Editores -- MATTOS MOREIRA & C.a

SERÕES NO CAMPO

POR

MARIA AMÁLIA VAZ DE CARVALHO

LISBOA

Livraria Editora de Mattos Moreira & C.a

68 -- Praça de D. Pedro -- 68

1877

Allice

(A Heloise de Almeida e Albuquerque)

(Ephemero penhor de imorredouro affecto)

I

Jorge de Athaide era feio, feialdade transparente atravez da qual se divisava uma belleza que a todos sobreleva, a belleza da alma.

Chegara ao meio da vida sem ter ainda tempo de sondar o espirito e o coração. Pertencia á classe dos obscuros martyres do trabalho, existências sem poesia, sem apparato e sem elementos dramáticos, humildes mineiros que vivem nas trevas, desconhecendo a todos e de todos desconhecidos.

Não há mais despótico senhor do que o trabalho ; os seus servos pertencem-lhe em corpo e alma, não lhes permitte nem as abstracções do espírito, nem os devaneios da phantazia, nem os doces gosos do coração. Caminham sempre, agrilhoados á cega potência que os arrasta atraz de si. Para onde? Nem elles sabem, nem ella próprio o sabe.

Permitte-lhes que vivam, e em paga de toda a vitalidade, dé todo o vigor por elles dispendido, atira-lhes com um bocado de pão negro ao cárcere sombrio e solitário em que vegetam.

Ás vezes ha n'estas pobres creaturas desconhecidas, thesouros de bondade ; todos o ignoram, e ellas mesmas mais do que ninguém.

As faculdades com que Deus as dotou, fazem nullas ou esquecidas; nunca houve tempo de serem postas em acção.

Até aos trinta e cinco annos a vida de Jorge de Âthayde tinha passado d'este modo, ou para melhor dizer, a vida passara ao lado d'elle, e elle não vivera.

Percebia vagamente que havia familias felizes e invejáveis, ninhos tépidos onde viviam entre beijos as louras creanças que acertava ás vezes de encontrar. A infância d'elle não pertencera ao mesmo género.

O quadro de que se recordava muito ao de leve, era uma casa desconfortada e núa, dois entes que se não entendiam ; mútuas accusações, mortaes desconfianças e tempestades quasi continuas.

Fora ao relampejar sinistro d'essas tempestades domésticas, a que elle assistia esmagado, ou o que é talvez peor, esquecido de todo, que o pobre mocinho entrevira no passado de sua mãe uma culpa que as mulheres não redimem nem com as lagrimas do corpo, nem com os lancinantes remorsos da alma.

Soubera elle que um homem havia n'este mundo feliz, considerado e rico, que lhe pertencia pelos laços mais estreitos.

Jorge tinha um irmão. Seu pae não ignorava, nem podéra perdoar este facto, com o qual havia transigido mais cedo na covarde cegueira da sua paixão juvenil.

Era esta a chaga que lentamente corroía os dois corações que Deus lhe tinha enviado como amparo.

Um dia, quando Jorge se achou só, julgou-se perverso, porque foi uma sensação de allivio e como de livramento que elle experimentou diante da sua miserável orphandade. Os bons corações lamentavam-o compadecido e Jorge chorava, não de saudade, mas de pena de a não poder sentir. O que para todos seria o máximo infortúnio, era para elle a saída de apertado cárcere.

Se a pobre creança não tivesse de ir pedir ao trabalho de todos os instantes o seu magro alimento, se lhe fosse dado perder tempo em meditações, como lhe seria doloroso encarar o abysmo, que logo ao despontar da adolescência se cavara entre o seu coração e o coração dos outros homens. O que d'ahi ávante tinha de ser-lhe algoz, foi-lhe n'aquella hora tão triste, auxilio e redempção.

O trabalho chamou-o, e Jorge escutou com apaixonado enlevo aquélla voz que no seu abandono lhe fallava ainda de venturas.

Essas venturas não as conheceu nunca o laborioso rapaz.

Ao principio teve as suas tentações de Tântalo, depois veia a esquecer-se de que n'este mundo existia outra cousa que não fosse aquelle agro labutar, e a parca retribuição que lh'o recompensava. Nas luctas da miséria, nas humilhações da dependência, nas vagas irritações indefinidas do isolamento, depurara-se-lhe o instincto da própria dignidade, dignidade muito íntima, que è como que o pudor da consciência e a resguarda de todas as manchas.

Sem ter meditado muito a fundo no que era a justiça, saira-lhe justo e bom o simples e honesto coração.

Não havia talvez grande mérito n'estas qualidades espontâneas, comtudo significavam ellas a elevada tempera do caracter de Jorge. Não conhecia a inveja; sereno e triste caminhava na casta ignorância dos desherdados.

A vida que elle escolheu, era de si árida e sombria. Vegetava enclausurado n'um estreito escriptorio humilde e feio, alinhando parcéllas, compulsando registos, escripturando com a sua letra geométrica os grandes livros mysteriosos do Deve e Haver.

Se algum sonho podesse aninhar-se-lhe no coração, fugiria de certo, creio eu, diante da pavorosa legião de cifras de que se rodeava Jorge de Athayde.

Elle tinha todas as ignorâncias e todas as credulidades. Boa alma, honesta e infantil, no corpo vulgar d'um pobre caixeiro.

Entre as recordações pueris que o enchiam de prazer, lembrava-se, por exemplo, de um passeio que dera no campo, e que era de certo o primeiro, de tal modo o tinham trazido alheio a todos os divertimentos as pesadas obrigações da sua vida commercial.

Os companheiros, bons farçolas de vinte annos, fina rapaziada que cultiva o Calembourg, as alegres partidas campestres, os pitéus succulentos comidos sobre a relva, entre o animado tiroteio dos ditos galantes e das phrases picarescas, espalhavam-se em perfeita debandada pelas hortas e pomares, dizendo finezas ás labregas que passavam, apostrophando as nymphas de pedra que vertiam água das suas urnas toscas e escalavradas, piscando o olho ás lavadeiras, na plena liberdade de um dia feriado, e d'um feriado no campo.

Jorge ia recolhido, calado, scismando, sem saber que scismava, deitando de soslaio um olhar tímido e contente para os ninhos suspensos na ramaria trémula, seguindo com a vista o passo magestoso e lento dos grandes bois intelligentes e melancólicos, deixando subir a alma para Deus, na pequenina alma das flores a que os homens chamam perfume, sentindo-se vagamente peneirado da suave harmonia das cousas; feliz d'uma felicidade indefinível, que talvez podesse exprimir-se com lagrimas, se Jorge percebesse que n'aquelle instante lhe faria bem chorar.

Quando voltou e se achou sósinho no seu pequeno e pobre quarto, vieram-lhe uns assomos de desconforto que elle nunca tinha sentido, depois adormeceu como era seu costume, e no outro dia ergueu-se com a mansidão entristecida, d'aquelles fortes animaes que na véspera tinha admirado.

Prometteu a si mesmo voltar mais vezes ao campo, voltar sósinbo, beber leite e comer fructa n'algum casal serrano, deitar-se a dormir na herva fresca e macia que cheira tão bem, observar de perto aquellas scenas radiosas que mal havia entrevisto. O trabalho, porém, absorvia-o demais, e os amigos que se tinham enfastiado da mudez distrahida do pobre moço, não quizeram mais tão silencioso conviva para as suas patuscadas.

Quantas vezes, diante d'uma creança, Jorge de Athayde não estremeceu enleiado em mysterioso enternecimento ! Sem perceber porque, lembrava-se então que vivia muito só, e tinha pena de ser pobre, de não poder conhecer as alegrias paternas, os doces confortos do lar, os carinhos desvellados de uma casta mulher que o amasse muito.

Tudo isto, porém, não passava de ephemeras e fugitivas impressões. Absorviam-lhe os dias e as noites os seus livros nitidamente escripturados, os seus cálculos commerciaes, as operações bancarias da casa a que pertencia, e á qual se identificara o seu destino, porque ali passara lentamente esses annos de laborioso lidar por todas as gradações, desde humilde servente até principal caixeiro.

A primeira vez que Jorge se sentiu deslumbrado foi aos trinta e cinco annos, e n'uma crise bem memorável da sua vida.

O banqueiro de quem elle era empregado, espécie de príncipe das finanças, orgulhoso, insolente, humanisando-se raras vezes, e tratando a fortuna com a desdenhosa altivez de quem muito moço se acostumou aos seus favores, mandou-o chamar um dia ao seu palácio para conferência secreta.

Jorge ficou espantado.

Não sabia elle que a sua rara honestidade o tinha feito conhecer e apreciar, e surprehendia-o que alguém tivesse tanta confiança em dotes que elle nunca reconhecera em si.

Subiu pelas largas escadarias de mármore, cheias de arbustos raros, de estátuas e de altos espelhos, atravessou, sob o olhar insolente dos criados, os grandes salões luxuosos, e penetrou n'um gabinete mobilado com severa opulência, onde o homem que elle mais temia e admirava, o estava esperando consternado.

Quando elle saiu, ao cabo de seis horas, do elegante quarto do seu patrão, sabia duas cousas que nunca atè ali havia comprehendido. Primeiro, que havia alguém que tinha confiança na sua intelligência, e a colocava a par da sua rara probidade; segundo, que a riqueza pode também ser uma cruz, e que há vertigens assustadoras nas grandes eminências.

O negociante via pendente uma quebra monumental, e chamara Jorge de Athayde para combinarem ambos o que podia oppôr-se á tremenda crise que se preparava determinada por desastres financeiros que não vem para o caso historiar aqui.

Jorge saía pelas mesmas salas por onde entrara, mas aquelle luxo principesco fez-lhe profunda tristeza.

Parecia ao ingénuo caixeiro, pouco affeito a observar os bastidores da triste comedia humana, que a miséria se aninhava, fazendo-lhe grotescas visagens, nas pregas de velludo dos altos reposteiros, nos ângulos dos grandes fogões marmóreos, no bojo das talhas chinezas, no pedestal das estatuas florentinas.

De repente, ficou-se absorto com um olhar comicamente espantado, n'uma postura de enlevo e quasi de susto.

É que sentada ao pè de riquíssima harpa, n'uma das salas que elle ia atravessando, estava uma mulher loura, delicada, franzina, cujas mãos pequenas e nervosas, arrancavam ao harmonioso instrumento uns vagos accordes melancólicos.

Era a filha do negociante.

Alice teria 18 annos. Era a graça moderna, um producto exótico da extrema civilisação e do extremo luxo. Formas suavemente modeladas, que tinham em flexibilidade nervosa o que lhes faltava em robustez e perfeição plástica, pès e mãos em miniatura, um rosto intelligente, altivo, revendo finos desdéns, uns grandes olhos banhados em fluido magnético, felinos, dilatados, d'uma côr indecisa, d'uma profundeza mysteriosa, d'uma expressão fluctuante, um cólo ondulante e alvissimo, uns pequenos lábios carnudos e desdenhosos.

Não era a belleza das virgens ossiânicas, não era a expressão melancólica das desgrenhadas Elviras do romantismo; era uma mulher elegante, formosa, riquissima, que tem visto a seus pès a homenagem interesseira de todos os homens, e a quem essa tão amarga experiência precoce roubou a ignorância singela e virginal, dando-lhe em troca os altivos donaires e as fascinações deslumbrantes.

Alice levantou para Jorge o seu olhar curioso e investigador, que ao dar com elle se tornou frio e metálico, comprimentou-o ligeiramente em resposta á profunda inclinação com que elle a saudou, e continuou a tocar.

Jorge passou para diante e saiu.

Tudo isto foi rápido, mas um raio também é rápido e fulmina!

