DIGRESSÕES

E

NOVELLAS

POR

BULHÃO PATO

LISBOA

TYPOGRAPHIA UNIVERSAL

RUA DOS CALAFATES, 110

1864

A pallida estrella

É provavel que por mais de uma vez, o leitor, que tem viajado pelas nossas provincias, tenha assistido aos descantes e improvisos da gente do campo. Ao som da guitarra, em volta da eira n'uma noite de verão, ou no adro da egreja nos dias de festa, trava-se a contenda, começa o desafio, e quantas vezes admiramos os repentes de talento com que o povo adivinha os segredos da forma, exprimindo n'a1guns bellissimos versos o sentimento que o inspira.

O poeta veio convidar-me um dia para assistir a um destes oiteiros populares.

A festa era no adro da ermida de Nossa Senhora, que fica situado a meio de uma das encostas que circumdam aquellas veigas ferteis e pittorescas.

Aceitei de boamente o convite, e como a distancia não era grande, partimos a pé para o sitio aprasado.

Agradavel espectaculo era o que se apresentava diante de nós. Pelas veredas tortuosas do monte, subiam homens, creanças e mulheres em trajo domingueiro, e as côres lubricas e variegadas dos vestidos daquella multidão, que se agitava ao longe, produziam admiravel effeito, ressaltandoressaltando do meio da verdura que revestia a encosta. O adro estava apinhado de gente, e quando se approximou a hora do crepusculo os improvisos começaram.

O repentista mais audaz rompeu o fogo, por esta quadra, encostando-se ao cajado, e cravando os olhos na sua musa :

Oh ! Anna, tres vezes Anna,
Oh ! Anna feita de cera,
Quem fôra braza de lume,
Anna que te derretera.

Outro, alludindo aos olhos provocadores da cachopa que o inspirava disse :

Os teus olhos negros, negros,
São gentios de Guiné :
De Guiné, por serem negros,
Gentios por não ter fé.

Algumas das principaes familias de Leiria tinham vindo assistir ao arraial.

Entre ellas havia tempo que eu tinha notado uma elegante menina de vinte a vinte e dois annos, pallida como um lyrio, de olhos negros, e melancholicos, sorriso suave e expressão apaixonada, que ouvira com vivo interesse os improvisos d'aquelles poetas desconhecidos.

-- Quem é esta encantadora menina ? perguntei com visível interesse ao meu amigo.

-- Uma senhora casada.

-- Com quem? Com aquelle homem que está ao pé della ?

-- Exactamente.

-- Tem bom gosto; o marido é feio como o peccado, e parece que se levantou ha pouco da sepultura.

-- É verdade que esteve ás portas da morte. N'esse momento o meu companheiro pedia-me que désse attenção a uma quadra que um dos improvisadores ia tornar a repetir a pedido da senhora que fôra assumpto do nosso dialogo, quadra que parecia expressamente feita para ella.

Era a seguinte :

Rosa branca toma côr,
Não sejas tão desmaida,
Que dizem as outras rosas,
Rosa branca não vai nada.

Ella sorriu-se e pediu-lhe que proseguisse

O pobre poeta dos campos, lisongeado com esta demonstração, continuou a dar largas á sua musa, e quantos nomes illustres não firmariam com orgulho algumas das estrophes que n'um momento de verdadeira inspiração produzira aquelle genio ignorado.

Com a voz tremula, e os olhos scintillantes, o camponez proseguiu :

Eu não choro por ti, rosa,
Que o jardim mais rosas tem ;
Mas porque sei que não achas
Quem te queira tanto bem.
O sangue das tuas veias
Gira no meu coração,
Se teus braços são cadeias,
Eu entrego-me á prisão.

E no fim de um longo improviso onde a sua alma se expandira em melodias suaves e originaes.

Como os cantos selvagens do rouxinol, com quanto sentimento cantára estas estrophes:

Costumei tanto os meus olhos
A namorarem os teus,
Que de tanto confundil-os
Nem já sei quaes são os meus !
Eu amante, e tu amante,
Qual de nós será mais firme !
Eu, como o sol a buscar-te,
Tu, como a sombra a fugir-me !
Quando eu digo que te adoro,
Dizes, rosa, que te minto 1
As magoas que por ti soffro,
Deus as sabe, e eu as sinto.

Quem sabe? Talvez nesse instante dos olhos fascinadores que tinha diante de si, partisse a faisca que devia aceender-lhe no peito a chamma do primeiro amor.

Elle era um pobre aldeão, é verdade, e ella uma enhora de alta jerarchia.

Porém o Tasso, ao contemplar a surprehendente formosura de Eleonor, lembrou-se acaso de que ella era filha dos principes de Ferrara ? O amor do poeta intimidou-se na presença do supremo orgulho dessa familia de reis, ou impetuoso e ardente ousou manifestar-se aos pés do idolo que o arrebatara ?! O grande cantor mediu por ventura a distancia que o separava d'ella, quando n'um instante de desvario diante da corte, na presença dos guardas, jogando a vida n'um relance, imprimiu os labios na fronte candida da mulher adorada ?!

Estas observações fazia eu contemplando a intelligente physionomia do sympathico aldeão, e escutando os versos que acima transcrevi.

É provavel que o meu espirito impressionado nesse instante houvesse interpretado mal aquella scena ; mas a verdade é que cheguei a achar possivel que a mulher do mundo elegante se apaixonasse pelo homem dos campos. Comecei a delinear o romance ; eram mais alguns capitulos para essas folhas volantes, que se chamam jornaes, que nascem hoje, e morrem amanhã, como hão de morrer na memoria do leitor estes rapidos apontamentos.

O improvisador tinha vinte e cinco annos, e o seu aspecto faria desesperar de inveja os Appollos da cidade. Alto, airoso como o pinheiro novo, robusto e proporcionado como um Hercules, feições regulares e insinuantes, olhar intelligentc e decidido.

Se este homem amasse? Se aquella alma onde vibravam todas as cordas da sensibilidaLle chegasse a exaltar-se pelo affecto de uma mulher superior, do que não seria capaz ?

Quantos thesouros de sentimento deviam existir no seu coração ingenuo como os campos, onde pulsára livre desde a infancia, ardente como o sol peninsular ?

O que seria a paixão do homem do mnndo gasto e estragado pela sociedade, posta em parallelo áquella que nesse espírito virgem rebentasse um dia ? O mesmo do que as plantas arrancadas do solo natal, e mettidas na estufa onde laboram a sua difficil vegeteção no meio de uma atmosphera fictícia, comparadas áquellas que vecejam no terreno patrio, ao ar livre das montanhas, conservando a robustez nativa.

E se é exacto que a vaidade domina, principalmente a mulher, como devia sentir-se lisonjeada aquella que soubesse ser o objecto de um culto tão sincero e ardente ?!

Ergui os olhos para a elegante senhora, que em falta de nome, já tinha designado pelo de pale etoile, procurando ler no seu rosto a resposta aos meus pensamentos íntimos, quando me lembrei de repente que era casada.

Cai então das alturas a que a imaginação me havia transportado, e achei-me no mundo das coisas positivas. O enredo do romance, pelo menos como eu o projectara, era impossivel. O camponez podia apaixonar-se, porém ella ! ... ella é que não podia. Puz-me a olhar para o marido. Era realmente um sensaborão chapado. Em quanto o contemplava, o meu Miphestofeles murmurava-me ao ouvido estas infernaes palavras de Balsac:

« Tout homme qui met son bonet de nuit avant de se coucher, c'est un prédestiné. »

E aquelle de certo punha o barrete de dormir antes de se entregar ás delicias do somno conjugal. Emfim, não vamos mais adiante ; não venha por ahi algum santão arvorar-me uma sentença condemnatoria no tribunal da sua hypocrisia.

A noite tinha caído, e o astro das saudades começava a illuminar o cimo flexuoso dos montes.

O meu companheiro escolheu este momento, para me apresentar á seductora desconhecida, que eu contimarei a designar pelo nome de Pallida Estrella. Perdão, se fiz mal em traduzir ; talvez digam que ficava melhor em francez, mas agora já não ha remedio.

Recebeu-me com a maior affabilidade, e elogiou graciosamente os meus versos, circumstancia, que devo confessal-o, augmentou a minha sympathia por ella.

Fallámos dos improvisos, da festa, dos encantos do sitio e dos explendores da natureza. Eu declarei-me apaixonado pelo campo, pela lua, pelas estrellas, jurei que preferia as suaves e singelas distracções da provincia a todos os prazeres da cidade, e julgo escusado dizer que menti descaradamente. As horas correram sem se sentirem. O marido guardava o mais commodo silencio, e apenas de quando em quando ousava tomar parte no que se dizia, consultando previamente os olhos de sua mulher com admiravel submissão.

Ella era na verdade digna da adoração mais pura. Poucas vezes tão fina intelligencia se encontra reunida a uma formosura tão sympalhica. As pestanas longas e assedadas entibiavam o ardor dos seus olhos negros. Os labios entreabria-os um sorriso de suave melancolia ; a pallidez ou antes a alvura particular da rosa de Benguella dava-lhe uma expressão de sentimento tocante, e a voz seductora parecia a do anjo que deve supplicar a Deus pelos infelizes que padecem na terra.

Chegou a hora de nos separarmos, e não foi sem custo que disse adeus áquella graciosa apparição.

E o romance que eu imaginava ? não devia continuar a pensar nelle?

Para que ? talvez as circumstanctas me proporcionassem alguma historia verdadeira.

Dois dias depois daquella tarde em que tínhamos ouvido os brilhantes improvisos do povo, e feito conhecimento, pelo menos eu, com a sympathica e amavel senhora que viera tomar parte na festa campestre, o meu amigo recebeu uma carta della.

