se ! Conhecera aquella voz cheia de encantos e harmonia, ainda que no auge do desespero, ao mesmo tempo que á luz do gaz vira o rosto alvoroçado de Angelina, com os cabellos empastados na testa, exprimindo enorme afflicção.

-- Angelina! Senhora Angelina!... -- gritou-lhe.

E como ella não obedecesse, continuando impetuosamente para o rio, Joaquim Neves, adivinhando-lhe o sinistro intento e vendo d'aquelle lado o mesmo guarda para o qual a sua amada appellara, berrou com mais força:

-- Agarra!... Prende!...

Porém ella louca d'afflicção não deu tempo a nada... Junto do pontão do peixe, atirou-se ás vagas, que chocalhavam contra a muralha. Logo a seguir começou uma grande confusão. Aos gritos de Joaquim Neves, policias, guardas da Alfandega e municipaes vieram em torpel, como ruidos dispersos que se concentrassem. Fragatas ribatejanas e botes de pesca, estavam accummulados perto do logar onde a amante de Sallustio se lançara. Os homens que estavam dentro, guardando os seus barcos, levantaram-se, chamados pelas vozes de soccorro e pelo som da queda de um corpo, que fizera chap na agua!... Appareceram lanternas. Alguns catraeiros resolutos lançaram-se ao rio, para salvar a infeliz, que se debatia angustiosamente n'uma ancia de morte. Não tardou muito que tirassem para fóra um corpo inerme, de uma brancura cadaverica e de uma insensibilidade de mortal...

Transportaram-na para a barraca da fiscalisação, depositaram-na sobre as taboas do soalho; a agua, que d'ella escorria, alastrava em larga nodoa. Assim de costas, com o vestido collado á carne, desenhava-se-lhe o corpo esculptural, como estatua de pedra sobre realengo sarcophago...

Os cabellos de azeviche enrodilhavam se-lhe no pescoço; na mão esquerda crispada, conservava um boccado de madeira, que boiava nas aguas inquietas e a que se agarrara no paroxismo da morte imminente. O seu rosto tinha expressão dolorosa, mas energica, como de quem soffre por um pensamento, uma idéa nobre. Os guardas da Alfandega desceram o lampião pendente do tecto, para a verem melhor. Lamentavam na com palavras triviaes de commiseração, interessando-se todos pela afflicção de Joaquim das Neves, cuja presença não sabiam explicar. O caixeiro, julgando-a morta, cobria-a de lamentações e lagrimas. De joelhos junto do corpo gelado e inerte, tacteava-o, procurando chamal-o á vida com fervorosas supplicas, com palavras lancinantes e desesperadas.

Mettia dó na sua afflicção, o pobre rapaz !...

Os policias e os municipaes, que tinham occorrido, julgaram-n'o irmão, ou qualquer parente muito chegado d'Angelina, talvez seu noivo... Mas porque estava ali e porque se déra este acontecimento ? Inquiriram d'elle a explicação e o caixeiro nada lhes sabia dizer. Um simples acaso é que lhe fizera encontrar aquella senhora, perto d'aquelle sitio. Quando reconhecera quem era, foi justamente no instante em que a vira em direcção á muralha, no claro proposito de se deitar ao rio. Foi então que berrou para ver se a obrigava a parar ou se alguem poderia impedir esta desgraça. Ninguém se lhe opposera e por mais que elle corresse não a pudera deter... Conhecia-a muito bem, eram quasi da mesma terra. Suppunha haver n'isto algum grande desgosto ; porque ella era muito infeliz na sua vida.

-- Questão de namoro, já se entende... -- opinou o mais velho dos policias, com voz de entendido.

Os municipaes e os guardas da Alfandega sorriram approvando-lhe o parecer. Era a historia de todos os dias, conheciam dezenas de casos como este. O mar era o logar preferido das raparigas desilludidas... Esta inclinação dos suicidas não dava pouco trabalho, quer aos catraeiros, quer aos empregados da policia e fis-caes, que se queixavam.

-- Não, senhores. D'antes ainda iam algumas para S. Pedro de Alcantara, atirar-se da muralha! Agora é tudo para aqui! -- considerou um em voz de censura.

-- E' desde que se pôz lá a grade, que todas cá vem dar... -- esclareceu um municipal.

Joaquim Neves, nem escutava taes apreciações. O seu empenho unico era provocar no corpo de Angelina, qualquer expressão facial ou movimento de corpo em resposta aos seus esforços. Supplicava aos policias que lhe consentissem o leval-a para uma hospedaria, cujo proprietário conhecia, para ali a recolher. Que a deixassem á sua guarda e vigilância carinhosa, pois não podiam duvidar dos desvelos que empregaria para de novo chamar á vida aquella que estimava mais do que se • fosse sua irmã.

-- Fomos creados junctos. E' muito bem nascida e muito infeliz -- certificou para commover os ouvintes.

Porém os representantes da auctoridade não acharam este empenho sufficientemente simples e desinteressado.. Não eram irmãos... talvez não fossem parentes... isto, podia encobrir coisa de crime !... Os municipaes, encostados ás espingardas, resmungaram de dentro dos seus amplos capotes de oleado; os guardas da Alfandega e os catraeiros sorriram incrédulos; os policias não estiveram de accordo, dizendo aquelle cujas opiniões pareciam predominar:

-- Não, meu homem, a rapariga d'aqui vae para o hospital. E' a nossa obrigação. Depois lá se arranje, como podér. O amigo mesmo, visto conhecel-a, vae comnosco, comparecer diante do senhor commissario, para esclarecimentos.

Mandaram buscar a maca da estação da Boa Vista. Todos estavam d'accordo em que a suicida precisava de soccorros immediatos. Só no hospital de S. José se encontrariam promptos. Não tardou que a maca chegasse... Dois catraeiros impedidos pela policia transportaram o corpo exânime. Acompanhando o lugubre cortejo, que atravessava, sob chuva continuada, as solitárias ruas da cidade baixa, ia Joaquim Neves gemendo a sua dor. Um policia reprehendeu-o:

-- Isso não é de um homem! Só as mulheres é que choram assim !...

Fallava bem; mas é que não podia comprehender, quanto elle queria áquella senhora. Filha de muito boa familia, ninguém podia ter adivinhado a triste sorte, que lhe estava reservada. Era dum homem esmigalhar a cabeça n'uma parede, quando se punha a scismar n'um caso d'estes. O policia, modificado no seu sentir e já condoído, pronunciou: «As desgraças nascem debaixo dos pés, amigo !»

Por desejos de Joaquim Neves, que no hospital se deu como parente de Angelina, foi a doente admittida n'um quarto particular de oito tostões diarios!... O caixeiro horrorisava-se com a idéa de que a filha do seu antigo patrão se encontrasse, ao abrir os olhos, na avulsa cama de uma sala de hospital, cercada de estertorosos agonisantes e servida misericordiosamente por enfermeiras carrancudas e sem piedade, como elle as vira, em S. Marcos de Braga, quando ali fôra, uma vez, visitar uma mulher da sua terra! Comprometteu-e a vir, no dia seguinte, fazer o deposito regulamentar, para que Angelina fosse tratada com decencia. Porém não se podia despegar d'ali, sem ter a certeza de que ella estava ainda viva. Toda a apparencia era de cadaver: na lividez do rosto, nas palpebras fechadas, na apparente falta de respiração, parecia-lhe reconhecer funestos signaes de que a sua amada já não existia. Quasi com as lagrimas nos olhos, manifestou a sua preoccupação ao facultativo de serviço no banco, o qual tacteando o pulso da enferma lhe assegurou:

-- Deixa, meu rapaz, que ainda não morreu... Lá o vel-a assim não te admires. Se te parece, um banho como ella apanhou e com este frio!...

Era urgente despil-a, mettel-a na cama, agasalhal-a. Talvez désse accordo de si, sem mais nada, ainda que n'este momento ninguém podesse dizer que alguma coisa de mais grave se não descobriria depois -- uma pneumonia, por exemplo.

-- Mas é possível que não -- disse o medico com geito dubitativo, estendendo os beiços... Vou mandar cobril-a de sinapismos.

Em seguida, com um aceno de cabeça, ordenou aos catraeiros que seguissem com a maca.

Joaquim Neves, bem como o policia, acompanharam o corpo exanime d'Angelina até ao seu ultimo destino. Adiante ia um creado do hospital ensinando o caminho. Atraz caminhava o facultativo, homem muito magro, um dyspeptico de bigode e longa pera. Subiram uma escada estreita, atravessaram alguns corredores illuminados por candieiros pendentes do tecto. O rumor dos passos perturbava o silencio, como uma toada lugubre. Appareceu a enfermeira de serviço esfregando os olhos, e logo depois uma ajudanta, para ambas metterem no leito a enferma. Recolhida a maca no quarto, a porta fechou-se, o policia e os catraeiros esperaram para a tornar a receber vasia. Concluido este serviço, o caixeiro, teve de se retirar, assim como todos os outros.

Ia estonteado, cheio de afflicção, por causa das incertezas, que deixava atraz de si. Disseram-lhe que viesse no dia seguinfe saber noticias...

A' despedida solicitou da enfermeira que se interessasse pela vida de Angelina. Não havia de perder nada com elle, compensala-ia de toda a sua humanidade. Desejava que lh'a tratassem como se fosse uma fidalga, não queria que lhe faltasse absolutamente nada !...

-- Vá descansado. Aqui todo o mundo tem bom tratamento -- respondeu a encarregada d'aquelles quartos particulares.

-- Bem, amigo. Apparece amanhã, ao meio dia: é boa hora. Adeusinho... -- aconselhou o facultativo.

-- Se o senhor commissario o deixar vir ... -- resmungou de parte o policia.

Retrocederam no mesmo tropel em que tinham chegado. Como o medico ficasse juncto da doente para fazer as suas prescripções, o creado do hospital, resmungão e coxeando, deu largas á sua lingua, fallando avulsamente:

-- É a peior vida que ha, esta de servir n'um hospital! Mesmo uma vida dos diabos. Aqui não ha dia, nem noite, não se dorme um somno a seguir. Lá na terra, quando andava nos campos, puxava pelo corpo durante as horas do sol; mas logo que elle desapparecia, era um regalo a gente estender-se sobre a palha, e só acordar com as badaladas do sino, para a missa do prior. Raio de vida!... Sempre caras afflictas... O que vale é a gente não se importar. Se se curam dá-se-lhes alta; se morrem vão para o cemiterio. Tanto se nos dá? como se nos deu. E desafogou no seu estribilho:

-- Ai ! da minha vida !

Tra-la-ri-ló-ré.

O coração de Joaquim Neves minguava, ouvindo isto. Quiz captar a benevolencia d'este homem, que lhe parecera insensivel, transformal-o de mau que apparentava, n'uma força de protecção para Angelina. Sempre era uma creatura que ficava ali de dentro e que tinha a possibilidade de a vêr alguma vez. Por isso, á sahida, chamou-o a si, mettendo-lhe na mão duas coroas e segredou-lhe supplicante:

-- Se lhe podér fazer alguma coisa... Recommende á senhora enfermeira, que não hade perder nada commigo. Eu lh'o pagarei...

-- Deixe que elles cá em casa estão melhor do que na sua propria -- respondeu consolador. Tem bons caldos e boa cama que é o mais preciso para doentes. Se eu fosse medico mettia-lhes caldos para aquelle buxo, até arrebentarem e haviam de melhorar. A rapariga é sua ?... Olhe que me pareceu de truz, apesar do estado em que vinha por causa do tal banho. Adeus, amor; appareça ámanhã que talvez a encontre já boa. Aquillo foi friage. O senhor director chega pela volta do meio dia. Adeus, amor. Estou-lhe com um somno. Raio de vida !...