Durante mezes Athayde desenvolveu, inspirado por não sei que tenacidade férrea, todos os recursos d'uma intelligencia pratica, aguçada em longos annos de trabalho, d'uma abnegação profunda que elle próprio desconhecia, d'uma actividade que chegava a assombrar o velho banqueiro prostrado pela desgraça.

Ao cabo d'esse tempo deu-se por vencido. Todos os seus esforços se annullavam diante de irremediável catastrophe.

De tudo aquillo que fora o assombro d'um paiz, sobrevivia apenas um velho meio idiota e uma creança desherdada e só.

II

Começa aqui o segundo acto da vida de Jorge de Athayde.

Pela primeira vez na vida o desgosto o prostrava e adoecia ; possuía elle porém aquella mansidão teimosa que não cede nem quebra diante de nenhuma força.

Venceu a doença e o soffrimento com a energia humilde com que vencera a miséria. Despediu-se, com os olhos rasos d'agua, do velho escríptorio, onde passara a sua mocidade sem alegrias, e partia para o Brazil onde um negociante respeitável lhe offerecia garantias de próspero futuro. Passaram tempos. Ia elle nos quarenta annos, e todos o julgariam mais velho. Tinha os cabellos embranquecidos, a pelle rugosa, e nos olhos apagados, uma tristeza profunda e doce, saudade e nostalgia, que, aos olhos vulgares, se afigurava indiferença apathica, mas em que os observadores profundos leriam talvez um poema de melancolias occultas.

Não tinha casado, embora áquelle tempo lh'o permittissem já os seus modestos haveres; vivia só com uma velha criada, e parecia affeiçoar-se cada vez com mais afinco ás suas áridas obrigações.

Um dia foi elle convidado por um negociante portuguez, estabelecido no Rio, para uma visita de alguns dias, á fazenda que este possuia umas léguas distante da cidade. Jorge sentia-se cançado ; acceitou gostosamente aquella tão rara diversão da sua laboriosa existência.

Esperava-o n'aquella casa uma surpreza profunda.

Duas horas depois de ali se achar, entrou na sala uma menina de 12 annos, filha dos donos da casa, conduzindo pela mão Alice de Mendonça, a fugitiva apparição radiante que elle vira uma vez, e que não soubera esquecer mais.

Era a mesma mulher, e no entanto, que differenças elle não leu na sua physionomia tão altiva e tão linda!

Alice era mestra da menina mais velha do seu amigo; era n'essa posição humilde e dependente, que vinha encontrar, ao fim de tantos annos, a pequenina, a graciosa princeza que elle admirara de passagem, entre o luxo requintado da sua opulência, no fofo ninho que lhe tinha preparado o mais cego, o mais imprevidente, mas o mais forte dos amores.

Alice, ao olhar para elle, reconheceu-o immediamente, ou fosse porque já lhe houvessem dito o seu nome, ou fosse porque também ella não tivesse esquecido a pessoa de Jorge, entrevista nas vésperas da horrenda crise que transfigurara a existência da pobre menina. Trocaram algumas palavras affectuosas, e durante os dias que Jorge se conservou na fazenda, Alice teve sempre para com elle as pequeninas attenções que deviam encher de orgulho o pobre trabalhador humilde, que as não conhecera nunca.

Era assim que ella lhe pagava o olhar deslumbrado e devoto, com que Jorge lhe seguia os pequenos movimentos de ave e de borboleta.

Tinha vinte e três annos Alice, e ninguém lhe daria dezoito. A sua voz era suave e argentina, o seu andar era cadenciado e rythmico, o seu rir soava nos ouvidos como o desfiar d'um rosário d'ouro em urna crystalina. Era triste, mas sem revoltas de mau gosto contra a sorte, o caracter primitivo transparecia-lhe ás vezes n'um relâmpago de malicia que lhe coriscava nos olhos, n'um finissimo sorriso rapidamente apagado n'uma observação cheia de sal com que ella polvilhava a sua sempre original conversação.

Jorge de Athayde deixava que os dias passassem, e pela primeira vez na sua vida, esquecia-se de trabalhar. Poucas vezes estava perto de Alice, mas olhava para ella de longe, ou vinha sentar-se a lêr no lado exterior da janella que da sala de estudo abria sobre o terraço, e onde podia escutar a voz musical da juvenil perceptora.

A esplêndida natureza tropical, filtrava-lhe nas veias os seus fluidos violentos e como que remoçava aquelle coração envelhecido e triste. Acordavam-lho dentro d'alma harmonias desconhecidas; percebia, emfim, que nenhuma differença o separava dos outros homens, que podia, como elles, crêr e amar. Foi uma primavera tardia, rápida e nunca mais esquecida.

Um dia, ao almoço, recebeu Jorge uma carta inesperada que o chamava á cidade.

Ora é preciso que se saiba, que o tio brazileiro, l'oncle d'amerique, esse milagroso desconhecido que intervém em todos os melodramas de má morte, para os fechar com chave d'ouro, não é de todo um mytho, como pouco a pouco nos acostumámos a crêr. Existe, e a prova é que Jorge de Athayde recebeu, quando menos o esperava, a afirmação da sua existência e a participação da sua morte.

O trabalho deixara sem recompensa o seu obscuro servo, mas o acaso encarregava-se d'esta vez de corrigir o engano.

Jorge de Athayde estava rico.

Ao princípio foi uma alegria sem mistura, um abrir-se de par em par as portas eburneas da phantasia, um voejar festivo de alma que vinga libertar-se das cadeias mesquinhas da miséria. Depois veiu a reflexão, e com a reflexão não sei que mysteriosa lucta em que elle andou dias e dias, ora vencedor ora vencido, inquieto sempre. Os companheiros surprehendiam-o ás vezes parado, absorto em secretos cálculos, com os cotovellos fincados na mesa, o rosto occulto nas mãos e grossas bagas de suor a inundarem-Ihe a testa. Decididamente, o pobre do homem elaborava um d'estes planos que decidem de uma vida inteira.

Um dia levantouse abalado por extraordinária resolução; vestiu-se cuidadosamente, arranjou com desusada symetria o laço da sua gravata preta, penteou-se, barbeou-se, escovou-se com esmero extranho, tomou todas as precauções d'um Lovelace, em via de levar a cabo empreza de vulto.

Quando acabou a sua laboriosa toilette, olhou para o espelho, e reflectiu-se-lhe no rosto um desespero profundo.

Estava feio, mas francamente feio, mas feio a não poder contar com a indulgência do mais compassivo dos olhares. O fato de gala dava-lhe um aspecto domingueiro, que era a própria negação da elegância, o ar espavorido e tímido era como que o mais visivel contraste que podia imaginar-se do verdadeiro gentleman. Duas grandes lágrimas correram lentamente pelas suas faces macilentas, e creio que os primeiros relâmpagos de cólera se accenderam subitamamente no seu olhar sombrio.

Cruzou no peito os braços, e ficou como que vacillante sobre o que devia fazer. Durou pouco a hesitação, diffundiu-se-lhe pelo olhar uma expressão resignada e mansa, e partiu para a fazenda onde Alice habitava.

Por um acaso feliz, era ella a única pessoa da família que n'aquelle dia estava em casa. Não tendo o costume de receber visitas sósínha, a sua primeira idéa foi recusar-se a apparecer ao sr. Jorge de Athayde. Quando o criado trouxe esta resposta, o pobre homem, que se munira na última hora d'uma resolução invulnerável, entregou-lhe um cartão, onde por baixo do seu nome se líam estas palavras lacónicas e mysteriosas : Para negócio urgente.

Não tardou muito que a porta da sala se não abrisse.

Alice entrou correndo. Tinha nos olhos a alegria infantil de quem espera uma novidade que a distraia, e lhe altere a monotonia pesada da existêecia.

Haviam-a interrompido no principio do penteado. Isto, porém, não a prendera. Jorge de Athayde era uma tão insignificante creatura aos olhos d'ella! Um pouco mais do que o saguy travesso que lhe pousava no hombro, um pouco menos do que um homem.

Sobre o penteador de cambraia, bordado pelas suas mãos de feiticeira, caía-lhe em profusão desordenada a mata espessa dos loiros cabellos.

Aquellas espiraes fulvas eléctricas, luzentes como cobras, envolviam-a, beijavam-a, pareciam morder-lhe, enredando-se nos primorosos contornos de seu corpo lânguido e franzino.

Não era bella assim, era muito peor.

Tinha a graça perigosa que de certas mulheres se exhala, como dizem que da mancenilha asiática se exhalam fluidos mortaes; os seus grandes olhos indefiníveis indicaram mais do que nenhuma feição, o segredo d'aquelle carácter. Não o sabia ella, ninguém o saberia nunca ao certo, de tal modo variava a muda linguagem d'esses olhos, ora scintillando phosphorecencías magnéticas, ora afogados na sombra, ora pasmadps, risonhos innocentes, como os olhos de uma creança de leite.

Jorge, ao vêl-a surgir assim illuminada festiva, temível de encanto e de mocidade, teve ímpetos de recuar e fugir. O que elle sentiu não foi enlevo, foi medo, não foi orgulho, foi desesperação muda e sombria.

Não era já tempo de recuar. Alice parou diante d'elle, e sem perder tempo a comprimental-o, disse-lhe toda offegante:

-- Que negócio é que vem tratar commigo? Diga depressa, não me faça morrer de curiosidade.

Isto foi dito n'um tom graciosamente despótico, impaciente quasi. Jorge de Athayde despertara-lhe a idéa d'uma novidade, e agora havia de pôr-lhe para ali, quer quizesse quer não, uma grande notícia, bem espantosa, bem inesperada, que correspondesse ao sobresalto em que lhe batia, sob as pregas do longo penteador, o seu pequenino coração de mulher curiosa.

Athayde não respondeu logo. Olhava para ella, mais curioso e mais sobresaltado ainda.

Alice esperava uma notícia, elle interrogava uma esphinge.

Diante d'aquelle primor de graça, de frescura travessa, de feminil encanto, sentia-se vagamente apavorado, e comprehendia a loucura da sua ambição.

-- Traz-me alguma noticia má ? perguntou ella pondo fim áquelle silencio angustiado, e cruzou as mãos com instinctivo susto, em postura supplícanté diante da pállida figura consternada, que tinha diante de si.

— Não, não lhe trazia noticia má, sr.a D. Alice, para lhe dizer a verdade toda, não lhe trazia noticia nenhuma.

A voz saía-lhe com esforço da garganta secca.

— O que vinha dizer-lhe, era uma tolice. Tenho vivido tão alheio a certa ordem de idéas ! Em mim existem ás vezes inexperiências infantis. Agora entendi tudo. Porque, não sei. O caso é que entendi. Perdôe-me têl-a interrompido no seu penteado. Bem vê ! Sou um velho e tenho o juízo d'uma creança.

Emquanto o ouvia, a expressão d'ella passava por gradações diversas. Primeiro no seu lúcido olhar humedecido, leu-se a decepção, depois o espanto, por fim uma curiosidade irresistível onde havia ligeiros toques de coquetterie.

Não lhe adivinhava ainda o espírito, mas adivinhava-lhe já o instincto feminil.

Sorriu-se.

Soberbo sorrir que dizia : -— Pobre tolo ! pensas que hás de ficar calado se eu quizer que falles !

Approximou-se um pouco mais de Jorge de Athayde, sacudiu com um gesto felino os cabellos que lhe affrontavam o rosto e pondo a mão elástica e cheia de fluido na mão do pobre caixeiro, murmurou:

— Diga, diga sempre o que vinha dizer-me ainda agora. Olhe que ás vezes são bem infundados os sustos que a gente tem ! Pois eu metto-lhe medo?

Dizendo isto levantou os olhos, não já entristecidos na apprehensão de algum desgosto, mas claros, scintillantes, um pouco maldosos e com a consciência de que o estavam sendo.