Era um convite para irmos passar a noite em sua casa.

Na cidade, as soirées, os bailes, os theatros rejeitam-se ás vezes, ou vae-se a elles, apenas para matar algumas horas de tedio. No campo não succede o mesmo. Qualquer distracção se aceita com verdadeiro prazer.

A vida para nós, no retiro daquella pittoresca aldeia, era placida e suave, porém monotona. Os mesmos passeios, as mesmas paizagens, o mesmo horisonte.

O homem aperfeiçoado ou estragado pela civilisação, não sei qual das coisas será mais exacta, custa-lhe a supportar por muito tempo similhante existencia. Sobretudo, se é um pouco poeta. Talvez, leitor, que esta observação te pareça absurda, fica certo do contrario.

Nos poetas não é o coração que predomina, é a imaginação, e esta alimenta-se com a variedade constante. No mesmo logar, no mesmo circulo de idéas estiola ou morre como as flores quando lhes falta o sol e ar livre.

Cantar os prodígios da natureza, a aurora, os prados, as rosas, o céo da primaYera, dentro de casa, n'um quarto confortavel, n'um dia frio de invemo, aninhado na commoda Voltaire, com o fogão acceso defronte, é para um poeta, o ideal da felicidade.

São feitos assim ; não sabem pintar com o original á vista. Os seus retratos são todos de recordação. Em se mettendo a copiar do vivo, fazem semsaboria certa.

Perdoe a amavel leitora se perdeu algumas illusõcs. Talvez que se tenha persuadido que é no auge do sentimento, na força do affecto que o poeta concebe e desenha os seus mais bellos quadros ; se assim é, sinto amargamente dizer-lhe que tem vivido de todo enganada. Versos de corpo presente ao seu idolo, só os fazem estes privilegiados das musas, no prologo e no epilogo da paixão. Isto é, quando os primeiros symptomas apparecem vagos, mal distinctos ainda, em quanto os sentidos e a alma se não empenham deveras na lucta, e as faculdades imaginativas se não absorvem no sentimento ; depois, no ultimo periodo, quando amortece o fogo e a chamma se apaga ; quando o espirito desafogado póde entrar no exercicio das suas funcções ; quando a cabeça emfim, toma o logar do coração.

O convite que tinhamos recebido era para passar a noite como em familia. O codigo penal da elegancia estava a cem leguas das Córtes. A nossa visita devia ser feita em vestuario de campo, e começar assim que os primeiros raios do sol desapparecessem da corôa dos montes.

Chegámos, pois, a esta hora, e fomos recebidos pela dona da casa, que a pequena distancia da sua habitação, respirava o ar fresco e o perfume da tarde que estava deliciosa.

Ha pessoas com quem nos sentimos em perfeita liberdade, desde o primeiro momento em que temos a boa fortuna de as conhecer. Esta era uma d'ellas. Démo-nos a mão como se fossemos velhos amigos, e começamos a conversar em estreita intimidade. Duas familias das proximidades vieram augmentar a pequena reunião que se tornou dentro de pouco animada. O meu companheiro fazia as delicias da noite com a sua habitual vivacidade. Eu invejava-lhe mais do que nunca o fogo, a imaginação, e sobre tudo a alegria, porque estava possuido de um ataque de sentimentalismo piegas e ridiculo.

Tendo a consciencia da minha profunda sensaboria, no primeiro ensejo favoravel retirei-me da sala principal e fui para a janella.

Estava n'um destes instantes que todo o homem tem, por melhor que seja. Sentia-me com desejos de deitar fogo, não só a Roma, mas até ao mundo inteiro, simplesmente para vêr se podia destruir o meu mau humor.

Porque não direi a verdade? achava-me indignado com aquelle marido. Quem lhe dava direito de possuir uma mulher bella, affavel, espirituosa, sendo elle um homem dos mais insignificantes, que tem habitado n'este mundo sublunar.

A pergunta que eu fazia a mim mesmo, era parva.

Aquella mulher pertencia-lhe pelos laços indissoluveis do hymeneu.

E será possivel que ella goste d'elle? Intelligencia tão fina, sensibilidade tão delicada, póde por ventura sympathisar com similhante homem? Não é possível ; pensava eu, continuando a contemplar as estrellas, que estremeciam no firmamento purissimo.

Passado um instante, senti passos e uma voz perguntar :

-- O que faz aqui ? Cuidei que nos tinha deixado, pelo que vejo está triste, vamos, são saudades de alguem?

Era a Pallida Estrella o lyrio do valle, a violeta que vivia á sombra d'aquellas devezas.

Respondi com a primeira banalidade que me occorreu, para sair do embaraço em que a sua voz me havia collocado. Ella encostou-se á janella, e principiamos a conversar. Fui saindo pouco a pouco da má disposição em que estava, e confesso que me achei interiormente lisongeado de algumas phrases que n'esse instante soltei.

Pobre vaidade humana !

Porcurei fallar-lhe do marido, porém ella, com evidente intenção, via-se querer fugir de similhante assumpto. Vendo que não podia alcançar o meu fim, occorreu-me fazer-lhe uma concisa pergunta.

Estive para lhe dizer :

Minha senhora, v. ex.ª não me dirá como póde aturar similhante parvo ?

É provavel que a resposta fosse mandar-me pôr no meio da rua por um dos seus criados.

Em quanto eu lutava com esta sinistra idéa, ella soltou um grito abafado, e se não lhe acudo, tomando-a repentinamente nos braços, teria caído no chão. O momento era solemne e terrivel para mim. Se alguem depois de nos ter visto desapparecer da sala, chegasse á porta do quarto e me encontrasse com ella desmaiada nos braços, a sua reputação estava perdida.

Olhei para cima do toucador, e vi um frasco de agua de colonia. Oh ! divino extracto ! incomparavel elixir ! Que seria de mim nesse instante, se não fosses tu !!

Deitei mão do vidro e fiz-lhe respirar a essencia. As palpebras estremeceram, os labios entre-abriram-se, e ella recuperou finalmente os sentidos.

Depois firmando-se no braço de uma cadeira, olhou para mim com indefinida expressão. A dôr, o receio, a vergonha, refletiam-se n'aquelles olhos humidos de lagrimas.

Eu, encarando com o espelho, fiquei mediocremente lisonjeado com o aspecto da minha physionomia. Estava com uma cara de tolo chapado.

Assim que pude fallar, disse-lhe :

-- Parece-me que lhe faria bem o ar, minha senhora, porque não chega um pouco á janella ?

Ella estremeceu, e fazendo um gesto de susto, disse-me em voz quasi imperceptiYel :

-- Venha para dentro, não falle alto ao pé d'essa janella !

Obedeci-lhe, mas fiquei mais abstracto ainda. Passados alguns minutos, em que ambos guardámos o mais completo silencio, ergueu-se e reassumindo o seu gesto habitual, disse, com sorriso singular :

-- Não seja curioso, não pense mais no que se passou, e agora venha até á sala.

Segui-a, mas, como o leitor póde julgar, ardendo em desejos de saber o que tinha dado causa àquella scena.

Assim que saimos dei parte ao poeta do que succedera. Esperava que fosse elle quem rasgasse o véo mysterioso .

Enganei-me. Depois de ouvir a minha historia, respondeu-me pelas seguintes palavras:

-- Estiveste para ser morto.

Julguei que era gracejo, e disse-lhe:

-- Vamos, falla serio, estou cheio de curiosidade, não sei como explicar aquelle desmaio.

-- A qualquer, nas circumstancias d'ella, teria succedido o mesmo. Imagina que estavas em tua casa, conversando á janella com uma das tuas visitas, e que vias de repente alguem metter á cara uma espingarda ...

-- Para me matar ?

-- Ou para matar a pessoa que estivesse ao pé de ti : se fosses mulher é provavel que perdesses os sentidos.

-- Tens prazer em prolongar a minha curiosidade, já se vê : disse eu assás irritado.

-- Fallo serio, e dou-te parte do que se passou; agora pensa o que quizeres.

-- Não posso pensar nada. Estou aqui ha oito dias apenas, ninguem me conhece, como hei de suppôr que me queiram matar ?

-- Apezar d'isso, ainda não ha duas horas que estiveste para cair redondamente morto aos pés da Pallida Estrella . Ao menos a morte era romantica, por ser ao lado de uma linda mulher, proseguiu elle com a mesma desesperadora impassibilidade.

-- Mas quem é esse personagem que tem por mim tão decidida sympathia ?

-- Um homem com mais fogo no coração do que tu, meu poeta de agua doce, um homem, que te mettia uma bala na testa apezar da noite, da distancia e do furor que o inflammava.

-- Nesse caso a minha vida não está demasiado segura, disse eu olhando em volta e começando a tomar o negocio a serio.

-- Descança, o perigo passou, podes andar a todas as horas do dia e da noite, sósinho por estes campos, que ninguem te toca n'um cabello.

-Pelo que vejo tenho a desgraça de me parecer com alguem que está sentenciado á morte.

-- Tambem não ; a bala era para ti, respondeu o meu amigo, com ar tragico.

-- Decididamente queres esgotar a minha paciencia. Conta o que sabes, dize-me quem é o feroz Ottelo d'esta Desdemona.

-- Falla com mais respeito ...

-- De quem? de um homem que me queria assassinar?

-- Não, d'ella.

-- Era preciso que não tivesse amantes tão incommodos, respondi eu vivamente despeitado.

-- Ella não tem amantes. É um caracter severo e nobre, uma alma capaz de todos os sacrificios. O tom com que o meu companheiro proferiu estas palavras era solemne.

