Memorias d'um Doido

(Romance contemporaneo)

Original

DE

A. P. Lopes de Mendonça

(3.a EDIÇÃO)

LISBOA

Empresa Lusitana Editora

Calçada do Ferregial, 23

Prologo da segunda edição

Sem alterarmos nem a acção do romance, nem os sentimentos dos personagens, suppozemos que poderíamos dar lhe maior desenvolvimento, n esta nova edição, expurgando-o das negligencias de est>lo, e das declamações um pouco vagas e obscuras, que revelavam a inexperiencia do escriptor, e o improviso que exigem os trabalhos da imprensa.

Deixariamos realmente expirar esta obra, que é mais um esboço do que um romance, se o público, justa ou injustamente, não nos indicasse a necessidade de uma nova edição, por reiterados pedidos.

Mais do que nenhum, este ensaio carece de ser precedido da certidão de edade do auctor. Tinha elle pouco mais de Vinte annos, quando se publicaram as -- Memórias d'um doido -- pela primeira vez -- nas paginas da Revista Universal.

Abril de 1859.

A. P. Lopes de Mendonca.

CAPITULO I

A procissão de Corpus Christi

O romance contemporâneo, se não existe entre nós, como n'outros paizes, é porque a sociedade realmente não favorece, pela sua situação, este genero litterario.

A vida é tão limitada, os acontecimentos ficam sendo tão nossos conhecidos, os typos confundem-se tanto com as individualidades, que se receia sempre, como se diz em phrase popular, talhar uma carapuça , ou offender os melindres de tantos que não vivendo em paz com a sua consciencia, abominam as liberdades da critica, e os devaneios pouco respeitosos dos escriptores.

Esta nossa sociedade, que consome a sua seiva intellectual, na analyse mais ou menos espirituosa do proximo, parece que tem horror de si mesma, ao vêr-se retratada. Se Deus nos concedesse um Balzac, ter-nos-hia feito talvez um favor esteril: o celebre romancista, em França, é um grande observador de costumes; em Portugal é de crêr que nào passasse de um libellista atrevido, um d'estes talentos sem futuro, que malbaratam os dotes eminentes da intelligencia, nas reuniões da sociedade, deixando por unica tradição de gloria, uma ou outra anecdota, de chiste duvidoso.

N'um paiz que fica quasi immovei, no meio das suas revoluções, a imaginação é uma faculdade que se dirige mais á analyse dos sentimentos, que ao estudo dos caracteres, e da vida social: e d'ahi, o gran de número dos nossos poetas lyricos, comparado com as illustrações d'outro genero :

a imaginação do artista não pode libertar se das influencias, que a comprimem, e soltar um vôo mais ousado. Os romances entretanto tornaram-se a leitura quasi exclusiva do nosso público, e não será difficil descobrir a razão do phenomeno.

O romance é como um espelho, não diremos um espelho de rara fidelidade, aonde a sociedade mirando se e reconhecendo-se, vê a realidade ornada com todos os prestigios da poesia, e ao mesmo tempo as paixões e os desejos a que accommettem, purificados e absolvidos por um esforço de imaginação.

Mais agradavel isto se torna ainda nas nações pequenas, aonde todos se conhecem, aonde mais ou menos todos somos primos, e cuja litteratura sentimental se espraia sobretudo em necrologios plangentes, e em pomposas elegias.

A campa é entre nós um verdadeiro campo de egualdade. O vicio e a virtude, a dignidade e o servilismo, os nobres affe ctos como os ruins instinctos tudo se confunde no mesmo bana! elogio, e qualquer miseravel trapaceiro, quando Vê erguer-se a morte deante dos olhos, quasi que póde esperar que o convertam em heroe preclaro n'um artigo de jornal.

Vamos á procissão de Corpus Chnsti:

e quem se não lembra d'ella, por pouco tempo que houvesse habitado em Lisboa ?

A procissão, a nosso Vêr, attinge dois fins do mesmo modo importantes no bastardo regimen que por tantos lados se prende ainda ás obscenidades e misérias do velho absolutismo: satisfaz a uma tradição, e offerece um pretexto para que os barões velhos e novos se arreiem com as suas vistosas condecorações, dando pasto á vaidade que os caracterisa As janelas adornam-se d'aquelles velhos damascos franjados de ouro mareado, as ruas cobrem-se de areia Vermelha, o exercito estende-se em alas, o povo apinha se nas ruas, e os elegantes matriculados, e os que o não são, passeiam a caVallo- olhando as sacadas apinhadas de senhoras, que se não poupam ao prazer de serem admiradas e vistas.

O dominio mourisco deixou grandes vestígios nos nossos costumes, e o primeiro e mais saliente d'elles era a clausura a que se condemnavam as mulheres, que ainda mais se aggravava quando no clássico capote e lenço, ficavam impenetráveis aos mais atrevidos olhares.

Lisboa só depois do governo liberal, é que consente que o sexo feminino passeie nas ruas, frequente os passeios, suspire pelos bailes, e escabeceie melancolicamente nas philarmonicas, ouvindo duetos desafinados. As mulheres só appareciam nas procissões, e nas egrejas, e suppunham se felizes quando em vez de irem á missa das almas, podiam figurar na missa do dia.

A procissão do Corpo de Deus é ainda hoje uma festa verdadeirameníe nacional, e que faz correr de todos os pontos da cida de, e das povoações visinhas o povo, que desde o romper da manhã toma logar para vêr o S. Jorge e o Homem de ferro , duas entidades, que são já mythos, e que servem de thema ás observações mais ou menos engenhosas das Evas curiosas do bairro.

As saloias e saloios suppunham um desar para a sua prosapia, o não haverem assistido uma ou duas vezes na sua Vida a essa procissão de celebrada memória, cujas maravilhas se transmittem, pela tradição, de filhos a netos.

Acabavam de dar onze horas: as ondas de povó vagueavam curiosas e impacientes, e os mais atrevidos da plebe injuriavam os cocheiros quando ds carruagens procuravam abrir caminho: os namorados iam tomando logar pelas esquinas, com aquelle ar meio terno e meio parvo, que os aponta desde logo á analyse dos que gostam de saber das vidas alheias ; as senhoras começavam a abanar-se, e a tapar os inevitáveis abrimentos de bocca, que um madrugar excepcional sempre produz.

No momento em que passava, rapido como um sonho, um trem magnifico, decerto pertencente a personagem da alta sociedade, pelo bom gosto dos adornos, e pelo aspecto arrogante dos cavallos que espumavam na carreira, um mancebo aproximou avidamente a cabeça, lançou um olhar febril á muiher que olhava com indifferença quasi desdenhosa os espectadores, e bradou com expressão apaixonada : -- «É elia!» O gesto, e a palavra resumiam um d'esses dramas pungentes de intima poesia, que vivem escriptos no coração d'um homem, e que só podem comprehender as intelligencias superiores, desterradas pelo destino, a uma posição obscura, e inferior á sua ambição, e ao seu talento.

É que aquelle mancebo, pobre, ignorado, e perseguido pela miséria, amava uma mulher rica,-nobre e poderosa: é que entre elles havia um abysmo, que só um milagre do destino poderia fazer desapparecer: não eram só as distincções sociaes que separavam aquellas duas existências, um outro sentimento que vive quasi sempre unido aos dotes de uma alma altiva--o orgulho.

Antes que o homem tenha consciencia do que vale--soffre grandes luctas, e frequentemente descrê de si mesmo.

Incertesas cruéis, que devoram o pensamento, e que só se acalmam, quando um grande successc, uma circumstancia inesperada, nos manifesta o que somos e o que podêmos.

O amor fôra para Mauricio uma revelação. D'um banco do theatro vira um dia n um camarote uma donzella vestida de branco, e que realisára n'um relance todas as vagas idéas que elle formava de uma formosura angélica e innocente. Apenas a viu, sentiu essa commoção electrica, symptoma de um amor profundo, vehemente e exclusivo.

Mas o que era elle, zero social, para poder levantar os olhos para essa mulher, e dizer-lhe: -- «Amo-te, como amo a Deus, como amo a gloria, como amo as magnificências da naturesa!» Ás vezes, via a apparecer em sonhos, sorrindo com o sorrir desdenhoso que frequentemente pousa nos labios das mulheres orgulhosas: e o rubor subia-lhe ás faces, e sentia-se mesquinho e pequeno deante d'aquelle despreso, que o anniquilava.

Então perguntava a si mesmo se Deus o destinára ao supplicio de uma vida obscura; se não chegaria um dia, em que dissesse a essa mulher:--«Gloria, poder, fortuna, tudo quanto alcancei pela energia da minha vontade é teu, e eis-me aqui a teus pés pedindo que o acceites, em nome do meu amor!» E então conheceu que Deus lhe concedêra essa celeste faisca, que nem sempre luz pura e desassombrada, e que os olhos do mundo ás vezes só devisam quando as illusões da vida se desfolham, ou quando está próxima a hora da eterna viagem.

Cesar lendo a Vida de Alexandre, chorava de enthusiasmo e de angustia por se sentir pequeno deante de tanta gloria, e por reconhecer que na mesma edade apenas maravilhára os elegantes de Roma pelas suas loucuras: mas poude depois, com penna tão Veloz como a espada, historiar a brilhante campanha das Gallias, que ainda hoje a posteridade admira.

Mas que póde fazer um homem, quando o seu paiz adormece em somno lethargico, quando só se ouve o zumbir das pequenas intrigas, e das mesquinhas paixões, quando a gloria foge áos esforços da mais poderosa e energica vontade? Mercadejar com a intelligencia no traficar da vida politica, servir a mediocridade, para a dominar depois, ou esperar tudo da fatalidade dos acontecimentos?

Mas o tempo nada respeita: n'esta carreira aonde as dôres se multiplicam, deixa- se cada dia um nobre sentimento, e quando se póde attingir o alvo, já a alma está gasta e cançada, já nos sentimos frios e inertes perante as magnificências que outr'ora nos seduziam a imaginação.

Tal era pouco mais ou menos a situação moral do personagem que fazemos entrar em scena. Era a mulher que elle so- nhára que passava esplendida e bella, mas que nem por esmola lhe lançava um desses olhares, que ao menos reanimam a esperança, e não nos fazem descrer de todo da felicidade!

Cruel supplicio! Elle que tanto a amava, seria apenas para ella um vulto entre tantos Vultos, apenas uma imperceptivel unidade entre as turbas que contemplava indifferente!

-- Oh! exclamou elle seguindo a carruagem com os olhos -- é a grandesa do meu orgulho que ainda mais me afasta de ti que as soberbas do teu nascimento!

Grito ingénuo de um coração, que as tempestades da vida ainda não crestaram.

A procissão descia d ahi a momentos vagarosa e solemne pelas ruas.

Viam-se ali retratados os diversos acontecimentos que teem transformado os destinos da nossa sociedade. A Babel das dis • tincções que tem convertido tanto lacaio em funccionario publico, tanto negreiro em barão, as fardas bordadas, os crachás, os mantos de cavalleiro, os arminhos de par, tudo quanto alimenta a vaidade, e prepara materia prima para os Molière e Lesages futuros, pintores dos M. Jourdains e Turcarets da nossa época.

Mauricio não invejava essas ostentações, que mal se combinam com os altos instinctos de um poderoso espirito : mas sentia a sua pequenez, vendo-se confundido no meio da multidão, humilhado pelo luxo que o deslumbrava, acotovelado pelo espectador, que fôra ali trazido por uma curiosidade banal.

Sentiu então um d'esses intimos desesperos em que a voz se desata em soluços convulsivos, que comprimem e abafam o peito. Elle -- o engeitado d'essa civilisação que o deprimia!--mal podia erguer os olhos para a mulher que amava, emquanto tantos outros teriam o direito de a olhar, de lhe fallar, de poderem talvez ser correspondidos!

Quando as carruagens desfilaram depois da passagem da procissão, quando elle viu a mulher dos seus sonhos debruçada elegantemente para um cavalleiro, que corria ao lado da carruagem, teve um d'aquelles accessos de ambição omnipotente, em que se declara a guerra á sociedade. Instinctivamente, ameaçou com um gesto soberano aquella grandesa, que o esmagava. Era um momento comparável áquelle que fez do escravo Spartaco, o heroico rebelde, que esteve a ponto de anniquillar o poder de Roma!

Depois reconheceu o pouco que valia:

sentiu o sentimento de desalento que deve accommetter a aguia, quando encerrada na gaiola, tenta elevar o vôo e a quem falta espaço.

Foi interrompido da sua meditação, pela pergunta dum homem que passava: -- «Appareces hoje á noite?» disse-lhe elle. «Hoje mais do que nunca!» respondeu Mauricio pegando-lhe convulsivamente na mão, chamado á vida real, a essa vida triste e desconsolada, em que se lucta para satisfazer as primeiras necessidades materiaes, longe dos elevados pensamentos e dos dourados sonhos que devoram a imaginação do poeta.

O pobre mancebo privado da apparição que o encantára, caminhou com passo descuidado e lento, repetindo, a meia voz, aquelles versos do grande lyrico francez:

Hélas! tout penseur semble avide
D'épouvanter l'homme orphelin
Le savant dit: Le ciei est vide !
Le prêtre dit : l'enfer est plein.

CAPITULO II

Lasciate ogni speranza, voi che entrate

Poucas scenas affligem mais uma alma sensivel do que o aspecto de uma casa de jogo: vêr aquellas plrysionomias, que se estendem em torno d uma mesa, com os olhos ávidos, com a respiração anciosa, animadas pela emoção do ganho, outra vez contristadas, quando a sorte lhes é adversa.

O jogo não é uma nobre paixão, mas é uma grande paixão, e raros homens deixam, em certo periodo da Vida, de quererem experimentar as devoradoras impressões que elle offerece A casa aonde vamos levar o leitor era situada n'uma das ruas d'esse, se não formoso, ao menos pittoresco bairro da Mouraria.

Entrava-se n'um pateo, aonde cães, gallinhas, carneiros, e gatos viviam n'uma promiscuidade extravagante: a um dos lados havia uma escada de pedra, d'estas que ainda se vêem pelas aldeias: uma porta verde no topo, a que mysteriosamente se batia, dava ao jogador livre accesso n'um espaçoso aposento de tecto antigo de traves, com paredes enfurnadas, e pavimento coberto de poeira, e já em partes arruinado; a imagem de um celleiro de lavrador pouco abastado.

O jogo, n'uma sala, entre pessoas da alta sociedade, que se vêem obrigados a respeitarem se e a dissimularem as suas impressões, é bem differente d'este jogo, que admitte todas as classes, que acceita o dinheiro do rico e do pobre, do ratoneiro e do mendigo, do filho de familia e do modesto operário. Era o jogo da miséria, aonde o vicio apparece nú e descoberto, cynico, grosseiro, não poupando as pragas, os brados de cólera, as exclamações de despeito, as obscenidades e os vituperios!

Os jogadores estavam apinhados em roda de uma mesa comprida, coberta d uma cousa, a que chamavam panno Verde, cheio de nodoas, queimado e desfeito, e sobre o qual chovia a cinza de cigarros: eram rostos, mais ou menos paliidos, macerados pela vigilia, que ardentemente seguiam os movimentos do banqueiro.

Mauricio jogava também- A nobre physionomia do mancebo parecia estar ali desterrada entre indivíduos, nos quaes predominava a animalidade dos instinctos.

O moralista ou o philosopho que quizer comprehender e analysar as causas de muitos crimes, deve descer a esses centros subterrâneos e mysteriosos, verdadeiras catacumbas, aonde se occulta a mais torpe devassidão, e os sentimentos se pervertem no contacto com o crime, com a abjecção e a infamia.

O dinheiro que a banca devora procede ás vezes de um roubo fraudulento, é a subsistência de uma familia que geme de fome a essa hora, é o fructo das lagrimas que a humilde costureira verte sobre a renda, que os seus dedos entreteciam, esperando o beijo do amante.

Nada ha que realise melhor a egualdade do que o vicio. O olheiro , por exemplo, era um antigo negociante, que gyrára com uma boa fortuna, que a perdêra jogando, e que reincidindo cada vez mais na infernal paixão, estendia a mão a um salario aviltante, para depois o arriscar!

De intervallos a intervallos, apparece aquilio que na linguagem do jogador se denomina um pato. É um morgado da província, um caixeiro abonado de escriptorio, algum dono de loja ou fabricante, e a esse em geral, e segundo a terminologia procuram depennal-o. Seria um estudo a fazer o notar a successiva graduação pela qual um rosto ingénuo, franco e leal, se transforma n'uma cabeça de Medusa, de olhos desvairados, cabellos hirtos, labios espumando, dentes que rangem, e musculos que se contrahem á proporção que o banqueiro lança de um e outro lado as cartas do baralho.

Mauricio estava n'essa situação vulgar para os jogadores que amam o jogo pelo jogo, queria perder. E todavia, apezar de iazer paradas atrevidas, a fortuna seguia todos os seus palpites.

Quando estava mais empenhado em seguir os movimentos do banqueiro, sentiu-se tocado levemente no hombro, e viu estender se uma mão avida, e dizerem lhe com voz submissa: -- «Empresta me doze Vinténs!» Era um d'aquelles pontos infelizes que Nicoláu Tolentino tão chistosamente descreveu n'uma das suas satyras.

-- Tire d'ahi! respondeu Mauricio, sem se mover.

Um movimento de alegria servil, se é permittida a associação das palavras, veio manifestar-se no rosto do misero jogador, que sem dinheiro até ali para arriscar, experimentava as agonias do suplicio de Tantalo.

-- Já não sigo o teu jogo, Mauricio, vaes perder, exclamou um joven estudante, que assistira a toda a scena.

-- Vou perder? Porque dizes tu que vou perder? perguntou Mauricio.

-- Esse pobre diabo é o Calisto constante de todos os pontos, e pessoa que lhe empreste, deve perder a esperança de nunca mais ganhar uma parada. Insoffrivel belisario! Parece que o banqueiro de proposito o tem aqui para nos fazer perder!

-- Cala-te, homem! Eu jogo, não para ganhar, mas para me distrahir. Quero tornar me estupido com essas cartas e dados, e affrontar a sorte, até que ella se cance de me favorecer! Mauricio continuou praticando o que dizia. Fez paradas loucas, mas conseguiu, segundo a phrase consagrada, levar a banca á gloria.

-- O monte! o monte! bradaram algumas vozes, applaudidas por todos aquelles que estando já sem meio de apostar, seguiam entretanto o jogo, com a Vaga esperança de‘poderem tirar a desforra.

Mauricio aproximou se do estudante, que lhe fallára, emquanto o banqueiro se assentava, limpando o suor que lhe corria em bagas pelo rosto.

-- Para que jogas tu, meu amigo ? disse o estudante a Mauricio com voz pauzada e triste.

-- Porque me perguntas isso, pobre innocente? Nunca lêste Leone Leoni, o romance immortal da grande escriptora do seculo? O jogo é a primeira das paixões, é uma paixão mais energica que o amor: é uma paixão que resume todas as paixões como o arco iris todas as côres do prisma.

Aofide viste tu que um homem podesse passar de rei a mendigo, de rico a miseravel, n'um salto, n'um improviso, n'algumas sortes de dados ? O jogador vive em regiões inaccessiveis aos outros homens, e quando está rico, quando vê no ouro amontoado a satisfação de todos os seus desejos, procura por todo o modo arruinar se e empobrecer, para gosar d'essa terrível emoção, sem a qual a vida é perfeitamente insipida.

O jogo é o paraiso das almas energicas -- viva para sempre o jogo !

-- Mauricio! Mauricio! o orgulho ha de te perder!

-- Orgulho ! que me importa a mim o orgulho! Acaso me deu Deus coração, para que eu o enterre n'uma camada de gelo ?

Não me deu o sangue para a vida e o corpo para o prazer?

-- Acabe a banca franceza ! o monte !

queremos o monte! bradou um dos parceiros.

O banqueiro, que Vamos descrever era um typo. Percorrêra todas as estações que successivamente aproximam o jogador do crime. Começára por ser pato , e perdêra a pequena fortuna que lhe haviam deixado seus paes: depois, convertêra-se em ponto de especulação, o que arrisca uma certa somma, em duas ou tres paradas, contentando-se com a sua diaria, se por acaso ganhou.

Era agora um mestre eonsummado na batota , e ninguém fazia com maior pericia um pegote, e, empalmava com mais destresa uma carta.

A lealdade no jogo é, afinal, uma cousa tão difficil de encontrar como a flôr que chora, de que faliam os poetas italianos. O ouro, que sempre apparece luzindo deante dos olhos, perverte os caracteres mais firmes; aqueila vida de convulsões e angustias, faz desfallecer a força mais estoica, e é quasi impossível que o stigma da deshonra não Venha no fim de alguns annos manchar o jogador, por mais innocente que elie fosse ao principio.

O banqueiro parou, e pousou as cartas:

estendeu o pescoço, com aqueila avidez da cegonha quando enxerga um reptil enroscado entre os arbustos: e mediu a assembléa com o olhar resignado do general que coma as filas rareadas, depois de uma batalha.

Viu claramente que os pontos estavam reduzidos ao ultimo extremo, e com aquella grosseria, que acompanha o vicio descarado, perguntou com insolência:

-- Tem vocês dinheiro para apostar?

Parece que já estão todos á paz de piroto, e,não sou tão tolo que mude de jogo para que se possam desforrar, arriscando alguns patacos.

Os jogadores olharam com ar compungido uns para os outros, e não se atreveram a replicar. Mauricio levantou-se, n'um impeto de súbita cólera, e olhando para o banqueiro com um olhar fulminante, bradou, com voz aspera e convulsa:

-- Quero eu, mando-lhe eu que jogue o monte!

-- Se é esse o seu desejo, não terei eu dúvida em mudar para o monte; disse o banqueiro com um ar tão attencioso, que maravilhou, pela novidade, os parceiros habituaes da casa.

Queixam se hoje dos romancistas, por serem minuciosos na descripção. É-se realmente injusto, com esse genero de talento, que tanto contribúe para dar colorido e sentimento aos quadros da Vida intima.

Quanto não Vale no Père Qoriot, a admirável pintura da Maison Vauquer! Que seria Walter Scott sem esse supremo dom de resuscitar, pela intuscepção quasi mystica do passado, o viver, e os instinctos sociaes das gerações desvanecidas!

Os caracteres, as paixões, que talvez na sua essencia não variam, tomam formas múltiplas e desenvolvem-se pelo influxo de circumstancias completamente diversas. Um gesto, uma palavra, um simples movimento, nas regiões da vida moral, significa tanto como no mundo physico o fragmento do animal fossil, pelo qual Cuvier reconstruia os animaes ante-diluvianos.

O banqueiro olhado superficialmente, e sem grande attenção, parecia dotado de uma physionomia commum. Era um homem que teria trinta e cinco annos quando muito, com cabellos negros, mas já misturado com algumas cans, com o rosto pallido e livido, mais pelas vigílias e cuidados, que pelos estragos de doença- Era nos olhos todavia, que se lhe revelava a profunda corrupção, e a manha abjecta a que fôra conduzido pelas suas paixões insaciáveis.

O jogo começou d ahi a pouco, e a sorte Voltou se contra Mauricio, sem o poupar uma unica vez- Em breve, perdeu tudo quanto ganhára, e mesmo o dinheiro que levára. Levantou-se e atirando o ultimo pinto sobre uma carta:

-- Ahi vae, para decidir!

-- Fôste a uma dama! É perda certa!

disse um dos parceiros.

O banqueiro ganhou, e pondo as cartas na mesa, disse :

-- Era este senhor quasi a unica pessoa que jogava, e como decerto não deseja continuar, são horas e mais que horas de sair.

E dirigindo se para Mauricio com voz mais branda: -- Quer dinheiro ?

Mauricio olhou para elle assombrado.

Estas franquesas não estavam nos habitos do banqueiro, e os circumstantes olharam uns para os outros, com o pasmo que os accommetteria, vendo o tigre tornar-se espontaneamente em manso cordeiro.

Mauricio ao principio, pareceu com o gesto recusar: depois emendando-se, disse com bastante enleio:

-- Acceito o seu favor, mas por pouco tempo.

O rosto do banqueiro pareceu alegrar-se e dando o braço a Mauricio, saiu com elle.

-- Aposto a minha cabeça, disse um, e não aposto lá grande cousa, que Mauricio teve uma herança, e que o tratante já o sabe!

- Ou talvez lhe chegasse do Brasil algum tio, encarregado de lhe arranjar um casamento, á moderna, isto é, de pouco amor e muito dinheiro !

-- Para que se cançam ? exclamou um velho jogador, homem sabido e corrido nos mysterios da gafa, dos dados chumbados, e do trombone aperfeiçoado, temos mulher em scena.

-- Mulher ?

-- A amiga de Mauricio, linda como um anjo, e meiga como uma pomba.

-- Já a viste ?

-- Entre vidros, como as relíquias.

-- Um jogador apaixonado sem ser pelas cartas e pelos dados!

-- É que se parece com alguma dama de copas, de ouros, e servir-lhe-hia para palpite! O banqueiro entrou d'ahi a pouco, esfregando as mãos.

-- Olé! ainda por cá estão! é sair, é sair; são já trez horas da noite e ninguém me paga o barato das luzes que se vão gastando!

D'ahi a pouco escoavam se aquelles vultos pelas trevas da noite, e a immunda espelunca , segundo a phrase energica dos estudantes da Universidacte, ficou entregue ao silencio.