O portão de entrada bateu com estrondo resoando a forte pancada pelo edifício. Joaquim Neves, acompanhando o policia e os catraeiros, ainda se voltou para contemplar aquella massa compacta, que avolumava no denso ar pluvioso. Os quadrilongos das janellas onde se via luz, aviventando a negrura do edifício, pareciam olhos de um grande monstro de phantasia, d'um animal extraordinario, cujo ventre mysterioso escondesse, só dores, infelicidades e amarguras !... O peito de Joaquim Neves mais se confrangeu com esta visão de morte, sentia a garganta apertada por mão poderosa e cruel! Como tudo na vida se lhe apresentava escuro e indecifrável! Quem conhecera Angelina, feliz, respeitada e alegre, poderia ter-lhe vaticinado tão desgraçado fim?... Poderia elle ter supposto que a havia de encontrar, n'uma noite como aquella, em tal situação que a confundisse com as mulheres perdidas?!... Achava-se em estado de embriaguez, que propositalmente procurara para matar a sua dôr, para esquecer a sua arnada!... E é exactamente essa creatura, que nunca poderia tirar do coração, por maiores esforços que fizesse, que lhe apparecia em circumstancias e n'uma apresentação, que só pela vontade de Deus poderia ser ordenada, para castigo e punição do grande peccado, que ella commettera, fugindo da casa paterna! Situação dolorosissima!... Recobrando subito o juizo, ao reconhecer Angelina, teve depois de ajudar a tiral-a da agua, onde o seu corpo se debatia nas ancias da morte. Decerto a Providencia que tudo manda, lhe guiara os passos. A' sua casual intervenção se devia não se ter ella afogado e estar áquella hora agasalhada n'uma cama decente e separada dos estertorosos, que morrem a toda a hora com esgares medonhos nas enfermarias communs. Sentia-se até certo ponto feliz, por ter sido proveitoso áquella a quem, sobre todas as creaturas no mundo, queria!...

Já no governo civil, sobre a dura taboa d'uma tarima, onde a policia o encerrara para as averiguações do dia seguinte, ia considerando em todas estas coisas, ora com palidos sorrisos, ora com funda tristeza. O sentimento das desgraças, que n'este momento lhe enchiam o pobre coração, tiravam-lhe a tranquillidade e a vontade de descançar. A sua alma estava mais agitada do que o ceu d'essa noite de temporal, cujas lufadas ouvia perpassar no terreiro contíguo. E n'um desafogo de funda magua disse:

-- Isto é da gente lançar uma corda ao pescoço!... Mas a misericordia divina é infinita; ella está viva e ámanhã tornarei a vel-a!

IX

Joaquim Neves foi interrogado pelo commissario de policia cerca das onze horas da manhã. A sua situação não era bastante clara. A extraordinaria coincidencia de se encontrar áquella hora da noite e por um tempo tempestuoso, no logar onde o acontecimento se dera, punha de sobreaviso a auctoridade. O que tinha a simples apparencia d'um suicidio vulgar, podia muito bem encerrar um crime! Quando percebeu esta idéa pavorosa nas perguntas que lhe faziam, rompeu n'um choro irreprimivel. Santo Deus! Poderia alguem consideral-o o assassino de Angelina, da sua querida Angelina, da alma sorridente em cuja photosphera elle vivia como n'uma gloria!... Quando pôde fallar, contou a historia singella de tudo quanto sabia, desde os tempos de Braga até áquella noite desgraçada! Logo que appareceu na narrativa o nome de Sallustio Nogueira, deputado influente e futuro ministro, o commissario, temendo escandalo e responsabilidades, amansou a palavra despotica e castigadora, abreviou o interrogatório e a breve trecho deixou-o em paz. Joaquim tambem não desejava outra coisa; porque todo o seu empenho era ir ao hospital saber do estado da sua amada ... Sem comer, febril, apressado, o rosto n'um desejo vivo, chegou juncto do edificio dentro do qual residia o maior interesse do seu existir. Como tudo aquillo para elle fosse desconhecido, logar e pessoas, conservou-se na entrada encolhido, humilde, á espera de lhe darem licença de ver a doente. Passavam pessoas de differentes aspectos e cathegorias, todas andando com o desembaraço de quem é conhecedor do edifício, pois n'elle penetravam sem especial permissão ... Invejava-as, eram bem mais ditosas do que elle, poderiam sem obstaculo chegar onde elle queria ir, saber noticias de Angelina, vel-a no quarto onde ficara na noite precedente. Olhava para todos esses felizes com rosto de supplica, desejaria que o levassem comsigo, que protegessem a sua immensa dôr, a qual ninguém adivinhava, nem presumia ... Um empregado que passou e a quem quiz deter, pedindo informações, abandonou-o bruscamente dizendo: «Nada sei, meu caro senhor». Porém o creado, que na vespera gratificara com dez tostões e que casualmente ali compareceu, consolou-o, apontando-lhe uma porta fechada : «O director, quando chegar, é que lhe póde dar licença» -- explicou-lhe.

Metteu-se a um canto, escondido de todos, á espera. Os doentes da consulta diaria, sentados em bancos junto á parede, conversavam da sua vida e das suas molestias, com expressões faciaes differenciadas: alguns gemendo dores em silencio, outros relativamente saudáveis e tagarellas, dando conselhos de propria experiencia. Este, que padecera annos de maleitas, curara-as com uma bebedeira em que tinha vomitado as proprias tripas e achava o vinho bom para tudo; aquelle, a quem crescera uma grande nascida nas costas, tendo sido operado por um alveitar seu conterraneo, que lhe retalhara o tumor em sete pedaços com uma navalha de barba, entendia que os cirurgiões de Lisboa não sabiam nada, ao pé do mestre Groncha. Quasi todos manifestavam predilecções por certas hervagens e fructas medicamentosas, um considerando a folha de malva e as cerejas como tendo milagroso poder curativo, outro entendendo que os agriões cosidos na panella saravam todas as queixas de peito. Ao que fallava com o maior entono, aconselhando receitas para innumeras doenças, coisas que os medicos desconheciam, observou um que o escutava:

-- Com tanta sabença não sei para que você vem á consulta!

-- Eu lhe digo: é que não tenho hoje que fazer. Até os disfructo, dando-lhes o meu quinau, -- disse desdenhoso, apontando com a ponteira do guarda-chuva a sala das consultas, onde se reuniam os facultativos.

O dia continuava chuvoso, a atmosphera espessa e nevoenta. Clinicos e estudantes entravam com as botas enlameadas. A' passagem dos medicos conhecidos, os doentes levantavam-se suspendendo as conversas. Algumas pobres mulheres, com seus filhinhos ao collo, aconchegavam-nos contra os magros seios envoltos em miseros trapos. Todos, mais ou menos, se resentiam da

humidade do lagedo, e os seus rostos de fome denunciavam miseria e dor.

O cirurgião do banco, que Joaquim Neves já conhecia por ser o que recebera Angelina na vespera, appareceu com modo aborrecido de dispeptico, enroscando a longa pera n'um dedo. O caixeiro dirigiu-se-lhe com certa confiança:

-- Senhor doutor... Eu sou o parente...

O medico informou-o:

-- Más novidades, meu rapaz. Parece-me que temos negocio grave. Está convocada uma conferencia.

-- Então morrerá, meu senhor ?

-- Vejo-lhe geitos. Abriu os olhos, mas nada de fallar. Obra de compressão cerebral. Mas isso já não é commigo, que sáio do serviço. Falia com o collega que me substitue e com o medico das infermarias particulares.

Não comprehendeu senão o que havia de desolador n'estas palavras: «Angelina podia morrer!» Principiou a chorar com a cara escondida n'um lenço. Fallava com palavras doloridas, entrecortadas de soluços.

-- Ella levou alguma pancada na cabeça ? -- perguntou ainda o facultativo.

-- Não vi, meu senhor. Tirámol-a do rio aonde se deitou... Fazia um escuro como breu. A fortuna foi estarem ali os homens dos barcos, se não, afogava-se.

-- Bem, bem... Espera ahi fóra, para dizeres tudo aos da conferencia.

Joaquim Neves foi esconder-se, outra vez, a um canto, para chorar livremente. O soffrimento dilatava-o, parecendo-lhe que enchia o largo espaço d'aquellas abobadas. Dava suspiros e ais que podiam ser ouvidos. Os doentes que esperavam a sua vez para serem admittidos á consulta, apiedaram-se d'elle e lamentavam-no dizendo: «Pobre homem! Talvez tenha cá a mãe!» Elle ouvira-os. Ah! quando morrera sua mãe, não soffreu tão extraordinariamente. Era uma creança e apenas sentira a falta de carinhos e pancadas. Agora, era uma dôr incomparavel, que o invadia avassaladoramente. Estava fóra de si e mais de uma vez se conteve, para não procurar em todo o edificio o quarto de Angelina, pois acreditava ter a magia de a reanimar com seus carinhos, com palavras de paixão, transmittindo vida com a enorme potência de amor, que n'este momento desafortunado lhe enchia o coração. O medico dissera que Angelina não fallava; mas elle tanto clamaria, tanto gritaria, tão forte e apaixonada havia de ser a sua voz, que tinha enorme fé em que lhe arrancaria resposta, uma só palavra que significasse existir, e assim vencer a má opinião de todos aquelles que a julgavam morta. Ainda que ella estivesse n'um esquife, já em caminho da sepultura, a sua profunda crença era que seria capaz de a fazer resuscitar, como acontecera a Lazaro.

Porém, se a filha de Pedro Alves voltasse a si -- considerou -- talvez que, as primeiras palavras sahidas d'aquella bocca adorada, fossem para o reprehender pelo procedimento da noite anterior, em que o encontrara bebedo no Aterro, perseguindo-a como perseguiria qualquer mulher perdida. Por este acto equivoco, poderia tel-o na conta de rapaz mal comportado... Não sentia receio de se justificar. Quem teria o dom de suppor, sequer, que fosse Angelina, a creatura, que áquella hora e n'aquella situação, encontrava entre os arbustos do jardim D. Luiz? O seu estado de embriaguez havia de explical-o (não o negaria) pela necessidade de esquecer as dores que soffria, por causa d'ella. Podia jurar-lh'o, como se estivesse aos pés do confessor e proximo de receber a sagrada hostia. O desprezo d'Angelina, em circumstancias tão angustiosas e quando só procurava servil-a desinteressadamente e ser-lhe util, tinham-n'o offendido até á raiz da alma. As palavras que lhe dissera aquella senhora gorda, quando elle procurava saber noticias da sua saude; «Não vá lá acima; olhe que a afflige com a sua presença...» deram-lhe um desgosto de arrebentar. Que mal lhe fizera, para de tal maneira o tractar ? Seria para que não tivesse conhecimento da sua vida, das suas afflicções e tristezas ? Andava bem mal, pois se então tivesse sido informado do que se passava, a desgraça actual poderia ter sido evitada; elle poderia consolal-a e valer-lhe arrancando-a das mãos do carrasco, que a mortificava. Ignorando todo o acontecido, Joaquim Neves, com a intuição dos que muito soffrem, presumia tudo adivinhar. O encontro de Angelina nas extraordinarias circumstancias em que se déra, significava, para elle, que Sallustio a expulsara indignamente de casa, ou então fôra ella que fugira ao saber do casamento rico do seu amante. Em qualquer dos casos, a culpa era d'esse grande malvado,

de quem desejaria tirar vingança memoravel. Porém tinha um espinho a atravessar-lhe o coração: a resolução de Angelina se atirar á agua, seria pelo ter conhecido, quando a perseguia ?!... Era possivel, pois elle quando gritara o fizera na sua voz natural, que lhe devia ser conhecida e pronunciara gritando o nome d'ella... E' certo que n'esse momento já a desgraçada corria doidamente para a muralha, d'onde se precipitou e talvez o não ouvisse... Ouviria ?... Não ouviria ?... Duvida pungentissima esta !... Porém, a Angelina nada lhe poderia fazer comprehender melhor o grande amor que elle lhe tinha, como a subita e quasi milagrosa recuperação de juizo, no meio da embriaguez, ao reconhecer quem era a mulher, que o acaso lhe deparava no seu caminhar de vagabundo. Quando ella viesse a saber como tudo se passara, havia de perdoar-lhe. Mal podia imaginar a dor horrível que elle sentira ao vel-a n'aquellas circumstancias. Ainda se admirava de não ter cahido redondamente no chão, n'uma morte subita provocada pelo terror que se lhe derramara no peito.