Pobre alma virgem e humilde! Aquelle olhar transfigurou-o. Ninguém lhe havia dito ainda que as mulheres mentem, e que não há perigo maior do que excitar-Ihes uma curiosidade, um desejo, um capricho qualquer. Para o alcançar não há barreira que ás assuste, abysmo que lhes tolha o passo, carícia ou punhal que por traiçoeiro ellas recusem.

Jorge ficou ainda um instante recolhido em concentração profunda. Depois o rosto reassumiu-lhe a fria insensibilidade que lhe era habitual, e a voz, uma voz trémula embora mesmo hesitante pronunciou baixo estas palavras:

— Minha senhora, sou um homem honrado, a minha vida tem sido uma lucta obscura, há dias vi-me inesperadamente rico. Venho offerecer-lhe o meu nome, a minha fortuna, e um affecto de pae, de irmão e de carinhoso amigo.

Quem sabe se Alice esperava ou não aquellas palavras do antigo agente de seu pae?...

Nãa o sei eu nem élla mesmo o sabia.

A verdade é que, ao ouvir-lh'as, empallideceu muito e deixou-se cair n'uma poltrona que estava por detraz d'ella.

Pelo espírito da loura creatura passou n'aquelle momento um mundo de vizões. Sem ella poder explicar porque, viu seu pae e as grandes salas do seu palácio e o quarto todo branco, tão virginal, tão encantador, onde ella dormira os seus primeiros annos de adolescente ; viu o seu precioso piano, a harpa onde gostava de passar os brancos dedos nervosos ; viu os bailes de que era rainha, rainha idolatrada e caprichosa vestida de rendas diaphanas como uma ondina ou como uma fada das lendas, depois a destacar-se do fundo d'aquelle quadro phantastico uma esbelta figura de homem em viço de annos, moreno marinheiro acostumado ás grandes tempestades, á lucta dos elementos bravios, ás caçadas dos juncaes da índia, a todas as irritantes commoçôes do perigo, a todos os deleites do triumpho, a todos os violentos amores d'aquelles climas de fogo, onde o amor é a vida e a morte.

Da allucinação da miragem acordou ella por fim para a realidade.

Jorge de Athayde em pé, com os olhos tristes e sem vida, com o desgeitoso corpo curvado em respeitosa submissão, ou talvez em dolorosa scisma esperava a sua sentença n'aquella sala onde tudo lhe recordava a ella a sua posição humilhante e a tarefa laboriosa de todas as suas horas.

Alice inclinou-se para diante como flor que verga na haste e rompeu em convulsivo choro.

Jorge esqueceu tudo n'aquelle momento. A timidez natural diluiu-se-lhe n'um mar de commoçôes desconhecidas.

Inclinou-se sobre a chorosa creança, agarrou-lhe com ímpeto febril nas mãos pequeninas, e balbuciou desordenadamente :

— Ó Alice, Alice, perdoe-me pelo amor de Deus! Não chore ! Eu bem lhe dizia que era uma loucura. Para que usou assim do seu poder, do seu poder fatal que eu nunca suspeitei, e que se revelou como o raio, fulminando-me! Alice, meu anjo, não chore ! Eu, bem vê, não passo d'um pobre escravo seu. Todos estes dias não tenho pensado senão em fazel-a feliz ! Que culpa tenho eu de ser estúpido ? Não atinei com outro modo... há coisas que a gente não percebe bem logo á primeira vista. Sou desastrado, bem vejo, mas também tenho vivido sempre tão só ! Olhe, é exquisito mas é verdade, eu nunca tive mãe! As mães é que nos ensinam certas coisas. Para que me serve a mim uma riquesa que lhe não posso dar? Diga-me se ama alguém, confie-me os seu segredos infantis. Eu sei que ha homens cegos que só teem vista para o dinheiro. Se escolheu um d'esses e se o quer mesmo assim, será d'elle, eu lh'o juro. Alice, Alice, bem vè que me está martyrisando. De joelhos lhe peço que não chore.

Ella levantou vagarosamente a cabecinha airosa como um pássaro no ramo, que se debruça e que espreita.

Ouvia-o, olhava a transfiguração moral que o desespero operava n'aquella figura insignificante e pouco assignalada, escutava-lhe a voz entrecortada e rouca estremecendo em frémitos de delírio e pensava talvez que não há pedra por mais tosca que não possa avelludar-se de musgo, nem coração por mais humilde que em certas horas não irradie claridades bemditas.

Um raio de sol, um sorriso de mulher e eis operada a transformação mágica.

Jorge chorava com as mãos d'ella nas suas e uma angústia sem nome no olhar.

Não sei o que passou no espírito de Alice, não sei.

Havia cinco annos que nenhuma palavra doce a consolava. Aqqella abnegação humilde e santíssima commoveu-a. Sorriu-se entre lágrimas e perguntou baixinho com as modulações de ave queixosa que faziam da sua voz um feitiço irresistível.

— Pois imagina que posso fazel-o feliz?

III

D'ali a dois mezes fallava-se em Lisboa do casamento do rico capitalista Jorge de Athayde com a orphã de quem muitos lembravam ainda a radiante formosura. Jorge voltara à Europa com a noiva gentilíssima e mobilava um palacete com todos os primores dignos d'ella.

Na escolha dos móveis havia ínexperiências de noviço, mas que amoroso instincto os não compensava !

Via-se um homem doido de amor, nadando em olympica ventura, atirando a todos os ventos o seu oiro e o seu coração.

Passaram três annos.

Jorge parecia feliz d'esta felicidade monótona, tranquilla e plácida com que as mulheres se não contentam, sem saberem que no fim de contas é a única que n'este mundo tem elementos de duração.

Alice, cada vez mais bella, mais attrahente e mais caprichosa, passava a vida nos encantamentos do luxo em que fora creada, e com o qual sonhara nos cinco annos do seu desterro.

O marido amava-a com um d'estes amores que fazem do homem um escravo ou um Deus, conforme a mulher que os inspira e conforme o coração que os sente.

Ella estimava-o sem procurar entendel-o; elle adorava-a sabendo-lhe de cór os defeitos e perdoando-lhos todos. Bastava-lhe vel-a borboletear risonha e leviana por sobre todas as flores para que ineffáveis claridades o illuminassem lá por dentro.

Confiava a sua honra da orgulhosa isenção do carácter d'ella. Por esse lado, nem um receio n'aquella alma honesta e cândida que não conhecia nem os abysmos que dão vertigens nem as paixões que allucinam e desvairam.

Quando viu que Alice atirava á rua punhados de ouro com a ignorância de uma creança, ou com a indifferença de uma cortesã, percebeu que não tinha chegado ainda ao porto de descanço, depois da sua tão laboriosa mocidade, e atirou-se ao trabalho com a mesma ancia e a mesma convicção.

Alice encolhia os hombros rindo-se ; e suspeito que lá dentro do coração o tinha por avarento.

Um dia que Jorge tomou a si o difícil encargo de a convencer de que era grave imprudência arriscar o futuro, não se poupando um capricho só, ouviu-o ella ao princípio muito attenta com os olhos mergulhados nos olhos d'elle, o que desconcertava um pouco o pobre do pregador.

Depois, como o sermão ameaçava prolongar-se, e Jorge, abrasado em santa convicção, imaginava communical-a á sua espirituosa ouvinte, saltou-lhe ella para os joelhos com a ligeiresa de um saguy, ennovellou-se toda no collo do marido e adormeceu-lhe no hombro.

Athayde, ao vêr o effeito da sua prédica, não poude deixar de sorrir-se.

Alice estava tão linda com os avelludados cílios a sombrearem a alvura das suas faces de camélia, com os brancos dentinhos a entreverem-se atravez do malicioso sorriso em que o somno a surprehendera, com a loira cabeça infantil respirando confiança, innocência e não sei que feiticeira indocilidade a augmentar-lhe a irritante formosura, que o homem que não a matasse por tamanha insolência devia por força amal-a por tamanho encanto !

O pobre Jorge fez mais ; comprehendeu que era desigual a partida e que mais valia para a sua dignidade e para a ventura d'ella, confessar-se vencido antes da lucta.

Alice gostava talvez do marido, mas preferia-lhe com certesa os seus caprichos despóticos. A sua vida era um sonho illuminado e feliz. Precisava das flores, dos perfumes que empallidecem, das sedas que se quebram em ondulações luzentes, dos velludos macios e das homenagens calorosas, de todos os excitamentos da vaidade, de todas as commoções nervosas do triumpho.

Era na atmosphera das salas que ella desenvolvia todo o luxuoso esplendor da sua naturesa.

Perto d'ella respirava-se a graça, como o perfume se respira ao pé da flor.

Tinha a réplica prompta e feliz, o paradoxo scintillante a ironia afiada, e no meio de tudo aquillo não sei que altivez pensativa que attraía como um mysterio.

Ás vezes, nas suas noites triumphantes, a victoria subia-lhe ao cérebro como uma embriaguez, os applausos exaltavam-a, as admirações que lhe punham aos pés excitavam n'ella não sei que enthusiasmo hystérico. O perigo supremo estava n'estas horas. Se Alice achasse alguém que soubesse tirar partido d'ellas, podia perder-se com a fatal inconsciência com que uma creança se perde.

Entre os homens que a rodeavam e lhe compunham corte assídua e brilhante notava-se um preferido entre todos, mas preferido com ingénua franquesa.

Era um amigo da infância, e fora talvez o sonho único de Alice em passados annos. Ella era porém d'estas almas transparentes como um lago, e como elle fluctuantes, que reflectem todas as imagens e não guardam nenhuma. Eduardo de C... voltara de uma longa viagem pelo Oriente ; achando Alice casada e rica, rainha de um pequeno círculo eleito pelo seu gosto delicado, quasi independente, de tal modo a envolvia a confiança de seu marido, sentiu reaccender-lhe n'alma o antigo capricho esquecido nas aventurosas viagens, e nas peripécias arriscadas da sua vida.

Eduardo tinha do romântico D. Juan, que todas as mulheres mais ou menos sonham, a formosura fascinadora e a larga consciência. No mais o perfeito homem do mundo. Frio, correcto, irónico sem affectações byronnianas, altivo com os homens, adubando com uma leve impertinência a sua cortezia para com as mulheres. Tinha por systema não àcreditar uma só palavra do que ellas diziam.

Tornava-o isto simplesmente encantador.

Parece um contrasenso e não é. Não há conquistador feliz na completa accepção doestas palavras, que seja submisso e meigo diante das suas voluntárias victimas.

O homem forte, singelo e bom, o que tem com a fraquesa aquella doce indulgência dos grandes corações, raras vezes é comprehendido pelas mesmas a quem vota quasi sempre um respeitoso culto.

É esta uma das aberrações máximas do sexo feminino.

Quem não conhece a seductora insolência com que Richelieu e Lanzun tratavam as almiscaradas marquezas de Luiz XV? Quem não sabe que os escriptores mais queridos das mulheres são justamente aquelles que mais rigorosamente as julgam e condemnam ? Vejam-se os pungentes sarcasmos de Rousseau, as altivas ironias de Byron, os espirituosos desdéns de Musset.

Essa revolta do forte contra o fraco irrita-as e lisongeia-as. N'ella vêem antes de tudo os estigmas do seu fatal poder. São os gritos doloridos do escravo, sob o látego impiedoso, que tão violentamente acariciavam o coração cruel da romana antiga.

Eduardo tinha em si essa difícil seducção.

Quem o via n'um baile á luz crua do gaz, no ambiente cálido das flores, emquanto os leques palpitam como grandes borboletas pintalgadas, e os ditos alegres se cruzam faiscantes, approximar-se de uma mulher formosa, dobrar-se todo sobre umas espáduas opalinas, respirar a pleno peito os capitosos perfumes de uns cabellos negros ou loiros e murmurar baixinho umas palavras mysteriosas, julgal-o-hia occcupado em tecer um madrigal côr de rosa.