CAPITULO III

Amor n'uma agua-furtada

O bairro d'Alfama é uma das curiosidades archeologicas de Lisboa, e não só os edifícios, mas até mesmo os habitantes parecem pertencer a mundo separado por séculos, do nosso tempo.

Na architectura póde-se frequentemente estudar a historia dos costumes, e as adufas, que ainda ornam as janellas de algumas das antigas habitações, indicam que o ciume dos arabes procurara todos os meios para subtrahir as suas mulheres á vista dos estranhos. Pela cidade baixa adivinha se o genio austero, o sentimento de unidade administrativa do marquez de Pombal, e não menos a inferioridade social da classe media naquelle tempo. Os quarteirões são gaiolas enfileiradas, numeradas, uniformemente similhantes, e quando se passeia uma hora no seio d'aquella regularidade monótona, carecé-se de ir tomar ar, de espairecer a vista por uma campina ou uma montanha.

Mauricio habitava o bairro dAlfama, e não se podia saber se era por predilecção poética, se pela commodidade do preço. A verdade é que a Alfama com as suas ruas mouriscas, os seus fragmentos de architectura gothica e mosarabe, as suas rotulas do antigo regimen, convida a namorar de escarrinho, e a repetir aquelles versos de Nicoláu Tolentino:

Senhor Francisco Bandalho Fita verde no chapéu!

Eram quasi quatro horas da manhã quando o nosso poeta subia a rua dos Cavalleiros, e tomando pelo arco de Santo André, bateu á porta de uma casa, cujas apparencias muito depunham a favor da sua antiguidade, subindo a um d'esses últimos andares que não sabemos por que mysterio de etymologia se denomina -- Agua furtada.

Appareceu-lhe uma velha, que pelo modo de vestir e aspecto garrido pertencia certamente aos saudosos tempos do minuete da côrte, e do landum choradinho, e entrou para um. aposento, que no genero e estylo, concordava com esse bairro, que abandonado quasi iníairamente pela gente abastada, acolhe a população mais pobre e miseravel.

A um dos lados do aposento, recostada n'um canapé, dormia com aquelle somno profundo que succede ás grandes fadigas uma mulher ainda no verdor da mocidade.

O corpo esbelto e franzino, que um roupão de cassa branca envolvia, sem occuitar as suas elegantes fôrmas, o seu rosto pallido, mas sereno, e as mãos que ella cruzava sobre o peito, e que bastas tranças de negro cabello quasi que inteiramente encobriam, davam-lhe o aspecto d'uma dessas estatuas de virgem que o cinzel italiano suavemente esculpe sobre os tumulos de marmore.

Uma lamparina que allumiava a imagem de Nossa Senhora, uma mesa coberta de papeis e de livros, revelavam o amor do estudo no homem, a crença fervorosa na mulher.

Mauricio, como vimos, tornara se sceptico e materialista, mas a sua alma era generosa e boa. Ao vêr aquella mulher que elle arrancára ao seio da sua família, e que supportava com angélica jesignação os caprichos phreneticos, os loucos accessos de sensibilidade, os morbidos periodos de abatimento, que agitavam a sua existência, con- demnada á paixão e ao desespero, como sempre acontece nas organisações nervosas e acerbas, sentiu o coração movido á piedade.

E todavia não ha cousa que offenda mais a sensibilidade intellectual do poeta do que esta monstruosa associação da formosura e da miseria! Paulina, que era o nome da mulher que dormia, de dia para dia ia tendo menos influencia sobre o seu coração, porque sobre ella, e porventura por causa d'elle, adejava a miseria hedionda, asquerosa, cruel, com o seu trabalhar obstinado e incessante, com a fome, com o frio, com o isolamento, quasi com os andrajos da mendicidade!

Pobre, humilhado, perseguido de credores, quasi sem esperança de melhorar de sorte, e com a tremenda responsabilidade do destino de uma mulher, que n'elle lealmente confiára, Mauricio não pôde suster as lagrimas e soluçou.

Paulina estremeceu, como se um magnético instincto lhe denunciasse a pessoa que chorava, levantou-se meia adormecida, abriu os olhos, e vendo Mauricio levantou se n'um pulo, e correu para elle.

-- Porque choras? Não foste feliz ao jogo? Bem o devia adivinhar! Adormeci, deixei-me adormecer, sem rezar uma oração para que a sorte te favorecesse!

E escondeu o rosto no seio do mancebo.

-- Paulina, para que Velar até horas tão adeantadas da noite? Estás tão pallida ! Tens tão desfigurado o rosto!

-- E para que te recolhes tu tão tarde?

Já não és para mim o mesmo que eras quando começámos a viver juntos! Estavas horas inteiras ao pé de mim! Passavas dias inteiros comigo! Agora, vejo-te tão poucas vezes! Parece já que te não lembras que existo no mundo!

-- Pobre Paulina! Não queiras saber os motivos que me levam a afastar me de ti!

Sabe só, que o fogo que me abrasa por dentro, deve assimilhar se ao que devora no inferno os eternamente condemnados!

-- Mas amas-me ainda? O que eu não quero é perder o teu amor!

-- Não te amo? Quem te disse que já te não amo? exclamou Mauricio, deixando escapar o seu segredo n'aquella involuntária exclamação. --De que te serve o meu amor?

Para que te hei de eu amar? Como posso, unido a ti por inflexível cadeia, deslumbrar essa sociedade, que eu' odeio, que eu abomino, e que todavia me attrahe como o precipício attrahe o viajante, perturbado pela - Vertigem? Mulher, porque te não fez Deus grande pelo coração, como te fez sublime pela intelligencia!

Paulina comprehendeu pela intonação colerica e vibrante d'aquella voz, que Mauricio a queria abandonar, e caiu quasi inanimada sobre o canapé: ficando envolta nas tranças do seu cabello, parecia a imagem da S. GenoVeVa, da lenda popular, quando errante e solitaria divagava nos bosques do Brabante.

Vieram as lagrimas depois: lagrimas de intima agonia, que só uma vez se choram na vida, porque é unico e exclusivo o amor que as faz verter.

Aquella scena todavia era pungente, mas estava contida na lógica inflexível que domina as paixões humanas. As allianças deseguaes, na ordem moral, cedo se quebram, quando a chamma do amor enfraquece. Paulina não comprehendia a poesia, não via no seu amante senão um homem, e não a intelligencia superior, que queria elevar se, e que tantas vezes se perdia nas regiões sublimes, do mundo poético. A alma de Mauricio, como a d'esses marinheiros intrépidos, que a tristesa devora, quando a tempestade os não procura, adormecia na bonança de um affecto tranquillo e resignado.

Podia elle acaso vasar no seio d'essa mulher os sentimentos, absurdos talvez, que o dominavam: os delirantes sonhos que perturbavam a sua imaginação, essas vagas impressões, que nem a poesia, nem a língua humana pódem traduzir, mas que realmente se apoderam de nós, e como nos transportam a mundos ignorados, e que parece havermos outr'ora percorrido?

Mauricio teve, naquelle momento, o desejo de se afastar para sempre de Paulina.

Nos seus pensamentos egoistas de ambicioso, Via que na sua situação, não era senão um obstáculo, e já com muitos tinha elle de luctar. Levantou-se com impeto e dirigiu-se para a porta.

Paulina, encontrou no seu amor ultrajado, força para se conter, para dissimular o que soffria- As lagrimas seccaram se nos seus olhos por um impulso vigoroso de vontade, levantou a cabeça com gesto altivo, e afastando com resolução os cabellos que lhe caíam sobre o rosto, olhou fitarnente Mauricio com um olhar de severa accusação !

Um homem por pouco artista que fosse mal podia resistir á influencia d'aquella rapida transformação Esta mulher, que soubera comprimir a violência da dôr que a torturava, era bella na pallidez e no desespero do seu amor despresado.

O dia começava a despontar n'aquelle momento Aos baços clarões da luz, que embranquecia com uma refracçâo duvidosa o quarto, aonde se passava esta scena, as duas physionomias assumiram essa indefinivel expressão que raras vezes a pintura póde reproduzir nas suas invenções.

Paulina, com as faces crestadas pelas lagrimas, com as tranças caídas, com os olhos negros incendidos pela paixão, com os dentes cerrados por uma crispação nervosa, era a imagem dessa cólera augusta, que impera pelo gesto, que reina pela energia do sentimento moral, que desafia o genio da palavra, na muda eloquência da expressão.

Mauricio, de braços cruzados, olhava-a com um olhar socegado e quasi adormecido. Meditava comsigo mesmo quanto era difficil, nos romances mais ou menos completos, que atravessam a Vida, encontrar duas almas, que se comprehendessem, que se podessem amar com egual affecto, que se confundissem absorvidas na mesma adoração!

Um raio do sol que começava a despontar no horisonte veio illuminar-lhe o rosto, e esclarecer com a sua luz ainda frouxa o triste aposento aonde esta scena se passava. Mauricio, n'esse momento, com os seus negros cabellos, os seus olhos rasgados e fascinadores, a sua tez pailida, e já amortecida pelo abuso do trabalho intellectual, e de uma Vida desordenada, podia servir de argumento aos que pretendem explicar todas as modificações da matéria pela acção constante do espirito que a domina.

-- Olha, Paulina, disse Mauricio, sei que mereço o teu odio, nem posso, não me é licito attenuar o crime que commetti! Chora com lagrimas inconsoláveis o dia fatal em que me viste! Podias ser feliz, e ficaste perdida para sempre! Não era este coração que te podia amar, como merecias !

Odeia-me, podes odiar-me, mas accusa antes a fatalidade que me persegue!

-- Eu odiar-te, a ti, isso nunca ! exclamou Paulina commovida por aquella dôr que era sincera: bem conheci que não podia ser amada por um homem, que Deus fadou tão grande pelo talento, eu, fraca e obscura mulher!

E apertou-o de novo nos braços, derramando copiosas lagrimas.

Mauricio beijou a na testa, com uma solemne tristesa: depois, sentiu-se impellido pela vaga esperança de poder elevar aquella mulher até comprehender os pensamentos que lhe dominavam o espirito. Baldado empenho ! O milagre de Moisés fazendo brotar agua de um rochedo com a varinha, não se reproduz no mundo moral.

-- Ouve-me, Paulina, e vê depois se eu sou digno do teu perdão, vê-se a minha vontade póde resistir á lei fatal, que me domina, que dispõe de mim. Sou ambicioso, e a ambição é uma d'estas amantes imperiosas, que como a Messalina da antiguidade, pódem cançar-se mas nunca saciar os desejos!

-- E queres que eu então lucte com um tão poderoso sentimento! exclamiju Paulina com funda melancolia.

-- Espera, espera sempre! Póde ser, que eu atormentado por estas crises, olhe afinal com deleite o oásis, aonde possa repousar, e o prefira a esta interminável Viagem, aonde a terra da promissão sempre se alonga na linha fugitiva do horisonte!

Talvez que eu chegue a poder apreciar esse coração, que respeita, se não comprehende as agonias que me devoram !

-- E para que não te resignas desde já á tua sorte?

-- Não peças aos rios, que parem na sua corrente impetuosa, nem ao oceano que amanse as suas ondas embravecidas, nem ás nuvens que se fiquem immoveis no espaço que te não hão de ouvir! Deus creou-me assim! Mas ouve : dir-te hei quanto soffro e talvez te compadeças de mim!

E Mauricio passou a mão pela testa, que ardia em febre, como para avivar na memoria as tremendas lembranças do seu passado!

Ha certamente momentos na vida em que o caracter mais reservado, não esconde os segredos da sua alma, e patenteia os intimos intuitos da sua ambição. Bonaparte, coroado pela fortuna na batalha de Marengo, não póde conter-se, que não escreva aquella carta ao Imperador de Allemanha, em que se mostra deslumbrado pelo triumpho. André Chénier, em face do cada falso, sentindo que um grande destino ia ser cortado em flôr, profere aquella sublime phrase, que hoje se tornou banal, á força de ser repetida:

«Pourtant, j'avais quelque chose lá!» A existência de Mauricio era por assim dizer a imagem de muitas, que nascem das circumstancias especiaes da nossa época.

Filho de um official realista, morto n'uma das batalhas d'essa guerra fratercida, Vira-se sem pae quasi ao sair do berço. Quando criança, fôra educado nas mais severas praticas religiosas, e no culto cego e inexplicável que uma grande parte do paiz prestava ao nome de D. Miguel; vivendo até aos doze annos quasi na miséria, n'uma das provincias do Norte, Vira se orphão n'aquella edade, porque sua mâe não pôde resistir ás angustias, e desgostos de uma inconsolável viuvez.

Mauricio nascêra com uma intelligencia facil e penetrante, e em breve perdera as crenças da juventude, no contacto com o mundo. O absolutismo appareceu-lheum dia com os hediondos caracteres que o distinguem, e não quiz sacrificar-se á poesia do infortunio, que Chateaubriand poz em moda, porque a idéa não valia tão sublime sacrificio.

Para os homens novos, essas formas caducas do antigo regimen, que parecem inventadas para tornar esteril toda a iniciativa intellectual, converter-se hiam em obstáculos invencíveis a qualquer pensamento de nobre ambição. Arremessado aos quatorze annos no tumulto da capital, tivéra de se sustentar, como Rousseau, do trabalho machinal do copista, e na estreitesa e improbas fadigas de tal profissão, pôde entregar se ao estudo. Lendo avidamente a historia, sobretudo a historia moderna, já a sua intelligencia penetrára em todos os problemas da política, e a acção dos acontecimentos que se succediam com uma variedade própria das quadras revolucionarias, amadureceu a sua precoce experiencia.

Mostrára a sua vocação, escrevendo alguns pamphletos, cheios de energia, e de vivacidade pittoresca. Lançára-se na critica implacavel de medidas que elle suppunha timidas e incompletas, porque reconhecêra a distancia que o separava dos mediocres vultos, que dirigiam os negocios publicos.

Apreciando, pelo que lêra, o que devia ser um homem de estado, Via os que governavam desperdiçando as forças de uma situação excepcional em questões de mesquinha influencia, e nas intrigas, que mancham todas as obras, grandes ou pequenas, da política. Vira o que se podia esperar em dois annos de um governo que conhecia a sua fraquesa, e que vivia de expedientes. Em 1835 abraçava com ardor e fervido enthusiasmo as doutrinas e sentimentos da opposição.

Mauricio, todavia, medira, com olhar seguro, as difficuldades da sua posição na vida política. O talento é uma grande força, quando a gloria o póde coroar com os seus prestígios, quando a fortuna lhe multiplica a influencia. No governo representativo, a propriedade é e será sempre o elemento social preponderante. Uma grave falta viéra tornar mais precaria ainda a sua situação.

Amára uma mulher e ligára-se a ella. No calor da lucta, a mulher é sempre um obstáculo, e quasi todos os grandes ambiciosos são castos, por profundo calculo. Vira a, nos primeiros Verdores da mocidade, idealisára-a na sua imaginação, e nos primeiros delirios do amor, julgára-a a Margarida de Fausto, vindo com um innocente beijo refrescar a sua fronte escaldada pelo fogo da meditação.

Paulina não era a mulher que podia operar sobre Mauricio o effeito que a harpa de David produzia sobre os furores de Saul Em breve o seu coração procurou outros horisontes. Aquelle dia era o dia da crise que devia separar duas existências heterogeneas. A sua ligação tornára se um martyrio.

Mas antes, pungido conjunctamente pelo fastio da vida e pelos remorsos entregára-se aos prazeres devoradores da devassidão.

Seriam loucas e absurdas as pretenções do mancebo, mas nem pel'o serem, o seu padecer se tornava menos acerbo. Paulina poderia porventura, ser sublime, inspirada pelo coração n'uma circumstancia excepcional, mas não possuia o dom, nem o segredo de dar poesia ás emoções do proprio sentimento, que a dominava. Os thesouros da sua alma não os podia manifestar entregando se aos cuidados vulgares, que mesmo em mais abastadas existências, pesam ás organisações demasiadamente poéticas.

Mauricio sentia o desejo de vasar n'algum coração as dôres que o torturavam.

Chegára a uma situação terrivei. Tinha a escolher entre a fome e a infamia! Haviam-lhe proposto, para o salvar, um contracto de ignominia, o subordinar a sua intelligencia ao egoismo de um partido, e ás vaidades de um homem.

Fôra o jogo que o conduzira áquelle terrivel extremo. O ambicioso, que devêra só trabalhar, e confiar no destino engolfára-se n'esses vicios que enervam a vontade, que degradam a intelligencia.

Não foi sem o conhecimento profundo dos segredos da alma humana que a Egreja introduziu a confissão entre os seus preceitos. Ella torna-se, nas grandes crises da vida, uma necessidade imperiosa, e Mauricio via se n'aquelle momento á borda de um abysmo que o fascinava.

-- Perder, ter de perder tudo! ter de immolar a minha ambição ás miserias d'esta vida! Paulina vê como eu sou desgraçado! -- exclamou Mauricio fitando-a com um olhar de desespero.

-- Que é! que é! dize! não estou eu aqui para te consolar? -- respondeu Paulina com ternura.

-- E que vale isso? Que me importa esta vida, se tenho de abandonar as minhas esperanças, o meu sonho, o meu futuro! E eu sentia aqui dentro um pensamento grandioso e elevado! Erguer do nada um povo abatido, regenerar uma sociedade peia energia de uma idéa, aproveitar toda a força dos acontecimentos para resuscitar um povo !... O que são elles, esses homens insignificantes, que se revolvem nos delirios da sua própria incapacidade, e de vaidades pueris?... Eu sim, sentia que as revoluções não se aproveitam, senão dando nova fórma ás sociedades caducas; tornar Portugal digno das suas tradições, era dar ao meu nome uma fama eterna, e expirar no seio da gloria! E querem agora que eu venda este talento, que eu me curve aos seus caprichos ! Morrer ou abdicar !

E sentou se na cadeira, como se a luz de um relampago lhe deslumbrasse a vista.

Paulina, foi com algumas palavras apagar o ultimo clarão de affecto que lhe pertencia n'aquella alma, revelando o quão pouco podia comprehender os pensamentos do seu amante.

-- E porque hesitas -- disse ella -- não é melhor viver socegado, com a certeza do pão d'ámanhã? Não o digo por mim : mas quem avalia esses trabalhos em que consomes a vida, e pelos quaes adquires inimigos irreconciliáveis! Disseram-me ha pouco que te poderiam prender, se continuasses a fallar mal do governo ! Bem vês que deves acceitar!...

Mauricio levantou-se como se lhe tocassem com um ferro em brasa, e com as faces convulsas pela cólera; a sua physionomia tomára uma expressão terrivel, porque perdêra de todo a esperança, talvez egoista, de erguer aquella mulher ao seu nivel.

-- Não ! tu já não pódes viver comigo mais um instante! E's uma alma fria e vulgar, que não comprehendes quanto é infame o homem que mercadeja com o que Deus lhe deu de mais sublime -- a intelligencia ! É que não vês que eu tenho de abandonar a esperança infinita da minha vida, e de comer o meu pão amassado com as lagrimas da vergonha, e os despresos do mundo !

-- Para que buscas pretextos para te separares de mim, Mauricio -- disse Paulina com voz grave e affectuosa -- conheço que já me não amas, que já não és capaz de sentir por mim o que sentes talvez por outra.

Quem te descobriu esse segredo?

Como soubeste que eu amo outra mulher ?

- exclamou Mauricio verificando pela sua exclamação aquella desconfiança vaga.

-- Bem m'o dizia o coração ! amas outra ! -- bradou Paulina com delirio.

-- E que te importa ? -- respondeu Mauricio n'um accesso de orgulho -- amo-a porque é bella, porque para ser amado, necessito de ser grande e poderoso! E hei de sel-o ! -- repetiu elle em voz mais sumida, descobrindo n'um gesto convulsivo aquella testa espaçosa, aonde se lia toda a anciedade dos seus desejos ambiciosos.

Paulina já não ouvira estas palavras.

Estava desmaiada.

CAPITULO IV

Sorrisos e lagrimas

Passar de uma agua-furtada a um palacio, é uma scena vulgar no nosso seculo, e talvez exprima uma das suas feições caracteristicas. Ou seja pelos vicios da organisação social, ou pelas paixões desregradas que dominam os individuos, a verdade é que a miséria segue a civilisação, e que as carruagens esplendidas que passam em desenfreado galope, sapicam de lama o indigente que ao canto da rua estende a mão á caridade publica.

Vamos conduzir o leitor a uma das habitações mais elegantes d'esse romantico bairro de Buenos-Ayres, onde vivia em aprazivel viuvez uma das mulheres, se não mais importantes, ao menos das mais celebradas do tempo.

Era uma mulher politica, e quem a visse assentada deante de uma secretária coberta de livros, com o olhar altivo, a fronte arrogante, e o gesto sobranceiro, mal poderia comprehender, que nascendo nas mais elevadas regiões da sociedade, rainha das salas, pela formosura, pelas maneiras, e peio espirito, descesse ao ponto de se tornar docil instrumento das empresas de um partido.

Os dotes com que a natureza a enriquecêra, serviam-lhe apenas para corromper, e para alcançar confidencias uteis. Sabia o preço dos seus sorrisos, e se podia ousadamente luctar em devassidão com as mulheres da regencia , que o sentimento do prazer physico apenas dominára, excedia-as na infamia.

Taes são as aberrações que se encontram no mundo, e na vida! A sua bellesa era por tal modo fascinadora, que vista de relançe, faria palpitar de enthusiasmo o coração de um artista, arrancaria dos lábios de um poeta um grito espontâneo de admiração Não possuia a regularidade, frequentemente destituída de expressão, do perfil grego. Era um typo meio peninsular e meio italiano; ás vezes, animava se daquella vivacidade hespanhola, que tanto impressiona e seduz os sentidos : outras vezes caía n'aquelle languido desfallecimento, que na bella lingua do Dante se denomina morbidezza , uma das singularidades das encantadas regiões, aonde o sirocco tantas vezes sopra.

Ha quem se admire de Vêr estas creaturas cujo coração pulsa com a regularidade physiologica da circulação do sangue, nas crises mais Violentas, simularem osimpetosde uma fogosa paixão, e imitarem com a voz as mais sentidas interjeições do amor: como se no século passado, não víssemos os sopranos, entes degradados, os Farinelli, e Cafarelli arrancarem das plateias lagrimas de profundo enternecimento, tal era a expressão apaixonada com que traduziam os mais maviosos sentimentos ! Estas organisações monstruosas, que seriam Racheis, ou Mars no theatro, na sociedade são sublimes aventureiras, cuja existência a philosophia vulgar do mundo poderia facilmente explicar.

A viscondessa de era nem mais nem menos que a nympha Egeria, mas menos casta e mysteriosa, de um estadista, a que se ligára talvez um pouco pela vaidade que leva as mulheres a desejarem vêr os Hercules fiando submissos a seus pés. Esta ligação, entretanto, tinha o seu tanto ou quanto de financeira. Vendo se viuva, arruinára-se com uma rapidez digna de um morgado perdulario, e não carecia menos das caricias, que das liberalidades faustuosas do seu amante.

Associada com elle n'essas tenebrosas empresas de uma política que a sua impopularidade fazia descer aos manejos subterrâneos, o seu coração tornára se insusptivel de todas as nobres affeições, e apenas se revelava mulher, quando podia simulando as apparencias da paixão, seduzir os amantes, que unjas vezes o calculo, outras os desejos que acompanham uma naturesa sensual e ardente, lhe faziam escolher no mundo que a rodeava- Não se julgue entretanto, que a sua reputação fosse das mais condemnadas. É a triste sorte da nossa sociedade que as leis da honra e da moral tenham por incançaveis campeões e por professores sublimados as feias invejosas, as mulheres devotas de um duvidoso passado, e os homens que hypocritamente escondem os vicios sob a cortesia das maneiras. Com estas potencias estava a viscondessa em paz, e como offerecia de vez em quando uma chavena de chá, e recebia nas suas salas, tinha um partido que applaudia se nào as suas virtudes, ao menos, a sua amabilidade, e sentimentos de ostentosa beneficencia.

A viscondessa passava já dos trinta annos. isto equivale a dizer, que sabia dissimular pela toilette os estragos do tempo.

Vestida com um roupão de veludo verde mar, de mangas largas, com os braços envolvidos de finíssima renda, a sua mão de uma brancura deslumbrante, destacava na côr sombria do estofo : os seus cabellos, caíndo numa desordem, muito graciosa, para não ser estudada, envolviam-lhe o rosto, que finamente esboçado, e d aquella côr pallida e transparente, que deixa perceber o azulado das Veias sob a epiderme, podia figurar sem desdouro, nas paginas de um Keepsake.

Pareceria um anjo, para os que não estudassem os seus olhos, que mudavam de côr ás variações da luz, e resplandeciam com aquelle brilho felino , se é permittida a expressão, que quasi sempre revela os perfidos instinctos do animal.

Estava n'uma posição abandonada e distrahida que, poderia ao primeiro aspecto, confundil a com a imagem de uma d'essas castellas da edade media, cujo nome era invocado nos torneios como uma esperança de victoria.

O banqueiro da rua da Mouraria era um dos agentes da sua policia secreta, e fôra encarregado de attrahir Mauricio ao partido.

Depois de introduzido no gabinete, esperou em pé e respeitoso que a viscondessa lhe dirigisse a palavra.