Calei-me corrido da phrase que soltára irreflectidamente: Elle proseguiu :

-- Foste injusto, não admira, o mundo obriga a estas coisas. Viste uma senhora na flor dos annos, bella, affavel, espirituosa, casada com um homem feio, tímido e sem intelligencia. Suppozeste que era um marido infeliz. Erraste, mas com todas as probabilidades de acertar.

Essa mulher, que vens de deixar, era pobre e bem nascida, o que são duas desgraças. Tinha pae, já velho e quasi na indigencia; irmãos, que não estavam ainda em edade de trabalhar e que precisavam ser educados. Talvez que um affecto suave, uma affeição de infancia tivesse despontado na sua alma, póde ser que os labios houvessem proferido o primeiro juramento de amor ; mas esse homem era pobre como ella, e teve a generosidade de não a querer sacrificar. Desappareceu. Se podesse esperar, é provavel que mais tarde voltasse em circumstancias de lhe offerecer uma posição, mas a fome, a nudez, a miseria não esperam.

Era preciso um grande sacrificio ; mulher, resignou-se a elle. Este que é hoje seu marido appareceu. Viu-a, apaixonou-se, e poz-lhe aos pés os seus haveres. Ella para salvar o pae; os irmãos, a familia, acceitou, e occultando as lagrimas, sepultando no coração as memorias do seu antigo affecto, foi para o altar como iria para o patibulo ; depois, posto não amasse esse homem, votou-lhe estima e consideração sincera, porque apezar de elle possuir uma pobre cabeça, tem uma grande alma, adora-a, e ella não sabe pagar com a traição o amor que lhe consagram.

Prefere a morte a deshonrar seu marido. Já vês que não tem, nem póde ter amantes.

Diante d'esta tirada sensibilisou-se devéras o meu coração, mas confesso que se satisfez mui pouco a minha curiosidade.

Principiei a recordar-me de todas as circumstancias que se tinham dado durante essa noite.

Ella, quando se aproximou de mim e veio conversar para a janella parecia perfeitamente tranquilla. A noite era do luar, e eu nem tinha sentido rumor de passos, nem dado pela sombra do um vulto. É verdade que detraz das balsas podia esconder-se um homem, mas n'esse caso, como é que ella o descobriu ?... Provavelmente porque os olhos da mulher vêem muito mais do que os nossos. E quando assim fosse, porque m'o não disse? Talvez não tivesse tempo, talvez vendo a arma apontada e julgando a morte inevitavel, perdesse de todo o animo.

Depois de tornar a si do desmaio, de proferir aquellas mysteriosas palavras, e de voltarmos para a sala, é verdade que notei a sua ausencia por muito tempo, e que olhando para o campo, por uma das janellas, me pareceu vêl-a passar rapidamente entre as arvores que ficavam fronteiras. O facto é que havia um romance ali, e que eu estivera para representar n'elle o papel de victima.

-- «Já se vê, pensava eu, que existe um homem apaixonado por esta mulher, e a quem ella, segundo affirma o meu amigo, não corresponde. Este homem, incommodamente zeloso, vendo-nos conversar largo tempo em presença da noite, da lua e das estrellas, teve ciumes, e n'um accesso mais violento achou razoavel matar-me. Mas porque estava ali, armado e escondido como um assassino?

«É porque havia tenção firme, pensamento reservado, antiga desconfiança.»

Esta ultima observação creio que a fiz em voz alta, porque o meu amigo respondeu :

-- Não havia nada d'isso.

-- Então como explicas o que me disseste, perguntei eu suppondo que elle adivinhava os meus pensamentos íntimos.

-- Escuta : vou satisfazer a tua curiosidade. Ha um homem, um poeta, que adora a Pallida Estrella. Esse homem segue-a, como uma sombra, e todas as suas ambições se limitam a contemplal-a, a vêl-a, ainda que seja de longe, no extasi da adoração. Estava ali proximo de sua casa, esta noite, como todas as outras. De quando em quando via-a atravessar as salas, assomar á janella, sentia-lhe a voz, e isto era bastante para elle. Tu appareceste, ella chegou-se a ti, falláram animadamente, e o infeliz, allucinado pelo ciume, ia desfechar comtigo, quando um gesto, um grito da mulher adorada o deteve na consummação do crime. Depois ella assim que pôde, quando tu voltaste para a sala, saiu, correu a elle e disse-lhe que o despresava se tornasse a commetter outro desvario.

Elle caiu-lhe aos pés, pediu-lhe perdão, e jurou-lhe que podia ficar descançada.

-- Mas como o soubeste?

-- Soube-o por ella, que me contou tudo. Não viste que fallámos algum tempo em voz baixa antes da saida ?

-- E esse homem quem é ?

-- Um pobre moço, que já lhe salvou duas vezes a vida.

-- E a quem ella ama, de certo.

-- Não; respeita-o, estima-o, e deixa-se adorar. Eis tudo.

-- É d'estes sitios ? Morgado provavelmente.

-- Senhor de um vinculo antiquissimo. E dizendo isto começou a repetir-me os seguintes versos do grande poeta dos Ciumes do Bardo :

«De lyrios e rosas coroemos a enchada
Morgado e não pena dos filhos de Adão :
Mais velha que os sceptros, mais nobre que a espada,
Thesouro é só ella, só ella brasão.»

-- Pelo que vejo é algum cavador. Como se chama esse singular personagem?

-- Salvador, e é bello como o archanjo do seu nome .

N'este momento íamos a voltar uma azinhaga, e eu descobri, a pequena distancia, um vulto.

Quando nos approximámos, o meu amigo disse :

-- Olá! por aqui, e de espingarda ao lado, estás com más tenções, homem ?

-- Não, senhor, respondeu com ar confuso o camponez, que eu reconheci ser o mesmo que improvisára com tanta felicidade, n'aquella tarde no adro da ermida.

-- Á espera dos coelhos, heim ? continuou com bonhomia o meu companheiro.

-- É verdade, divertir um bocado.

-- Ora, deixa lá os pobres animaes, e vae para casa, rapaz, que são horas. Põe o chapéo e corta, por ali é que é o caminho.

-- Estimarei que vossenhorias passem bem a noite, disse o aldeão, com voz trémula e submissa. Depois pondo a espingarda ao hombro, tomou pela azinhaga da esquerda.

Durante este breve dialogo por duas vezes os seus olhos se cravaram nos meus, animados de expressão singular. D'ali a pouco sentimos uma voz fresca, sonora e vibrante, cantando n'uma toada simples, mas repassada de sentimento esta quadra :

Quem vive ausente não póde
Dizer que logra ventura,
Porque uma saudade é morte,
Uma ausencia é sepultura!

-- Ouvel-o ? não te dizia eu que era um poeta ? Aqui tens o desgraçado que adora a Pallida Estrella. Pobre moço ! disse o meu amigo com os olhos humidos de lagrimas.

A bella physionomia do camponez, a desalentada expressão das suas palavras, a melancholia daquella voz que entoava uma canção tão triste, e repetia versos tão cheios de sentimento, commoveram-me profundamente.

O infeliz amava com toda a energia do seu coração virgem, e este affecto sem esperança, augmentava pelo infortunio, como todas as paixões desditosas.

Desejei conhecel-o, e destruir a impressão desagradavel que lhe havia produzido. A pretenção era difficil, porque o seu espirito, alheio á civilisação, é provavel que não se identificasse commigo.

Principiei a recordar-me do modo por que elle me havia olhado. Não me pareceu que a sinistra expressão do odio transluzisse ali. Em fim, como entre os homens que sentem, por diversas que sejam as suas condições, existe sempre um ponto de contacto, que é o coração, não desanimei no meu proposito, decidi-me a procural-o, a fallar-lhe na singela linguagem do sentimento, que elle sabia expressar tão bem n'alguns versos admiraveis.

Como nascêra aquella paixão ? N'uma hora, n'um instante, talvez de fatalidade. Algumas scenas, porém, se tinham dado ; segundo o que me affirmara o meu amigo, a vida da Pallida Estrella haria sido salva duas vezes por esse homem. Ella sabia o imperio que exercia sobre elle, e a prova é que bastaram duas palavras de seus labios para sustar que o adusto e cego amador attentasse contra a minha existencia. Em fim, era indubitavel que os primeiros actos d'um drama, que podia terminar tragicamente, tinham já corrido e eu queria saber com escrupulosa verdade todas as scenas.

Estaria o meu companheiro e amigo nas circumstancias de m'as contar ? É provavel, comtudo preferia que a confissão viesse dos labios d'ella, da musa fascinadora que inspirava o amor d'aquelle grande poeta, que a falta de cultura condemnára á obscuridade.

A questão era melindrosa, as minhas relações com a Pallida Estrella estavam ainda no começo, e seria preciso que se tornassem estreitas, para me atrever a tocar em similhante assumpto.

Uma das vantagens da vida do campo, é a intimidade que se estabelece em breve, entre as pessoas que se conhecem. No fim de alguns dias os laços da amisade mais santa existiam entre mim e aquella graciosa mulher.

Se na minha alma houvesse a mesma vida o mesmo fogo e ingenuidade que havia na alma do camponez, é provavel que a tivesse amado ; paixão desgraçada, porque teria de morrer como a d'elle, sem a mais leve esperança de ser um dia correspondida.

Por inconveniente e vaidoso que fosse o homem, conhecendo a Pallida Estrella, admirando os dotes do seu caracter moral, estou certo que se não atreveria a offender a dignidade d'aquella alma votada ao dever, e quem sabe ? talvez ao sacrificio. Á impressão indefinida que a sua vista me produziu no primeiro momento, seguiu-se a admiração, e não ha sentimento mais suave quando nasce do respeito que nos infundem os dotes moraes da pessoa a quem o tributamos.

