COLLECÇÃO ANTONIO MARIA PEREIRA
JULIO CESAR MACHADO
A VIDA EM LISBOA
ROMANCE CONTEMPORANEO
2.ª EDIÇÃO
VOLUME 1.°
LISBOA
Parceria ANTONIO MARIA PEREIRA
(LIVRARIA EDITORA)
Rua Augusta-- 50, 52, 54
1901
A CRITICA
Este livro, escripto sob o poder de impressões verdadeiras, aspira unicamente a ter côr local.
O panorama lisbonense é tão vasto, que um estudo phisiologico sobre todos os vultos e logares seria trabalho para mui largo folego, e não sei até se, conseguida a difficuldade de alguem o escrever, venceria tambem a de alguem o ler!
Procurar as mais salientes feições da nossa terra, estudar os costumes e a indole dos lisbonenses, ligar a descripção dos typos á descripção de certos logares que em Lisboa tem mais distincta feição: inventar uma acção em que os elementos se combinem todos a auxiliar a pintura emprehendida dos logares e dos typos, amenisando-a pelo interesse e movimento de um enredo em harmonia com os caracteres que se pretende observar, e com os usos que se procura descrever -- eis o plano desta obra, plano de uma seriedade extrema, que inevitavelmente devia tornar pesado este trabalho a um pulso litterario tão pouco experimentado como o do auctor.
A critica será severa se apenas pela leitura do primeiro volume accusar a obra de não haver correspondido ao titulo. O plano é largo, e torna-se difíicil desenvolvel-o nos primeiros capitulos, quanto mais realisal-o no primeiro volume de um trabalho extenso. O romance, conforme o titulo do ultimo capitulo deste volume indica, é no volume segundo que verdadeiramente principia; desejo vivamente fazer sentir que considero estes primeiros quinze capitulos como o prologo da acção que imaginei.
Dou estas explicações, porque não pertenço ao numero dos que não reconhecem á critica o direito de questionar todos os elementos, que constituem um livro, tanto mais que tento pela primeira vez um trabalho de algum folego, e que não posso apresentar-me escudado por uma reputação justificada.
Devo ainda uma explicação. Quando se tem em vista retratar os costume de uma sociedade, ou essa sociedade é um modelo de virtudes, ou o escriptor terá por vezes de esboçar phisionomias pouco sympathicas, e caracteres não extremamamente honestos. Fugi sempre nesta obra a ser immoral, mas não quiz nunca deixar de ser verdadeiro. Os que me accusarem dar-me-hão o gosto de os conhecer; por que quando se tracta de castigar a immoralidade, os hypocritas e os devassos são sempre os primeiros a gritar «Aqui d'el-rei!»
Lisboa, 19 d'Agosto, 1857.
I
No Marrare
Tem-se dito que somos um povo sem costumes. E' uma d'essas phrases sem alcance, que passam como aphorismos, não pela idéa que contem, mas porque as palavras vão ahi dispostas com uma certa euphonia que o ouvido não rejeita, e que a reminiscencia não hesita em acceitar.
Penso de outro modo. Julgo haver n'esta terra costumes, e costumes muito differentes dos do estrangeiro. Se a nossa indole diverge, como hão de parecer-se os nossos usos?
A nossa alegria não tem o menor parentesco com a dos francezes : nós rimo-nos com gravidade diante de gente : largamos uma gargalhada franca e despretenciosa, apenas de portas a dentro.
A nossa gravidade, todavia, não tem o menor ponto de contacto com a sisudez britannica: essa é uma seriedade de lenço branco; a nossa, é uma seriedade... sem lenço no pescoço. O que n'elles se encontra de aristocratico no porte só transparece aqui como predicado da burguezia enriquecida; o que nelles vem de educação, entre nós nasce do dinheiro; e se elles são sisudos por temperamento, nós apenas o somos por filaucia!
Os costumes são os symptomas do espirito e do caracter das nações: por isso teriamos o melindre de não falar dos nossos, se alguns não entrassem no dominio da caricatura.
Como teremos occasião de observar em capitulos que hão de vir, em Lisboa a população acorda a uma certa hora, tira o barrete de dormir d'alli a uns certos minutos, ergue-se, almoça, janta e toma chá em periodos marcados e inalteraveis por qualquer circumstancia possivel. Mas quero que a principiemos a observar de vespera, e a contemplemos algumas horas antes de ir deitar-se. Se não arredondo o periodo dizendo: «deitar-se, e dormir» é porque desejo evitar os pleonasmos: para a população lisbonense, deitar-se e dormir é um acto simultaneo: ella já dorme quando se deita!
Oh Lisboa! para que havia de vir o gaz annunciar que a roda fatal do progresso vinha roubar-te parte dos encantos da tua insipidez? Para que havia, oh Lisboa, enviar-te o destino esses inimigos da tua patriarchal nullidade que tomaram os nomes de «Caminho de Ferro» e de «Telegrapho Eletrico» e que debalde, talvez, se propõe a engrandecer-te e illustrar-te?!
Pois, dize, não fazias tu consistir a tua gloria na mediocridade do teu alcance commercial, e não cuidaste sempre que havia de durar per saecula saeculorum o reinado das cabelleiras, que condemnavam o talento, accusavam as invenções, execravam a actividade, e absolviam do cume da sua insufficiencia a terra que tinha paciencia para os soffrer!?
Que! Todas estas tentativas de progresso, que tendem a vencer o espaço e o tempo, e a aproveitar os breves dias que o homem tem de passar sobre a terra, não escandalisam por ventura os teus brios de ociosa, nem despeitam a indole pachorrenta do teu caracter conservador?
Pois sim, que importa! querem-te com resaibos parisienses, e tentam aformosear-te á estrangeira: tu és boa de todo o modo! boa ao dia de semana, e excellente ao domingo, quando calças luvas, pões a historica casaca preta, e te dispões a ir passear serena e pausadamente, tendo em vistas aborreceres-te com gravidade!
Todavia, eu amo-te, Lisboa! amo-te e a tudo quanto vem de ti! e se n'uma ou outra pagina d'este livro, alguma das tuas feições se acha daguerreotypada folhetinisticamente, porque este livro apesar de ser um romance, é todavia um verdadeiro folhetim em 400 paginas, nem por isso me queiras mal. Aqui, o céo é azul, o sol scintillante e esplendido, a natureza opulenta e magnifica, o clima consolador e sympathico; mas os monumentos são acanhados e ridiculos pela maior parte, as artes desfallecem, as sciencias vegetam sem impulso nem auxilio, o talento rasga se entre as garras da miseria! Aqui, é grande e magnifico o que Deus fez -- feio e ridiculo o que os homens fizeram!
E agora que a minha profissão está feita, e eu livre já d'esse encargo de consciencia (porque hoje não ha obra possivel sem uma profissão de fé!) comecemos a ver Lisboa á medida que a acção d'este romance folhetim caprichar em que mudemos de rumo.
Estamos no Marrare.
O Marrare é o primeiro caffé de Lisboa, apesar de ser o peior, o mais mal servido, o que tem bebidas menos gostosas, e commodidades mais insufficientes.
O Marrare, é para Lisboa uma especie de monumento historico que ella supporta, porque o habito lh'o tornou necessario. E' o rendez-vous dos janotas e dos jornalistas, dos parias e dos homens de pensamento: é um sitio onde nem todos tem direito de entrar, apesar de ser publico! Adquire-se esse direito pelos seguintes titulos:
Artigo 1° É necessário para ser admittido a frequentador do Marrare ser um homem fora do commum.
§ unico. Consideram-se homens fora do commum os homens de talento, os janotas, os ociosos puros, e todos os exceptuados da sociedade constituida, que descobriram modo de gastar dinheiro sem ter dinheiro, ir ao theatro sem comprar bilhete, ter fato sem o pagar, andar de sege sem saber a conta.
Estamos no Marrare.
Quatro jornalistas commodamente agrupados em roda de uma das mezas d'aquelle eterno corredor, fumam, bebem cognac, e cavaqueam. São oito horas de uma noite de domingo gordo.
-- Que fortuna suppõe ao barão de Sousa? diz Estevão de Mello a Guilherme da Cunha, o mais moço dos quatro, neophito inexperiente, em vesperas ainda de fazer as suas estreias litterarias, e que julga o seu futuro tão rico de vantagens, como o seu presente é de illusões.
-- Duzentos contos, com certeza.
-- Com certeza! pondera Luiz de Lima, com um sorriso de compaixão ironica; tu ignoras ainda meu caro amigo que ninguem tem a fortuna que se lhe attribue: ou tem muito mais, ou muito menos! Além de que, o teu barão de Sousa é um Nababo de comedia, um tio que vem do Brazil, um lord de novella ingleza! Eu conheci ha doze annos um homem pobre como eu: havia apenas uma differença, que era a d'elle parecer incapaz de vir a ser rico, porque não jogava, não entrava nas loterias, não trabalhava, e não sabia ganhar rasoavelmente um ceitil: pois bem, este homem que era nullo, insignificante, parvo e estupido, andou melhor do que qualquer de nós; não se entreteve com a patria, nem tomou amôres com a politica -- namôrou. Mezes depois, encontrei-o casado com uma fortuna, segundo se dizia, de cincoenta contos -- n'esse tempo, tu lembras-te Estevão? ainda toda a gente chamava uma fortuna a cincoenta contos. -- Este homem foi considerado como um ente valioso, e importante: deram-lhe um logar que elle teve a condescendencia de sollicitar, fizeram-no consul não sei para onde, para o Maranhão se bem me lembro; partiu, ganhou por lá o mais que poude e voltou, ao cabo de cinco annos de economias e de grandes sopros de felicidade com trinta contos. Pergunta-se: -- em que gastou este homem o resto? E sabe-se a final que elle apenas recebera o dote de novecentos mil réis, disfarçados em cincoenta contos!
-- Saibamos, acode José d'Athayde, -- noticiarista effectivo de jornal, um d'estes homens que tem espirito e não tem talento, mas que se dão melhor com isso -- a tua namôrada tem prendas de caracter? Por outra, sabe fingir um deliquio, imitar um accidente, e fazer acreditar ao pae que está resolvida a deitar-se da janella abaixo?
-- Estás fóra da questão, replica Estevão de Mello, o pae é muito mais esperto do que nós todos, e se lhe desse para ser escriptor publico seria o rei dos folhetinistas. E' um homem que tem visto o mundo!
-- N'uma carta geographica! redargue Luiz de Lima. Não acredito na perspicacia dos homens que teem fama de espertos. Quasi sempre são tolos! e, vice-versa dos parvos de reputação saem de ordinario homens velhacos e intelligentes!
-- Tu conheces o pae? pergunta José de Athayde a Guilherme da Cunha.
-- Não. Nunca o encontrei no mundo, julgo até que frequenta pouco a sociedade. Conhecem-no?
-- De nome, responde Estevão.
-- Tambem eu, diz Luiz.
-- E eu tambem, diz José d'Athayde.
N'esta occasião entrou no Marrare um homem de cincoenta annos approximadamente, ainda elegante e apresentavel. Sentou-se a uma meza proxima á dos jornalistas, e pediu um refresco.
A cavaqueação continuou.
-- Elle mora a Santa Apolonia? pergunta Lima.
-- Exacto. Na casa grande...
-- Bem sei, diz Estevão, uma casa famosa para aventuras de namôrado, casa que parece edificada por Cupido com cal e areia temperada por Venus e amassada por Mercurio!
-- Deves pedir-lhe que te deixe admirar a lua atravez das parreiras da quinta. Percebes-me? Em quanto limitares as entrevistas a gargarejar da rua para a janella não vejo probabilidade de conseguires senão alguma angina-pectoris! A quinta, meu amigo! Desperta á namôrada tendencias campestres! Accorda-lhe n'alma o gosto pela solidão das noites; dize-lhe que n'um jardim o aroma das flôres depois da meia noite vem casar-se ao perfume dos affectos, e formam um incenso de amôr grandioso e divino! A quinta, é a tua unica taboa de salvação!
-- Discuta-se o caracter e qualidades adventicias, grita Estevão. Para sabermos se ella é romantica, basta conhecermos-lhe: como se chama ella?
-- Sophia, responde Guilherme.
-- Nome de ingenia de algumas das eternas semsaborias sentimentaes que enriquecem o repertorio do nosso theatro normal ! diz o noticiarista. Já se ve que a namôrada tem queda para a lettra redonda. Leu de certo versos teus no album de alguma visinha. Todas as Sophias são litteratas, desde a de Mirabeau até á tua heroina de Santa Apolonia!
O homem que se sentara á meza proxima á dos jornalistas levanta se e sae.
-- E' um caso singular! diz Guilherme da Cunha, a physionomia d'este homem que vae saindo parece-se immenso com a da minha namôrada.
-- No branco dos olhos! diz José de Athayde.
Neste momento ouviu-se um grande alvoroto de musica e algasarra. Ia passando uma dança de carnaval. Sentiu se depois o prolongado rodar dos trens, e o motim da festa popular. O Marrare começava a estar deserto, o que sempre lhe succede nas noites de entrudo.
-- Que faremos esta npite ? pergunta Estevão, pousando na meza a garrafa exhausta já de recursos. Vamos ao theatro?
-- Tenho um rendez-vous na Floresta, acode José de Athayde n'um tom de homem conquistador e importante.
-- Com aquella comparsa do theatro hespanhol, diz Estevão rindo, a quem tu prometteste uma menção honrosa no teu primeiro noticiario, dez linhas laudatorias a troco de uma entrevista?
-- Não! diz José d'Athayde de mão na ilharga, não se trata de uma comparsa, nem de uma duqueza : é um rendez-vous de maior gravidade e mysterio.
-- Has de dizer-nos quem é, acode Luiz de Lima.
-- Paga primeiro o cognac, depois saberás tudo.
-- Rapaz! grita o medico. Esta garrafa de cognac; dois pintos, guarda o resto. Depois, voltando-se para Athayde:
-- Estou esperando!
-- Tenho um rendez-vous na Floresta, diz o noticiarista em tom mysterioso, ás onze horas em ponto; á entrada da sala de crystal... com o meu agiota!
-- Estou roubado! diz Luiz de Lima, cuja balda era saber todos os cancans da vida alheia, e que já contava com um escandalo! Emfim vamos para a Floresta!
-- Para a Floresta! disseram todos.
II
Na Floresta Egypcia
Para os que não assistiram ás festas do Tivoli, a Floresta Egypcia é o melhor divertimento de verão que Lisboa tem possuido; não só a sociedade que o frequenta é de ordinario escolhida e da melhor esphera, mas tudo parece reunir-se para que sejam agradaveis as noites passadas n'aquelle grande jardim illuminado a giorno, abundante em jogos, enriquecido pela já historica montanha egypcia, especie de caminhos de ferro mais vagarosos talvez, mas que sairam mais baratos ao povo.
Pelo carnaval as salas de baile preparadas ad hoc recebem uma quantidade infinita de mascaras e de visitadores. São ao todo nove salas, a maior parte d'ellas pequenas, onde n'essas noites é quasi impossivel transitar, quanto mais dar rendez-vous a alguem. Os rendez-vous de ordinario teem logar nas salas do rez-de-chaussée, n'algum dos gabinetes do botequim, ou no salão terreo, que precede a sala de crystal, que não é mais nem menos do que um predio de vidro, que serve de theatro, de sala, de tudo que se precise!
Quando os jornalistas e o doutor Luiz de Lima chegaram á Floresta, o relogio da entrada marcava dez horas. A concorrencia era immensa e quando algum mascara entrava, dirigia-se em linha recta á sala de crystal e cedia d'aquelle prologo de intriga que costuma ter logar no corredor da entrada, e que constitue, a meu ver, a menos incommoda face d'essa grande medalha de semsaborias. Mas na chamada sala do tanque agrupava-se uma reunião de elegantes, e entretinha a conversação um dominó preto que pela pequenez da mão encadernada n'uma irreprehensivel luva paille, e pela graciosidade do pé que desvanecia a reminiscencia de Cendrillon, dava toda a probabilidade a quem quizesse apostar que era uma mulher.
Os janotas deixavam-se intrigar com a melhor vontade porque -- oh! maravilha dos tempos modernos! -- o dominó tinha espirito!
-- Mas quem és?! exclamava um dos que constituiam o grupo. Pelo tamanho do pé, ia jurar que te conheço!
-- Trago as chinelas de Rhodope, meninos! A linda esposa de Pharaó estava a tomar um banho no Nilo, mas esqueceu-lhe o seu fato na praia. Succedeu passar uma aguia, roubar os seus sapatos, reerguer-se aos ares com elles, e passando depois pelas alturas de Lisboa deixal-os cair a meus pés; calcei-os e vim para a Floresta!
Os jornalistas e o medico entraram neste momento e augmentaram o grupo dos intrigados.
-- O teu logar não é aqui, Luiz de Lima! disse o dominó dirigindo se ao medico. Leviano! Já por tua causa uma linda mulher se suicidou, e foste embotar as tuas recordações d'amôr, decorando livros de medicina na Universidade! Curaste uma paixão d'alma com um curso de cirurgia! Es capaz de receitar duas onças de Gall, meia oitava de Broussais, como remedio infallivel para dissecar o coração!
-- Desconfio que este mascara é algum boticario illustre! disse o doutor, com um breve sorriso.
-- E era uma interessante mulher, essa de quem lhes falo continuou o dominó. De dezeseis annos casou, e de dezeseis annos morreu! Devorou a aquella febre de impotencia que acompanha os amôres fataes; fanou-se como flôr de pouca dura: atravessou a Zona Torrida do amôr, e avistou seu marido no pollo contrario! Depois, creança imprudente, por ti, que a tinhas perdido, por ti quiz morrer!
Luiz de Lima, n'um impeto de cholera agarrou o mascara por um dos braços, conduziu-o para junto de uma columna, e disse-lhe em voz alterada pela inquietação e pela anciedade:
-- Dirme-has quem és, ou seguir te-hei toda a noute, e não conseguirás sair sem que na rua te reconheça!
O dominó, ergueu os hombros em signal de desdem; depois, descalçando uma luva e estendendo para os labios de Luiz de Lima a mais linda, a mais branca mão de que uma mulher possa ser vaidosa, encostou um annel aos labios palidos e frios do medico.
O doutor fez reparo no annel, examinou bem a figura do mascara, depois retorquiu com um d'estes sorrisos amarellos que são vulgares nos bailes mascaras.
-- Já tinha toda a probabilidade de ter adivinhado quem era. Mas aqui! Na Floresta!? Todavia, a graça desses pés de fada não se confunde. Já tomou chá?
-- Prometti ir cear com a Annica, respondeu o dominó. Mas são ainda agora onze horas, creio eu, e ella volta de S. Carlos á meia noute exacta. Temos uma hora para conversarmos, se é que tambem deseja ter uma explicação commigo.
O medico deu o braço ao dominó, e atravessaram a sala do tanque em direcção ao atrio da entrada.
-- Cuidado! Não seja o meu agiota que se disfarçasse para saber em que opinião o consideramos! disse José d'Athayde.
Nesta occasião bateram lhe no hombro. O noticiarista voltou-se, e deu com o seu homem.
-- Faltou á hora, disse o agiota, consultando o relogio, e contando minuto por minuto; no meu já passam... dez e cinco quinze, e dois dezesete... já passam dezesete minutos das dez e meia!
-- Meu caro amigo, disse José d' Athayde, estava pensando agora mesmo na sua sympathica pessoa!Venha tomar um grog.
-- Dispenso, disse o agiota.
-- Então venha tomar dois grogs? Tambem não! Nesse caso venha o seu braço a todos os respeitos illustre, e vamos conversar ao ar livre.
O agiota e o noticiarista foram de braço dado tambem na mesma direcção do medico e do dominó, passear e conversar para o atrio como elles.
Demoremo-nos um instante para pôr o leitor ao facto de quem são os personagens com quem agora o estamos occupando.
Luiz de Lima, já o leitor conhece do primeiro capitulo. É um homem de trinta annos alto, elegante, rosto intelligente e agradavel expressão e attitude sempre doutoraes. Dizia-se no mundo que a marqueza de Villar o distinguia. Entretanto elle era o primeiro a desvanecer tal boato quando alguem lhe suscitava conversação sobre o assumpto. Mas os roués da nossa sociedade asseguravam que o medico era um fino espertalhão capaz em questões de mulheres, de levar o bolo á gloria!
Havia um motivo para que se pensasse assim. Tenho observado que as mulheres de ordinario entregam-se por curiosidade ou por amôr; mas muito mais a miudo por curiosidade. Ora, Luiz de Lima fizera aos vinte annos as suas entradas no mundo e debutara por apaixonar uma das mais formosas senhoras da nossa sociedade, que achando-se preza entre o dever e o amôr, porque infelizmente era casada, teve o sublime instincto de respeitar a sua propria dignidade; mais tarde, victima do amôr, succumbiu á lucta e preferiu envenenar-se. Deixou-se morrer ao som de uma walsa, e quando a palidez da morte lhe desbotou as faces ella disse a todos que era devido ao cançasso o suor mortalmente frio que lhe innundava o rosto!
Luiz de Lima foi o assumpto de mexericos de baile e de espectaculos. As damas assestavam o oculo para o examinarem, perguntavam umas ás outras se já haviam falado com elle, se já o tinham visto dançar, se já o haviam amado emfim!
Porque o amaria ella tanto? Era a pergunta constante do sexo amavel. Que tem elle de mais que os outros para que ella se envenenasse por causa d'elle?! diziam comsigo mesmo as Pompadours d'esta terra e d'esta epocha, desejosas de o conhecerem de perto.
O medico era um homem de mundo a este tempo. Comprehendeu o alcance prodigioso da sua situação. Tratava-se de escolher! Todas essas mulheres que haviam desdenhado d'elle, agora que causara a morte de uma pobre apaixonada, viam n'elle um homem de moda, e era a qual d'ellas o possuiria primeiro.
Luiz de Lima já não estava na idade dos devaneios. Espirito meditador e calculista, viu na sua situação uma estrada para um futuro, e lançando a vista sobre as mais distinctas mulheres da sociedade lisbonense, elle disse no meio de um baile:
-- Será a marqueza de Villar!
N'estes ultimos tempos Portugal tem visto erguerem-se e cairem por si proprios tantos partidos politicos em que se defende homens em vez de causas, que á historia contemporanea não será facil de certo mencionar bem todos elles. O marquez de Villar era um exemplo do que avançamos. Influencia de um dia, gloria de momento, fortuna de occasião, luz de perilampo, tudo em fim que de uma idéa da pouca duração do seu poder, mas durante esse pouco tempo o marquez de Villar, foi um homem importante. Ora, felizmente para Luiz de Lima estava-se n'esse tempo, isto é o marquez de Villar segundo a phrase de José d'Athayde, era trunfo! O medico sabia a fundo que não ha protecção que valha a de uma mulher que nos ame e esteja bem situada. Ambicioso e calculista, vio na marqueza um instrumento para derribar as dificuldades do seu futuro. Incapaz já de amar elle disse comsigo -- «A ter que representar, seja com uma actriz que me de honra !» Idéa de cómico, que julga engrandecer-se por estar em scena com algum talento festejado!
A marqueza, effectivamente, era uma das curiosas de conhecer o medico. Foi assalto sem perigo. Ao fim do quarto baile em que se juntaram julgou-se até inutil arrear bandeiras em signal de ir entregar-se a praça.
Mas souberam ambos depois manter no mundo um tão perfeito disfarce que chegaram a illudir os litteratos, gente indagadora dos cancans de sociedade, e que saborea um escandalo com melhor vontade do que um livro de Herculano.
Apenas alguma fidalga velha, das que se sentam ao canto das sallas, e cerram os olhos como quem cae de somno em quanto tem a habilidade de não perder de vista o mais breve movimento de algumas das cem pessoas que estacionam deante d'ellas, apenas alguma d'essas, dizemos, affirmava que a marqueza durante uma noite inteira não dirigira a palavra a Luiz de Lima, apesar de estar palestrando alegremente com tres ou quatro homens, amigos intimos do medico, e que se achavam ao lado d'elle. Excluir da honra de lhe dirigir a palavra um unico homem que está e se deixa ficar toda a noite n'um grupo de mais tres com quem uma mulher conversa continuamente, prova ou não prova que o disfarce vae longe de mais, e que elles falam tanto a sós que combinaram não se dirigirem a palavra diante de gente?
Faça-se justiça ás fidalgas velhas! Para este genero de coisas não ha cartilha como a d'ellas!
A intimidade da marqueza com Luiz de Lima durava havia já dois annos. Era mais vehemente cada dia o interesse que ella tomava pelo medico; mas era singular e melindrosa a situação em que n'essa occasião se encontrava. Expliquemo-nos.
Dotada de um temperamento facil a affectos, a marqueza amára dois homens depois de casada. Victor Marrocos, e Luiz de Lima; o primeiro ha de o leitor ficar sabendo quem é, depois de ler um dialogo que n'este mesmo capitulo se encontra; o segundo é o medico já conhecido por quem está lendo esta obra.
Casára por imprudencia e leviandade de creança, casára aos quinze annos, e agora que já contava vinte e nove, a marqueza chorava com lagrimas de sangue as leviandades da sua infancia, que para sempre por um capricho pueril a haviam encadeiado a um estado social para ella insupportavel, agora mais do que nunca!
Aos vinte annos, prendera-se d'amôr a Victor Marrocos: enfeitiçara-a a errante existencia d'esse revolucionario moderno, que por um momento se dignou fazer-lhe a côrte, acceitar os favores da sua intimidade, para depois e de repente desapparecer de Lisboa. Voltou de novo, quando a revolução de 1846 serenou; appareceu coberto do pó da batalha, no meio de uma soirée do marquez de Villar, e explicou no intervallo de uma polka a uma contradança, a siuação politica de Portugal ao marquez que morria por ouvil-o falar, á marqueza que ficou meia morta de alegria ao vel-o, e á sociedade que prestou ao homem politico uma attenção misturada de interesse que o obrigou no fim a dizer -- «Os acontecimentos de Torres Vedras, ainda assim, não devem ser tidos em tal importancia que por causa d'elles se altere a ordem das redowa e das shotish!
A marqueza encontrou-se de novo no seu paraiso de felicidade, mas conheceu mais tarde com que homem lidava; viu que elle a sacrificava á politica, essa amante perigosa e deslumbrante dos homens publicos, e ponderou então que só fora amada por devaneio, por passatempo, por capricho, e que o coração do seu amante só era perceptivel de palpitar toda a vida pela gloria, rival invencivel aos olhos d'essa mulher fraca, que não se lembrou que a ambição quebra-se entre os dedos frageis do amôr, e que ella podia ainda vencer e apaixonar aquelle pretendido grande homem!
A pouco e pouco desvaneceu-se entre elles até a mais leve sombra d'amôr, ou mesmo de reminiscencia do passado. Constituiu-se entre ambos uma intimidade sincera e despreocupada de idéas amôrosas. Falavam em politica, em theatros, em toilettes, a sós, como poderiam fazel-o diante de gente por alguma combinação especial. Era como se nada houvesse existido entre elles, e se o passado fosse um sonho apenas de que nem ao acordar durassem ainda bem vivas as lembranças!
A alma da marqueza soffreu então, ao atravessar as crueis desillusões de um primeiro amôr. As mulheres romanticas desenvolvem nessas occasiões todo o seu espirito, e sabem tirar-se com vantagem e prestigio d'estas situações delicadas: Sapho trahida pelo seu amante, resolve-se a atirar comsigo do alto do monte Leucate: a marqueza, n'uma situação não menos triste hesita perante a idéa do suicidio como immoral, e prefere escolher outro amante e esquecer o antecedente!
O amante escolhido foi Luiz de Lima, que, como é fácil perceber, representava mais do que um homem -- representava a vingança! a marqueza quiz poder de novo apparecer de fronte alta, e hoje é maxima corrente que não se pode passar sem leque e sem amante!
Mas ao marquez de Villar, nada lhe passava sequer pela idéa de tudo que acabamos de mencionar. Julgava bem sua mulher, ou para melhor dizer, não a julgava bem nem mal, porque não perdia tempo a meditar na virtude da marqueza.
Por isso reinára sempre entre os dois amantes o maior disfarce no mundo, e a melhor harmonia quando se encontravam a sós. O medico via na marqueza um amôr útil, a marqueza via em Luiz de Lima, o seu ultimo amante, e por isso esmerava-se em prendel-o e enleal-o.
Ora. não sei porque excentrica casualidade, observa se que na sociedade lisbonense as senhoras casadas que tem um amante escolhem sempre para esse cargo honorario um homem tambem casado. E' talvez para por este modo promover ainda mais o systema das infidelidades conjugaes; ou então, será para que o mundo não observe tão facilmente nem tão facilmente desconfie: ou será finalmente uma vingança de rivalidade da parte de metade, do sexo amavel para com a outra metade firmando-se em não haver mandamento que prescreva -- Não desejarás o marido do teu proximo!
Certo é que a marqueza não queria prescindir do luxo da situação, e via com desgosto que Luiz de Lima não fôra abençoado pela igreja ligando-se para sempre a uma mulher a quem depois atraiçoasse.
-- Sabe o que hoje aqui me trouxe, Luiz? disse-lhe a marqueza, dando-lhe o braço, e deixando-se conduzir, como dissemos, até ao atrio de entrada.
Quiz convencer-me de que não era por doença que o meu querido Luiz me não apparece ha cinco dias quando eu na minha carta lhe pedia para só não apparecer agora tanto a miudo, porque o marquez notou que o doutor ha mais de dois mezes que não joga, sem todavia deixar uma só noite de visitar-nos! Para que foi mais longe das minhas prescripçoes?! Não adivinhava que eu não resistiria á saudade de o ver?!
-- Não me argua sem me ouvir primeiro, marqueza! cuida por ventura que ignoro o que se tem passado? Sei bem que a carta que me dirigiu sob pretexto de que o marquez desconfiava ou sabia tudo talvez, foi escripta dez minutos depois de Victor Marrocos desembarcar em Lisboa e enviar a criado a dar parte á marqueza do seu regresso!