-- Como corre por iá o jogo? -- perguntou a viscondessa depois de alguns momentos de silencio.

-- Vae andando, vae andando como Deus é servidodisse o banqueiro, inclinando a cabeça.

- E o rapaz tem perdido ?

-- Parece que caiu afinal nas minhas mãos!

-- Pelo dinheiro, que lhe ficou devendo?

-- Não é só por isso. Parece que tambem o lisongeia a idéa de merecer as sympathias de uma mulher, cuja imagem elle pretende esquecer, procurando impressões d'outro genero!

-- E sabe quem é essa mulher ?

-- Pois não adivinha? Quem poderá ser senão v.ex.a? -- disse o banqueiro.

Um sorriso de vaidosa satisfação deslisou rapidamente nos lábios da viscondessa.

-- Pois acaso me viu elle em alguma parte?

-- No theatro!

-- Amor de... imaginação !

-- Amor de poeta !

-- Ah! tambem é poeta, disse a viscondessa dando á palavra uma intonação irónica -- E deseja elle fallar-me?

-- Espera que V.ex.a o receba n'uma das suas reuniões ?

-- Não tenho dúvida n'isso : traga-mo cá hoje mesmo, agora se é possivel...

-- Espero que fique convertido!

-- Havemos de aparar as azas da avesinha, para que não remonte aos céus em arrojado vôo' disse a viscondessa.

O homem da rua da Mouraria despediu-se e saiu.

Mauricio foi d'ahi a poucos momentos apresentado á viscondessa, e entrou no seu gabinete, que todas as elegâncias do luxo adornavam. Tentação irresistível para essas frágeis organisações que o sentimento do bello exclusivamente domina.

A avidez dos prazeres materiaes, o desejo ardente de uma falsa gloria, são os obstáculos que difficultam a ascendência d'essa aristocracia do talento, que parece dever substituir-se ás outras influencias que até aqui dirigiram o movimento social.

A viscondessa mirou o, com um olhar penetrante, que talvez se absorvesse na voluptuosa chamma com que as féras magnetisam a presa, antes de a despedaçarem nas sofregas garras.

A comparação exprime talvez a situação de ambos. A viscondessa sabia gosar das amargas delicias que se sentem em praticar certos crimes : fazia o proselytismo da devassidão, como outros o fazem da Virtude.

É necessário accrescentar além d'isso, que ella não era physicamente insensível, e que Mauricio poderia contentar o passageiro capricho de uma mulher blasée , e um pouco aborrecida.

N'um relance adivinhára Mauricio : viu que as fadigas moraes, que se revelavam no seu rosto eram o resultado das tempestades da cabeça e não de profundos pezares do coração: que talvez podesse conhecer a vida na esphera da especulação, mas que nem por isso as suas impressões seriam menos vivas e exaltadas.

Mauricio sentia-se succumbido deante da viscondessa. Elle que mal se atrevêra a levantar os olhos para ella, quando a vira como uma magica apparição, na sua carruagem, tinha-a agora deante de si, podia confessar-lhe o que elle sentia, prostrar-se aos seus pés n'um transporte de amor delirante.

Houve um homem d'espirito, que para demonstrar a uma mulher, o quanto a adorava, disse simplesmente: «]e vous aime tant que je deviens stupide !» É o que sentia exactamente Mauricio:

uma vertigem passára lhe pelos olhos, e parecia adejar n'essas regiões phantasticas onde ás Vezes nos levam desvairados sonhos !

A viscondessa, era experiente de mais para não conhecer o seu enleio, e applaudiu-se d'elle. Qual é a mulher que se não lisongeia de homenagens que a convertem em idolo?

-- A sua visita não podia ser mais a proposito -- disse ella -- sei que é poeta, e de certo se não recusará a escrever alguns versos no meu album!

-- Estimaria, minha senhora, poder provar-lhe quanto desejo ser-lhe agradavel, porém ha annos que não faço versos.

-- É a política então que o desvia de cultivar as musas? Ou acaso teme comprometter-se pondo o seu nome no album de uma adversaria politica ?

-- Seria levar muito longe o meu melindre, e ao pé de v. ex.a quem se pode lembrar d'outra cousa senão de obedecer aos seus desejos!

Um dos sorrisos mais seductores da viscondessa veiu pousar-lhe nos lábios.

-- Já me parece lisongeiro de mais apezar dos seus poucos annos!

-- Duvida da minha sinceridade?

-- Não: admiro o seu talento.

Mauririo sentiu um movimento de orgulho ouvindo aquella phrase. É a doença moral que os anjos decaídos communicaram a esses entes mais frágeis, que vieram habitar a terra.

E não devia gloriar-se tão facilmente.

O talento póde ser favorecido por um acaso feliz, mas ainda não conquistou a sua supremacia na sociedade moderna.

Ha momentos na vida em que se descrê d'essa immortalidade intellectual, com que as gerações no futuro sabem remir as injustiças das gerações passadas.

Não era nas palhas dos cárceres de Ferrara, que o Tasso podia lêr as homenagens que depois, em sua própria Vida, alcançou:

não era nas dobras do lençol que deu mortalha a Camões, que o nobre poeta deveria antever o eminente logar que obteria na admiração da posteridade: nem os presentimentos bastam para consolar a alma, nos momentos amargos da Vida- -- O que deseja que eu lhe escreva ahi, -- disse Mauricio, com voz trémula.-- Talvez que a sua modéstia se offendesse se houvesse de dizer tudo quanto sinto, e não me resolvo escrever cousas indifferentes, porque me pezaria não ser sincero !

-- Não sabe, que se as suas palavras fossem tomadas á léttra, era quasi uma declaração, o que acabou de dizer? -- respondeu a viscondessa rindo.

Mauricio corou como uma donzella. A viscondessa bem reconheceu n'aquelle rubor espontâneo a explosão de um vivo sentimento : não quiz comprometter-se, continuando : mudou de assumpto como mulher experimentada.

-- Diga-me, não o inspira este bello dia de inverno, tão suave e bonançoso? Quem se não tornará poeta bafejado pelas doçuras do nosso delicioso clima?

-- Os dias, ainda os mais bellos, não podem ser apreciados por todos do mesmo modo. As lagrimas não param de correr nas faces de quem padece, nem os desejos de devorar os corações que soffrem.

-- Vamos, poupe me uma declaração democrática: os escriptores agora, mesmo tendo o seu talento, quasi que reduzem a conversação a um artigo de fundo mais ou menos violento. Bem se conhece que pertence á imprensa militante.

-- E se é assim, proferiu Mauricio em voz baixa, se quando só paixões artificiaes nos dominam, existem reaimente miserias, que não são phantasticas, não creadas pelo pensamento, mas pela horrível realidade!

-- Pois acha que os nossos sentimentos são apenas visões da nossa phantasia exacerbada! É uma opinião nada agradavel para o nosso amor proprio: accrescentou a Viscondessa com uma certa intonação sentimental.

-- Não, é impossível que isso aconteça.

As candidas physionomias, que nos apparecem allumiadas por um raio de bondade divina, devem inspirar-se de elevados e generosos sentimentos!

E Mauricio dirigiu á viscondessa um olhar a um tempo respeitoso e apaixonado.

Como é sublime e infinita a felicidade que sente um homem quando tem a esperança de poder viver adorado na alma de uma mulher! Os sentimentos que assim despontam impetuosos no coração, teem o vigor d'essas plantas, que embora a tempestade faça curvar com o seu sôpro omnipotente, erguem depois para a luz que as aviventa a sua mimosa haste de flôr.

A viscondessa curvou-se levemente sobre a mesa para folhear um album. Fingiu que não ouvira as palavras de Mauricio, a que não lhe convinha responder, porque na primeira entrevista julgava prematura uma viagem nas aprazíveis aguas do fleuve du tendre.

-- Era necessário ser mui vaidosa, ou mui crédula para acreditar tudo quanto me teem repetido nas paginas deste album!

-- Um album não é certamente bastante discreto para receber certas confidencias!

-- A affectação, o falso enthusiasmo são hoje os sentimentos que mais dominam na sociedade! Affirmam, proclamam que sou formosa? Applicariam a mesma phrase a qualquer flôr que encontrassem n um jardim : os poetas! são homens cuja imaginação se desenvolve e cresce á custa da sensibilidade ! A cabeça em breve lhes devora o coração!

Estas argúcias de metaphysica sentimental, que as mulheres da sociedade desenvolvem com tão frivola facúndia não podiam achar um habil contradictor em Mauricio. As affeições verdadeiras são raras vezes eloquentes. Os olhares, os gestos tudo dizem, tudo sabem dizer, a palavra está muda: a voz expira na garganta.

Mauricio encostou a cabeça a uma das mãos, e olhou com um olhar de timida adoração a viscondessa : omnipotente homenagem para uma mulher vaidosa !

A Viscondessa sorrindo-se graciosamente, apresentou-lhe o álbum , e com voz seductora, disse-lhe:

-- Escreva o que mais fôr do seu gosto... Não me cumpre pôr limites á imaginação brilhante de um poeta!

Mauricio sentiu o sangue affluir-lhe ao coração, ouvindo aquellas palavras: allucinado pelo clarão vivíssimo de duas paixões sublimes -- a admiração e o amor! -- caiu sobre o livro, a que ia confiar o mais intimo segredo da sua alma!

Era ao descair da tarde: o sol, meio escondido entre nuvens pouco espessas, allumiava o horisonte em clarões de fogo.

Hora solemne, em que as trevas, de que a naturesa se envolve, parecem revelar ao mundo, privado de luz, os vedados mysterios da morte!

Chegado ao limite que divide o dia da noite, o magestoso astro parece parar na sua magestosa carreira : parece dizer um adeus de saudosa despedida ao mundo que acabou de alagar de vivificante luz: desappareceu afinal no seio das ondas.

Qual é o espirito por menos inclinado a meditar sobre o tremendo problema que está suspenso sobre a existência da humanidade, que se não sinta accommettido de Vaga melancolia, de involuntária tristesa?

Um vulto de mulher penetrava no cemitério dos Prazeres. Nos seus vestidos de luto, nos seus cabellos em desalinho, nas suas faces pallidas, aonde se percebia o sulco de pungentes lagrimas, no seu andar morbido e vacillante, revelava-se essa agonia íntima, essa dôr profunda que já na terra não pode encontrar nem allivio nem conforto.

Ajoelhou piedosamente e ergueu com fervor as mãos para o céu.

Era Paulina.

Ali, sobre uma humilde cruz de madeira, sem distico, nem epitaphio, repousavam as cinzas de seu pae, victima da miséria:

as cinzas de sua mãe, que succumbíra á vergonha de vêr sua filha abandonando o lar paterno, para se entregar á devassidão e ao Vicio!

Tardio vinha o arrependimento! Os preceitos de austera virtude que ouvira na infância, estavam já incertos na sua memória, como as sombras vagas que adejam nos delirios de um sonho! Esquecêra aquelle santo amor de mãe, para se absorver neutro amor mais egoista, e mais ardente, e esse amor tornára se para ella uma verdadeira expiação!

Ha dores que buscam a solidão porque as consolações banaes do mundo não as podem suavisar: o affecto immenso de Paulina, irreflectido talvez, fôra fulminado pelo desdem, ultrajado pela ironia cruel do ente por quem tudo sacrificára...

Assim como não ha montanha, por mais alta e arrogante, que a tempestade não açoite, também não ha humildes valles aonde a sua cólera não se manifeste.

Era profunda a mágoa de Paulina, eram pungentes as lagrimas que caíam dos seus olhos! Lembrava-se dos beijos affectuosos de sua mãe, quando junto d'ella velava nas longas noites de inverno !

Aquelle adeus a um sepulchro era o adeus extremo aos seus dias de innocencia!

Sonhára ella também, em vingar-se do homem que a despresára! Queria algum dia apparecer aos olhos de Mauricio com flores na fronte, coroada pela sua ignominia, rainha da devassidão, e dos venaes prazeres!

Pedia perdão áquellas duas almas, não de haver amado, mas de se ir entregar ás caricias venaes, de ir beber em sôfregos tragos a taça de ignominia que para sempre a separava do mundo Aquella invocação era mais pungente que a do proscripto, quando abandona a terra do seu nascimento, os campos aonde brincou nos annos da juventude, sem esperança de os tornar a vêr.

O pranto que então se chora, deixa nas faces um sulco inflammado, e que nunca se apaga! O adeus a um passado de que não sômos dignos échôa terrivel como o grito extremo do martyr, quando chama a maldição de Deus sobre a cabeça dos seus algozes.

CAPITULO V

Desenganos

A situação de Mauricio experimentára uma completa revolução. Abandonando a politica, não viu no horisonte senão a encantadora imagem da viscondessa, entre os prestígios da grandesa e do luxo. Se o amor, como disse mad. de Stael, é apenas um episodio na vida do homem, e resume toda a vida da mulher, nem por isso é menos do que elle é, como escreve Dryden, a grande mina do coração humano.

O amor de Mauricio não era um culto, uma esperança vaga, uma inspiração poética, não antevendo nos seus sonhos mais do que a felicidade suprema de uma adoração silenciosa. Era uma paixão nervosa, e lasciva, d'essas que fazem correr com ardor o sangue nas veias, e cujas visões abrasam o cérebro, e exaltam os sentidos.

Mauricio, não pela experiencia da Vida, mas pela intuição do talento, adivinhára o caracter d'aquella mulher, e se perdêra assim a veneração ideal que de longe lhe consagrava, nem por isso o seu affecto era menos profundo.

Estava no seu quarto fumando em silencio, entregue a uma Vaga abstracção. De espaço a espaço levantava-se impaciente para olhar no relogio as horas que o separavam da entrevisla que a viscondessa lhe concedêra. A sua agitação era extrema. Tinha febre.

Entrava d'ahi a pouco no seu aposento um dos mais espirituosos elegantes da época D. Affonso era um fidalgo no sentido ideal da palavra. Seguindo com exemplar Verdade o mote de -- noblesse oblige nem por isso deixava de comprehender e seguir as tendências illustradas da época em que vivia.

O seu rosto, que realisava em todo o seu esplendor o typo peninsular, e que unia a graça á energia, retratava a sua alma. De uma intelligencia facii e penetrante, afastára se todavia das luctas políticas, e n'esta sua abstenção não entrava nem receios pueris, nem a preguiça: suppunha que a sua dignidade lhe prohibia usar dos meios abjectos, que frequentemente se tornam uma necessidade na vida politica.

Bravo até ser temerário, generoso até quasi tocar o extremo da prodigalidade, a delicadesa feminina das suas formas em nada diminuía a elegancia varonil do seu aspecto. Quem Visse aquelle corpo franzino domar sem esforço as impaciências de um cavallo fogoso, ou o seu semblante sorrir com altivo desdem em presença de qualquer perigo, immediatamente reconheceria que as eminentes faculdades que o distinguiam, nunca poderiam desenvolver-se n'uma sociedade que vive quasi sem lucta, entregue no morbido lethargo que succede ás crises de uma violenta febre.

D. Affonso entrára com uma familiar desenvoltura, cantarolando o delicioso dueto de «Guilherme Tell» :

«Ó cielo ! tu sai si Mathilde m'écara» A musica combinava tão directamente com as idéas que agitavam Mauricio, que se levantou subitamente do canapé, e olhou fixamente o seu joven amigo.

-- Bravo! O meu canto adquiriu a prerogativa de trombeta do juizo final, levanta os mortos das campas! disse D. Affonso a rir.

-- Porque escolheste para cantar esse trecho de Rossini ? perguntou Mauricio meio enleiado.

-- Pois não sabes ainda? É a musica da moda -- e já não ha gaiato, nem gallego que a não repita pelas ruas e chafarizes.

Mauricio sorriu-se. Aquella graciosa animação, aquelle ar deselegante desenvoltura, tinham sempre o dom de o distrahir.

D. Affonso accendeu um charuto, e sentou se como pessoa que se decide a prolongar a visita.

-- Então, porque é que ninguém te vê, porque te mettes dentro d'esta toca, prima ou irmã das aguas furtadas aonde Gilbert fazia versos, e morria de fome ?

-- Não posso perder tempo. Trabalho em obra importante.

-- Desculpa infallível de todos os poetas... namorados. Ninguem te ha de acreditar. O motivo da tua reclusão é já conhecido, estás dominado por uma paixão, e a ponto de inspirares outra...

-- Como te veiu similhante idéa ? perguntou Mauricio com anciedade.

-- Olha : deixemo-nos de rodeios: sei quem é: e declaro-te que emquanto á formosura é a viscondessa digna do amor de Tasso ou de Petrarca: mas duvido que lhe bata alguma cousa debaixo do seu seio esquerdo. Digo-te que ama em ti um specimen de paixão devoradora, que rugindo como a cratera do Vesuvio, lhe dá occasião para estudar ao vivo os mysterios dos sentimentos.

-- É uma sessão de espirito, a que vou assistir?

-- Não, é a visita de um medico... de almas sympaticas.

-- Vieste tarde -- disse Mauricio modo triste --já não me podes salvar... Amo a como nunca amei, como se não pode amar outra mulher no mundo.

- Lamento o teu destino--disse D. Affonso com um tom triste -- aquellas mulheres não se vencem senão pelo calculo, e pelo sangue frio: quando te repetir que te ama, que não podia calar no peito o segredo do seu amor, se lhe apalpares o coração, has de vêl-o bater pacificamente, sem uma pulsação mais forte !

-- Que queres então ?... Este amor foi uma fatalidade, que nem a minha inteiligencia nem a minha vontade poderam dominar.

Já viste um viajante olhar voluptuosamente um abysmo, e não poder desfitar os olhos que a vertigem deslumbra. Assim me aconteceu a mim. Vivo só com um pensamento, abrasa-me uma só idéa, não tenho mais que um desejo!

-- E se eu te apresentar essa mulher como ella na Verdade é, mais infame do que as mulheres perdidas, que a historia marcou com o ferrete da ignominia ; as Dubarrys, e as Marions de Lorme são innocentes comparadas com essa mulher!

Mauricio escutava avidamente aquellas palavras. Se não partissem dos lábios de um homem, que elle amava como um irmão, que elle respeitava como um d'aqueiles raros caractéres que a mentira nunca mancha, talvez não pudesse resistir ao resentimento que as suas palavras lhe produziam.

Fataes paixões, cuja historia Prévost superiormente nos transmitte no seu romance de Manon Lescaut. É que o fogo da sua indignação não era bastante para suffocar os delirios do seu amor. Ouvira o que o seu amigo lhe dissera, e a imagem d'aquella mulher adejava-lhe na imaginação, bella e idolatrada como sempre, e os seus labios sorveriam com delicias os seus beijos em bora entre elle e ella se erguesse a imagem dos seus passados amores !

D. Affonso começava a sua historia.

-- Sobre a cabeça daquella mulher pesa um grande crime. É moralmente matricida, e fez descer ao tumulo, no verdor dos annos, e entre acerbas agonias, a sua própria filha.

-- Acaso se ignora esse facto? perguntou Mauricio.

-- Todos o sabem; é um d'aquelles crimes públicos, sabidos, commentados, sobre o qual a sociedade dissertou tres dias, e que tão facilmente esqueceu como as modas que já se vão tornando velhas !

-- E vive essa mulher risonha e satisfeita, no seio da ostentação e do luxo!

-- Os olhos da lei apenas vêem o crime nas feridas do moribundo, ou sobre os veios lividos que o veneno faz apparecer sobre os membros do cadaver. Sua filha expirou, moralmente assassinada por sua mãe, mas o sepulchro é discreto.

-- Conta-me ! conta-me tudo ! exclamou Mauricio.

-- A filha da viscondessa era uma destas organisações angélicas, que vivem sempre estranhas no meio da atmosphera corrupta da nossa civilisação. No coração, gasto e extenuado, da viscondessa despontou um terrivel ciume. As adorações do mundo, que outr'ora lhe eram exclusivamente dirigidas, também faziam corar as faces Virginaes de sua filha. Em vez de ter orgulho d'essas homenagens, não viu n'aquelle anjo, senão uma rival importuna, e resolveu vingar-se d'ella. A sua vingança foi completa. Houve um mancebo que se apaixonou por sua filha. Pediu-a a sua mãe, e estava já marcado o dia do casamento. A viscondessa facilmente o fez mudar de resolução e de amor, e um dia a innocente menina teve plena prova de que era atraiçoada. Semi morta de dôr e vergonha, devorou em silencio a sua angustia, e não sobreviveu muito tempo a este golpe. Extinguiu-se aos quinze annos, como as flores ephemeras que despontam ao nascer da aurora, e que as brisas da tarde desfolham nos campos abrasados pelos ardentes calores do estio.

-- E a viscondessa não teve remorsos ?

perguntou Mauricio com anciedade.

-- Depois de receber, segundo o estylo, os pezames, vi-a dançar uma valsa a dois tempos com admiravel ligeiresa - respondeu D. Affonso concisamente.

-- E continuou a ser recebida na sociedade, não houve ninguém que a fulminasse com o seu despreso ?

-- Innocente mancebo! Ninguem trata com menos respeito uma mulher, que apparece brilhando com joias e diamantes, e se sabe toucar com grinaldas da ultima modal O sangue de sua filha não manchava os seus vestidos, e os médicos, com a rara penetração que os caracterisa, tiveram o cuidado de affirmar que a fragil donzella succumbira a uma phtisica pulmonar, formalmente caracterisada!

-- Oh ! meu Deus! bradou Mauricio com desespero, e pude... e posso amar ainda essa mulher!

-- E enriquecer o seu livro com uns inspirados versos! disse D. Affonso lançando os olhos sobre o que Mauricio havia escripto: são realmente dignos do objecto, e Byron não os escreveria com mais ardente sentimento:

São negros esses teus olhos São azues, negros ou não?

Nem côr do céu, nem da noite Nem verdes ! Então que são ?

São olhos que teem taes côres, Que prendem como condão !

Os negros são aziagos Os verdes não teem valor!

Os azues que são celestes Nuncam revelam amor!

Nenhuns olhos se parecem Com os teus olhos na côr!

Eu vi-os! Porque os veria Se me Vieram'prender?!

Se os segredos que elles dizem Ninguém os póde saber!...

Se os desejos que eiles trazem Não gosal-os -- é morrer?

Eu amo a luz dos ieus olhos Amo lhe as côres que teem !

Até lhe adoro os segredos Que louco -- preso me teem !

As emoções que elles fazem Nunca as senti por ninguém.

Anjo do céu, tu serias Cá na terra um seraphim Mas quem sabe se esses olhos Nunca me entendem a mim ?

Se ás falias que os meus lhes dizem Nunca lhes respondem -- sim.

Que importa! Não quero outros Porque outros não quero amar!

Porque os teu dizem amores Até no mais vago olhar!

Porque olhos assim não podem Os meus olhos enganar!

Se me enganarem -- no mundo Nunca outros quererei Porque nos teus creio tanto Como em Deus acreditei!

Depois de tel os perdido Sem pezar acabarei...

Mauricio levantou-se para rasgar a pagina do álbum. Com as faces accendidas em rubor, o coração palpitava-lhe movido pela indignação, e pela raiva. D. Afionso sorriu com ironia ao vêr o seu despeito, e arrancou-lhe o album das mãos.

-- Olha bem! uma pagina rasgada no album da viscondessa, ser te-hia tão fatal como a lettra que Gennaro arrancou do nome de Borgia da fachada do palacio do Grão-Duque de Ferrara.

-- Se a sociedade é tão infame que não cobre de ignominia essa mulher, terei eu a coragem de lhe tirar a mascara, e de proclamar a sua infamia!

-- E quem és tu para lhe lançares a luva, talento obscuro, que vendes os sonhos generosos da tua alma á curiosidade frívola d'esse mundo que despresas? Na vida, não ha senão dois caminhos, a obediencia ou a revolta. Revolta? Aonde está a tua força? Quem jura nas tuas palavras, quem ouviria com convicção os teus protestos?

Byron era um lord, era um grande poeta, coroado pela dupla auréola de um nascimento illustre, e de um engenho que attingia os limites do genio, e mal pôde alcançar um tumulo nas praias d'essa Grecia, a que offerecêra o seu sangue, e a sua espada! A tua acção era de uma alma elevada e generosa, e havias de ser por ella anniquilado: serias talvez um heroe aos olhos da consciencia, tornavas te ridiculo em presença do senso commum!

Mauricio caiu desfallecido no canapé, e soluçou n'um choro sem lagrimas: era uma tempestade similhante áquellas que rebentam em pleno estio, que illuminam de fitas inflammadas o horisonte, sem que as nuvens carregadas de electricidade se desfaçam em chuva. Reconhecia como se tornára impotente no seio da sociedade. Bem comprehendia que aquellas palavras eram a exacta expressão da Verdade. Nas épocas corruptas, a lucta embora heroica não escapa ao ridículo. As vocações desamparadas pela opinião, hão de tornar se servas dos preconceitos do mundo. Os talentos curvam-se para que não fiquem esmagados.

-- A tudo sou capaz de atrever-me! -- exclamou Mauricio -- embora me odeiem, me condemnem, e se riam de mim! O sentimento da minha dignidade me indemnisará de tudo.

-- Cairás, e ninguém deplorará a tua queda.