A admiração pela belleza physica como provém dos sentidos, degenera em breve n'outros sentimentos mais ardentes, porém, menos duradoiros e menos santos de certo.

Um dia achavamo-nos os dois a pequena distancia da sua casa, perto do Liz e entregues á saudade da hora do cair do dia que se aproximava.

Os ultimos clarões do sol desmaiavam no cimo dos montes, as aves soltavam o hymno da tarde em magoados suspiros, as flores exhalavam perfumes mais suaves e o sussurrar monotono das aguas que referviam nas voltas do rio, traziam-nos ao coração aquella vaga melancholia que nos enleia brandamente os sentidos.

Porque se entristece tantas vezes a alma? Porque tanto a miudo, cae sobre ella um1 sombra que a obscurece toda? Por que razão a vemos nós chorar sem dor e sorrir sem alegria, similhante á creança que enxuga as ultimas lagrimas com o primeiro riso da sua discuidada infancia ? E que na vida do homem, como na do mundo, ha horas de sol e momentos de crepusculo ! O raio vivido de luz apaga-se no desbotado clarão, que precede a noite, e a doce melancolia, que não é saudade só, nem desejo toda, abraça-se com as meigas lembranças do passado.

Estas graves considerações fazia eu quando senti a voz da Pallida Estrella que fallava com alguem. Quem era o interlocutor da minha sympathica e affayel companheira ? Um gentil rapaz que atravessava a ponte situada a cinco ou seis passos do logar em que nós estavamos. Já o conheceu, por certo a leitora, já adivinbou que era o poeta dos campos, o repentista do adro da ermida, o pobre e apaixonado Salvador, em fim. É verdade, era elle que recolhia da lavoira, com a fronte crestada pelo sol e coberta com o honrado suor do trabalho, era elle que voltava das fadigas do dia, e caminhava para a casinha que fumava no principio da encosta, onde a pobre mãe o esperava com a ceia prompta, e os carinhos do mais santo de todos os affectos ; era elle o nobre e altivo camponez que o acaso fizera nascer sob um tecto de colmo, mas que a natureza tornara digno dos explendores de uma regia Queluz ! Passava por ali para deitar um olhar rapido, porém profundo e apaixonado, á casa onde estava para elle a vida ou a morte, a felicidade ou a desgraça.

Salvador, escutando a voz della, estacou de subito e balbuciou com a timidez de uma creança algumas palavras. A brisa da tarde agitava-lhe os cabellos negros e desalinhados, os olhos insinuantes brilhavam com o fogo da paixão, e a arca do peito robusta e espaçosa, via-se bater atravez da grosseira camisa. O que seria nas mãos d'esse homem, o elegante afeminado das nossas cidades, e até o espadachim famoso, se ousassem pôr-se-lhe diante n'um momento de furor?

E comtudo estara ali, submisso, humilde, timido, em presença d'aquella mulher, como o escravo diante do Senhor omnipotente. Depois, como fazendo um grande esforço para escapar á influencia magnetica dos olhos que se cravavam compassivos nos d'elle, transpoz a ponte de um salto, e vimol-o em breve subir a encosta com a rapidez do homem que imprime aos movimentos physicos, a actividade do espirito.

Ambos ficámos calados, e eu interroguei com os olhos o coração da Pallida Estrella.

Ella sem mudar de côr, e com plena expressão de confiança na voz, começou a responder á minha pergunta muda.

-- Ha tres annos, passando um domingo de tarde por ali, disse wlla apontando para a casa onde Salvador ia a entrar n'esse momento, presenciei a scena mais dolorosa da minha vida. Este pobre rapaz tinha por fatalidade caido em sorte para soldado. A mãe acabava de ouvir dos labios do filho a nova cruel, o pae doente e velho, olhava para os dois sem soltar um gemido, mas com tal dôr que cortava a almq. A esperança tinha acabado n'esses dois entes, fatigados pelo trabalho e pela edade.

Entre os gemidos que partiam do mais intimo do coração, a pobre mãe amaldiçoava a miseria que a obrigava a separar-se, talvez para sempre, do filho. Eram precisas algumas moedas para resgatar o tributo de sangue, e elles não tinham nada, além do pão que ganharam com o suor de todos os dias.

Podia valer áquella afflicção immcnsa, disse-lh'o; cairam-me aos pés, a mãe debulhada em lagrimas, o velho e o filho sem força de soltarem uma palavra. Se houvesse sacrificio no que ia fazer, estava paga com usura pela gratidão com que aquella boa gente m'o compensava. O pae morreu poucos meses depois, e este rapaz, que é hoje o unico amparo da pobre velhinha, todos os esforços lhe parecem poucos para me pagar um favor tão insignificante.

Já me salvou duas vezes a vida, expondo a sua com a temeridade de um louco.

Parece-me que poucas almas encontrará tão capazes de gratidão como esta, disse ella sorrindo melancolicamente.

-- De amor ! de idolatria ! disse eu, não podendo conter o grito da consciencia.

-- É verdade, é tudo isso, mais ainda se o póde haver, murmurou ella com tristeza.

Era singular ! O sentimento que domina a mulher, a vaidade, nem de longe transluziu nas suas palavras.

-- E o que espera esse infeliz perguntei eu passados alguns momentos.

Ella fez-se extremamente pallida, e disse como se fallára comsigo mesma :

-- A loucura, ou a morte.

O mez de abril havia terminado, e o primeiro domingo de maio estava proximo. Nas Córtes guardam-se ainda as poeticas tradições dos bons tempos que já lá vão.

Este domingo é destinado a uma festa : A festa de maio. De manhã musica instrumental na egreja, á tarde arraial no adro, descantos e improvisos.

Teriamas outros repentes tão felizes? Os incultos poetas d'aquellas varzeas e encostas encantarnos-hiam nornmente com os primares da sua musa ?

Ao menos eu alimentava essa esperança. Esse dia tão desejado chegou emfim.

O sol esplendido e a viração suave, protestavam contra o proverbio que diz :

Maio pardo e ventoso Torna o anno formoso.

Assim que despontou a manhã, o sino da freguezia principiou a repicar alegremente.

Eu, que sou o homem menos madrugador do mundo, saltei fóra da cama, vesti-me ú pressa, e fui para a janella respirar o ar fresco da manhã.

Acudiram-me á memoria aquelles sentidos e mimosos versos do nosso elegante poeta, e meu particular amigo João de Lemos, que teem por titulo

O sino da minha terra. Comecei a repetil-os :

«Tange, tange, augusto bronze,
Teu som casado commigo,
A cada nova pancada,
Me torna mais teu amigo. »

Sentia, ouvindo aquelles sons, que se precipitavam da encosta, vibrando suavemente pelos eccos do valle, o mesmo que o poeta sentiu quando escutando o bronze da sua terra natal escreveu esta graciosa e inspirada poesia.

Uma saudade vaga e indefinida, porém deliciosa! me comprimia o coração, e se exprimia nos olhos em lagrimas ; lagrimas suaves como os dias da infancia, que n'esse momento se me apresentavam ao espirito esmaltados de variadas côres.

Oh ! o sino da parochia visinha, ao dia santo, quando vibra no retiro dos campos, despertandonos as lembranças da nossa descuidada meninice como é saudoso e grato !

Uma das paginas mais bellas, que conheço n'mn romance escripto em nossos dias foi inspirada por estes sons festirnes e alegres. O auctor do Monge de Cister sentiu, como eu, como muitos outros terão sentido, a impressão profunda desse toque harmonioso, mas o que ponde, foi recrehal-a em paginas admirareis. Elegia da alma do homem, que fatigado pelos amargos e crueis desenganos do mundo, volte ao passado, e procura encontrar n'elle a vida, o perfume e a poesia que não poude achar, nem no orgulho da sciencia, nem nas pompas da riqueza, nem nos ficticios esplendores da gloria !

No momento em que a sua alma vibrou toda sentindo tanger o bronze da aldeia onde fôra creado, de boa mente daria o historiador de Portugal, o romancista do Eurico, o poeta da Harpa do Crente gloria, posição e renome, alcançados a tanto custo; para voltar a esses dias de obscuridade, mas de paz e de encanto.

A voz do meu amigo, prevenindo-me serem horas de almoço, veio arrancar-me do estado agradavel em que estivera durante não sei quantas horas.

-- Vamos, meu philosopho peripathetico, disse elle com a sua voz insinuante, o almoço está prompto, e nós temos de gastar algum tempo com a toilette. Hoje a casaca é inevitarel para a solemnidade da festa.

Retirei-me da jane1la, e como a minha alma se dilatara em sensações vivas, sentiu a necessidade de se tornar expansiva, desejo qe, não sendo no seio de uma mulher adorada, em parte alguma podia satisfazer-se com vantagem como nos braços de um amigo intimo. Dei-lhe um abraço com a sincera diusão da amisade.

-- Bem ; gosto de te vêr assim, homem ! proseguiu elle, estás alegre : quando vieste para aqui, com as tae.s comidas verdes, aves e amarellas, do teu amigo Afatta, parecias-me um esfomeado.

Almoçámos, vestimo-nos e fomos para a festa.

O recinto sagrado estava cheio de gente na maior parte do povo. As luzes brillavam nos altares cobertos de flores, o incenso subia em seru!l::t espiral, suam como um pensamento do céo. O coração dilatava-se contemplando aqnelles rostos desanuviados e contentes, que vinham depôr aos pés das aras santas as suas sinceras crenças, a prece acudia aos labios fermrosa e ardente.