Enganava-se.

Quando elle fallava ao ouvido das mulheres era para lhes dizer o que a respeito d'ellas pensava com a verve mais inimitável, com o espírito mais paradoxal, com a brutalidade mais elegante que pôde desenvolver um homem de fina intelligência e alta educação. Ellas ouviam-lhe as primeiras palavras rindo, e segundo resa a chronica, ouviam-lhe as últimas chorando.

Havia ainda n'elle outro encanto que também nos captiva, o das longas viagens phantasiosas pelos paizes que nós tanta vez temos visto em sonbos.

Eduardo caçara o elephante em Ceylão, o tigre nas florestas do Ganges, o urso nas frias solidões da Noruega.

Deitára-se á sombra dos tamarindos e dos bambus floridos sobre uma esteira mais branda que os finos tecidos de Cachemire, avistando ao longe n'um fundo de montanhas azues, a ondulação infinita dos arrozaes, os jardins sombreados de aloés e bananeiras, e aqui e ali uma torre de loiça pintada, a que a aragem molle e saturada do aroma dos jasmineiros sacudia ao passar as campainhas multicores.

Devassara profanamente os segredos extravagantes da arte chineza com as suas pinturas disformes, os seus grandes pássaros de oiro e as suas árvores desconhecidas.

Tivera o espanto e o riso diante de todos aquelles sonhos doentios materialisados em porcelana, diante de todas aquellas mulheres de pès invisiveis e pequeninos olhos vesgos, envoltas em tecidos verdes, escarlates ou cor de canário, onde uma phantasia impossivel semeara excêntricas flores enormes, pavões estreitados, luas cheias de rostos a um tempo astuciosos e bonacheirões.

Colhera o lodão e a nimpheia á beira dos grandes lagos mysteriosos, onde as árvores seculares debruçam a fronte engrinaldada pela exhuberante e luxuosa vegetação que as entrelaça e prende n'uma cadeia immensa de lianas e flores.

Subira ao píncaro do Hymalaia e da Jung frau; vira passar junto ás columnas informes dos templos Hindostanicos, ligeira e tímida sob o seu guarda sol de folhas de palmeira, a doce indiana bronzeada aos raios d'aquelle sol violento e abrasador, e admirara aqui e ali entre as feudaes ruínas germânicas, illuminando de casta poesia a tranquilla paisagem, um bando de loiras allemãs scismadoras lembrando ao espírito do artista as lendárias Walkirias.

Um dia atravessava perseguido pelos lobos n'um traineau tirado por cavallos pretos pequenos e vigorosos, uma immensa planície coberta de gelo, n'outro dia ceava no café Inglez n'um grupo de gommeux e de biches, entre a alegre explosão das garrafas de champanhe, as scintillações prismáticas dos chrystaes facetados, e os estallos ruidosos d'esse fogo de artificio brilhante, rápido, iriado de cores que em Paris tem o nome de conversação..

Fumara ópio em Constantinopla vendo nas vagas sensações do sonho substituirem-se os minaretes da radiosa cidade, por uns áureos templos phantasticos, rendilhados de primores marmóreos, ornados de brancas estátuas pensativas a banharem-se ao longe nas brandas claridades do azul indefinido.

Na Itália, n'aquella terra de luz que um Deus fecunda eternamente, bebera elle em cinzelada taça os néctares da Olympica embriaguez; atravessara o deserto no dorso recurvado dos dromedários, embalára-se nas ondas lânguidas do Adriático, e vira trovejar a procella com todos os seus horrores nas embravecidas solidões do Oceano.

O Oriente revelára-selhe pelas suas duas faces, a graciosa e a grotesca; a floresta virgem e o kiosque, as grutas de Elora, de collossaes esculpturas graniticas e o mandarim de porcelana barrigudo, sonso e anão.

Como vêem, para Eduardo já o mundo physico não tinha surprezas nem o mundo moral commoções ignoradas. Conhecia os primitivos prazeres selvagens e os requintes da extrema civilisação.

Entrara nos bazares e nas salas, ouvira em todas as linguas fallar a commovida ternura de mulheres brancas, negras, amarellas e côr de castanha, e d'esta grande e varia sciencia que adquirira, distillára elle a fria impassibilidade desdenhosa que era o seu principal prestigio aos olhos feminis.

Jorge de Athayde, que tinha pelos amigos de sua mulher uma certa indifferença benévola, commoveu-se agradavelmente á chegada de Eduardo.

Sabia talvez que era antigo amigo, quasi irmão de Alice, havia porventura outro motivo occulto, o caso é que o acolheu com favorável sombra e o deixou penetrar intimamente no interior do seu lar.

Dera-lhe Alice por esse tempo um filho, que vinha completar a sua ventura e perturbar ligeiramente a sua consciência. Jorge d'ali avante tinha de trabalhar com renovada energia para compensar o futuro do filho, do que pela sua talvez peccadora indulgência os gastos excessivos de mãe lhe faziam perder.

O trabalho e os seus dois santíssimos amores de tal modo lhe absorviam o tempo e o sentir, que de mais nada curava e mais nada prestava attenção.

Quando por acaso encontrava Eduardo, illuminava-se-lhe porém o olhar de extranho affecto, e com elle tinha a sua voz os tons carinhosos que até ali se dirigiam só á mulher e ao filho.

Para Alice não trouxe a maternidade nenhuma alteração.

A creança era mais uma jóia do seu cofre, a mais preciosa jóia talvez. Gostava de vel-o vestidinho de branco, todo cheio de rendas e fitas, balbuciando-lhe nos braços as primeiras carícias indecifráveis, amava-lhe a formosura angélica com uns orgulhos de madona.

Não o creava porque fora isso desmanchar a peregrina perfeição das suas formas, não vellava as noites ao pé do seu berço, que as vigílias pizavam-lhe os olhos e desbotavam-lhe as mimosas cores : não tinha com elle os trabalhos que constituem o encanto e o martyrio das mães, porque tudo que era trabalho forçado, tudo que podia tomar o aspecto de um dever repugnava á sua natureza toda espontaneidade e capricho.

Eduardo começara por cortejar Alice como cortejava quasi todas as mulheres, e acabara por desejal-a como não tinha ainda desejado outra.

Este crescer progressivo da paixão, accendera-lh'o no peito, habituado a respirar outros climas de fogo, a frieza natural de Alice, a graça com que ella tinha em si todas as flexibilidades e todas as resistências.

Não havia da sua parte esforço nem estudo. Preferia francamente Eduardo, dizia-lh'o e mostrava-lh'o. Eram para elle os seus risos mais picantes, os seus olhares mais travessos, as graças do seu espírito, os carinhos da sua voz. No fundo d'aquelle abandono havia porém uma tão irritante placidez, que Eduardo, o conquistador emérito, não aventurara ainda a declaração do estylo.

Insinuava-se-lhe lentamente no espírito, empregava com ella as fascinações que tinha em reserva para os casos extraordinários, excitava-lhe a vaidade, irritava-lhe as curiosidades latentes que a mulher ainda a mais honesta tem no intimo, derramava-lhe na loira cabeça innocente todos os filtros da natural formosura, todas as seducções da longa experiência, e n'esta obra lenta e difficil ia consumindo a paciência e os dias.

Os amigos começavam a sorrir-se ironicamente das suas pretenções de D. Juan, e o que é peior, elle mesmo começava a duvidar do seu poder.

Uma noite na sala de Jorge de Athayde fizera Eduardo assídua corte a outra mulher; Alice nem sequer notou a deserção. Toda occupada de si, da sua toilette arrebatadora, do seu deslumbrante espírito, das lânguidas fadigas da valsa, do rumor de admiração que ia deixando atraz de si como um rastro de luz, não houve a minima affectação na sua indifferença nem o mínimo cálculo no seu esquecimento.

Eduardo comprehendeu n'essa noite que seriam baldados todos os seus esforços. Aquella mulher que não amava o dever não saberia nunca amar o vício; natureza alada e caprichosa, vivia no sol como vivem certas aves. Era possível ceder um dia a um momento de surpreza, mas ninguém vingaria prendel-a á fria masmorra tenebrosa onde o remorso agrilhoa as adúlteras.

Eduardo tinha do seu papel todas as qualidades menos a paciência.

Sentindo-se vencido, em vez de se acalmar, irritou-se. D'ali por diante houve no sentir d'elle um mixto de cólera e de desejo, de ódio e de paixão implacável. Mais do que tudo, vertia-lhe sangue a sua vaidade amarrotada nas mãos inconscientes de uma creança.

Perdendo a esperança de ser feliz, não teve a força de acceitar francamente a sua posição em frente de Alice. Quiz ao menos que o mundo julgasse coroados pelo triumpho os seus desejos.

Ao pé d'ella era meigo e alegre sobre tudo. Sabia que o sentimentalismo não era precisamente o fraco da mulher de Athayde. Contava-lhe com um ar sério e correcto as altas aventuras cómicas, os extravagantes episódios da sua vida; distrahia-a, fazia-a rir e ao mesmo tempo communicava-lhe pelo contacto do seu espirito desflorido e sceptico, uma como que lenta depravação moral.

Sem atacar directamente as ideias, mais ou menos definidas, que Alice podesse ter sobre os seus próprios deveres, destruía com o afiado punhal da sua ironia altiva, muitos dos sãos escrúpulos que resguardam a virtude na alma das mulheres como o cálix resguarda os pistillos da flor.

Não se dava os ares dogmáticos de um pregador de doutrinas equívocas. Tinha o riso franco, a alegria faiscante, a scentelha communicativa.

Reputava o mundo uma vasta arena onde os vencedores tinham sempre razão. Achava a moral uma convenção burgueza, a virtude uma velha beata rabugenta e hypocrita, o casamento uma instituição pouco decente.

O seu profundo desdém pela família conduzia-o logicamente a uma absoluta indiferença pela pátria ; a política divertia-o como um jogo de prestidigitação mais ou menos hábil. N'este ramo perdoava todas as apostasias, pondo-lhes por condição única o triumpho. Apertava todas as mãos, ou puras ou manchadas, com a mesma indifferença irónica, com o mesmo sorriso que Rabelais perfilharia com desvanecimento.

Ria-se de tudo, mas ria-se com tanta graça, com tão original desenvoltura, vendo as coisas debaixo de um tão inesperado aspecto, que Alice ria com elle, arrastada pela influência prestigiosa d'aquelle entendimento elevado e pervertido. Nunca ella tinha conhecido até áquelle tempo o humour, essa cousa inclassificável que se compõe dos mais contrários elementos, de uma gargalhada e de um soluço, da ironia de um bobo e da observação de um philosopho, de um diamante e de uma lentejoila, da visagem grotesca de um clown de feira, e do amargoso sarcasmo de um mendigo aleijado.

Quando ouvia Eduardo nas raras horas em que elle, aguilhoado pela paixão, saía da friesa convencional que era a sua máscara, e atacava em torno de si todas as instituições, todas as praxes, todos os costumes, todos os sentimentos com o bravo impulso, com a impetuosidade briosa de um touro que desafia as farpas, e electrisa os espectadores, Alice achava-o encantador e achava-o temível. N'aquelle medo havia para ella uma indefinível sensação deliciosa e nunca experimentada. Com a sua ignorância de ave sequiosa, gostava de debruçar-se na voragem ao fundo da qual bramiam soturnamente as correntes lodosas da paixão.

Elle com a velha e depravada experiência do homem de boas aventuras, conhecia o effeito que ia produzindo e gloriava-se com elle. Julgava de si para si que sendo a virtude das mulheres a mais hypothetica de todas as chimeras, só o primeiro passo lhes custa no caminho do vicio.