-- Queres então que appelle para o suicídio? -- Nem á custa d'elle alcançarias a menor celebridade. N'um grande paiz como a Inglaterra póde um poeta, como foi Chatterlon, conseguir que o seu sangue cáia sobre a cabeça dos que o perseguiram, ou o abandonaram, e que a Voz da posteridade fulmine os que não souberam compadecer-se das suas angustias. Entre nós, diriam que não tiveras coragem para supportar a miséria, e que cedêras ao despeito de não poderes captivar o affecto de uma mulher!

Mauricio levantou-se, e aproximando se da janella, pôz-se a olhar as leves nuvens, que o vento fazia gyrar no céu.

-- Deixas-me no meio da minha narração? E não queres ouvir o resto?

-- Acaba essa maravilhosa historia exclamou Mauricio sorrindo com visível esforço-- é indispensável conhecer a chronica da sociedade, para que as nossas candidas illusões se não percam!

-- Pois bem, esse homem, que vira morrer deante dos seus olhos aquella innocente victima, que tanto o amára, que contemplára sem remorso a lenta agonia que a aproximava do tumulo, não se gosou por muito tempo do amor da viscondessa. O anjo converteu-se num relance em tigre.

Um dia, confessou-lhe, n'um momento de tedio e fastio, o motivo que a levára a acceital-o como amante: escarneceu da sua credulidade, e da sua vaidosa inconstância; e quebrando com elle todas as relações, teve a audacia de declarar aos seus íntimos, que o não recebia em sua casa, por ter ousado fazer-lhe uma declaração. Devorado pelos remorsos, repellido pela sociedade, e contemplando com todo o horror a vil acção que commettêra, o infeliz alistou-se no exercito portuguez que partia para Hespanha, e teve a felicidade de morrer n'um combate. A viscondessa alcançou um completo triumpho. O unico ente que poderia arrancar-lhe do rosto a mascara de Virtude, e apresental-a vergada pela infamia, como a Lucrecia Borgia do grande poeta francez, nunca mais se soube d elle.

-- E como podeste descobrir os mysterios d'esse drama íntimo ? perguntou Mauricio.

-- Fui seu companheiro na guerra, e tudo me revelou nos últimos dias em que passámos juntos. Amava-a ainda, apezar da sua infame traição! Tal é a influencia irresistivel que certas organisações femininas exercem sobre homens d'aquella indole.

Vira-a hedionda e repugnante como as Bacchantes da antiguidade, e recordava-se com delicias dos momentos em que ella se sorria para elle terna e apaixonada!

-- Caminho para o mesmo abysmo. Separado dos meus amigos politicos, vejo me quasi a ponto de pertencer a uma facção, cujas idéas não abraço, e cujos sentimentos detesto. Já me é quasi impossível recuar. Não acreditariam a minha conversão.

Hei de escrever para me alimentar! Escrever, pensar para os outros... -- horrivel prostituição da intelligencia! -- eis a situação a que me reduziu essa mulher!

-- Não pares, já que andaste tanto. Seria tardio o arrependimento. Bebe o calis que te offertaram com coragem. Movido por uma fatal paixão, esqueceste os teus deveres, e nunca te hão de perdoar.

-- Que hei de eu fazer então ?

-- Para que te serve o orgulho? O mundo segue o carro do triumphador, e applaude tarde ou cedo, os que são bem succedidos. Milhares de boccas accusadoras seguiriam o teu exemplo, e não se venderam ainda porque naturalmente não tiveram a dita de achar comprador.

-- Triste consolação é essa! -- exclamou Mauricio com desalento. -- Arremessar aos pés de uma mulher o prestigio de um nome, os sonhos queridos, uma vida inteira, quando essa mulher possue um coração para avaliar o sacrifício, é pouco, é nada em presença de um amor verdadeiro!

Mas ella apenas desejou atrellar ao seu carro mais um misero vencido, e rir-se-ha vendo que os impulsos da minha vontade nada podem contra a violência da paixão que lhe consagro ! E sinto que ainda a amo, e estremeço quando ouço o som das suas meigas palavras: tenho impressos na mente aquelle sorriso, e aquelle olhar que endoidecem, e que fascinam.

-- Luctas indignas de um talento superior, e ao qual a adversidade deveria ter ensinado ! Soffre que o mereces : exclamou D. Affonso com ar solemne: expiarás o teu delicto, tornando-te o ludibrio d'essa ignobil mulher?....

CAPITULO VI

Para que serve uma camelia?

Não será exigir do leitor um grande sacrifício, se lhe pedirmos que nos acompanhe a um baile. E' um espectaculo tão trivial na vida, como nos romances, e desde os vasos de flores que ornam a entrada até aos lustres que iluminam as salas, os opulentos reposteiros que as dividem, nada tem escapado á analyse dos numerosos cultores d'essa deusa implacável, que se denomina publicidade.

Um baile todavia, tem uma grande influencia nos destinos da sociedade elegante. Quantos dramas se não começam e se não continuam ao som da orcbestra que convida os dançadores a uma valsa: quantas férvidas paixões se não accendem, entre os monosyllabos de uma conversação apparentemente frivola : quantas agonias, nascidas da inveja ou do ciume se não disfarçam, com um mavioso sorriso, ou se procuram esquecer, nos movimentos agitados da dança.

As revoluções do mundo moral assimilham-se ás do mundo physico: se a crusta superficial da terra arrefecendo, produz essas maravilhas que nos encantam a vista, nem por isso se lhe agitam com menos vigor no seio elementos de destruição, que ás vezes fazem desapparecer cidades como Herculanum, e Pompêa, ou reduzem a ruínas capitaes como Nápoles, e Lisboa. Se n'um baile o homem demonstra o alto gráu de civilisação que pôde attingir, moderando as suas paixões e os seus desejos, é evidente que n'essa apparente serenidade, se dissimulam frequentemente as mais furiosas tempestades moraes.

A viscondessa abrira as suas salas, e desde logo amigos e inimigos todos se ha viam apressado em reconciliar se com ella, para terem o prazer de assistir ao seu baile.

Não ha odio, nem resentimento que resista a um gracioso convite. Se Lugarto, o fusco tyranno do romance Mathilde , de Eugenio Sue, existisse realmente no mundo, como existem malvados menos completos na sua depravação, mas não menos nocivos, dispondo dos seus cinco milhões, havia de ser applaudido e festejado, e teria um cortejo de admiradores. A tendencia geral é a adoração da riquesa. Os hebreus no deserto não se prostravam com maior veneração deante do bezerro de ouro, do mais estúpido millionario- Ha mulheres que se sentem real mente animadas de grande coragem para domesticar os monstros mais ferozes, e para realisarem a legenda de la belle et la bête.

Poucos espíritos resistem ás seducções de um baile. On rencontrera tout ce qu'il y a de mieux dans la societé -- era a phrase que rapidamente circulava nas coteries do mundo elegante- Seria realmente um grave delicto contra o bom tom, não tomar um copo de neve nas salas da viscondessa.

A rainha da festa estava entregue a uma prodigiosa animação... espirituosa. Parecia que por milagre fôra restituída aos dezoito annos. Ornara os lábios com o seu sorriso mais seductor, e os olhos pareciam estar absorvidos numa vaga abstracção.

Umas vezes, languida e abatida, parecia que as palavras lhe saíam com o hálito embalsamado: outras vezes, fallava com uma precipitação febril, dando á voz uma intonação apaixonada e vibrante.

Mauricio não podia deixar de apparecer no baile. Pallido, com os cabellos em desalinho, com os olhos abrasados de paixão, e de cólera, sentia o peito devorado pelos mais oppostos sentimentos Encostado á ombreira da porta, posição que os Othellos escolhem de preferencia, os seus olhos dirigiam se para os grupos que circulavam, com uma expressão de silenciosa ameaça. Se a naturesa lhe houvesse concedido as forças de Samsão, talvez não hesitasse como o heroico hebreu em abalar a columna do templo, para morrer vingado sob as suas ruinas.

A viscondessa sentiu, ao vêl-o, um sentimento de vaga curiosidade, e reconheceu que o poeta estava acommettido de verdadeira paixão. Dirigiu se para o logar aonde elle estava, e movendo com intensão o ramalhete, deixou cair uma camelia.

Mauricio teve ao principio o desejo de beijar a pobre flôr abandonada, de a apertar ao coração, para depois lhe arrancar as folhas, pisando-a aos pés com despreso:

mas impellido pelo desejo de se aproximar da viscondessa, com um motivo plausivel, apanhou a camélia, e foi offerecer-l'ha.

Não encontrou a viscondessa de sobresalto. Era mestra já n'estas tacticas de galanteio, que occupam os mortaes desde o principio do mundo. Retirada para uma sala anterior descançava com languidez sobre um sophá, com a cabeça morbidamente encostada á mão, com os olhos baixos como se não podesse resistir ao cansaço que a oprimia: era a imagem de uma sultana favorita, que os prazeres monotonos do harém enfastiam.

-- Venho trazer-lhe, senhora Viscondessa, a camélia que ha pouco deixou cair do ramalhete -- disse Mauricio com voz pausada.

-- É uma camelia vermelha! O vermelho é a côr da guerra -- respondeu a viscondessa, estendendo a mão, e tomando a flôr.

- É a côr do sangue! Se fosse branca, podia ser o symbolo da innocencia! -- exclamou Mauricio com uma pronunciada intensão.

-- E podia acontecer assim ! as lagrimas da dôr tudo podem expiar! -- disse a viscondessa com intonação melancolica.

-- Nem todas as faltas se apagam com o pranto... e ha crimes que Deus perdoa talvez, mas que o arrependimento não póde remir!-- accrescentou Mauricio com voz trémula e convulsa.

A viscondessa, apezar do seu sangue frio, tornou se pallida. Olhou fitamente Mauricio, para conhecer até que ponto podia desvanecer as apprehensões que lhe dominavam o espirito: um sorriso acudiu aos seus lábios: conheceu que lhe seria facil conseguir a victoria.

-- As lagrimas só valem quando de todo morreu a esperança! disse ella.

-- E quando já se descrê do amor ?

Quando se teme aspirar o hálito que nos embriaga, fitar os olhos que nos enfeitiçam, e se retiram os labios dos beijos que nos poderiam realisar tão suaves delicias ! Quem sabe se essa flôr que sentira as pulsações de um coração que se anciava possuir, não esteve a ponto de ser arremessada no meio das salas, para se desfolhar entre os pés dos dançadores.

-- Cruel pensamento teve! -- exclamou a viscondessa com ironia.

-- E talvez fizesse mal em o não executar! Ha presentimentos que não enganam:

e apezar do grato aroma que exhala a mancenilla, ái do viajante que adormece á sombra da sua frondosa ramagem.

-- Dou-lhe os parabéns pela poesia da imagem : mas não creio que dê a morte aos que de mim se aproximam -- com tão fatal prerogativa, em breve ficaria isolada e sósinha.

-- Oh! senhora viscondessa, exclamou Mauricio com energia, ha quem affirme que ha paginas no seu passado, tão vermelhas de sangue como a côr d'essa camélia!

-- Accusa-me ! offende uma mulher na sua própria casa, quando essa mulher o acolhia com toda a consideração e sympathia, e devia esperar em vez de expressões amargas, ao menos uma palavra consoladora !

De ninguém o estranho mais, do que d'aquelle, a quem consagrára um profundo affecto, e que m'o retribue com suspeitas injuriosas!

Mauricio quizera fechar os olhos para a não vêr, tornar surdos os ouvidos para a não ouvir; a fingida emoção com que haviam sido proferidas aquellas palavras tornaram-o delirante; caiu aos pés da viscondessa, e tocou com os lábios as tranças soltas do seu cabello.

-- Será esse um beijo de reconciliação, e de paz? disse a viscondessa com meiga e ingénua voz.

Mauricio teve alento para dominar os seus sentidos abrasados: as palavras solemnes e severas que D. Affonso lhe repetira, repercutiram-se-lhe aos ouvidos, e levantou- se n'um violento e supremo esforço- -- Devemos ficar estranhos um ao outro ! -- repetiu elle com um modo triste -- entre nós não pode haver nem amor, nem odio -- seja apenas o esquecimento!

-- Esquecêl-o! -- quem é que póde dominar o coração, e arrancar viva dalma a esperança d'um amor, que se annunciava tão ardente!

-- Louco sería o que confiasse nas promessas que se proferem, e o coração não ractifica - e nos juramentos, que duram tão rápidos como o som das palavras!

-- Bem vejo -- exclamou a viscondessa assumindo um ar solemne -- que me calumniaram aos seus olhos, que deturparam o meu caracter, que envenenaram os actos mais innocentes da minha vida! Espere-me aqui, depois de findo o baile, e conto que hei de justificar-me!..

Os convidados haviam-se retirado. As salas estavam completamente vasias. Os primeiros clarões do dia penetravam pelas aberturas das janellas, patenteando a desordem que succede ás agitações de um baile.

O pavimento estava juncado de flores; os ramalhetes esquecidos sobre as poltronas e sophás.

A viscondessa, apezar da pallidez que as fadigas e emoções da noite lhe haviam derramado no rosto, dos seus cabellos em desalinho, do seu ar abatido, e dos olhos languidos, mostrava-se bella, como uma flôr robusta, que resiste aos furores da tormenta: a brancura transparente das faces sobresaía nas cores vivas da console aonde se sentára, como o lirio entre rubras e opulentas camélias.

-- Estou muito cançada! disse ella, levando a mão á testa, e deixando pender a cabeça com frouxo desalento, devo parecer-lhe desfigurada, não é assim? E' grande prova de confiança, affrontar os primeiros raios da aurora, deante de qualquer homem, a quem desejámos agradar.

-- Não tenha receio, viscondessa -- respondeu Mauricio com um certo tom de ironia -- as flores sempre se ostentam mais formosas ao romper da madrugada, -- quando começam a erguer as pétalas húmidas do orvalho da noite para o sol que desponta no horisonte!

-- Se a poesia nos seduz o espirito, disse a viscondessa, raras vezes a podemos suppôr sincera! Quando é que os lábios de um poeta revelaram o affecto que sentia o coração?

-- Então concede só aos homens de inferior intelligencia o privilegio do amor?

-- É que nós, as mulheres, temos ciume das paixões que engrandecem a nossos olhos o homem que preferimos. Aspiramos a reinar no seu coração, exclusivamente: é que quando vêmos no seu rosto qualquer pensamento que nos não pertença, o nosso sentimento fica offendido!

-- Que pensamento descobriu em mim que lhe desagrade ? disse Mauricio afastando os cabellos que lhe caíam sobre a fronte.

-- A ambição; e para o homem dominado por essa paixão insaciável, o amor não poderá ser senão uma preoccupação passageira e ephémera ! Quando a vida política afrouxa, quando as luctas se moderam no seio da tranquillidade e da paz, amam talvez para darem pasto á energia das suas faculdades, -- mas qual será a mulher que poderá apoderar-se inteiramente da sua alma, e tornar se a mais suave esperança da sua existência ?

-- E não será a ambição da mulher, n'esse caso, ainda mais exclusiva, exigindo o nosso sacrifício tão completo ?

A viscondessa nada respondeu: depois, como accommettida d'uma idéa, apoderou-se do braço de Mauricio, e fallando lhe com voz pausada e maviosa, disse-lhe:

-- Como se póde crêr n'um amor, que desde o principio se mostra sem fé: na firmesa de um coração, que accusa a mulher que ama: e que em vez de repellir, acolhe as horríveis calumnias com que teem amargurado a sua vida!

-- Ha momentos em que toda a dúvida desapparece, quando se ouve a voz de um homem que se estima devéras, repetindo nos com tom solemne cousas, que outra bocca não podia proferir sem que nos arrancassem primeiro a vida ! Quando a mulher que acreditávamos pura e santa, perde a sua auréola de virtude, que nos resta senão deplorar a perda das illusões, que nos encantavam a imaginação!

-- Ha muiio que me teria afastado do mundo, se esta resolução não podesse confirmar as ignóbeis accusações com que ousam ultrajar-me! As mães hão de fazer justiça ao meu coração.

-- Talvez -- exclamou Mauricio.

-- A minha dignidade prohibe-meo revelar-lhe a infamia d'esse homem que quizeram transformar em Victima dos meus caprichos !

-- Pois não o amou?

Um movimento de cólera tornou lividas as faces da viscondessa. Depois contendo este primeiro e involuntario movimento, caiu sobre o sophá suffocada em lagrimas.

Mauricio enterneceu se, e pegando-lhe na mão, levou-a aos lábios com uma piedosa ternura -- A sociedade é implacavel e infame -- disse ella com voz afogada em pranto -- e quando uma vez offendeu uma reputação, embora injustamente, repelle tudo quanto a possa rehabilitar. Minha filha se nos ouve, bem sabe se estou ou não innocente, as lagrimas que derramei sobre o seu miseravel destino, as tentativas que fiz para a reconciliar com esse infame que a abandonou!

E fechando os olhos, deixou cair com languidez a cabeça sobre o hombro de Mauricio. Depois, as lagrimas caíram-lhe como pérolas fio a fio pelo rosto.

Mauricio sorveu aquellas lagrimas em sôfregos beijos. A sinistra visão da filha immola- da ao ciume d'aquella mulher desvaneçeu-se-lhe da imaginação. As chammas da sua paixão purificaram-a; e entre inebriantes caricias esqueceu os seus sinistros presentimentos...

CAPITULO VII

Anjo, Mulher, e Demonio.

Mauricio A D. Affonso

Pegando na penna para te escrever, cedo á irresistível sympathia que desde os meus primeiros passos na vida me aproximaram de ti, á necessidade de vasar n'um coração amigo os pungentes pensamentos que me agitam e devoram!

Se a ambição, para algumas almas, é uma lenta agonia, ao menos é animada pela esperança, e as illusões não desfallecem, quando os acontecimentos mais ou menos favorecem essa insaciavel paixão.

Supplicio sem nome, nas luctas tremendas da vida, é sentir um vacuo immenso dentro d'alma, é vêr a dúvida roendo-nos as crenças, como os vermes os cadaveres no fundo dos sepulchros: é quando o nosso espirito diz ao coração que as suas ardentes aspirações são absurdos delirios, que os pensamentos de felicidade pertencem ao mundo dos vagos sonhos.

Feliz época era aquella em que os homens podiam empregar a actividade do seu espirito, explorando os mares ignorados do Oceano, ou penetrando com aventuroso heroísmo nos desertos do Novo-Mundo.

Amo agora de novo, com apaixonado delirio, com supersticiosa adoração. Déra todo o meu sangue para alcançar um olhar piedoso dos seus olhos : todos os perigos affrontaria, para beijar com santa veneração a orla do seu vestido, quando ella serena e devotamente ajoelha, elevando as mãos ao céu, e orando !

Mas é possivel porventura amar com confiança, quando se rião acredita na eternidade das affeições humanas? E todavia como é suave o perfume dum puro amor!

Como é doce repousar dos cuidados da Vida sobre um coração terno e fiel!

Mas poderá ella amar-me algum dia ?

Milhares de obstáculos nos separam: a minha coragem desfallece, quando contemplo os preconceitos, as mesquinhas considerações, as fofas e ocas soberbas, que tendem a afastar-nos um do outro.

Deus ter-nos-hia prohibido saber e amar ao mesmo tempo ? Será necessário destruir as aspirações da alma para dar energia á intelligencia ? Deveremos calar a voz da rasào, para nos entregarmos, imprevidentes e confiados, ás delicias do amor? Embora os mares estejam embravecidos, affrontarei a tempestade: embora os baixos se levantem no seio das ondas hei de largar as vélas ao meu frágil baixel! Oh! não receies, mulher, que verteste, na minha solidão, o balsamo de um divino sentimento :

não o deixarei perder: encerrai-o-hei no coração, como uma preciosa essencia!

O espírito hesita perante estas crueis dúvidas. Embora o affecto nos rebente poderoso no peito, os céus da esperança tornam-se sombrios e anuveados. E' necessário suffocar as nobres ambições que o mundo não comprehende. E quem me pode assegurar -- ái de mim ! - que a hora da posse, não venha destruir as minhas férvidas illusões? Quantas vezes o leito aonde encontramos o prazer não se converte no tumulo da adoração, que absorvia a nossa alma?

Alente-me o orgulho, este orgulho que se alimenta de acerbas dôres, como o dos anjos decaídos, que a cólera de Deus fulminou !

Talvez estranhes a minha inconstância, a prodigalidade excessiva d'estes affectos, que variam ao sabor de uma caprichosa sensibilidade. Quem póde adorar um idolo abatido e aviltado pela infamia ? Amar, sem que o objecto do nosso culto, se eleve pela grandesa do espirito, pela excellencia do coração, é a mais horrivel das abdicações moraes- Quando já nada temos a invocar no céu, deseja-se que na terra não desappareça de todo a luz da crença. E' a alma do impio, que com maior fervor é attrahida para as illusões de um vago ideal. As estrellas apagam se no azul do firmamento: espessas sombras roubam-nos o esplendor dos astros:

o vento devastador da tempestade despe os campos das flores que o matisavam:

mas a nossa Vigorosa esperança resiste a estes quadros de fúnebre desolação !

Julgas acaso que não tenho remorsos, quando a imagem de Paulina se ergue no meio das minhas meditações ?

Não nos podiamos comprehender. Nem as agonias da minha alma, nem os delirios da minha intelligencia exacerbada encontravam écho no seu coração!

Fui cruel, fui de certo egoista: abandonei a sem unia palavra de piedosa despedida -- sem um adeus sequer! Vi-a chorar, e não lhe enxuguei o pranto que das faces lhe corria: vi a succumbir á dôr, pallida, quasi moribunda, e não a apertei ao coração para a reanimar!

N'esse momento solemne, o desespero apoderára se da minha alma com Violência, os meus olhos não tinham lagrimas para derramar : os instinctos da humanidade eram absorvidos pelo meu proprio soffrimento.

Gelara se-me o sangue nas Veias: as artérias já não palpitavam, a minha mente estava entorpecida: convertéra-me n'uma dessas estatuas, arrefecidas por uma fria rajada de vento.

Quem me déra poder consolal-a, obter o perdão do meu crime, e saber que se resignava ao seu martyrio?

Teria talvez, n'esta nossa fatal união, um papel sublime a representar. Porque não poderia eu abraçar a existência modesta, que Paulina podia viver comigo?

Porque não pude eu repelir as esperanças que me abrasavam a mente ?

E de que lhe Valia, a ella, esta ignorada lucta com as ambições da minha alma?

Oh! maldigo o instante em que fascinado pela sua belleza e candura, pela innocencia das suas meigas palavras, lhe repeti protestos ai dentes entre inflammados beijos! Como o voraz abutre, despedacei nas minhas garras a frágil pomba; e arrancando a ás caricias de uma mãe adorada, não pude com o meu amor substituir o mais extremoso e exclusivo de todos os affectos -- o amor maternal!

A quem devo eu accusar d'esta tremenda decepção ? Cingia ao meu peito uma mulher, e não a companheira das minhas penosas Vigílias! A cruz éra muito pesada para as minhas debeis forças: prostrado e abatido, não havia mão piedosa que tornasse mais suave o meu caminho entre as ingremes e asperas devesas.

Nos meus sonhos ainda a contemplo como quando lhe disse o ultimo adeus, e a Vi cair aos meus pés fulminada pela dôr!

Mas que podia ella fazer por mim? Aonde havia de encontraram coração que saciasse os meus ambiciosos desejos! O que queria eu ? Uma alma que se absorvesse com a minha n'uma mesma adoração. Tal alma não existe nem póde existir n'este mundo.

O anjo melodioso que comigo canta e padece, ha de voar para o céu solitário e triste !

O amor da viscondessa, que despontou no meu peito delirante e phrenetico, veiu exacerbar a febre que me devorava ! Tive a audacia de despresar os teus conselhos, e de contemplar as suas mãos, manchadas pelo sangue, e as suas faces aonde se via ainda impressos os beijos dos seus amantes !

E não córei .de mim mesmo, e acreditei nos meus devaneios, que as estatuas, frias e inanimadas, se poderiam animar de vida como a Galateia ao sôpro omnipotente de um apaixonado artista!

Se a visses, como eu a vi, ao clarão das luzes de um baile, dirias que era bella, divinamente bella essa mulher! Nos olhos negros scintillaVa esse raio de intelligencia que aviva e completa a formosura. O perfil que tinha alguma cousa de imperioso e arrogante denunciava uma d'essas organisações energicas, creadas para os amores vulcânicos. Quando as tranças do seu cabello lhe caíam em grossos anneis pelo collo altivo e esbelto tomava o seu vulto o aspecto de uma dessas antigas romanas, em cujo robusto coração ardia o sentimento da patria a par da ternura da mulher!

Desmaiar de íntimo e voluptuoso prazer aos pés de uma amante querida, estremecer bafejado pelo seu hálito embalsamado, sentir as lagrimas vertidas peio amor enxutas pelos seus cabellos, e acordar nos braços de uma mulher insensível, tornar-me instrumento de um ephémero capricho, contentar os bastardos desejos dos seus sentidos... Adorar a estrella, e não poder beijar senão o seu pallido reflexo nas aguas negras do lago embravecido pela tormenta!

Fuja me do pensamento esta recordação impura! Elevarei o pensamento até ás religiões ethéreas aonde adejam as esperanças divinas!

Era n'um dos dias da semana santa. Divagava sem destino pela cidade. Nas egrejas celebravam se os officios divinos. Entrei. As abobadas resoavam com o som de harmoniosas vozes. Apezar da semi-obscuridade que reinava n'aquelle recinto, em breve os meus olhos começaram a distinguir a multidão ajoelhada e contricta.