Scismava assim, no canto onde se retirara para não ser visto, com os olhos fixos no lagedo suado, emquanto esperava a licença, já pedida, para ver Angelina, depois de ter regularisado a questão de meios, para tratamento em quarto particular. Fôra o mesmo creado da vespera, a quem dera as duas coroas, que o veio acordar d'esta sua melancolia, fallando-lhe em voz trivial e um tanto galhofeira:

-- Venha d'ahi, amigo. O senhor director já deu licença. A sua parenta está bem mal, pelo que percebi lá aos doutores. Esta vida é uma espiga; o melhor é a gente não se ralar e pôr o peito á larga. Nada de choro, que faz mal aos olhos.

Subiram primeiro as escadas e depois seguiram por corredores estreitos, illuminados com a luz que cahia das bandeiras das portas altas. Um sentimento de oppressão apertava a garganta de Joaquim, a sua cabeça não pensava, mas bem lá dentro d'elle morava um grande pavor, que irradiava para tudo quanto via.

Tiveram de atravessar uma comprida infermaria, onde, em camas alinhadas, se estendiam corpos exaustos pela doença. Era bem esta a morada do soffrimento humano: rostos cuja palidez apenas se distinguia da alvura dos lençoes, olhos avivados pela febre ou amortecidos pela fraqueza -- definiam a depauperação d'aquelles organismos...

O cheiro complexo dos doentes, dos medicamentos e das evacuações caracterisava esta atmosphera especial, que tendo a apparencia limpida e saudavel d'um ar de campina, era formada do producto de multiplas fermentações. Joaquim sentiu um vagado, que o ia atirando ao chão, se a sua grande dor o não sustentasse; porém ficou branco como a cal da parede, o pavor da morte passou-lhe diante dos olhos, quando attentou n'um velho magro, que expirava. Era uma figura esqueleica, mas forte, de camponez; estava de costas na cama, braços afastados formando cruz com o tronco,o branco dasclerotica a espreitar por entre as palpebras meio cerradas, a bocca retorcida a expellir o ultimo suspiro, uma baba nauseabunda correndo-lhe pelas commissuras labiaes,..

-- Cobre-o -- disse com voz natural e indifferente o enfermeiro ao ajudante.

E o rapaz, pegando no lençol por uma ponta, atirou-o bruscamente sobre a face do moribundo, que ficou escondida. Um rouco de estertor soou na comprimida sala, como áspero chiar de nora; no ponto correspondente á bocca viu-se uma cova no panno sorvido, um estremecimento em todo o corpo arrepanhou aquella misera carne. Estava morto ! Os doentes das camas próximas cobriram os rostos, para não verem mais...

Ao fundo da enfermaria, em volta de um homem gordo de apparencia risonha e feliz, estavam muitos estudantes, que o escutavam. O creado para lhe designar Joaquim Neves parou dizendo: «O parente da da n.°8...» O facultativo respondeu com negligencia:

-- Espere, que vou já.

O professor continuou a interrogar um doente, que respondia tregeitanio, com momices de que todos riam. Era um exemplar do alcoolismo. A este individuo, o que lhe causava grande confusão pelo não saber explicar, era o seu apparecimento na cama do hospital. Como é que entrara para ali, quando se lembrava perfeitamente de ter saido de casa, com a idéa de voltar para junto da mulher e dos filhos?!... Attribuia tudo ás prepotencias de um policia seu inimigo.

-- São uns canalhas estes policias, que se mettem com a gente mais socegada. O senhor doutor ponha-me d'aqui fóra, que eu lhes darei uma ensinadella. Provavelmente, foi quando entrei n'uma loja de bebidas á Mouraria. Estava ali o meu amigo Esteves e fui-o cumprimentar... São muito antigas estas relações com o Esteves. E' lá da minha terra... Mas o senhor doutor mande-me embora, sim ? Dê-me hoje alta, que eu não tenho moléstia nenhuma.

-- Pois sim -- disse o facultativo cavilosamente -- mas se obtiver uma raçãosita d'aguardente, sempre ficará mais algum dia comnosco, não é verdade?...

Ao ouvir a boa nova, o doente principiou a rir um riso contente, posto que desconfiado. Encolhia-se, repuchava o lençol com tremura de goso em todo o seu corpo.

-- Se o senhor doutor me fizesse a esmola... Mas então hade ser genebra. Gosto mais de genebra, é bebida mais fina, tem um amarguinho... E agora vinha a calhar, sempre lhe estou com uma sêde... Tenho a lingua pegada ao ceu da bocca... Hontem o amigo Esteves, pagou uns copitos... Fizeram-me um bem...

Humedecia os beiços apreciando uma sensação agradavel de goso, que prolongava imaginariamente com os olhos em alvo. E continuou n'um fallar regougado:

-- Vinho, não -- reprovou distanciando qualquer coisa com a mão aberta. E' uma peste, grosso como tinta de escrever, traz friage ao estomago. Crach... porcaria... Genebra, sim, rico genebrim da minha alma... -- exprimia-se beijocando os proprios dedos.

Como sentisse rir em volta, principiou a perturbar-se n'um sentido de suspeita e mau humor.

-- Porque se riem? Não é esta a pura da verdade? Os taberneiros são uns ladrões. Fazem cada mixordia!... Tirem-me isso d'ahi, meus senhores!... Nada de brincadeiras.

E pretendia, ora colher, ora afastar um objecto que suppunha diante dos olhos... Era uma mosca? Era um besouro? Dava palmadas no ar, fazia tregeitos faciaes, como quem atacasse uma realidade.

-- Para que me estão a pôr essa barata na ponta do meu nariz ! Embirro com as baratas... Nunca pude ver taes bichos !..

N'esse momento apresentaram-lhe um pequeno copo cheio de liquido branco e transparente ...

-- Ah!... Ah!... é a genebrinha ?... Ora venha de lá isso. Muito obrigado, meus senhores. Sempre lhe estava com uma gana !...

E agarrou soffregamente o copo, levando-o aos beiços com precipitação. Mas logo se desgostou, escarrando de enjoado, como se lhe tivessem ministrado droga nauseabunda. Entornou o liquido todo na cama. Seria capaz de o atirar á cara das pessoas presentes, se não fôra o respeito e consideração que todas lhe mereciam.

-- Mas isto não se faz, é uma brincadeira embirrenta!

Haviam-lhe offerecido genebra e enganaram-n'o dando-lhe essa coisa reles chamada agua -- queixava-se. Levara-a á bocca, porque acreditara na seriedade dos cavalheiros que via diante de si. Agua ! Porcaria ! Era uma dor de colica certa, logo que a bebesse. Sempre lhe fizera mal,

-- Uma gotta de genebra, uma só gotta para matar a sêde ! -- pedia com as mãos erguidas.

-- Que lhes parece! -- disse o professor para os discípulos. -- Acha pouca a que tem bebido lá fóra.

Depois de concluido o exame do doente, o facultativo dirigiu-se a Joaquim Neves:

-- Foi você que trouxe cá a doente?

-- Sim, meu senhor.

-- Pois aquillo não está bom. Vamos lá...

E a um outro medico que ali appareceu accrescentou:

-- Já viste a dos particulares, que deu entrada hontem á noite?

-- Não ... -- respondeu.

-- Pois é curioso. Caso de compressão cerebral. A marcha é interessante. Deve haver derrame, que parece ainda continuar lentamente.

E os dois facultativos, seguidos do creado e de Joaquim, dirigiram-se por um corredor, para onde estava Angelina.

O caixeiro abalou-se com taes palavras ditas sem commoção. Tão intensa e intransigente era a sua dor que não podia eomprehender esta indifferença pelo estado da sua amada ! Exigia de todos muitas lagrimas e lamentações para a prantearem. Era impossivel que o seu soffrimento não tocasse as pessoas, que o viam chorar. Ia vel-a outra vez, ainda com esperanças de que ella se salvasse. A physionomia prazenteira e trivial dos médicos, apesar de a reprehender pela insensibilidade, tomava-a como de boa significação. Parecia-lhe ver, em tudo que o cercava, alguma coisa de trivialmente animador... As primeiras palavras do cirurgião magro, o do banco, e estas ultimas d'aquelle que o interrogara, não deviam ser acreditadas, como signal de que tudo estivesse perdido. Pela sua parte sabia de muitos afogados, a principio tidos por defuntos, voltarem a si, vivendo muitos annos, regalados e felizes. Deus não havia de permittir que as desgraças fossem só para elle. Tanta gente escapava de grandes molestias e só Angelina havia de morrer ?!... Os medicos podiam estar enganados. Talvez a filha do seu patrão tivesse qualquer coisa semelhante á de domingo, em casa de D. Maria, quando a julgaram morta durante minutos!... Podia ser isto... havia de ser isto...

No corredor juntou-se aos dois facultativos um terceiro de bigode, homem alentado que lhes disse: «Vamos lá?» Tomaram depois para a direita. Joaquim Neves reconheceu que era ali onde estivera na vespera. A enfermeira á porta, indicava o quarto. O grande socego d'aquella grande casa cheia de gente, e a circumstancia de tornar a ver a sua amada agitou-lhe, de medo, o coração! Nào tinha coragem de perder as esperanças. Os acontecimentos d'aquellas vinte e quatro horas tinham-no atterrado, e certo, sentia-se tremer como um condemnado á morte, diante da forca!...

Joaquim foi o ultimo a entrar no quarto ... Viu logo, Angelina deitada de costas, n'um aspecto de immobilidade assustadora, porém os seus lindos olhos abertos e brilhantes ainda significavam vida. Os medicos começaram a fazer perguntas á doente na idéa de lhe acordar qualquer manifestação dc sentimento ou percepção, mas não obtinham resposta. Havia n'aquelle rosto de linhas fixas, certa má vontade ... A apparencia era de quem ouvisse e teimasse acintosamente em não responder ... Uma inimisade antiga parecia afastal-a dos assistentes que a interrogavam. Porém, quando lhe appareceu Joaquim Neves, aquelle mortificado coração manifestou-se alvoroçado. Os facultativos reconhecendo o facto pediram-lhe que se approximasse. Collocaram-no diante da doente e um perguntou: «Conhece este sujeito?!» «Quem é?». Houve nos olhos da filha de Pedro Alves brilho de lagrimas e um estremecimento em toda a sua carne. Por este signal apreciavel todos os médicos reconheceram que ella ainda tinha poder de raciocinar. Mas o seu pensamento vivia n'um mundo separado por invencivel distancia, ou formidável barreira. Era tremenda esta parcial morte do cere-bro a par da vida do corpo. Inspirava piedade e receio, a impassibilidade de Angelina!... Um dos facultativos, apesar d'ella reagir á primeira prova da apresentação de Joaquim Neves, insistiu em tom mais alto, ficando-á espera da resposta:

-- E' seu parente ?! E' seu namorado ?!