D'aqui a idéa de comprometter Alice aos olhos do mundo desthronando-a do seu pedestal de puresa, e dando-lhe por mero refúgio o seu amor nao podia medear uma distância enorme. Conhecia-a imprudente, e com essa imprudência contava nos seus cálculos despiedosos.

Ao vê-los sempre tão unidos, notando-lhes na linguagem e nos modos uma tão harmoniosa intimidade, não tardou o que entre nós se chama opinião publica a lavrar a sua sentença condemnatória. Jorge de Athayde começou a ser lamentado a meia voz pelas mesmas línguas caridosas que lhe desacreditavam a mulher.

Elle de nada suspeitava. Era feliz porque amava muito, e é este no fim de contas o máximo apogéo a que pode elevar-se a felicidade humana.

Bemaventurados os corações trahidos, os suppliciados náufragos das paixões implacáveis, bemaventurados os que morrem sob o peso do desmoronado mundo das suas illusões, porque elles souberam amar.

Jorge pertencia ao pequeno numero d'estes eleitos.

Quando a tarde recolhia, finda a tarefa quotidiana, achava um interior elegante e confortável, uma linda mulher serenamente affectuosa, uma creança que lhe chamava pae n'aquella doce lingua indecifrável que é talvez o maior feitiço da infância. Que mais podia elle desejar na terra que por tantos annos lhe fora madrasta?

Lembrava-se ás vezes que abusava da sua força, e que seria porventura forçado a abandonar ás luctas da pobresa, aos desconfortos da orphandade aquellas creanças que eram o encanto e o perfume do seu lar. Um desejo de Alice bastava porém a sacudir-lhe o passageiro abatimento. Á noite saía ella quasi sempre, ia ao theatro, ao baile, a casa das suas amigas. Jorge não deixava nunca de a ir buscar.

Abafava-a por suas mãos com uns desvellos de mãe e trazia-a para casa ainda um pouco vibrante, agitada, nervosa, com o seu bello rosto pállido, divinamente emmoldurado nas brancuras do capu de setim, com o corpo delicado palpitando em frémitos febris, envolvida na seducção eléctrica da sua perigosa e fatal formosura.

No caminho admoestava-a brandamente, fallava-lhe do filho, e dizia-lhe com lágrimas na voz que viria a ser muito desgraçado se a perdesse. Alice ria-se, encolhia os hombros, abraçava-o e todas as reprehensões se diluíam n'aquelle júbilo supremo e rápido.

Antes de deitar-se costumava Jorge entrar no quarto do filho; beijava-o então devagarinho, compunha-lhe as roupas desalinhadas do berço, e suspirava sob a pressão de alguma idea triste.

Elle bem sabia que o pobre anjo pequenino não tinha mãe, mas era frágil diante de sua mulher, amava-a de mais, amava-a com uns transportes ocultos que ninguém sabia.

Sentia uma delícia voluptuosa e pungente em realisar-lhe os caprichos, em annullar diante d'ella a sua vontade, em divinizar-lhe os defeitos, em pôl-a no seu coração acima de todas as cousas. Tinha a consciência do que era para ella, sabia que entre a sua alma e a alma de Alice não existira nunca a corrente magnética que faz vibrar dois seres na mesma commoção, mas que importa? Apesar d'isso ou talvez por causa d'isso, tal é a instinctiva perversão masculina, tinha para ella a devoção de um fanático e a indulgência de um pae.

IV

Foi isto há pouco tempo no carnaval de 187 .. .

Eduardo, esquentado pelos vapores do champagne, fizera entre uns poucos de libertinos, ébrios como elle, indiscretas revelações dos seus sentimentos íntimos. Dera a entender debaixo de umas reticências de sobejo transparentes, que Alice de Athayde era para elle, mais que um ídolo só, entrevisto de longe em branco pedestal immaculado. Tinham-no elles emprasado a provar a verdade das suas affirmações sob pena de o tomarem por um impostor de máu gosto. Eduardo, posto entre a espada e a parede, promettera, fiando-se na sua estrella, que o não traíra nunca. Eram as vésperas do Entrudo, e Lisboa, a somnolenta Lisboa, a cidade por excellencia semsabor, atirava-se n'aquelle anno aos prazeres com uma verve desusada. Na terça feira estava elle sentado ao pè do fogão no gabinete de Alice. Fallava-se das folias carnavalescas, e Eduardo descrevia-lhe a poética loucura veneziana e o entrudo em Paris, ruidoso e sinistro como só podiam ser as saturnaes babylonicas da febril cidade.

Depois de uma conversação que a deixara toda vibrante de curiosidades, disse-lhe Eduardo de repente como se lhe acudisse n'aquelle momento uma boa lembrança :

-- Uma cousa! tenhamos também o nosso quinhão nas alegrias do tempo! Venha commigo a S. Carlos em rigoroso incógnito. Dou-lhe ensejo para disfructar dois homens de espirito. Verá então que não ha nada menos engraçado que um homem que contraiu a obrigação de ter graça!

Alice parou de bordar e olhou para elle muito surprehendida e muito risonha.

-- Então ! Já viram este doido o que me aconseba!

-- Uma cousa que está morta por fazer ! Ande, não seja hypocríta, diga francamente gue gostava de ir -- Gostava, é possível que gostasse, pela extravagância do caso. Mas não vou, Deus me defenda de tal. -- Porquê?

-- Ora porquê ! Sabe-o tão bem como eu. Se tivesse uma irmã, levava-a lá?

-- Conforme ! Uma mulher espirituosa e superior como v. ex.*, levava; uma pensionista ridícula, já não. Primeiramente não queria enfastiar os outros, depois não me queria enfastiar a mim !

-- Mas no fim de contas valeria a pena fazer uma imprudência d'essa ordem? Diverte-se a gente muito? Eu cá não creio.

-- Ora vamos ! Ainda agora era mais franca. Não há uma mulher que não tenha uma pequena vingança a tirar de uma amiga muito querida ; um epigramma inoffensivo a desfechar no ouvido de uma rival, um segredinho que a tenha irritado, e que esteja morta por descobrir ! Diga-me cá, ninguém lhe amarrotou nunca a sua vaidadesinha de mulher? não teve nunca um ódio impetuoso e difficil de conter a estas liliputianas convenções sociaes? não houve na sua vida uma hora em que desejou dizer a verdade, a verdade sem véus e sem reticências a esses aduladores tolos que lhe beijam os pès ! Mascarar-se é abdicar por alguns instantes a sua individualidade, e escolher a que mais lhe approuver. Seja o sentimento ou seja a ironia, seja a lógica ou seja o paradoxo, mas seja positivamente o que tiver vontade de ser, sem se occultar sob essa outra máscara uniforme que faz de todas as mulheres a mesma creatura acanhada e sem sabor.

-- Que dilúvio de epigrammas, Santo Deus ! disse ella entre despeitada e risonha, sem responder directamente.

Levaram meia hora a combater este ponto. Ella condemnava em nome dos usos sociaes, elle defendia em nome do capricho, o deus omnipotente das mulheres bonitas.

Por fim, quasi vencida e sem o querer parecer, Alice perguntou :

-- E se me conhecessem ?

Estava ganha a batalha. Quando a mulher não acha em si defesa bastante e a procura nos outros, é certo o triumpho do seu adversário.

D'ali a nada combinavam rindo como dois doidos o disfarce que Alice havia de levar.

Era um campo onde podia perder-se á vontade a phantazia de Eduardo, aquella phantazia caprichosa e inimiga das convenções. Depois gostava de vêl-a passar aos olhos do seu espirito artisticamente pagão, vestida de todos os trajes severos ou luxuosos, voluptuosos ou modestos, que os seus conhecimentos de antiquário ou as suas recordações de viajante podiam representar-lhe.

Alice ria-se infantilmente esquecendo já nos pormenores da sua aventura tudo o que ella tinha de escabroso ou de illicito.

Depois de se haverem divertido duas horas com planos que desmanchavam apenas feitos, acabaram por fixar-se no dominó preto á Veneziana.

Era o mais conveniente e o mais discreto.

Alice tinha ainda um certo receio, apresentava objecções vacillantes, ria e tinha arripios. Eduardo destruía todas as hesitações, amontoava exemplos, irritava-lhe a curiosidade, e a infantil ousadia que levava sempre a achar encantos em todos os perigos, e de tal modo a estonteava no redemoinho do seu espírito que lhe roubava de todo a liberdade de reflexão.

N'aquelle dia jantou com ella. Nunca Eduardo estivera tão divertido e tão alegre. Jorge rira umas poucas de vezes com gosto ao ouvil-o.

Com um traço assignalava um ridículo, com um gesto desenhava uma caricatura. Tinha réplicas irresistíveis, acompanhava-se de uma mímica extravagante, cómica, endoidecedora.

Ao levantarem-se da mesa, quando Alice pensou que pela primeira vez ia enganar a excellente e cândida creatura, que era seu marido, houve na sua límpida fronte uma contracção de dôr. Teve tentações de lhe confessar tudo, de lhe dizer com a sua voz que era um feitiço :

— É uma tolice, é uma imprudencia, mas è um destes caprichos que nos envolvem como a jettatura. Deixa-me ir, deixa-me ir, deixa sim, meu querido Jorge.

Lembrou-se porém que mesmo cedendo com a sua habitual fraqueza, havia elle de querer acompanhal-a. Ora na companhia do marido perdia a aventura todo o picante do inesperado, e quem sabe mesmo se do prohibido. Esta reflexão conteve-a, e Eduardo que a expiava com certa ansiedade, disse-lhe alto:

-— Não me tinha dito que ia hoje á soirée da viscondessa de R... ? Encontramo-nos lá, porque tambem vou.

-- Não sei ainda se sairei, respondeu Alice corando. É possível que fique esta noite em casa. O Jorge tem um trabalho urgente que o não deixa sair, e eu tenho vontade de ficar acompanhando-o.

-- Sr. Athayde, v. ex. a dedicação em figura de homem, vae protestar de certo contra aquella determinação bárbara. Em primeiro logar, è um roubo que se nos faz, em segundo logar, é impossível que lguem possa trabalhar ao pè da sr.a D. Alice.

-— Lá isso trabalho eu, disse Jorge com um sorriso que o illuminou; depois, percebendo no olhar de Alice que esta prompta adhesão não fora completamente do seu agrado, acudiu logo mudando de tom :

-- Mas não, não, é tolice minha. Eu gosto mais que vás divertir-te. Não te posso ir buscar, mas mandarei o trem á hora que tu quizeres.

Alice levantou-se e d'ahi a uma hora apareceu prompta na sala. Vinha linda. A tentação flammejava em torno d'ella inundando-a com os seus reflexos diabólicos. Entre a mulher simples, honesta e desartificiosa e estas creaturas que se não queimam de todo no fogo do inferno, mas que passam por lá trazendo comsigo um certo cheiro de chamusco, a imaginação do homem, por mais tranquilla e desapaixonada, escolherá sempre as últimas.

Alice metteu-se na carruagem, chegou a casa de uma das suas amigas mais íntimas, quer dizer, de uma das suas rivaes mais temíveis, pretextou não sei que improvisado romance muito innocenle, envolveu-se no amplo dominó preto que para ali mandara Eduardo, e partiu para o theatro n'um trem de praça.

A' porta estava Eduardo á espera d'ella. Vel-o sem mascara surprehendeu-a e zangou-a; não teve porém tempo de se revoltar. O moço arrastou-a consigo até ao grande salão cheio de luzes e de mascarados.

Era uma confusão sinistra, um calor de abrazar todo, uma atmosphera pezada e impregnada de um cheiro acre e nauseabundo, composto de todas aquellas respirações agitadas, d'aquelles velhos trapos rançosos, d'aquellas perfumarias avariadas, d'aquellas flores murchas e sem côr.

Alice tremia, apertando o braço de Eduardo.