Sobre um dos degráus da teia estava um vulto de mulher, de vestidos negros, com os olhos em alvo, com as mãos erguidas, com os labios entreabertos e orando.

Não poderia ter mais de dezesete annos:

e a sua formosura seria só comparável a essas virgens com que o pincel arrojado de Murillo povoou os templos da sua encantada patria.

Não t'a posso descrever miudamente.

Tenho-a retratada na memória, contemplo a sua imagem em sonhos, e todavia vaga e indistincta. É a cabeça de um anjo sobre o corpo de uma fada. Amei a apenas a vi, e que cousa ha no mundo que possa substituir a exaltação e a embriaguez do amor?

Quando essa divina chamma nos illumina, que valem os pensamentos de gloria, as acclamações que se perdem sem écho, na immensa amplidão do espaço?

Agora nasceu para mim um supplicio intenso, contínuo, devorador-a incertesa !

Se eu me soubesse amado, se ella lançasse sobre a minha vida um olhar de piedade, que me Valia morrer depois, com o presentimento da felicidade no coração?... A morte é ás Vezes a mãe terna, que vem cerrar os olhos ao filho abatido pelo cansaço, e que sorri no somno ás suas caricias extremosas !

Terei eu, como os personagens de Byron, a sciencia do desespero unida á mocidade da Vida ? Já estará a minha alma desencantada e esteril, antes de se haver banhado nos delírios sublimes do sentimento?

Oh! não! o que pesa sobre mim é a fatalidade das paixões, mais poderosa que a fatalidade do destino. Eu tenho o espirito devorado de cruento scepticismo, e o coração ainda viçoso de illusões e de esperanças. Se elle me palpita insoffrido no peito !... Se elle quer despedaçar a cadeia que o prende ao finito da matéria, para se elevar aos espaços infinitos da idealidade, e do amor!

E não queres que acredite que a mulher é uma religião tão santa, tão sublime como a da immortalidade -- que se um homem a perde um dia, cáe lhe da fronte essa corôa soberana, que lhe concedeu a realesa na terra ?

A gloria não basta para satisfazer as ambições do nosso espirito! As suas coroas murcham breve! O écho das acclamações rapidamente expira no silencio.

E de que vale o enthusiasmo, quando não parte espontâneo do coração ? A todos os grandes feitos apenas sobrevive um nome : Alexandre a Arbelle, Cesar a Pharsalia, Bonaparte a Austerlitz.

Sei que nunca terei a coragem de lhe revelar este segredo : ha entre nós um abysmo -- é o meu orgulho. Se o seu nome é nobre, o meu poderia tornar se illustre, se porventura o destino me tivesse feito nascer n'uma terra propicia a animar as vocações esperançosas.

Embora! Ha encantos no padecer, e os tormentos teem em si o proprio lenitivo.

Felizes os que soffrem porque já contemplaram as perspectivas da felicidade! Só os olhos que viram a luz se cerram dolorosamente, quando as trevas se aproximam!

E não é acaso venturosa a flôr que arrancada da haste delicada e fluctuando na corrente impetuosa do rio, teve lábios que a aspirassem um momento, embriagando-se nas voluptuosas emanações do seu perfume!

Sem estes desejos de que valeria a vida? Vegetava-se estupidamente: arrastava-mo-nos sobre o rasto de mesquinhos interesses : rojar na insolência da dominação ou vermo nos confundidos no seio das turbas. Embora as paixões nos devorem o coração, e um fastio devorador succeda a estas férvidas agitações: a morte e a Vida pertencem-nos, e podemos tarde ou cedo repousar das fadigas.

Vi-a depois n'um baile, ouvi o som da sua voz, senti no coração a Vista dominadora que lançou sobre o grupo aonde eu estavá, e não adivinhou que havia ali um ente que daria por ella não digo já o sangue, mas a alma, até ao pensamento derradeiro !

E quando entrou na carruagem, caiu lhe uma rosa do ramalhete, e essa, possuo-a, é minha, está orvalhada com as minhas lagrimas, está aviventada com os meus beijos, é a minha Vida, o meu thesouro, é ella !

Louca superstição, fanatismo pueril, dirão os que não sentem os que nunca amaram, os que nunca sentiram accendida no peito esta chamma mysteriosa da adoração !

O que é uma pobre rosa, privada dos orvalhos bemfazejos da aurora, sem brisa que a bafeje, sem sol que a illumine, desfolhada e secca, desbotada de viço e frescura ?

É que ella aspirou o hálito abrasado do seio; é que roçou os seus vestidos ; é que se inspirou da sua bellesa ; é que é tão infinito o poder da mulher que se ama, que engrandece, que santifica tudo quanto lhe pertence !

Não te tornes interprete do egoismo do mundo, aconselhando-me que esmague este sentimento, e que lhe dê por unico pasto o coração: já não é tempo: deixa-mé conservar esta derradeira illusão.

Vejo florir esta flôr. É a mais energica expressão do desejo : e feliz será o homem que poder aspirar o seu perfume. E não sei que vaga analogia existe entre ella e essa mulher, ingénua e simples, para a qual a estação do amor se aproxima.

Esta sombra, esta imagem concebida em vagos sonhos, vive em mim com todos os prestigios do mysterio: quem m'a poderá arrancar do coração ?

CAPITULO VIII

Noites de abril

Carta de Mauricio A D. Affonso:

Casta diva qui inargenti
Queste sacri antiche pianti
A noi volge il bei sembiante
Senza nube e senza vel.
Tempra tu dè cori ardenti,
Tempra ancor Io zelo audace,
Spargi in terra quella pace
Che regnar tu fai nel ciel.
FELICE R MANI

Poude vel-a, dirigir-lhe algumas palavras, e recebi no coração um brando volver de seus olhos, sereno e tranquillo como o suspiro da criança, quando acorda de um somno plácido e innocente.

Era numa noite serena de abril. A villa, ao longe, estava em silencio. Ouvia-se apenas o murmurar da brisa, agitando as arvores das montanhas, e os gemidos da onda ao longe, que vinha preguiçosa e lentamente espraiar-se na areia.

A lua brilhava magestosa no firmamento, as estrellas scintillavam nas aguas: dir-se-hia que entre o céu e o mar se fizera um pacto nrysterioso de amor.

O perfume das novas flores, agreste e ao mesmo tempo voluptuoso, impregnava a atmosphera: ouvia-se ao longe o canto do rouxinol! Ó cantor das noites felizes, como diz Obermann, como a tua Voz palpitante e apaixonada faz pulsar o peito d uma commoção electrica!

A cada passo, as tradições phantasticas de Cintra adejavam me pela imaginação, em toda a candidez de uma fé primitiva, em toda a poesia das narrativas populares. Se uma daquellas mouras que dizem estar encantadas, se erguesse de repente perante os meus olhos deslumbrados, o grito do meu scepticismo não lhe havia de quebrar o encanto. Eu cria nas estrellas e no mar, eu abençoava os aromas das montanhas, e da campina, que adormecendo a actividade do meu pensamento, me embriagavam nos sonhos vagos e aerios, que nos sorriem nos primeiros annos da vida !

Então repercutiram se-me ao ouvido aquellas palavras de Shakespeare no coro do 1 0 acto de Julieta e Romeu : -- «Adeus, primeiro amor, desejos ardentes, agora esquecidos ! Tendes o vosso leito de morte:

uma nova paixão vae recolher a vossa herança !» Julieta e Romeu, a aspiração querida das almas elevadas! Esse amor puro e ardente, como as noites da Italia, ideal, e ethéreo como a imaginação do norte!

Quem não sentiu os olhos orvalhados de lagrimas, ao lêr aquelle dialogo sublime do 3.° acto? Quem não desejou aquelles impetos delirantes de paixão, embora os tivesse de expiar com um trágico desenlace ?

Non, ce n'est pas le jour ! la lune au front d'albâtre Répand sur nos coteaux cette lueur grisâtre :

Non, ce n'est pas le jour ! Ce ramage joyeux Qui dès long-temps résonne au plushaut point des cieux Ce n'est pas 1'alouette à la voix matinale :

L'erreur, si c'en est une, á moi seul est fatale:

Lh ! qu'importe la mort! Qu'en dis-tu mon amour ?

Restons, restons encore, non ce'n'est pas le jour !

Et moi j'ai dans le cceur un funeste présage :

Je ne sais quel prestige a pâli ton visage ; Au pied de ce balcon, maintenant descendu Tu me parais un mort dans sa tombe étendu !

São quasi as ultimas phrases desta scena, são talvez a sentença prophetica do meu destino!

E que me importa se fôr a minha Julieta, que m as repita, com o beijo extremoso da despedida? Um beijo ! Um beijo d'ella !...

Assentei-me sobre a relva, reclinei a cabeça sobre a mão, alonguei a vista pelo campo esmaltado de flores, cujos cálices semi-abertos pareciam elevar-se a beber as emanações pallidas da lua, que tremiam reflectidas na ossada das rochas.

Não sei quanto tempo estive assim, immovel e silencioso, nesse gosar íntimo, e indefinido, de uma saudade remota, e de uma esperança indistincta! Esperança louca, esperança maldita porque se póde arrostar com o odio, ha poucas coragens que affrontem o desdem do mundo !

Entre Romeu e Julieta havia a vingança extrema de duas familias rivaes, havia o cadaver ainda fresco de Tylbalt: entre mim e ella, poderia haver a suspeita de uma vaidade ridícula, e de uma cubiça torpe!

E sempre estas cruéis considerações envenenando estas já tão escassas horas de abandono ideal! Que me importa, n'èste deserto do mundo n este campo toldado pelo azul do céu, que exisra uma sociedade devorada de paixões ignóbeis, e de preconceitos cruéis? Não está a noite silenciosa, e a naturesa adormecida ? Para que não hei de abrir a alma a este hálito embalsamado, que exhalam as flores selvagens?

Acaso foi Deus que atirou ao centro dos homens taes germens de desunião e de lucta cruenta? Hei de eu, antes de amar, perguntar ao mundo indifferente, se provoco a sua indignação, ou incorro no seu despreso ? E se esse amor fôr condemnado, hei de separar me d'e!le como Hercules da túnica de Nessus, levando comsigo os pedaços palpitantes do meu corpo ensanguentado ?

Senti uns passos trémulos arripiarem a relva, não virei a cabeça, e todavia o coração palpitava-me com tal força, que chegava a produzir-me uma impressão dolorosa.

E depois, entrevi no meu vago delirar as formas aerias do seu corpo delicado, vi um sorriso divino illuminar-lhe a physionomia pallida, ouvi a mansa harmonia de algumas palavras murmuradas em voz baixa, virei a cabeça -- era ella!

Ó mysterio insondável de um amor ardente ! Ó presentimentos encantados, que a sciencia nega, e que o coração affirma e realisa! A'quella hora, n'aquella solidão, longe da villa, entregue ao repouso- quem me poderia dizer, que appareceria, Vestida de branco, com os anneis negros do cabello fluctuando desalinhados á aragem da noite, ainda mais bella, allumiada pelos reflexos melancólicos da lua, que lhe morriam no rosto, e a rodeavam como de uma auréola divina?!

Encostada ao braço de uma mulher mais edosa, ella passou ao meu lado como uma visão, sem me vêr, sem perceber que os meus olhos a seguiam anhelantes, que a minha respiração anciada lhe enviava os mais puros effluvios da minha alma: que a perseguiam esses desejos vagos da adoração, que despontam nas almas eleitas, que eu estava ali para a amar como um anjo, para lhe obedecer como um escravo, para a cantar como um poeta !

E passou sem me vêr!

Segui-a, de longe, sustendo a respiração, e temendo que o menor ruido a fizesse estremecer de susto, e me acordasse a mim, d'aquelle sonho delicioso.

Parou no alto de uma collina, e ali, em pé, silenciosa, immovel, pareceu enlevar-se na contemplação d'aquella naturesa, opulenta de vida e de magestade. Pouco distante d'el!a, a campina esmaltada, já com as flores húmidas pelo sereno da noite, pérolas que a mão de Deus confia ao seu seio agitado, e que lhe reanimam a seiva enfraquecida pelos calores do dia. Ao longe, o Oceano, perdendo se nas linhas vagas e infinitas do horisonte, manso e sereno, como o cordeiro adormecido, e que apenas se move na quietação do somno.

O Oceano, essa solemne demonstração da grandesa de Deus, e da immensidade da creação. Face do problema proposto ao desejo infinito, e ao poder limitado do homem, livro devassado pelo genio aventuroso das nações heroicas, e cuja superfície ou nas pompas da tormenta ou na serenidade da calma, esconde perpetuamente os seus abysmos insondáveis.

A terra com a deliciosa Variedade da sua vicejante producção: o mar com a sublime e austera monotonia da sua extensão infinita: o céu cobrindo tudo com o seu manto de estrellas rutilantes, e parecendo sorrir aos encantos d'esta noite de primavera, bafejada pelo aroma das plantas, e embalada pelas brisas que esvoaçam sobre o Oceano.

E ella, bella e ideal, como um anjo, que repousasse um momento no silencio da noite, para depois desprender um vôo angélico para as regiões ethéreas, aonde o infinito do desejo se embebece nas perspectivas da eternidade!

Século maldito, que renegaste o Christo, e que afastas os olhos do céu ! O teu Deus é a sciencia, p tua fé, a liberdade; engrandeces o teu orgulho nas mais phreneticas aspirações, e resignas-te ao pensamento de ter por lenço! algumas camadas de terra, perdendo a esperança da bem-aventurança promettida aos que amaram, aos que soffreram cá na terra!

Flôres?... quem nos diz que ellas não são filhas da morte? O lirio, que se balouça suavemente ás correntes caprichosas da aragem, talvez Teceba o cândido perfume das cinzas esquecidas de alguma pallida virgem, ceifada na aurora da vida ! Quantas lagrimas de saudade, ou de agonia, não tornam Viçoso este campo, que as bebeu nas rajadas de vento ou nos orvalhos da noite!

Para que me fez nascer Deus n'este século arrefecido pelo estudo, verdadeiro Fausto, cuja fronte calva e triste debalde se inclina a perscrutar os segredos da naturesa e os mysterios da creação ?

Oh! eu queria amar na singelesa e na innocencia das eras primitivas! Eu queria acreditar que os lábios da minha amante se pousariam sempre viçosos e férvidos nos meus lábios ardentes!

Nos sorrisos angélicos que desabrocham á vida, nunca quizéra vêr o presentimento da morte!

Felizes aquelles que podem apertar nos braços uma mulher candida e ingénua, sobre a qual não se fitaram ainda os olhares do mundo, e que nos entrega a alma, com todas as suas illusões, o corpo em toda a puresa dos seus virginaes encantos !

E ella ? Já terá impresso na fronte o stigma com que a sociedade marca os seus fieis vassallos ? Já os seus olhos terão percorrido as paginas sinistras do livro da Vida ! As orações que dirige ao céu serão uma aspiração elevada de amor divino, ou imploram já o perdão de um pensamento culpado ?........

Estas dúvidas cruéis envenenam sempre as mais profundas crenças da nossa alma !

Mas a poesia d'aquella scena grandiosa e magnifica absorveu-me a imaginação. As recordações da nossa antiga gloria vieram associar-se aos esplendores que me deslumbravam. Senti-me inspirado pelo sentimento da patria, e repeti o magnifico recitativo do Tancredi de Rossini: -- Ó cara patria!

Terra degli avi - ti bacio!

Os échos repercutiram a minha enthusiastica invocação. E logo depois uma voz terna e maviosa, pareceu responder me.

Era ella que enviava ás auras da noite as harmonias da sua alma. Nunca a Casta di' a de Bellini me pareceu tão repassada de uncção apaixonada, e sentimento religioso. Bati as mãos transportado; saltaram me as lagrimas dos olhos, espontâneas e ardentes: caí de joelhos, no meu phrenetico delirio, e olhei a lua, que me parecia, ainda mais formosa, abençoada por aquella mimosa bocca, e fitada por tão formosos olhos!

Encontrar-se-hiam os nossos dois pensamentos na mesma aspiração? Unir-se-hiam as nossas duas almas, abrasadas pelo mesmo culto? Teria ella adivinhado o que se passava no meu coração, e não conheceria que eu prezava a terra que ella pisava, o ar que o perfume da sua respiração me fazia aspirar com delicias, a lua que vinha quebrar os seus raios no meu rosto depois de a haver illuminado a ella, de esplendor, e de luz?

Aproximei me do sitio aonde ella estava. Voltou, o rosto e sorriu-se. -- Merece bem um tal canto, esta noite, não é verdade? disse eu. -- Bem pobre, pobre de mais para os que o ouviram! -- respondeu ella, com a intonáção pretenciosa e affectada que é de estylo nas salas.

Afastei me melancólico e triste. A mulher da sociedade manifestára se através das formas ideaes d'aquelle anjo. Para que viéra uma recordação do mundo que eu despréso, profanar a suave abstracção em que ambos existíamos?

Não eram para ali as phrases de banal civilidade, que pervertem todos os sentimentos do coração. Sentia-me n'outras regiões, e respirava outro ar. Antes o perfume agreste das flôns da campina, que o aroma das voluptuosas essencias nas salas de um baile!

CAPITULO IX

Scepticismo

Carta de D. Affonso a Mauricio

As tuas duas cartas vieram quasi ao mesmo tempo, perturbar de algum modo a serena tranquilidade da minha vida. Bem podes suppôr que a poesia que ellas encerram, abasteceria duas gerações inteiras de homens, que prefiram a taes devaneios as delicias de uma commoda ociosidade.

O mundo onde me quizeste conduzir, é inteiramente novo para mim. As tuas idéas passando através da atmosphera abrasada da tua imaginação, revestiram as formas de um romance phantastico, de algum novo Werther ou Oberman, meditado nos intervallos d'esses banquetes alemães aonde a cerveja e o cachimbo inspiram a imaginação e dão azas á phantasia.

Já me sinto velho, ou para melhor dizer, fugiu de mim a mocidade. Os annos não correm, vôam. Vivendo, desde criança, n'essa sociedade qúe tu odeias como um poeta, perdi cedo essas aspirações ideaes, que alimentam as existências solitárias, as luctas gloriosas e as vocações soberanas.

Modesto nos meus desejos nem quiz arrancar da arvore da sciencia o vedado pômo, como o Fausto, de fronte calva, e triste, nem como o D. Juan de Byron, percorri os ardentes climas do meiodia, e as regiões voluptuosas do oriente, procurando apagar a sêde dos meus desvairados sentidos.

Houve uma quadra na minha vida, em que me converti n'aquillo que vulgarmente denominam elegante. Senti essa especie de allucinação que a magnificência do luxo e os prazeres da sociedade despertam. Entreguei com resignação a cabeça a um cabelleireiro, e cheguei á ser citado com louvor pelo nó irreprehensivel das minhas gravatas -- a quinta essencia da sciencia do toilette.

Contemplei, de olhos extasiados, essas bonecas espartilhadas, de cintura de vespa, que despendem os mais preciosos momentos da vida nos namoros banaes, que são ridiculos, quando se não tornam escandalosos.

Não desmaiei de horror vendo as physionomias pallidas das mulheres depois de um baile, e os anneis do seu cabello, humidos de suor, e languidamente desalinhados pelos rápidos movimentos das Valsas sem fim.

De todos os affectos, que reparti prodigamente com essas creaturas, qúe Deus formou para a nossa felicidade na terra; de todas as illusões que desfolhei n'este valle ameno da Vida, só sinto dois com vigoroso alento a amisade, e a honra!

Faltaram-me as azas para voar a esses espaços infinitos, aonde adejam as almas superiores, e se me não elevei tão alto. não Verti lagrimas para deplorar a minha queda, nem despendi maldições para accusar os caprichos do meu cruel destino!

O amor, no mundo prosaico aonde me tenho educado, existe tão energiço ás vezes como na mente dos artistas, e no coração apaixonado dos poetas. As dóses é que Variam, segundo os temperamentos, o maior ou menor gráu de sensibilidade: mas como elle se converteu em elemento de ordem social, perdeu toda a sua poesia, póde ser optimamente symbolisado na touca que vem adornar a cabeça da esposa, e no barrete de dormir, que resguarda do frio a fronte melindrosa do marido cauteloso.

Nos saudosos tempos do antigo regimen, era pouco ou menos a fusão, a cordeal enterite realisada entre dois nobilissimos troncos de duas illustres familias, que por este meio multiplicavam as glorias da sua genealogia. Gerações escrofulosas e rachiticas nasciam frequentemente d'estas ligações, que só ridículas vaidades inspiravam ; mas as raças afinal, conseguiam regenerar-se, por opportunos sacrifícios á deusa da inconstância !

No nosso tempo, é um contracto, uma especulação, e entra no Deve e Ha de Haver do livro da Rasão. Triumpha a arithmetica e a economia política; e mais de um antigo paladino de brasão immaculado tem prosaicamente offerecido o seu nome a creaturas que elle não receberia antigamente nem para criadas do quarto Assim vae o mundo!

E não penses que me indigno contra elle. O que digo é que o mundo não é para o poeta, que como já disse Zorrilla, es una planta maldita com frutos de bendicion.

Para que não atiras longe de ti essa ambição insaciável do amor? Para que não empregas essa actividade do pensamento, que palpita na tua cabeça, como a lava na cratéra abrasada do vulcão, no mundo exterior, no movimento sempre energico da sociedade politica !

Não arrisques a tua felicidade e o teu futuro na deslumbrante, e passageira visão de uma mulher formosa ! Não a imagines um anjo, para que a não vejas depois, com as azas abatidas, e o olhar baixado para a terra ! Não a queiras sublime, para a não encontrares trivial! Não a julgues um momento superior á atmosphera aonde vives, porque só as existências de excepção é que se manteem livres dos preconceitos, e dos calculos, que o mundo santifica com as unicas provas de penetração, e de bom senso.

Para que me obrigas a dizer te verdades crueis, e a esmagar as tuas illusões com o mesmo sentimento de dó, com que ás vezes vejo o meu cavallo, n'um fogoso galope, desfolhando as flores de uma viçosa campina? O mundo comprehende o ambicioso que dispõe da sua vontade com energia, e caminha sem hesitar ao poder, e escarnece dos que se extenuam em procurar a verdade, como o unico thesouro digno da ambição humana. Porventura o homem que descobriu mais uma estreila entre as infinitas que povoam o céu, ou um arbusto precioso e raro na Flora terrestre, augmentou em alguma cousa o capital da sua felicidade?

«És um doido» eis o que poderá dizer o mundo: e não procurarão lêr na tua fronte devastada pelo estudo as rugas da meditação : e acceitarão sem resentimento o sorriso de desdem, que lhe poderias dirigir, quando te reconheceres rico pela sciencia e poderoso pela vocação!

As minhas theorias, ácerca do amor, differem um pouco das que geralmente vogam. Um homem que ama, sem reserva, sem restricções, confiando abertamente na sinceridade de uma mulher, é um homem perdido Os felizes n'este jogo de parar, são os Vaidosos e os egoistas. Dá-se entre elles a differença dos duelios fingidos. Nos primeiros é quasi infallivel um ferimento ou a morte: nos segundos executam-se com toda a perfeição os botes difficeis da esgrima. E se não fôra assim como se poderiam absolver tantas allianças, a que os mais vís interesses, a que os cálculos mais ignóbeis, deram origem ? O polytheismo veiu substituir-se á candida simplicidade do dogma christão. -- A mulher quando deixa de ser a companheira terna e fiel do marido, converte-se na escrava moça e formosa, que Vem reanimar com voluptuosas caricias os desejos do senhor poderoso, e indolente.

As paixões mysteriosas na nossa alma, os cândidos affectos que purificam o coração, vão desapparecendo d'esta nossa sociedade, prostrada ao culto do bezerro d'ouro Para as mulheres bellas e pobres o amor é meramente uma loteria, aonde pretendem alcançar o prémio de um bom casamento.

Não ha Virtudes, por mais austeras, não ha caractéres por majs elevados, que possam resistir á impetuosa corrente que as impelle para o abysmo das torpes conveniências.

Não é uma phrase admittida no mundo, o dizer-se: « -- Casou bem? -- » Não se póde ser mais claro. É uma formula administrativa, um inventario de fortuna, um balanço, feito segundo todas as regras commerciaes.

O coração é um orgão moral a que a sociedade liga uma medíocre importância.

Annullar as suas mais sinceras e grandiosas aspirações, é o seu maior empenho.

Quando elle é demasiadamente sensivel, procura todos os mçios de o tornar inerte.

Se o podessem completamente dispensar nas relações do sentimento, applaudiria tão assignalada victoria.

Não ha ente mais infeliz do que aquelle que possue um coração moço, e um espirito já encanecido nas luctas da vida. Sentindo com vehemencia, com enthusiasmo, não póde illudir se sobre a catastrophe que o espera. Os prasos da sua agonia estão mar cados em inflexível itinerário. É só a fé que dá existência a todos os cultos, e a todas as virtudes : e a fé não existe !

A deusa que adora a sociedade moderna não é Venus, nem Minerva, mas a deusa da abundancia -- Cybele. É necessário que os seios opulentos da immortal diva , satisfaçam a avidez que devora esta geração. Acceita-se a vida como uma Viagem rapida, e ninguém aspira senão a alcançar uma posição distincta ou uma fortuna opulenta. Bem vês que o coração representa um triste papel, no meio de taes pretenções: privado de affectos, sem ar que respire, sem luz que o illumine, definha até se extinguir de todo, como orgão inutil.