Não deu mostras de ter comprehendido. Todo aquelle aspecto revelava profunda tristeza. Atravez da sua pelle, por traz dos olhos excessivamente vivos, dos labios em que havia tremura convulsiva, das narinas que latejavam com os movimentos respiratorios, adivinhava-se dor angustiosa. A falta de expressão, havendo probabilidade de que algumas idéas se lhe formassem no cerebro, tornava afflictivo o espectaculo. Joaquim Neves, sem força para resistir, entregava-se docilmente á exposição, que faziam da sua pessoa. Isto podia fazer bem a Angelina... -- pensou. A presença d'uma voz amiga, talvez dispertasse qualquer signal mais animador na doente. Por isso, elle mesmo se curvou sobre a cama, aproximou a sua cara da cara d'ella, fixou-a ardentemente nos olhos immoveis perguntando:

-- Quem sou eu ?...

O estado d'ausencia era quasi completo. Não se lhe conheceu repercussão apreciavel. O facultativo gordo afastou-o substituindo-se-lhe, pois julgara perceber que o semblante da doente, após a pergunta de Joaquim se annuveara.

-- Estes casos são muito especiaes! Quando parece que não ouvem, ouvem; quando parece que já não percebem, ainda percebem -- disse.

O caixeiro acreditou. Poderia realmente a memoria de Angelina ter guardado, para seu mal d'elle, o acontecimento da vespera. Como o não amava, talvez lhe fosse desagradavel a sua presença pelas lembranças do passado... Sentiu no coração um pungir infinito. Separou-se para chorar a um canto com o rosto collado á parede. Porém, como não podesse reprimir os soluços, um dos facultativos avisou-o:

-- Cautella, que a póde incommodar. Vá para o corredor, se quizer... Ella ainda comprehende alguma coisa...

Foi como se lhe dessem com uma moca no alto da cabeça. Estas palavras, além de significarem que estava sendo importuno, prediziam-lhe que em breve Angelina não ouviria, que d'ahi a momentos poderia estar morta. Não se conformava com tal idéa. Deus não seria para com elle tão falto de misericodia. Por isso o invadiu uma onda mais alterosa de choro, que lhe afogava todo o sentir. Lembrou-se de pedir permissão para de novo lhe fallar, pronunciando o nome do pae, da mãe, dos irmãos... Assim talvez ella respondesse. Apresentou o alvitre aos facultativos, que não acharam nccessaria, nem prudente, tal experiencia. Mas não podia vel-a assim inerte, pois aquelle rosto d'uma brancura suave, parecia de alma que já repousasse na eternidade !... Queria achar modo de a resuscitar, de que ella respondesse com os seus lábios pálidos de santa. Por isso insistiu na sua proposta:

-- Se os senhores me deixassem berregar-lhe que estão ahi o pae, a mãe, os irmãos...

-- Calla-te, não berregues nada... -- disse-lhe brutalmente o medico gôrdo, agora com a attenção energicamente presa á physionomia da doente.

E' que n'esse instante, aquelle corpo paralitico principiava a abalar-se n'uma convulsão. Os facultativos consultaram-se com olhares de entendidos, sorrindo, como se se confirmassem opiniões já emittidas.

Joaquim Neves, vendo o rosto de Angelina perder a limpidez e o corpo principar a mexer-se, sorriu esperançado ... Porém todo elle se achou subitamente cheio de pavor ao contemplar o aspecto convulsionado da sua amada!....

Os musculos dos braços e de todo o corpo moviam-se em sacudidellas rapidas e successivas; os dentes rangiam, como n'um raivar demoniaco; os olhos rebentavam das orbitas; as ventas dilatavam-se n'um resfolegar de colera ; sahia-lhe da bocca espuma sanguinosa : o apparato convulsivo era de grande turbulencia, como o dos possessos.

Os medicos, todos tres se distanciaram, para melhor apreciarem este quadro de symptomas. O que era professor disse para os collegas, com ar de certeza:

-- E' a opinião de Durand Fardel. Afastada, pela historia da molestia, a hypothese do amollecimento, fica-nos a da compressão gradual. A lamina interna, menos elastica, quebrando-se com a pancada, cortou qualquer arteriola, e o sangue sae tenuemente...

-- Em que ponto?... -- perguntou n'uma duvida abstracta o mais novo.

-- Isso !... adivinhem... A sciencia não está bastante adeantada ... Se o poderamos saber tinhamos a trepanação...

O facultativo de bigode, ainda não convencido d'este diagnostico, perguntou a Joaquim Neves:

-- Ella não é casada, não se pode suppor que tenha alguma creança no ventre ?...

-- A eclampsia? Já averiguei, não está gravida; mas podem-se analysar as urinas -- disse o assistente.

O caixeiro mal ouviu o que lhe perguntavam e não respondeu; porem a hypothese da gravidez de Angelina, desvairou-o. Teve vontade de fugir, de se precipitar da primeira janella, que encontrasse aberta, para evitar este prolongado martyrio. Mas ficou-se, a sua sina era exgotar o calix d'amargura até ás fezes.

Aquella attitude profissional dos clínicos, as suas palavras calmas de raciocinadores, em frente do estado alarmante da doente, trituravam-lhe fibra a fibra o coração. Pois que? Não sentiam piedade ao apreciarem a transformação d'aquelle lindo rosto de imagem, n'um semblante medonho, com esgares demoniacos!... Nenhum d'elles teria uma filha, que adorasse e a quem o mesmo podesse acontecer ?!.. .

-- Coitada! Deve soffrer immenso!... -- pronunciou carinhosamente o medico mais novo.

-- Provavelmente -- concordou o professor -- mas os gritos virão mais tarde.

Joaquim Neves desejou que a morte o anniquilasse ali de subito, sem piedade. Se tivesse comsigo uma pistola, acabaria immediatamente com este viver de miserias. Que infelicidade a de ter vindo assistir a tamanha desgraça, se lhe não podia valer!... Todos os pavores do inferno não chegariam para realisar quadro tão medonho, como o que tinha deante dos olhos. As entranhas ardiam-lhe em fogo, a cabeça estalava-lhe. O facultativo mais novo ainda o animou:

-- Não chores. Ella é tua irmã?...

Era mais do que'isso, muito mais do que isso, não faziam uma idéa. Queria-lhe melhor que á luz dos olhos. Se lhe podessem transportar para o seu corpo, cem vezes augmentadas, todas as dores que Angelina soffria, acceitaria agradecido, com um sorriso nos labios. Estes senhores não podiam comprehender como elle a amava, agora sobre tudo, que a via presa d'um mal horrendo, que era uma injustiça da Providencia. E todo elle se arripiou, quando o medico de bigode, disse ao professor:

-- Um bom caso para os seus discipulos... Traga-os aqui...

O outro assentiu silencioso com um aceno de cabeça. A alma de Joaquim ficou n'um terror immenso, não só porque taes palavras significavam um grande mal dentro de Angelina, mas ainda, e principalmente, por ter ouvido dizer que nos hospitaes são acabados propositalmente certos doentes, para depois os abrirem e mostrarem aos estudantes a molestia de que padeciam. A conversa dos clinicos poderia significar essa monstruosa impiedade de pretenderem retalhar o corpo da sua amada, impiedade que elle procuraria evitar por todas as formas...

Em virtude d'isto lembrou-se de permanecer ali vigilante até ao final d'este grande drama !... Servir-lhe-hia de lenitivo o recolher, no seu seio, o ultimo bafo de vida de Angelina ... Depois reclamaria o cadaver para lhe fazer um enterro decente, conforme o dinheiro que pudesse arranjar, e ao despedir-se de Lisboa para sempre, levaria a certeza e a satisfação de poder affirmar que o seu corpo ficara intacto em terra sagrada. Pediria para isso emprestado ao seu patrão, a quem pagaria com a venda dos bemsitos que tinha na terra. Assim evitaria o grande ultrage áquella carne cujo desejo de posse lhe encantara, com devaneios, a mocidade. Tamanha era a sua dôr diante d'esta hypothese horrenda, que as lagrimas se lhe seccaram subitamente, promettendo a si mesmo ter coragem para soffrer até á ultima aquelle supplicio.

Antes elle a tivesse deixado afogar-se -- considerou. Para presencear o que estava vendo, e o que presumia ainda podesse seguir-se, antes Angelina tivesse ficado entregue ao desvairado carinho das ondas! Poderia, até, ter-se atirado ao rio como ella e morrerem, ambos juntos, para ambos juntos serem tirados das aguas, seguirem o mesmo destino e serem por fim sepultados no mesmo cemiterio ... Descançariam perto um do outro até ao dia do juizo final, como em vida haviam passado lindos annos n'um convivio de todos os momentos. Antes os acontecimentos tivessem seguido este doloroso, agora apetecido caminho, para não estarem ali ambos a soffrer como soffriam.

O medico gordo, o de mais auctoridade disse:

-- O ataque vae passando...

Esta phrase continha qualquer coisa de bom e Joaquim destapou os olhos com nova esperança. O seu coração afflicto socegou vendo que o rosto de Angelina readquiria expressão natural e entrava como n'um periodo de somno. O que se passara fôra como o fragor de tempestade, que se distanciava para horisontes longínquos. O medico do banco, o mesmo que recebera Angelina e ali appareceu com espirito de curiosidade, informou os collegas presentes:

-- Depois dos revulsivos nas pernas e nos braços, ainda articulou palavras incoherentes. Pelas quatro horas, disse-me de manhã a enfermeira, a aphásia era completa e logo appareceram as primeiras contracturas.

O caixeiro ouviu sem perceber o sentido do que se dizia; mas o seu sentimento de esperança fixava-se, attenta a nova phase da doença, pois via o corpo da sua amada, em paz branda e flacida, semelhando uma creança a dormir n'um berço. A respiração socegada, sahia-lhe dos labios tal viração campestre ; parecia até que um sorriso lhe animava o semblante. Não durou muito o ledo estado; pouco tempo decorrido a expressão modificou-se n'um sentido de grande desordem, as linhas do rosto arrepanhavam-se, nova phase convulsionante recomeçava, com grande anciedade no peito da enferma. Os soluços repetiam-se com frequencia, a agitação lateral da cabeça designava afflicção. O facultativo mais novo disse aos collegas:

-- Olhem...

-- Ahi está -- concluiu o professor. A compressão já chega ao cerebello. Na opinião de Hillaret, este symptoma é de extrema gravidade e precede a morte.

Appareceram vomitos no meio das convulsões. Os movimentos eram frequentissimos, e a enfermeira tomou a cabeça da doente, para que ella não vomitasse na cama. Joaquim acceitou das suas mãos a bacia em que era recebido o vomito e assim o seu rosto afflicto se encontrava junto do semblante revoltoso de Angelina. Fechou os olhos para não vêr, mas sentia as golfadas do liquido nauseabundo de cheiro repugnante ...

O medico de bigode, afastando-se como os collegas, para não serem salpicados, perguntou:

-- Ella ainda conserva revulsivos?...

A enfermeira respondeu que não com um aceno de cabeça, e, para o confirmar, logo que os vomitos cessaram, com um movimento brusco, descobriu Angelina, patenteando a sua carne branca como o jaspe, onde se viam manchas avermelhadas dos sinapismos, que lhe tinham percorrido as pernas, os braços e o recatado seio.

Os medicos approximaram-se com a vista interessada sobre aquelle corpo sagrado. Joaquim Neves não pôde supportar tal profanação. Sahiu para o corredor exclamando em voz comprimida: «Oh ! meu Deus!... Oh ! meu Deus!... matae-me por piedade!...» Apertava desoladamente a cabeça e dava-lhe murros, querendo-se ferir: «Que desgraça! Que desgraça, Deus da minha alma!»

Momentos depois sairam os facultativos. O mais velho vinha a dizer ao da pera:

-- O coagulo é abundante. A localisação impossivel, no estado actual da sciencia; mas ver-se-ha na autopsia.

-- Ao cair -- acrescentou o collega -- certamente deu com a cabeça na muralha ou na borda de algum bote; pois dizem que havia n'aquelle sitio alguns recolhidos do mar, que era muito, hontem á noite. Sabem que se afundaram duas embarcações ?