Este ia desassombrado, desdenhoso, levemente irónico.

Conseguira o fim por tanto tempo desejado. Quando mais não fosse, era uma vingança. Prazer dos deuses, e prazer dos preversos.

Dez minutos depois de se achar no baile começou Alice a sentir-se quasi reconciliada com o turbilhão. Achava picante a sua aventara, tinha para ella uns sabores de pomo vedado, umas cócegas irritantes que não eram bem remorso, mas que se pareciam com elle.

Alice não era de todo extranha, pelo seu espírito ousado e inquieto, ao género d'aquella mulher perigosamente encantadora que exclamava ao beber no verão um delicioso copo de água gelada:

-- Meu Deus, que pena não ser isto um pecado mortal!

Há creaturas para quem tem o que è defezo uma provocante sedução.

Nas frisas estavam algumas amigas íntimas da mulher de Atbayde. Alice aproximou-se d'ellas e falou-lhes com a sua graça singular. Elias sorriam-se prezas d'aqúelle espírito fino e vivaz, mas não lhe respondiam. Pela estatura e pela mão conheciam-n'a mulher, e agoiravam mal de uma mulher num baile de mascaras.

Foi este o seu primeiro castigo.

Pouco a pouco aquella figurinha petulante, azongada, com maneiras e palavras pouco usuaes em mulheres que frequentam taes lagares, e que se pendurava no braço do companheiro com uma timidez denunciadora de outros hábitos, attrahia a attenção dos amigos de Eduardo. Seria isto mesmo que elle desejava? Que o diga quem logra penetrar no intimo de certos espirites depravados. Éu não que o não sei.

Ora os amigos de Eduardo pertenciam na maior parte a este género hybrído, inclassificável, que nós, o povo por excellencia plebeu, baptisámos de janota. O janota, sabem-n'o todos de sobejo, não é nem o dandy brítannico nem o leão francez. Brummel et o conde de Orsay registal-o-hiam com egual desdém.

O janota bebe no Penim e no Collete encarnado, toca na guitarra, a que dá o pittoresco nome de banza, canta o fado, e quando se quer disfarçar de heroe, embrulha-se na capa vermelha de toureiro. A posição social de janota é desprezar profundamente as mulheres.

Quando por insinuações de um d'elles, mais profundo observador que os outros, começaram a desconfiar que Alice era uma senhora, fizeram o juramento de que haviam de conhecel-a. Aproximaram-se e um mais ousado dirigiu-lhe uma fineza de bastidores theatraes. Eduardo olhou para elle d'um modo que o não animou a recomeçar.

—- Quem é essa nimpha que se ampara no teu braço com esquivança admirável n'estes innocentes lugares? perguntou outro rindo.

— E' uma mulher que eu protejo, cousa que nem todos entre vossês seriam capazes de fazer, respondeo Eduardo.

-- Isso vemos nós, meu caro, e obrigado pelo bom conceito em que tens os nossos cavalheirescos méritos. Permitte-me porém que eu te pergunte o nome d'essa feliz mulher que mereceu a tua escolha sultanica? Julgava-te apaixonado por certa dama que a fallar quanto é verdade, tem extranhas similhanças com a tua companheira.

Alice estremeceu com um destes infantis pudores que os libertinos farejam até de longe. Quase todos elles o notaram, e o primeiro que soube adivinhar a differença que havia entre Alice e as outras máscaras, disse, seguindo-a com insistência:

-— Minha querida, dá-me a honra de um cancan! bem vês que não posso chamar walsa ás chorêas pouco pastoris que vês diante dos olhos

-- Arreda! esta senhora não dança, disse Eduardo com um gesto altivo, procurando afastar-se do rancho dos seus sócios, talvez arrependido de ter trazido ali Alice.

-- Se não dança, eu sei porque è, retorquiu um d'elles. Tu não és tal o que apparentas, minha filha; és um cordeirínho que este matreiro do Eduardo arrastou para o meio dos lobos.

Alice teve medo ; atravez da máscara não houve ninguém que lhe não notasse a turbação súbita. Julgou-se conhecida, infamada, teve vontade de fugir, e disse esquecida até de que não disfarçava completamente a voz:

-- Eduardo leve-me, leve-me.

-- Ah! apanhei-te! adivinhei já quem és, acudiu o mesmo personagem impertinente que tomaraaà seu cargo desesperar Alice. Bem escolhido lugar para á virtuosa esposa de Jorge de... .

- Nãa teve tempo de concluir a phrase. Eduardo levantou a mão e fez cair o insolente a dez passos do impulso da mais valente bofetada que ainda cindo dedos imprimiram n'uma face de homem. Depois aproveitando a confusão a que deu lugar este incidente, saiu da sala arrastando comsigo, meia morta de desespero, a pobre Alice.

Quando elles subiram para o coupê de Eduardo que os esperava á porta viu a imprudente creança de um relance de olhos que este levava impressa no rosto não sei que expressão altiva e triumphante. Então como que se lhe revelou em toda a sua extensão sombria a catástrophe que ia alluir para sempre o edifício da sua felicidade. Desatou a chorar, um choro de creança, uns soluços hystericos no meio dos quaes se percebiam brandas queixas humildes.

Eduardo não era de todo um coração de pedra. Teve dó da creança temerária que tinha arriscado com a inconsciência do capricho todo um futuro homesto e perfumado de alegrias boas. Pegou-lhe na mão, tentou consolal-a, e desvairado também pelas alegrias da sua victoria infame, ousou n'aquella hora, sentindo-a tão perto de si abatida, despenhada e chorosa, fallar-lhe do seu amor, prometter-lhe n'elle compensações sobejas às vergonhas qúe a dillaceravam ali.

-- Socega, anjo do ceu, houve um homem que se atreveu a insultar ò teu nome, hei-de matál-o, juro-te; acabou elle como em tríumphante epílogo a todas as loucuras que dissera, e que Alice o deixara dizer, esmagada pelo pasmo, pelo soffrimento, pela consciência tardia da sua culpa, que lhe era sobretudo revelada na ousadia do homem ainda ha pouco tão respeitosamente submisso.

-- Cale-se, cale-se já. O senhor abusa da minha imprudencia de um modo indigno. Olhe que eu não tenho dúvida em me perder de todo, e revelo esta armadilha infame a meu marido.

Chegaram n'aqaelle momento a casa da viscondessa de R... confidente de parte da loucura de Alice. Esta apeiou-se sem auxílio de ninguém e fugiu pela escada illuminada sem uma palavra de despedida.

Enquanto corria agitada por um mar de novas sensações estranhas, onde sobrenadavam a vergonha e o terror, lembrou-se de que ao menos precisava de fingir socego, diante dos olhos malévolos ou indifferentes que porventura a observassem.

Entrou no quarto da viscondessa, mandou-a chamar á sala onde ella estava com alguns íntimos e disse-lhe tentando debalde suffocar a commoção que a sobresaltava:

-— Estou muito incommodada, filha; não posso ir para a sala. Deixa-me ficar aqui deitada n'este sophá, e manda-me avisar logo que chegue o trem.

-- Que tens tu, Alice? Vens pallida como uma morta.

-- Achas? Foi talvez da mascara que me asphyxiava. Isto passa. Alguns minutos de descanço e ponho-me boa.

-- Como quizeres, meu anjo. E' singular; tens olhos de quem chorou muito.

E, com estas palavras a viscondessa deixou só a pobre Alice cada vez mais atterrada e vendo surgir um phantasma de cada lado onde refugiasse o olhar.

Foi tudo que ella temia excedido pela realidade.

N'aquella mesma noite, a notíca do escândalo que tivera lugar na sala e que fora presenciado por muita gente, correu exaggerada, colorida, desformisada pela calumnia todos os camarotes cheios do alto mundo lisbonense. No dia seguinte não havia ninguém que a não commentasse a seu modo e todos unanimemente arrastavam pela lama o nome de um homem honesto e digno e de uma pobre creança imprudente, mas pura.

A viscondessa foi a primeira, que correu a casa de Alice a contar-lhe tudo que ouvira, e que mais do que ninguém tinha direito a crer.

A mulher de Jorge estava no leito, mais pallida ainda que na véspera, com umas fundas olheiras escuras, realçando-lhe o brilho febril do olhar. O marido havia-a deixado n'aquelle instante cheio de cuidados e de apprehensões dolorosas. Na saleta encontrou a viscondessa, a quem Alice não ousava negar-se.

-- Ah! minha senhora, disse o excellente homem ao vel-a. Ainda bem que veio. Não posso deixar mais bem entregue a minha Alice, que está hoje doentíssima. A walsa ha-de matal-a, ontem quis por força passar a noite em casa de v. ex.a e walsou muito decerto, não é assim?

-- Não, caro sr. Athayde, não walsou nada. Nem lá se valsou hontem em minha casa, acrescentou sorrindo surrateiramente.

-- Sério ! pois ella disse-me que dançou muito, respondeu elle com admiração que não pôde conter.

Depois de algumas palavras insignificantes, ditas por elle com visível preoccupação, Athayde saiu e a Viscondessa dirigiu-se acompanhada pela aia de Alice para o quarto d'esta. Quem seguisse n'aquella manhã Jorge de Athayde notar-lhe-hia no rosto não sei que dolorosa expresssão desusada, mixto de tristeza e espanto.

-- Para que me enganaria ella? pensava. É a primeira vez. Por mais que pense não atino com a razão desta mentira! Ainda se élla me tivesse dito que não dançara, visto que lhe ralho sempre!... Mas dizer-me que wálsóu toda a noite... Valha-me Deus! E que suspiros tão de cortar o coração que ella dava a dormir! Que será isto?

Sentia-se triste, não podia affogentar os sinistros pressenttimentos de não sei que desventura próxima. Vinham-lhe à ideia pequenos symptomas que tinham passado despercebidos nos primeiros momentos; nuvens que iam agglomarando-se no seu tranquillo horisonte. Naquelle dia custava-lhe mais do que nunca o desamor que adivinhava sob as frias carícias de sua mulher.

-- Que hei-de eu fazer para que élla me estime um pouco! Tenho sacrificado tudo e mais sacrificaria ainda se podesse. E' uma creança, gosta da luz e eu sou a sombra!

A viscondessa entrou no quarto de Alice, beijou-a com um ar ao mesmo tempo enthusiasmado e compungido, sentou-se-lhe á cabeceira e murmurou abanando a cabeça com expressão consternada:

-- Minha pobre Alice! minha querida filha, o que tu foste fazer!

-- Eu! respondeu ella turbando-se toda diante do olhar malicioso, agudo, investigador da sua querida amiga.

-- Sim, tu! Não: te desculpes, meu anjo. Sabes que podes contar commigo. Tenho-te defendido valorosamente. Olha, ainda ha bem pouco na minha sala cheia de visitas, jurei que sabia o motivo porque te mascaraste, e que esse motivo era innocente e puríssimo.

-- Meu Deus ! Clara, para que foste dizer a tanta gente que eu me tinha vestido de máscara ? Que tem essa gente commigo? quem me accusa? de que me accusam?

E Alice amarrotava pállida, febril com as pequenas mãos nervosas, as finas rendas do seu roupão branco.

-- Ai minha pobre amiga, tem ânimo! commigo podes abrir sem medo o teu coração. Depois, não sou eu só a sabel-o, filha. Falla-se já no duello de Eduardo. A nossa sociedáde é limitadíssima, n'èlla propagam-se as notícias com uma rapidez eléctrica...

-- O duello de Eduardo? Pois Edurdo bate-se ?

-- N3o sabias ! exclamou ella conhecendo no pasmo expressivo de Alice que era sincera a sua ignorância, e exultando por ser a primeira a communicar-lhe notícia de tamanho vulto.