-- Victor Marrocos, bem o deve saber, Luiz, é amigo do marquez e antiga visita de nossa casa. No dia em que elle deixasse de visitar-nos faltar-nos-hia o mais espirituoso dos convivas das nossas ligeiras funcçoes. Bem o conhece: não é exagero dizer que elle tem sido o homem de mais fina graça e da mais elegante originalidade que pode crer-se. Arrebatado ás vezes, e parecendo até descôrtez mas sempre d'uma excentricidade sympathica mesmo quando é um pouco petulante.
-- Ai! marqueza, não queira saber o que o mundo diz d'esse homem que tanto vale a seus olhos, e que toda a gente considera como um especulador politico, que, depois de haver feito epocha, sacrificou a energia das suas convicções aos interesses de um contracto, e tornou-se de repente conservador e ordeiro! Isto é, pelo que lhe diz respeito como homem publico. Quer saber agora o que se entende d'elle como homem particular? um caracter falso e desigual: tão susceptivel de um bom rasgo de generosidade de alma, como de um grande attentado ou de uma grande vilania. Isto nasce de um grande defeito do seu genio: elle não tem estima por si proprio! Vaidoso, mas a um ponto que sacrifica tudo á vaidade, este homem, incapaz de amar alguem, illude as amantes illudindo-se ás vezes a si proprio, quando lenta persuadir-se de que gosta d'ellas por ellas e não por si ! Victor Marrocos, marqueza, é uma alma gasta e esteril como Estevão de Mello, como Antonio Roma, como mil filhos d'este seculo, sem crenças e sem temores! Elle só poderá ainda inflammar-se para satisfazer um capricho da sua presumpção sem limites, ou então pelo que lhe deslumbrar os sentidos. Nunca estimou aquella lady que lhe acceitou a côrte senão pelo facto de ser bem feita e ter o pé pequeno!
-- Attenda. Quero desvanecer-lhe esse conceito em que o tem: depois mudaremos de conversa. Vae adiantada a noute, e tenho bem que lhe dizer! Isso de que o accusa nasce mais de uma fervorosa paixão pela arte, por tudo que é bello e perfeito, por tudo que realise o ideal do poeta e do artista, do que da ausencia de instinctos elevados e grandiosos. Victor Marrocos é um homem gasto nas luctas da vida politica, e que de ha muito perdeu todas as illusões que despertam o enthusiasmo á simples idéa da perfeição moral. E' um homem que conhece a vida, e que tem visto o mundo. Admira uma mulher formosa, como aprecia um bonito trecho musical. Para elle a mulher e a musica servem-lhe apenas aos sentidos, me dirá: é possível; mas ha ao menos n'este homem uma grande qualidade a respeitar, é o talento. Não é a esperteza vulgar dos nossos homens publicos, nem a incommoda pretenção a ter espirito; é mesmo mais do que talento, é o genio. Victor Marrocos tem tomado parte activa e muitas vezes a parte principal nas revoluções modernas do paiz. Soldado da liberdade, combateu pela emancipação da sua terra...
-- Em quanto esperou que a sua terra lh'o pagasse. Mas quando os destinos de tribuno o seduziram mais do que os de emigrado, poz de parte as suas crenças e abraçou a causa dos seus interesses defendendo o que até então accusára!
-- Pois seja assim! dir-se-hia que tenho interesse em defendel-o, se a tua perspicacia não conhecesse n'isto mesmo uma prova de que estou innocente: aliás seria eu a primeira a condemnar-me pelo proprio ardor das minhas palavras? Pobre louquinho! e queres fazer-me acreditar que estás convencido de que te sacrifiquei a outro, e que pude desejar que interrompesses a assiduidade das tuas visitas, em honra de um preferido! Que merecias?!
Isto foi dito n'aquelle tom de amuo galante que dá mais graça ainda ás mulheres quando ellas não passam já dos trinta annos, e que as pregas dadas ao rosto durante o ligeiro espaço de um assombrear de phisionomia se não podem confundir ainda com as que o tempo marca com o seu sello indelevel.
O medico gostou d'aquella estrategia feminil, disfarçada habilmente em pieguice amôrosa. Gostou de se ver encartado em tyranno, em despota, em sultão absoluto no imperio alheio do coração do coração da marqueza. Todos nós, homens, gostamos de que se nos faça sentir a nossa superioridade e que a cabeça que constitue o alvo das nossas adorações, se curve submissa, escrava, sendo rainha. Variações infinitas sobre o eterno thema da vaidade
-- Amas-me então como d'antes? perguntou Luiz de Lima, perscrutando atravez da mascara do dominó que expressão annunciava o olhar da marqueza.
-- Amo-te como sempre... Isto é, parece-me que não digo bem, nem avanço a verdade inteira...
-- Como?! interrompeu o medico.
-- Estou persuadida de que te amo agora... um pouco mais ainda!
N'esta occasião passaram hombro a hombro com José de Athayde, que tão embebido estava na sua conversa com o agiota que não deu por elles. O noticiarista dizia n'essa occasião:
-- A mais de dez por cento, é o mesmo que dizer-me que deseja ver-me entalado!
O medico ponderou comsigo mesmo:
-- Ambos nós estamos negociando!...
A marqueza foi guiando Luiz até ao portão de ferro da entrada para a quinta onde a claridade era tão fraca que poude tirar por um momento a mascara, sem susto de que podessem conhecel-a.
-- Ouve, disse ella. D'ora em diante irás apenas passar a noite a nossa casa ás quintas feiras e aos sabbados: em compensação ver-nos-hemos ás segundas-feiras e ás sextas em casa da minha modista. A'manhã principiará a ser assim. Da uma hora da tarde ás tres estarei livre: antecipa a hora para que não chegues depois de estar á porta o meu trem. Tenho mil coisas que dizer-te, e a mais insignificante d'ellas seria de sobra para provar o amôr de uma outra mulher! Em quanto eu cuidava de melhorar a tua posição e preparar o teu tuturo, entregavas-te á idéa de já não seres amado! vejam se não é sina nossa, infelizes mulheres, sermos sempre mal julgadas!
-- Perdoas-me!? perguntou o medico, adoçando a voz e preparando um olhar mavioso.
-- Merecias que te perdoasse e te esquecesse, mas prefiro não te perdoar e castigar-te amando-te sempre!
-- Adoravel! exclamou Luiz de Lima, que principiava a tomar a scena como uma intriga de baile de mascaras. Que queres então dizer-me de tanto valor, anjo meu?
-- E' o meu segredo, replicou a marqueza pondo de novo a mascara. Só te pergunto uma coisa -- se eu quizesse ver-te rico e feliz e sacrificasse até à minha tranquillidade para que o conseguisses a troco embora dos meus ciumes, acreditarias então que te adoro?
-- Minha querida Thomazia, não sei entender-te!...
-- Saberás tudo amanhã. Não é promessa de dominó! Está dando meia noite e tenho que partir. Adeos! Escuso lembrar-te o que disse: á uma hora da tarde!
-- Beijo-te as mãos!
-- Não me acompanhes.
Durava ainda o aperto de mão da despedida quando quatro homens que acabavam de entrar se approximaram dos dois amantes: o dominó soltou um ligeiro grito, e apertou com ancia o braço de Luiz de Lima. O medico tomou uma expressão inquieta, e vendo que os quatro homens se dirigiam para o seu lado apressou-se a evitar suspeitas, sendo o primeiro a cumprimental-os.
-- Sr. marquez, disse elle, dirigindo a palavra a um d'elles que não tirava os olhos do dominó, V. Ex.ª tem bastantes fortunas amôrosas todo o anno, para que não precise disputar-me a unica quadra das minhas conquistas e galanteios -- o carnaval!
-- Não me atrevo a entrar na lucta, meu caro doutor! Demais a mais tenho a noite presa. Deixemol-o em paz com essa interessante incognita! mas sempre deve consentir que lhe diga que se é intriga d'esta noite, esse mascara sae por força alguma victima da clausura conjugal, que escapou ás garras de um marido feroz para vir respirar a athmosphera encantada dos bailes de mascaras.
-- Imbecil! disse o dominó entre dentes e escapando do circulo sem ser vista. A indiscripção ha de ser sempre a sua unica qualidade!
Era o marquez de Villar, que dirigira a palavra, sem o saber, a sua mulher = escapada ás garras de um marido feroz = segundo a sua previdente idéa!
III
Uma ceia de domingo gordo
Nas tres noites de carnaval Lisboa parece illuminar-se do reflexo pallido dos petits soupers da Regencia, e prescrever do Codigo Civil que o cidadão ceie em sua casa.
É caso entendido que o Matta, a Horta Secca, a Pomba de Ouro, e o José Manuel, são no domingo gordo e na terça feira, sobretudo, o bem parado da população escolhida, que vae depois do theatro ou do baile de mascaras bras-dessus bras-dessous com alguma amantesinha de aspirações não ruinosas, cear n'um agradavel e doce tête-à-tête acompanhado de dois ou tres pares que procuram igual destino. Reune-se tudo, faz-se um rancho; e en-avant-quatre sem receio nem escrupulo, porque para este genero de divertimentos onde ha quatro, seis, ou oito, comtanto que seja aos pares, é sempre o mesmo que estarem só dois, e ninguem faz ceremonia com o visinho!
O marquez de Viilar em companhia do barão de Sousa e de duas dançarinas do theatro de S. Carlos, convidou Victor Marrocos e Luiz de Lima para cear depois de sairem da Floresta. Uma das dançarinas era, em phrase de bastidores, entretida pelo barão, que adorava n'esta rapariga uma grande robustez de fórmas pouco em harmonia com a arte da dança, mas excellente para a arte do amôr. Ritinha, que assim se chamava, era um contraste completo com a sua companheira Bemvinda. Esta, magrita e pallida, porque tinha a balda de se apaixonar pelos primeiros tenores: aquella anafada e vermelha, porque tinha o bom gosto de não se apaixonar por ninguem. O barão sabia com quem lidava: não o levavam por simples! mas apesar de ter a consciencia de que o aturavam pelo seu dinheiro, elle conservava a Ritinha como que por habito e considerava-a um objecto de luxo, que lhe agradava por ser bonito.
Do barão de Sousa hade fazer-se o retrato demoradamente no seguinte capitulo. Em quanto ao marquez de Villar, era um homem de cincoenta annos, quasi da idade do barão. Amigos de ha muito, tinham acabado por se parecerem um com o outro, vestirem do mesmo modo, falarem no mesmo sentido, e constiparem-se ao mesmo tempo. Isto succede quasi sempre ou aos casados de muito tempo, ou ás pessoas que se dão muito, tornando-se inseparaveis no mundo, e promovendo a tal ponto as idéas associadas, que é impossivel alguem lembrar-se de um sem se lembrar do outro, falar de um só d'elles, não os conhecer ambos, não os convidar a ambos, não os tomar emfim por um só homem.
Pois que!? estranham! Acaso não tem ainda encontrado no mundo exemplos frequentes do que estou contando?! Não conhecem dois homens que á força de falarem sempre um com o outro, tomam o mesmo ar, as mesmas maneiras, e até as mesmas maneiras, e até as mesmas idéas de um só?!
Se um gosta da Alboni mais do que da Castellan, são ambos Albonistas: se o outro diz que a forma das botas de Stelpjlug é desairosa, dirão ambos que Stelpflug dá ás botas uma fórma desairosa A historia de um é a historia de ambos. Acordam á mesma hora, lavam-se dez minutos depois com sabonetes comprados na mesma loja, e em agua do mesmo chafariz! Saem na mesma direcção, dizem as mesmas palavras, contam as mesmas anecdotas, dizem mal das mesmas pessoas, e quando um d'elles sente esfriar o tempo vão ambos a casa vestir o paletot!
Era pouco mais ou menos assim tudo que se dava entre o marquez e o barão. O marquez quando tinha que documentar uma phrase, certificar uma idéa ou apresentar uma opinião, citava por força o barão. Do mesmo modo o barão na mais insignificante conversa citava sete vezes o marquez.
Ha na sociedade lisbonense pessoas que conseguem por este modo grangear creditos uma á outra:
«A propósito de sciencia, diz Thomé, dir-lhes-hei que ainda não encontrei na minha vida nem mais poderoso engenho, nem maior quantidade de dados scientificos, nem mais portentosa reminiscencia do que a de Thomaz!
«Já que falâmos de sciencia, diz Thomaz, aproveito a occasião para os advertir de uma circumstancia que talvez não ponderassem ainda: observaram já a reminiscencia portentosa, a enorme quantidade de dados scientificos, e o poderoso engenho de Thomé?!»
Assim eram o marquez e o barão, verdadeiros Thomaz e Thomé da anecdota. Se haviam começado por ser agradaveis um ao outro, terminaram por se considerarem mutuamente indispensaveis; qualquer d'elles era para o outro o typo do alter ego.
Deve todavia fazer sentir-se uma circumstancia: por mais amigos que sejam dois homens, ha sempre um que obedece ao outro por indole, por habito, ou por necessidade. A situação do marquez e a protecção que sempre dera ao seu caro Antonio Cypriano, que eram estes os dois primeiros nomes do barão, haviam-lhe dado o direito de ser elle o Dom Quixote d'aquelle Sancho Pança, a alma d'aquelle corpo, o recheio d'aquelle empadão!
O marquez de Villar, conforme o leitor já viu do que se disse no capitulo antecedente, era chefe de um partido politico; Antonio Cypriano de Lemos era, em consequencia da fortuna que possuia, um dos mais importantes sectarios da politica do marquez. O que o marquez não alcançava por engenho, o barão conseguia o por dinheiro Já d'isto se vê de que importancia era para o partido este Antonio Cypriano de quem os Villaristas diziam -- «é uma das melhores cabeças do nosso partido!» -- querendo dizer de certo que era uma das melhores «bolsas.»
Sem alcance de idéas politicas, elle limitava-se em não acreditar senão no marquez e nem se dava ao incommodo de tentar comprehendel-o. Quando se segue a politica de um homem e se partilha em tudo os altos juizos d'esse homem, a politica torna-se questão de compadres, e a causa é sempre antipathica; por isso á medida que o Villar e o seu partido iam caindo, Antonio Cypriano ferido no seu amôr proprio mais se resolvia a empregar todos os meios monetarios unicos de que podia dispor para o triumpho das suas idéas, tentando ainda sustentar uma causa perdida no animo publico.
O marquez apresentou-lhe por essa occasião Luiz de Lima, a quem o barão, que raras vezes frequentava o mundo, não conhecia senão de nome. Em quanto a Victor Marrocos, esse conhecia o elle como um diabolico revolucionario prompto sempre a orar ás massas no furor das crises do parlamento, e a jogar epigrammas no remanso das tavaqueações domesticas. Nem se estimavavam nem se aborreciam; e apesar de se conhecerem havia annos, era talvez a segunda vez que se encontravam reunidos. Desconfiado por indole, o barão não o olhava com bons olhos, porque via n'elle um antigo inimigo politico, que só nos ultimos tempos se chegára ao gremio dos villaristas, por especulação.
Depois do quinto copo de Porto, a conversação occupou-se, como é de uso nas ceias, das mulheres em geral, e de algumas em particular O barão de Sousa era homem que saboreava uma boa anecdota. As historietas crusaram-se. Os convivas tão depressa tratavam de uma duqueza, como de uma comparsa. Esboçou-se um par de biographias. O marquez de Villar tomou insignificante parte na discussão porque as mulheres não eram o seu forte, e o barão de Sousa, que se achava encartado em presidente da festa, decretara que o sexo amavel seria o unico assumpto permittido até ao Champagne; em principiando á sobremeza conceder-se hia a palavra sobre a politica do paiz, porque se contava que a esse tempo as mulheres estivessem a dormir, e os homens a vomitar.
O barão de Sousa era, por fim de tudo, um soffrivel homem de mundo. Para elle a moral era uma especie de bengalla como que batia nos outros dispensando-se, como é natural, de dar com ella em si mesmo. Seriedade! ninguem como elle pronunciava n'um tom de mestre de capella esta santa palavra, porque ninguem melhor do que elle tinha a consciencia de que isto de seriedade é uma historia que toda a gente exige nos outros, e sem a qual passa divinamente.
-- A saude do corpo de baile! gritou Victor Marrocos, olhando para o barão de Sousa com uma expressão de ironia e menos-preço que era habitual á physionomia d'este homem publico.
-- E' innegavel, ponderou o barão, que o corpo de baile faz progressos na arte... e na belleza que tambem é arte n'ellas, se me não engano. A Ritinha desde que passou á classe das primeiras, e que o choreographo compoz uma variação expressamente para ella, encarregou-se de provar que a gloria tambem engorda! Vejam que bochechas! continuou elle fazendo uma caricia á dançarina que estava com a bocca cheia com uma salchicha frita; e que excellente côr, que côr de saude! ó marquez, que diz!? Palavra de honra, Ritinha, sou um cego admirador dos temperamentos rijos e das constituições saudaveis. Deliro deante de tão rosadas faces! Para mim as mulheres pallidas, has de perdoar Bemvinda! enjoam-me quasi tanto como os romances que as elogiam. Não é do meu voto, Marrocos?
-- Reconheço a superioridade da Ritinha, e admiro-lhes as côres: mas não me obrigue a dizer mais porque não entendo nada de pintura!
Este epigramma foi saudado com solemnes gargalhadas dos homens, e respeitabilissimos amuos da parte das duas dançarinas.
-- Tu has de ser toda a vida, exclamou o marquez dirigindo-se morto de riso a Victor Marrocos, o mesmo e inalteravel insolente que temos a desgraça de conhecer hoje! n'um salão ou n'um botequim, n'uma egreja ou n'uma praça, na tribuna ou na casa de pasto! Não lhe queiram mal, amôrinhos, desde creança que elle não acredita nas mulheres.
-- Porque não acredita o meu amigo nas mulheres? perguntou o barão que principiava a beber de mais, e a desenvolver uma vivacidade que a natureza lhe não havia querido conceder adivinhando que elle viria a ser bastante rico para poder compral-a por intermedio de vinhos generosos. O senhor ha de acreditar por força nas mulheres, ou eu não hei de ser quem sou. Pois em presença de duas tão galantes meninas atreve-se a offendel-as menospresando a mais bella metade da creação a que estas prendas teem a honra de pertencer!
Victor Marrocos que percebeu que o barão tinha o vinho bulhento e palrador, tomou a palavra e defendeu as mulheres. Foi um d'esses discursos de ceia de domingo gordo, em que as idéas andam a nadar em Champagne. Para ganhar as boas graças do barão, porque antevia que para a sua missão de especulador politico isso lhe podia servir ainda, attendendo á fortuna d'elle, o revolucionario elevou ás nuvens as senhoras de sociedade e sobre todas, as meninas solteiras do mundo elevado, adoraveis pela educação e pelo perfume da atmosphera em que nascem, «porque só um homem de mundo sabe educar uma filha», lisongeando, como se percebe sem custo, as vaidades do barão que o levavam á mania de se considerar o primeiro educador d'este seculo, e que eram á mesa sobretudo de uma susceptibilidade que a cada instante lhe fornecia excellentes quixotadas.
-- Alto lá! gritou Luiz de Lima, que sempre por estas festas se julgava ainda em Coimbra e remoçava dez annos. Assim mesmo acredito mais na Ritinha e nas suas companheiras do corpo de baile de S. Carlos, do que nas meninas educadas por homens de mundo, que merecem ao sr. Marrocos tão notavel menção. A educação que se dá ás mulheres de Lisboa em logar de as tornar instruidas torna-as pedantes, desregradas em vez de virtuosas. Eu sou um pouco selvagem em questão de mulheres -- quero-as innocentes e ignorantes: só assim poderão ser religiosas; a educação que se dá em Lisboa ás damas ou as converte em beatas por aristocracia, ou em irreligiosas por pretenção. A simplicidade é a poesia da mulher. A Ritinha e a Bemvinda aproveitando o intervallo da opera á dança para seduzirem entre dois bastidores um millionario de boa fé, que quando olha para o corpo de baile julgo ter deante de si o painel das onze mil virgens, parecem-me, ainda assim, mais acceitaveis e menos repugnantes, do que as meninas educadas de Lisboa que se vendem a um marido, renegam do amôr e do amante quando elle é pobre, e aproveitam a educação para saberem enganar um homem a quem juram amar tendo em vista apenas a americana e o camarote em S. Carlos que esse casamento lhe póde alcançar! Ah! quando o casamento se converte n'uma prostituição legal, como por ahi se vê, é a instituição mais immoral e degradante a que uma família possa recorrer! Que querem! -- exclamou o medico com uma expressão de franqueza sublime, fructo de um jesuitismo que nem só os frades possuem, mas tambem os medicos -- confesso-lhes que gosto de poder dizer aqui livremente as minhas opiniões: tenho muito menor antipathia pelo vicio que não tem senão a consciencia desgraça, do que pela devassidão elegante e regrada, das que não peccam por haverem recebido por hospede no seu lar durante longas noites de inverno a figura pallida da miseria vindo sentar-se ao pé do seu brazeiro apagado, mas porque o demonio da vaidade lhes soprou ao ouvido que não vale a pena de amar e soffrer, e que o casamento é a loteria das mulheres, em que o premio grande é um marido rico, e em que o merecimento sem dinheiro se considera como numero branco! Demais, ponderou voltando-se para o barão, desde os dezoito annos, que eu tenho os meus motivos para não sympathisar com as meninas educadas. E' uma anecdota, que ainda lhe não contei, marquez! uma historieta da minha entrada no mundo, que tem apenas o merecimento de marcar bem o espirito da epocha.
As dançarinas meias adormecidas pela fluente catilinaria de Luiz de Lima que esquecêra d'esta vez o ar doutoral e emphatico que o distinguia, pela consciencia que o acompanhava de possuir o dom da palavra, e que á força de costumar ser escutado acabára por gostar de se escutar a si proprio e perorar a cada instante, acordaram, graças ao marquez e ao barão que lhe gritaram ao ouvido -- «Vae-se contar uma historia!»
É incrivel o valor que esta casta de raparigas liga a escutar um conto. Os aventureiros e as mulheres de theatro, por outra, toda a gente que tem uma vida incerta e errante présa as historias, e morre por ouvir um conto.
O marquez, o barão, e Victor Marrocos gritaram então em côro com as duas coriphéas -- «Venha a historia!»
Luiz de Lima preparou um sorriso d'aquella certa ironia estudada, que a maior parte da gente adopta á custa de longos ensaios ao espelho quando ninguem póde vel-os, aprendendo em casa o melhor methodo de se mostrarem no mundo, e principiou a historieta.
Não valeria a pena contal-a, se não fosse para fazer sentir ao leitor como foi que da conversação d'essa noite durante a ceia, resultou uma antipathia formal da parte do barão para com o medico da moda, e a influencia que, como mais tarde se verá, a catilinaria do doutor teve sobre o seu futuro, e, o que peior é sobre o futuro de muitas outras pessoas. Quantos factos da vida resultam muitas vezes de uma palavra, de um gesto, de um sorriso!
-- Era em 1842: eu tinha dezoito annos como lhes disse, chegára da universidade a ferias do meu primeiro anno juridico, e tinha a cabeça recheada de todas as illusões poeticas das margens do Mondego. Para mim que ainda não tinha sido amado, uma mulher moça e bonita que se dignasse volver olhos piedosos para a minha humilde creatura, seria um verdadeiro anjo salvador. Procurava-a como Don Quixote procurou a celebridade, como Jeronymo Paturot procurou uma posição social, ou mesmo com Salomão procurou a palavra mysteriosa que resolvesse o problema dos destinos humanos. Ao cabo de uma semana essa mulher, a minha mulher, appareceu! Era uma creatura loira e angelica, em quem a natureza parecia haver adivinhado as phantasticas e seductoras creações de Ossian e Lamartine. Tinha olhos de um azul celeste, e a mais doce e meiga expressão de olhar que um pintor possa ter sonhado! A fronte pallida e sympathica pendia levemente sobre o peito como abatida pelos ardores da imaginação e cançada pelos sonhos da phantasia. Julguei por vezes quando a olhava que era um sonho o que via, ou que estava lendo o Don Juan de Byron quando elle nos descreve Haydée, aquella poetica figura de mulher, melancholica e suave, que andava sempre sonhando com um mundo melhor! Dizer-lhes que a amei é tornar vulgar o que senti por ella. O homem gasto na aridez da sciencia, e nas tristes comedias da vida, o homem que conhecem hoje em mim, positivo, calculista e frio, estremece ainda ao lembrar-se que o amôr lhe devorou a alma por essa mulher de quem lhes fala, e declara até que se ainda não contou esta singela historieta é porque mesmo agora a lembrança d'esse amôr de creança o incommoda pela simples reminiscencia! -- Encontrei-a no theatro, continuou elle depois de uma d'essas breves pausas com que os habeis contadores de historietas prendem em certas situações a attenção dos que os escutam. Ella era assignante de S. Carlos, de uma das frisas de bocca, a terceira por baixo do camarote real. Namôramo-nos durante tres recitas successivas, ella da frisa, eu da platea. Uma noite, no corredor, á saida pelo chamado Picadeiro, tive occasião de lhe entregar uma carta. Na recita immediata, á saida tambem, e no mesmo sitio, ella entregou-me um bilhete. Dentro do bilhete vinha um annel. Embrulhando o annel, estas palavras:
-- «E-me impossivel escrever-lhe. Conserve esse annel como uma lembrança da sua E...»
-- Era um annel com um magnifico brilhante. Por prudencia, talvez, preferi o annel ao bilhete e rasgando o bilhete metti no dedo o annel. E continuamos a namôrar-nos no theatro, sem nunca nos falarmos, sem nunca nos escrevermos. Sabia apenas que ella era solteira, e, como se dizia no mundo, muito bem educada.
Aqui, Luiz de Lima olhou para os convivas, e para o barão especialmente, e disse-lhes com um sorriso magnifico: -- era das muito bem educadas!
-- Certo dia, continuou elle, eu jantava n'uma casa de pasto detestavel, e servia-me de sobremeza a leitura do annuncio de espectaculos que encontrei nas columnas rachiticas de um jornal da opposição, que estacionava n'uma das mezas. Não sei o que ha de grande no desejo phrenetico de um homem moço que vê atravez de mil dificuldades pecuniarias a duvidosa realisação de um capricho d'amôr.
E' uma lucta curiosa e ás vezes heroica! D'essa vez, eu distingui em cada linha do annuncio da Don Pasquale uma serie infinita de quesitos irrevogaveis. Lembrei-me de luvas brancas, de um bilhete da superior, e de um collete branco ou preto.
Por desgraça fatal, não tinha dinheiro para o bilhete nem para as luvas, e estava redusido a dois colletes de côr! Enchi-me de animo, e tomei um partido que já vão saber qual foi. Tirei um palito com a soberania magestosa com que Napoleão empunharia o seu occulo das batalhas. Depois, chamando o criado, expliquei-me assim:
«Responde ao que te vou dizer sem admiração nem replica. Onde ha aqui perto alguem que empreste sobre penhores?
«O criado olhou para mim sem pestanejar; ou adivinhasse que esta pergunta encerrava um pequeno poema de contrariedades do destino, ou estivesse habituado a presenciar essas crises vulgares da vida de rapaz, certo é que nem se admirou.
«Saberá o senhor, respondeu o criado modestamente, que conheço alguem que se presta a esse negocio.
«Quem é?
«Isso agora, replicou elle torcendo-se n'um risinho misterioso, isso agora é segredo. São ás vezes pessoas que não querem que isto conste!
«Bem! accudi eu, toma lá este annel. Oito libras sobre elle, trez pintos para ti, tudo prompto n'um quarto de hora: serve-te?
O criado poz o chapeu, agarrou no annel, e saiu a correr. Era um criado conhecido e fiel a quem eu confiaria as minas do Perú, se accaso as possuisse por qualquer casualidade.
Um quarto de hora depois, o criado voltou.
«Oito libras.
«E contou-as sobre a toalha.
«Tres pintos para ti, disse eu entregando-lh'os; e dispondo me a sair. Tirarei o annel d'aqui a 5 dias.
-- Á noite dava-se eftectivamente o Don Pasquale. A minha E... assistia, e eu via-a logo que entrei: fui procurar o meu logar por baixo da frisa, como costumava. Então, ella collocou a mão esquerda sobre a face, e eu vi o meu annel n'um dos dedos da minha namôrada!... Debalde torturei o meu espirito para alcançar a incognita de tal problema.
-- Porque acaso tem ella o meu annel? -- perguntei a mim proprio durante toda a noite, observando de mais a mais que ella já não me prestava a attenção costumada. No dia seguinte, nem já me lembra por que inauditos meios, arranjei as oito libras, corri á casa de pasto, e enviei o criado a retirar o annel. Dez minutos depois, o criado voltou com o dinheiro acompanhado por um bilhete em que li estas palavras: -- Comprei ao sr. Luiz de Lima o meu annel por oito libras. -- A assignante da frisa e frequentadora impreterivel de bailes e concertos, a elegante effectiva de Cintra e dos passeios a Sitiaes, a muito bem educada E... emprestava dinheiro sobre penhores ás escondidas do pae, e de sociedade com a sua aia! Esta lição fez com que eu nunca mais procurasse a poesia na mulher, nem acreditasse nas vantagens da educação moderna que já não faz victimas da clausura conservando-as n'um convento a educar, mas que lhes ensina quaes são os juros da lei proporcionando-nos uma amante-agiota!
As dançarinas exultaram de prazer ouvindo o narrador e saudaram a anedocta: Bem- vinda fazendo uma saude a seu pae e sua mãe por não a terem mandado educar, favor de que ella agora reconhecia o alcance: a Ritinha pondo de parte os decóros, e dando um abraço no medico para lhe provar até onde chegava a sua admiração pelos seus talentos.
Para se comprehender bem em que deu a tal historieta do doutor, será talvez util que precedâmos o facto de algumas observações.