Não se sentia alli a vaidosa ostentação uas cidades, que até se pavoneia no templo, affrontando a humildade de eternos princípios.

Era a profunda fé, o puro enthusiasmo da alma d'aquella pobre gente, que vinha prostrar-se e agradecer á Providencia que lhe promettia, na proxima colheita dos campos, o fructo de tantas fadigas.

Era aquelle o momento de invocar uma das magnificas estrophes do Hymno do trabalho:

« Quem dá graças aos céos ao sol posto ?
Quem lh'as dá vendo a aurora raiar?
É o obreiro; o suor lhe enche o rosto,
Mas a fronte não turba o pesar. »

Se um impio entrasse ali, era impossivel que não sentisse um raio de i n u ni ta graça illuminar-lhe o coração sombrio e triste. A Pallida Estrella viera tambem assistir á festa. Era a rosa explendida, destacando entre as rasteiras e humildes boninas dos campos!

De joelhos, com as mãos erguidas, os olhos postos no altar, a face animada de um colorido que lhe não era habitual, aquella mulher tinha n'esse instante o quer que fosse de um ente divino. A mantilha negra, enquadrando graciosamente o seu rosto, assimilhava-a a essas bellas figuras que nos legaram os pinceis dos grandes pintores hespanhoes. Oh! se aquelles labios tremulos e anhelantes protestassem n'um extasis de amor, constancia eterna a um homem... o que seria a vida para esse homem ?...

Quem sabe?! Talvez o paraiso, talvez o inferno. Eu sei que agradeci intimamente a Deus, haver-me concedido a faculdade de a poder contemplar com o enthusiasmo do artista, que admira um primor d'arte, e nada mais.

Poucas vezes se dá esta circumstancia, poucas vezes podemos prestar culto desinteressado a mulheres como esta, a formosuras taes. Fragil e peccador, o coração do homem quasi nunca admira tanto, sem que o amor venha metter-se de permeio, rebentando quando menos se espera, impetuoso e fatal.

Quando porém, não acontece assim, nada pode haver mais agradam! do que admirar, prestando homenagem á belleza e ás qualidades moraes.

Sente-se bem a gente na intimidade d'uma mulher superior, sem que as más picadas do ciume, os amargos instantes de duvida, as horas de inquietação e sobresalto, que são inevitareis quando o amor existe, nos venham perturbar o espirilo.

Ao sair da egreja, a Pallida Estrella veio alegrar a nossa mesa, dando-nos a honra de jantar comnosco.

Na vespera havia-me entregado o seu album ; eu tinha expressado o sentimento que ella me inspirara, e de que acima fallei, nos versos que passo a transcrever aqui, contando com a permissão da amavel pessoa a quem foram dedicados. São os seguintes:

Sê feliz
Sê feliz ! hontem ainda,
Contem plando o teu semblante
Na sua innocencia infinda,
Porém trbte n'esse inslante,
Roguei a Deus, do mais fundo,
Mais puro do coração,
Que uma lagrima, um desgosto,
Uma sombra d'amargura,
Jámais viesse no mundo
Turbar teu candido rosto.
-- Sê feliz ! toda a ambição,
Que por ti minh'alma encerra,
É ver-te feliz na terra!
Nada mais ! O amor profundo,
O mais violento, embora,
Tem sempre na vida um'hora
De egoismo, e esta affeição,
Que uma só vez na existencia,
No meu peito se accendeu,
Que jámais se ha de extinguir...
Tem a pureza do céo,
Proveio da tua essencia.
Se no presente ou porvir,
Alguem, que te encante a vida,
Existe ou tem de existir...
Não terei zelos ! Unida
Para sempre a outro affecto,
Passarás junto de mim,
EmiJora, direi então :
« Sê feliz ! Toda a ambição,
e Que por ti minh'alma encerra,
« É ver-te feliz na terra. »
E sabes, ao Creador
Dou graças por me haver dado,
Este puro sentimento
Em vez do fogo do amor.
Ai ! se um dia no momento
De ver-te, te houvesse amado !...
Se em vez da chamma suave,
Que em meu coração se inflamma,
Se ateasse aquella chamma...
Se houvesse emfim rebentado
Aquelle fatal vulcão ! ...
Ai ! de mim ! quanta amargura,
Quanta angustia o coração
Não teria já passado!
Porém assim ?... não, ai ! não!
« Sê feliz ! toda a ambição,
« Que por ti minh'alma encerra,
« É ver-te feliz na terra. »

Terminando o jantar, voltamos para a festa .

A tarde declinava, e os improvisadores, como os rouxinoes, começavam a soltar os modilhos inspirados com a approximação da noite.

Salvador era o genio d'aquelles campos. Tinha diante dos olhos a sua musa fascinadora como as graciosas visões da antiga Grecia.

Rompeu o desafio, e o bello camponez começou com voz tremula :

«Quando eu era pequenino:
E m inha mãe me embalava,
Já uma voz me dizia
Que para ti me creava.
Tu dormes, amor tu dormes !
Tu dormes, e não suspiras !
Se amasses como eu te adoro,
Suspiráras não dormiras.

Depois alludindo ao nome da Pallida Estrella proseguiu :

A rosa para ser rosa
Deve ser da Alexandria ;
A dama para ser dama,
Deve chamar-se Maria.

E referindo-se á constancia com que a seguia por toda a parte continuou :

Oh ! pedras d'esta calçada,
Levantae-vos e dizei,
Quem vos passeia de dia
Que eu de noite bem o sei.
Inda que o fogo se apague,
Na cinza fica o calor;
Inda que morra a esperança,
Não morre n'alma o amor.

Quando Salvador acabava de proferir estes ultimas versos, uma rapariga rompendo a multidão, chegou-se a elle demudada e disse-lhe:

-- Salvador, ne para casa que a tua mãe não está boa.

-- Então o que foi, o que lhe deu, disse o pobre rapaz, tornando-se pallido como um defuncto.

-- Eu não sei, Salvador, mas anda depressa por que ella está muito mal, continuou a rapariga desatando a chorar como uma creança.

O camponez em dois saltos tinha abandonado o adro ; a nova espalhou-se em breve, os cantos cessaram, o borborinho balbuciou e a festa perdeu parte do seu brilho.

Nós corremos immediatamente a casa d'elle levando o medico.

A pobre velha caira com um ataque de apoplexia, e não dava acordo de si.

Á meia noite, o parocho da aldeia, o velho e veneravel sacerdote, subia o carreiro tortuoso da encosta e vinha subministrar a extrema-uncção á moribunda.

Sobre a madrugada estava morta. Salvador ao pê do leito onde repousava sua mãe, em pé, hirto e livido, condenava-se sem proferir uma palavra.

Ao lado d'elle, a rapariga que trouxera a fatal noticia, debulhada em pranto, exclamava :

-- Agora o que ha de ser de mim, que já me não fica ninguem no mundo ?...

Salvador ouvind o estas palavras, como se acordasse do letbargo em que jazia submergido, disse correndo a mão pela fronte alagada de suor frio:

-- Deixa estar, fico-te eu ainda.

A rapariga que chorava com dôr tão profunda, era uma orphã que aquella boa gente creara em casa desde pequenina.

O dia que despontara tão risonho para essa familia, terminára emfim pela dor e pelas lagrimas, como a vida !

Lamartine na ilha de Procida, em presença do mar, do céo e dos viçosos campos da Italia, encontrou uma pobre rapariga, filha de pescadores, alheia a toda a civilisação, porém capaz de comprehender, pela delicadeza de sentimentos, pela finura de intelligencia, quanto ha grande e sublime na terra. Mais tarde, o pincel do divino poeta desenhou este retrato, combinando as cores, e dispondo as linhas de modo, que os olhos avidos dos admiradores pasmaram maravilhados, diante ua imagem que n'alguns toques saiu do quadro, suave e graciosa, risonha e bella como as encantadoras ficções que pertencem ao mundo do espirito.

Se a Providencia me houvesse concedido o genio do inimitavel pintor da Graziella, sei que o meu retrato em nada seria inferior ao do poeta, porque o original cuja copia rnu tenta r, rivalisa em tudo com esse modelo que inspirou o auctor das Confidencias. Porém emquanto Raphael, desenhando a Fornarin;:i, fazia um prodigio, um pintor vulgar faria apenas um retrato.

É o que me succede.

Em fim, verei se á luz da saudade posso descrever esta imagem tal qual se me representa aos olhos do espirito. É um retrato de recordação !

Maria, era o nome da camponeza que vimos no ultimo capitulo, debulhada em pranto, com os cabellos soltos, de joelhos aos pés de Salvador, e proxima ao leito onde jazia o cadaver de sua protectora. Maria ! Estrella do mar, rainha , senhora , soberana , lagrima de dôr ! Maria ! o nome mais bello, mais poetico, mais santo do mundo !

Os primeiros clarões da nlYora ua, rorn pemlo no céo, doiravam já o cume dos montes. As plantas estremeciam com o fremito da aragem viva e perfumada, as aves, despertando com a aurora, soltavam os primeiros trilos, preludias do hymno esplendido da manhã, que se clcYa a Deus, inspirado e alegre.

Um raio de sol, brincando pela encosta, veio penetrar, frouxo ainda, no interior do aposento, e beijar a fronte pallida de Maria. Era o osculo de paz que a Providencia mandava áquella pobre e attribulada creatura.

O quadro, até ali sombrio e carregado, com os primeiros alvores do dia tornou-se porventura mais triste ainua. Entre o despertar risonho da natureza, e o somno eterno cl'arJtrnllc cadaver, havia uma antithese tremenda. Era a morte e a vida, era o nada da creatura, que nasce hoje, e expira ümanM, compa rado ao poder eterno do Creador.