O poeta é portanto um hospede importuno n'uma sociedade, que se entrega á satisfação dos seus desenfreados appetites e onde a pobresa é um crime e uma vergonha. As suas faculdades, embora eminentes, extenuam-se na ociosidade- Deve reduzir se a repetir algumas phrases de sentimento, moeda falsa, que é acceita como é offerecida, sem crença nem enthusiasmo.

Se este quadro tem cores sombrias, não é minha a culpa. Se perseveras na tua pretenção, que não condemno, has de resignar-te ao martyrio. Conduzido, pelos vagos sonhos da tua imaginação, a esse mundo superior, que possue realmente attractivos, admirando a elegancia e a distincção que ali se encontra, respirando o perfume dessas phrases, que as mulheres recitam como os mysterios de um rosário, pensas acaso que encontrarás uma alma que comprehenda a tua?

E não te ensina a tua própria historia, que deves guardar o teu coração como um thesouro, e salval o dos perigos que o ameaçam ? Amaste uma mulher pela sua bellesa, e julgaste que a tua sêde se apagaria, nas caricias abandonadas, e nos beijos delirantes.

E nem ella, nem tu foram felizes! Essas noites de prazer, não te veem ao pensamento como uma recordação saudosa, são avaliadas como um remorso devorador. Depois, tiveste o mais perigoso, e o mais ephémero de todos os amores -- o amor de cabeça-- e assististe á agonia do teu sentimento, viste o fenecer na posse, e só te lembraste que o teu amor era um delirio louco, quando acordaste nos braços de uma mulher, exaltada por um capricho, e que se entregava ás tuas caricias, sem que a idéa do sacrifício nobilitasse a sua queda.

Agora, sentes tudo a um tempo. É o homem, e o poeta, que se empenham no mesmo amor. Adoras, como um artista, a formosura d essa virgem de Murillo: e de pois, porque ella ora n'um templo, e canta n'uma montanha, já a amas, já não existes senão para ella!

E o que fazes do teu orgulho, poeta?

Para que has de cubiçar a estrella, que se ostenta no céu, se a não podes arrancar do firmamento, aonde ella resplandece formo sa e serena? Julgas que ha de vir, inspirada pelo amor, beber nos teus olhos a admiração que se apoderou da tua alma, e implorar dos teus lábios as primícias de um puro affecto?

Se o teu orgulho te prohibe ter esperança, para que tão rapidamente te deixas apoderar de um sentimento, que póde tornar-te para sempre infeliz? De que vale amar, quando não ha força para querer? Absorver o pensamento em férvidos desejos, e não ter resolução para empenhar a lucta, é condemnar nos a um supplicio sem termo, e a um desespero sem allivio.

O amor é o mais difficil problema da Vida, porque não se póde realisar senão pela união de duas vontades. Tiveste a fortuna de contemplar a mulher que póde satisfazer as ambições do teu coração, é acaso razão para que ella encontre em ti o homem que possa tornal-a feliz?

As sympathias instantaneas, que despontam ao primeiro olhar, que affrontam as tempestades do mundo, e as catastrophes da vida, que podem resistir ao tempo e á ausência, esses poderosos dissolventes de toda a affeição, creio bem que só se encontram hoje nos alambicados romances de M.elle Scudéry.

Nem supponhas que a ausência da fé religiosa contribue a engrandecer a nossa adoração pela mulher. Quando se acceitava o nosso existir ephémero como o breve pro logo da nossa futura immortalidade, as lagrimas corriam com menos amargura sobre as nossas faces, e nem as injustiças do mundo, nem as decepções, que a cada passo encontrámos, podiam abalar a nossa confiança no destino.

É feliz o homem que vê brilhar no céu a luz de uma consoladora esperança. Só a fé dá resignação para affrontar as vicissitudes da vida. O maior homem d'este século, expirou com os olhos na cruz, symbolo da redempção. Nem os louros de tantas victorias, nem as saudações de tantos reis, prostrados a seus pés, poderam satisfazer o seu immenso orgulho. Só em presença da morte se tornou digno da sua gloria, pela humildade.

Os sentimentos exaltados passaram de moda. Heloisa e Abeillard se hoje vivessem fariam uma deplorável figura. Newton que sacrificou toda a sua existência ao estudo da sciencia; Galileu que nem deante dos tribunaes da inquisição renegou as convicções que engrandeciam o seu espirito; é muito provável que no nosso tempo passassem por loucos rematados.

Quem, ao vêr esta furia commercial que agita as populações, este ardor com que trocam lãs por café e assucar, algodões por cacáu e colza, cereaes por carvão de pedra, não se compadece dos destinos da humanidade, e não lhe vem ao pensamento os magoados versos do Dante:

Vedrai le gente dolorose
Che han perdutto il ben dell intellecto!

Christo expulsando os vendilhões do templo, unico acto rigoroso que praticou em toda a sua vida, deu um grande exemplo, que os homens esqueceram e que não impede que os usurários sejam os verdadeiros dominadores da sociedade moderna.

Essa fada, esse anjo, que reina no teu coração, é mui provável que apezar da sua innocencia não ignore que os diamantes, que as sedas, que os perfumes preciosos, que as carruagens que devoram o espaço no soberbo galope de dois cavallos de raça, não se alcançam fitando as estrellas do céu, ou respirando a tépida brisa e ouvindo gemer as vagas do oceano. Se já dançou em quatro bailes, se frequenta as regiões do bean monde , podes crêr que é mestra na escripturação por partidas dobradas, e que se lhe não responderem favoravelmente á clássica pergunta: «Tem boa casa?» é natural que limite as suas relações comtigo a pedir-te com voz maviosa e ingénua que lhe escrevas uns versos no seu album.

CAPITULO X

A política no toucador

A viscondessa com o seu maravilhoso instincto, presentiu immediatamente os motivos que haviam afastado Mauricio. Era necessario ser destituída completamente de amor proprio, para não ficar resentida da sua inesperada partida. Resolveu vingar-se, e procurou todos os meios para o conseguir. As mulheres aristocráticas são polidas, elegantes, seductoras, ricas de attractivos, mas implacáveis.

Conhecendo a violência d'aque!le carácter orgulhoso, as desvairadas explosões d'aquella sensibilidade exuberante, resolvera enredal-o numa bem tecida intriga, que humilhando-o, o annullasse para sempre na carreira política. Queria captival-o com a offerta de um logar obscuro de addido n'uma d'essas embaixadas, aonde um homem nem mesmo encontra uma honesta mediocridade.

Era lhe indispensável persuadir o amante e alliado, para que empregasse a sua influencia, e a empresa era facil, se attendermos a que elle era um d'estes caracteres políticos, vulgares na nossa sociedade, cuja elevação era devida a circumstancias que sempre favorecem a ambição : sufficientemente medíocre para não inspirar invejas, possuia um fundo de impudência, que o salvava de escrúpulos, e que o investia da audacia necessária para se insinuar no animo dos que o podiam servir.

O barão de * * * era realmente um heroe, cujas proesas haviam ficado archivadas nas folhas de alguns boletins, escriptos na embriaguez da Victoria. De uma intelligencia acanhada, e pouco culta, a confiança que parecia ter nos seus talentos, era o mais decisivo symptoma da sua ignorância, em todas as questões. Alcançando a sua posição, pelos caprichos ministeriaes, e não por serviços reaes ao Estado, ligava á philaucia insolente do parvem, as maximas dissolventes d essa sciencia que os espíritos pequenos confundem com a da política, e pela qual é licito calcar aos pés a consciencia e prescindir de todos os princípios da moral.

O barão ostentando nas suas conversações um grande desdem pelas mulheres, era todavia dominado inteiramente pela viscondessa, nympha Egeria que o inspirava e a quem devia uma parte dos seus successos políticos. Animo debil e gasto, com prazia se n'esta ociosidade mental, que lhe deixava livre o tempo para os prazeres, e adorando a sua própria capacidade, attribuia sempre a si os favores da fortuna.

-- Meu caro barão -- dizia a viscondessa, revestindo se do seu ar mais seductor, e fazendo despontar nos lábios um dos seus mais amaveis sorrisos, -- já salvámos Mauricio das exaggerações de uma opposição, que se podia tornar perigosa para nós e para elle; convém agora afastal-o de Portugal, tornar maduro aquelle talento, tão propenso a exaltar-se, obrigal-o a fazer uma viagem, que depois mais utíl o torne aos nossos desígnios.

-- É para me curar dos ciúmes, que lhe receita o passeio, não é verdade ? respondeu o barão rindo-se com um modo grosseiro.

-- Pensa acaso que não é uma moléstia de perigo, que tem deitado a perder mais de um homem d'Estado? respondeu a viscondessa tornando mais terno o sorriso.

-- Que me aconselha então ?

-- Faça o nomear addido.... para o norte, para algum paiz bem frio. Viaja á custa do governo, e aprenderá a aquecer-se a um fogão.

-- Talvez que nos seja aqui preciso. Segundo me affirmatn é uma penna habil, e póde ser empregada a nosso favor.

-- Pois ignora acaso que um talento poético é mais caprichoso que uma mulher bonita? Fugir-nos-hia mais tarde ou mais cedo com armas e bagagem. Apenas se visse dominado, tratava logo de se emancipar.

-- Talvez eu o podesse converter, empregando a minha lógica? -- disse o barão, afagando com sufficiencia a dobra do seu collete branco.

-- Havia de perder o seu tempo... como eu perdi, disse a viscondessa.

-- Pois bem, faça o que lhe parecer. Disponha da minha influencia, para arranjar o rapaz.

E ambos, de braço dado, foram continuar a conversação, absorvendo o grato perfume das iguarias de um copioso e opulento almoço, que os esperava na meza.

Mauricio, recebia pouco depois, um bilhetinho da viscondessa redigido com aquella aggressiva polidez, mais offensiva ás vezes que as injurias directas:

O ministro apreciando devidamente os seus sacrifícios á boa causa, e tomando em consideração as observações que fiz a seu respeito, está decidido a nomeal-o addido para a Legação de *** Este despacho, seguramente inferior ao mérito que todos lhe reconhecem, se nos priva da sua presença alguns annos, ha de contribuir a dar uma direcção menos perigosa ás suas idéas.» -- Mereço bem estas artificiosas phrases!

exclamou Mauricio amarrotando com desespero o bilhete: entro n'uma carreira, e devo tudo aos lindos olhos de uma mulher!

Depois, pegando na penna, escreveu á viscondessa um resposta que bem revelava a sua indignação:

«Apresso me em agradecer a v. ex.ª noticia que acabo de receber. Applaudiria o meu despacho, se não preferisse a obscuridade a posições que são muito inferiores ao meu merecimento. Retirado da scena política, e v.exª bem sabe os motivos que me levaram a dar esse passo, não me parece conveniente acceitar um logar, que seria attribuido unicamente ao favor do governo.» O circulo íntimo da viscondessa estava n'aquella noite em plena sessão, e esperando a victima para saciar a sua vingança. Estas reuniões semi officiaes e semi domesticas assimilham-se a uma destas orchestras bem dirigidas, e que sabem obedecer ao aceno imperioso da varinha do compositor.

-- Nunca vi em minha Vida carta mais atrevida -- dizia um maduro empregado de cincoenta annos, encanecido no servilismo das secretarias, e que já fazia parte dos moveis que passam por inventario de ministério a ministério -- podia recusar em devidos termos e sobretudo segundo os estylos da pragmatica: é homem que nunca ha de passar de um escriptor insípido: tem um pessimo caracter de lettra, e Deus nos livre que elle pozesse mão em papel importante.

-- Dá-se ares de grande estadista, e abomina a sujeição burecuicrcitica: estas palavras saíram da bocca de uma senhora, que eminente nas questões politicas não tinha menos voto nos assumptos da elegancia.

-- O Estado não ha de perder muito com tal funccionario! -- disse um dos ex-amantes da viscondessa, que ganhára os seus titulos de espirituoso á custa dos folhetins do Journal des Débats.

-- Não concebo que se una tanta philaucia a tão duvidoso merecimento! exclamou o barão em tom solemne.

-- Merece desculpa! Não quer sair de Portugal, porque está apaixonado! -- disse uma trigueirinha dando aos olhos voluptuosos uma expressão sentimental, e apertando significativamente a mão á viscondessa.

-- Será difficil que o tal poetasinho se possa affeiçoar a algum ente vivo, a não ser a sua própria pessoa. Nunca passará de um artista mal criado.

A condessa de * * * íntima amiga da Viscondessa, e que não perdia occasião de engrandecer o poder dos seus attractivos, debruçou-se ao ouvido d'outra senhora, e disse em voz baixa :

-- A viscondessa falla por experiencia própria. Quiz aos quarenta annos ser mysticamente adorada, e parece que o rapaz não se resignou a tão ingrato papel.

Livre-nos Deus para sempre da gloria, da guerra, dos heroes, e das amigas extremosas. Como aquelle urso caridoso que quiz enxotar a mosca da face do seu amigo que dormia, julgam salvar nos d'um incommodo, e esmagam-nos a cabeça.

-- O que admira é como elle resolve o problema de se alimentar -- exclamou um d'estes parasitas encartados, que nunca accenderam lume em casa.

-- Frequenta as casas de jogo -- bradou uma velha beata com voz fanhosa.

- Que idéa foi a tua de o protegeres, viscondessa? -- disse uma elegante morgada, dando aos lábios uma expressão desdenhosa.

-- Saber-me-has acaso descobrir um methodo que nos salve de um pretendente importuno? respondeu a viscondessa.

-- De mais a mais -- atalhou um d'estes alviçareiros de casas particulares, que vivem por milagre da providencia, e sempre á custa do proximo -- teve a infamia de abandonar uma mulher que havia seduzido e com quem publicamente vivia.

A immodestia da phrase produziu um movimento de indignação em todas as senhoras. Raro pudor de uma sociedade, que se quer demonstrar principalmente casta nos artifícios da lingua! As mesmas pessoas que dirigiram pérfidas insinuações á reputação de um mancebo, que mal conheciam, sentiam se offendídas por um adjectivo immodesto.

N'um dos angulos da casa notava-se um par, que parecia totalmente estranho á conversação, e que apenas, de vez em quando, lançavam um olhar distrahido sobre as pessoas reunidas.

Eram dois mancebos, ainda na aurora da vida, que suavemente embebidos num dialogo íntimo, sentiam-se adejar n'uma atmosphera superior á d'aquella cruel maledicência.

A donzella realisava um d'estes encantados typos, mixto de graça e de energia, que são a verdadeira expressão da bellesa na terra.

A cabeça pendendo sobre o corpo elevado e esbelto, fazia lembrar uma d'estas flores, abundantes de seiva, e em plena florescência que fazem vergar a haste com o peso dos seus thesouros, e as gratas emanações do seu perfume. Dotada d'essa pallidez morena, que é a côr natural das mulheres do meiodia, as ondulações do seu cabello negro, deixavam perceber o azul das veias, que a transparência de uma pelle mimosa deixava sobresaír.

Os olhos pretos e suavemente fendidos umas vezes despediam um olhar limpido e mavioso, outras vezes, quando o rubor lhe subia em ondas rapidas pelo seio palpitante, tornavam-se húmidos e scintillantes, como os da odalisca, accendida em desejos, nos climas abrasados do oriente.

Esta é a lucta inevitável n'aquellas edades intermédias, em que o coração e os sentidos se desenvolvem para a vida do sentimento. A innocencia de uma alma pura e ingénua póde combinar-se com os vagos presentimentos que devoram uma organisação exaltada e sensual.

A sua estatura vinha completar as promessas da sua physionomia; flexivel e elegante, magestosa e ao mesmo tempo languida. Mal podia suppôr-se que a frágil cintura podesse suster as formas já desenvolvidas e robustas, que denunciavam a estação da vida, em que o sangue corre rapidamente nas veias e vem dar vigor aos vagos desejos que palpitam nos seios da donzella.

O mancebo que teria mais oito ou dez annos, com o rosto assombreado de uma barba pouco espessa, era uma creatura delicada e mimosa, denunciando desde logo que o seu berço fôra embalado entre os afagos de um amor enternecido e pressuroso.

Noivos de poucos dias, em mutua adoração, mal lançavam, de vez em quando, um olhar destrahido para os convidados.

Quando Mauricio appareceu dahi a pouco na sala, todas as cabeças se voltaram com ávida curiosidade para elle, com esse mirar feroz com que as féras deviam fitar o gladiador, que vinha arrostar indefeso, as suas furiosas garras.

Cessaram todas as conversações. Produziu se na assembléa o silencio terrivel de que são quasi sempre precedidos os impetos da paixão, ou as crises da naturesa. E todavia a sua physionomia nunca demonstrára expressão mais altiva de desdem, e de provocadora indifferença. Saudou a todos, inclinando levemente a cabeça, e sentando-se ao pé da viscondessa, pareceu não reparar no constrangimento que a sua presença havia causado.

Dirigindo os olhos para o angulo da sala aonde estavam os dois mancebos, o seu rosto cobriu-se de uma mortal pallidez, e os seus lábios reprimiram a custo um grito de angustia. É que a mulher, que elle adorára de longe, com um tão supremo amor, que elle vira contricta e devotamente humilhada, confiando a Deus os segredos do seu coração, que elle contemplára, n'uma noite de delicias acordando os échos com a voz apaixonada, era a mesma mulher que agora escutava, com o olhar, com o sorriso, as palavras de outro homem, que lia no seu rosto a imagem das próprias emoções, que tão vivas lhe ardiam no coração!

Se a sociedade não estivesse ali, implacavel e feroz, para o condemnar ao ridiculo, não hesitaria em traspassar-se a seus pés, para lhe manchar com o sangue os brancos vestidos, e como a Tisbe do immortal poeta, poder merecer no ultimo arranco da morte, um adeus saudoso dos seus lábios, um olhar compadecido dos seus olhos !

E conservou-se impassível Não lhe tremeu um musculo da face: não lhe escapou um gemido dos lábios. Soube suffocar as agonias que lhe devoravam o peito; e sentindo todo o sangue refluindo ao coração, não desfalleceu.

Depois, levou a mão ao peito, e lacerou o em golpes profundos, para attenuar a dôr que o pungia: lembrava-se daquella horrivel scena, na qual Cláudio Frollo contempla a Esmeralda polluida pelas caricias brutaes de Phoebus, e succumbindo aos transidos do ciume!

A viscondessa recobrára o sangue frio:

vendo Mauricio tão intrépido perante o perigo, sentiu também crescer a sua coragem.

Era indispensável dar um grande golpe, que tornasse o mancebo o ludibrio da sociedade.

-- Dir-me-ha, meu senhor -- exclamou ella com uma intonação insolente -- como se atreve a pôr os pés em minha casa, depois da carta que me escreveu?

Mauricio estremeceu, como se o houvessem marcado com um ferro em brasa. A voz ficou-lhe presa na garganta, fulminado por esta insolita interrogação.

O barão, para completar o effeito da apostrophe, quiz acrescentar algumas palavras :

-- Quem regeita um favor acima do seu merecimento, não merece a consideração das pessoas de bem.

Era de mais. O mancebo ergueu-se de pé, de um só impeto. Mediu com um olhar altivo todas as pessoas que estavam na sala, depois apontando para o barão:

-- Bem póde comprehender os motivos que me levaram a recusar uma posição que eu não mereço. Ficaria deshonradoaos meus proprios olhos, se tivesse a fraquesa de acceitar o beneficio de um tolo, implorado por uma mulher infame! -- e apontou para a viscondessa.

Todos se levantaram com um fingido horror. O mancebo todavia não deu tempo a alguma manifestação menos respeitosa, porque se retirou.

-- Está doido! perdeu o juizo! bradaram a uma voz as pessoas que assistiram a esta scena.

A sociedade estava no seu direito regeitando verdades proclamadas com tão rude independencia. Quem vive isolado no mundo, ha de obedecer aos seus preceitos. Mauricio tornou-se d'ali em deante um verdadeiro proscripto, o outlaw das selvas da Caledonia.

Era impossível haver perdão para aquelle que Troppo ostinato e duro Il mio forte pensiero In mostrarmi implacabile, e severo Contra il ciei, contra l'uom, l'angelo e Dio.

CAPITULO XI A quem devo eu accusar dos meus infortunios? Não a ti, anjo do céu, que me appareceste na vida, como um d'esses brilhantes metéoros, que nos deslumbram de luz, para depois se desvanecerem nas solidões infinitas do espaço !

Amavas, eras amada também, ser me-hia acaso licito erguer-me entre ambos, e separal-os no egoismo do seu amor ?

E que podia eu fazer por ti ? Os meus olhos não podiam fitar os teus na innocencia de um puro affecto, porque já haviam derramado lagrimas amargas, que já se haviam accendido em phreneticos desejos !

Estes labios já não podiam unir se aos teus como irmãos, que já torpes caricias, e beijos infames os tinham manchado ! Estas faces, que o Vicio crestára, não podiam unir-se ás tuas que a candura e o pudor purpuravam ! Oh! amaldiçoada seja a bocca, que os ardores da febre devoram, e vae murchar a pobre flôr, com o seu hálito envenenado.

E para que confiou Deus ao meu férvido coração este amor omnipotente, e este delirante affecto ? Para que me appareceste, mulher, para que vieste, flôr, embriagar-me com o teu perfume ? Amar te ha elle como eu te poderia amar; a tua imagem vivirá na sua alma, como um sonho fugitivo, ou como um pensamento abençoado e eterno!

Embora! se eu pudesse, sentiria um acerbo prazer, quando visse cair, uma a uma as rosas da tua fronte, as aspirações candidas da tua alma!

Quizéra lêr nos teus olhos, o tedio profundo e desolador da vida, que a saudade ávida de um passado, que já não deve renascer, e que a esperança de um futuro, desbotado pela Súvida, te devorassem o coração!

Queria olhar o teu rosto pallido ejá sulcado de rugas, não as que o tempo cava, no seu caminhar lento e insensivel, mas as que nascem nas noites de febre, quando o ciume nos absorve a alma, quando vêmos expirar os entes que nos eram caros, quando a naturesa se cobre de luto e de sombras !

Soffre, has de soffrer como eu soffri, que todos estamos sujeitos á egualdade sinistra da desventura. Bem vês, que não podes fitar as estrellas senão com os olhos orvalhados de lagrimas : olha a tua imagem no espelho, triste e abatida, e dir me has depois se o amor, se a felicidade nos não abandonam, afinal, e se não devemos acceitar resignados a ironia atroz do destino humano.

Lembras te ? Era ainda hontem. A luz da aurora vinha colorir de vivas côres o crystal transparente das tuas gelosias. Brisas suaves, agitando as flores, impregnavam o ar de gratos aromas e vinham afagar os negros anneis do teu cabello!

Ao longe apenas se ouvia o manso correr do rio, serpenteando entre a relva da campina, e os passaros gorgeavam, saltando entre os ramos, porque era a estação dos seus amores!

Hontem, bem vês, resplandecia o sol, o céu mostrava-se azul e sereno, os campos viçosos e esmaltados, e tu, mulher, eras innocente como o suspiro da pomba, e go savas descuidosa da vida, como a flôr que o sopro caprichoso da aragem brandamente agita!

Eras um anjo cá na terra! Quando olhavas, brilhavam os teus olhos como estrellas:

quando fallaVas, a tua voz era harmoniosa como um hymno dos antigos patriarchas : o teu hálito embalsamava o ar que respiravas!

Como te corriam então as horas bonançosas! Nunca viras, nem em sonhos, um olhar ardente de amor, nem um gemido de angustia te viéra nunca morrer nos lábios!

Ouvias cantar os poetas, e adormecias risonha ao som dos seus cantos! Donzella de olhos negros, para que desceste tu á terra? Rosa nascida entre abrolhos, que mão audaciosa tentou arrancar-te da haste d'onde pendias orgulhosa? Meu anjo! vôa para o céu! antes que o mundo te veja!

Os prazeres cá da terra, envenenam e murcham as flores.

Não compres, pelo goso de um dia, o teu eterno tormento. Alma minha gentil, no céu habitam os anjos, e tu não podes ser feliz n'este mando!

Que importa? Essas existências, que acceitam a vida, como uma valsa rapida e excitante, não teem tempo para soffrer!

Correm como os metéoros, pelos espaços infinitos do céu, e mal brilham nas trevas profundas da noite! Adormecem, acordam entre prazeres, e nunca sentem no peito as garras do insaciável abutre, que de contínuo o despedaça!

E não corras, querida, após esses gosos ephémeros, nem desfolhes, frivola e descuidosa, as puras crenças da tua alma !

É já tarde para o arrependimento. A tua fronte pende para a terra fulminada pelo remorso! A lividez da morte descora o teu semblante, e entre os teus cabellos, se occulta uma flôr, que as tuas lagrimas tornaram viçosa!

Ó flôr, que eu te não podesse aspirar o perfume, e reverdecer-te com o meu pranto, e aviventar-te as pétalas languidas e pendidas pelas calmas do estio, com os meus beijos delirantes.... mas vêr te profanada pela respiração do mundo, mas vêr te cubiçada pelos olhos ávidos das turbas insolentes, mas contemplar te unida ao peito d'outro, que te abandone depois, aos ventos da tempestade ; oh ! é uma idéa que me enlouquece, que me gela o coração.