A maior parte das mulheres de theatro, costumadas a viver com gente de má esphera e de peior instrucção, sentem uma grande admiração por todos os dotes naturaes: a belleza, a força, ou o talento. Um homem bonito agrada-lhes, um athleta impressiona-as, um homem de talento encanta-as. Habituada á cavaqueação estupida dos primeiros dançarinos, e das bailarinas suas companheiras, circumscripta áquella athmosphera de grosserias, de mexericos, e de fumo de cigarro, a rapariga encontrava-se agora pela primeira vez na sua vida ao lado de um homem notavel e celebre pelo seu merito, que fazia consistir a sua eloquencia no esplendor das idéas e na fluencia da phrase, tão diverso do barão, que só era eloquente quando abria o porte-monnaie e o apresentava cheio de libras á rapariga que só por ellas o aturava.
Passou como que um relampago pela imaginação da pobre dançarina, um relampago de esperança e de gloria: ser amada por um homem assim! Moço e na flôr da vida e das illusões, ella não o teria desejado; mas assim como elle agora lhe apparecia, farto da vida e gasto de crenças, via n'elle um ente interessante e sympathico, e sonhava em fazer de novo palpitar aquelle coração envelhecido, acordando na alma abatida de Luiz de Lima novas impressões de felicidade e de amôr.
Ella fitou no medico o olhar avido das mulheres perdidas, quando finalmente um desejo as incendeia. Não o olhar que nasce da cubica dos sentidos, porque as mulheres habituadas ao prazer como genero de vida, cedo se enfastiam dos gosos materiaes do amôr: era o olhar inspirado que acode aos olhos partindo da alma, e que n'um raio de luz parece prometter um mundo inteiro de sentimento e de esperança!
O barão sentiu-se pequeno e acanhado diante dos prestigios do talento. Não lhe escapou a expressão com que a dançarina contemplára o medico durante a historieta que elle acabára de contar, como que encantada pela musica litteraria do seu estylo narrativo. Conhecia a fundo o caracter excentrico de Ritinha. As mulheres menos capazes de paixão são as que mais se entregam a caprichos, e elle anteviu a realisação de um que poderia tornal-o o assumpto curioso de cancans de bastidor. Todavia houve-se como homem de mundo e continuou a beber sem deixar adivinhar pela sua phisionomia as idéas que o agitavam.
Deve dizer-se: o barão tinha a dançaria havia quatro annos; comprára-a aos doze como quem compra um cavallo ou um tilbury, e guardava-a, como já dissémos, por ostentação. Gostava que se dissesse: -- a dançarina do barão -- como se dizia -- o caleche do barão, o groom do barão, a chibata de unicorne do barão!
Deixal-a, era sujeitar o seu amôr proprio a ser ferido a cada instante quando a encontrasse nos theatros ou nos passeios pertencendo já a outro. A vaidade e não o amôr é que o prendia a ella; é isto que desejamos fazer sentir: a vaidade era a molla dominante do seu caracter. Tudo pela vaidade, como Napoleão tudo pela gloria, como Don Juan tudo pela insaciedade; os grandes homens e os pequenos teem todos um lado vulneravel; era esse o do barão, sobretudo quando não o reconheciam como o primeiro educador deste seculo, e não admiravam em sua filha o resultado dos sabios conselhos paternos que haviam formado a sua instrucção de senhora. O barão tinha entre algumas boas qualidades a de ser cuidadoso ácerca de Sophia: era elle quem lhe comprava as musicas, quem lhe escolhia os livros, quem suppria emfim o logar de uma velha regente directora de algum recolhimento escrupuloso.
A's quatro horas da madrugada, o marquez dormia encostado á meza, a Bemvinda bucolisava a cair de somno com Victor Marrocos que diligenciava por lhe fazer comprehender a situação moral do ministerio, e o barão fingindo dormir poude ouvir levemente uma declaração incendiaria com que Ritinha acommetteu á queima-roupa Luiz de Lima.
O medico que não desdenhou o horisonte que se lhe apresentava atravez dos prestigios do Champagne, e que divisou ao longe um porvir de triumphos para o tacté ou para o balloné, porque o amôr converte as mulheres pesadas em verdadeiras pennas de perdiz, resolveu experimentar as sensações do heroe da borleta -- O amôr e a dança --, e disse mil coisas meigas á linda dançarina.
O barão, por essas alturas pareceu-lhe ser tempo de acordar, e fingindo arrepender-se de se haver deixado adormecer, consultou o relogio, viu quatro horas e vinte minutos; e acordando o marquez, propoz que se procedesse á retirada: este requerimento foi approvado pela maioria; apenas Ritinha foi de voto que era ainda cedo; e apertando a mão do medico disse lhe de repente -- Amanhã no ensaio -- sem que o barão pudesse perceber as palavras, ainda que não lhe escapou que a dançarina havia dito o que quer que fosse.
Á saida o marquez que ia acompanhar no trem Victor Marrocos e Bemvinda até á casa d'esta, disse ao barão que partia no caleche em companhia de Ritinha e de Luiz de Lima, a quem elle, como homem de mundo elegante que era, offereceu conduzir até ao hotel da Europa onde o medico morava.
-- Não te esqueça, Antonio Cypriano, que são quarta-feira de Cinza os annos da marqueza! Jantas comnosco, e será bom levares a Sophia porque a marqueza recommendou-me cem vezes que te pedisse isto!
O barão prometteu que não faltaria: os trens partiram em direcções contrarias; durante o transito o barão foi graciosissimo para com o medico, que seria capaz de jurar que Antonio Cypriano estava de boa fé. Apesar d'isso, a antipathia que experimentava por Luiz de Lima trahiu-se um pouco ao apertar-lhe a mão, porque o medico julgou conhecer um symptoma de frenesi nervoso no vigor com que o barão lhe esmagou os dedos á despedida.
A sós com a dançarina, o barão disse-lhe então no momento em que o trem partiu do Hotel da Europa para casa da rapariga:
-- Esteve hoje commigo o empresario do theatro lyrico do Rio de Janeiro, que vem escripturar dançarinas. Falou-me de ti! Propõe-te uma escriptura de cento e cincoenta mil réis fortes por mez, e meio beneficio com a primeira representação de uma dança nova. Faz o contracto por tres annos. Fiquei de dar-lhe a resposta até ao meado do mez que entra. Se dirigires de novo a palavra ao medico que ceou esta noite comnosco, partes para o Rio no primeiro barco que sair.
IV
Quem era o barão de Sousa
Quem era o barão de Sousa, d'onde vinha o barão de Sousa, é o que ninguem sabia. José d'Athayde -- o noticiarista-- perguntou por vezes no seu estylo de noticia diversa «Que caso pede, este barão?
Antonio Cypriano, um dos homens mais espertos de Lisboa, não fizera fortuna por um livro nem por um casamento, nem pela politica nem pela loteria: fizera fortuna por uma comedia; uma d'essas comedias tragicas que não chegam até á Gaveta dos Tribunaes, mas que são ás vezes urdidas por monstruosas combinações. Mysterios que não são mysterios para ninguem, que a policia sabe melhor do que qualquer, e a que se fecha os olhos quando o réo tem para se sentar uma tripode de oiro como os antigos feiticeiros!
Contar as particularidades d'esse longo romance de aventuras e enredos que o barão de Sousa planeou, dispoz, e conseguiu levar a exito, seria fazer outros dois volumes. E' uma larga serie de astucias de que apenas faremos o quadro geral.
Não sei bem em que anno, morreu de febre amarella em Pernambuco um rapaz portuguez de vinte e seis annos. Este rapaz que havia sahido pequeno de Lisboa, sem meios e sem protecção, servira como caixeiro n'uma casa de commercio desde os dezoito annos, e herdára aos vinte e quatro, pela morte do patrão que o adorava, toda a fortuna d'elle que não tinha filhos nem parentes.
O testamento d'esse rapaz marcava o seguinte:
-- Deixava tudo a sua mãe Joaquina Angelica, portugueza, da freguezia de S. João da Praça: no casa porém de ella haver fallecido e viver ainda uma filha, Maria Amalia, a herança caberia á irmã do finado.
Nos livros da Egreja de S. João da Praça não se encontrava o assento de baptismo nem de Luiz Victor, que era este o nome do finado, nem de Maria Amalia: debalde tambem se procurou o registro do casamento de Joaquina Angelica, e o seu nome no livro dos obitos.
Ninguem se apresentou a reclamar a herança, e a herança era de mais de um milhão!
Quasi um anno depois, apresentou se uma rapariga, dando-se por irmã do finado, dizendo chamar-se Maria Amalia, e ser filha de Joaquina Angelica. Entre outras testemunhas que citou como pessoas que sabiam a fundo se ella falava ou não verdade, deu o nome de Antonio Cypriano de Sousa, que a esse tempo não era ainda barão.
As testemunhas juraram todas conhecer essa rapariga, e attestaram conhecel-a por filha de Joaquina Angelica que ha via sido criada de servir em casa de uma gente que morára por muitos annos na freguezia de S. João da Praça, indo depois residir para Villa-Franca.
Explicaram que se o nome da rapariga não se encontrava no livro dos baptismos d'essa freguezia é porque ella era filha natural, e hospede da Santa Casa de Misericordia de Lisboa, em consequencia de sua mãe não ser casada, mas amancebada com um criado da mesma casa em que servia, motivo por que não se encontrava tambem no livro dos registros competentes nota alguma em referencia ao matrimonio de Joaquina Angelica. Que, finalmente, se no respectivo livro dos assentos d'obito da mesma freguezia se não deparava com a data da morte de Joaquina Angelica, é porque ella se achava em Villa-Franca com seus amos e morrendo ahi de cholera, se não lavrára assento, como succedeu por essa epocha a todos que ahi falleceram.
Com altas protecções, e bem imaginadas astucias se venceu uma comedia, cujo enredo pelo que acabamos de contar, dava esperanças de ser engenhoso.
Antonio Cypriano de Sousa, isto diziam as más linguas, tomára grande papel n'esta peça, e desempenhara-o habilmente. Tão habilmente ou tão pouco, que sete mezes depois visitava a miudo a pretendida irmã do finado, herdeira já d'essa magnifica fortuna, que morrendo mezes depois, o constituiu seu herdeiro universal.
Disse-se que a rapariga fôra n'isto apenas uma comparsa soffrivel, e que a Antonio Cypriano se devera a graça de falsificar todos os documentos, inclusive o livro da Misericordia!
São de certo calumnias que espalharam para denegrir um tão honesto caracter. Tão honesto que ficou riquissimo e o fizeram barão! Se elle não fosse honesto decerto não alcançava tanto em tão pouco tempo!
Não era sceptico da moda, nem atheo por ostentação, d'esses que acreditam em tudo, e que só teimam em não acreditar em Deus! Era sceptico do fundo d'alma se devéras tinha alma. Para elle nada havia de santo nem de solemne; se o não dizia sempre, ao menos sentia-o.
O dinheiro! Elle explicava tudo pelo dinheiro, vencia tudo pelo dinheiro, confiava e esperava tudo do dinheiro!...
Um dia, em casa do marquez de Villar, n'um d'esses cavacos intimos que este homem do poder concedia no tempo da sua influencia a uma certa coterie de privilegiados, a conversação occupou-se de especulações e estrategias politicas, astucias de gabinete, perversidades contadas no rol das virtudes, tudo emfim que pelo dinheiro se póde disfarçar!
O barão recebeu por essa occasião alguns cumprimentos pela popular e celebre perspicacia do seu engenho, demonstrada em todas as mil e uma historietas em que fizera papel de heroe.
-- N'estes casos galantes, disse o marquez, ha sobretudo ás vezes uma grande dificuldade a vencer, -- arranjar testemunhas falsas!
-- Nada mais facil, acudiu Antonio Cypriano com uma gargalhada! Por um certo preço alcança-se uma testemunha vulgar, um homem como a maior parte, que diz uma mentira e jura dizer uma verdade: por mais algum dinheiro, uma bagatella mais, podem ter-se algumas testemunhas de força, velhos respeitaveis, de fronte calva, olhar suave, e figura veneranda; um d'esses anciões como se descrevem os paes nobres de tragedia, uma especie de patriarcha de procissão: a estatua da gravidade, emfim!
E como os outros rissem do cynismo das palavras do barão elle replicou:
-- Julgam talvez que brinco?! Pois bem, amanhã lhes darei uma scena de comedia representada com uma pouca de verdade mais do que representam na theatro Epiphanio ou Theodorico!
No dia seguinte, achavam-se á mesma hora, na mesma sala, os mesmos amigos do marquez. Um criado veio dizer:
-- Procuram o sr. barão.
Antonio Cypriano sorriu-se, e perguntou ao marquez:
-- Posso mandar entrar? é uma pessoa respeitavel .
A um signal do marquez de Villar, o criado fez entrar para a sala um velho de barbas brancas, curvado pelos annos, mas tendo ainda no semblante um vislumbre de vida e de crença. O olhar d'esse homem era melancholico, e espargia um clarão já debil mas ainda de uma luz sympathica e enternecedora. Era o que vulgarmente se chama «um velho respeitavel.»
-- Este senhor, disse o barão, vem contar-lhes o que hontem presenceou: é um caso de gravidade e importancia -- attendam!
Depois, voltando-se para o ancião ordenou-lhe que falasse!
-- Meus senhores, disse o velho com um tom circumspecto e digno. Hontem ao pôr do sol, desembarquei no Caes das Columnas, e vi no Terreiro do Paço, com estes olhos, senhores! com estes olhos que já pouca luz podem ter, porque Deus assim é servido! (aqui ergueu os olhos ao céu, com uma expressão de bondade infinita, e de paciencia evangelica) vi eu, caminhando do lado da Alfandega, para o lado do Arsenal... o Concilio Tridentino, de casaca encarnada e chapéu armado!
Todos que se achavam presentes romperam n'uma gargalhada estrondosa. O barão disse ao velho, que não mudou de expressão apesar do riso descomedido dos espectadores:
-- Dá a sua palavra de honra em como viu isso?
-- Oh! senhores, se a palavra de um pobre velho, que presa a honra mais do que a propria vida que já longa lhe vae...
-- Basta! disse o barão: póde retirar-se.
Depois olhando para os seus amigos pasmados e estupefactos, continuou:
-- Este homem é o typo da testemunha de força! um pobre velho que presa mais a honra que a vida, mas que veiu aqui fazer esta figura... por doze vintens!
Ao que nos parece, este ligeiro traço biographico explica o homem, em quanto á indole. Deve comtudo dizer-se que era socialmente uma creatura aprasivel, que dava a todos um sorriso affavel quando o cumprimentavam, e um charuto quando lh'o pediam.
O mundo chama a isto ser -- um cavalheiro!
Antonio Cypriano estava quasi sempre a rir, e quando não estava a rir estava a sorrir. Trazia o dinheiro espalhado pelas algibeiras, provavelmente para tinir bastante. Era de estatura regular, elegante e apresentavel; conhecia os bons usos da vida social, e distinguia-se pela graça de maneiras. De cara, era um pouco mais feio do que Mephistopheles ou Asmodeu: testa curtissima, olhos extremamente separados, o que desvanecia toda a expressão do olhar: a boca enorme; e a pelle crivada de bexigas.
-- Só conheço uma cara mais feia do que a tua, dizia elle n'uma gargalhada ao marquez de Villar -- é a minha!
V
A filha do barão de Sousa
Já o leitor conhece da leitura do primeiro capitulo, pelo que viu da cavaqueação que alli se descreve entre os jornalistas José d'Athayde e Estevão de Mello, com o folhetinista Guilherme da Cunha e o douctor Luiz de Lima, que a filha do barão de Sousa aceitava a côrte ao folhetinista.
Lembrar-se-ha ainda, se acaso leu com attenção o capitulo, honra que essas paginas não merecem de certo, e que só por favor alcançariam, lembrar-se-ha dizemos, que durante a conversação dos quatro amigos, um homem entrou no Marrare, e sentando-se á meza proxima ao grupo, viu e ouviu tudo com uma mal disfarçada expressão de cholera concentrada.
Esse homem que entrara quando justamente se estava falando do barão de Sousa, era o proprio barão de Sousa.
Nenhum dos que se achavam no grupo o conhecia, como elles proprios disseram, e, pela sua parte, elle só conheceu um d'elles --Guilherme da Cunha --, porque o seu cocheiro uma vez lh'o havia indicado como sendo o janota que andava rondando a casa, e fazendo seus rapa-pés á menina.
Diga-se a verdade, Antonio Gypriano sympathisou com Guilherme desde a primeira vez que o viu, e parece que foi coisa do demonio constar-lhe logo que o pobre moço não tinha onde cair morto, porque desde esse instante deixou logo de sympathisar com elle.
Sophia, que, como já se tem dito era este o nome da filha do barão de Sousa, tivera desde então que sujeitar-se a uma decidida opposição de seu pae contra Guilherme. Ao principio Antonio Gypriano ainda se contentava em lhe dizer:
-- E' um casamento que não póde convir-te: tenho informações a respeito d'esse rapaz em que se me diz que é bom moço mas pobre como Job. Não faz conta.
-- Mas se o amo! disse Sophia.
-- Tanto peor para ti, retorquio o barão. Se casares a meu gosto terei prazer em ser eu que ponha a casa, e darei para o teu vestuario seiscentos mil réis annuaes. Porém se casares contra minha vontade (aqui deixou de sorrir, e desatou a rir) não te dou vintem! Demais a mais (aqui tornou ao sorriso) tenho um motivo forte para não consentir em semelhante casamento... Esse rapaz pertence á redação de um jornal que faz opposição ao nosso partido e guerrêa o Villar mortalmente: que diria o marquez e que diriam os nossos se eu te deixasse casar com um homem de outra politica do que a nossa! (desatou outra vez rir) O que elle quer é o teu dinheiro! Depois é capaz de te metter n'um folhetim!
Mas Sophia teimára sempre, e o barão chegou a conhecer que era já tarde, talvez, para lhe desvanecer esse amôr.
Tentou ferir-lhe o amôr proprio: calumniou Guilherme: disse que sabia da vida desregrada que levava; que era um rapaz sem futuro, perdido pelas fofas vaidades da vida litteraria quando se é bem recebido na estreia: que queria fazer fortuna por um casamento porque tinha a consciencia de que pelo seu trabalho era incapaz de a alcançar. Disse-lhe, emfim, a mais cruel das accusações que aos olhos de uma mulher possa fazer-se a um namôrado:
-- Quer especular comtigo! Se amanhã estivesses pobre nem quereria saber de ti! Acaso pensas que morre pela tua pessoa ? (uma gargalhada) Vê-te ao espelho!
Sophia estava de pé quando seu pae lhe dirigiu essa perfida phrase, parecendo commental-a por um olhar ironico com que cobrio a figura secca e acanhada de Sophia.
A filha do barão de Sousa tinha vinte e cinco annos. A sua phisionomia era um pouco arqueada fazendo sobresair uma fronte proeminente. Os olhos longos e cheios de luz pareciam precisar abrigo, por isso talvez as palpebras estavam armadas de longas e assetinadas pestanas.
O seio, quasi imperceptivel n'ella, mais ainda escapava á vista porque em logar de disfarçar esse defeito com o auxilio das modistas, fasia-o sobresair pela singelesa com que se preparava.
Estava longe de ser uma mulher bonita, é certo: mas que partido sabia tirar dos longos e finos cabellos, que lhe coroavam a fronte, formando um diadema esplendido e seductor! A bocca era um pouco grande, mas ella ria-se tão raras vezes que esse defeito passava quasi desapercebido, ainda que era resgatado pelos prestigiosos dentes que lhe davam brilho.
A phisionomia de Sophia de Sousa não mentia. Tinha a alma de fogo como o olhar, aquelle vehemente olhar que parecia um desafio d'essa alma poderosa a esse corpo debil! coração agitava-se-lhe por um amôr ardente e phrenetico como se concebe nos quentes areaes do deserto!
Não era por vaidade mas por um secreto instincto, que ella não deixára nunca de acreditar na sinceridade do amôr de Guilherme, apesar das diligencias que os argumentos de seu pae haviam feito para o ennegrecer a seus olhos.
Ao contrario de todas as mulheres que não são bonitas ella não tinha a menor vaidade, e era a primeira sempre a accusar-se de ser feia. Tinha talvez a consciencia de que a sua modestia lhe constituisse um novo titulo, o que é certo é que não levava horas a consultar o espelho, e que o seu vestuario era de ordinario tão elegante como simples.
Guilherme da Cunha conhecera-a do theatro lyrico; fizera-lhe a côrte trez noites da platéa, côrte que ella acceitara e a que correspondera visivelmente. Mas a epocha theatral estava findando, e quando chegou a ultima récita o pobre moço viu fugirem-lhe com as ultimas notas do rondó as primeiras alegrias da sua alma!
Primeiras, porque o mancebo amava pela primeira vez. Amôr de poeta, amôr inconsiderado, phrenetico, amôr de louco se quizerem, mas amôr verdadeiro e vehemente como só brota nas almas candidas e puras que vivem dos affectos e dos sentimentos!
Namorava muito, e era talvez por isso que ainda não tinha amado. Mas namorava por distracção e não por vaidade; pertencia mais por indole á familia dos Don Juan, do que á familia dos Lovelace. No fim d'um baile ou de um espectaculo retirava-se sem saudade, porque namorava sem amor; tirava a sua inclinação antes de pôr o seu albernó!
Nos primeiros dias d'aquella paixão, que surgiu desde o começo fervorosa e desabrida, Guilherme da Cunha sentiu que amava pela primeira vez:
-- Não é tarde, disse elle, tenho vinte e um annos!
Mas a idéa do amôr amedrontou-o. Viu de repente como que n'uma rapida apparição todas as contrariedades do seu destino, sem antever a realisação d'elle. Teve medo! O coração adivinhou-lhe os tristes lances que o esperavam. O que n 'outro caso seria a melhor das vantagens, era agora para elle o peor dos encargos -- Sophia era rica! A fortuna do barão de Sousa avaliava-se em mais de cem contos. Pobre e mediocre, Sophia seria d'elle: rica e nobre, como alcançal-a?
Mas se o amor o intimidou, o amor depois lhe deu coragem. Nos theatros, procurava a com a anciedade phrenetica das primeiras inclinações. Vel-a, era para elle a suprema felicidade: falar-lhe, seria a realisação do mais ardente dos seus sonhos.
Mas Guilherme não fôra ainda apresentado ao mundo, e apesar de que o seu nome era conhecido pela maior parte dos que ainda se dão ao incommodo de lêr, todavia não tinha ainda reputação, e apenas os benevolos o consideravam como um talento esperançoso. As portas de todos os salões estavam lhe portanto fechadas; para ser admittido nos prezepios aristocraticos da sociedade lisbonense é preciso ter um nome que dispense uma posição, ou uma posição que dispense um nome: Guilherme não tinha uma coisa nem outra!
-- Faça-se apresentar em casa do commendador Secco, disse-lhe Sophia: eu costumo ir lá ás terças feiras.
Guilherme da Cunha teve que resolver-se então a fazer as suas entradas no mundo, e pediu pela primeira vez uma apresentação, apesar de ter por divisa -- Em tudo só.
Conseguiu.
Na semana proxima o commendador Secco recebeu na sua sala com o melhor acolhimento e agrado, diante de uma sociedade escolhida, o neophyto que debutava na vida elegante, e que pisava pela primeira vez os tapetes de um salão.
A distincção com que o tratou o commendador não foi sem motivo. João Secco era um chefe de partido, que precisava alcançar adeptos, se não pela causa que não era sympathica, ao menos por elle que se esforçava por ser agradavel sempre que das suas boas graças antevia um resultado proveitoso. N'essa occasião João Secco sustentava um jornal de opposição ao ministerio, e achava-se reduzido a um só redactor politico, sem haver podido alcançar um folhetinista conhecido que lhe collaborasse a folha:
Guilherme da Cunha seria uma boa acquisição.
Na flor da vida, e no viço do enthusiasmo, tinha reunidas ao talento estas duas preciosas qualidades que só a edade concede, e que são verdadeiros dotes para um folhetinista.
João Secco tinha lido n'um dos jornaes de maior voga alguns folhetins de Guilherme da Cunha, e consultando um homem de espirito ácerca d'elles soubera então que era geral opinião de que o mancebo revelava uma grande vocação para esse genero ligeiro mas difficil, que formou entre nós a reputação de Lopes de Mendonça.
-- Tenho homem! disse o bom do commendador quando viu Guilherme em sua casa. O neophito cheira-me a um ambicioso pequeno que quer a todo o custo apertar a mão na rua a alguma condessa: pois dar-se-lhe-ha um bom conhecimento por mez, a troco de um folhetim por semana!
-- Gosta do Whist? perguntou este especulador ao apresentado...
-- São tão máu jogador que se v. ex.ª quer dispensar-me...
-- O que lhe fôr mais agradavel! respondeu João Secco interpretando a escusa por este modo -- tem medo de perder! bom é que não possua as minas do Peru!
N'essa noite Guilherme e Sophia disseram um ao outro tudo que tinham de mais importante a revelar-se. Os juramentos crusaram-se. Quando se deu o chá estavam já os animos dos dois amantes em tanta intimidade como se desde creança se conhecessem.
Tambem, é condão do amor vencer o tempo e as distancias.
Elles amavam-se tanto que o dialogo seria insipido para se narrar. Romeo e Julieta são os unicos amantes, a meu vêr, que amando-se muito, conseguiram dizer cousas que não enfastiassem os outros!
O que é preciso que o leitor saiba quanto antes é que o mancebo foi franco e leal em tudo que disse, e que rematou a sua declaração por uma phrase que apenas agrada no theatro: -- Sou pobre! -- Todavia foi isso talvez o que agradou mais á filha do barão de Sousa.
-- Pobre, disse comsigo, e são os seus labios que m'o dizem! nobre sinceridade!
E veio reunida á admiração pela franqueza do mancebo, o desejo, o empenho de o salvar, de o engrandecer, de o tornar feliz. Eterna aspiração das mulheres que amam, cuja maior gloria é desempenharem o papel de anjo bom na grande e enredada comedia da vida!
-- Pobre e triste como eu o sonhava, disse ella ao ouvido da sua aia que a acompanhava sempre. Pois hei de enriquecel-o e consolal-o!
Perigosa idéa que não a desamparou desde então, e que se tornou a mais viva esperança da sua alma!
Á meia hora depois da meia noite, Guilherme da Cunha apertava a mão de Sophia, e dizia-lhe com voz tremula como se fosse uma despedida para muito tempo:
-- Adeus querida!
Ao despedir-se de João Secco e da commendadôra, já que é moda entre nós dar tambem á mulher os titulos do marido, o mancebo percebeu que o agrado com que o haviam acolhido á entrada não durava já á hora da saida. O chefe de partido havia comprehendido que não era para o conhecer e tratar que o mancebo requisitára ser-lhe apresentado.
-- Quer namorar mais a seu commodo em minha casa, disse João Secco a si proprio; não lh'o consinto a menos de dois folhetins por semana, e traduzir as noticias estrangeiras! Ajuste faz lei. Eu me haverei com elle.
-- Tem bonitos olhos esse rapaz que retirou agora! disse a condessa de Castello Branco.
-- E uma bem feita mão, acudiu à viscondessa da Lago.
-- E uma grande alma! exclamou Sophia com enthusiasmo.
VI
Millessimas cousas urgicas
Hei de morrer com a scisma de que se a maior parte das modistas vivesse dos lucros que tira do que vende, seria caso tão funesto e lamentavel que as pobres infelizes se suicidariam ao cabo do primeiro semestre!
E direi mais, e até isto poderia merecer certa encardernação de aphorismo: Ninguem vive apenas do que parece viver.
Longe de mim a idéa de desacatar as senhoras modistas de Lisboa, pessoas que me merecem a minha a maior sympathia: especie de fadas que que vieram converter em elegantes, tantas senhoras que a não ser os conselhos de mesdames Levaillant, Aline, Elisa, e tuti não poderiam nunca passar dos chapeus de casa de negocio, e dos airosos manteletes de loja de fanqueiro!
As modistas! Que invenção admiravel! As modistas são uma novidade da importancia dos telegraphos electricos. Ellas não trouxeram só a Lisboa as modas e o bom tom: trouxeram-lhe os boudoirs, onde ha sempre duas peças de fazenda por não deixar de haver, dois sophás magnificos e uma excellente causeuse, e alguns quadros que representam velhas historietas d'amor, Maleck-Adel e Mathilde, Almaviva e Rosina, e até ás vezes Amor e Psyché.
Amor e Psychél Oh! como ellas falam d'este quadro! Como ellas falam do amor, essas deliciosas modistas que sabem de cór e salteado em que escaninhos do coração brotam o amor-paixão, o amor-capricho! Como ellas descrevem os casos de coração, essas modistas que teem durante a sua vida presenceado maior numero de aventuras, do que um tambor de oitenta annos tem tocado de alvoradas!
Segunda feira gorda á uma hora da tarde, a marqueza e Luiz de Lima recostados em dois soberbos sophás no boudoir de madame Dupuis, modista celebre pelas más fazendas da sua loja e bonitas maneiras da sua pessoa, cavaqueavam d'amor com certa languidez de expressão e abandono de attitude, que o proprio Figaro que se achava n'um quadro dirigindo a serenata a la signora del balcone parecia encantado de ver entre os dois amantes reinar tão completa harmonia.
A marqueza disse ao medico mil coisas agradaram, e não quiz poupar-se a juramentos e promessas. Amava o, fazia do amor a sua gloria unica, e queria ser grande no amor como era grande em todos os sentimentos, proteger o seu amante, eleval-o, engrandecel-o, provar-lhe que o amava por elle e não por si, que não havia egoismo n'aquelle affecto, que era nobre e rara a estima que sentia por elle. Foi isto o que a marqueza lhe disse entre protestos e meiguices, ora erguendo os olhos ao ceu com um ar de bondade e de candura indizivel, ora assumindo uma expressão triste, vaga, e de um sentimentalismo romantico e mysterioso.