-- E houve victimas -- accrescentou o mais novo. -- Os campos do ribatejo estão completamente cobertos. Meu irmão chegou no comboio d'esta manhã e diz que se vae interromper o transito de caminho de ferro, talvez por alguns dias.

O mais velho, que tinha propriedades em Santarém, parou no meio do corredoer, em face indignada. Batendo fortemente com a ponteira do guarda-chuva no pavimento, apostrophou:

-- Estes governos não sei que fazem !... Andam todos os dias a prometter as obras do rio e nada!...

O caixeiro de Pedro Alves approximou-se para lhes perguntar:

-- Ella morrerá, meus senhores?!

-- Pois isso é claro! -- respondeu peremptoriamente o de bigode.

-- Oh! meus bons senhores! -- exclamou, supplicante, com as mãos erguidas, querendo ajoelhar.-- Ainda que eu venda tudo quanto tenho na terra, vejam se ella não morre!

O medico gordo desenganou-o com modo convicto:

-- Isso nem o proprio Deus, meu amigo. Aquella!...

Deixaram-no, no meio do corredor, entregue á sua incomparavel desventura. O seu desespero, sem consolação, aniquilava-o. Não tinha coragem para ficar ali, nem força para se retirar. Pouco depois saiu a enfermeira, e fechou a porta.

-- Então deixa-a ?... -- inquiriu.

-- Volto já. Ha mais doentes. Eu mando a ajudanta.

Quiz elle ficar junto de Angelina para vigial-a, soccorrel-a em algum ataque, ser-lhe util no que fosse preciso. N'esta hora extrema, é sempre necessaria a presença de um amigo. A enfermeira não o permittiu. O regulamento não consentia taes liberdades.

-- Venha á visita da noite, ás oito, que se pede ao senhor doutor.

Porém só no outro dia, é que Joaquim Neves foi de novo admittido a ver Angelina. Na noite da vespera tinham-lhe negado terminantemente o consentimento ... As longas horas d'esse intervallo immenso foram das mais afflictivas de toda a sua vida. Tão atormentadas como estas, só as podiam passar os condemnados do inferno, clamando por uma consolação impossivel! Não se deitou. O desespero dava-lhe o aspecto de um doido. Percorreu ruas e ruas, sem saber por onde andava, desejando encontrar na agitação dos movimentos desvairados emprego ás suas impaciencias, uma perturbação á lógica da sua dôr, que o impellia para o suicidio. A incerteza ácerca do estado de Angelina produzia-lhe febre. Mais de uma vez, sem saber por onde ia, deparou comsigo junto do edifício do hospital, mudo e extatico, querendo por sentimento, por adivinhação, vêr atravez d'aquellas grossas paredes. Quem poderia dizer que a sua amada não agonisava, sósinha, ao desamparo, sem uma voz condoida e terna, que a consolasse nos ultimos instantes! ?... A' noite e durante a manhã, esteve duas vezes em casa de D. Maria Gomes, que encontrou em grande sobre-salto, logo á primeira, pois acabava de receber a carta de Angelina, pelo correio. Joaquim Neves leu essa folha de papel, onde se encontravam os derradeiros pensamentos da infeliz. Tanto elle, como a mestra de piano, juntos no mesmo pensamento piedoso, choraram a triste sorte d'aquella pobre rapariga, que sempre fôra boa, que nunca fizera mal a ninguem, e padecia um castigo immerecido !

-- Ah ! que se a senhora a conhecesse !... Toda a gente era amiga d'ella... Os paes não tinham olhos para outra coisa!... E religião ?!...

-- Via-se que fôra bem educada -- concordou a mãe do tenente Augusto. -- Este homem foi o demonio que lhe appareceu ! -- rematou apontando o pavimento superior.

Joaquim Neves dardejou um olhar furibundo! A vista perturbou-se-lhe, parecia que rebentava de cólera. Odiava Sallustio, sempre lhe quizera mal; mas, agora, pensava n'elle como n'um verdadeiro inimigo! Se Angelina morresse, havia de tirar uma vingança estrondosa d'aquelle que fôra o seu carrasco ! Sentia-se capaz de lhe arrancar o coração e trincar-lh'o. Encontraria n'isso saciedade, um refrigerio ao soffrimento... Ainda que o visse nos degraus de uma forca continuaria a odial-o: «Ladrão!» «Maldito seja para todo o sempre!» «Permitta Deus que estoire como um demonio, no dia em que se fôr casar com a outra!» -- eram as suas exclamações.

D. Maria Gomes, desde a noite da fatalidade, não sentira mais ninguem em cima. Difficilmente podia imaginar, como se passara, sem barulho, a scena violenta, que devia preceder a resolução de Angelina. Conservara-se sempre á escuta, pois esperava a todo o momento ser necessario intervir. Mas não houve nada. Por seu lado até adormecêra profundamente (pois sentia-se muito cangada da tormentosa Iucta d'esses dias) e julgara que Sallustio tivesse dado desmentido categorico á noticia do jornal, que ella sempre considerara verdadeira; pois conhecia muito bem os homens, e o seu feroz egoismo. .. Na manhã seguinte á da triste noite do suicidio, notara, é verdade, que o deputado saisse muito mais cedo do que de costume; mas não lhe fez especie, não deu ao caso importancia. Depois não houve, n'aquella casa, mais signal de gente! D. Maria Gomes estava convencida de que o malvado expulsara de noite a sua companheira...

-- Mas é que eu mato-o! -- exclamou Joaquim Neves, dando um furioso murro n'um joelho.

-- Não se desgrace, creatura!... -- aconselhou a mestra de piano. Olhe que estes senhores da governança podem tudo e mandam n'o degredado.

-- Na costa de Africa tambem se come pão. E preciso uma ensinadela! -- accentuou decisivo.

Saiu promettendo voltar com novidades para D. Maria Gomes, que tinha bom coração e se interessava por Angelina, como se fosse parenta. A pobre senhora, se não estivesse doente de um pé, iria com elle, para fazer uma visita á doente. Mas não lhe era possivel... E disse-lhe do patamar da escada, quando o caixeiro de Pedro Alves descia:

-- Ande, que, se ella casa comsigo, nada d'isto tinha acontecido!

Esta boa palavra penetrou-lhe até ao fundo d'alma... Ficou triste e macambusio, significando com o seu silencio, que tambem era da mesma opinião.

-- Ah! que ella nunca soube quanto eu lhe queria cá de dentro!... --exclamou, voltando-se para cima e batendo um murro no peito.

-- Oh!... se soube!... -- disse D. Maria Gomes. -- A infeliz contou-me tudo!...

Tal revelação surprehendeu vivamente Joaquim. No intimo, conservara sempre para com Angelina certo resentimento, por não lhe ter acceitado o seu amor. Muitas vezes, logo no começo d'aquella paixão desgraçada, quando lhe vinham suspeitas de que a filha de Pedro Alves dava trela a outros, como era muito ciumento, teve occasiões de tanta cólera, que lhe passou pela cabeça o matal-a, só para que mais ninguém a possuísse. Era um amor superabundante e violento, que o tornara verdadeiramente desgraçado! Taes pensamentos, pensados a frio, n'este instante desolador, quando Angelina expirava na cama de um hospital, não eram verdadeiros crimes ! ? Arrependeu-se de os conceber. No entretanto reconhecia que ella, tendo sabido que fôra tão amada, como foi, lhe devia ter correspondido de qualquer maneira. Porque é que tantas vezes se mostrara cruel e deshumana para com elle, fazendo-lhe desfeitas?! Já não exigia amor. .. que ao menos tivesse tido a condescendência de o estimar ... Mas o que acabava de ouvir da bocca da mestra de piano foi o bastante para lhe abrir deante dos olhos um paraiso de felicidades, apesar da funda desesperança em que se encontrava o seu pobre coração. Mas não, devia esperar !... No mundo tudo é regulado segundo a vontade do céu ; os desconsolos obscuros de que se compunha a sua vida, eram obra d'Aquelle que tudo manda !...

Quando o caixeiro foi admittido a vêr a enferma, pela segunda vez, um creado é que o veio chamar abaixo. Como não dormira um só minuto nas duas ultimas noites e como se alimentara insufficientemente, quando entrou no corredor perto das enfermarias, o cheiro especial d'aquella casa causou-lhe nauseas e quasi se sentiu esvaido. Caminhava como automato atraz do homem que o guiava. Em toda a sua pessoa se notavam signaes de abandono até na decencia do vestir: -- a camisa suja, um lenço escuro em volta do pescoço, o fato de cazimira nacional com nodoas de lama, as botas cambadas!... Vivia mais por um esforço nervoso, do que por se sentir com alma. A sensibilidade embotara-se-lhe, andando por entre as pessoas e os acontecimentos, com rosto amarellento e emmagrecido, olhar de imbecil, sem interesse!...

Entrou no quarto da doente, onde estavam outros medicos, alem d'aquelles que vira na vespera. Discutiam, analysavam, com raciocinios serenos, aquelle acontecimento que a elle tanto o perturbava! Este habito profissional, a banalidade de expressões e os sorrisos ... pungiam-no, como se tudo fosse premeditado, com o fim acintoso de depreciarem a sua dôr.

A face de Angelina transformara-se na impressão que d'ella se recebia. Já não era o aspecto indifferente, de olhos pasmados do dia anterior; ao contrario, tinha vivacidade e turbulência excessiva. Os musculos, ora convulsionados, ora pasmodicamente firmes, mostravam uma rigidez constantemente mudável. A língua triturada apontava por entre os dentes ; espuma sanguinia borbulhava por entre os labios com as respirações suspirosas. Os olhos strabicos, deixavam ver a sclerotica, que era uma dedada de cal em fundo congestionado. De vez em quando, sons agudos como uivos de loba, denunciavam dôres profundissimas.

Este semblante, de apparencia tumultuosa, estava ligado a um pescoço rigido e inteiriçado, a que faltava a graça habitual dos collos airosos, onde se accentua a vaidade das mulheres formosas. Bem pelo contrario, os musculos pareciam cordas e as jugulares, excessivamente congestionadas, eram vergões azues, grossos como dedos. O tronco, todo voltado para traz, em arco, rigido como de estatua, dava a este frágil corpo de mulher o aspecto do corpo d'um athleta de circo, quando sustenta uma pyramide de homens. Tinha a camisa rasgada, os mimosos seios á mostra, com impudicicia e descaro ! De vez em quando, esta carne saudavel que tantos desejos fizera nascer, patenteava se em sacudidelas, em convulsões de hysteria, como o de um endemoninhado. Comtudo não se deslocava: os movimentos mais desinquietos eram limitados ás pernas... Duas enfermeiras aconchegavam-lhe a roupa, quando ella se descobria, porque esta creatura, casta como uma virgem dos templos vedicos, na inconsciencia dos seus movimentos patenteava toda a sua nudez.

Um dos facultativos considerou:

-- Como tudo se transforma!...

Joaquim Neves, debruçado nas costas de uma cadeira, chorava n'uma afflicção irreprimivel. Não queria vêr, não queria escutar. A sua alma rude nunca sonhara coisa tão medonha! Nem o demonio das lendas populares, sempre pintado com linguagem imaginosa, n'um sentido despresivel e odioso, podia dar uma remota idéa d'aquella figura convulsionaria, que elle contemplara sómente durante alguns segundos. Tinha vontade de manifestar o seu desespero em gritos; desejaria arrebentar, n'aquelle momento, como uma bomba, para que do seu corpo ficassem apenas alguns despresiveis migalhos pelo chão!..

N'um certo momento os médicos callaram-se, afastando-se n'um circulo maior, todos com os olhos fixos na moribunda. Uma nova mudança se ia operar; um d'elles disse para chamar a attenção dos collegas:

-- Esperem !...