N'essas noites de angustia, em que a febre do amor, e da desesperação, me escalda a cabeça, e me tortura os sentidos -- n'esses longos pesadêlos, em que, suspenso entre a morte e a vida, entre a vigilia e o somno, eu a Vejo apparecer a meus olhos como uma sombra fugitiva, n'essas medonhas crises, em que nos vêmos a sós com a dôr que nos tortura, eu quasi que chego a descrêr da religião, e da humanidade!...

Atomo invisivel, lançado pela ironia do acaso no vasto oceano da creação, para que me daria o supremo árbitro de nossos destinos tal arrojo para comprehender a felicidade, desejos tão insaciáveis de um gosar divino, e sempre amargas decepções envenenando as aspirações da nossa alma !

Pois não ha vida, senão este acerbo padecer? E para que nos povoou Deus o peito de tão profundos affectos, e deu ao nosso pensamento tão impetuosas e encantadas esperanças de felicidade?

E vêl a -- a mulher que realisaria os meus sonhos--e sentir o perfume dos seus cabellos--e escutar o frémito voluptuoso dos seus passos, o tocar levemente as magicas prégas do seu vestido, e ás vezes, sentir o seu doce e sereno olhar volver se para o céu, e não poder dizer-lhe: «Sou teu! sê minha!» E que importa? Se á noite tudo morre, para renascer no dia seguinte aos raios do sol, se a peste é um fiagello, que devasta as populações, para as poder alimentar melhor, se as revoluções ensanguentam as sociedades, para as renovar ao sôpro de idéas novas -- se do pó das gerações finadas, nasce a espiga que ha de alimentar as gerações futuras-se a vida nasce da morte, se a morte provém da vida -- que importa que a alma se devore a si mesma, e se fine solitária á sombra do seu desejo?

Que importa que a lyra do poeta se faça em pedaços, sem sons para entoar os cantos da sua dôr, que o pensamento humano se balouce perplexo entre systemas contrários, como o navio entre as vagas de contrários ventos, se nem os gemidos nem os cantos, nem a oração, nem a blasphemia, nem a crença, nem a própria dúvida, suspendem o homem sobre o abysmo do seu destino ?

Terá o homem de exclamar como o satanás de Milton: -- Mal, sê o meu bem -- Fatalidade sê a minha providencia!

Era ao caír da tarde: o céu estava sombrio e nublado: os cyprestes no cemiterio gemiam agitados pelas rajadas do vento: os tumulos meio escondidos entre as frondosas ramagens pareciam os alvos espectros dos finados, que se aquentavam aos mornos raios do crepúsculo, que se ía sumindo no horisonte.

Eu meditava, n'este recinto da morte, na funebre tragedia que se passa entre Deus, o mundo, e o homem.

Perguntava se esses restos inanimados, que os Vermes devoraram, se a terra eternamente absorveria as lagrimas e o sangue de tantas gerações, privadas dos bens da vida, se a providencia nos houvesse de conceder a matéria inerte por mortalha, e o nada por bemaVenturança.

Se o homem, atado ao rochedo, e dilacerado pelo abutre insaciável-, se estorceria de continuo, nos transidos da dôr, sem ter o direito de amaldiçoar a Vida e de pôr termo ao horror da morte!

E as estrellas brilharam immoveis no céu: o vento açoitou as flores da campina:

e os mochos grasnaram lugubremente, agitando as azas sobre o cimo dos cyprestes.

Tal era o meu destino. Esperanças, affectos, illusões, tudo se desvaneceu como um sonho. O culto da mulher acabou para mim, quando ella ama outro. Toda a intelligencia que não se apoia na experiencia, e na realidade, ha de succumbir como eu succumbo.

Não se encontram fontes no deserto, nem ha olhos que possam affrontar o sol como os da aguia.

O typo ideal, anjo, e fada, que devia abrir-me os céus n'um sorriso, já não existe senão dentro do meu coração, para o torturar de contínuo!

Sombra, que na vigilia e no somno, me persegue como um remorso, mas que é talvez, a unica consolação de uma vida sem esperança!

E a sua imagem não me foge do pensamento Umas vezes senta se ao meu lado, com um triste sorriso; outras vezes, vejo-a, com os olhos accesos de paixão, com os lábios palpitantes, aspirando ávidamente as palavras de outro homem, e fitando-o embebecida!

Se os mortos dormem em paz no seio da campa, porque não hão de estas recordações expirar pouco a pouco no íntimo da minha alma... Poderia talvez depois aspirar á felicidade, e como o sombrio Giaour de Byron, não diria no meu ultimo suspiro:

«Não desejo o paraiso, mas o descanço!» É terrível a idéa de descer ao tumulo, sem um sorriso dos seus lábios, sem um olhar dos seus olhos, sem ouvir um som terno da sua voz, sem merecer uma oração fervorosa da sua alma! Nem por um momento vi florir a minha esperança, embora depois o perjúrio ou o esquecimento a afogasse em sangue, ou a orvalhasse de lagrimas! É que hei de morrer sem que ella saiba quanto a amei, quanto padeci por ella!

É que ha de passar pelo meu jazigo, sem lançar uma vista piedosa ás flores que brotarem das minhas cinzas!

Não deploro o seu despreso, supportaria resignado o seu abandono, perdoar-lhe-hia se me atraiçoasse! Mas não me conheceu!

Ó grande Petrarca! ao menos a tua Laura sabia que era o idolo da tua alma apaixonada, a musa mysteriosa dos teus cantos immortaes!

Ás vezes, ouço uma voz severa que condemna o meu desespero, que accusa o desalento, de que me deixei dominar -- «Suffoca esse indomável orgulho, que te devora:

ama, e a vida renascerá para ti com todas suas delicias, o anjo da poesia virá outra Vez inspirar o teu estro, e o mundo escutará os teus cantos.» Ó amor, tu não habitas na terra: nem no olho negro da odalisca, que se banha nas aguas como o cysne: nem no olho azul da ingleza que se fina lentamente, sem que adivinhem o que eila sente no coração. És o pômo vedado do paraíso: ái da mão que te colhe, que perdeu para sempre as illusões: ái do labio cubiçoso que te devora, que tem de amaldiçoar o aroma que te perfuma, o sabor que te enfeitiça!

Imagem mentirosa, que te desfazes se te alcançam: flôr formada pelo pensamento, e que te desfolhas, se o pensamento te bafeja de perto: oásis phantastico, que apenas o viajante te assoma ás portas, desappareces como as nuvens açoitadas pelo Vento abrasador do deserto!

Só uma rosa, uma pobre flôr anima a solidão em que vivo !

Talvez que estivesse unida no seu peito, que fosse embalsamada por algum suspiro, que a sua alma votasse a uma recordação saudosa!

Conterás tu porventura algum segredo innocente, algum pensamento culpado ? Escutaste acaso alguma d'aquellas palavras apaixonadas, que os amantes proferem nos delirios do seu affecto?

Se é assim, flôr, hei de arremessar-te á corrente impetuosa do rio, para te vêr murcha e desfolhada, na espuma da vaga, sem bellesa, sem viço, e sem perfume!

Ninguem penetrará n'estes mysterios do coração! Despréso a piedosa commiseração d'esse mundo, que como a féra no circo, sorve o sangue que gôta a gota mana das feridas do gladiador moribundo!

Não aspiro, como o Tasso, a que as minhas cinzas sejain regadas pelos prantos das gerações futuras: nem irei como o Dante, confiar aos échos de Florença o nome de Beatriz!

A minha lyra não celebra senão os hymnos da morte, quando as Bacchantes, impedidas pela vertigem da embriaguez, se iam precipitar nas aguas do Tibre!

Ai de mim! Julieta repousa no tumulo, e Romeu debalde a pretende reanimar com os seus férvidos beijos !

A cotovia sólta as azas, e despede o vôo sem saudar a aurora com o seu suave canto.

CAPITULO XII

Othello

Carta de Mauricio A D. Affonso

Queres saber a que altares sacrifico a minha vida? Aos da dôr porque este mundo é para mim o amphitheatro romano, aonde devo expirar, como o gladiador, antigo, no meio dos applausos das turbas sedentas de sangue! Não achas que o meu coração pode tornar-se para algum futuro Bichat, um optimo exemplar de estudo ?

Que rios de lagrimas não hão de derramar as mulheres eruditas, quando reduzirem a versos heroicos a fúnebre tragédia que me acompanhou do berço á sepultura!

Como devo figurar com gloria num romance esthetico, ou transformado em Antony de algum pavoroso drama?

Bem vês que não me illudo. Interesso as mulheres um pouco mais do que o seu jornal de modas, e um pouco menos que o seu King's-Charles.

No theatro representava se o Othello de Rossini, comprei á poita o direito de me extasiar deante da obra prima do Cysne do Pesaro.

Shakespear é o maior poeta das éras modernas mas Rossini é-lhe superior por haver nascido na patria de Miguel Angelo, Dante, e Leopardi.

Quando vi a Desdemona, sobraçando a harpa, pallida como as virgens de Murillo, e com a voz convulsa pela dôr, vieram-me á memória os versos de A. de Musset sobre la Malibran:

Ne savais-tu donc pas, comédienne impudente Que ces cris insensés, qui te sortaient du cceur De ta joue amaigrie augmentaient la pâleur?

Ne savais-tu donc pas que sur ta tempe ardente, Ta main de jour en jour se posait plus tremblante, Et que cfest tenter Dieu que d'aimer la douleur ?

Bem o vês por este exemplo: nada ha que melhor nos prepare para a morte, do que a febre que a arte produz sobre certas organisações.

Sinto que não terei longos dias de Vida.

Ha almas que não resistem ás agonias de um amor sem esperança. Se eu não tenho alento para o arrancar do coração !...

Quando sômos os primeiros a reconhecer a impotência da nossa vontade de que nos Vale prolongar a lucta?

Foi uma noite horrive! esta: o meu sangue ardia-me nas veias, e Othello não padecia mais do que eu, quando profere no 3.° acto aquellas palavras, que uma poesia admiravel torna sublimes: «Como o Ponto-Euxino, cujas torrentes geladas, e as ondas impetuosas nunca experimentam a acção do refluxo e se precipitam de contínuo para a Propontide, e o Hellesponto, assim os meus pensamentos sanguinários, na sua carreira violenta, nunca mais hão de olhar o passado, e refluir um amor Vil, emquanto uma vingança immensa e profunda não os tiver absorvido!» Alimentar-se-ha o amor de angustias, como o Pelicano do sangue de seus filhos, e será necessário que o ciume o venha reanimar, pois elle fenece, quando as tempestades o não bafejam, florescendo na serena atmosphera de uma fidelidade irreprehensivel?

Estava absorvido no espectaculo: queria devorar aquellas notas palpitantes, aquellas encantadas harmonias, e todavia, de repente vi os entrar a ambos n'um camarote, e lançarem o oculo para a scena.

Não podia arrancar-me daquelle logar:

fechava os olhos, e a fatal apparição não me fugia do pensamento: e continuei a estar, não denunciei nem por um gesto o que sentia o coração.

Ha uma certa voluptuosidade na dôr, e bem se vê que a providencia reconhece esta profunda analogia, quando das mesmas flores, de que a vibora segrega o veneno, as abelhas extrahem o mel.

Quem viveu muito pelo pensamento, com maior resignação soffre estas violentas commoções. Nos meus primeiros annos era tão ardente, tão devoradora em mim a ambição de gloria, que a minha imaginação percorreu o cyclo de muitos destinos illustres, que hoje não contentariam a minha vaidade: vi adejar nos meus sonhos angélicas formosuras, cujas lagrimas de amor eu devorei em sôfregos beijos: e quando d'este mundo ideal, desci para as realidades mesquinhas da vida, quando tive de respeitar preconceitos ridículos, e conveniências torpes, a minha alma estava temperada, como um metal exposto ao fogo.

As decepções vieram immediatamente envenenar a minha imaginação, e consumir a actividade da minha alma. Jurei então não me curvar a essas falsas grandesas, a que o mundo se prostra reverente, e conservar-me isempto no meio das abjecções me rodeavam.

Quando me encontrei, no seio da sociedade. olhei sem tremer esses que se julgam grandes, porque se vêem através da sua própria Vaidade. Ri-me das mulheres que converteram o amor n'uma loteria, e que despendem a sensibilidade, em eternos namoros. E se não despresei totalmente o vicio, não o lisongeei também, quando elle me apparecia nas magnificências de um toilette fascinador, e conduzido n'uma carruagem confortable e elegante.

Para que se ergueu este amor entre mim e o mundo que eu despresaVa? Não me bastava o ter vivido seculos em rápidos instantes, embebecido na recordação dos meus sonhados amores ?

Porque amei uma mulher, que representava pela fortuna e pelo nascimento, as desegualdades sociaes, contra as quaes protesta a dignidade humana?

Otheilo pôde amar e ser amado por Desdemona. Conseguiu arrebatai a aos prestígios de Veneza, possuiu-a só, embalada pelas ondas do oceano, n'uma ilha deserta!

E que amor aquelle, que rebenta impetuoso entre os transidos do mais feroz ciume! Com que apaixonado fervor saúda elle Desdemona adormecida, e a abraça com piedosa ternura! -- «Depois de haver colhido esta rosa não poderei restituir-lhe a sua seiva natural: murchará sem remedio!

-- O perfume do teu alento, obrigaria a justiça a quebrar o seu gladio--mais um beijo -- um só mais ! Ficando como estás, depois de morta, hei de assassinar te, para te poder amar depois. Dá me um beijo - o ultimo -- beijo suave e fatal! Vejo correr as lagrimas -- lagrimas de um tigre! a minha cólera fulmina a quem mais amo!» Ora, dize-me ingenuamente, julgas que faria bom negocio, reduzindo estas confidencias a um tratado de metaphysica sentimental, e aiugando-o depois a tanto por volume?

Tinha ao meu lado aquelle excêntrico M * * * que adora as mulheres tanto quanto aborrece os crédores. Estava com os olhos fitos no mesmo camarote para onde eu olhava, e percebeu a quem eu me dirigia.

-- Cuidado, Mauricio-olha que aquella flôr aristocratica vae em breve ser colhida por mão que é abençoada pela sua illustre familia.

-- Julgas que me dás alguma novidade!

os olhós, segundo diz o catechismo, lizeram-se exactamente para vêr.

-- Pois o Othello não te faz descfêr da vida conjugal? Júlgas-te acaso menos cioso de que esse negro implacável? Se vires tua mulher chalrando com o primeiro tolo que a tire para par, estou seguro que os estrangularás como Othello a própria Desdemona.

-- Assim me parece: é mais do que provável que não seja a minha principal vocacação a de marido.

-- Pois ainda bem que é essa a tua convicção: ganha a sociedade um grande poeta, e perde talvez um insípido pae de familia.

Se queres alcançar isso que o mundo denomina gloria, abençôa os noivos in mente , e nunca cubices a mulher do teu proximo.

-- E se um amor, ardente, profundo, invencível, me levasse a adorar aquella mulher que aii vês; se me fosse impossível deixar de amal-a, se ella se tornasse a unica esperança da minha vida, a unica aspiração da minha alma!

-- Óptima situação, se contribuir a avivar o teu estro, e se os teus pensamentos se converterem n'uma serie de odes enthusiasticas, e de elegias plangentes. Nunca houve homem, que alcançasse os sufrágios da pflsteridade, por haver cumprido exemplarmente os deveres conjugaes. O proprio Sócrates deve uma parte da sua celebridade a ter vivido mal com sua mulher Xeontipha.

A felicidade não tem historia. Recorda-te dos versos do poeta.

Ó Marie! que m'importe ou la mort ou la vie?

J'aime, et je veux pâlir: j'aime et je veux souffrir, J'aime, et pour un baiser je donne mon génie!

-- Mas o beijo, esse beijo, nunca virá adoçar os meus lábios !

Supponho que já terás lido o Dernier jour â'un condamné , de Victor Hugo -- Tragedia horrivel, que só aquella vulcanica imaginação poderia ter concebido. Lembras-te quando elle abraça sua fiiha, quando a cobre de anciosos beijos, despedindo-se d'ella para ir morrer; e que a ouve depois solettrar n'um papel que é a sua sentença de morte?

Assim me acontece a mim. Não ha palavra, não ha expressão por innocente que não offenda a minha sensibilidade. As palavras que troquei com M***, em tom de gracejo, exacerbaram as minhas mágoas.

Caí n'uma prostração quasi mortal.

Quando me pude arrancar d'este estado, acabára o espectaculo. Impellido pela corrente do povo, encontrei-me na porta do theatro- Pude Vêl-a, -- Vêr a ambos -- ainda uma Vez!

Contemplei-a, atravessando a multidão, com aquelle seu andar voluptuoso, e languido. Ia pelo braço d'elle: e absorvidos no seu amor, mal pareciam pertencer a este mundo.

Gloria eterna a esta bastarda civilisação, que transformou o homem n'uma machina inerte, obrigando-o a rir, quando as lagrimas o suffocam, a tornar se amavel, quando não sente no espirito senão um profundo tédio da vida!

Os autos da vida social obedecem a um rythmo impreterivel. Foi n'este século infame que. um estadista depravado inventou o aphorismo de que o homem fôra dotado de palavra para dissimular os seus pensamentos. Quem poderia suppôr que a devassidão alcançasse as honras de um aphorismo moral; e que um homem não tivesse o direito de ser sincero, sem se expôr aos odios, e tornar-se ridículo ?

E tive a coragem de me dominar. N'outras éras, em que o heroísmo não era uma palavra vã, podia lealmente arrancar a vida áquelle homem, para ter o prazer depois, de vêr devorada a alma da mulher pelas acerbas mágoas, que me devoram o peito!

Como angariaríamos na mesma morte a dôr, e esgotaríamos ambos o mesmo calis!

Agora, nem mesmo lhe poderia offerecer a rosa que lhe caíra do ramalhete, dizendo lhe com Voz saída do fundo d'alma :

-- «Conserva-a, como uma reliquia de um affecto que será eterno, e sê piedosa para quem não mereceu o seu triste destino!» Eu conheço de mais a sociedade em que vivo. O seu culto pelas idéas generosas é uma solemne hypocrisia apenas- Para os espiritos fortes, Werther é um louco, René um miseravel maniaco, St. Preux uma creatura que não vale um dedo de M. Turcaret ou de Harpajon!

Estas contradicções hão de se expiar no futuro, A serpente depois de saciada, ha de rebentar com horrível explosão. Esta subserviência ás mais ruins paixões terá um termo. Os homens deixarão de ser mais vis que os vendilhões do templo. As mulheres, rehabilitadas pelo sentimento da sua própria dignidade, deixarão de ser odaliscas que o ouro compra.

A civilisação, que corre desenfreada como aquelle cavallo que conduzia Marepa através dos steppes de Ukrania, ha de precipitar se n'algum mysterioso e insondável abysmo.

As aras sacrosantas do matrimonio são um mercado infame, aonde se prostitue o corpo e a alma. Trafica-se com os sentimentos. E quando o povo, seguindo tão funestos exemplos, quizer satisfazer as suas brutaes necessidades, ninguém poderá oppôr se á sua devastadora torrente....

Toda esta visão deliciosa se esvaeceu como um sonho. Encontrei-me sósinho nos arredores, no seio de um fúnebre silencio.

Oh! perdôa! -- um cruel pensamento me accommetteu o espirito. Desejei que algum d'aquelles Violentos abalos, que perturbam as sociedades, de repente se manifestasse, para poder perder a vida sem recorrer ao suicidio. O acaso havia de favorecer-me; e talvez que assim alcançasse o meu quinhão de gloria.

CAPITULO XIII

A rosa ensanguentada

Carta de M ...

Escrevo te esta carta, trespassado pela dôr mais violenta. Mauricio escapou á morte, por um acaso milagroso, e a sua vida ainda dá receios.

Só tu, que lhe dedicas uma extremosa amisade, pódes comprehender a nobresa da alma, e o quanto elle seria digno da felicidade. Não me dirijo a esses espíritos mesquinhos, que embebecidos na torrente do gosar animal, morreram para todos os sentimentos generosos! Invejemos a sorte dos que nunca sentiram a alma devorada pelas paixões, e que a mais leve esperança de fortuna torna ditosos.

Embora denominem louco ao homem que se não resigna a viver uma vida méramente positiva. Esses são os grandes génios que regeneram a humanidade, e que a podem conduzir á terra da promissão.

Mauricio amava uma mulher, e era orgulhoso. São sentimentos que hão de existir sempre em perpetuo antagonismo. O oceano revolto pela tempestade, não póde adormecer tranquillo nas Vastas areias de uma praia deserta.

Fui eu talvez o seu mais extremoso confidente. Tentei distrahil-o, mas o golpe que o atravessara era profundo. Abraçando a própria dôr junto ao seio, como uma amante extremosa, cada vez mais penetrava n'essas sinistras regiões, aonde se acha consolação no soffrimento!

Previ o que havia de acontecer. Platão mostrava-se um grande político quando expulsava da republica os poetas e artistas.

Aquellas doenças moraes não se curam na abrasada atmosphera que os nossos pulmões respiram.

O que nenhuma tyrannia póde exigir de nós é que abençoemos a mão que nos fére, e respeitemos o tecto que nos repelliu.

Para esses talentos que vivem da sua própria substancia, que se coroaram de gloria, e se vêem abrasados de amor, longe da sociedade, o menor espinho se converte em profunda chaga.

Quando Mauricio soube que Magdalena se ía casar toda a sua coragem o abandonou.

De furioso tornou-se allucinado, de allucinado louco.

Fui ter com elle. Não devia abandonar um amigo, em tão penosa situação.

Tremi ao vêr o socego, a serenidade com que me recebeu. A não observar nas rugas profundas que lhe sulcaram o rosto, a realidade dos seus soffrimentos, pareceria uma illusão o seu tormento.

Encontrei o deitado na cama, fumando no seu cachimbo, com um livro semi aberto.

Era o Jocelyn de Lamartine. Mauricio leu-me em voz alta os seguintes versos:

Et puis les demi-cours et les faibles natures Meurent du premier coup des moindres blessures :

Mais les ames que Dieu fit d'un acier plus fort De 1'ardeur du combat vivent jusqu'à la mort:

De leur sein déchiré leur sang en vain ruisselle Plus il en a couru, plus il s'en renouvelle, Et souvent leur blessure est source de pleurs, D'oú le baume et l'encens distillent mieux qu'ailleurs.

-- Não procures lenitivo aos teus males em falsas analogias -- disse eu -- pede-o a ti mesmo, á dignidade do teu caracter, á esperança de poderes algum dia fazer comprehender a essa mulher o que podes, e o que vales!

Deu uma risada nervosa, que me fez estremecer.

-- Que fallas tu ahi de esperança e de gloria, homem ? -- pensas que sou uma criança, para acreditar em bruxas ? A gloria é uma fazenda avariada, de que ninguem faz caso, no nosso século: a gloria é fazer romances, como Eugênio Sue, em dez volumes, para ser servido de criados de casaca e luva branca; é Victor Hugo transformando as odes e os dramas em palacios sumptuosos. Quando a gloria se não converte em dinheiro, se não reduz a um valor commercial, é uma verdadeira decepção.

Para que exaggeras os vicios da nossa sociedade? Se és infeliz, isso não te dá o direito de seres injusto para com estas instituições, e idéas, que devemos respeitar, para que nos não esmaguem e fulminem!

-- Mas tu fallas-me como se acreditasses na gloria, como se a julgasses digna de um culto desinteressado e modesto, e não uma das forças económicas, com que se domina o vasto mercado social.

Deixou cair então a cabeça com desalento sobre o travesseiro, tornando se mais pallido ainda.

Contemplando-o, á luz trémula do candieiro, podia-se avaliar quão rapida havia sido a decomposição physica, que os seus padecimentos moraes lhe haviam produzido.

O seu rosto estava completamente desfigurado: os olhos brilhavam-lhe com o ardor da iebre : rugas profundas sulcavam-lhe a fronte, e vinham cruzar-se-lhe nas fontes descarnadas.

Começava a nascer o dia, e os primeiros clarões do crepúsculo illuininando lhe a physionomia, mostravam quão penosa devia ser a lucta emprehendida entre o seu orgulho indomável, e as suas paixões exaltadas.

-- Vamos sair, disse, elle depois de momentos de silencio: quero respirar este ar fresco da manhã, que acalma a febre, como provou Broussais, e restaurar-me respirando a suave brisa da primavera.

Partimos ambos, e dir-te-hei que eu caminhava no meio da cidade, com aquella vaga inquietação, que se experimenta quando o nosso repouso é perturbado por um pesadêlo.

Mauricio lançára sobre os hombros um capóte, e parecia assim um personagem d'outro século : uma das Victimas do tribunal da inquisição no sinistro reinado de Filippe II.

É uma hora melancólica a hora de nascer do dia, são menos melancólica que a do occaso: nos dois extremos, a mesma dolorosa impressão se produz no nosso espirito.

Vimos aberta uma egreja. Entrámos.

Senti estremecer Mauricio, e limpar o suor que lhe corria em bagas pelo rosto abatido.

-- Fatal coincidência! foi aqui que a vi pela primeira vez -- disse-me elle ao ouvido em voz tão sumida, que parecia articular as palavras com o sôpro.

Ouvimos depois o rodar de algumas carruagens, e sair da sacristia um padre, e alguns convidados, e no meio d'elles, Magdalena Vestida de noiva, mais bella, mais fascinadora do que nunca.

Mauricio retirou-se terrivelmente commovido.