O leque auxiliou-a para acompanhar essas phrases angelicas de gestos dignos de um cherubim. Amar outro! ter um só instante pensado em Victor Marrocos! quem se pensava então que ella era? Victima da inexperiencia dos primeiros annos, ainda assim ella aprendêra com o inconsiderado passo que déra em casar-se, o que a alma soffre quando para sempre se encontra isolada de affectos e na impossibilidade de aspirar a um amor poetico, escolhido e preferido a todos. Ella terminou essa magnifica jeremiada tomando entre as mãos a cabeça do medico, introduzindo os dedos pelos seus loiros cabellos, e exclamando com um ar digno de Emilia das Neves, e como revendo-se no seu amante:
-- Meu amor eterno!
Mas Luiz de Lima estava experimentado na vida, e tinha já de ha muito assentado o seu juizo sobre o que valem todas as mulheres. Tinha conhecido de tudo, e havia encontrado no decurso da sua existencia dados para robustecer uma opinião triste e desagradável: -- que nenhuma mulher vale a pena de nos sacrificarmos por ella, porque todas nos deixam mais dia menos dia, por volubilidade, por ambição, por vaidade, ou por coisa nenhuma!
São diabolicas taes doutrinas, e quando a alma se gasta a ponto de especular com os sentimentos, é preciso haver cautela com o homem que chegoa a semelhante estado, porque é um homem perigoso.
Luiz de Lima interrompeu as patheticas declamações da marqueza, dizendo-lhe com uma expressão de meiguice digna de Roméo:
-- Tenho pensado muito no meu futuro!
-- E esperas alcançar apenas pela medicina os engrandecimentos do teu destino?
-- Que heide fazer? disse o medico affagando a mão da marqueza com um ar de victima enfastiada do banquete da vida. Estou velho de espirito! envelheceu-me a vontade com as fastidiosas lucubrações da sciencia, e se não fosses tu, anjo bom da minha existencia, de ha muito que me esquivaria ao mundo e ás exigencias que a minha posição me prescreve!
A marqueza bateu com o leque levemente na face do medico, e exclamou com uma soberba e magnifica expressão de superioridade!
-- Vou salvar-te!
Luiz de Lima abrio muito os olhos, e fitou uma vista avida e curiosa nos olhos da amante, incendiados de uma luz esplendida de seducção.
-- Meu querido Luiz, disse-lhe ella, tambem eu tenho pensado no teu futuro, e só peço que me deixes dar-te a taboa de salvação para te esquivares ao naufragio em que o teu sepleen tenta mergulhar-te a existencia. Queres-te casar?
-- Que!
-- Queres casar rico, tornares-te independente, e fazeres-me feliz a mim pela tua felicidade?
-- E és tu que me propões... Como entender-te?
-- Não vês acaso em tudo isto o alcance de uma affeição superior? Serás meu do mesmo modo, porque não te supponho ingrato, viverei contente por ter a consciencia de ser quem te alcançou a felicidade que outra mulher no meu caso só trataria de destruir. Quero-te independente e feliz! Demais acrescentou com um sorriso maliciosamente galante, escolhi a noiva bem rica e tive cuidado em não a escolher bonita. Conheces a filha do barão de Sousa?
-- Pois é...
-- Ella propria. Mais de cem contos! Pondera por um momento o que essa fortuna reunida ao teu talento te póde grangear no mundo!
Luiz de Lima estupefacto um momento, travou logo das mãos da marqueza e levou-as aos labios com religiosa expressão de gratidão, de amôr, e de pasmo.
-- E parece-te que poderemos continuar a ser felizes? perguntou-lhe Thomazia Villar ternamente.
-- Por ventura o casamento importa em alguma coisa ao coração?! Não, minha vida, se alguma dificuldade vejo ao teu plano, não deverá nunca ser a de duvidares de que o meu amôr não seja partilhado por outra. Quando o dever apparece, o amôr foge d'alli a nada! Ha constantes exemplos do que te digo. Serei sempre o mesmo, mais ardente e apaixonado ainda; porque quando o amôr se robustece pela amisade e pela gratidão, não ha mais energico e nobre sentimento!
-- Que dificuldade pódes ver então em tudo isto? Não tens confiança em ti sufficiente para que não hesites na convicção de poderes ainda apaixonar uma pobre pequena que não conhece o mundo nem a vida, e que verá em ti o seu salvador? disse a marqueza com um sorriso ironico e galante.
-- Não sabes o que ha, ao que parece! Ignoras que a filha do barão de Sousa namora despropositadamente um rapaz, escriptor publico, um Guilherme da Cunha que escreve n'um jornal do governo...
-- Dura isso ainda! Meu Deus, como a maior parte da humanidade se entretem a namorar! Sim, conheço esse rapaz, encontra-se ás vezes em casa de Castello Branco. Pois dizes bem, vejo que é um obstaculo de alguma importancia... para a pequena: mas para nós?! Vejo que esqueces as circumstancias que se dão. O barão de Sousa não pôde, sábel-o como eu, recusar a menor cousa ao marquez: por outro lado, vê com que boa vontade o marquez se hade interessar em que tu cases, tanto mais que desejará ver-te preso, por isso que desconfia que te distingo! a filha não tem papel no drama senão como uma comparsa de utilidade! Emfim, esta noite falarei d'isto ao marquez: apparece ámanhã em S. Carlos, assisto ao baile de mascaras, guardei a frisa. Vae visitar me no meio da noite, e lá mesmo o marquez e eu te diremos o que houver.
-- Minha querida Thomasia, porque não és tu solteira?! exclamou o medico como acordando de um extasis.
-- E porque te amo eu, apesar de casada?! disse a marqueza erguendo os olhos ao ceu:
-- Adeus! continuou ella, depois de uma breve pausa em que pareceram ambos dominados por uma tristeza infinita. Os rapidos momentos em que estamos juntos são o balsamo consolador da minha existencia! Até ámanha, em S. Carlos!
-- E até quarta-feira de cinza aqui! respondeu o medico beijando a mão que lhe estendia a marqueza de Villar.
A marqueza desceu a escadinha que conduzia á loja de madame Dupuis, recebeu das mãos d'esta modista historica um embrulho com rendas de França, que lhe havia encommendado á entrada para que o marquez pudesse persuadir-se facilmente que ella sahira com o fim de fazer compras; depois entrou para a americana, e partiu no momento em que Luiz de Lima que ficára ainda no boudoir entregava o seu espirito a estas sabias meditações:
-- Um casamento rico! irei viajar aproveitando a occasião de me formar na Universidade de Paris, e em alguma das de Allemanha! Um sceptico de botequim ou algum athêo de salão, não poderia agora ponderar que o matrimonio, a maior parte das vezes, protege mais os amantes do que os maridos!
E desceu pela escada praticavel, em quanto madame Dupuis subia a escadinha particular para ir ver se o doutor já teria saido.
Não encontrando ninguem, a modista sentou-se no sophá onde meia hora antes estavam ainda sentados Luiz de Lima e a marqueza de Villar, e ponderou consigo mesma:
-- Entre dois amantes um d'elles ama mais do que o outro, portanto o outro precisa exagerar um pouco o seu amor: n'este caso qual d'elles será enganado? o medico ou a marqueza? e quem sabe se ambos se enganam mutuamente?!
Alguns dias depois a marqueza de Villar, recebia a seguinte carta, em que o leitor reconhecerá que o medico não havia perdido tempo, e que era homem capaz de aproveitar o impulso de uma occasião feliz!
«Minha querida Thomazia. -- Não sejamos auctores mediocres, minha boa querida: o enredo é o grande elemento no theatro do mundo. Se quizeste dar-me a idéa do drama, consente que seja eu quem urda as peripecias. E se quizeres, para decidido triumpho da nossa obra, encarregares-te de um dos papeis principaes! Não rias: attende o meu plano e reconhece que sou um dramaturgo manqué, e que a minha vocação vae mais depressa para uma composição scenica, do que para a boa redacção de uma receita! Ora oiça, a minha collaboradora!
«Falei com il mio rivale, e estou ao facto das situações do prologo. Os dois pequenos cherubins (poveretti!) querem acabar como as novellas antigas -- casando e tendo muitos filhos!
«O rapaz (repara n'isto) quer lançar mão de qualquer meio que possa alcançar-lhe o casamento. Não escolhe: declara todos excellentes á priori, comtanto que o seu fim não falhe. Está perdido de sentimentos a ponto de prescindir do dote e querer a noiva só por seus dotes... naturaes! Vê a que chega a villeza das almas pequenas! E' um d'esses maniacos que são da opinião dos galans de opera-comica
O oiro! vil metal!
Essa chiméra fatal!
«O rapaz, é isto que desejo que ponderes, considera-me o seu mentor, o seu pae Fourcheron, e decidiu que vae seguir os conselhos que lhe dei. Queres agora, meu anjo, saber que conselhos foram? Lê e pasma.
«Disse-lhe que te fizesse a côrte, que deligenceasse por te agradar e te merecer, e que soubesse tornar-se digno dos teus favores. Que te dissesse depois, um dia, n'alguns d'esses ternos cavacos entre amantes que se idolatram, e que só desejam serem uteis um ao outro, que te dissesse a sua posição, mas que te occultasse como é natural o seu amor por outra. Que se transformasse n'um melancholico Didier amargurado e afflicto, e que atirasse emfim a sua ultima e decisiva phrase : -- Preciso viver e estou sem futuro! -- que tu deverias traduzir d'este modo -- necessito casar rico porque não tenho dinheiro. -- Que te pedisse então que volvesses olhos piedosos para salvar o teu amante; e explicando-lhe finalmente a influencia (que aliás elle já conhecia) que o marquez tem sobre o barão de Sousa, consegui fazer-lhe vêr que a menor recommendação tua ou de teu marido ao barão protegendo esse casamento, seria para elle Guilherme negocio prompto e decidido.
«Já ves o alcance do penultimo acto! E's tu quem deves preparar o desfecho, aliás a peça morre pelo final. Sacrificar-te-has a acceitar-lhe os votos de amor, e a prevenção em que já estás de que elle vae representar comtigo deverá animar-te a uma mystificação superior e justa. O meu papel consistirá apenas em fazer prevenir o barão e a filha, de que Guilherme te prefere a elles, e conseguir reunil-os num logar onde ella possa observar o seu Tytire bucolisando comtigo. Preveni tudo, aconselhando o rapaz a que não prevenisse a namorada d'esta estrategia amorosa que vae alcançar-lhe a mão d'ella, porque apesar de ser uma comedia sublime póde comtudo tornar-se degradante aos olhos de uma mulher que prefira a impossibilidade da união a um casamento alcançado por semelhante meio. De modo que a Sousa hade cair á queima-roupa sobre esta bucolica que esqueceu a Virgilio, e ferida no seu amor proprio dignar-se-ha volver olhos misericordiosos para o bom do pae que lhe hade então explicar miudamente -- de como eu posso ser o melhor dos maridos!
«Tem paciencia, meu amor, sujeitei-te ao desenvolvimento da tua generosidade. Foste a primeira a dar-me a iniciativa para a comedia, dígna-te agora representar de modo que me caiba a mim applaudir-te.»
Em quanto Thomazia Villar lia e relia a prosa de Luiz de Lima um pouco mais elegante a seus olhos do que o estylo dos melhores puristas porguezes, em quanto o seu coração lhe pulsava impaciente e phrenetico a simples idéa de pôr em pratica tudo que o seu amante n'essa carta lhe explicava e lhe pedia, Luiz de Lima que estava almoçando na companhia de José d'Athayde entretinha com o noticiarista um dialogo que não deixa de ter feição.
-- Quanto fazes tu por mez pela medicina e pela marqueza? perguntava-lhe o noticiarista com um cynico sorriso.
-- A medicina não me rende nada e Thomazia ainda me rende menos! Procurei com esta ligação a faculdade de me relacionar e de ser convidado para toda a parte. Um quanto a interesses miudos, creio que me fazes a justiça de acreditar que sou incapaz de acceitar dinheiro de uma mulher. A prostituição no homem é a mais completa das villanias!
-- Dinheiro! dinheiro! Mas quem te diz que lhe acceitas dinheiro. Entretanto, lá vem uma lettra...
-- Isso ainda me não succedeu... senão quatro vezes; disse o medico sorrindo-se.
-- Pois é o caso, replicou José d'Athayde; e depois tu jogas, has de perder ás vezes, encontrares-te em dificuldade de pagar de prompto, e a marqueza...
-- Já ves que não posso n'uma d'essas situações, que aliás se tem dado apenas umas seis ou sete vezes, impedir que o extremoso amor de Thomazia passe pelo desgosto de eu recorrer aos seus favores...
-- Está claro! continuou o noticiarista: em quantos embaraços se encontra ás vezes um pobre diabo como eu... como qualquer de nós, para melhor dizer! que de impressões á idéa de um agiota, -- do agiota -- phrase mais generica; porque hoje em dia todo o homem que se preza, tem o seu agiota reservado, do mesmo modo que tem a sua casaca preta na gaveta, para certos casos. O agiota é a casaca preta da alma, veste-se para os lutos do espirito, e para o enterro da independencia! E então, já se ve que se á marqueza constar que um d'esses vampiros intenta devorar-te, e que o vês tirar da algibeira o souvenir fatal e traçar n'uma das folhas a tua condemnação eterna, fazendo a conta, de punhal erguido... Quando digo punhal quero dizer o lapis, porque o lapis é o punhal do agiota! Ora se te encontrares n'uma d'essas peripecias que tem ornado a minha existencia semeada de flôres e de agiotas, como quem diz semeada de flôres e abrolhos...
-- Já tenho tido d'essas crises fataes, meu Athayde!
-- Peor do que passar o cabo das Tormentas! E como tens esmagado esses bichos ferozes, com a tua indignação, ou com a bolsa da marqueza?
-- Com a bolsa da marqueza; disse o medico rindo. Coitada! já me tem livrado de cinco d'esses demonios!
-- Não insultas os anjos caidos: isto é outra casta ainda peor!
Depois de uma breve pausa que o noticiarista aproveitou a preparar umas rodas de salame, o medico exclamou:
-- E que me dizes tu dos alfaiates?
-- Implacaveis! Não servem para amigos Má gente! muito má gente! Attendem mais ao primeiro do mez, do que ao doloroso grito da agonia dos Jobs lisbonenses! Aposto eu que a marqueza já sabe quanto o Catarro e o Keil levam por um paletot!
Luiz de Lima não poude deixar de dar soltas a uma gargalhada:
-- Já por duas vezes se entendeu com elles, satisfazendo uma conta muito soffrivel!
-- Bem entendido!
-- Acceitar dinheiro de uma mulher é que é horroroso!
-- Medonho! acudiu o noticiarista; isso é medonho. Acceitar dinheiro de uma mulher por caso nenhum!
-- Combinas com a minha dignidade?
-- Combino com a tua dignidade, perfeitamente.
Luiz de Lima e José d'Athayde eram dois verdadeiros lisbonenses, e este dialogo o comprova. Em Lisboa ha um grande horror pela idéa de receber dinheiro de uma mulher, mas não se considera de tanto menospreço aceitar favores a uma mulher que lhe custem dinheiro!
A vida de Lisboa tem isto de especial: os romances de vida contemporanea apresentam os elegantes de Pariz, os dandys dos salões, os leões da voga, tendo quasi todos protectoras mysteriosas que lhes franqueiam o seu coração e o seu portemonnaie, e a quem elles assaltam de ordinario com mais frequencia o porte-monnaie do que o coração. O mundo conhece-os, sabe onde pára a Nova Australia d'aquelles exploradores do amor, e nem por isso os desconsidera; aceita-os a uma meza de Whist e não põem duvida em desejar ganhar-lhes o oiro que uma mulher lhes deu!
Não succede assim em Lisboa, onde só se encontram d'esses homens n'uma sociedade separada de todas as classes, a das mulheres perdidas, unicas que se atrevem a pagar um amante com o dinheiro á vista, e unicas que encontram homens que se atrevam a aceitar-lho!
Diga-se então a verdade, Lisboa despresa esses homens, proscreve-os de todos os logares onde seja preciso um titulo qualquer para ter entrada. Nos theatros, até, apesar de que um bilhete que se compra dá a qualquer o direito de tomar o logar que esse bilhete representa, nenhum d'esses homens se atreve a apresentar-se na platéa de assignatura, a não ser n'algum dos theatros de terceira ordem onde já as platéas não teem feição nem caracter.
Quer isto provar que no mundo elevado nenhum homem vive á custa de uma mulher?
Não quer.
Na boa sociedade ha homens como Luiz de Lima, a quem uma senhora salva por muitas vezes de um embaraço de fortuna, a quem uma senhora faz presente de um tylbury, de um cavallo, de trinta mil coisas necessarias á vida elegante, que estes homens teriam de comprar ou de alugar: mas o que não ha decerto, o que não ha felizmente, é senhoras a quem já não reste o prestigio da mulher, a vaidade, o brio, o amor-proprio que as faz recuar á idéa de ser preciso pagarem o apparente amor de um homem!
O que não ha de certo tambem, o que tambem não ha felizmente, são homens que por tal fórma se envilleçam d'alma, que olhando com despreso para a prostituição na mulher, não reconheçam que é mil vezes mais horrorosa e degradante essa prostituição no homem.
Para que o leitor não estranhe a dependencia em que estava o medico para com a marqueza é talvez precisa uma breve explicação.
Luiz de Lima era medico da moda, e não o medico da voga: era o medico das senhoras, mas não o medico dos maridos. Nem o publico de Lisboa sympathisa com um doutor em medicina que saiba walsar, e que frequente a sociedade dos jornalistas e dos escriptores publicos, nem Luiz de Lima quiz nunca abandonar essa sociedade, deixar os bailes, e sacrificar ao seu credito algumas noites passadas, a cavaquear nas boticas.
Lisboa é inflexivel para certos peccados: Lisboa perdoa um crime, mas não desculpa um d'esses erros a que se chama -- não atender ás conveniencias! Lisboa nunca deixa de ter horror a uma moda qualquer. Ha cincoenta annos dizia-se de um homem:
E' um devasso, que não attende ás prisões de familia, que não respeita os laços do sangue, que passa as noites em orgias e os dias em espeluncas de jogo... emfim, até sabe falar francez!
Este ultimo crime era o unico que Lisboa não perdoava então!
Usar chale-manta pela rua é o crime mais recente que a população tem condemnado. Ha dez annos quem usasse chale-manta tinha as inquirições tiradas, -- era um homem perdido!
Um medico ou um advogado que use bigode é considerado ainda hoje como um ente perigoso e temivel. As familias fecham-lhe as portas, os homens serios levantam os olhos ao ceu, citam os do seu tempo como modelos de sabedoria e de seriedade, e o pobre advogado ou o pobre medico vê desapparecerem a pouco e pouco os clientes e já é tarde quando as circumstancias lhe fazem bem conhecer que Lisboa teve medo do seu bigode!
Já se perceberá agora que Luiz de Lima, frequentador impreterivel dos bailes, elegante que não faltava a um pique-nique, que era constante em Cintra de verão e em S. Carlos no inverno, apesar de que não usava bigode, todavia tinha na sua vocação para os divertimentos e prazeres da vida suficiente condemnação para o triumfo dos seus creditos como homem de sciencia.
As damas preferiam-no a todos, porque elle conversava e walsava como ninguem; e um medico que seja forte em conversar e em walsar, dizem as senhoras que não póde deixar de ser tambem de grande força a receitar!
-- Ainda não sabes o melhor! disse o medico ao noticiarista quando acabaram de almoçar. Faço amores com uma dançarina, aqui onde me vês!
-- Cáspite! E' do genero francez, ou italiano?
-- Do genero... portuguez!
-- Misericordia! dançarina portugueza n'um paiz que nunca deu senão a Moreno! Quem é então essa coriphéa que se atreveu a distinguir-te no teu logar de assignatura?
-- A mais linda cara do mundo; has de conhecel-a necessariamente...
-- Chama-se?
-- Rita.
-- Oh! oh! A Ritinha do Salitre! Se conheço! Do tempo em que ella dançava a Cracovienne nos entre-actos, e em que o Antonio Cypriano lhe atirava coroas! Pois, dir-te-hei que é como mulher, uma acquisição muito soffrivel, o barão dá-lhe este mundo e o outro. Pelo lado da arte... é portugueza!
-- E' já tão vulgar dizer mal de tudo que é nosso!
-- Olha, das mulheres de theatro de Lisboa é que ainda se tem dito pouco. E' verdade que ninguem as conhece!
-- E's implacavel como um noticiario! Vamos nós até ao theatro?
-- Que se faz lá?
-- Ensaia-se uma dança nova, O Serralho.
-- Essa, aposto que deve ir bem! disse o noticiarista com uma gargalhada. Meu caro amigo, as mulheres de theatro em Lisboa ou são virtuosas como Santa Brigida, ou então nem se contentam em sêr mulheres de marmore, são de gesso!
-- Mas teem uma qualidade que as torna superiores ás dos outros paizes.
-- Oh! se teem! é a semsaboria!
-- Não, é o desinteresse.
-- Ah! ah! Comprehendo. A Ritinha tem-se sabido insinuar, e diviso na phrase que soltaste o fructo de alguma eloquente jeremiada de bastidor, lamurias que as filhas dizem entre lagrimas, aprendidas com as mães, entre risos! Aposto que te disse que não queria mais do que o teu coração... e uma agua-furtada! E' a phrase!
-- Estás julgando as mulheres de Lisboa pelas mulheres de outras terras: as mulheres de theatro, aqui, não arruinam ninguem, nem acham a quem arruinar! Esta é a verdade do caso! serão talvez mais bondosas por ausencia de espirito, não duvido: mas teem maior alma e melhor dedicação!
José d'Athayde acendeu um charuto, e contemplou, sorríndo-se, um elegante cofre d'ebano que de certo guardava as cartas, os cabellos, as flôres, as pastilhas de um baile, as mil lembranças com que as mulheres de sociedade acompanham de ordinario algum amor, e com que a marqueza de Villar tinha de certo acompanhado o seu, porque o noticiarista divisou no cofre a inicial do nome da marqueza.
-- Sabes tu Luiz...
-- Sei que vou ao ensaio e que me has de acompanhar, disse o medico dispondo-se a sair.
-- Sabes tu que eu trocava de bom grado os olhos azues da tua Ritinha por uma das longas pestanas da marqueza, e que...
-- Nunca os teus olhos se fitaram em dois raios de luz de maior encanto! disse Lima com enthusiasmo.
-- Acordas aos trinta annos! exclamou o noticiarista. Não agouro bem esses amores! As Ritinhas de S. Carlos fazem muita differença das Villar e das Castello-Branco! Conheces já as marquezas mas ainda não conheces as dançarinas, e talvez que essa te faça lembrar ainda que ha differença entre as salas e as caixas de theatro, e que é já tarde quando, em vespera dos quarenta annos, se quer fazer conhecimento com as intrigas de bastidor!
-- O barão é o editor responsavel, eu represento a distracção, faço as vezes de folhetim da folha. Que posso eu recear?
-- Que o editor não approve o folhetim e que te encarregue do jornal!
-- Ora adeus! o amor, disse o medico parodiando, é sempre a imagem da confiança tão real e perfeitamente como está... em Antonio Cypriano!
VII
A marqueza de Villar
Duas noites depois de a marqueza receber a carta de Luiz, e se resolver a representar a comedia que planeara, Victor Marrocos a quem Guilherme pedira para sêr apresentado á marqueza, introduzia-o effectivamente nas salas da senhora Villar, que acolheu o mancebo com um sorriso para o animar, e um cumprimento lisongeíro para o seduzir.
A marqueza estava n'essa noite, como ella propria disse, nervosa e enfastiada.
Debalde havia recorrido de instante a instante ao auxilio de um frasquinho de saes aromaticos que lhe acordasse o espirito, entorpecido por uma diabolica enxaqueca.
A marqueza tinha trinta annos.
Dizia-se no mundo que ella devia á arte a maior parte da belleza que ostentava ainda. Era talvez verdade. Mas com que perfeição dava colorido ás faces, e aos beiços, com que esmero preparava a pelle com cold cream, com agua da china, com os mil ingredientes que os cabelleireiros e os perfumistas ministram á humanidade impedindo-a de ser feia a todo o tempo!
Feio! Quem é capaz de ser feio n'este seculo? E' impossivel.
Para os calvos ha cabellos, para os desdentados ha dentes, para os pallidos ha côr!
A marqueza tinha trinta annos, não era bonita, não era elegante, não era sympathica, e todavia era uma mulher da moda!
A que se devia essa circumstancia?!
Ao ridiculo.
Sim, ella falava muito, queria entender de tudo, arvorava-se em censora dos artistas, dava o seu voto com um ar tranchant ácerca de uma partitura ou de uma composição litteraria, analisava os versos de Palmeirim, discutia o Eurico de Herculano, criticava sem piedade as obras dramaticas de Mendes Leal, e no fim de tudo decidia-se pela prosa de José d'Athayde, sem viço e sem côr, onde se encontrava a cada instante uma idéa do seculo desenove mettida n'uma phrase do seculo dezesseis!
E a marqueza illustrara-se e celebrisara-se pelas suas pretenções que a converteram n'uma preciosa moderna.
O que outr'ora matava pelo ridiculo, hoje popularisa e ennobrece!
Todas as virtudes e todas as qualidades adquiridas; as mais nobres acções, ou as mais elevadas faculdades, não valem tanto para o juizo da sociedade como o mais pequeno e ligeiro ridiculo!
Assim como a virtude se enriquece de sacrificios e a religião de humilhações e ultrages, o ridiculo alegra todos e torna felizes os que o possuem!
O ridiculo é o mais solido dos laços que unem as creaturas. E' a unica reciprocidade constante, inalteravel, independente dos caprichos do coração ou da fraqueza do espirito!
Se esse dom precioso se encontra n'uma fidalga ainda moça e rica como a marqueza de Villar, que triumpho! Maneiras exageradas, exoticas, vestuario pretencioso, linguagem affectada e por vezes burlesca! E uma victoria certa que a curiosidade lhe tributa. Se é num baile, a primeira bas-bleu de penteado á Diana antiga, vestido de mangas largas quasi á moda da edade media, leque vertiginosamente agitado, e falar estudado, decorado, repetido mil vezes ao espelho, leva sempre vantagem á donzella modesta e simples, de loiros cabellos singelamente atados, vestido branco, cintura tenue e attitude graciosa e espontanea!
Os heroes de salão talvez passem sem a vêr, maravilhados da panthera que reuniu no seu vestuario todos os generos, epochas e cores.
E a innocente verá decorrer o baile, passarem as horas, succederem-se as walsas, e ninguem irá anhelante de desejo e vaidade repetir-lhe a phrase proverbial de um baile:
«Digna-se v. ex.ª conceder-me esta contradança?»
E no fim da noite, ao entrar para a sua carruagem ella irá já desgostosa do mundo e desencantada das illusões da vida!
Os homens, e principalmente os homens moços que entram na vida sequiosos e avidos de aventuras, esperam tudo das mulheres de trinta annos, e seduzem-se pelos prestigios das bas-bleu que já teem nome e celebridade, e que decretam a moda e as opiniões.
Possuir uma d'essas mulheres que já conhecem a vida e o mundo, captivar essas creaturas que contam na lista esplendida e abundante dos seus adoradores os principaes nomes da mocidade doirada de uma terra, é para os mancebos um triumpho de primeira ordem.
A marqueza de Villar tinha como todas as mulheres da moda de Lisboa, uma coterie certa e especial onde dominava e era obedecida.
A este numero pertenciam Luiz de Lima, João de Vasconcellos, poeta da voga, Victor Marrocos, o padre Antonio, termo medio entre o typo do abbade mexeriqueiro do seculo dezoito na França, e o do padre do seculo dezenove em Portugal, ignorante mas ambicioso, estupido mas recheado de presumpção e de vaidade, e ainda outros de menor vulto, verdadeiros ajudantes de ordens que lhe serviam para applaudir a sua cantora predilecta, e dar pateada aos artistas da sua antipathia.
Esta coterie tinha uma noite certa cada semana em que se reunia ao cavaco em casa da marqueza.
Era ás quintas-feiras, noite que haviam escolhido por não haver theatro lyrico, e ser noite privativa do theatro normal, onde a Villar como mulher da moda de Lisboa não descia a ir ouvir uma peça de Mendes Leal, de Francisco Gomes de Amorim, ou de Antonio de Serpa. A coterie da marqueza conservava-se-lhe fiel, e a condessa de Castello Branco que aliás possuia na sua roda effectiva Estevão de Mello, Antonio Roma, Ernesto Braga, o auctor dramatico, e José d'Athayde, o Napoleão das noticias diversas, não havia ainda conseguido conquistar á marqueza nenhum dos seus cavalieri sirventi.
Thomazia de Villar tinha trinta annos, como dissemos. Nunca fôra realmente bonita, mas principiara aos vinte a ser boa. Para os entendedores isto será bastante para que possam desde já fazer uma idéa da marqueza!
De estatura alta, ainda que pouco airosa, tinha todavia uma figura que agradava e sobresaía.
Nos seus primeiros annos fugira muito á magreza, e estava reduzida agora a evitar por toda a arte a gordura, porque previa que ella a tornaria mais velha e sobretudo menos elegante!
A testa alta e bem feita, e a mais alva pelle do mundo, compensavam na sua physionomia a pouca regularidade de feições e nenhuma correcção de traços.
Ao ser-lhe apresentado Guilherme da Cunha, ella sentiu como que uma antecipada impressão de remorso, a olhar esse pobre moço que ia ser victima da mais fatal comedia, e que teria de perder n'aquella sala a felicidade e o seu futuro. Mas affastou da imaginação essa ruim lembrança e examinou então minuciosamente n'um desses olhares de mulher de sociedade que vê tudo parecendo estar distrahida, o mancebo que reunia ao viço da edade uma grande elegancia sympathica e original.
Guilherme da Cunha era um rapaz trigueiro, de fronte alta, olhar vivo, penetrante, e ardente; de estatura mediana, presença agradavel e sympathica, e maneiras da mais esmerada e polida educação.