O caixeiro de Pedro Alves tambem quiz vêr. O silencio geral, o afastamento dos facultativos, que parecia respeito... obrigaram-o a erguer-se e encarar Angelina.

Os movimentos das pernas haviam cessado... A rigidez convulsiva da face diminuia gradualmente, como diminue a irritação da atmosphera, quando um incêndio se extingue... Branda doçura reapparecia no rosto da enferma, que semelhava querer resuscitar depois de ter morrido. A face foi empallidecendo pouco a pouco; os olhos pareciam fixar, com vida natural, as pessoas que estavam em volta; os dentes já não trituravam a lingua, que se recolhêra, ficando ainda a escorrer baba sanguínea ; o pescoço tornou-se flacido, destorcendo-se para tomar a posição ordinaria; os braços tiveram uma especie de movimento voluntario, approximando-se do tronco .. Angelina voltava á sua expressão habitual, ao que era d'antes, parecendo que despontava uma melhora rapida e milagrosa -- a melhora que Joaquim Neves sempre esperara da vontade omnipotente do Deus misericordioso ... Mas, instantes depois, como se uma bella cathedral, um arrogante castello se derruísse subitamente, em todo aquelle organismo se reconheceu um aniquilamento geral, tornando-se os mosculos brandos e molles. Um dos facultativos, como ao escrever a palavra final de uma obra que acabasse de concluir, disse: «Prompto!» O corpo de Angelina cahia para o lado com o ultimo suspiro.

Joaquim Neves reconheceu que ella tinha expirado! Atirou-se de novo sobre a cadeira, n'um choro verdadeiramente suffocante. Um dos clínicos, apontando-o com a bengala, perguntou:

-- Será irmão ?!...

-- Talvez -- respondeu outro.

E voltando-se para os collegas, acrescentou, tapando o nariz:

-- Não se póde parar aqui!...

Tinha-se declarado um mau cheiro. A enfermeira abriu as janellas. O cadaver depois de o terem puxado mais para baixo, foi coberto com o lençol. Todos íam saindo, inclusivamente Joaquim Neves, que obedecera

ao pedido que lhe fizeram. A porta foi fechada por fóra. Dois facultativos, que tinham divergido ácerca da localisação do coagulo sanguineo, afastaram-se com um aperto de mão, dizendo o mais novo:

-- A'manhã se desenganará com a autopsia. Appareça ás dez horas.

X

Manifestara-se a crise no ministerio. Não surprehendêra ninguem, pois havia mais de quinze dias que abertamente se fallava de recomposição. Citava-se uma phrase do monarcha, para a justificar: «que não achava conveniente excitar a opinião publica com medidas extremamente liberaes.»

-- E tem razão sua magestade -- disse com imponencia Sallustio Nogueira, diante do Fonseca d'Alfandega e de D. Agostinho, que logo o foram repetir.--O que nós precisámos é de administração, muita administração, administração ás carradas, e não de politica.

Ora todos sabiam que isto se referia a Carlos de Mendonça, por causa da sua annunciada reforma liberal, regulando as relações entre o Estado e o alto clero, restringindo a acção dos bispos sobre os parochos, em assumptos fabriqueiros, e até difficultando a intervenção dos pastores d'almas ruraes no acto eleitoral.

-- Por emquanto -- dizia ironicamente Sallustio Nogueira -- o homem limita-se (segundo consta) a cortar pelas mitras e a pôr peias aos parochos, como se faz ás bestas soltas nas bouças para não saltarem paredes, depois virá o resto. Ainda é um lavor que nos faz; por que podia acabar com tudo de uma vez!

O mesmo deputado accrescentou com seriedade e energia:

-- Em summa, o que o ministro da justiça quer é a ruina do partido. Os padres podem zangar-se e por essas provincias fóra ainda são elles o principal nervo das nossas agremiações.

O padre Brito, que estava presente, interferiu:

-- Não é pelos padres se zangarem, meu caro amigo. Se se bole com os bispos, se se põem entraves á acção moral do clero sobre o povo, esta coisa da religião vae pela agua abaixo e os conservadores perdem a sua mais firme mulêta. Adeus paiz, adeus carta, adeus tudo ...

-- Tem absolutamente razão, o padre Brito -- concordou Sallustio. -- E' melhor irem d carta e tirarem-lhe 0 artigo sexto. A revolução sensata e moderada, que tanto sangue custou aos nossos antepassados, perde-se. Sou partidario da protecção ao clero, que desejo respeitado e valioso, ainda que não admittiria a volta dos conventos. Esta é que é a minha doutrina.

Pessoas consideradas louvaram muito a energia do deputado, que em toda a parte se declarava contra Carlos de Mendonça, um talento temido. Fallou-se muito de Sallustio no Gremio, no Club, debaixo da Arcada, nos camarotes de S. Carlos, nas reuniões do Frazuella e, diziam, que tambem no Paço. Alguns scepticos commentavam esta attitude, acreditando que elle tivesse as costas quentes, pois se lhe não fôra encommendado o sermão, não teria coragem de aggredir aquelle que tinha sido seu mestre e representava a sagacidade do partido.

No conselho de gabinete, que no dia seguinte houve no ministerio do reino, Carlos de Mendonça, que andava mais ou menos ao corrente do que contra elle se tramava, apresentou as medidas annunciadas, mais radicaes ainda do que se presumia. Todos os collegas lh'as reprovaram com rumor, menos Julio Clovis, seu intimo, que se limitou a ficar silencioso. Fallaram ao ministro da justiça de complicações eleitoraes, dissolução da maioria, e da repugnância do chefe do estado em acceitar as reformas. Carlos de Mendonça escutou sorrindo, levantou-se com certo desdem, accendeu um charuto e disse com voz pausada:

-- Bem, comprehendo... Não me querem... Isto estava mais ou menos combinado...

E voltando-se para o presidente do conselho acrescentou :

-- Vossa excellencia obsequeia-me, pondo nas mãos d'el-rei a minha pasta.

-- Mas, collega... -- ia a dizer o marquez de Tornai.

-- E' escusado -- interrompeu o ministro da justiça serenamente. -- Vossas excellencias desejam pôr-me fóra do ministerio e eu para lhes provar a minha amizade (accentuou ironicamente) peço a minha demissão.

Evaristo de Mello, levantou-se d'onde estava e, indo collocar-se em frente de Carlos de Mendonça, disse-lhe com energia:

-- Não é isso. Nós no que não concordamos é em acceitar as suas idéas, que importam uma dissolução social. Se consentissemos que levasse ao parlamento essa proposta, tínhamos contra nós toda a padralhada... E sem padres, meu caro amigo, não ha politica possivel. Se elles nos abandonam, está tudo perdido.

O ministro da justiça olhou, face a face, o seu interlocutor. Desconfiava que Evaristo de Mello andasse mettido inconscientemente na intriga, contra elle organisada pela condessa de Frazuella, por Josefa Lencas-tre e pela viscondessa de Aguas-santas, que tinham promettido a Sallustio mettel-o no ministerio. Depois de tirar uma longa fumaça disse, com a testa vincada, ao marido de D. Cezaria: *

-- Sabe que mais ?...

-- O quê ?

-- Vossê é tolo!...

Esta phrase inesperada produziu sensação nos membros do gabinete, principalmente pelo modo claramente deprimente, como fôra pronunciada.

-- O' collega !... O' collega !... retire a expressão -- exclamou o ministro da marinha, muito pallido, recuando até á parede.

-- Não retiro nada -- disse com energia Carlos de Mendonça mascando o charuto. Vossê é architolo, repito.

O presidente do conselho, um fleugmatico, avançou com certa gravidade, interpoz-se aos dois collegas, dirigindo-se ao da justiça:

-- O Carlos de Mendonça não quiz certamente magoar o Evaristo. Foi um repente, uma palavra mal pensada. Por isso lhe peço que a retire ...

-- Não posso, meu caro presidente. Uma verdade, é sempre uma verdade, qualquer que seja a irritação que a determine.

Então, o general Gonçalo, que se conservara sentado e raivoso, com o nó do dedo pollegar entre os dentes, levantou-se para dizer com repensado aprumo militar :

-- Mas então é positivamente um insulto!...

-- Como vossa excellencia o queira entender ; porque lhe affirmo, general, que o senhor, se uma coisa d'essas é possível, ainda o considero mais tolo do que aquelle -- rematou apontando para o ministro da marinha ...

O titular da guerra empallideceu primeiro... Pozeram-se-lhe depois os lábios roxos e os olhos injectados. Apoiou os nós dos dedos sobre a mesa, que o separava de Carlos de Mendonça, e, n'uma voz reprezada pela intensa cólera, entendeu:

-- Mas então são dois insultos!...

-- Exactamente -- disse com frieza o ministro da justiça.

-- h ! seu grande...

Fez um arremeço contra o provocador, mas Julio Clovis susteve-o pelo braço. Depois de socegar o ministro da guerra, elle que era muito de Carlos de Mendonça, pareceu-lhe conveniente appellar para a antiga amizade que os ligava:

-- Vem cá... Reconhece que não é proprio de homens de certa educação...

-- Sei que tu não estás mettido na reles intriga de saias, em que são cumplices estes senhores. Não te dou os parabéns por ficares com elles. Qualquer dia fazem-te o mesmo. Adeus -- despediu-se, voltando as costas e sahindo.

Houve um largo espaço de silencio. Olhavam uns para os outros, sem ousarem interrogar-se. O general Gonçaio, na tremenda confusão que lhe passava no craneo, rugiu:

-- Maroto! .. que o parto !

-- E' um homem inconveniente. Não serve para estas coisas ! -- entendeu o marquez de Tornai.

-- E' um doido ! -- accrescentou Evaristo de Mello, pallido, ainda espalmado contra a parede.

-- E se eu o rachasse em dois -- disse o ministro da guerra -- haviam de dizer que abusava da minha espada.

Julio Clovis, quiz desculpar o seu amigo; mas o presidente do conselho, com a sua gravidade de homem antigo, pediu que não fallassem mais no caso, considerando :

-- Se cá está o visconde...

-- Podíamos ter uma desgraça, porque é um homem, que anda sempre armado! -- opinou Evaristo de Mello, approximando-se.

Referiam-se ao ministro da fazenda, visconde de Serrato, um destemido, com fama de ter morto muito contrabandista a tiro, quando fôra director da alfandega de Valença.

-- Podia eu mesmo matal-o -- affirmou o general Gonçalo, como n'um desforço.

-- Era uma semsaboria -- observou-lhe com prudencia o marquez de Tornai.

Conversaram mais apasiguadamente. Não se podia tratar com homens que desvairam. O talento era coisa boa; mas o juizo, a cordealidade, o tacto... valem tanto como o talento -- disse ainda o presidente do conselho.

-- Valem mais ! -- corroborou Evaristo de Mello. O talento será coisa que encha barriga? O que eu quero é homens sérios, bons collegas...

-- E que sejam cordatos -- accrescentou o ministro da guerra. -- Ora imaginem que eu me lembrava de pegar pelos fundilhos das calças áquelle magrizela, e atiral-o pela janella fóra para a rua ?

O marquez poz-lhe a mão no hombro sorrindo. Era preferivel tratar dos negocios pendentes. O que se passou julgava melhor esquecel-o. Quem andava mettido na política tinha de engulir muita coisa.

-- Vamos á nossa vida -- convidou amavelmente o presidente.

-- Chamar-me tolo! Ter a ousadia de me chamar tolo e de me dizer, a mim, que as ouvi zunir por aqui no cêrco do Porto, que ando mettido em intrigas de saias ! E' o mesmo que chamar-me um maricas! Será bom que não torne a apparecer tão cedo diante da minha vista. Se o encontro na rua, não sei o que acontecerá ! Um João-ninguem, que eu posso reduzir a cisco entre dois dedos.