Só quem tiver assistido ao extremo anheli to de um ser ndora do, poderú com prehender bem a agonia d'aquelles dois entes que fic Y:.i m sós no mundo. Ouvir o derradeiro adeus, esfriarem-se os labios sobre o cadaver que arrefece, e olhar depois para o céo onde o sol vem rompendo, para os campos que hão de reverdecer em milhoes de primaveras, e saber que nunca mais essa fronte livida e fria se ha de erguer animada e alegre -- é a dôr mais profunda que se conhece.

Pois ha quem a tenha sentido, e quem viva depois ; sabe Deus como ! mas emfim, vim-se.

Deixámos aquella casa com o coração oppresso e triste.

Era facil de adivinhar que a morte da pobre velha ia ser causa d'um drama despedaçador.

Maria, desde pequena, creada ao lado de Salvador, uniu-se a elle pelas estreitas e suaves ligações da amisade. Essas, porém, converteram-se em sentimentos bem diversos, quando o tempo desabroxou a flor dos quinze annos no seu rosto suave.

É o que quasi sempre acontece.

Salvador, então ainda livre d'aquella paixão fatal, respondeu com o primeiro affecto da sua alma nos olhos da companheira de infancia que se cravavam nos d'elle, candidos e namorados.

Chamma suave, mas debil, que desmaiou logo em presença d'esse outro astro scintilante e fascinador.

O desgraçado era poeta, e como tal tinha todas as suas grandezas, e todos os seus defeitos.

Maria era para elle uma irmã, e nada mais. A infeli z conhecera-o, e mulher na abnegação, soube conter as lagrimas, amar em silencio com todo o impeto de um affecto que não é correspondido.

Á sombra da sua protectora podia abrigar-se sob aquelles tectos, sem que a vergonha viesse affrontar-lhe as faces ; porém depois ? Depois se esse homem se não convertesse em seu marido, viver nessa casa, era a deshonra e a ignominia.

A Pallida Estrella devia valer á rôla dos campos: orphã e abandonada !

Na tarde desse dia o prestito humilde saía da casinha da encosta. Era o momento solemne.

A Pallida Estrella estava ali. Salvador no limiar da porta cravava os olho seccos e desalentados na eça que conduzia o cadaver de sua mãe. De repente o camponez estremeceu ; as mãos finas e aristocraticas da graciosa senhora apertavam com ternura as mãos rudes do operario dos campos.

A impressão que o infeliz exprimentou com o contacto daquella pelle suave e delicada, só póde ser comparavel á que devem sentir o peccador transviado, quando o anjo da sua guarda desce ao mundo, e o conduz para a senda do bem.

-- Sei que é meu amigo, Salvador, disse e1la com lágrimas na voz e nos olhos ; e tenho a certeza que me não ha de negar o que lhe peço. Por aquella santa que deixou de existir, e que está no céo, jure-me que ha de casar com Maria. Ella não tem mais ninguem no mundo, e seria uma infamia abandonal-a. Hoje mesmo a levo para minha casa, onde vae ser uma hospeda, uma companheira, uma amiga.

Salvador caiu de joelhos, e proferiu n'um paroxismo de lagrimas, o juramento que ella lhe pedira. D'ali a pouco Maria deitava um olhar rapido para a casinha onde fôra creada e firmada ao braço da Palida Estrella descia lentamente a encosta.

O homem nascido n'uma condição humilde, ainda que a fortuna o eleve ás altas regiões da sociedade raras vezes ganha esse tacto finíssimo, que distingue o aristocrata de velha raça.

Atravez do vestuario esplendido do grão senhor improvisado, respira quasi sempre e aspereza primitiva. O exemplo é facil e abundante.

A cada hora atravessam pelas ruas desta cidade, em sumptuosas carruagens, os barões e os viscondes de hontem. A casaca em consorcio incestuoso com os hombros espaduados, procura desquitar-se do dono; o repu blicano joanete revoltando-se contra a tyrannia da bota de polimento, ergue a democratica e orgµlhosa cabeça ; o pescoço vinculado aos collarinhos, não é senhor do mais pequeno movimento, as mãos ossudas e populares estoirando a pellica das luvas brancas, andam á procura de uma posição cem vezes mais difficil para ellas do que essa que havia sonhado o nosso amigo Jeronymo Paturot.

As mulheres não succede o mesmo ; é rara aquella que em pouco tempo de convivencia com a grande sociedade não adquire a educação mais fina, adivinhando, por assim dizer, o atticismo e os apices da vida elegante.

É que em geral estes entes adoraveis possuem sempre aquelle sexto sentido, que é propriedade dos artistas e poetas.

Observem o barão, e se é casado, olhem para a baroneza, ambos plebeus da raça, porém que differença ! ella affavel, elegante, recebendo com um sorriso chistoso as provocadoras homenagens de cem admiradores, como uma condessa de alta comedia ; elle, engomado, esquerdo, paspalhão como um gaJa n de força.

Estas considerações occorreram-me ao lembrarme de Maria, da bella e ingenua camponeza que a Pallida Estrella levára para sua casa naquelle dia de luto e de lagrimas.

A flor das agruras transplantada para o jardim sem perder a simplicidade nativa, dobrou em prefume e em formosura. Passado pouco tempo a pobre aldeã era outra ; outra na educação, a mesma no sentimento, e d'aqui provinha toda a sua desgraça.

Agora via claro no seu espirito ; podia comprebender melhor toda a intensidade e fatalidade da paixão que a dernran. Os vagos presentimentos que salteavam a sua alma haviam-se convertido em cruel realidade.

O maior castigo para a creatura humana é possuir intelligencia e sentimento. Talvez pareça absurdo, mas é uma triste verdade. A cabeça é o algoz implacavel do coração, quando este deseja, quando ama, quando aspira para um mundo melhor, rnm a razão, e n'um sopro destroe as suaves chimeras de que se alimentou durante alguns dias de illusoria felicidade. Á superficie a vida ainda tem alguma coisa de boa, no fundo existem sempre lagrimas e desenganos crueis.

Pobre Maria ! a mão protectora que a amparava no mundo, mão que ella devia beijar com o sincero affecto da gratidão, era a mesma, que sem o querer, aniquillava as suas illusões mais queridas.

Quando os olhos intelligentes da Pallida Estrella se volviam orvalhados de lagrimas para os olhos d'ella, não sentia a infeliz que essa chamma fascinadora lhe roubava o affecto daquelle que amava agora com enthusiasmo e adoração supersticiosa ?! Quando Salvador, diante do seu idolo, por cega obediencia a elle, deitava um tibio olhar de piedade á companheira dos tenros annos, quanta humilhação para o seu orgulho de mulher, quanta amargura para a sua alma capaz de levar o amor e a abnegação até ao sacrificio !

Uma tarde a Pallida Estrella pegou nas mãos de Maria, e levando-as aos labios disse-lhe :

-- D'aqui a um mez parto para Lisboa, vou passar ali o inverno ; temos de nos separar, e é preciso que eu veja realisar-se antes disso uma coisa que vivamente desejo. Salvador fica tratando das propriedades que meu marido comprou aqui, e tu Maria, tomando conta d'esta casa , que vou deixar por alguns mezes. Ficam os dois, mas é preciso que fiquem casados.

Maria estremeceu toda como o canavial norn quando o sacode o vento. As faces descóraram, e os labios frios não podiam articular uma palavra.

A Pallida Estrella , com os seus olhos de lynce, lia no fundo daquelle nobre coração.

Passados instantes proseguiu com mais affecto com mais ternura ainda na voz :

-- Não ha segredo para duas amigas, Maria, para duas irmãs como nós. O que tu me não disseste, adivinhei-o, como adivinhei o que outros calaram sempre! Se ha no teu coração algum sentimento para mim, se me julgaste alguma vez culpada, porque o não dizes, porque não desafogas n'este instante commigo ?

A camponeza, medindo n'um relance quanto havia grande n'estas palavras, que só por abnegação, por nada mais saíam dos labios da elegante fidalga, caiu-lhe aos pés e n'um paroxismo de lagrimas exclamou :

-- Não lhe posso pagar senão com um sacrificio ; estou prompta a fazel-o ; vou casar com esse homem que já me não ama !

Depois aquellas almas rna ram uma para a outra , e abraçadas pela dôr, rernlaram os seus mais intimos segredos.

Bella porém melancholica como o astro da noite , a Pallida Estrella ergueu a fronte e apontando para o céo onde brilhava ainda o desmaiado clarão do crepusculo, disse :

-- Confia em Deus, minha filha, Salvador que tem uma nobre alma, quando comprehender bem a tua, ha de amar-te.

Que teria feito no mundo este anjo para qne a Providencia lhe impozesse o tremendo castigo de se sacrificar sempre pelos outros ! O seu primeiro affecto, o unico, occultara-o no intimo d'alma e, sorrindo com a paciencia dos santos, aceitara um casamento contrario aos seus desejos, para salvar seu pae. Depois vendo Salvador, pobre, obscuro embora, porém rico de coração, brilhante de intelligencia e apaixonado por ella, nem por vaidade ao menos, por este sentimento a que raras vezes é superior a mulher, balbuciou, cedeu um instante.

Agora para vêr se com a sua ausencia podia terminar a fascinação d'aquelle desgraçado, abandonava o suave retiro onde viera refugiar-se, rnlta ya a um mundo que tinha perdido já todos os encantos para ella.