Thomazia viu tudo isso no olhar com que o cobriu: depois olhando rapidamente Luiz de Lima que a um canto do salão conversava com João de Vasconcellos, sem perder um unico movimento do mancebo, trocou com o medico uma perfida vista de combinação.
Guilherme da Cunha apresentou-se bem, conversou pouco ao principio, respondeu com espirito ao que lhe disse a marqueza, e conseguiu que nenhum dos dandys que alli se achavam pudesse pelas suas maneiras adivinhar que elle chegára da provincia, porque entre nós chama-se provinciano a quem é de Canecas, quanto mais a quem como elle seja do Carvalhal, pequeno logarejo perto de Obidos.
Guilherme viera effectivamente recommendado por sua mãe a um ministro que era ainda seu parente, para lhe ser concedido um emprego em alguma das secretarias do estado, para o que os seus estudos o tornavam apto visto haver cursado na Universidade, os dois primeiros annos de mathematica.
Mas eram outros os intentos do mancebo, e as suas aspirações guiavam n'o mais longe do que aos acanhados horisontes de amanuense de secretaria.
Guilherme da Cunha ambicionava a carreira d'escriptor publico, que suppunha tão rendosa como brilhante, tão agradavel como prestigiosa! Erro em que muita gente cae, e que serve para justificar o proverbio do -- nem tudo que luz é oiro!
Quando a conversação se estabeleceu, tratou-se de litteratura.
-- Porque se não faz critico? perguntou-lhe a marqueza: hoje as columnas do folhetim podem, bem aproveitadas, tornar-se um avançado degrau para a escada da politica!
-- A missão de critico, retorquiu Guilherme, é sempre má, sr. ª marqueza; n'este paiz é peor, e na minha edade peor ainda!
-- E' assim! acudiu Luiz de Lima. Esta terra de esperteza de gallo não comprehende senão o critico de golla alta, oceulos fixos, e caixa de rapé. O direito á analyse ganha se depois dos cincoenta annos. Até então deve-se viver escondido para gosar depois as regalias de uma apparição inesperada.
«E' uma longa serie de semsaborias ad usum portucalensis! A ardencia natural da juventude será sempre rebelde a semelhante systema. Corre-se até o risco de se esterilisar o talento, apenas ainda meio caminho andado, e seccar as faculdades pela aridez, pouco compativel com o fogo da mocidade, de uma existencia em que se suffoca o ardor da ambição nos calculos repugnantes de uma hypocrisia a juros para o futuro!
-- Não é só essa a face triste da medalha! exclamou Antonio Roma, orador estimado cuja voz era n'esses tempos o mais valioso auxilio do marquez de Villar que em phrase de politico -- era o seu homem.
«Ser critico em Portugal considero eu uma tarefa sem lucro, nem gloria. No circulo infinitamente pequeno em que se vive em Lisboa, estreitam se depressa os laços da intimidade e o critico vê-se obrigado a ser lisongeiro, ou então mal educado. Bem sabe a marqueza que n'esta terra tudo se julga perante os lumes da civilidade!
«Um critico que tome chá esta noite em companhia de um poeta, está impossibilitado de não gostar dos versos d'elle!
«A primeira philarmonica de que o meu amigo não louve o bom serviço e lhe advirta esta ou aquella falta, fecha-lhe as portas com excommunhão, e vota-o á ignominia da sua propria sinceridade.
«Se quer ter vida de monge ou trez duellos por mez -- faça-se critico: se quer viver bem com o genero humano... não faça cousa alguma! Esta é a maxima do seculo. Os pobres de espirito possuem não só o reino do ceu mas o da terra!
«Durma muito e corteje toda a gente: dão-lhe logo um titulo, ou fazem no official maior de secretaria!
-- Não, de certo! exclamou Guilherme. Não começarei por avaliar os productos intellectuaes dos outros! Entregar-me-hei primeiro a alcançar nome pelas minhas proprias obras. Tenho vinte e um annos apenas, e ainda agora me principia a vida! Contentar-me-hei em ler a minha alma, os meus instinctos, e a grandiosidade de sentimentos, naturaes aos vinte annos até quando se nasce para ser Arétino ou Voltaire. --Buscarei impressões no meu coração e na minha alma, disse elle fitando a marqueza que o olhava como encantada.
-- Aos vinte annos não se é apenas poeta, retorquiu a marqueza com um sorriso agradavel, é-se a poesia!
-- Sobretudo, disse Estevão de Mello, homem politico e litterario, por cujo nome Guilherme da Cunha tinha essa veneração cega que merecem ás almas candidas, os prestigios de celebridade dos Garrett, José Estevão, Manuel Passos, todos emfim que adquiriram direito á popularidade; -- sobretudo seja original! Não se deslumbre pela graciosa toada da rima, que é o que perde os poetas portuguezes d'este seculo se exceptuarmos João de Lemos, Mendes Leal e Almeida Garrett.
«Para uma boa idéa ha sempre uma forma que lhe é propria, unica que lhe vae bem e que a traduz em todo o vigor e elegancia. Domar aos caprichos da moda o que ha de mais especial e exigente -- o pensamento, é a peor das tentativas!
«Não queira adquirir nome com poesias fugitivas que morrem no jornal ou no album: tente um poema. Observe e admire esta linda terra de que é proverbio dizer mal, mas tem o condão de maravilhar toda a alma fertil em crenças e impressões, pela luz animadora d'este sol esplendido, pelo perfume encantado d'esta natureza opulenta e magnifica!
«Seja poeta porque está na edade da poesia! deixe-se entrar de olhos vendados n'esta sociedade que já perdeu as illusões, mas que ainda admira as almas virgens e puras que uma vez ou outra atravessam este mundo inexperientes e confiantes!
«Ame alguem! Porque é do amor que nasce tudo que ha de grandioso nos sentimentos, porque o amor sanctifica o que a rasão discute e accusa ás vezes!»
Estevão de Mello callou-se por algum tempo, e Guilherme escutava ainda. No tom com que proferira essas palavras, no gesto elegante e persuasivo de que as acompanhara, o mancebo julgou sentir um hymno de consolação e de esperança.
Esta scena teve então um não sei que de melancholico e triste.
A disposição das figuras, a diversa expressão dos semblantes, os caracteres mais diversos ainda dos personagens; a causa infame que os reunia alli e prestava conselhos amigaveis ao pobre moço a quem se queria enganar e perder, tudo isto tornava esta scena especial e notavel.
O pobre moço cuidou vêr atravessar deante de si toda a historia da sua vida, historia ainda curta mas cujo horisonte se lhe apresentava agora escuro e confuso!
Seria difficil fazer sentir o que n'esses momentos se passou na alma de Guilherme, comprimida por um abatimento sinistro, ao encontrar-se ainda desconhecido e pequeno deante d'esses homens superiores por titulos diversos, a quem a sociedade tinha já acceito, a quem a sociedade já respeitava!
A marqueza estendeu-lhe a mão, e proferiu com deliciosa e angelica expressão:
-- Não se entristeça! Tem ainda agora encetado a vida e o seu merecimento ha de alcançar-lhe o logar que lhe compete. As mais solidas reputações são as que o trabalho grangea, nunca as que a protecção proporciona. Terá talvez que luctar, mas é a lucta que dá gloria ao que vence!
«A coragem é a divisa dos grandes espiritos; acompanha-os até a morte! Era por isso que as romanas applaudiam no circo o luctador que sabia expirar sorrindo!»
O relogio do salão marcava n'este momento uma hora. Victor Marrocos, Antonio Roma, Luiz de Lima, João Vasconcellos, e Estevão de Mello depois de trocarem entre si um olhar de perfida combinação, despediram-se da marqueza, e apertaram a mão a Guilherme que permaneceu ainda.
A marqueza aproveitou alguns instantes de silencio para observar melhor a expressão melancholica da physionomia do mancebo, que principiava a julgar melhor desistir da comedia a que os conselhos de Luiz de Lima o haviam incitado, a para a qual a sinceridade do seu caracter não lhe promettia grande probabilidade de bom exito.
Elle pregava a vista vagamente n'uma das flôres do tapete, e n'esse instante, que de saudades de Sophia lhe brotavam n'alma, sinceras e vehementes!
-- Tem então vinte e um annos! disse-lhe a marqueza para alguma coisa dizer. Pois bem! o que daria eu hoje para me encontrar n'essa edade?
«E não lhe basta para o tornar feliz vêr deante de si um tão largo horisonte?! Cheio de talento e de vocação para as bellas lettras, que mais precisa do que estudar para que um dia seja este paiz que tenha de agradecer á Providencia havel-o feito nascer aqui!»
E, por distracção talvez, a mão da marqueza descançou por momentos sobre a de Guilherme: e, por distracção de certo, essa linda mão apertou por vezes meigamente os dedos longos e finos do mancebo.
Mas os olhos de Guilherme fitaram os da marqueza: demoraram-se n'um olhar vago talvez, mas expressivo, e nem a marqueza baixou os olhos nem Guilherme desviou a vista.
O silencio que então guardaram foi mais eloquente do que as cartas de Heloisa. Guilherme enlaçou com um dos braços a cintura da marqueza, e ou ella não sentiu esse movimento ou nem forças teve para resistir-lhe.
Representavam ambos sem nenhum d'elles saber que tambem era enganado!
O que ambos queriam era captivar-se mutuamente; especulando ambos, nem um nem outro desejava ir até onde só o amor deve alcançar. Mas a marqueza sentiu-se de repente desvairada pelo ardor de um capricho ou de um desejo, e disse comsigo, servindo-se da idéa que as mulheres de trinta annos formam dos que entram na vida com os olhos vendados, unicos amantes que não são perigosos:
«E' uma creança!
E atravessou-lhe então pelo pensamento a imagem não do prazer sem o amor, mas a do amor sem o risco da indiscripção, o amor que não quer jugo, nem prisão -- o amor de uma noite, o amor de uma hora, o amor-capricho!
Todavia principiava a tomar a serio o papel a que se propuzera!
A luz viva e scintillante dos olhos pretos de Guilherme, incendiados em parte pela força de vontade que o tornava sublime actor n'essa delicada comedia a que o amor por outra mulher o havia obrigado, fascinava-a e vencia-a.
Quiz por momentos livrar-se de semelhante prisão dos sentidos, mas o torpor em que se encontrava fel-a estremecer de prazer, e mais prostrada ficou ainda.
Guilherme da Cunha roçou os labios pelo pescoço da marqueza, no sitio em que começa o cabello, e fel-a estremecer com um beijo ardente, devorador e phrenetico.
A condessa reuniu as poucas forças que lhe restavam, e n'um impeto de coragem ergueu-se de um pulo, e quiz, fugindo aos braços de Guilherme livrar-se d'elle e da pouca força que já tinha para resistir-lhe; mas apenas déra alguns passos, que as mãos do mancebo lhe enlaçaram a cintura, e sentindo então que estava toda a tremer, se deixou cair n'um sophá que estava perto do fogão.
Ahi mesmo a perseguiu Guilherme: e, tomando-a nos braços, collocou sofregamente os beiços nos pallidos e tremulos labios da marqueza, balbuciando como uma expressão de delirio amoroso:
-- Entrega-te!
No dia seguinte a marqueza parecia louca de alegria.
-- Bem dizem os hespanhoes, exclamava esta preciosa do seculo XIX: -- Quem brinca com o fogo acaba por se queimar!
E não poude explicar a si propria a causa de tal desvario!
Entregar-se a um tão rapido attaque... Querer captivar e ficar captiva... Quem póde fiar-se em si?
-- Não te julgava protectora da infancia desvalida, disse lhe uma das suas melhores amigas: uma menina de vinte annos casada com um brigadeiro velho, unica pessoa a quem a marqueza confiou este segredo.
-- Minha querida, replicou a marqueza de Villar, tenho trinta annos. Quando chegares a este marco da estrada da vida, talvez estejas enfastiada já dos homens do mundo, e peças á innocencia o que a experiencia não póde dar!
VIII
Antes do baile.
Uma semana depois, dava um baile o ministro da America.
Sophia de Sousa devia assistir, mas Guilherme que tinha a certeza de que a marqueza de Villar iria, e como desejava vencer terreno livremente e fallar á Villar n'essa noite mesmo, ácerca do seu futuro e do seu casamento, pintando-lhe que uma subita perda de alguns centos de mil réis ao jogo lhe tornava este casamento necessario como o ar, mandou dizer a Sophia que não podia ir, e pedir-lhe que não fosse ella tambem.
A namorada ia pretextar uma violenta dôr de cabeça e desculpar-se assim para com seu pae de não querer assistir ao baile, quando o barão lhe disse:
-- Recebo agora uma carta do Melitão Vidueira, acompanhada de outra da filha dirigida a ti; talvez seja para combinarem toilette.
Maria Lucia, filha do mais illustre e respeitavel dos agiotas de Lisboa, Melitão Vidueira, intimo do barão, era a melhor, e unica amiga de Sophia. Educadas no mesmo collegio, de onde sahiram no mesmo dia, tendo para lá entrado juntas, reinava entre ellas a enexprimivel amisade que prende ás vezes duas meninas, por um affecto que toca por vezes o sublime do amor, e que faz com que uma seja feliz pelas alegrias da outra, e se entristeça e amargure com as suas magoas, tanto ou mais do que se a ella lhe coubessem. Teem ciumes reciprocos, e até ás vezes se affligem de zelos quando uma vê que a outra pensa tanto n'um homem que por força hade pensar menos n'ella. Ás vezes ficam mal por uma se casar: parece que entendem que ou solteiras ambas toda a vida, ou casarem no mesmo dia e, quem sabe, se com o mesmo homem!?
Era assim a cadeia de relações que prendia Sophia a Maria Lucia. Se estavam uma semana sem se verem, escreviam-se como se estivessem ha muito tempo separadas. Eram amigas verdadeiras uma da outra, amigas de coração, e tão innocente e bondosa qualquer d'ellas, que se os anjos se amam devem amar-se assim!
Eis a carta que Sophia leu:
«Nini da minha alma. Enganam-te e illudem-te! O teu fiel Guilherme, para me servir do titulo que lhe dás sempre, atraiçoa-te por um modo ignominioso. Ouvi hoje coisas ao jantar que me horrorisaram, porque justificavam as suspeitas que concebi quando antes de hontem no Gymnasio vi Guilherme quasi toda a noite no camarote da marqueza de Villar coxixando a todo o momento como dois namorados! E' uma indignidade, Nini, trocar-te por semelhante carocha presumida, e a ponto de andar doido por ella, doido varrido, como ainda hoje meu pae contou á mesa!
«Conto-te isto porque me doeria para sempre a consciencia se te deixasse viver illudida. Pobre querida, peço-te que não vás esta noite ao baile do ministro da America. Peço-t'o pela tua tranquilidade e brio: elle e ella devem ir. Já vês a que triste e degradante scena te expunhas. Olha, estou a chorar como doida, e se o pilhasse agora aqui tinha força para lhe tirar os olhos. Nini não te afflijas porque o monstro não vale a pena d'isso: vinga-te vindo esta noite a minha casa, onde te fico esperando para irmos a S. Carlos. Eu tinha convite para o baile, mas depois do que sei nem eu quero ir. E' melhor assim: no theatro dá-se a Gemma de Vergy; só o que nós havemos de rir quando te mostrar o preto da Opera que é a cara do tal monstro por uma penna. Havemos de nos vingar. Hei-de-te arranjar eu (mas lá mais para deante) um namorado a meu gosto. Verás que sendo da minha escolha hade ser digno de Nini. Minha prenda, vem cedo, sim? Se chorares enxuga os olhos com os beijos que aqui te envia a tua fiel bibi-- Maria Lucia.
-- Trahida! exclamou Sophia ao terminar a leitura da carta. Duvido!
Depois, disse á sua aia que a ajudasse immediatamente a vestir.
-- Tão cedo! disse o barão.
-- Vou primeiro a casa de Maria Lucia. O papá acompanha-me?
-- Vae com Joanna.
Joanna era o nome da aia de Sophia.
Meia hora depois, a carruagem que conduzira a filha do barão de Sousa parava á porta da casa de Melitão Vidueira na rua de São Francisco.
Maria Lucia esperou a sua amiga no cimo da escada, e ahi apertando-a ao peito disse-lhe com angelica expressão de bondade:
-- Ainda bem que vieste! em que afflicção estarás!
E conduzindo-a para o seu quarto, observou que os olhos da sua amiga não estavam vermelhos nem inchados.
-- Tu não choraste! exclamou.
-- Não, respondeu Sophia.
-- E' singular, retorquiu a donzella. Então já não gostavas d'elle, Nini?
-- Adoro-o!
-- Para que dizes isso com tanto enthusiasmo, se nem um suspiro soltas, se nem uma lagrima vertes!
-- Lagrimas e suspiros! Para que?
-- Não acreditas na dor que se traduz em pranto?
-- Acredito mais na dor que antes de chorar, observa!
-- Queres dizer...
-- Que não creio o que a tua carta me diz.
-- Julgas-me capaz de...
-- De acreditares uma mentira que te dissessem, uma calumnia que lhe levantassem!
-- Acreditas mais n'elle...
-- Do que no mundo, e do que em ti que me mereces ainda mais do que o mundo!
-- Oh! pobre querida! exclamou Maria Lucia desatando a chorar e atirando-se aos braços de Sophia:
-- Se o amas assim estás perdida! Que cegueira, Nini!
-- Faço-lhe justiça: nada mais. Se lhe disserem alguma coisa identica a esta, que me diga respeito, vel-o-hão de certo sorrir e duvidar: é porque me ama como eu o amo e me conhece como eu o conheço!
-- Sophia, exclamou Maria Lucia erguendo-se de um pulo -- Eu vi!
-- Pareceu-te!
-- Vi! te digo.
-- Enganaste-te.
-- Pois bem, retorquiu a filha de Melitao Vidueira, és ainda minha amiga, Nini?
-- Do coração.
-- Faze-me a maior graça que a minha amisade póde exigir-te: vem esta noite ao baile!
-- Fazia tenção: quero justifical-o a teus olhos, rehabilital-o no conceito dos que acreditam o que os inimigos d'elle inventam, para o perder no animo de meu pae.
-- Bem! acudiu Maria. Suspenderemos qualquer juizo menos favoravel, até ao baile. E Deus me oiça, Nini, porque lhe peço que faça que eu me haja enganado, e que tu o encontres ainda fiel e digno de ti!
-- Sei que o é. Oh! tu não o conheces, Bibi, nem sabes quanto é grande o poder d'aquelle homem, e que sentimento profundo, violento e innefavel anima o seu amor por mim! Poderás um dia chamar-me louca e accusar a minha fraqueza por me julgar adorada: mas ha energia, perseverança e vigor n'esta fraqueza! Está innocente, verás!
IX
Prologo dos grandes desgostos
Nunca constou na sociedade o que se passara entre Guilherme e a marqueza n'aquella noite que descrevemos n'um dos capitulos antecedentes.
O mancebo, quando lhe vinham á lembrança os acontecimentos d'essa noite como que tinha remorsos. Remorsos leves, nem o caso era para mais, de haver apertado as mãos de outra mulher, beijado as faces e os cabellos de outra mulher do que a sua namorada. Mas a idéa de ser por ella, e para alcançal-a que elle havia deixado as coisas correrem assim, dava-lhe uma certa tranquilidade de consciencia de que nas edades curtas se precisa!
Nas duas noites immediatas, Guilherme tinha ido visitar a marqueza que evidentemente o esperava.
Na noite seguinte a estas, foi cumprimental-a ao camarote, em S. Carlos, e estiveram -- conversando -- durante o intervallo da opera á dança. Na outra noite, emfim, haviam ido ao Gymnasio, e como não é ahi de tanto melindre como em S. Carlos guardar-se as -- conveniencias -- elles estiveram toda a noite na mais despreocupada intimidade. A isto se referia na sua carta a filha de Melitão Vidueira. Mas ao quinto dia, isto é, na vespera da noite do baile do ministro da America, Guilherme da Cunha procurou por duas vezes a marqueza de Villar, mas acaso ou propósito, o guarda-portão respondeu-lhe de ambas as vezes:
-- A senhora marqueza não está em casa.
No dia seguinte Guilherme encontrou no pateo a carruagem da marqueza.
«Entraria ou irá sair? -- disse elle a si proprio.»
Mas n'essa occasião viu por uma das janellas do corredor que por acaso estava aberta passar a marqueza vestida e preparada.
Os cocheiros apearam-se, e os creados tiraram os cavallos do trem. Era evidente que a marqueza chegara de fóra n'esse instante.
Guilherme da Cunha dirigiu-se ao guarda-portão, e perguntou-lhe com voz indecisa como se adivinhasse.
-- A sr.ª marqueza de Villar?
-- A sr.ª marqueza não está em casa, respondeu o creado com a frieza petulante dos guarda-portões, que teem uma frieza e petulancia especiaes e privativas.
-- D'esta vez, disse Guilherme comsigo retirando-se, d'esta vez o caso está claro!
Fez-se conduzir n'um tivoli que encontrou no caminho, até ao Marrare do Chiado.
No Marrare encontrou um amigo.
-- Vaes ao baile do ministro da America, Guilherme?
-- Ah! disse o mancebo que pareceu acordar a essa lembrança, já nem me recordava do baile. Vou de certo, tenho convite e não falto.
E pensou comsigo mesmo:
-- Verei a marqueza, explicar-me-ha o que significa tudo isto, e se me parecer favoravel abrir-me-hei d'alma hoje mesmo, dir-lhe-hei que preciso casar-me, que perdi ao jogo esta noite, que preciso Sophia de Sousa a todo o custo e sem perder um momento!
-- Pobre Sophia! -- disse ainda o mancebo quando sentando-se a uma meza do Marrare se dispoz a escrever ahi mesmo um rapido bilhete á namorada, dizendo-lhe que não ia ao baile, e pedindo-lhe que tambem não fosse: Pobre Sophia, não saberás nunca o que me custou alcançar-te, se chegar a conseguil-o! Em quanto escrevia, ponderava esta triste idéa: e depois de enviar a carta ficou com os cotovellos encostados á meza, e a cabeça escondida entre as mãos, sem pensar, sem fumar!
Quando acordou d'essa atonia, disse:
-- Ou o meu amor é muito sublime ou muito rididulo: porque minto como um villão e amo como um heroe!
A noite, Guilherme da Cunha appareceu no baile ás dez horas. Os primeiros olhos em que fitou os seus foram logo os da marqueza.
-- A marqueza! disse elle; e por uma subita resolução dirigiu-se até ella, e foi com um delicioso e despreoccupado sorriso que disse:
-- Ha um seculo que não se deixa ver, senhora marqueza! Feliz inspiração me conduziu hoje até um logar onde finalmente tenho o prazer de encontral-a!
A marqueza respondeu com agrado, mas d'aquelle agrado das senhoras de sociedade, que é ás vezes peor do que o «mau modo» das burguezas. Ainda assim, Guilherme não lhe deu importancia e collocando-se ao lado d'ella, encetou uma attitude e um ar de quem se resolvia a não a largar tão cedo. Foram assim passeando, e chegaram a uma saleta onde ninguem se encontrava.
Ahi, Guilherme cortou o fio da conversa por esta pergunta rapida e incisiva:
-- Como explica o modo porque se tem portado commigo?
A marqueza nem pestanejou: olhou-o com uma soberba expressão de desdem e replicou friamente:
-- Não vejo a que possa alludir!
O mancebo fitou-a com um olhar penetrante e firme, e disse-lhe:
-- Esqueceu acaso aquella noite...
A marqueza viu-se a um espelho, collocou melhor uma flôr que trazia no cabello, depois respondeu com um magnifico ar de compaixão:
-- O senhor Guilherme da Cunha é muito creança ainda, e creança que parece bem pouco perspicaz, apesar do talento que se lhe admira!
E acceitando o braço do mancebo, foram passeando até uma das salas, ora dizendo segredos ao ouvido um do outro, ora trocando sorrisos tão depressa ternos como ironicos.
Sophia de Sousa e Maria Lucia tinham entrado havia pouco: mas a fatalidade havia feito que ellas chegassem a tempo ainda de vêr Guilherme ir com a marqueza para a pequena saleta de espera, e a pobre namorada n'uma angustia e afflicção infernaes, encostada a Maria Lucia, que a olhava assustada pela imprudencia que havia suscitado de virem ao baile, e que a via pallida, convulsa, e na maior anciedade que um coração possa ter sentido, esperava tremula e ralada de alma por vêr de novo o que já vira, e soffrer mais ainda se pudesse!
Pouco esperou.
Guilherme e Thomazia de Villar não tardaram a apparecer de novo; dirigiram-se para uma das janellas, e ahi conversaram em muita tranquillidade e harmonia.
-- Devia ter já percebido, dizia a marqueza, que devemos esquecer essa noite! Nenhum de nós amava! Eram os sentidos e não o coração a causa de tal desvario. Aprenda a ser homem de mundo. Saiba difterençar o amor affecto do amor capricho: embriague-se com as lembranças do primeiro, dissipe para sempre os perfumes do segundo.
-- E' pois verdade! exclamou Sophia apertando contra si o braço de Maria: oh, minha pobre Maria, e accusei-te eu de me enganares!
N'esta occasião a dona da casa, a quem seu marido o ministro, tinha por vezes gabado a voz de Sophia de Sousa veiu dar-lhe um beijo e dizer-lhe:
-- Não sei até que ponto seria abusar do favor de aqui a termos esta noite, pedir-lhe algumas notas em nome de todas as damas que aqui se acham, e que me escolheram para sua interprete...
Maria Lucia ia desculpar a sua amiga quando ouviu Sophia responder:
-- Com muito gosto!
E viu-a acceitar, pallida e convulsa cada vez mais, a mão que a dona da casa lhe ofiereceu para a conduzir ao piano.
Maria Lucia só poude então dizer-lhe de relance:
-- Que vaes fazer?!
Ao chegar ao piano e no momento em que cobriu com um annuviado olhar a nuvem de cabeças que se aglomeraram para ouvir aquella voz estimada e celebre nas salas, Sophia experimentou sensações desconhecidas e violentas.
As primeiras notas foram precedidas por um silencio de tal fórma completo que Guilherme e a marqueza, então distrahidos, volveram os olhos pela sala procurando o motivo de tão rapido socego.
Viram então Sophia de Sousa que despediu sobre elles um olhar frio, desdenhoso e gelado, no momento de encetar a primeira aria da Lucia de Lamermoor.
Regnava nel silenzio
Alta la notte bruna...
-- Sophia! exclamou o mancebo, Sophia aqui!
-- Oiça! disse-lhe a marqueza encostando os labios ao ouvido de Guilherme, com uma attitude de intimidade que de proposito planeara para ser vista pela namorada.
E disse-lhe ao ouvido, como se fosse um segredo, não sei que banalidade insignificante como: -- Está um calor de morrer!
Mas Guilherme ergueu-se de um pulo, e apesar de lhe dizer a marqueza:
«Observe que me deixa só!» elle abandonou-a sem se despedir sequer, e misturando-se na multidão foi tomar logar perto do piano, e poude então observar que pallidez da morte branqueava o rosto da donzella.
A aria terminou entre applausos phreneticos. É porque a inspiração e o talento tinham-se revelado na execução musical d'esse trecho, vehementes e sublimes.
Parecia que a alma da cantora se desprendia do envolucro carnal, para voar com aquellas notas magnificas e seductoras para os reinos sublimes da harmonia e da inspiração!
A donzella viu-se cercada de cumprimentos: não dos cumprimentos banaes que seguem sempre uma cavatina em salla; mas havia alli reunidos bons e inteligentes conhecedores de musica, e professores e maestros foram render culto de admiração á donzella.
Guilherme a quem um oculto presentimento dizia que Sophia não viera ao baile sem motivo, e a quem a palidez da namorada deixava adivinhar alguma coisa de fatal para elle, lembrou-se atterrado se Sophia o haveria visto em tão intima conversa com a marqueza de Villar.
Porque o olhar anuviado e triste que a donzella havia volvido para elle, era bem diverso da vista incendiada de paixão e de affecto com que os olhos da namorada sabiam d'antes prendel-o á vida e ás esperanças!
E aproveitando a occasião em que, ao passar ao lado d'elle, a donzella teve de parar para receber os cumprimentos de algumas senhoras, Guilherme disse-lhe com um sorriso aftectado, porque tinha a alma comprimida e irresoluta:
-- Está mal commigo, Sophia?!
A donzella cobriu-o com um olhar de desdem e menos preço, que revelavam mais do que um despeito de amor, significavam que já a frieza havia succedido á paixão, que o olhar ardente, e cego da amante, cedera o logar á vista indifferente da mulher: e respondeu com inflexão gelada:
-- Para sempre!
Momentos depois, Guilherme da Cunha que ficara petrificado pela resposta de Sophia, porque a conhecia bastante para saber que as almas sublimes e crentes como a d'ella teem que atravessar um mundo de soffrimentos para chegar á descrença no objecto da sua adoração, viu n'um como relampago a rápida apparição do seu destino, triste, despovoado e deserto!
N'essa occasião viu entrar o marquez de Villar com Luiz de Lima, e ir apresentar o medico á filha do barão de Sousa, que o recebeu com certo agrado, affectado, sim, mas seductor.
O medico conversou toda a noite com Sophia, e pareceu estar em magnifica veia de espirito, porque a donzella que lhe prestou uma attenção extrema, riu por vezes como que encantada de uma ou outra phrase do doutor.
Era, todavia, um riso nervoso e phrenetico, verdadeiro supplicio para ella que sentia as lagrimas escaldarem-lhe a fronte, impetuosas e fervidas de que os olhos negros da donzella as deixassem correr livremente!
Luiz de Lima a quem a paixão não perturbava as idéas, soube mostrar se verdadeiro homem de bom mundo e conservar todo o espirito de que era dotado; a conversar e a rir elle traçou a physiologia do baile, observou tudo, e não poupou as coisas mais leves nem as pessoas mais respeitaveis.