Julio Clovis aproveitou o espirito conciliador do marquez, corroborando-o, dizendo algumas palavras que attenuassem o procedimento de Carlos de Mendonça.

- Deve-se desculpar, é um homem de talento [...] .

Porém, Evaristo de Mello, furioso, disse energicamente, pondo-se-lhe diante do nariz:

-- Também a ti te sobre talento e nem por isso insultas os collegas.

O general Gonçalo deu volta a mesa em largas passadas, agarrou o ministro das obras publicas violentamente por um braço e disse-lhe n'um rugir surdo:

-- Para esses talentos estou-me...m...

Não [...] a palavra que lhe viera a ponta da lingua, por um certo respeito pela companhia; porém, remoendo-a durante segundos, completou:

-- estou-me mangando, sabe?...

O ministro da marinha, o mais offendido pelo despreso desdenhoso de Carlos de Mendonça, pronunciou:

-- Talento!... Talento!... Uma história... uma santa história... Malcreado, malcreado é que elle é!

O presidente do conselho, com as suas maneiras fidalgas de homem sempre cordato, abriu a janella, olhando avulsamente a escuridão da noite, para os lados do Terreiro do Paço e disse:

-- Está frio...Talvez chova...

Fallaram do lado de fóra da porta com respeito. Era o carteiro apresentando um bilhete n'uma salva de prata.

O marquez, lendo o nome, disse com affecto:

-- Que entre.

E voltando-se. informou:

-- E' o Frazuella. Podemos ouvil-o ácerca do que acaba de se passar. Homem de bom conselho .

O diplomata, parando á entrada, e rodeando a salla com o seu olhar intelligente, perguntou:

-- Não sou de mais aqui? Alguém que ha pouco encontrou Carlos de Mendonça acaba de me dizer..

-- E' verdade, caro amigo, uma semsaboria -- esclareceu o marqnez, com a sua mão na mão do conde. -- O Mendonça entregou-me a pasta, para eu a depor nas mãos de el rei. Uma semsaboria, sabes ?...

-- Uma crise ministerial n'este momento, quando tantos negodos graves estão pendentes, é mais do que uma semsaboria .. -- considerou o Frazuella mostrando-se surprehendido.

-- Conversêmos sobre esse assumpto -- disse o presidente do conselho. Estamos em familia, tu és de casa.

Sentaram-se. O Frazuella na cadeira vasia do ministro da justiça.

-- Como ficarias bem entre nós -- disse o Tomai, sorrindo para o Frazuella.

-- Quem, eu ? Pelo amor de Deus!... Sabes que não posso. Os meus negocios...

Explicaram-lhe a seguir as divergendas com o ministro da justiça demissionario. O conde approvou o que se fez, entendendo:

-- Certas reformas, podem ser magnificas; mas a opportunidade... Porém, -- accrescentou -- na maioria da camara, encontrarão quem substitua Carlos de Mendonça. O Sallustio Nogueira, por exemplo. E' rapaz de talento.

-- Approvo -- disse convictamente o general Gonçalo, lembrando-se das recommendações de sua mulher.

-- Tragam-me esse ou qualquer outro, que de bom grado o acceitarei. Sempre ha de ser melhor companheiro que o malcreado que saiu -- affirmou rancoroso, Evaristo de Mello.

-- E' um rapaz muito novo -- observou Julio Clovis.

-- Mas tem grande tino para os negocios -- entendeu o Frazuella. -- Incumbam-lhe a pasta da marinha, por exemplo, e verão se não lhes faz um logarão. Tem estudos especiaes ácerca de colonias. O nosso Evaristo de Mello, sempre gostou mais da justiça. E' competente em tudo, bem sabemos; mas a justiça é a sua especialidade. Agora vejo -- rematou o conde sorrindo -- que estou a metter foice em seara alheia. Desculpem ...

-- O tudo é sua magestade acceitar Sallustio -- ponderou com sinceridade o ministro das obras publicas.

-- El-rei conhece-o e ha de fazer justiça ao talento do deputado. E' minha convicção -- entendeu o Frazuella.

-- De certo -- corroborou o presidente do conselho.

Oito dias depois, um cortejo funebre passava na rua de Santa Izabel, em direcção ao cemiterio dos Prazeres. Adiante um esquadrão de lanceiros, as bandeirolas ao vento, a charanga tocando uma marcha triste. O feretro era transportado em magestoso coche de gala da casa real, e n'outros coches somenos iam ecclesiasticos. Archeiros ladeavam o morto, levando brandões accesos e um pedaço de escumilha preta pendurada do chapéu. Seguia-se o resto do regimento de lanceiros n.° I, de que o morto fora coronel. Depois mais de duzentas carruagens, com convidados. A rua de S. Miguel e a rua Direita dos Prazeres estavam ladeadas de gente e de tropa, ficando ao centro um claro, por onde passava o fúnebre cortejo. Todos os regimentos da capital prestavam honras ao morto distincto, cuja elevada categoria se procurava fazer sentir.

A infantaria e caçadores ficaram ao norte da rua Direita dos Prazeres, costas para as terras do Casa-linho, cujos prados verdejantes se estendiam além. A' esquerda do cemiterio estava a artilharia, as peças em mira para a quinta do Dourado, pois deviam ser para ali as descargas. Do outro lado os regimentos de cavallaria e lanceiros n.° 2, deixando larga passagem ás carruagens, que a policia, á maneira que fossem chegando, guiaria para os lados da Fonte-santa. O dia era brilhante de sol, um dia de primavera, em que se sentia a vida da natureza, a agitação da seiva circulando nos troncos massiços e nos rebentos das acacias. O Tejo rebrilhava ao longe... A torre do Bugio, saindo do meio das aguas, era como mancha de terra n'um espelho ... Estava-se no principio do mez de março; rebentavam amendoeiras e ginjeiras temporâs, alegrando com flores a paizagem mesquinha d'aquellas terras barrentas. Na multidão o aspecto era pouco commovido. As musicas regimentaes, atravessando a cidade, a tocar valsas garridas, haviam attraído todos os ociosos que ali se encontravam. O grande morto caminhava lentamente, na sua carruagem triumphal. Os vendedores ambulantes de agua fresca e limonada apregoavam o seu modesto negocio. Tinha aspecto alegre de romaria, este ajuntamento de povo, fallando, chacoteando, rindo, em conversas triviaes. Logo que ao longe a charanga de lanceiros rompeu na rua direita dos Prazeres, montada nos seus cavallos brancos, exclamou ironicamente um popular que descascava e comia uma laranja: «Eh! que estadão!...» Outro que era seu amigo, deu-lhe a replica: «Se te parece ! O enterro de um ministro!»

Eram na realidade as honras fúnebres prestadas ao ministro da guerra, o general Gonçalo de Moura. Tinha-se suicidado, ao alvorecer do dia precedente, no pavilhão do seu jardim. Segundo se presumia, sentara-se n'uma cadeira de palha da ilha, applicara a bocca de um revolver por baixo do queixo e desfechara .. Os miolos viam-se pegados no tecto e nas paredes, misturados com esquirolas dos ossos do craneo. A posição do cadaver, caído sobre um dos lados, a poça de sangue no chão, a arma ainda tenazmente agarrada.. justificavam a descripção emocionante dos jornaes. O jardineiro, ouvindo o tiro e correndo para o pavilhão, fora o primeiro a dar com o doloroso quadro e desatou n'um alto clamor para chamar gente. Este velho camarada do general, ajoelhando diante do cadaver, chorava e tinha palavras confusas contra alguem que elle suppunha ser a causa de tão desesperada resolução.

As creadas foram chamar Josefa, que dormia socegada o seu bom somno matinal. Iam espavoridas pela casa; mas como receiassem, por uma especie de melindre, dar abruptamente a fatal novidade, em toda a sua crueza, patenteavam apenas commoção, sem gritos nem palavras de esclarecimento, para não affligir a senhora, apesar de nos . últimos tempos terem reconhecido ser ella dura de maneiras para com o marido. Porém, sempre consideravam que n'estas grandes desgraças, não ha olhos de esposa enganosa, que não rebentem em caudaes de sentidas lagrimas, com multiplicados gestos de sentimento... Por isso só a creada de quarto lhe entrou na alcova chamando-a:

-- Minha senhora! minha senhora !.. O senhor está caído no jardim!... Deu-lhe não sei o quê!...

Josefa Lencastre, talvez com rapido e allucinado pre-sentimento, enfiou atrapalhadamente um roupão de cazimira cinzenta. A creada calçou-lhe á pressa uns sapatos e, mesmo sem meias, correu ao logar onde jazia seu marido. Ao encarar o cadaver, n'aquelle desprezivel abandono de um morto, com o craneo despedaçado, os miolos e migalhas de osso collados ás paredes, a poça de sangue, o revólver... empallideceu subitamente. Na mesa do centro do pavilhão, escriptas pela mão do general nos ultimos momentos da vida, estavam as seguintes palavras, traçadas a lapis, sobre a taboa nua e velha:

«Não criminem ninguem pela minha morte!

(a) Gonçalo de Moura».

Josefa viu com pasmados olhos d'espanto a declaração feita com mão segura em grandes lettras... A seguir fechou esses lindos olhos, deu um unico e estridente grito e abandonou-se sobre uma cadeira n'um aniquilamento de toda a sua energia corporea. Os creados, clamando entre si, compadeceram-se d'ella, da sua rica senhora, exaltando a intimidade que a ligava ao marido, cuja morte tanto sentia. Eram bem amigos: elle acarinhando-a sempre meigamente como a uma filha, ella consagrando-lhe verdadeiro affecto, como a um pae! Nenhum dos presentes sabia explicar o acto de desespero do general! Não podia deixar de ser filho de qualquer accesso de loucura, ou talvez algum desgraçado accidente. Era indispensavel recolherem a desmaiada viuva á cama. O cozinheiro e o creado de mesa pegaram na cadeira em charola, as creadas compozeram-lhe o roupão, para se lhe não verem as pernas sem meias... Em seguida foram chamar medicos, dar parte á viscondessa de Aguas-santas e á condessa de Frazuella, intima de Josefa. Junto do cadaver só ficou o jardineiro e o ajudante de cozinha. O velho soldado, companheiro do general em tantos lances difficeis da vida militar, cerrando um punho e indicando o suicida, exclamou com energia:

-- Não sou nenhum tolo e percebo bem as coisas !... N'aquelle peito havia muita honra, entendes, meu rapaz?!..

O ajudante de cozinha disse que sim; mas por condescendencia, pois não comprehendera o pensamento do jardineiro. O que estava ao seu alcance apreciar, era que aquelle senhor, cuja presença fôra sempre para elle objecto de respeito e temor, quando o apreciava dentro da sua farda doirada, o via elle agora ali em ceroulas, envolvido n'um capote militar, com a cabeça esmigalhada, verdadeiramente deprezado e insignificante, como qualquer pobre diabo que matassem no recanto d'um caminho remoto...

Josefa Lencastre, chorou ostentosamente a morte de seu marido, rodeada da tia viscondessa, da Frazuella, e de mais amigas que a acompanhavam n'este lance supremo da sua vida. A especie de allucinação, que levara o general ao suicidio, ninguem a podia comprehender e quasi reprehendiam o morto pelo acto inconveniente que praticara.

-- Um disparate d'estes! Um homem que toda a gente considerava e tinha um amor de mulher como poucos!... -- dizia a Aguas Santas.

Concordavam, porém, que talvez fôsse por causa d'aquelle maldito rheumatismo, que o trazia desgostoso. Soffria ataques de verdadeira gotta, que o deixavam tolhido em sua cama e invalido durante mezes. Os joanetes avolumavam-se-lhe a ponto de ter de golpear as botas, e o seu andar, mesmo o dos periodos em que se julgava com saude, era tropego, como d'um valetudinario. Ora isto n'um homem com furia amorosa por sua mulher, elegante, «formosa e cubiçada.. Emfim as reticencias eram o melhor commentario das palavras e todos as deixavam no fim das suas considerações...