-- Que desgraça! que desgraça! o que será de mim ! exclamou Alice pondo as mãos n'um ímpeto angustioso e levantando o olhar affogado em lágrimas para a Virgem, que tinha em frente do seu leito.

-- Ai ! comprehendo o teu supplício ! Como tu o amas!...

— Eu ! eu ! tu estás doida, ou juraste que havias de matar-me. Pois eu gosto de Eduardo ! pois eu gostei d'elle alguma vez senão com um affecto de irmã? Pois calunniam-me a esse ponto, Clara ! E tu que te dizes minha amiga...

Suspendeu em meio a phrase, lembrando-se, à luz sinistra d'aquella primeira dôr, quantas vezes ella fizera iguaes juizos de pessoas a quem dava também o profanado nome de amiga.

A viscondessa não era fácil de despersuadir.

Havia muito que era para ella facto provado o amor de Eduardo e de Alice, e mais d'uma vez, com insinuações caridosas, com a traiçoeira defeza, que serve só para aggravar todos os pontos da accusação, havia ella confirmado ao ouvido dos seus íntimos, o juízo que no mundo começava a ter foros de infallível.

Depois enchia-lhe as medidas aquelle escândalo.

Era uma distracção poderosa para toda a semana e mais alguns dias talvez, conforme as consequências cómicas ou dramáticas que produzisse.

Não admittia a possibilidade d'uma decepção. Pensava delle, o que não sei quem, pensava de Deus. Se o não houvesse, era preciso invental-o! Ora existir elle, têl-o ali preso na sua pequena garra, calçada de pellica gris perle, haver estudado com enlevos de artista todos os pormenores que o tornavam único, singular, admirável, e deixal-o fugir assim, era um destes sacrifícios inauditos, cuja idea nem por um momento podia penetrar em cérebro tão vigoroso, como o da gentil viscondessinha.

Diante das desesperadas negativas de Alice, redobrava portanto de carinhosos perdões. Por fim, fatigada d'aquelle tiroteio inútil, perguntou com mal dissimulado triumpho :

-- E como explicas tu a tua ida com elle a ocultas de teu marido, ao baile de máscaras onde não entram senhoras da nossa classe ? Creio que também não pretendes negar que foste lá, depois do desafio que hoje tem lugar entre Eduardo e o homem que te insultou.

Não havia resposta possível. Alice sentiu-se perdida. Como havia ella de explicar a imprudência infantil, que pelos resultados que trouxera comsigo, havia tomado, aos olhos dos mais imparciaes, tão medonha gravidade?

Contou a verdade toda, falou com aquelle calor que leva o convencimento atè aos espiritos mais obtusos, teve gritos e lágrimas d'uma sinceridade irresistível.

A viscondessa começava a conceber o supplício de S. Lourenço. Não se dava porém por vencida; meneava a cabeça e sorria com um plácido sorriso compadecido e desesperante. Por fim levantou-se, e respondeu-lhe abraçando-a.

-- Meu anjo, preferia que tivesses mais confiança em mim, tanto mais, que eu tenho empregado toda a minha escassa eloquência em defender-te. Não importa ! Direi, a quem me perguntar, o que me tens dito. Rir-se-hão de mim, mas eu prefiro o ridículo de te defender ao odioso de te accusar. Bem sabes o que é o mundo. Só acredita o que é mau. Depois tu tinhas um orgulho desapiedado, e não perdoavas ás pobres mulheres que eram frágeis. Cairão sobre ti milhares de vinganças. Eu lamento-te... e comprehendo-te! Sei a que nos arrasta a paixão.

Estas últimas palavras, em tom commovido e confidencial, levando hypocritamente o lenço aos olhos enxutos.

E saiu, deixando Alice inconsolável, para ir commentar em meia dúzia de casas da sua amisade, o acontecimento que trazia alvoroçado, n'aquelle dia, o high-life.

Tinham começado apenas as atribulações da pobre menina.

Pouco depois de sair a viscondessa, entrou Eduardo. Alice não quiz de modo nenhum recebel-o. Sentia vagamente que se perdera. Tinha o estonteamento vertiginoso dos grandes abysmos. Tudo dali por diante tomava para ella um aspecto traiçoeiro.

Eduardo vinha devéras afflicto.

Não quizera dar tamanha publicidade ao que no mundo era considerado o seu triumpho. Não tinha tido a premeditação do desvendar no baile a imprudência de Alice; desejara apenas que a sua ida ali, ao lado d'elle, fosse suspeitada pelos seus amigos, fluctuasse vagamente no ar como um mysterío, transparente para alguns e duvidoso para quasi todos. O facto em si não quizera elle, de modo algum, que determinasse uma séria crise, antes o seu cálculo era que fosse considerado somente como o resultado natural da estreita intimidade illícita que entre os dois existia.

Os acontecimentos, porém, tinham andado mais rápidos do que elle. Dominára-os até um certo ponto, e fora por elles arrastado d'ahi avante.

Lembrava-se pela primeira vez de Jorge de Athayde, e entenebrecia-se-lhe a consciência ao pensar no olhar do homem cândido e justo de quem assassinara covardemente a honra e a felicidade.

-- Estou prompto a dar-lhe toda e qualquer satisfação qu'elle de mim exija, pensava abrigando os seus remorsos estéreis à sombra d'este charlatanismo social que tão impropriamente se chama valentia.

Trazia-o ali a esperança de conjurar novas desgraças. Vinha dizer a Alice que não perdesse o ânimo, que combatesse o mundo com a arma da sua innocência, que se levantasse acima da calúmnia, que ao menos soubesse conservar a confiança do seu marido.

Nada disto poude dizer-Ihe. Alice tinha medo do homem que a perdera, e que pelo seu arrojo singular em arrostar com tudo, podia ainda salval-a, e inculcar-lhe no espírito a perdida energia.

Á noite chegou, pela posta interna, uma carta sobrescriptada a Alice de Athayde. A carta, sem assinatura, dizia, no estylo de quasi todas as cartas anonymas, presentes, passadas e futuras, as palavras seguintes:

«Minha senhora.

«Alguém que a vê próxima a perder a sua honra «e a sua posição, avisa-a de que é joguete de um «homem que jurou perdel-a. Eduardo de C..., o «amigo em quem tanta confiança deposita, que até o acompanha a logares onde nunca entrou uma senhora honesta, tinha jurado n'uma ceia de rapazes, a que muitos assistiram, provar em breve, e d'um modo que a ninguém restasse dúvida, que «V. ex. era sua amante.

«Foi com essa intenção, que a arrastou ao baile de máscaras, que a tornou ali alvo da attenção «mais ou menos perspicaz, de muitas senhoras e «homens da sua mais íntima sociedade, e por fim «deu uma bofetada no homem que a reconheceo. «Hoje o duello que occupa meia Lisboa, é a triumphante resposta dada por elle aos que duvidavam « da sua ventura. Innocente ou culpáda, foi vítima de uma traição. Acautele-se.»

Nunca na sua existência de vinte e seis annos, que passara por dolorosas e inesperadas alternativas, e que era agora tão suavemente feliz, Alice havia conhecido as commoções que a assaltaram n'aquelle dia!

Ao lêr a carta, que vinha confirmar-Ihe tudo que a viscondessa lhe dissera, escondeu a cabeça nas mãos e desatou a chorar silenciosamente. Sentia agora, por vagos indícios, que iam tomando relevo e vulto, à luz dos acontecimentos presentes, que fallava verdade aquella carta, forjada de certo por um ex-amigo de Eduardo, que lhe conhecia a fundo as manias e as depravações.

No seu pequeno coração, atè ali namorado de puerilidades delicadas, levantou-se n'aquelle instante uma onda revolta de cólera. Teve sede de vingança, ella, a mimosa creatura que só conhecia os sentimentos cândidos e amoráveis, os pequeninos caprichos de borboleta.

Lembrou-se então de seu marido, não com a humildade receiosa, que era porventura de suppôr, mas com um sentimento extranho, onde havia uma vaga amargura e uma vaga esperança. Quasi que lhe quiz mal por elle não ter sabido absorvel-a, fazer-se amar profunda e unicamente, roubal-a ás perigósas tentações e aos perigosos sonbos. Quiz-lhe mal, porque era bom, justo e pacífico, porque não tinha a insolência com que Eduardo se fazia perdoar os seus imperdoáveis arrojos.

Depois lembrou-se de o ter visto hum dia n'uma hora rápida da vida de ambos, erguer-se aos olhos d'ella transfigurado pela paixão e pela dôr, e disse, assomando-lhe aos lábios um ligeiro sorriso vaidoso e triumphante :

-- Sim ! Vou contar-lhe tudo. Os cordeiros podem ás vezes ser leões. Elle é que me ha de vingar do mundo e do homem que me quiz infamar.

Este pensamento inconsequente, bárbaro até como era, restituiu-lhe a energia perdida. Não poude porém obedecer ao seu primeiro e apaixonado impulso. Quando tentava, a muito custo, dar ás suas ideas desordenadas algum repouso que lh'as aclarasse, abriu-se a porta do gabinete e Jorge entrou.

Vinha pallido, com os olhos injectados de sangue e sulcos de lágrimas nas faces cadavéricas.

Também a traiçoeira mão do anonymo havia acabado de o apunhalar, e lembrando-se do sorriso velhaco da viscondessa, da turbação de Alice, dos suspiros que lhe cortavam o sobresaltado somno, da mentira que lhe dissera de manhã, o infeliz curvou a cabeça ao peso da evidência. Não era a sociedade, de que lhe apontavam o despreso e o escarneo, que o preoccupava a elle; pensava em sua mulher, n'aquelle santo amor que fora o seu enlevo e a sua fè, e sentia dentro do coração um mundo a desabar.

Entrou no quarto, chegou-se impetuosamente à cadeira onde Alice estava sentada, abatida e chorosa, com a carta anonyma ainda no regaço, pegou-lhe nas mãos com uma força estranha e mergulhou nos olhos d'ella o seu olhar mysteríoso e ávido.

Alice ficou espantada e ficou contente. Afigurava-se-lhe um prodígio a transformação que fazia resplandecer n'aquelle homem vulgar todas as santas e immaculadas dignidades, que trazia escondidas n'alma como n'um sacrário tosco.

Comprehendeu que Jorge sabia ou suspeitava tudo, e deixou que o olhar se lhe embebesse á vontade nos seus olhos, onde havia uma doce e supplicante limpidez.

Era uma creança culpada, mas não podia ser uma mulher criminosa. Havia um suave e innocente abandono nas linhas d'aquelle corpo que se quebrava em ondulações serpentinas. Pedia auxílio, mas não pedia perdão.

-- Falla ! exclamou Jorge com voz rouca e áspera, de tal modo o estrangulava uma commoção desconhecida. Falla ! Justifica-te ! Porque choras ? Que ha de realidade n'este horror que me fulmina?

Alice ergueu-se da cadeira, impelliu suavemente o marído para ella, e sentou-sé-lhe nos joelhos, na sua postura favorita de graciosa infantilidade. Jorge não se atreveu a repellil-a. A despeito de todas as desconfianças, subjugava-o a tenacidade da sua paixão.

Depois Alice contou-lhe baixinho, com a cabeça encostada ao peito d'elle, com a voz soluçante das creanças mimosas, a sua aventura arriscada e o terrível resultado que ella tivera.

Nada lhe escondeu, nem as venenosas palavras da amiga, nem o contheudo da carta anonyma, nem a visita de Eduardo, que não ousara receber. Contou-lhe o que soffrera, o que luctara, o que era hoje aos olhos d'esse mundo onde fora rainha, e cujas leis caprichosas e contradictórias, conhecia melhor ainda do que elle; deu-lhe maior parte do fel que lhe azedava em ondas o coração, do que lhe tinha dado nunca das alegrias triumphantes do passado.