Maria Lucia, a filha de Melitão Vidueira, apesar da tristeza em que estava por causa de Nini, todavia não poude deixar de se encantar pelos agudos chistes em que abundou a conversa de Luiz de Lima.
Depois de haver falado de mil coisas ridiculas, falou da marqueza de Villar de quem tirou o maior partido para gracejar, tendo em vista, como se perceberá, lisongear o amor proprio de Sophia, porque sabia que para agradar ás mulheres é meio caminho andado partilhar os seus odios e antipathias.
A's trez horas da noite, Sophia de Sousa em companhia de Maria Lucia, conduzidas até ao trem por Luiz de Lima, deixou o baile sem pena, e o amor com saudade; porque ao dizer adeus ao baile teve de dizer tambem adeus á felicidade, que para dia havia morrido ahi n'essa noite!
Guilherme da Cunha desesperado e como louco retirou-se logo: mas uma voz infernal de ironia, lhe disse ao ouvido:
-- Tome cuidado com Luiz de Lima; o senhor tem dois annos de Coimbra, e elle... tem o curso completo!
Era a marqueza de Villar que ia passando pelo braço de seu marido, mas que aproveitou um momento para amargurar ainda mais aquella pobre alma de creança!
Correu logo no baile a noticia de que tinha havido entre os namorados suspensão de garantias; esta noticia sendo enfeitada á medida dos desejos de cada um, é claro que os motivos de tão inesperada circumstancia serviram de thema para mil variações. As preciosas discutiram então entre ironias, a audaciosa pretenção do folhetinista que se julgava com direito a ser amado sem outro titulo mais do que o talento!
-- A litteratura talvez lucre com este desastre, disse uma; tenho ouvido dizer que a desgraça desenvolve o talento dos poetas!
-- São como os grillos, redarguiu outra, que quanto mais fome teem melhor cantam!
X
O senhor advogado Affonso de Mendonça
Desde essa noite fatal para ambos, os dois amantes deixaram de se encontrar no mundo, e desappareceram para elles todas as habituaes occasiões de se avistarem. O mancebo dirigiu algumas cartas a Sophia, mas todas lhe foram devolvidas sem sequer as haver aberto. Guilherme da Cunha sepultou-se então n'uma melancholia sinistra e inevitavel Amava de mais para poder calcular e comprehender o jogo que se havia encetado. Viu apenas em tudo que lhe succedera uma leviandade de mulher, uma inconstancia de namorada, uma das mil traições que a cada passo na vida justificam o que se tem dito e escripto contra a ingratidão das mulheres.
-- Quem adivinhára! disse elle a si proprio.
Phrase dos espiritos fracos que não observam nem preveem.
Tentou distrahir o seu espirito afflicto, nos divertimentos e nas intimidades sociaes; debalde!
Tudo lhe lembrava Sophia; e todavia elle fugia agora d'essa idéa com o mesmo ardor, com a mesma vehemencia com que outr'ora a procurara.
Ao principio d'essa cruel situação que a sua alma experimentou, elle havia querido por vezes, de longe e sem ser visto, procurar occasião de a ver passar de relance na americana, de a contemplar no camarote, escondido por detraz de uma das columnas das varandas do theatro, de a vêr um instante que o certificasse de que ella vivia ainda e que não sahira de Lisboa.
Mas debalde tambem tentou conseguil-o.
Acaso ou proposito, a namorada antiga do mancebo parecia evital-o com singular empenho.
Foi triste e dolorosa a existencia de Guilherme durante esses longos dias sem sol para a sua alma.
A esterilidade de acontecimentos que durante esse periodo teve logar seria fastidiosa, se quizesse minuciosamente contar se n'este capitulo a vida de um homem que andava sempre só, que por toda a parte procurava uma mulher sem nunca a encontrar, que só se demorava nos espectaculos o tempo suficiente de se assegurar se essa mulher ahi estava ou não, que recolhia para casa ás dez horas da noite, que não sahia de casa todo o dia, e recomeçava á noite as pesquizas da vespera!
Tal foi a vida de Guilherme desde a noite da soirée em casa do ministro da America, em principios de Março, até aos primeiros dias de Maio, isto é, dois mezes depois, quando o mancebo partiu para a cidade do Porto com o fim de passar ahi um mez, e distrahirse.
Foi causa d'esta partida para a cidade eterna , o ter Guilherme ido visitar um amigo, e sair de casa d'elle gravemente aborrecido. Este amigo, Affonso de Mendonça, natural de Vermelha, terra perto da de Guilherme, estava já a este tempo advogado. Guilherme procurava-o para conversar, porque como elle dizia comsigo:
-- E' um moço que conhece o amor; e esta circumstancia é mais rara n'um homem do que parece á primeira vista! Hei de encontrar na amisade consolação pelo que o amor me não deu!
«Ainda bem, ao menos, que me resta um amigo! Um amigo d'infancia! Uma alma ardente, apaixonada e sincera! Um poeta!
E scismando n'isto, chegou á rua Nova do Almada onde morava o seu amigo. Depois de ir dar parte, o criado que lhe abrira a porta introduziu o n'uma ante-sala de espera, e disselhe que o «senhor doutor» estava escrevendo, e lhe pedia desculpa de ter que se demorar dez minutos antes de apparecer.
O mancebo parecendo-lhe muito dez minutos, escreveu com o lapis da sua carteira n'um bilhete de visita, por baixo do seu nome, -- do Carvalhal.
E mandando o criado levar o bilhete, ficou dizendo comsigo:
-- Em sabendo que sou eu, vem sem demora! E, olhando para um relogio de parede que estacionava em frente da sua cadeira, viu dez horas.
Ao bater do meio dia, claro é, duas horas depois, o advogado Affonso de Mendonça appareceu.
-- Como soube que eras tu, demorei-me um pouco mais, porque a amisade prescinde das formulas estabelecidas pelo uso...
Este contra-senso de máu gosto produziu em Guilherme o effeito de o metterem n'uma sorveteira -- ficou gelado.
Depois de um aperto de mão, porque nem um abraço deram, Affonso de Mendonça perguntou-lhe:
-- Tens tido noticias de tua mãe?
-- Tive carta ha tres semanas.
-- Vive ainda no Carvalhal?
-- Ainda, replicou Guilherme despeitado, exactamente como a tua vive ainda na Vermelha!
-- Coitadas! disse o advogado: teem tomado amisade áquelles logarejos. Estás empregado?
-- Não, respondeu Guilherme.
-- Deves tratar d'isso, na tua edade é preciso procurar uma posição!... E' verdade, cá tenho visto alguns folhetinzinhos (zinhos!), tenho gostado...
-- Ah! tens gostado, retorquiu o mancebo que principiava a não poder aturar o pedante que encontrava no amigo d'outr'ora, estimo bem que tenhas gostado, e vou-me embora!
-- Já te vaes! Emfim, não insto, porque os meus affazeres impedem-me de cavaquear como d'antes! Cada vez que quizeres, esta casa... Quando escreveres manda lembranças...
-- A minha mãe que está no Carvalhal? disse Guilherme -- E a ti peço-te o mesmo para a tua, que está na Vermelha!
Depois, quando chegou á rua, respirou, porque até então como que abafava.
-- Está gordo e tolo! disse. Falou-me em tudo que poderia affligir-me! Na minha terra, em não ter emprego, em estar sem posição... e em ter escripto folhetinzinhos (zinhos)! Ah! Lisboa, Lisboa, como tudo me aborrece aqui.
Como ainda não tinha almoçado, dirigiu-se a um botequim para remediar essa falta.
E em quanto lhe preparavam a torrada, agarrou n'um jornal e distraiu-se a lêr os annuncios: leu primeiro o de um livro de Camillo Castello Branco que Guilherme considerava como a mais ardente imaginação de Portugal, e a quem de ha muito tempo desejava conhecer pessoalmente; depois deu com a vista n'estas quatro linhas:
PARA O PORTO
O VAPOR LUSITANIA
Commandante Luiz Burnay
Sáe para o Porto sabbado, 25 do corrente, ás 4 horas da tarde.
-- Não faça a torrada! gritou o mancebo para o criado.
-- Pão frio e manteiga?
-- Nem isso! retorquiu Guilherme levantando-se; vou tirar passaporte, não tenho um instante de meu. -- Parto ás quatro horas para o Porto!
XI
Ritinha
É tempo de tornarmos a encontrar a dançarina Ritinha com quem o leitor fez não agradavel conhecimento na noite de Domingo Gordo, durante a memoravel ceia em que a rapariga impacientou o barão de Sousa apaixonando-se por Luiz de Lima.
Ora! apaixonando-se!
Eis o que o leitor exclama agora, possuido de todas as ídéas que tem ouvido a respeito da friesa e fingimento das dançarinas.
E tem rasão o leitor! Mas tambem eu tenho rasão, e tambem tinha rasão Ritinha, porque Ritinha era portugueza, e as dançarinas portuguesas não se parecem com nenhumas outras dançarinas, assim como as dançarinas em geral não se parecem com nenhumas outras mulheres!
Á légua percebo eu já que o leitor que se admira que Ritinha se apaixonasse, é dado a leituras de romances francezes, e vê as pessoas e as cousas pelo prisma atravez do qual Balzac e Dumas as apresentam.
Não seja assim, leitor! as Malaga, as Jenny Cadine, as Tullia, as Elodie Chardin, as Cerabine, as Josepha Mirah, todas essas mulheres de theatro das novellas que arruinam fortunas, dissipam thesouros, e são causa de mil suicidios, não sei bem se apenas existem nos romances ou se tambem Pariz as conhece na vida real; o que sei é, que das nossas mulheres de theatro, a essas prodigas heroinas que a litteratura festeja, vae tanta differença como de uma torre a um poço!
Para que Ritinha não pareça um typo falso, e para que o leitor possa encaral-a como ella deve ser vista, é talvez util que n'um rapido esboço physiologico façamos sentir a quem nos está lendo o que são as mulheres de theatro de Lisboa.
Comecemos pela actriz.
A actriz, em Portugal, não é como a dançarina: uma ave de arribação. O publico sabe onde ella nasceu, onde se creou, e quasi adivinha onde irá parar!
E' quasi sempre filha de uma comparsa, que lhe recommenda a toda a hora que o dinheiro vale mais do que a virtude, e que, visto a associação ser o espirito deste seculo, não queira ella ser retrograda deixando de se associar.
Já lá vae o tempo em que as artistas dramaticas caiam do throno da scena no balcão do prostibulo. Hoje dá-se o contrario. Sáem agora de logares extremamente profanos para entrarem no templo sagrado de Thalia!
Aprendem primeiro na vida como se é actriz, e depois no theatro já nada teem que aprender para saberem representar!
Hoje a debutante lança as suas vistas ambiciosas para o velho tabernáculo da rua dos Condes. Ahi, um auctor de letra de mão promette protegel-a, e para principiar dá-lhe um papel para o seu debute. E' quasi sempre um papel de fidalga em que ha serias despezas de vestuario a fazer, e que, sendo a comedia de epocha contemporanea, compete á actriz vestir-se á sua custa.
As debutantes são sempre as sacrificadas a taes papeis, não só porque as actrizes não querem aceital-os, mas tambem porque as debutantes gostam mais de uma peça em que a elegancia e primor da toilette tenham tambem os seus recursos, e entretenham por momentos a attenção, e o espirito dos espectadores.
Certo é que estava eu dizendo que um auctor de letra de mão a soccorre com uma peça para o debute. A actriz passa as primeiras provas publicas (primeiras!) e, applaudida com fervor por uma platéa animadora das reputações ainda virgens, pede no dia seguinte á empreza um beneficio, e aceita a corte de alguns dos directores. Estes senhores são sempre excessivamente attenciosos com as debutantes, e empenham-se, não sei porque em lhe merecerem diante de gente um sorriso, ou um aperto de mão. Antes de subir o panno vel-os-heis á roda da pobre neophita, a qual d'elles será mais insipido em elogios, e de peior gosto em offerecimentos.
A proposito de offerecimentos, uma historia que vem ao caso.
A acção teve logar no Caes do Sodré (foyer) de certo theatro de Lisboa.
E' difficil explicar até que ponto as nossas actrizes são destituidas de espirito e de finura. Certo é que um brasileiro cineo ou seis vezes millionario, deixara-se apaixonar por uma das nossas mais conhecidas damas de theatro: era talvez um amor perfeitamente de arte, e incitado apenas pela regularidade e correcção de formas que se observava na tal divindade. Ella era linda como uma estrella, e, diga-se assim, estupida como uma taboa!
O triste da historia é ter que lhes dizer que o brasileiro não era amado. Havia um rival preferido, rapaz de qualidades apreciaveis sobresahindo entre ellas a de não ter onde cair morto.
Uma noite representava-se, não sei que comedia em que a deusa não entrava; o brasileiro foi até ao palco admiral-a por um quarto de hora.
Estava a actriz tão linda, tão linda que o brasileiro sobresaltou-se. E apertando-lhe a mão, conduziu-a justamente á entrada do Caes do Sodré do theatro, e encostando-se ao piano, disse-lhe com voz tremula de affecto, com expressão de loucura amorosa:
«Pede o que quizeres, mas ama-ma! eu sou rico, na minha terra: Rio de Janeiro não é Lisboa; quem lá é rico, póde ser riquissimo aqui. Os lisboetas são os Lazaros, e os Jobs d'esta epocha; melhor ainda, são os gatos que lambem as espinhas do peixe que nós aqui vimos comer! Pede por boca! Sou um homem poderoso, posso dar-te tudo, entendes? tudo que tu desejes! experimenta, olha que eu não sou di cá: vamos, o que queres?
A actriz foi sublime de parvoice. Quiz pedir alguma coisa muito cara, rara, e quasi impossivel, mas nada viu em roda de si que custasse muito dinheiro.
Ergueu a vista, e pela janella do Caes do Sodré do theatro, só viu a amplidão de uma noite formosissima, e a lua que brilhava no horisonte prateada e magnifica.
«Ah! exclamou a actriz, como Archimedes gritou euréka, achei!
«O que! dize! ordenou o brasileiro todo ancho da sua importancia.
«Quero a lua! -- gritou a actriz com uma expressão parva, estupida e ambiciosa.»
Terminada a historia, adiante!
A atriz consegue captivar um director, como lhes disse, e, antevendo um futuro côr de rosa, descança nos braços do amor, para acordar nos da gloria!
Todavia, cuida o leitor que bastará á actriz possuir o director que escolheu? não, mil vezes não! porque se elle lhe serve para os interesses da vida, para os interesses do coração não póde servir-lhe.
Chega então um rapaz de vinte e tantos annos, escriptor de comedias, ou mesmo simples espectador, e a actriz que adora os cabellos loiros, ou que morre pelos castanhos, que delira perante um bigodinho que vae desenvolver-se, ou fica doida por uns olhos vivos e scintillantes, exclama uma noite em pleno camarim, como o Cesar romano exclamou um dia em pleno campo de batalha:
«Cheguei, vi e venci!»
Porque foi ella que se chegou para o joven interessante (estylo de actriz): foi ella quem primeiro o viu, e foi ella em fim quem no jogos do amor soube levar a palma, e vencer!
Mas o amante da actriz é a destruição da sua gloria, e até o inimigo do seu futuro Ella vae pensar n'elle, mais do que no publico: dar-lhe mais importancia do que aos dramas originaes! cogitar mais nas representações familiares e domesticas do que nas recitas obrigadas a um publico benemerito!
E dahi a dias já ella não póde conservar bem de cór um papel!
E dahi a semanas já os conhecedores, e os criticos do jornal, dizem sentenciosamente: -- a sr.ª Fulana não comprehendeu o papel!
Depois, n'uma linda madrugada, a actriz semipurificada pelo amor, apresenta-se de repente com tendencias para a economia. Apparece em trez dramas com o mesmo vestido, em sete comedias com o mesmo chapeu, em dois actos de baile com as mesmas luvas brancas, e os mesmos enfeites de cabeça! o publico principia a rosnar -- Fulana está-se vestindo mal!
Mas o peior da festa é que a actriz decide-se quasi sempre a ser tambem economica nos recursos da arte. Receia despertar ciumes ao seu amante representando as scenas amorosas com muito calor de paixão e olhando com ternura para o actor, a que se chama galan...
E para evitar, esse perigo, a actriz diz:
«Eu adoro-te!»
Como quem diria:
«Vou até ao Rocio!»
E ainda para evitar o mesmo escolho, a actriz quando tem que indicar o coração dizendo:
«A tua imagem está sempre aqui!» abre os braços e substitue o coração pelo tablado: aponta para o palco, para os bastidores, ás vezes até para os comparsas, ou para o lustre do theatro, mas nunca para o coração.
Oh! prodigios do amor!
A actriz, pede a verdade que o digamos, é uma creatura pacifica, e morigerada. A sua existencia não tem nada de fabulosa, nem se torna notavel pelos prestigios de uma vida prodiga, ou pelas irregularidades de caracter que são quasi sempre condição infallivel das grandes vocações.
Se a encontrardes pela rua, não observareis nella o mais leve indicio que possa revellar uma mulher extraordinaria, como diria um hespanhol: uma mulher superior, como diria um francez: finalmente uma mulher fóra do commum, segundo a expressão mais vulgar do povo. Veste-se tão simplesmente, ou, direi melhor, tão desleixadamente, que não desperta as attenções, nem captiva quem a encontra, nem interessa a quem a vê. E' quasi sempre o typo d'uma burgueza não totalrnente honesta, excepto quando só parece uma soffrivel criada de servir.
Anda só pela rua, quasi sempre a pé, e parando de vez em quando diante das vidraças dos ourives. E' esse o segredo da indole dessa casta de creaturas, o oiro! A dançarina namora durante dias um chapeu, um mantelete, um bouquet falso: a actriz só namora o mostrador dos ourives! Para ellas o oiro de lei, é a unica cousa verdadeira na vida. Se lhe dá alguem um annel, uma pulseira, um botão, a actriz perguntará logo:
-- «Onde está a marca?»
Creaturas patriarchaes, e de solida sizudez, comem, bebem e divertem-se como as modestas burguezas do bairros onde a moda não quiz ainda penetrar.
Se não vão ás hortas como a gente de baixa esphera, vão a Carriche como a gente de meia tigéla! Apparecem em Cintra raras vezes na sua vida, e quando lá chegam a ir, teem mais curiosidade de comer na casa do Victor, do que de visitar Sitiaes! Para ellas os comes e bebes constituem o supremo prazer da vida.
A actriz quasi sempre sabe lêr mal, e escrever peior ainda.
Ha exemplos de actrizes de primeira ordem não saberem lêr, e aprenderem os papeis de ouvido. A nossa mais popular, e illustre actriz, foi por esse modo que estudou o papel do seu debute.
Não acreditam na grammatica.
Para ellas, pontos e virgulas, é um luxo de ociosos: a syntaxe é um mysterio que não querem profanar: a orthographia um systema de pedantes, a que não querem sujeitar-se!
São victimas forçadas da sua propria indole; rala-as a inveja, e dilacera-as a pretenção.
A dançarina contenta se com palmas: a cantora com coroas de flores, e alguns artigos nos jornaes. A actriz não se contenta sem ter os melhores papeis, e em todas as peças!
Economicas, e morigeradas, gastam o melhor tempo da vida sem disfructarem o que teem, para accumularem lentamente uma fortuna que poucas vezes lhes serve, porque morrem antes de a aproveitar. Compram predios, teem inscripções na Junta do credito publico, e muitas vezes até emprestam dinheiro a juros!
Enthusiasmae-vos agora pelo prestigio dessas creaturas que na mesma noite são rainhas, e criadas de servir: hoje anjos, ámanhã demonios: agora Beatrizes, logo Margaridas de Borgonha! Enthusiasmae-vos agora que vol-as mostrei como ellas são quando sáem da scena, quando não teem côr no rosto, quando tiram as pulseiras de oiro falso que vos enganou, quando deixam de repetir as palavras que outros juntaram, as idéas que outros conceberam, e que vão para casa falar das companheiras, das escripturas, dos interesses, de tudo menos da arte!
Termine-se em fim este esboço por uma verdade desagradavel: as nossas actrizes teem conseguido tudo, menos saber representar!
A cantora portugueza sahe dos córos de S. Carlos. Isto é uma sentença que, aos olhos fechados, vale bem os creditos de aphorismo.
A cantora portugueza é um ente inclassificavel, e que escapa ás observações physiologicas: para ellas a musica é um ganha pão: medem as dificuldades da arte pela carestia dos generos. Cantam de mesmo modo que as beatas fingidas resam: sem inspiração. A maior parte das vezes uma aria d'ellas é um perfeito jejum para o espirito, não sentem a musica, e não fazem sentir as palavras. Deploravel!
A actriz portugueza viveu por largo tempo persuadida que era uma grande cousa, e o publico persuadido que ella não prestava para nada: mas certo dia o publico observou que ainda havia cousa peior do que uma actriz portugueza, e concluio affiançando que, essa cousa ainda peior, é a cantora portugueza!
Como este paiz é pouco apreciador de quem canta... mal, a opera-comica entre nós nunca poude persistir: por isso as vocações musicaes das primas-donnas de Portugal costumam apenas ter mais amplo desenvolvimento em crise de revolução, ou de paz fresquinha, cantando o hymno com grande alvoroto de nacionalidade, e desafinando com franqueza? porque n'essas noites de enthusiasmo patriotico ninguem faz ceremonia em dar uma nota por outra, e só as do banco é que ninguem acceita falsificadas!
A cantora nasce quasi sempre em casa de sua mãe, excepto, isso é raro, quando nasce em casa de seu pae. Explica-se este phenomeno pela circumstancia de quasi nunca os auctores de seus dias morarem debaixo das mesmas telhas.
Passa os primeiros annos da sua vida mediocremente, revellando imperiosa vocação para a musica, cantarolando, e até desafinando diversos trechos que apanhou de ouvido; cultivando o estudo de qualquer instrumento, conforme as forças da fortuna de seus paes lhe permittem, do que resulta uma tocar piano, em quanto outra, mais pobre, toca berimbau.
Em Portugal os paes e as mães não são amadores de musica, e ainda menos de musica em sua casa, por consequencia é raro que para aproveitarem o talento musical de uma filha, mandem a toda a pressa chamar um mestre de canto, e, por consequencia tambem, a filha vae crescendo em annos e em disposições vocaes, e ás vezes tem já trinta annos e ainda então repara que tem boa voz!
Outras, graças aos disvellos paternos que não se pouparam a sacrificios com a esperança de ganhar algum vintem com a filha fazendo-a chegar a corista em S. Carlos, ou a prima donna na Rua dos Condes, mandam ensinar-lhe quantum satis para cantarollar «felicitá» n'um grande finale de alguma velha partitura, ou para entoar um couplet ao publico antes do cair do panno nalguma comedia que até o auctor tinha em tão mau conceito, que entendeu que só a pedido especial seria possivel applaudil-a!
O que póde e deve dizer-se, e até em estylo secco e conciso de aphorismo, é que a cantora portugueza sae de toda a parte, menos do conservatorio.
Era talvez agora occasião magnifica para escrever uma catilinaria de Deus nos acuda contra o nosso memoravel conservatorio: mas o que podessemos dizer a esse respeito havia de ser com seriedade, e com razão, e o publico já se habituou por tal fórma a rir-se do conservatorio, que falando nós d'elle por mais seriedade que empregassemos os leitores logo se riam!
A dançarina portugueza não tem historia.
Começou a apparecer depois da descoberta do algodão, porque vio que o algodão é tudo para a dançarina!
Sem elle as fórmas não são susceptiveis de servir de modelo, e as pobres creaturas dificilmente estarão satisfeitas de si, pela dilacerante idéa de que os espectadores podem aperceber-se de algum pequeno defeito de forma na perna, ou no seio! Depois de Deus, quem mais contribuiu para o destino da dançarina, foi o algodão.
Deus creou a mulher, o algodão completou-a!
O progresso tem feito milagres de tal ordem, que a dançarina portugueza até já sympathisa com o sacramento do matrimonio, já consente na infallibilidade das bençãos da igreja, e já consegue engordar, e ter filhos!
Oh! prodigio!
A dançarina de Lisboa é quasi sempre filha de uma mulher do theatro, não excluindo poder dar-se a circumstancia de o pae pertencer tambem a tão brilhante templo.
Em creança exercita-se nas aulas do conservatorio, que tem a particular qualidade de para nada servir, e depois na noite dos exames publicos faz duas vulgaridades da arte, que toda a gente imagina, como estender uma perna, ou dar um pulo, e poucos mezes depois faz d'anjo n'uma dança biblica, ou de pagem n'um divertissement. Tão novas começam a ganhar dinheiro, e tão pouco dinheiro começam a ganhar, que isto serve-lhes de uma especie de aviso, de que não ha de ser só pela dança que a sua fortuna se tornará esplendida. N'esta crise exclama a mãe «tomara-a eu já com doze annos!»
Esta phrase marca o destino da dançarina. Destino triste para a sua velhice, para a sua saude, e para o seu coração!
A dançarina aos treze annos acha-se vendida a um homem que não ama, e que lhe arranca, comprando-a, o viço da sua juventude, e o fulgor da sua vida! De ordinario a mãe vende-a a algum inglez que frequente o palco; apreciador das artes em geral, e da arte da dança em particular. A pobre rapariga é sacrificada aos calculos especulativos de uma mãe asquerosa, e tomando de repente uma decisão heroica, vinga-se da mãe e do destino, prejudicando por travessuras amorosas, a airosidade da cabeça do seu possuidor.
O escolhido para perturbador da felicidade do proprietario, é quasi sempre um rapaz de vinte annos que tenha influencia n'alguma cousa de que dependem os destinos da dançarina, na platéa, ou na imprensa.
Ha de ser um ente temido, pela saliencia ruidosa em que exercita os tacões das suas botinhas, ou pela severidade das suas criticas jornalisticas, que o constituam aos olhos da gente de theatro um inimigo perigoso. Ha de gosar das prerogativas de valente, ou dos brilhantes foros de homem de talento: ou dilletanti ou escriptor: ou ha de ter penna, ou chicote!
Commettida a primeira infidelidade, á dançarina habitua-se ao sabor do pomo prohibido, e arremeça-se de corpo e alma á carreira dos amores diversos. Hoje é d'um ministro que aprecia os encantos do tacté, e perscruta os segredos do balloné; um mez depois tem um amante que se faz amar por seus dotes naturaes, e gasta com elle em Champagne, que lhe offerece ás sobremesas de jantares elegantes, o dinheiro que adquiriu com o ministro, que a deixou.
E' uma vida esplendida de aventuras, e de amores.
A doidice e a prodigalidade constituem os elementos principaes da historia da dançarina. Em quanto ao mais são sempre as melhores almas d'este mundo, francas, generosas, e apaixonadas mesmo. Custa-lhes mais pedir uma pulseira valiosa ao conde do que vendel-a para dar um presente a Augusto. Ninguem é tão capaz como ellas de arruinar um homem rico: ninguem é mais capaz do que ellas de se sacrificar por um amante pobre.
Clara perde um partido vantajoso por não ter alma de abandonar o seu escolhido. Emilia quebra uma escriptura para fazer a vontade ao seu amante. Caracteres sympathicos, fadadas para a ventura dos rapazes, e para a prosperidade das modistas!
E' feliz em quanto está na moda. Felicidade de momento, que o mais leve capricho de um adorador despeitado, ou a mais terminante insinuação de uma rival invejosa póde destruir e matar!
Depois, vive nas alternativas do acaso. Hoje tem palmas, julga-se feliz. A'manhã pateiam-n'a, e quer deitar-se da janella abaixo! Isto dura até aos vinte e oito annos. Aos trinta annos já não ha dançarina possivel, excepto aquella que ainda o poderá ser aos quarenta. E' a historia da Mabille.
O amante da dançarina é sempre o principal motor do seu destino: ou a illustra, ou perde-a. Alguns querem antes perdel-as no conceito publico, do que illustral-as: teem assim maior certesa de que não hão de abandonal-os!
O amante da dançarina que a illustra, é quasi sempre um homem de mundo, que tem caleche, assignatura na superior; visita sempre alguns camarotes, mas não vai nunca para a frisa dos rapazes, e pouco tempo se demora no palco. Gasta com ella em vestidos, em pulseiras, em pantalonas de seda, em enfeites, e n'um coupé effectivo, cincoenta libras mensalmente.
O amante da dançarina que a perde, é de ordinario um rapaz de quem ella gosta, que não tem eira nem beira, mas que se tornou influente em questões de theatro.
Está quasi sempre no palco, não desampára um ensaio, e quando vai ser espectador, o seu logar é sempre nos primeiros bancos de entrada da geral, ou n'uma frisa de bocca, que alguns amigos teem d'assignatura. Pede palmas para a sua bella, e afiança que ella é a mais ligeira das sylphides, e que faz inveja aos gnomos. Ralha com ella diante de gente, para se fazer admirar e se ella alguma vez apparece com uma nodoa roxa n'uma face, não falta quem diga que foi resultado d'uma inspiração bellica que este ente executou na cara da sua deidade! Em quanto uma se eleva pela fortuna de um dissipador, a outra infelicita-se gastando até ao ultimo real do seu ordenado para poder apresentar-se.
Uma recebe pulseiras do seu amante, a outra dá-lhe ás vezes os anneis que elle lhe gaba.
A primeira, quando se retira do theatro por velha, ou cançada, ou por já não precisar d'elle, vive ainda no mesmo esplendor, e morre feliz como viveu. A outra, quando o publico se enfastia d'ella, mendiga escripturas, e vê fugirem-lhe os sorrisos dos empresarios, e fecharem-se-lhe as portas dos theatros, que d'antes a ambicionavam.
Umas veem-se reduzidas então a fazerem parte das segundas do corpo de baile; outras acabam de perder-se.
Eis em resumo a historia da dançarina de Lisboa. Ellas seriam sempre mais felizes, se podessem passar sem ter tido mãe Infelizmente a natureza oppõe-se a este prodigio!
Terminados estes esboços phisiologicos das mulheres de theatro, prosigamos a nessa historia.