Poucrrs mulheres são capazes de tanto, é verdade, mas emfim, ha algumas; homem é que não ha nenhum. No campo de batalha, podem sacrificar-se á gloria sob o nome pomposo de amor da patria ; no meio das revoluções morrem por uma idéa grande que os torna illustres na posteridade ; encaram sem tremer o cadafalso, ainda por ostentação de orgulho ; mas com a abnegação de tudo, na obscuridade profunda, vôtar-se ao martyrio e soffrel-o em silencio, só a mulher !

O verão estava acabado.

Os primeiros dias do outono começavam a sorrir, melancholicos e suaves. Sem saber como, tinham corrido para mim os mezes no aprazivel retiro d'aquella graciosa aldeia.

Vira desabrochar as flores com a primavera, córarem os fructos com o estio ; gosára da benefica sombra dos arvoredos nos dias calmosos de agosto, e achava-me em fim na mais sympathica de todas as estações do anno - no pallido outono. Quando hoje, passado já algum tempo, volvo um olhar de saudade para essa epoca, diz-me amargamente a consciencia que não voltará decerto outra tão tranquilla e tão feliz para mim.

Um amigo intimo, alguns livros, :i conversação espirituosa da Pallida Estrella , o campo, as encostas cobertas de vinhas, as aguas do Lis. as harmonias variadas da natu reza, a luz viva e alegre do alrnrccer, a luz tibia e melancolica do crespulo, a esperança e a saudade, estes dois sentimentos que em todas as situações, em todas as edades avivam, despertam ou adormecem, porém que jà mais se extinguem no coração humano, rebentavam na minh'alma sem causa ils rnzes, mas sempre gratos, sempre suaves e queridos.

Sentia profundamente, e a vida é sentir muito, nada mais ! Quando o homem despende este precioso capital para comprar a experiencia, mal sabe que fica arruinado.

Mas, emfim, certas organisações, por mais desenganos que levem, raras vezes chegam a exhaurir de todo o thesouro da sua sensibilidade : sempre ficam algnns affectos por onde o coração se dilata agradavelmente, e algumas chimeras com que a imaginação se alimenta !

Salvador era outro. Os brilhantes improvisos tinham acabado, a sua fronte, ordinariamente annuviada, procurava abrir-se com um sorriso, quando Maria estava ao pé d'elle. Ella na cegueira do seu affecto, animava-se ainda com esse clarão transitorio, como a timida violeta do valle se anima á restia esmorecida do sol n'um dia carregado e triste do inverno.

A esperança, a risonha companheira do infortunio, acordava na sua alma e n'algumas horas de suaves illusões, a apaixonada camponeza dizia comsigo mesma :

-- Quando elle souber como eu o amo, quando tiver a certeza de que ninguem é capaz de lhe querer com tanto extremo, é impossivel que se não esqueça de tudo, e que me não ame tambem !

Pobre pomba ! não se lembrava que Salvador era homem e sobretudo que era poeta. Na innocencia da sua alma, não comprehendia que as caricias, os desvelos, a ternura e afagos constantes, não são nada para esta raça de orgulhosos egoístas, que desprezam a gloria facil, ambicionando só o difficil, o impossível ás vezes ! A dedicação do seu amor podia conquistar a amisade e a gratidão d'aquelle homem ; porém, é provavel que nada mais.

O dia aprasado para o casamento chegou.

Ás dez horas da manhã, eu e o meu amigo esperavamos no adro da freguezia que chegassem os noivos, a Pallida Estrella e seu marido, que deviam servir de padrinhos. Estavamos tristes como se fossemos assistir a uma ceremonia funebre. D'ali a pouco apparecera m os actores d'aquelle drama solemne que termina tantas vezes tragicamente.

O céo estava sereno, o sol brilhante, os bosques ainda verdes, porém apesar de tudo, a natureza respirava uma tristeza infinita.

Salvador vinha pallido, e um tremor forte, mas rapido, agitava de instante a instante todos os seus membros. Maria modesta, simples, mas graciosamente vestida, brilhava em toda a pureza de sua ingenua formosura. N'esse momento parecia que haviam desapparecido do espirito as negras sombras que o carregavam. Como se a felicidade lhe houvesse feito esquecer o passado, a sua alm'a entregava-se toda ás enganadoras esperanças de um futuro melhor. As faces ordinariamente pallidas, estavam n'esse dia accesas de casto rubor, que sobe do coração da donzella, quando vae depôr aos pés dos altares, a corôa immaculada da sua virgindade.

A tristeza, que me cerrava dolorosamente a alma, augmentou quando olhei para ella !...

Senti o desejo de arrancar a victima ao sacrificio ; de lhe dizer :

« Não vás unir o teu coração, que palpita ancioso de amor, a outro coração que bate frio e desalentado. Antes a ausencia, antes a morte, do que existir n'uma agonia que deve protrair-se, sabe Deus, por quantos annos !»

Emfim era já tarde. E depois, quem sabe ? Talvez que os meus presentimentos me enganassem ; talvez que ella chegasse a ser feliz, porque talvez esse homem viesse a amal-a ainda.

A Pallida EStrella, como se adivinhasse os meus pensamentos intimos, disse-me:

« Elle é homem, ha de esquecer-se; ella é mulher, ha de sabel-o captivar. »

Dentro de pouco a ceremonia havia terminado. Os dois esposos saiam da egreja, e eram recebidos, ao passarem por debaixo dos arcos de verdura, decorados de fitas, que lhe haviam levantado, segundo os costumes da aldeia, por uma chuva de confeitos, com que os seus amigos e conhecidos os festejavam.

N'esse dia de tarde, despedimo-nos da Pallida Estrella, promettendo-lhe que nos veríamos dentro de pouco em Lisboa.

Eu tencionava ainda passar o resto do outono nas Córtes. Maria afogada em lagrimas, não podia separar-se dos braços d'ella. O coração humano ninguem o entende ! A pobre camponeza tinha sinceras saudades da mulher, que, apesar de innocente, era comtudo causa da sua desgraça.

Salvador estava ali, mudo e immovel, como estatua. Quando a caleça partiu, quando desappareceu na volta da estrada, vi-o voltar o rosto, e duas lagrimas, que havia tempo rolavam nas orbitas, assumarem em fim tremulas ás palpebras.

Neste momento Maria chegou-se a elle, o infeliz caiu n'aquelles braços, que o apertavam com extremo ao peito, e sabendo -- santo Deus ! -- que elle chorava assim por outra !...

No abraço estremecido e tenaz, nas lagrimas que deviam ser de ciume e de raiva, mas que eram de resignação, estava emfim a mulher!

Ha dias achámos esta delicada observação n'um elegante escriptor francez:

« A mythologia quando tirou Venus das aguas do mar, creou um symbolo, porque não ha verdadeira formosura, sem ter algumas pedras de sal no espirito, e algumas tempestades no coração. »

É assim : as linhas puras, o colorido esplendido, a correcção acabada de formas, não constituem por si só a formosura, é preciso que o sopro da intelligencia anime as feições, que o sentimento imprima no rosto certa graça e sympathia pa rticular.

O sal no espirito, as tempestades no coração, era exactamente o que tinha a Pallida Estrella. Um sorriso desabrochando nos labios, era a graça, uma lagrima tremendo nas mimosas palpebras, era o sentimento, era a paixão.

Uma despedida é sempre triste, seja embora entre pessoas que se conhecem de pouco tempo e cujas relações não são das mais intimas.

Apertando a mão d'aquella mulhr, superior pela intelligencia, e superior pelas qualidades moraes, dizendo-lhe adeus, senti-me vivamente comovidos. A ave candida, que alegrava com a sua voz o bosque e os campos, a estrella da tarde, a terna e suave confidente de tantas horas, em que a melancolia nos cerrava o coração, havia-nos finalmente abandonado.

Quando a noite caiu, eu e o poeta acahamo-nos profundamente tristes, era o momen to de exclamar como o can tor das harmonias :

Un seul être vous manque, et tout est depeuplé !

Passado um mez chegou o tempo em que eu devia abandonar as Córtes, e regressar a Lisboa.

Era uma despedida para mim bem custosa. O coração tinha-se habituado aos suaves affectos d'aquella amavel familia, e custava-lhe muito a desprender-se do ninho onde fôra tão bem tratado.

É este o momento de dar um sincero testemunho de gratidão, á respeitosa dona d'essa casa, retribuindo-lhe com viva saudade, as lagrimas que vi brilhar nos seus olhos bons e intelligentes quando me disse adeus. Se percorrer um dia com a vista estes rapidos apontamentos, quero ao menos que saiba, que nem a distancia, nem o tempo, têem obliterado no meu espirita a memoria d'esses dias de paz e de felicidade.

Ao partir com o coração comprimido por tristes saudades, encontrei a pequena distancia da casa, Salvador e Maria, que esperavam por mim. Eram mais dois amigos que ia deixar, e quem sabe ? talvez para sempre !

O camponez sem força para soltar uma palavra, olhou-me, e nesse olhar havia uma tristeza tão funda, um desejo tão vivo de me acompanhar !... depois deu dois passos : apertou-me a mão e disse-me em voz baixa :

A ausencia tem uma filha
Que tem por nome saudade,
Eu sustento mãe e filha,
Bem contra minha vontade.

Pobre louco !