Jorge não a interrompeu uma só vez. Quando Alice acabou de fallar, ficou no quarto o mesmo silêncio pesado e morno. Ella levantou timidamente a cabeça, fixou os olhos nos olhos do marido, depois deu um grito e levantou-se para fugir.

Teve medo do olhar allucinado com que elle a olhava, das grossas lágrimas que se lhe conglobavam lentamente aos cantos das pálpebras pisadas. Havia ali n'aquella simples mudez sinistra, o infinito das dores que podem esmagar um homem.

— Não fujas, para que? Eu não te faço mal, disse Jorge baixo e a muito custo, como se alguma cousa o suffocasse.

— Perdôa-me ! murmurou Alice dando á voz as modulações mysteriosas da súpplica. Tu sabes que te amo; só a ti, sim, só a ti. Era tão feliz ainda hontem ! Agora não torno mais a ser feliz, não é verdade?

Elle ouvia-a, ou talvez não a ouvisse. Olhava pm ella e pensava nos dias que tinham passado e que não podiam voltar.

Então era feliz ; as horas corriam tranquilas, e olhando para diante, via sempre uma existência festiva, luminosa, cheia de sol. O seu filho cresceria, dar-lhe-hia consolações e orgulhos; a febre das festas mundanas havia de extinguir-se no seio de Alice, passariam umas noites boas, serenas, ao pè do fogão, emquanto o pequeno lesse com a sua voz, que havia de ser como a da mãe, terna e musical, e ella bordasse, parando de vez em quando, para o ouvir melhor, mais feliz ali no conchego dos affectos íntimos do que tinha sido no turbilhão dos prazeres sociaes.

Jorge scismava d'um modo estranho e vago. Perdera como que a noção do seu estado presente, doirava-se-lhe a alma ao influxo d'uma inexplicável somnolencia.

Não sabia bem o que houvera na sua vida. Umà catastrophe imprevista, alguma cousa com que elle não contara, mas de que espécie ? Se depois de fulminado o corpo, o espírito podesse ainda pensar, era assim que elle pensaria de certo.

Alice escorregou-lhe do collo, onde se tinha deixado cair outra vez, e ajoelhou, de vagarinho, aos pés d'elle. Tinha medo, um medo indizível; umà angustia oppressôra e violenta.

Procurava o doido coração das primeiras horas, aquelle coração a trasbordar das adorações infinitas, procurava o amigo suave e consolador de todos os outros dias, e nem um nem outro podia reconhecer n'aquelle homem.

-- Jorge, murmurou ella no fim de um quarto d'hora de medonho silêncio. Jorge, falla-me, castiga-me, amaldiçoa-me, mas não olhes assim para mim! Eu sei no que tu estás pensando. Queres vingar-te d'elle. Dilacera-me-se o coração, pensando que sou eu quem te exponho ao perigo, mas não devo nem quero prender-te. Sou a mãe do teu filho, e é preciso que o meu nome se conserve immaculado, por elle e por ti. Deus protege o direito, e o mundo è assim, dá sempre rasão ao vencedor. Não julgues tudo isto irremediável, afirmo-te que não é. Hoje escarnecem-me os que me julgam despresada por ti, amanhã hão de respeitar-me quando virem a minha dignidade salvaguardada pela tua.

Estás-me julgando má, dize, não estás? Eu, a tua Alice, a tua pequenina, com aspirações sanguinárias. Como è verdade que basta uma hora para transformar uma pessoa ! Prova-lhes a elles que me defendes, que me queres, que és o meu protector e o meu amigo, e depois diremos adeus a este mundo, que é tão mau. Iremos viajar todos três. Estou cançada de todos esses prazeres, que me não deixavam conhecer o verdadeiro céo, a verdadeira felicidade. Bastaram algumas horas para encherem a minha alma d'um desgosto profundo e inexprimível. Parece-me que tenho vivido no desterro. Adoeço da nostalgia do bem. Sabes? És bom! Quero-te muito. Hei de endoudecer-te de alegrias. Às vezes tinha pena de que o teu amor não fosse expansivo e violento. Sou uma desgraçada mulher cheia de fraquezas e de loucuras. Mas agora! Agora, apalpei o nada de tudo isso. Far-te-hei muito feliz, viverei só para ti, serei tua como nunca fui até hoje.

E envolvia-o na electricidade do seu olhar felino, e emballava-o na musica branda e ineffável da sua voz, que parecia penetrar no coração e adormecer dentro d'elle a dôr.

Jorge ouviu-a; ouviu-a sem a interromper. O mundo, que lhe importava a elle o mundo, não me dirão? Absolvida por todos, essa mulher que elle julgara impeccável, teria perdido do mesmo modo a sua auréola immaculada.

Tudo lhe morria no coração, onde lhe morrera a fé. Amava-a ainda, amava-a com uma larga ternura maternal, cheia de unctuosos perdões, mas não podia tornar por ella a ser feliz.

Por fim fixou-a brandamente com um olhar manso e triste e disse-lhe:

-- Oue queres que eu faça? Perdoo-te. Nem tu sabes, ninguém sabe o que ha n'esta palavra. Mataste para sempre a minha felicidade. O que eu amava mais que a tua formosura mysteriosa e fatal, era a tua doce virtude, á qual eu confiei a minha vida. Acabou-se o orgulho que eu sentia diante d'esse mundo onde eu passei primeiro obscuro, humilhado e triste, e depois invejado e victorioso porque tu eras minha ! Não importa ! Tudo isso é verdade e eu perdôo-te. Vingar-te! mas quem te disse que eu podia vingar-te e vingar-me ? Se aqui ha culpados, fui eu decerto, porque não me soube fazer amar porque sentia prazer em te dar a minha vida, sem nunca exigir de ti nem a gratidão pela minha offerenda contínua. Se eua matasse esse homem, que n'uma hora te poude fazer renegar todas as dignidades; o que teria eu destruído com elle? A calumnia? Não, que essa lavraria incessante, alimentada pelos mesmos que tu me tens preferido até hoje. A lembrança do teu desamor, também não, porque o sinto aqui como uma tenaz a comprimir-me o coração, e a triturar-m'o implacavelmente. Acabou-se. Estes annos de ventura e de fé são um sonho de que hoje acordo, e nem tu sabes mesmo a profundidade da minha dôr ao acordar, nem tu sabes que dupla condemnação é a minha, ao ter que maldizer-me porque fui crente e bom.

Ella ergueu-se. O olhar meigo, afogado em lágrimas, cheio de súpplicas humildes e de voluptuosas seducções, tornou-se-lhe d'uma fixidez metálica. Todas as insolências antigas transpareciam pouco a pouco no rosto de Alice. De ré levantára-se juiz. Revestira-se sob a influência d'um pensamento desconhecido, de não sei que severidade sombria. Envolveu seu marido n'um olhar desdenhoso e frio; e obedecendo, no desvairamento em que a lançavam tão diversas e encontradas commoções, ao impulso da sua natureza primitiva, exclamou com pungente arrebatamento :

-- Tem medo ! Confesse que tem medo. Resigna-se com a deshonra, porque tem a covardia de a não querer vingar.

Jorge não podia empallidecer mais, os olhos porém afundaram-se-lhe mais profundamente na orla roxa que os cercava, e accendeu-se n'elles uma chamma súbita.

Levantou-se também, e tomando pela primeira vez, aos olhos de sua mulher, uma solemnidade immensa e trágica, apontou-lhe com um gesto lento, altivo, impregnado de extranha e irresistivel dignidade, para a porta do gabinete.

Alice saíu esmagada por aquelle olhar, por aquelle gesto, pela consciência do seu crime irreparável.

V

N'aquelle mesmo dia, Jorge de Athayde saiu de casa, deixando um lacónico bilhete para sua mulher, em que lhe ordenava que não saisse, que não fallasse a ninguém, e que esperasse as suas determinações, que breve lhe seriam communicadas. Afinal de contas aquela resolução viril da parte do marido, com quanto a espantasse, não lhe desagradava. Tinha a consciência do profundo amor que inspirava, e à proporção que o sobressalto angustioso dos primeiros instantes ia esmorecendo, ia augmentando n'ella a esperança irreflectida e tenaz de readquirir o perdido império. A energia com que elle a queria emfim domar, parecia-lhe o symptoma precursor d'uma transformação no seu destino. Tudo queria menos a continuação d'aquella paz monótona para sair da qual ella se atirara sem gosto a umas aventuras equívocas.

Ser dominada é a sede instinctiva dos fracos. Alice sonhava com uma mão de ferro que a opprimisse e que ella beijasse. Esperou, portanto, com a confiança cega dos illudidos. Phantasiou viagens longas, expiações dramáticas, e ao fundo do horisonte indefinido uma aurora de renovadas alegrias.

Obedeceu de bom grado às ordens do marido. Deu ordem expressa aos creados para que regeitassem todas as cartas, e para que despedissem todas as visitas.

Às vezes sobresaltavam-a umas angustias súbitas como de quem ouve ao longe, na mudez profunda, um grito de agonia inconsolável. Então agarrava-se ao filho, beijava-o e dizia-lhe :

-- Elle ama-nos muito para nos castigar, não é assim ? Ainda seremos felizes ; eu sou tão moça, tu és tão pequenino ! Somos ambos tão queridos !

E tinha muita esperança.

Ao cabo de três dias de incerteza, davam 10 horas da noite quando Jorge entrou em casa.

Encaminhou-se para o quarto onde estavam juntos a mulher, muda e immóvel, e o filho adormecido no seu pequeno leito. Alice ao vêl-o entrar deu um grande brado e correu para elle, sentindo que o amava mais n'aquella hora de terror vago, do que o tinha amado em longos annos de abnegação reservada e muda.

Elle impelliu-a de si com modo brando mas secco. Sentou-se defronte d'ella e apresentou-lhe um rôlo de papeis qne tinha na mão.

-- Tem aqui metade da minha fortuna. É sua. Ninguém mais lhe poderá pedir contas d'ella. A outra metade pertence a meu filho e não a mim ; eis o motivo porque a guardei. Aquelle homem de quem me disse que eu tinha medo, era meu irmão. Queria-lhe muito. Tinha jurado protegel-o e amal-o a alguém que já não existe. Esse homem matei-o hoje. Dizem que foi n'um duello honrado. Não importa ! A verdade é esta. Era meu irmão e matei-o. Entre nós, bem percebe, que fica existindo aquelle cadáver. Não me tornará, nem nos seus sonhos, a chamar covarde, ouviu? Comprei esse extranho privilégio com um fatricídio. Seja feliz. Eu só de si exijo uma cousa. É o que venho buscar aqui hoje. O meu filho.

Alice, absorta e allucinada, olhava para elle como n'um sonho. Ao ouvir fallar no filho quiz correr para seu marido, estendeu os braços, soltou uma súpplica indistincta e caiu no chão como varada por um raio.

Jorge não olhou para ella. Abeirou-se do leito do filho, envolveu-o amorosamente nas roupas, e saiu levando-o nos braços, pelo meio da creadagem boquiaberta.

Ninguém o tornou a ver.

Uns dizem que está no Brazil conquistando para o filho uma nova fortuna, outros dizem que vive escondido n'uma aldeia erma de Traz-os-Montes.

Alice nunca mais sorriu. Reza a fama que dá esmolas a todos os pobres e lágrimas a todos os infortúnios -- e as poucas amigas que lhe ficaram no naufrágio de todas as suas alegrias affirmam que no coração de Alice arde uma paixão implacável e violenta. Por quem ? perguntam as más linguas, saboreando de antemão um novo escândalo apimentado.

-— Pelo marido, respondem as ditas amigas n'um frouxo de riso motejador.


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TextGrid Repository (2023). Portuguese ELTeC Novel Corpus (ELTeC-por). Alice: Edição para o ELTeC. Alice: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001D-44F2-3