A aventura da ceia de Domingo gordo e a paixão á queima-roupa com que Ritinha assaltou o medico, deu-lhe a elle tão pouco que scismar, que de certo no dia seguinte haveria esquecido que ella lhe déra rendez-vous para o ensaio da manhan, se não acontecesse passar uma carruagem conduzindo uma linda menina cuja phisionomia não pareceu estranha ao medico, na occasião em que Luiz de Lima estacionava á porta do Centro Commercial. A carruagem cortou pela rua do Oiteiro e seguio com muita velocidade,
-- Quem será esta bonita menina que passou n'essa carruagem? perguntou o medico a um amigo com quem estava cavaqueando.
-- E' a pequenita do barão de Sousa, a Ritinha de S. Carlos!
-- Ah! disse o medico recordando-se do rendez-vous, pois é ella! bem me pareceu conhecel-a!
E dirigiu se ao theatro.
N'esse tempo a entrada no palco de São Carlos facultava-se a toda a gente. Era o bem parado de todo o rapaz que não tinha em que entreter uma manhan. Conversava-se com as dançarinas, fumava-se com os cantores, ameaçava-se o empresario, e o certo é que -- de tudo o que se fazia menos, era ensaiar!
O governo, ao tomar a empresa, deu outra face á medalha, e se até então havia entrado toda a gente, de então para cá ninguem mais entrou!
Luiz de Lima appareceu no palco, e d'alli a um instante Ritinha estava a seu lado conversando com muita vivacidade e ardor, o que equivale a dizer que cinco minutos depois já toda a gente do theatro sabia que o medico tinha apparecido no ensaio por causa de Ritinha.
Conversaram por muito tempo, passeando por uma das coxias do palco, e é natural que dissessem algumas amabilidades das que se dizem entre bastidores, decentes sim, mas positivas -- onde e quando? -- por exemplo.
Luiz de Lima instou muito para que a dançarina lhe explicasse a que devia elle a fortuna de lhe haver agradado: mas Ritinha encolheu os hombros, e respondeu com um lindo gesto de ingenuidade:
-- Isso não sei!
Houve juramentos e promessas como sempre ha durante os ensaios. E depois de dizerem mil coisas agradaveis um ao outro, prometteu Ritinha receber o medico essa noite depois do theatro, porque o barão tencionava ir para Cintra; e Luiz de Lima beijou galantemente a linda mão da dançarina, todo ancho da sua primeira conquista de bastidor!
A' noite, depois da dança, esperou-a junto da chamada porta do Picadeiro: algumas dançarinas que sahiram primeiro do que Ritinha observaram logo o vulto que alli estacionava e reconheceram o medico.
-- E' o d'esta manhan! disse uma.
-- Acabaram-se-lhe as virtudes! redarguiu outra. Tanta impostura de se comportar bem, para ceder de repente!
-- Quem sabe as condições! exclamou aquella; elle tem nariz de quem tem dinheiro!
N'esta occasião a Ritinha appareceu com a cara meia encoberta por uma manta, não olhou sequer para o sitio onde Luiz de Lima a esperava, e entrou para a carruagem que todas as noites a conduzia.
As dançarinas a quem esta estrategia enganou disseram então entre si:
-- Doida seria ella se quizesse perder o barão, por alguns amores sem resultado! Este melro veio rondar, mas tem que se ir embora levando apenas o frio que apanhou!
Um instante depois, um pequenito, um d'esses gaiatos de que o palco de S. Carlos tem ainda maior numero do que de bastidores, veio surrateiramente encostado á parede e disse ao medico, que olháva pasmado a carruagem da dançarina desapparecendo a seus olhos:
-- Diz a menina Ritinha que vá o senhor lá a casa porque o senhor barão quiz por força que viesse a carruagem buscal-a!
Luiz de Lima, que ignorava completamente a vida de bastidores, desconfiava de tudo e exigiu do gaiato que elle o acompanhasse; mas a resolução com que o pequeno se prestou a isso, desvaneceu-lhe toda a idéa de desconfiança, e obedeceu ao que se lhe ordenava da parte da menina Ritinha.
A dançarina esperava-o effectivamente e logo que ouvio passos na escada, veio ella propria introduzil-o.
Pela meiguice, pela ternura seductora com que o tratou, Luiz de Lima disse comsigo:
-- Porque embirraria esta pequena commigo, se deveras não finge nas mil pieguices d'amor que está pondo em pratica?
A rapariga não tirava os olhos d'elle, ora o abraçava, ora lhe beijava as mãos, as faces, os olhos... Era o amor em toda a fúria indomavel!
-- Quem era ultimamente o teu amante? perguntou-lhe Luiz de Lima.
-- Eu nunca amei ninguem, e nunca fui amada, disse a dançarina. Teem-me desejado por capricho, por amor proprio, por devaneio, nunca por amor! Entrego te um coração que pela primeira vez se incendeia, e que na edade dos caprichos e dos amores, tem passado adormecido sobre os amores e os caprichos! Este coração de uma pobre rapariga que te não póde dar nem mesmo a felicidade do amor, porque nem te leva a gloria nem te lisongeia a vaidade, duas coisas de que o amor vive tanto! este coração que acorda aos desoito annos impressionado pelo ecco das tuas idéas, e commovido pelo som da tua voz, este coração pede-te pouco: pede-te uma palavra d'amor e um olhar de ternura, da ternura dos amantes que vive da poesia de um affecto, e não da prosa interesseira de um sentimento que degrada a mulher a quem apenas se deseja e a quem não se ama!
Luiz de Lima principiou a conhecer que se havia enganado com Ritinha; ainda assim uma idéa cruel veio desvanecer essa impressão: -- haverá calculo n'esta ingenuidade de bastidor?
Mas a voz de Ritinha tinha um não sei de argentino que parecia a voz pura e serena que deve ter uma mulher que não mente. Depois, n'aquella edade representar já com tanta aptidão! -- Não devia ella ser discipula de Antonio Cypriano? -- Mas, que fito podia condusil-a a intentar o assalto a um tão inutil reducto! Toda a gente conhece a minha fortuna! E d'ahi...
Mil idéas desencontradas lhe enlearam o espirito.
Mas a bellesa é um dote fatal, porque todo o homem que é um pouco artista pela intelligencia ou pelo coração seduz-se pela belleza exterior. E Ritinha era uma phisionomia admiravel, para quem adora a mulher loira, alva e rosada. Um poeta achal-a-hia vulgar e insignificante, mas para os que vivem mais pela cabeça do que pelo coração, a dançarina realisava o typo da phisionomia angelica!
O medico contemplou-a como encantado, mas emprehendeu ajuisar da sinceridade d'aquelle sentimento, ou da astucia d'aquelle engano. Com voz glacial e expressão regrada e serena, disse-lhe então:
-- Amedronta-me a idéa de que posso ir quebrar a sua felicidade de toda a vida, por um devaneio de que depois póde arrepender se quando mesmo elle constitua a sua felicidade de alguns momentos. O barão se um dia suspeita ou lhe consta que lhe é infiel, de certo a abandona ao homem com quem o atraiçoou Esse homem, não posso sêr eu! Sem fortuna, e até já sem a resolução e a força que as edades verdes só possuem para emprehender obtel-a, eu poderia apenas constituir com semelhante passo um dissabor para a minha consciencia e uma desgraça para o seu futuro! E' realmente de muito máu tom um homem suscitar difficuldades quando uma mulher as não distingue, mas se os desoito annos são tão cegos como o amor, os trinta tém tanta vista como a experiencia!
A rapariga interpretou como impulso de generosidade d'alma, o que os labios frios do medico proferiram para a experimentar. -- Depois do que acabo de lhe diser, ponderou Lima de si para si, nenhuma phisionomia de mulher deixa de revelar a idéa que a domina. Ou me julgava rico e vae desistir, ou anda n'isto algum plano, e no pretexto de que vae servir-se para teimar, adivinharei talvez...
Mas a rapariga ficou calada, e um instante depois rebentaram-lhe d'aquelles olhos azues e vivos lagrimas espontaneas e sinceras que os tornaram tristes e melancholicos.
Luiz de Lima esperava tudo menos lagrimas, e todavia era o pranto a mais eloquente resposta que elle poderia antever!
-- Sabes o que é uma mulher perdida ? Um ente odioso a quem se acaricia agora n'um instante de esquecimento, e a quem logo se repulsa quando volta a lembrança do que ella é!
«E todavia se tu soubesses o que soffri!
«Hão de ter-te dito que uma mulher perdida não tem consciencia nem é susceptivel de amar, não é assim?
«Pois adoramos! No centro da vergonha somos ás vezes grandes: na fealdade do vicio somos ás vezes bellas!
A rapariga fez uma pausa, pareceu reunir todas as suas recordações, depois continuou:
«Fiquei sem pae muito nova. Nem me lembro d'elle! Sei apenas que era muito meu amigo, que brincava muito commigo, que gostava de me vêr dançar, por que eu em pequenina tinha muito gosto pela dança, e d'essa triste vocação nasce talvez a minha desgraça!
«Os primeiros annos da minha vida foram tristes como uma noite escura. Nem quero lembrar-me, nem falar d'elles nunca mais! Minha mãe tinha alcançado que eu entrasse para o conservatorio, e quando tinha doze annos dancei pela primeira vez n'um theatro!
«Eu tinha medo do theatro! disse a rapariga com um olhar flammejante. Medo como d'um inimigo, medo como da desgraça!
«Mas minha mãe teimava, e dizia-me que se eu não fosse para o theatro havia de ter fome outra vez... Porque eu tive fome ainda antes dos doze annos!
«Oh! exclamou Ritinha estremecendo como se essa lembrança agitasse ainda todas as cordas da sua alma: A idéa da fome amedrontou-me! Lisboa tem noites de frio e de chuva que enlutam a alma, e eu tinha conhecido essas noites, porque andara pela rua com minha mãe a apanhar a chuva e o frio!
-- Basta! exclamou Luiz de Lima commovido. Pobre creança, comprehendo agora qual foi o teu passado! Esquece para sempre essa epocha; não vale a pena guardar lembrança senão dos periodos bons da vida!
E' talvez verdade! disse ella; mas a recordação d'esses dias sem luz para a minha alma, ainda ás vezes se apodéra invencivelmente do meu espirito!
«Conheço que não nasci para a vida que me prepararam. No theatro julgam-me uma alma secca e fria: accusam-me talvez de dissipar a fortuna do homem que me protege... Mas Deus sabe bem que por mil vezes tenho querido desligar-me de um jugo que me é insuportavel, e que a mão d'esse homem me ha sempre sustido no momento de o querer evitar!
-- Não o amaste nunca? perguntou Luiz de Lima.
-- Nunca amei ninguem, senão agora! respondeu a rapariga com um olhar sublime.
-- Quem te obrigou então...
Ritinha hesitou em responder.
-- Um capricho talvez! continuou o medico; o desejo de apparecer e de ser vista?
A dançarina soltou um suspiro que parecia vir do intimo d'alma.
O medico proseguiu:
-- A vaidade, de certo! A vingança que as raparigas, que se encontram na vida orfans e desamparadas, querem tirar do mundo pela prodigalidade e pelo triumfo!
-- Não! disse Ritinha tristemente; nada d'isso me levou a perder-me!
-- O que, então?
-- Foi minha mãe que me obrigou! respondeu a rapariga entre lagrimas.
E a dôr que acompanhava a expressão d'essa phrase, não podia deixar de ser verdadeira e sincera.
-- Vendida! disse Luiz de Lima conhecidamente sensibilisado. E o miseravel foi...
-- O barão, respondeu Ritinha. Encontrei me os quatorze annos sacrificada a um homem a quem eu nem conhecia nem amava. Um homem que apenas me tinha visto de longe, que me olhára da platéa e que depois... me comprou!
-- Não quero saber mais, acudiu o medico; serias a melhor actriz d'este seculo se o que tens dito não fosse verdade! Creio-te e estimo-te.
Ritinha beijou entre soluços a mão que Luiz de Lima lhe estendeu.
-- Dá-me um beijo, Ritinha! E' grande o teu poder, e o encanto da tua voz, porque conseguiste acordar uma alma que eu julgava para sempre adormecida! Não sei se te amo já, mas sei que já me interessas, e que nenhuma mulher desde a primeira que amei, e unica! conseguiu ainda que eu sentisse o que experimento agora por ti!
«Todavia, a tua franqueza exige lealdade da minha parte, e quero ser franco tambem para comtigo, Ritinha. Já não estou na edade dos amores excentricos, nem de aventuras que só a mocidade aprecia; posso amar-te, mas não te posso ser util na vida!
A rapariga encolheu os hombros com um gesto de impaciencia e de melancholia:
-- Tambem tu me falas de interesse! disse ella.
-- Não, proseguiu o medico, mas tenho que te revelar uma noticia, eessa noticia póde desgostar te. Vou casar!
-- Por amor? perguntou a dançarina.
-- E se não for por amor ..
-- Senão for por amor... perdôo-te!
Luiz de Lima devorou-a com um olhar já incendiado pelos desejos, e collocou os seus labios tremulos e febris nos labios rosados de Ritinha.
Viveram desde esse dia na mais despreoccupada e suave harmonia d'este mundo. O barão ignorou tudo, e a rapariga principiou então a saber o que era a felicidade!
Quem visse tambem o medico, e observasse com que ardor, com que enthusiasmo cogitava sempre na dançarina, desconhecel-o-hia. O homem frio, calculista e sceptico, achou encanto nas sensações desconhecidas para elle, que a mulher de theatro lhe fez experimentar. Elle não conhecia ainda os amores d'aquelle genero, e, como lhe havia dito José d'Athayde, as fidalgas amam de uma maneira e as mulheres de theatro de outra!
Eram para a sua alma completas novidades, as sensações que o accommettiam quando Ritinha dançava, o desejo de que fosse applaudida e festejada, de ver a sala assestar os oculos quando ella apparecia, os homens devorarem-n'a com a vista, as senhoras desdenharem d'ella devoradas de inveja e despeito!
Quasi seis mezes depois, e sem que um só dia se pudesse ter conhecido na frieza de algum d'elles que o tempo havia passado por esses amores, Ritinha perguntou a Luiz entre dois beijos:
-- E' verdade, meu amor, sempre te casas?
-- De hoje a quinze dias, respondeu o medico.
-- Ah! ah! exclamou a rapariga que não esperava tanta brevidade; pelo que vejo tem corrido tudo bem?
-- O marquez de Villar e a marqueza disseram positivamente ao pae que exigiam este casamento.
-- E a pequena?
-- Não se lhe dá, creio eu. Supponho-a enfastiada da vida de solteira, e como nenhum de nós é amado, ella conta de certo com a liberdade de ambos!
-- E o pae é bem rico?
-- Que fortuna suppoes ao teu velho?
A dançarina chamava ao barão o seu velho.
-- Eu sei! é pôdre de rico.
-- O pae da minha noiva tem tanto como elle.
-- Caspite! has de ter tido dificuldades!
-- Immensas, elle demais a mais antipathisa commigo desde certa noite...
-- Tambem o meu velho! disse Ritinha.
-- Tambem o teu velho, é verdade! repetiu o medico sorrindo-se.
-- E é ainda moço, o tyranno do pae?
-- Tem a mesma edade exactamente do barão!
-- Que de coincidencias! exclamou a rapariga. E é fidalgo?
-- Conheces-lhe ainda melhor o titulo do que eu! Adivinha?
-- Eu sei cá!
-- E' o barão de Sousa!
A rapariga julgou cair das nuvens.
-- Estás brincando!
-- Dou a minha palavra de honra.
A rapariga soltou uma gargalhada, e atirou-se ao pescoço do amante.
-- Pobre sogro! D'ora em diante eu é que hei de governar a tua casa, sim?
-- Tudo que tu quizeres.
-- O que eu mandar é que se ha de fazer, e tua mulher ha de sair quando eu dér licença, sim?
E a rapariga rompeu em gargalhadas, e começou a dar pulos como uma creança a quem se mostra um bonito!
Porque Ritinha era uma d'estas mulheres que nem tém bom nem mau caracter; gostava muito de fazer bem, e gostava ás vezes de fazer mal; capaz de um sacrificio, mas muito capaz de sacrificar! Uma creança!
XII
Por falar se lucra
-- «Quem é este moço que parece tão melancholico, e a quem tenho observado toda a noite, a ponto de poder affirmar-lhe que ainda não lhe vi um sorriso nem um olhar de curiosidade?»
Esta pergunta foi dirigida, no meio d'um baile, por uma das mais elegantes senhoras da sociedade lisbonense, a condessa de Castello Branco, a Ernesto Braga, um dos muitos da sua cóterie, que por felicidade estava toda agrupada em torno d'ella n'essa occasião, e que se compunha de capacidades e illustrações taes como Estevão de Mello, Victor Marrocos, José d'Athayde, Claudio Gama, o marquez de Villar, e outros ainda de menor nomeada.
-- Ah! este moço, respondeu Ernesto Braga, dramaturgo pretencioso, que dava certo tom ás phrases e certa musica ás palavras: este moço ha dois mezes que está fóra de Lisboa! chegou hontem do Porto, creio eu. E' um folhetinista pouco conhecido, que ainda não firmou o seu nome por nenhuma obra de vulto, por um drama... Chama-se Guilherme da Cunha.
-- Elle tem já escripto em politica? perguntou o marquez de Villar, que ia fundar um jornal, e que andava á pesca de um redactor novo, e que ainda não estivesse... conhecido!
-- Não! Tem feito folhetins; respondeu o dramaturgo. Já o tenho aconselhado a que tente algum trabalho importante, que se dedique ao theatro... que medite bem uma obra dramatica...
-- Não é este o que namorava a Sousa? perguntou uma das senhoras do grupo a uma velha fidalga, indicando-lhe Guilherme.
-- Creio que sim: é pelo menos exacto o retrato que me fizeram d'elle: trigueiro, pallido, bonitos olhos, certa tristesa affectada...
-- Perdão, minha querida, disse lhe a condessa, n'aquella tristesa não ha affectação! Gostaria de o ouvir falar; conhece-o, sr. José d'Athayde?
-- Magnificamente, respondeu o noticiarista. E se a condessa quer apreciar o caracter excentrico de que é dotado, será preciso que o incitemos a que elle tome calor n'uma discussão qualquer.
-- Tem talento? perguntou a condessa.
-- Mais do que qualquer de nós, respondeu Victor Marrocos.
-- E' obrigal-o a muito, retorquio uma das damas. Emfim, dirijam-lhe a palavra, oiçamol-o!
E essas boas bas-bleu disposeram-se a escutar Guilherme, com a mesma curiosidade com que desejariam ouvir uma scena-comica no Gymnasio.
-- Estás d'uma tristesa infinita, Guilherme! disse-lhe o noticiarista. Dar-te-has á alchymia, ou cahirias na semsaboria de te apaixonares?
Esta pergunta acordou o folhetinista do torpor e atonia em que se achava. Mas a interpellação era tão pouco parlamentar, que elle respondeu com a gravidade com que César deveria ter dito o -- tu quoque Brute -- ao republicano que o apunhalava:
-- Nem busco o elixir da vida, nem estou apaixonado!
-- Tenta talvez suicidar-se? perguntou-lhe Victor Marrocos.
-- Não vale a pena, respondeu o mancebo. Os Werthers passaram de moda.
«Agora suicida-se apenas algum chefe de familia que se vê a braços com a miseria, sem poder salvar a esposa e os filhos. Os bancarroteiros e os Antonys já não se matam!
-- Fazem-se agiotas? perguntou José d'Athayde: são capazes d'isso!
-- Entregam-se ao acaso ou á fatalidade, divindades mysteriosas que servem como os proverbios, para se ageitarem a todas as situações da vida, para consolarem toda a especie de soffrimentos, e não sei se para contentarem todos os graus do orgulho do homem.
-- Alguma decepção d'amor mergulhou-o na meditaçao, meu pobre philosopho! disse Estevão de Mello.
-- Já tenho typo para o heroe do meu drama! exclamou Ernesto Braga que falava aos outros, a proposito de qualquer coisa, de uma composição dramatica que tinha na forja.
-- Julgas vêr em mim um personagem curioso para fechar alguma scena que a tua imaginação proverbialmente rebelde se recusa a fornecer-te?
«Pois, meu charo, não são os dramas que pintam a sociedade: a sociedade lisbonense é que tenta copiar os personagens dos dramas!
«Em quanto os poetas sobem o Synai para ouvir a palavra de Deus, ficamos nós, mesquinhos idolatras, a incensar o bezerro de oiro.
«O sancto sepulcro da geração moderna existe na nova Australia, e adora-se tambem na Bahia de São Francisco!
«A fé, matou-a o capital. Os sentimentos, esterilisou-os o rigor da sciencia. A industria fez morrer o coração.
-- Já sei a que te destinas! meu ascetico cenobita! disse Estevão de Mello. Fizeste-te humanitario!
«Lançaste-me um trecho que faria honra a Pierre Leroux ou ao proprio Fourier!
«E's o Nicolau Flamel d'este seculo! Buscas o grande problema da nova alchymia nos programmas indigestos da eschola socialista!
-- Socialista! exclamou Guilherme da Cunha, mas quem são os socialistas?
«Socialista foi Alexandre quando conquistou a India, Cesar quando esmagou a republica, Christo a morrer no Golgotha ás mãos dos barões e viscondes da Palestina!
-- Essa tua pretenciosa erudição aos vinte e dois annos, faz-te perder o senso commum, que é o senso mais raro que se conhece! disse José d'Athayde. Pois na Palestina havia viscondes e barões?!
-- Havia, replicou o mancebo, assim como hoje ha scribas e phariseus!
A replica scintilante de Guilherme valeu lhe um bom numero de sorrisos, e correu de ouvido a ouvido o segredinho habitual dos bailes, dito, já se entende, a meia voz para poderem todos ouvir. -- E' um interessante moço!
-- Com que, disse o marquez de Villar encantado de ouvir Guilherme, e querendo continuar a conversa: na opinião do meu amigo, socialistas...
-- Foram Attila, Cromwel, Richelieu, Luiz XIV, Robespierre, Napoleão, e Luiz Filippe.
«Dir-lhe-hei tambem que para mim, socialista é um termo vago, indefinido, inclassificavel! Exprime a associação nascida quer da theocracia quer da oligarchia, quer do phalansterio!
-- Como suppõe então, perguntou lhe o marquez de Villar, sêr possivel regenerar a humanidade?
-- Mas quem fala a v. ex.ª em regenerar a humanidade?
«Os homens são sempre os mesmos, as idéas é que variam! Os seculos são para a vida das nações o que os annos são para a vida dos individuos!
-- Uma palavra em particular, disse-lhe o marquez tomando o de parte no momento em que uma leve pausa do mancebo o favoreceu para poder interrompel-o.
Guilherme da Cunha deixou-se conduzir até junto de uma janella onde ninguem podia ouvir o que se dissesse, e escutou do marquez estas palavras simples e incisivas, ditas n'um tom de mysterio que maior importancia lhe dava:
-- Quer encetar a sua carreira politica?
O mancebo não respondeu logo, e olhou o seu interlocutor com a expressão de um homem que não comprehende bem o que se lhe perguntou. Villar proseguiu:
-- Está moço e tem talento. Não o lisongeio; comprehendo-o e adivinho-o. Conhecia-o de nome, mas esta noite ministrou-me o prazer de o avaliar.
«E' um espirito ardente e perspicaz, a que só falta uma occasião, uma circumstancia para o fazer valer e sobresair.
«Deixe que seja eu o incumbido de lhe facultar essa circumstancia e essa occasião. Não tem côr ainda na politica, nem o seu nome se acha por em quanto ligado a uma idéa ou a uma causa.
«Vou fundar um jornal, e offereço-lhe as columnas d'elle para campo das suas estreias.
«Pelo folhetim não poderá nunca fazer carreira, porque o folhetim como elle se usa em Lisboa, só pode ser util a uma actriz ou a uma cantora, mas nunca terá importancia para o governo ou para o ministerio.
Tente um caminho. Para quem nunca escolheu, está sempre a tempo de preferir. Quer ligar-se ao nosso partido e tornar se o sustentaculo da nossa causa?
«Tudo se encaminha a que triumfemos, e um jornal póde salvar-nos. E' nos preciso um talento viçoso e emprehendedor!
«Um jornalista gasto e usado já nada conseguirá dos animos; mais facilmente deslumbrará o ardor de uma phrase vigorosa, e o prestigio de um nome novo n'estas lides.
«Tem tudo a ganhar. A perder o que?
Guilherme da Cunha, sentio que durante as palavras do Villar, as scentelhas da ambição tinham vindo esplendidas e fulgurantes abrazar-lhe a imaginação e a alma.
Redactor politico! Esta idéa appareceu-lhe acompanhada de mil probabilidades seductoras; um assento no parlamento, e um dia talvez, porque não? a gloria, a popularidade, a celebridade!
O marquez continuou sem lhe deixar quasi possibilidade de hesitar:
-- Melitão Vidueira, que será o editor responsavel do jornal, da hoje uma ceia, a que devemos ir, depois do baile, Victor Marrocos e eu: acceite uma parte na redacção, e venha esta noite mesmo cear comnosco.
«Poderá já baptisar-se o jornal, e estabelecerem-se as condições: com Melitão Vidueira poderá tratar magnificamente, além de editor, elle encarrega-se por emquanto de ser o gerente dos interesses da folha; não poderiamos encontrar melhor!
«Conhece-o? E' o typo do homem de dinheiro; não fale em agiotas diante d'elle! acrescentou o marquez a rir.
Depois, fez uma breve pausa, fitou a vista em Guilherme, estendeu-lhe a mão com firmeza, e perguntou-lhe apenas:
-- Quer ter futuro?
-- E quem me diz que a politica, longe de me salvar e engrandecer, não vá aniquilar-me e perder-me? Falta-me a força, a situação, a celebridade que auxilia os homens publicos, que quasi sempre fundam a sua grandesa, menos nas suas virtudes, do que na derrota dos seus collegas e na destruição da igualdade. E' difficil ganhar nome por meio da politica em tempos de paz, senhor marquez, e os poucos homens publicos notaveis que Portugal possue n'esta época, nasceram mais de uma crise que lhe deu impulso, do que do impulso que dessem a uma crise! A nossa terra perdeu o amor ás revoluções, e só uma revolução poderia ganhar me terreno!
-- Não se costume a esperar do accaso, mas da sua energia e do seu talento, e encontrará no seu genio mais recursos, do que pode encontrar de obstaculos aos seus designios, sobretudo se os seus recursos forem tão promptos quanto os obstaculos possam ser imprevistos! Um dia, dominará da tribuna os que nem sequer fariam reparo no seu nome se continuasse a escrever folhetins!
«E é tão fácil a um talento, em Portugal, popularisar-se logo que entre nas camaras! A opposição é o melhor dos systemas, a opposição ao bom e ao máu, a opposição a tudo e a todos: o nosso povo gosta de vêr calumniar os que melhor o servem, se a accusação fôr feita com energia e como inspirada pela dignidade e pela justiça!
O mancebo ponderou um momento, depois como por uma súbita resolução, respondeu rapidamente:
-- Vamos!
O marquez e Guilherme chegaram de novo até ao grupo, e o Villar disse a Victor Marrocos:
-- E meia noite, Marrocos: acha que são horas?
Os dois homens politicos e o neophito partiram juntos na carruagem do marquez.
Ao chegarem a casa de Melitão Vidueira, Villar disse para os trinta homens que ahi se achavam reunidos e que eram accionistas da folha que se preparava, indicando Victor Marrocos e Guilherme da Cunha:
-- Tenho a honra de lhes apresentar os dois redactores do jornal villarista!
XIII
Peripecia
Na salla de Melitão Vidueira encontravam-se como acabamos de dizer trinta accionistas do jornal que queriam fundar, todos homens de partido, todos ligados á causa que protegiam por instinctos de alma uns, por interesses outros, ou talvez quasi todos.
Melitão Vidueira era o typo do agiota moderno, o agiota do seculo desenove, de assignatura em S. Carlos, de camarote effectivo nos touros, de carruagem para ir depennar um desgraçado, com charutos magnificos sempre, dos quaes offerecia um ás victimas com o ar de um amigo que quer ver o seu proximo feliz e distrahido.
Era o agiota que convém á epocha dos caminhos de ferro!
Dava um baile de tempos a tempos, e um jantar diplomatico ainda mais a miudo. Applaudia no theatro as peças em que se ridicularisam os agiotas, e era o primeiro a largar uma gargalhada quando os via em scena.
-- Pcbres diabos! dizia referindo-se aos collegas, elles é que são as victimas e o publico chama-lhes ladrões! Qual será o burlão - o empregado publico que passa recibos a trez e a quatro para o mesmo mez, ou o que lhe desconta um de boa fé? Qual é o velhaco e o agiota?
Para não deslocar descripções que melhor convém n'outro capitulo, não nos deteremos n'este sobre a pessoa de Melitão Vidueira que o leitor aliás ha de conhecer largamente no segundo volume. Por agora, em phrase de salla, só -- «tomámos a honra de lh'o apresentar.
Antes da ceia, os accionistas do jornal julgaram prudente conversar com Guilherme e apalpal-o moralmente: encontraram n'elle, o que o mancebo era deveras: um espirito ardente e enthusiastico, febril e excentrico.
Melitão Vidueira disse então ao ouvido do marquez:
-- Será melhor nos primeiros numeros guardar-se o anonymo. Ninguem lhe conhece o estylo e a imprensa ha de scismar.
-- Concordo, replicou o Villar. Terá mais talento, como quasi toda a gente aliás, antes de ser conhecido pessoalmente!
E accrescentou em voz alta:
-- Julgo bom não assignar os artigos; é um uso que individualisa muito a côr das opiniões. O jornal tem uma só voz, escusa saber-se quem empunha a tuba! Será bom até guardar um decidido segredo sobre os nomes dos redactores. E' o melhor modo de evitar com as outras folhas as polemicas pessoaes. Victor Marrocos, e o sr. Guilherme da Cunha hão de fundear alternadamente, excepto quando por qualquer motivo, queira um tratar alguma questão n'um dia apesar de haver escripto na vespera.