Porém, este final, n'uma existencia tão consideravel, fizera impressão na sociedade. No dia do acontecimento trágico e nos seguintes só d'elle se fallava. A familia real, para dar prova clara de consideração pela memoria do fallecido, privou-se de theatro uma noite. Os jornaes em extensas biographias expuzeram ao publico ignorante da historia patria, o que fôra esse homem valioso, como militar e como político. Uma verdadeira gloria e um sustentaculo da monarchia. Entre as diversas manifestações de respeito foi muito apreciado o offerecimento dos alumnos da escola do exercito, que, por turnos, quizeram velai o cadaver do seu ministro até á hora do funeral, que se verificou n'uma quinta-feira, ás quatro da tarde, sahindo o prestito da residencia do fallecido. A concorrencia a esse acto foi extraordinaria. Tudo quanto Lisboa tinha de notavel e de saliente no militarismo, na politica e no corpo diplomatico ahi concorreu. O conselheiro Mauricio Pontino, homem conceituoso, chegando-se respeitosamente ao presidente do conselho, disse-lhe com accento commovido:

-- Consola o coração de patriotas o que estamos presenceando !... Esta concorrencia deslumbra!... Mas quem havia de presumir, acto assim inconsiderado, em homem de tanta ponderação, meu caro marquez...

-- bem verdade, excellente amigo. Nenhum de nós é senhor das suas acções. A Providencia... -- disse-lhe o Tornai.

E como n'este momento roçasse pelo hombro de Mauricio o elegante barão do Cerdeiral, que abotoava com pausa as suas luvas pretas, o conselheiro afastou-se voltando-lhe as costas, com verdadeira repugnancia e nojo, segredando apenas para o seu coração respeitoso e honesto:

-- Não o posso tragar... Foi d'elle a culpa...

Logo adiante estava Sallustio Nogueira, a quem o Cerdeiral estendeu a mão, dizendo-lhe o novo ministro em voz cava: «Perdemos um grande amigo!» o que o barão confirmou com um abaixamento de palpebras e aceno de cabeça. No grupo de Sallustio commentava-se tudo quanto de grande o general fizera pelo paiz, com notas tiradas do que diziam os jornaes, e o deputado por Guimarães sellou esse unanime applauso, com uma phrase simples e de valor:

-- Isso tudo, a historia o confirmará nas suas paginas de bronze.

Começado o saimento, os convidados procuravam as suas carruagens. Sallustio atirou-se para o fundo do coupê patenteando abatimento dolorido, com o saliente proposito de dar publico testemunho de consideração e saudade pela memoria d'este homem, que fôra um dos mais poderosos factores da sua fortuna politica. Porém, apezar de recolhido n'este pensamento, não deixava de apreciar qualquer sorriso anonymo, que viesse da multidão, e lhe parecesse de apreço pela sua cathegoria.

As primeiras carruagens iam chegando á porta do çemiterio, e as pessoas que d'ellas sahiam accumulavam-se junto da entrada. Emquanto se esperava que o caixão descesse do magestoso coche, que o transportara, fallava-se em assumptos triviaes. Muitos olhares se demoravam sobre Sallustio, escolhido em conselho para enaltecer o nome do illustre extincto. Era a melhor palavra do ministeio e ao mesmo tempo um dos mais intimos amigos do general. Toda a gente esperava, qualquer coisa de nobre e levantado, das palavras que d'ahi a minutos se escutariam. A'quella voz, já de outras provas conhecida, não faltariam sentidas notas de grande engenho n'este momento solemne. Não seria desmentida a espectativa.

Depois dos numerosos turnos de respeito, organisados para irem ás borlas do caixão, pelo barão de Cerdeiral coadjuvado por Lioncio de Mertola, em cujo jazigo repousariam temporariamente os restos mortaes do general Gonçalo de Moura, antes e depois dos responsos na capella, o feretro parou como tendo attingido o limite da sua jornada terrena. Houve um momento de attenção e todos os olhares procuravam o novo ministro da marinha, que logo appareceu no logar apropriá-do, á porta do mausoleu, sobre um degrau. O silencio dos ouvintes era completo, como mostra d'apreço pelo elogiado e pelo orador, que empregou um longo minuto de recolhimento sombrio, para romper a commoção que o dominava. Porém, desgelatinada a bola obstructora da palavra, Sallustio começou em voz lenta:

«Meus senhores.

«O conselho de ministros, de que sou o menor representante, honrou-me, escolhendo-me para dizer o ultimo adeus a este amigo, a este collega incomparável. Fal-o-hei, hão com o brilho que o caso exige, pois sempre foi descolorido o meu dizer obscuro; mas com sinceridade que prove o meu extremado e respeitoso affecto. Se o amei muito em vida!... Perguntem-no ás aves do ceu, que n'este momento perderam seus cantares; perguntem-no a outros corações que aqui perto batem compungidos como o meu! Amei-o quasi com um querer de filho e com a grande veneração que sempre me mereceram as suas altíssimas virtudes; amei-o porque era bom e porque era nobre o seu espirito. Mas emfim elle morreu, pagando á natureza o tributo que todos lhe devemos, grandes e pequenos, principes e simples vassalos. E perante uma campa que se abre, primeiro que a voz pessoal do amigo, deve echoar, deve erguer-se a voz austera da justiça social.

«Nas agitadas contendas da politica, os homens agridem-se como adversarios, ás vezes com ferocidade insana, com furia carniceira, não poupando nem a honra pessoal, nem os mais recatados segredos da familia inviolável; mas quando se chega á meta da vida, onde começa o limiar da historia, só a verdade, nua, immaculada e sublime deve fallar. O morto illustre que aqui está (apontou solemnemente o caixão) foi um dos mais erguidos e dignos patriotas d'esta abençoada terra, que a todos nos viu nascer; a valentia e a coragem nos campos de batalha, foram n'elle, como nas gloriosas tradições de Roma e Macedonia, d'onde certamente vinham, por linhas obscuras, os principaes titulos porque brilhou e bem-mereceu, ainda que lhe não faltassem as fulgurações de talento político, nem os gosos do affecto domestico, que tanto o felicitavam. Esposo amantíssimo deixa no mundo uma inconsolável viuva, modelo de virtude, que o chorará eternamente; homem politico de superior bom senso, cidadão prestante e incorruptível, servidor leal do throno que ajudou a levantar, as paginas da historia registarão seus actos. Como registarão com superior nomeada os seus feitos de guerreiro destemido e valente, que ouviu imperturbável o silvo das balas, para nos conquistar esta -- tres vezes santa liberdade ! -- que a todos nos torna felizes, e pela qual soffreu o cárcere e a fome. (Rumôr approvativo) Foi um heroe !... Dizei-o vós, punhado de bravos que a seu lado combatestes, dize-o tu, Terceira, dize-o tu, cidade do Porto, dize-o tu, Exilio !

«A sua carreira, militar e política, foi uma série ininterrupta de actos de abnegação, coragem, honradez, lealdade, tudo servido por uma intelligencia esclarecida. Tão grande cidadão, como exemplar amigo, era preciso conhecel-o no trato íntimo, para se comprehender de quanta doçura e bondade era formado o seu aspecto severo. E assim como em toda a natureza ha alternativas de dias alegres de sol e dias tempestuosos de chuva; assim como ás flores da primavera e aos fructos do estio, se segue a queda das folhas do outomno e o adormecimento geral da vida no inverno, sem que o homem saiba a razão íntima de todas estas mudanças; assim tambem esta intelligencia, que foi elevada e penetrantissima, se offuscou n'um momento, e o resultado d'essa ausencia da chamma divina deu logar ao triste facto, que hoje aqui deplorámos.

«Paz á sua alma ! Honra á sua memoria !

«Adeus bom amigo, prestante cidadão, patriota eximio. Adeus!

«A tua obra, a obra de liberdade que nos legaste não morrerá. Havemos de honrar-t'a, acrescentando a com o fructo do nosso lavor. Podes crêl-o, valente general.

«Adeus ! Adeus ! Adeus !

«Pela Patria ! Pela Familia ! Pela Amisade !»

O marquez de Tornai, todos os membros do gabinete, o conde de Frazuella e muitas outras pessoas consideráveis se dirigiram a Sallustio, apertando-lhe a mão, em silencio e com solemnidade. O caixão foi mettido no jazigo. A funebre cerimonia estava concluida, os convidados retiravam-se com rostos desanuveados em quanto as descargas da ordenança echoavam na amplidão infinita, manchando a com leves bolas de fumo, que a brisa primaveril desfazia. A' porta do cemiterio, cada um procurava a sua carruagem. Como houvesse grande accumulação de povo e de trens, Sallustio Nogueira esteve quasi um minuto á espera. Impaciente pela demora, ordenava ao seu correio que lhe mandasse chegar o coupé, de preferencia a qualquer outro, quando um rapaz baixo, face torva, vestuário despresado se lhe dirigiu, com uma velha pistola na mão. Um poderoso grito sahiu da multidão, refluindo para aquelle lado a onda popular. De todos se apoderou um sentimento de pavor; não se sabia bem o que fosse, mas de repente, nas imaginações se figurou uma tremenda catastrophe... Talvez uma revolta militar, por causa do descontentamento que lavrava no exercito, motivado por certas reformas de fardamentos e barretinas. O caso, apesar do borborinho, não se avolumou : o correio de Sallustio, atirando o seu cavallo sobre o homem de physionomia truculenta, inutilisou-lhe o plano homicida. Dois policias apoderaram-se d'elle: a velha pistola que não desfechara, cahiu no chão, como coisa sem valor.

No meio do reboliço fallava-se n'um attentado político contra o novo ministro da marinha, cujo nome por este motivo, cresceu rapidamente de importancia! Grande numero de pessoas sairam das suas carruagens, para averiguarem dircctamente o succedido... O que se lhes deparou foi um homem debatendo-se entre muitos que o seguravam, e que ao mesmo tempo que os repellia vomitava injurias e improperios contra Sallustio -- palavras incoherentes, cuja significação ninguem alcançava. O amante de Angelina quiz ver o seu inesperado inimigo e, quando reconheceu Joaquim Neves, impallideceu ligeiramente; mas sem perder o sangue frio disse generoso para os policias:

-- E' algum foragido de Rilhafoles, tratem-no com humanidade.

A multidão olhou com respeito este homem compassivo, que assim absolvia aquelle que procurara tirar-lhe a vida. Sallustio enfiou para a carruagem ordenando que o levassem para o ministerio. Lioncio de Mertola, que viera offegante ao constar-lhe o que se passava, irado, e com um punho erguido sobre a cabeça do vingador da memoria de Angelina, ameaçou-o dizendo-lhe:

-- Assassino! Louco ! Nem imaginas a brilhante carreira que ias cortar !...

Um quarto d'hora depois, o largo em frente do cemiterio dos Prazeres estava deserto, tendo desfilado as tropas, precedidos os regimentos das suas musicas, que tocavam marchas alegres.

Uma vez, na camara dos deputados, Gabriel Besteiros, que soubera, pelo tenente Augusto, do triste fim d'Angelina, encontrando no corredor o ministro da marinha, perguntou-lhe:

-- E aquella rapariga que trouxeste de Braga?

-- Foi para a terra -- respondeu Sallustio com desprendimento, despedindo-se.

-- Sim, p'ra terra fria -- concluiu Besteiros com amarga ironia, censurando assim o amigo, que nos ultimos tempos se tornara orgulhoso e menos convivente para com elle.


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TextGrid Repository (2023). Portuguese ELTeC Novel Corpus (ELTeC-por). O Salústio Nogueira: Edição para o ELTeC. O Salústio Nogueira: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001D-4503-0