Quem podia prevêr, que por um d'aquelles acasos mysteriosos, que se não comprehendem, o pobre mancebo havia de assistir á ruina das suas esperanças, e esgotar o calis até ás ultimas fezes!

O noivo entráva depois, radiante de felicidade.

-- Retiremo-nos -- disse eu tomando-lhe o braço...

Olhou para mim sem me ouvir, e respondeu-me com voz pausada:

-- Hei-de ficar até ao fim!

Nada presenceei do que aconteceu depois. Parecia estar sonhando.

A ceremonia acabou. Respirei como se me houvessem arrancado do peito uma montanha.

Quando saímos era sol nado. A cidade acordava do seu repouso. Crescia o borborinho. A população ía entregar-se, como Sysiptho, ao supplicio de um trabalho incessante.

Mauricio continuava impassivel. Era o rosto de Lacoon, debatendo se entre os anneis da serpente.

A carruagem partiu n'um despedido galope, e os cavallos tomando o freio nos dentes, desappareciam á nossa vista.

Uma voz cheia de angustia, deu um grito penetrante.

Era a Voz de Magdalena. Mauricio lançou-se adeante da carruagem. Os cavallos estacaram. Elle cáiu ferido, a alguns passos de distancia.

Quando o pude soccorrer, achei-o moribundo. A espuma branca da agonia manchava-lhe os lábios.

Magdalena desceu, e caminhou para o sitio aonde estavamos; a sua bella physionomia aonde o susto e a piedade alternativamente dominavam, davam-lhe o aspecto do anjo da melancolia.

Julgo que o reconheceu. As rosas de um súbito pudor purpurearam-lhe as faces.

Talvez que n'aquelle momento solemne, ella adivinhasse o segredo do seu amor.

-- Ha esperança de o salvar, não é assim? -- disse ella com voz repassada de angustia.

Mauricio ouvindo-a, deu signaes de vida.

Abriu os olhos, e tentou fallar: depois: conhecendo que os seus esforços seriam baldados, levou a mão ao peito e entregou-lhe uma rosa manchada de sangue.

Magdalena olhou para a flôr, com doloroso enternecimento: depois interrogou-me com os olhos: quando ella se afastou, corriam me as lagrimas em fio pelo rosto.

Disse-me um adeus melancólico, e partiu. Não me resta quasi nenhuma esperança.

A vida do homem é muito frágil para poder luctar coniunctamente contra a agonia physica, e o desalentamento moral.

Conservará ella aquella relíquia, symbolo de um amor extremoso, e de uma dedicação sobrehumana.

O céu a torne feliz!

CAPITULO XIV

A arte e o coração

Paulina seguira a carreira do theatro: e as artistas são horríveis, e deliciosas creaturas. A's vezes, tornam se poéticas como os caractéres, que o seu talento imita: outras vezes, vís e desprezíveis, como essas mulheres sem nome, que especulam com a formosura.

Explicae-me como é que a Ophelia, creação vaporosa e encantada de um génio sublime, com as suas vestes brancas, symbolo da innocencia do coração, coroada com aquellas agrestes flores, apanhadas na campina, e nos rochedos do oceano, se transforma depois n'um ser caprichoso, inconsequente, ávido e devorado pelos vicios mais hediondos!

Como é que aquella voz, que ainda ha pouco vibrava com as explosões de um amor exuberante, ou de uma cólera augusta, repete d'ahi a horas finezas semsabores a um peralvilho, ou insípidas obscenidades: ou procura accender os desejos para satisfazer um capricho.

Phenomeno que assusta, que maravilha o entendimento: a actriz inspirada e elegante no tablado, é insensível no camarim: ides saudar Desdemona, que se roja aos pés de Othello, innocente, e sublime de terror, e ás vezes nem mesmo encontrareis une filie de marbre.

E não se duvide que a arte é um dos cultos que mais engrandecem o espirito humano: e podemos acredirar que as palmas são a homenagem mais digna que se presta ao talento.

Talvez as almas se depreciem em luctar com o ideal. Talvez que o coração de artista, se arrefeça, e se annulle, devorado pelas emoções da scena.

Nem sempre assim acontece, para gloria da especie humana. Não! admiravel Talma!

Não! immortal Malibran! o enthusiasmo que vos devorava, quando, Cesar, te coroavas com os louros da victoria, quando, Desdemona, te estorcias nas agonias do teu amor aviltado, ardia-vos reaimente no íntimo d'alma!

Uma feliz apropriação não é o talento.

Algumas phrases, que partem dos labios por involuntário instincto, não dão á mediocridade o sentimento da arte.

Paulinaera a artista favorita do público.

Havia na sua alma, e no seu corpo aquella ardente voluptuosidade, que faz a alegria, e o tormento do homem. As decepções do seu amor haviam inspirado a sua vocação artistica. Os homens não cessavam de a applaudir: as mulheres da sociedade, que ás vezes não são menos actrizes, no sentido odioso da palavra exaltavam o seu talento, calumniando a sua reputação.

E era assim. Nenhum sentimento nobre vivia n'aquella alma O seu coração extincto, apenas continha uma saudade: vendia-se, mas não podia amar.

Era longo o capitulo das suas relações torpes: comprazêra se em ultrajar o affecto de mais um homem, verdadeiramente apaixonado abandonando o sem piedade. Assim estudava as paixões, já ha muito mortas na sua alma. As mulheres, quando attingem um certo gráu de depravação, são de uma crueldade inaudita. Se Deus lhes concedesse a omnipotência de Nero, mais de uma vez iriam sobre a collina, vêr arder Roma.

Como é que ella, prevertida pelos mais infames amores, se recordava ainda dos momentos em que era feliz, entregue a um affecto mais nobre!

É que, mesmo nos caractéres degenerados, não se extingue de todo o desejo de adoração: é que não ha rio, por mais caudaloso e lodacento, que não deixe na sua esteira uma flôr que se agita suavemente entre as aguas revoltas.

Póde-se não crêr no futuro, é impossível esquecer o passado: póde-se desvanecer toda a esperança, mas nunca apagar a saudade.

Paulina quando soube da catastrophe acontecida a Mauricio, resolvêra aproximar-se d'elle, embora não tivesse recebido d'elle o perdão.

A artista sublime, coroada pelos louros da scena, ia descer até ao humilde albergue aonde agonisava, no seu pobre leito, um poeta solitário e moribundo.

A casa era o epitaphio do seu miserando destino. Sem vidros, sem reparos, exposta á intemperie das estações. A agua-furtada de Gilbert era um palacio á vista da nudez d'aquelle aposento.

A sua physionomia não parecia pertencer a um ente vivo. O seu olhar é que parecia absorver a luz, e devorar o espaço Paulina era rindo uma mulher formosa.

A devassidão não a tinha gasto de todo.

Parecia a Phryné banhando-se nas aguas do golfo de Corintho.

Os seus olhos de urpa languidez lasciva, possuíam aquelle poder, a que nada resiste, e que desde Aspasia até Marion de Lorme, domina os mais isemptos caractéres.

D. Affonso lia á cabeceira, e de vez em quando suspendia a leitura, para observar os movimentos do enfermo.

-- Ainda bem que te não esqueceste de mim ! Ser-me-hia doloroso o não poder dar-te este ultimo adeus : para ninguem fui mais culpado que para comtigo: devo portanto pedir te perdão ás beiras do sepulchro.

-- Como é possível que um homem tão moço morra n'este abandono ! has de viver!

quero que vivas! E Paulina beijou phreneticamente as faces descoradas de Mauricio.

Elle afastou-a suavemente, e disse:

-- Os annos nada valem, quando não o corpo mas a alma está ferida!

-- Não ha esperança! Não ha nenhuma esperança! bradou ella com os olhos cravados em D. Affonso.

D. Affonso abaixou os olhos com desalento.

-- Bem vês a resposta: era louco se me não resignasse á morte.

Paulina caiu quasi desmaiada cobrindo o rosto com as mãos.

-- Não escondas o rosto -- a morte nada tem de penosa -- é uma lei fatal, todos a ella estão sujeitos.

E Mauricio, meio delirante, repetiu o terrível monólogo de Hamlet:

«Ser ou não ser, é esta a questão : se é mais doloroso á alma sustentar os assaltos, e receber os pungentes golpes da cruel fortuna, ou armar-se contra um oceano de paixões tumultuosas, e dar-lhe fim, combatendo-as?

«Morrer é dormir, nada mais: e dizer que um somno põe termo ás penas do coração, e ás mil dôres que a naturesa deu por apanagio a esta carne. É um desfecho que se deve ardentemente desejar. Morrer -- dormir -- dormir! -- Sonhar talvez -- é esse o problema. Que sonhos povoarão este somno, aonde nos despimos do nosso involucro terrestre! Eis o que suspende: eis o pensamento que faz que os soffrimentos tenham uma longa duração....» Medonho, era aquelle espectaculo. D. Affonso ergueu se de pé, para contemplar a agonia de Mauricio.

Paulina, caiu de joelhos e orou.

Um silencio fúnebre succedeu áquelle frymno do scepticismo na agonia.

Ouvia-se apenas o respirar ancioso dos peitos opprimidos pela omnipotência d'aquelle problema, que só a fé póde resolver, nas suas sublimes aspirações.

-- Não estejam tristes, meus amigos -- disse Mauricio, -- sobretudo ouvindo um trecho de tão bella poesia. Lembrem se que o grande e infeliz Mirabeau, antes de expirar, pediu que o coroassem de flores, para adormecer no seio do nada.

-- Modera-te, Mauricio -- disse solemnemente D. Affonso -- não se zomba com a morte!

-- É que eu a quero receber, digno da reputação que me fizeram: sou um louco, e bem mereci este nome, quando usei tão mal dos dias de vida que Deus me concedeu!

O homem da rua da Mouraria, ignobil agente da viscondessa, appareceu á porta.

Vinha exigir a sua divida. Era o symbolo do egoismo social, que perseguia, ás beiras do sepuichro o talento infeliz.

D. Affonso ficou indignado por tal audacia. Paulina desviou o rosto com horror.

O homem sentou-se sem dizer palavra.

A plrysionomia do malvado parecia saborear com delicias a vingança, de que fôra instrumento.

Dirigiu-se para Mauricio, e disse-lhe:

-- Não posso esperar mais tempo pelo meu dinheiro. Não lhe acceito nenhuma desculpa. Pague-me, e morra depois se quizer.

-- Bem vê que é impossível! Disse Mauricio com um suspiro.

D. Affonso continha a custo a sua cólera. Paulina chorava em silencio.

-- Póde-se ir embora, disse D. Affonso, comprometto-me a pagar esse dinheiro, e a minha palavra julgo que basta.

-- Perdão, meu senhor, não tenho a honra de o conhecer. Se esta menina fica por fiadora, isso lá me pareceria mais seguro.

Houvera tanto cynismo naquellas palavras, que as faces descoradas de Paulina se tingiram de inflammado rubor. Depois atirou-lhe uma bolsa, e o aposento ficou livre da sua presença.

-- Bem vês com que resignação supportei este ultimo golpe -- disse Mauricio. -- Veio o ouro de uma mulher salvar a honra de um homem. E' um resgate que me não deshonra. Não tinha braços para o trabalho, e o meu corpo está desfeito de mais para poder ser vendido n'um theatro anatomico.

-- Perdão ! perdão ! disse Paulina.

-- Não careces de perdão. Deus ao contrario te recompensará a boa acção que fizeste.

-- Comprehendo a tua dôr, mas não mereço o teu despreso. Aquelle ouro é mais que o meu sangue, é a minha infamia!

-- Cala te, Paulina: sou eu que deveria implorar de joelhos o teu perdão, porque sem o meu fatal influxo, serias -- quem sabe -- uma esposa affectuosa, -- uma mãe extremosa --, um anjo destinado a consolar os tristes cá na terra ! -- Não abrases a alma n'esses ávidos sonhos de desenfreada sensualidade : vê como eu expiro sem esperança. -- Affonso, disse Mauricio dirigindo-se ao seu amigo, has de entregar a Magdalena essa carta. Saiba ao menos que morri por ella.

-- Juro que hei de cumprir a tua derradeira vontade, e que a tua memória ha de existir sempre viva no meu coração!

Momentos depois, Mauricio era um cadaver.

-- Está morto ! bradou D. Affonso com um grito de suprema angustia..

Paulina orava pela alma do infeliz.

CAPITULO XV

Ultimas confissões d'um doido

Á hora em que lançardes os olhos sobre estas linhas, terei eu deixado de pertencer ao mundo dos vivos.

Perdoae-me, se as minhas palavras vão offender o vosso pudor immaculado ? Se eu involuntariamente profanar essa mansão de innocencia e de paz com pensamentos que nem em sonhos vos perturbaram o espirito !

Este unico, este supremo amor, da minha vida, que nasceu espontâneo como as flores, nas margens dos serenos rios, que se tornou a gloria e o tormento do meu agitado existir, póde gemer, antes da morte, um cântico de suprema dôr.

Amar uma hora, um instante, eis a unica aspiração que nos aproxima de Deus, que nos póde fazer comprehenderessa felicidade ethérea, de que gosam os eternamente bemaventurados.

Embora o nosso coração palpite orgulhoso, quando elevados pelo estudo ás regiões da mais alta sciencia essa impressão fugitiva, é acaso comparável ao extasis que de nós se apodéra, quando pela primeira vez nos palpita o coração, ao influxo de um suave sentimento...

Bem sei que nada do que vos digo poderá nem levemente impressionar a vossa alma candida. E demais conheço que não posso sobreviver a este golpe. Quando na Vida morre a esperança, a morte vem breve, e o sepulchro após ella.

Que quereis ? Sobre mim pesava a mão tremenda da fatalidade. Estava escripto no céu que eu abandonasse a vida sem que vivesse uma hora nos braços de uma mulher, devorada do amor que eu sentia, que acreditasse, como eu, na eternidade dos juramentos, que se proferem quando o coração antevê a felicidade.

Estar tão de perto da felicidade e ter de regar com pungentes lagrimas o tumulo da minha esperança!

E depois, sabeis acaso o que é um homem repetir a si mesmo -- é o meu ultimo amor? Lembra-Vos, no bello drama de Dumas, esse Henrique Muller, devorado por uma doença impiacaVel, que esmaga com violenta cólera os arbustos que se lhe levantam debaixo dos pés, cheios de Vigor, e de Vida?... Mas a phtisica moral!... mas quando um homem tem de invejar o ramo secco, que se despedaça ao sôpro da tempestade, a flôr mimosa que se desfolha ás caricias da aragem... um homem ter de bater no peito para dizer: «Aqui não vive senão um acerbo padecer, não reverdece nem uma illusão, nem uma esperança!...

aqui não habita nem uma saudade pura, ingénua, uma recordação santa da mulher que amei!» E que immenso, que Vasto coração calcou esse mundo aos pés! Saudei, como Napoleão, os quarenta séculos decorridos sobre as pyramides indestructiveis: tive nas mãos, como Pitt, os destinos de um grande império: vi-me coroado, como Byron, do cypreste immortal, colhido nas margens da Grecia livre : senti nos lábios, como o feliz Abeillard, os extremosos e puros beijos de Heloisa: e foi assim que a minha alma se sentiu debil para viver no mundo, depois de idealmente saciado em tão esplendidas glorias?

A vontade expira, n'estas delicias de imaginação: a fé e o enthusiasmo já não podem reviver, e o homem só póde existir feliz na mais humilde obscuridade.

E depois não ha peito honrado que possa respirar esta atmosphera de abominação, e de mentira. Essa sociedade licenciosa e impia prostra-se nos templos, e faz sermões de moral nas salas aonde se entrega a todas as delicias da vida, e deixa depois expirar de fome á porta do seu palacio o seu irmão vergado pela dôr, e martyr do trabalho.

Acaso o anjo que vôa nos espaços ethéreos póde escutar a voz do humilde mortal, que a desventura faz delirar? E todavia seria para mirn uma consolação infinita o saber que a minha existência na terra não passou por vós desapercebida: que a minha imagem poderá alguma vez, perpassar pelo vosso pensamento.

Por vós aspirei á gloria, e todavia reconheci que era apenas uma estatua fria, e inanimada, que converte em duro mármore os que d'ella se aproximam !

CAPITULO ULTIMO

O bom homem de Laplace

Ao vêr representar uma das mais bailas tragédias de Racine, perguntou no fim com admiravel ingenuidade: Qu'est ce que cela prouve?

Um romance, que se escreve a correr, entre um artigo de fundo, e a insipida leitura de algum relatorio ministerial, merece seguramente a mesma interrogação.

Que vale a pequena fracção dos padecimentos de um homem, no seio d'esta vasta synthese em que se empenha a humanidade? A alma d'um poeta afogando-se n'este oceano, sempre tempestuoso, de uma sociedade, que se transforma, póde acaso modificar as tendências que dirigem as evoluções do mundo moral!

Esta opinião, um pouco metaphysica foi unanimemente abraçada pelo illustre areopago, que se constituiu em jury para discutir, e fazer a analyse ao mesquinho romance as Memórias d'um Doido.

O auctor assistia em pessoa a esta memorável sessão litteraria, procurando elucidar a sua intelligencia pela immersão de algumas chavenas de café, e aspirando o perfume de detestáveis charutos, que deixariam a perder de vista, na ruim qualidade os que A. Karr maldizia nas suas Guêpes.

Entre os presentes, contava-se um folhetinista aposentado, férvido admirador da prosa de D. Francisco Manoel de Mello e dos seus expressivos anexins.

-- O teu heroe é reamente absurdo -- disse T * * apertando entre os dedos um cigarro -- quem lhe metteu na cabeça que a Republica era o bello ideal dos governos!

Acaso pode ella como Luiz XIV edificar os aqueductos de Maintenon, á custa de milhares de victimas? Dispender como Catharina Segunda, quatrocentos e quarenta milhões em subsidiar esfalfados amantes ? Ou manter a ordem, como Napoleão, á custa de seis milhões de írancos, e de um milhão de homens sacrificados na guerra ? A republica, o mais a que se atreveu foi a decepar meia duzia de cabeças de cabelleira e polvilhos, e a diminuir a altura, graças ao ta- lon rouge, dos antigos roués do feudalismo.

-- Confesso-te que se o teu romance contém alguma originalidade, disse outro, é porque realisa a epigraphe de George Sand no seu Alão: «Não ha ninguém que não faça o seu pequeno Fausto, o seu pequeno D. Juan, o seu pequeno Manfredo, ou o seu pequeno Hamlet, á noite, ao pé do fogão, com os pés calçados de mui bons chinellos.» -- Demais a mais, é evidente que os romances de M. d'Arlincourt desceram no mercado, e que as Amandas e Oscares, de novella inglesa, causam suores frios aos mais corajosos leitores. Este romance é para as lettras o que um prato de salada de camarão é para a gastronomia. Abre o apetite, e não faz peso no estomago. De quantos se póde dizer o mesmo !

-- E álem de tudo, exclamou C * *, fazendo de Mauricio apenas um heroe em perspectiva, comprehendeste as exigências do século, pouco favoráveis a esses grandes abortos da naturesa humana. O heroismo, afinal, é a cousa mais incommoda que se conhece. Não contente em se atormentar a si, alimentando se de vagos e arrojados sonhos, perturba de vez em quando o mundo, com arrojadas empresas. Napoleão, graças ao parvo enthusiasmo que soube inspirar á França, converteu se n um grande ganhador de batalhas, e no mais incansável consummidor de homens. Quanto a França não devia ufanar-se de possuir á frente dos seus destinos um d'aquelles velhos typos da historia antiga !

-- É verdade! tens rasão ! -- exclamou L * * -- o heroísmo só se consente em musica, desfaz-se então em grandes trovoadas de contra ponto .... Acaso Beethoven não é a imaginação mais poderosa que ha muitos séculos tem aparecido ? Se os allemães fazem d'elle um Wallenstein, não deixaria em socego a Europa: infelizmente, procurou um derivativo aos furores vertiginosos do seu estro : entornava uma certa quantidade de garrafas do Rheno, na famosa taberna do Chat qui file, em companhia de outro genio não menos eminente, e não menos amigo de Baccho -- o conselheiro Hoffman dos Contos Phantasticos.

-- Os músicos, esses é que comprehendem o amor! Vejam que organisações omnipotentes são Listz e Choppin.

-- Francamente, disse um poeta, o teu heroe é um ente insupportavel! O destino tinha-o feito para cicerone d'aquelles celebres viajantes, carregados de bank-notes , e de spleen, que passeiam de casaca e luvas brancas, pelas ruinasde Pompeia. Com que sentimento e bella pronuncia italiana não diria elie : -- Ecco la casa di Diomede , sepolto nella cinere d.el Vesuvio, ottanta anni doppo Jesu-Christo. -- Ecco la bottega o cafe , doyi gli Romani pigliavano sorbetti doppo pranso. -- Ecco il tempio delia Fortuna Au%usta, e muitos outros eccos de distincta recordação.

E o mavioso cantor das margens do Tejo afogou este trecho de eloquência, sorvendo com admiravel nitidez um copo de agua-raz, condecorada com o titulo pomposo de Genebra hollandesa.

-- Isso agora é verdade -- respondeu o auctor -- mas protesto contra qualquer aproximação que queiram fazer entre mim e o meu livro-... Acaso Goethe não morreu, n'uma edade, muito rasoavelmente provecta, fazendo mesuras diplomáticas n'uma d'essas cortes microscópicas de Alemanha ? Charles Nodier, o auctor do Sbogar, andou alguma vez na sua vida tentando a existência dos heroes da estrada ? O pobre homem expirou, acho eu, entre uma Flora monstruosa, e uma importuna memória de Champollion sobre os hieroglyphicos egypcios.

Requiescat iti pace!

-- Mas para que escrevestes então essas estiradas dissertações sobre metaphysica de sentimento ?...

-- Eu podia dizer que deviam isso a uma muito vulgar preoccupação financeira ; mas não é verdade... Escrevi, porque nada ha mais commodo do que navegar idealmente no fleuve da tendre ...

Um dos poetas abriu a bocca de um modo tão injuriosamente natural, que me expirou a voz na garganta de despeito.

-- E qual é a conclusão que tiraste? -- atalhou o critico com incrível animação. -- Vieste provar mais uma vez, que o scepticismo é a unica situação philosophica do espirito, -- que o talento está em reacção contínua contra as forças policas e sociaes que o comprimem, -- que a religião do sentimento, ou morre com a vida, ou se des- troe com a experiencia? Isso é velho, mais Velho do que os vapores dessa planta, que tu fumas com uma voluptuosidade pacifica.

-- Que ridiculo sermão de lagrimas -- bradou o folhetinista, dando uma accentuação cómica ás palavras -- para fazeres no fim a apologia do orgulho ! Quem está em scena ? O inevitável poeta, que maldiz tudo, que se rebella contra tudo, que se irrita, que protesta, que se incommoda com tudo. Creaste um cão Cerbéro da civilisação, ladrando em eternas paginas, e amando em períodos incommensuraveis. Quem discute assim o que sente, não se sabe se sente para discutir, ou se discute para sentir!

-- E deixaste o inconsolável Affonso, estacado deante do leito do moribundo ! -- disse um.

-- E abandonaste a saudosa Paulina, olhando com os olhos arrasados de lagrimas a face desfigurada de Mauricio; e não nos disseste, se foi multada n'esse dia por faltar ao ensaio! -- disse outro.

-- E Magdalena, leu a carta, e conservou a rosa?

-- Meus senhores, eu tenho um amigo, sceptico como um philosopho do século XVIII, e que declara ingenuamente, que toma ares pelo mundo, e que não vale a pena de conduzir muita bagagem, e de accumular muita sciencia, para se arrastar monotonamente n'este valle de lagrimas. Pediu-me que lhe pozesse á disposição um dos personagens do romance, e que dependesse d'elle o seu destino. Era um capricho de leitor blasé. Condemnou m'o á morte: matei-o. Querem que lhe realise o mesmo desejo? D. Affonso sollicíta uma candidatura, e no intervallo, vê crescer o abdómen.

Paulina canta nos coros de um theatro, e esconde com alvaiade e vermelhão as rugas prematuras de uma vida desordenada. Magdalena ensina, ao que parece, a salve rainha , a tres ou quatro encantadoras crianças, que amotinam a casa e enchem de delicias os respeitáveis auctores de seus dias.

Quanto á Viscondessa, se querem a todo panno, que arranje a tudo uma solução, dir-lhe-hei que desgasta diariamente alguns rosários, e que ouve irrevogavelmente a missa das oito.

Eu sou generoso, e sei condescender com os desejos dos meus amigos.

E accendi o meu quinto charuto, com aquella deliciosa soberania d'um creador em leitura , intenluo, e pandecta.

Ecco ridente il cielo, Già spunta la bella aurora.

Entoou um dos convidados com pronunciada intonação. Este principio da aria do Barbeiro de Sevilha , quer dizer que quando um auctor finalisa um romance, com uma tão condescendente facilidade, e são horas de ir para o theatro, paga se o consumo, e caminha-se gravemente para a esthetica e plastica d'uma representação.

Saíram todos e eu stenographei esta sessão, em que nada se concluiu, como acontece a quasi todas as sessões d'este mundo.

FIM


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TextGrid Repository (2023). Portuguese ELTeC Novel Corpus (ELTeC-por). Memórias de um doido: Edição para o ELTeC. Memórias de um doido: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001D-44C9-2