Maria teria adivinhado o que elle dissera ? O que não adivinha a mulher quando ama ! Tambem ella fitou os olhos em mim e parece-me que lhe ouvi dizer : « Eu, sou a mesma infeliz. »

O sol declinava ; e aconselharei a todos que pão procurem este instante para uma despedida ! As sombras vão envolvendo os campos, as aves soltam pios lamentosos, as flores pendem com o crepusculo, a esperança parece que morre de todo na nossa alma !... Oh ! que hora esta para um adeus ! Cheguei a Lisboa. A Pallida Estrella brilhava no meio do mundo elegante da capital. Nos camarotes dos theatros, nas soirées, nos bailes, por toda a parte em fim, era o alvo das attenções, e mais d'um conquistador assoldadado, na sua pertenciosa e louca vaidade, nutria lisongeiras esperanças. Ella, nem affectava desdem pelos que a admiravam, nem se desvanecia com tantas demonstrações de enthusiasmo ; era a mesma singeleza grave, a mesma altiva dignidade, o mesmo olhar sereno e triste !

As línguas farpadas d'esta cidade de senhoras t'isinlws, essas mesmas se abstiveram de lhe fazer algumas das suas perfidas insinuações.

Admira, porque aqui não se respeita ninguem.

Havia pouco mais de tres mezes que eu tinha abandonado as Córtes. Um dia de manhã recebi uma carta de Leiria, abri-a e li o seguinte :

« Janeiro de 18...

« Meu bom amigo

« Escrevo-te com o coração apertado de dôr, e o espírito profundamente abatido. Acabo de chegar do cemiterio, onde fui acompanhar o cadaver da infeliz creança que tu aqui conheceste, da desventurada Ma ria.

« Não esperou pela primavera ; a tímida violeta expirou no inverno. Nem os raios alegres d'este sol, nem o ar vivo d'estas encostas a puderam salvar.

« Os medicas não souberam ex plicar a sua morte. Morreu de tristeza : é o que posso dizer ; expirou sem que as contracções da agonia transtornassem aquella face candida. E comtudo, eu que tenho assistido a tantas mortes, nenhuma me produziu sensação tão profunda como a d'esta infeliz, cuja vida foi infortunio, ínfortunio e nada mais.

« Nos primeiros dias do sen casamento quiz ainda illudir-se, chegou tal vez a illudir-se por algumas horas, suppoz que seria possível conseguir a coisa mais difficil que se conhece : Accender o fogo de uma religião que acabou !

« O desengano veio cedo. Por cumulo de infelicidade Salvador tratava-a bem, e tinha-lhe affecto de irmão, o que era a peior de todas as desgraças para ella ! Antes o odio, porque se luta ; porém, fitar com o ardente enthusiasmo do amor os olhos que se adoram, e não encontrar nelles mais do que a chamma amortecida da amisade, não ha dôr que se lhe eguale, nem martyrio a que possa comparar-se.

« Maria comprehendeu que a sua existencia era inutil ao pé d'aquelle homem, a quem a ausencia da Pallida Estrella não tinha feito senão accender cada vez mais o fogo da sua paixão desgraçada.

« A vida para ella era um tormento ele todos os dias, de todas as horas, de todos os instantes. Não podia lembrar-se do suicidio porque era religiosa.

« O que lhe restava pois ? Esperar e soffrer até que a morte viessê dar-lhe o osculo da eterna paz ! Assim foi. Compassiva a Providencia abriu-lhe os braços, e o anjo entregou-se n'elles com o sorriso da resignação nos labios, e os ollos postos no céo, que a devia compensar das amarguras por que passára na terra !

« Póde haver uma elegia mais simples e mais sentida do que a vida d'esta mulher, orphã desde o berço?!

« Imagina agora Salvador, outro desgraçado, de outro genero, porém não menos infeliz, como veria o longo expirar da pobre creança !

« A dôr e os remorsos, como o furacão repentino, caíram sobre a sua alma. Hontem de tarde desappareceu ! Temol-o procurado em vão por toda a parte. Provavelmente a estas horas está morto.

« Como é o mundo ! Olhando para este céo, contemplando este sol vivificador, quem dirá que a vida tem scenas tão dolorosas, instantes de tanta amargura !

Teu

R. C. »

Pode julgar-se da impressão que me produziria a leitura d'esla carta. A primeira idéa que me veio ao espirito foi a do estado em que ficaria a Pallida Estrella quando soubesse o tragico desenlace d'este drama, em que ella, por fatalida de, representara o primei ro papel.

Vesti-me á pressa e corri a casa d'ella.

Era um dia de inverno, d'estes em que o céo desassombrado e sereno da nossa terra faria, como diz algures o auctor da Historia de Portugal, embatucar de despeito os robicundos e emparesados filhos da Grã-Bretaoha, a quem a Providencia não concedeu os primores d'este clima.

Era um bello dia esse, em que recebi a tristissima nova da morte d'aquella mulher tão moça, tão ympatliica e tão infeliz !

Cheguei a casa da Pallida Estrella.

-- Sabe já o que aconteceu ? disse ella estendendo-me a mão fria e tremula.

-- Acabo agora mesmo de receber uma carta de Leiria ; pobre creança !

-- As amarguras acabaram para ella, a sua alma purificada pelo martyrio está no céo ; mas o outro desgraçado ? ! Sabe que desappareceu abandonando a casa no mesmo dia que ella expirou ?

-- Sei tudo ; provavelmente suicidou-se.

-- Peior, se é possivel haver coisa peior. O desgraçado está louco.

-- Como o sabe?

-- Adivinhei-o. Está a estas horas já no hospital de Lisboa.

Pela primeira vez a physionomia da Pallida Estrella mostrára a expressão de dôr frenetica e desesperada.

A sua heroica abnegação parecia têl-a abandonado. Pouco a pouco foi serenando, e duas lagrimas havia muito retidas no coração bailaram nos olhos, correndo finalmente ao longo das faces.

-- Soffro muito, disse ella depois de alguns momentos de silencio, soffro muito, meu bom amigo, porque sou a causa de tamanhas fatalidades. Deus sabe que fiz tudo para as remediar, mas o destino foi implacavel.

Procurei dar-lhe algumas consolações, porém debalde ; apenas consegui proferir certas banalidades, como succede sempre, quando pretendemos attenuar os males alheios nas horas de dôr suprema.

Ella conheceu quanto era difficil a minha situação e disse-me sorrindo no meio das lagrimas :

-- Acompanhe-me, venha dar um passeio, o dia está magnifico, e eu preciso sair por força d'esta casa.

Fomos vêr o campo onde as searas começavam a poll ula r com os raios beneficos do sol.

Ella, que fazia voar as horas com a sua conversação sempre variada e espirituosa, n'essa tarde apenas soltou algumas palavras. Quando chegamos a casa disse-me :

-- Amanhã venha ver-me : quero fazer uma visita, mas não tenho animo de ir só. Adivinha a quem será, não é assim ?

E depois, sem esperar pela minha resposta, agarrou-me das mãos, e continuou atravez de uma torrente de lagrimas que lhe embargavam a voz :

-- Quero vêr Salvador, o desgraçado que está louco, e aqui, no hospital de Rilhafolles.

Olhei assustado para ella, receiando que a infeliz fosse tambem victima de um accesso de loucura.

Pareceu comprehender-me e disse :

-- É um presentimento, mas tão vim, tão profundo que não póde ser mentiroso.

-- Ha, porém, tão pouco tempo ainda que se deu aquella fatalidade...

-- Ha cinco dias, e não sei, mas tenho como certo que é. A estas horas, Salvador está em Lisboa, no hospital e doido !

Era prodigiosa a convicção com que ella proferia estas palavras.

No dia seguinte apresentei-me em casa d'ella e, apesar da triste disposição do meu espírito, do receio que me produzia a idéa de me encontrar entre aquelles dos entes, se de facto Salvador estivesse alienado como ella o presentia, confesso que tinha grande curiosidade de assistir áquella scena. Era a curiosidade que attrahe o viajante para o abysmo que se abre a seus pés -- negro, pavoroso, profundo.

Ás onze da manhã saímos de casa ; ás onze e um quarto estavamas á porta de Ri lhafolles. Entrámos nesse estabelecimento, onde o zelo de um homem de sciencia tem feito desapparecer até onde é possirel o horror que inspiram as creaturas que a Providencia puniu na terra com o maior de todos os castigos.

A Pallida Estrella entrou firmada ao meu braço: tremula e descorada. Atravessamos os corredores, e penetramos nas primeiras salas.

De repente senti-a estacar soltando um pequeno grito. Sobre a direita estava um quarto ; ella cravou os olhos na porta que se abriu subitamente deixando vêr a bella figura de Salvador, com os olhos scintillantes, as faces accesas pela febre e os cabelos em desordem.

A Pallida Estrella não estremeceu nem de leve ; continuou a fital-o com olhos pasmados e a respiração suspensa. Elle apontou para ella, e soltando a voz sonora começou a repetir estes versos:

Por te amar perdi a Deus,
Por teu amor inc perd i,
Agora vejo-me só,
Sem amor, sem Deus sem ti !

Depois desatou n'um choro que cortava a alma.

A Pallida Estrella tinha finalmente succumbidoá dôr ; tomei-a nos braços, porque a vi prestes a perder os sentidos.

N'esse mesmo dia Salvador passava para um quarto só, e tinha um enfermeiro ás suas disposições. A Providencia compadeceu-se daquelle desventurado ; - no fim de três dias estava morto.

Passado pouco tempo, a bordo do vapor do RibaTejo, defronte da Azambuja, n'uma bellissima manhã de primavera, despedia-me com um estreito aperto de mão da Pallida Estrella que regressava finalmente para a sua casa das Córtes.

A vida desta mulher tão bella e tão sympathica, ia ser d'então em diante o que fôra até ali -- um constante sacrificio ao dever.


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TextGrid Repository (2023). Portuguese ELTeC Novel Corpus (ELTeC-por). A pálida estrela: Edição para o ELTeC. A pálida estrela: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001D-4486-D