«Em logar de folhetim será talvez de maior utilidade um noticiario abundante e espirituoso. Estamos na epocha das noticias diversas. Toda a gente gosta de saber em que rua quebrou uma perna o sr. fulano. Embora se minta: quando não houver que contar, invente-se! E' a regra. Todos os meios são bons comtanto que o jornal não appareça sem dar sempre a entender que nunca deixa de estar bem informado.
«Será bom, tambem, ir mettendo os ministros nas noticias diversas, porque ainda nenhum se lembrou de o fazer!
«Quanto á tradução das noticias estrangeiras o sr. José Lucio Ramalho (indicou um dos accionistas) já concordou com o nosso amigo Melitão de encarregar se d'esse trabalho.
«Como o sr. Guilherme da Cunha fica de ora em deante, segundo eu espero, fazendo-me a honra de acceitar a minha amisade, é de crer que não se recuse a apparecer a miudo em minha casa logo que o jornal comece, porque entre nós e Marrocos combinaremos o espirito do artigo de fundo que mais favoravel seja á nossa causa.
«Agora, vamos para a mesa e baptisemos o jornal! Depois de uma discussão fastidiosa, resolveu-se que o jornal villarista deveria intitular-se -- O Movimento -- e que o primeiro numero sairia no primeiro de Agosto, isto é, d'alli a dois dias, com artigo de fundo de Victor Marrocos, e um segundo artigo encarando a situação pelo lado do ridiculo, que devia ser a estreia de Guilherme da Cunha.
Depois, ceiou-se, fizeram-se saudes á prosperidade do jornal villarista, disse-se mal dos ministros, desacreditaram-se os redactores das folhas contrarias como corruptos e deshonestos, emfim foi uma ceia como todas as ceias politicas em que só se acham honrados os que estão presentes.
O leitor deve talvez agradecer-nos, se por instantes desampararmos a sala, e escutarmos o que se passa n'um gabinete contiguo.
Duas meninas se achavam já n'esse gabinete quando o marquez de Villar entrou com os redactores.
Encostadas a uma meza, ellas conversavam com uma certa melancholia de expressão, que ainda mais curiosidade despertará agora á leitora saber do que ellas tratavam.
Tinham chegado do theatro havia meia hora. Nenhuma d'ellas se despira nem desenfeitara.
-- Quiz que entrasses um instante, disse uma, porque talvez gostes de ler uns versos que traz um Jornal do Porto.
-- Do Porto!
-- Sim. São escriptos por alguem de Lisboa... que se acha agora alli.
-- Não quero ler: disse a outra. Desejo affastar toda a lembrança d'esse homem. O seu amor foi-me fatal. E' por causa de o haver amado... que eu amanhã me sacrifico a ter por força de o esquecer! E d'ahi... que importa? Dá-me os versos!
E agarrando n'um jornal, leu no folhetim esta poesia:
VISÃO!
Visão, porque fugiste? se a lembrança
D'aquelle tempo vem falar de ti!
Se o anjo da saudade vem ás noites
Recordar- me o que amei e o que soffri!
Mas é tarde, visão, nenhuma sombra
Póde agora a minh'alma inda agitar:
Para sempre a flor mimosa da esperança
Entre martyrios tristes vi murchar!
As vezes vem os eccos fugitivos
D'esse tempo passado ainda até mi,
Mas morrem ao chegar a este ouvido
Sons vagos do que amei, do que senti.
As brisas que, ao cair da tarde, levam
Saudades e segredos mil d'amor
Recolher não puderam já d'est'alma
Mais que um queixume de descrença e dor!
Por muito tempo ainda a phantasia
Illudiu-me, julgando ouvir-te a voz
Na doce viração do fim do dia,
No sussurrar das ondas, ou nos hymnos
Que a natureza ergue ao Creador!
E, se admirava, ás noites, um momento
A estrella solitaria e scintillante
Que ás vezes fulge, só, no firmamento,
Via no esplendor brilhante da saphira
Que da noite esmaltava o escuro veu
O sorriso mavioso que em teus labios
Parece prometter coisas do céu!
Mas lembrava-me então, como dizer-t'o?
Ai! lembrava-me os dias de tortura,
As noites horrorosas de agonia,
De miseria, de raiva, de amargura,
Com que paguei instantes de alegria!
Eu nunca fui feliz quando te amei
Porque, no amor até e na ventura,
Encontrava dois tristes pensamentos:
Ter o accaso tão tarde permittido
Eu te encontrar no mundo e te merecer!
Depois... era fatal essa lembrança,
-- Se teria de um dia te perder!
Amei- te muito, flor, ai nem tu sabes
Com que ardor e delirio te adorei!
E se algum crime tive n'esse amor
Foi amar-te de mais como te amei!
Tentas fugir, visão! Mas a lembrança
D'aquelle tempo vem falar de ti!
E o anjo da saudade vem ás noites
Recordar-me o que amei e o que senti!
Porto -- Junho, 1846.
G. da Cunha.
-- Creio que não é a mim que esses versos se referem! disse então com um sorriso a filha de Melitão Vidueira.
-- Persuades-te que me diga respeito, essa poesia?
-- Pudéra! E's sem a menor duvida a «visão que foge d'elle!»
-- Está então no Porto!
-- Parece.
-- Com que fim?
-- De se distrahir, disseram-me.
-- Distrahir-se de se haver portado tão mal para commigo! E' singular.
-- Tenho ouvido contar d'elle trinta mil excentricidades. Creio que, á força de ter talento, é meio louco!
-- Sabes tu, Maria Lucia, que o amei como nunca mais de certo poderei amar ninguem? Digo-t'o hoje ainda, e todavia é ámanhã já o dia... Ámanhã!
E Sophia de Sousa, porque era ella, rompeu em lagrimas.
Foi n'esta occasião que entrou o marquez, e as duas meninas ouviram pronunciar o nome de Guilherme da Cunha, e pouco depois escutaram a sua voz.
Sophia de Sousa deu um pulo da cadeira onde estava sentada para a porta do gabinete, e espreitou quem estava na sala. Viu então, effectivamente, Guilherme.
-- Como elle está magro! exclamou.
Durante a ceia o mancebo conversou bastante, e animou-se quando chegaram os ultimos toast. Sophia que não deixára de escutar, ouviu então o mancebo propôr uma saude:
-- Ignota Déa! disse elle.
Os convivas acompanharam.
O Viilar perguntou:
-- Foi a algum amor ideal, ou a uma das suas boas fortunas amorosas que acabámos de beber, se não é indiscripção?
-- A um amor de coração e de cabeça. Um amor antigo!
-- Aos vinte annos um amor antigo! ponderou Melitão Vidueira. Foi a sua ama de leite?
-- Não lhe permitto o menor gracejo sobre o assumpto, replicou Guilherme; bebi á saude de um amor antigo, e o sr. vae acompanhar-me outra vez n'essa saude -- A' filha do seu particular amigo o sr. barão de Sousa!
Os convivas olharam-se com uma expressão de singular espanto. Sophia pallida e tremula continuou a escutar:
-- Então ama-a ainda! disse o marquez. Apezar de...
-- Apezar de tudo que possa lembrar-lhe. Porque sei, que apesar de tudo tambem, ella não será nunca de outro homem.
Os convivas tornaram a olhar-se.
-- Ignora tudo ainda, pelo que vejo, disse o marquez ao ouvido de Melitão.
-- Pobre moço! respondeu o agiota Se lhe dão a noticia é capaz de lhe dar um ataque e ahi ficamos sem redactor!
-- Mas diz-se no mundo, retorquiu Victor Marrocos, que o sr. Cunha lhe fôra infiel!
-- Porque no mundo nunca se fala verdade; acudio o mancebo. Só a ella amei, só a ella amo!
«Fiz a côrte, é certo, a uma senhora de sociedade, disse elle sorrindo ao vêr quanto o marquez estava longe do caso, porque o sr. Luiz de Lima, a quem hei de agradecer um dia, pareceu ter gosto em sacrificar o meu futuro a um devaneio, e aconselhou-me que fazendo a côrte a essa dama e expondo-lhe a situação em que me encontrava, ella poderia pela sua influencia conseguir o meu casamento. Mas conheci depois que tudo falhou n'esse gracejo com que o sr. Luiz de Lima quiz talvez divertir-se á custa de eu perder a felicidade!
-- Innocente! exclamou Sophia de Sousa lançando-se nos braços de Maria Lucia. Oh! que vou eu fazer agora, Deus meu?!
A's duas horas da noite Guilherme da Cunha levantou-se da mesa, despediu-se do marquez, de Melitão, de Marrocos a quem já chamou -- collega -- e dos convivas que se dobraram n'um cumprimento como competia á pessoa de um primeiro redactor, e sahiu.
Na escada, na occasião em que estava acendendo um charuto a um dos bicos de gaz, sentio o ruido de um vestido de senhora que vinha descendo, e ao voltar a cabeça viu Sophia.
As apparições phantasticas dos contos de Hoffmann não são mais sobrenaturaes do que essa pareceu ao mancebo!
Sophia fitou os olhos nos d'elle, e disse-lhe rapidamente com uma terna expressão de amor:
-- Em sendo trez horas da noite, espero-te no mirante, como d' antes. Não faltes!
E desceu rapidamente, entrando depois para o trem que a esperava.
O mancebo ficou collado ao sitio em que se achava, e diligenciou por se convencer que não estava sonhando.
-- Ella! exclamou.
XIV
Sonho de uma noite de verão
A noite ia linda, e estava o firmamento esmaltado de um numero infinito de saphiras: dir-se-hia um veu de nupcias poetico e esplendido!
Mas o ar quente e abrasado parecia annunciar alguma trovoada imminente.
Guilherme da Cunha disséra mil vezes á sua propria consciencia, durante o caminho, n'essa noite memoravel, o que todo o homem diria na singular situação em que elle se encontrava:
-- Que vou eu fazer, e o que quer dizer tudo isto?
A lua meia escondida n'um delicioso veu de nuvens brancas, prateava a superficie do mar por uma luz de tal fórma seductora, que o mancebo alongou a vista encantado e como n'um extasis suave e consolador pelas aguas resplandecentes do Tejo, que ficava á direita do seu caminho, e embebido n'essa contemplação mysteriosa de indefinivel goso, sentiu consolar-se a sua alma ao aspecto de poesia que tudo a essa hora apresentava, hora quieta de amores e de sonhos, hora de mysterios e de sombras, em que tudo é melancholico e poetico!
Não seria facil contar com propriedade a impressão melancholica que constrangeu o coração do mancebo, no momento em que os seus olhos distinguiram ao longe entre as sombrias arvores do jardim a casa do barão de Sousa.
Dir-se-hia que todas as fibras da sua alma estremeceram n'esse instante de saudade, e de pena!
Lembrára-se das manhãs em que Sophia o esperava no mirante, para trocar com elle de passagem as rapidas e anciosas perguntas dos namorados:
«Tiveste saudades minhas? Lembraste-te hontem de mim?
Mas a atmosphera abrasada como lhe era agora de assustador presagio, e a luz melancholica das estreitas parecia convidal-o ainda mais a reconhecesse perdido, e isolado no mundo e na vida, desde que o amor de Sophia deixara de dar animo áquelle coração afflicto!
A serenidade d'essa noite era magestosa e tocante. O silencio era tal que elle ouvia unicamente o ruido surdo e compassado dos seus proprios passos.
-- Que vou eu fazer, e o que quer dizer tudo isto? perguntou uma vez ainda a si proprio, sentindo que o seu amor, um instante adormecido, accordara de novo vehemente e phrenetico, ao simples avistar de aquelles sitios queridos e memoraveis.
Devo dizel-o. Guilherme da Cunha chegou a lembrar-se de não proseguir no seu caminho: faltou-lhe talvez a coragem para vencer a distancia breve de vinte passos, pouco mais, que o separava apenas d'aquella casa de tão fatal memoria para elle. E' certo que ia succumbindo ao impulso de retroceder.
Mas a lua, essa mysteriosa protectora dos erros do amor, despediu n'esse momento um dos seus raios prateados e magnificos que illuminou o vulto alvejante da donzella.
Ai! acabaram e ahi morreram todas as idéas de não proseguir: ou julgou ver o rosto de Sophia; que era até pallido á luz do sol como o lirio, pallido agora ao clarão da lua como não ha com que se compare de melancholia e seducção!
Então, os passos de Guilherme foram vivos e precipitados, e n'um momento o mancebo se encontrou, como outr'ora, parado defronte do muro, olhando Sophia, a sua adorada Sophia!
Que digam, que pensem, que por um instante imaginem os que já na sua vida amaram com violencia e ardor, o que sentiria aquella alma captiva de um tão grande affecto, ao ver de novo a fronte pallida da sua amante que elle desenhara a todo o instante na phantasia durante um certo tempo, mas de que até o cogitar continuo lhe desvanecera as feições e os traços na confusão das idéas e das reminiscencias?! que digam, que pensem, que por um instante imaginem os que já na sua vida amaram com violencia e ardor, o que sentiria aquella alma captiva de um tão grande affecto, ao ver de novo a fronte pallida da sua amante que elle desenhara a todo o instante na phantasia durante um certo tempo, mas de que até o cogitar continuo lhe desvanecera as feições e os traços na confusão das idéas e das reminiscencias?! que digam, que pensem, que por um instante imaginem os que ainda crêem nos amores verdadeiros e devastadores, qual seria a impressão excentrica, misturada de alegria e de tristeza, que comprimiu o peito do pobre moço, avivando-lhe a saudade e quem sabe se acordando-lhe novamente a esperança?!
Havia no muro uma porta praticavel para o jardim: Guilherme tinha visto por vezes essa porta aberta de dia, mais é fácil de se imaginar que havia na casa o maior cuidado de logo á noite a fecharem.
N'essa noite a porta do jardim estava aberta, e Guilherme ao passar por ella, ouviu a voz meiga e doce da sua namorada dizer lhe apenas:
-- Sobe!
Guilherme era um digno e honesto caracter: a paixão poder-lhe-hia consentir um crime, o calculo frio e pausado nunca lhe ministraria uma má acção: por isso Guilherme não viu de começo no -- Sobel -- de Sophia, mais do que uma expressão de momento, nascida de um acaso feliz, que fizera com que os criados não se houvessem lembrado de fechar a porta, e lhes proporcionara terem agora occasião de se falarem de mais perto.
E Guilherme subiu.
A lua tocara o seu occaso, mas a luz das estrellas espalhava uma debil e frouxa claridade que ainda mais convidava ao amor.
A brisa vinha tepida e embalsamada pelo perfume das flores do jardim misturar-se ao vago perfume da noite.
Sophia vinha de branco como as namoradas das baladas e das chacaras. Vestia uma blusa larga e escura, e a pallidez do seu rosto destacava ainda mais á debil claridade d'aquella seductora noite de verão.
Sophia era um d'esses caracteres que se devoram pela triste inquietação que obriga as maiores almas a procurarem muitas vezes a grandiosidade até no crime!
Dotada de um espirito exaltado e poetico, de uma alma apaixonada e terna, possuia todas as qualidades que conduzem a uma certa faculdade d'illusão, a uma aspiração phrenetica para um ponto que nem é a saudade nem a esperança, mas talvez o desejo em toda a sua intensidade devoradora!
Lastimae-a em vez de a accusardes, puritanos modernos, incapazes de sentir e de amar, que condemnaes o sentimento, por que Deus não vos achou dignos de vos fazer poetas!
A namorada chegou até junto de Guilherme, ajoelhando deante d'elle disse-lhe com uma expressão arrebatadora de mysticismo e de poesia, enxugando as lagrimas que saltavam dos seus lindos olhos, e affastando do rosto os cabellos para deixar descoberta aquella fronte onde o dedo de Deus parecia haver marcado o sello de um mysterioso infortunio:
-- Deus que me ouve e que nos está vendo sabe se eu sou culpada, oh anjo meu! O destino poude mais do que o nosso amor, mas o nosso amor ainda resiste ao destino!
«Estou innocente e sei que tambem o estás, querido! mas nem o meu peito deixou de te adorar, nem a minha alma de cogitar em ti. Ennegreceram-te a meus olhos, e degradaram-me aos teus! Innocentes ambos, ambos parecemos culpados: sei tudo!
«Pobre, perdido, ou assassino, eu ainda me sacrificaria por ti, e te havia de consolar: amando outra, como eu cuidava e como tudo parecia demonstrar-m'o, nem podia amar-te nem perdoar-te!
«Mas dize, ó meu querido Guilherme, se eu não seria mais criminosa em consentir-te nos braços de outra, do que parecendo desde esse instante riscar para sempre a tua memoria!
«Não sabe ninguem no mundo a que amarguras me entreguei! mas se guardasse todas as lagrimas que derramei, ellas formariam um rio de pranto!
«E' um segredo entre mim e Deus o poema de amor e ciume que se tem passado na minha alma: mas foram agudas de mais as dores que se me prepararam! succumbi a ellas.
«Vi em ti, no meu fiel e apaixonado Guilherme de outr'ora, um amante traiçoeiro e que não me amava por mim mesma! Oh! foi doloroso o instante em que este peito teve que luctar entre o amor e o despreso, entre o affecto que me abrazava ainda por ti, e o desejo, o dever, de te deixar, de te esquecer, de te votar ao aviltamento do teu proprio proceder! O mancebo suffocado em lagrimas, abriu os braços á namorada, e conchegou-a ao peito n'um delirio phrenetico de enthusiasmo affectuoso.
-- Anjo! oh anjo meu! disse Guilherme: perdoa-me como eu te perdôo, esquece como eu já esqueci! seja de flores a existencia que nos quizeram preparar de espinhos!
«Amas-me ainda? dize, minha pobre querida? amas-me como d'antes? como nos primeiros, como nos ultimos tempos do nosso amor?
-- Querido meu! as flores da esperança reverdecem com as lagrimas do arrependimento! Os dias de amargura ficam já compensados por estas doces horas do ceu! Meu bom Guilherme, disse ella encostando a face pallida ao hombro do mancebo, meu bom Guilherme eu amo-te!
-- Anjo meu!
Uma quente aragem veiu n'esse instante colher o perfume das flores, e baloiçar docemente os ramos escuros das arvores.
-- Que noite! disse Guilherme; oh! meu anjo, que linda noite temos! como seria cruel morrer no meio d'esta esplendida festa que a natureza concede ao homem!
«Respira os perfumes que se exhalam em torno de nós, e este divino e harmonioso concerto da vento nas folhas, do zumbir das abelhas, e do canta das aves!
E o mancebo collou os seus labios ardentes e phreneticos aos labios pallidos e frios da namorada.
Mas Sophia não resistiu, não fez o mais leve movimento, e abrindo os braços a Guilherme, balbuciou com voz fraca e debil:
-- Sou tua!
-- E o ardor da paixão auxiliado pelo magestoso silencio da noite originou em ambos a vertigem do amor.
Abraçaram-se como loucos, e beijaram-se com delirio.
-- Minha! tu és minha! dizia Guilherme incendiado pela paixão e pelos sentidos, apertando-a ao peito, beijando-lhe as mãos, as faces, os braços, os cabellos, n'um fervor de enthusiasmo e de phrenesi.
-- Guilherme! Guilherme, disse ainda a namorada; que fazes tu, meu anjo?
E Guilherme, como louco, cobria de beijos a arvore em que ella collocava a mão, a relva em que ella poisava os pés!
-- Guilherme... Guilherme, meu anjo, amo-te... adoro-te!
E Sophia caíu como morta sobre a relva do jardim.
Foi como um sonho divino que teve um acordar terrestre.
Guilherme da Cunha passou as mãos pela fronte da sua namorada, como hesitando em acreditar que estavam ambos reunidos, e que se passára tudo que acabava de ter logar.
-- Sophia... Sophia? és tu ou não, meu amor, que eu abraço agora mesmo, que cinjo ainda ao meu peito? dize se és tu ou não?
Pobre Sophia! A voz expirava-lhe nos labios, e ella nem teve forças para responder!
E novos abraços e novos beijos, e mil caricias repetidas se seguiram, da parte de Guilherme que foi eloquente de paixão, e que acompanhou as mais seductoras meiguices, chamando Sophia pelos mais ternos nomes.
Mas Guilherme observára já que aquella casa de ordinario tão tranquilla e deserta, estava ainda ás duas horas da noite entregue a surda agitação: as luzes que brilhavam nos differentes quartos extinguiam-se de repente, depois brilhavam de novo, como se as fizessem gyrar em diversas direcções, ouvia-se confusamente a voz dos criados, e o ruido dos seus passos ao subirem e descerem a escada do primeiro andar para o segundo, porque, como já se disse, o barão de Sousa occupava os dois andares. O mancebo teve um presentimento vago, mas atterrador e funesto!
-- Sophia! disse elle.
A donzella parecia entregue a uma idéa fixa; não lhe respondeu, e nem sequer o ouviu.
-- Sophia! balbuciou de novo o namorado; dize-me, querida, porque estás tão pallida e por que estão frias de neve as tuas mãos? Ah! Bem sei! é a pallidez das noivas, a deliciosa pallidez da felicidade!
-- Oh! disse a namorada! Abraça-me outra vez!
Mas quando os braços do mancebo cingiam de novo a cintura de Sophia, os olhos d'elle encontraram ainda as luzes que gyravam pelos quartos e pela escada.
-- Estão acordados ainda em tua casa? perguntou Guilherme petrificado.
Sophia fitou a vista enfraquecida nas janellas da casa de seu pae, allumiadas ainda, e com um sorriso inexplicavel e mysterioso, mas d'expressão triste e resignada, respondeu ao seu amante:
-- Estão acordados, estão. Vae-te!
E um beijo phrenetico acompanhado de lagrimas ardentes e escaldantes que saltaram dos olhos da namorada, acompanharam estas palavras simples, ditas n'um tom de melancholia despretenciosa e impressionativa.
Guilherme julgou aquellas palavras nascidas do arrependimento, do remorso, pelos erros d'essa noite:
E o mancebo respondeu áquelle ultimo beijo de Sophia, com outro não menos vehemente, e exclamou:
-- Adeus, minha esposa! até ámanhã!
Mas essas palavras perderam-se na noite como um triste presagio do destino d' ambos!
A namorada chorava perdidamente, e suffocada em pranto e em soluços, o empurrou brandamente, porque nem já tinha animo de o conservar perto de si mais tempo sem lhe revelar o segredo que o leitor saberá mais tarde!
XV
Em que verdadeiramente principia
o romance
Ao romper do dia, Guilherme da Cunha recebeu a seguinte carta:
«Morri para ti, Guilherme, morremos um para o outro!
«Parte de Lisboa, se queres libertar-me da maior das vergonhas por que possa atravessar, da mais dilacerante angustia que a minha alma possa soffrer -- a de nos encontrarmos no mundo!
«Parte, foge, deixa-me! Parte sem olhares para traz, sem nunca mais te recordares de mim!
«Estou casada.
«Não me accuses. Era tarde para remediar tudo sem um escandalo que nos perderia, quando soube que não havias sido indigno do meu amor pelo que ouvi sem ser vista, pelo que disseste sem me saberes perto de ti!
«Tarde! Oh! tarde era já para a nossa felicidade, tarde é agora para a salvação da minha alma!
«Perdi-me por ti, perante a minha consciencia. Entreguei-te a minha coroa de virgem, porque a idéa de que eu preferia ao teu amor a posição e a grandeza, poder-te-hia fazer julgar que eu fizera d'ella um leilão de impudicicia, que a entregára áquelle que mais lançou!
«Entreguei-me a ti, sim, é bem verdade, mas se fiz um dever de um excesso do meu amor, se considerei que tinhas direito, pela superioridade do affecto que me tens dado, a que os braços de outro homem, embora a egreja e as instituições sagrassem essa união, me não estreitassem primeiro do que os teus, é porque tambem n'esse instante a minha dignidade de mulher ponderou á minha dedicação de namorada, que no dia seguinte eu seria moralmente viuva de Guilherme, e poderia então sacrificar-me a ser esposa de outro!
«Serás toda a minha vida a imagem querida de um sonho feliz. Qual de nós dois vae soffrer mais, não sei! Não és tu, talvez.
«Só a ti amei, só a ti amo ainda; mas quero atravez da minha desgraça, julgar-me ainda digna do amor que me tiveste. Por isso morro hoje para ti!
«Ser de dois homens, nunca.
«Assim só engano um -- a quelle com quem vou casar; mas engano-o uma vez, e é na vespera de estar casada.
«Depois, ser de ti e d'elle... Esta idéa horrorisa-me. Nunca!
-- Esquece-me, se puderes. Odeia-me e despresa-me se me julgas digna do teu despreso e do teu odio. Mas Deus parece dizer á minha consciencia que portando-me assim sou martyr, mas não sou vil.
«Adeus, Guilherme, anjo da minha alma, adeus!
Sophia.
O mancebo demorou a vista vagamente sobre a carta que lêra. E o olhar annuviado pela sensação que o accommetteu nem as lettras lhe deixava bem distinguir.
Ao cabo de uma pausa, em que as suas idéas perdidas, attonitas e confusas, pareceram reunir se n'um impeto de resolução sublime, passou a mão pela fronte banhada em suor frio e copioso, e exclamou com uma expressão grandiosa:
-- Impossivel!
Depois, pallido e convulso amarrotou a carta entre as mãos, e sentiu que os olhos se lhe innundavam de lagrimas escaldantes, que rebentavam vehementes e phreneticas. Levou então aos olhos, como para enxugar o pranto, essa mesma carta fatal que lh'o suscitára.
-- Vêl-a! disse. -- Quero vêl-a!
E saíu.
Caminhou machinalmente pelas ruas , sem ao menos tomar a direcção de Santa Apolonia, onde, como o leitor ouviu no primeiro capitulo, morava o barão de Sousa.
Encontrou um amigo: um d'estes amigos que parece quererem alviçaras por nos darem primeiro que ninguem uma má noticia. Era o advogado que o leitor já conhece.
-- Então casa-se hoje o teu namoro antigo! Acabo de encontrar o cortejo.
-- Onde? perguntou Guilherme com ancia.
-- O noivo vae morar para casa do sogro.
-- Mas o cortejo?...
-- Isto de mulheres! como ella já está casada! Bem vês que elle é um homem que tem uma posição.
-- Dize onde encontraste o cortejo, emfim? exclamou Guilherme.
-- Ah! o cortejo. A Santo André; foram receber-se á egreja da Graça, ouvi dizer que em consequencia de ser n'esta freguezia que a pequena foi baptisada: um capricho do pae, provavelmente...
Quando o advogado Mendonça voltou a cabeça, viu que estava a falar sósinho, porque o mancebo tão depressa ouvira que era na egreja da Graça, desapparecera com a velocidade de um relampago.
Não encontrou durante o caminho um unico tivoli por felicidade sua, aliás teria feito a mais deploravel figura n'este mundo, porque o seu desejo era apparecer na egreja na occasião de se receberem os noivos, e vêr ao menos que impressão significava o olhar de Sophia ao encontrar o seu!
Caso estranho, mas mais natural do que se julgará! o mancebo pensava no casamento, e não se lembrava do marido. Via apenas n'esse acto a sua namorada, não via mais ninguem, não via mais nada. Podia ter perguntado a Affonso de Mendonça quem era o noivo, podia depois durante o caminho pensar n'isso -- não se lembrou d'elle sequer!
Ao chegar justamente ao largo da Graça, viu sahirem da egreja, e entrar para os trens, os padrinhos e os noivos.
Viu então Luiz de Lima, e um presentimento imperioso e violento lhe bradou: -- E' elle!
N'uma rapida vista que volveu sobre Sophia, viu a pallida e livida como expirante. A noiva por felicidade da sua alma não pensou sequer por um momento que o seu amante da vespera estivesse tão perto d'ella. Ia, ou parecia ir, triste e desconsolada.
Era tão visivel e pronunciada a amargura que se lhe desenhava nas feições, e a angustia que o olhar melancholico traduzia, que os mendigos que estacionavam á porta da egreja, e que são por experiencia longa, sabios juizes para estes discernimentos, disseram uns para os outros com um olhar de máu presagio:
«A noiva não vae contente!
Os trens partiram.
Em quanto ás particularidades do casamento, o leitor terá mais tarde de as conhecer a fundo, por que d'ellas será consequencia todo o futuro dos noivos, e isto constitue o traço mais estudado d'este quadro que emprehendemos.
Guilherme da Cunha ficou olhando os trens que desappareciam rapidos, até de todo os perder de vista.
Então, encostando se á muralha do largo da Graça, espalhou a vista tristemente, e viu a cidade deitada a seus pés.
Atterrado de vêr que todas as suas esperanças se iam desfolhando e perdendo, soltou então a pergunta proverbial das almas fracas e irresolutas que nada sabem prever:
-- Porque?
-- «Se tinha de ser assim, em que seria então que eu offendi Deus ou o destino? Fatalistas somos todos os que nascemos debaixo da influencia d'este vivo sol de Portugal; fatalista sou tambem, mas nem sei se accuse pelos meus infortunios o poder da fatalidade ou o do accaso!
«Cruelmente me enganei se esta mulher é falsa! Cruelmente me estará illudindo agora esta carta, em que se me diz que ao receio de um escandalo se deve o passo que deu!
«Mas -- que assim fosse! -- não tenho eu direito a indignar-me de que se attenda ao mundo, ás estereis conveniencias sociaes, a tudo que ha de pequeno e insignificante -- primeiro do que ao nosso amor?
«N'isto te reconheço bem, Lisboa! Porém, pobre da terra onde as mulheres attendem tanto ao que o mundo chama ter juizo!
«Qual é então o condão d'este sol esplendido, ardente e poetico, se até na edade da vida em que a natureza sabe ter voz para nos consolar o coração, em que os diversos sons da creação se reunem n'uma harmonia inspirada e opulenta, em que o vento que geme, a ave que canta, e a corrente que suspira parecem erguer um hymno de esperança e de amor -- sois vós, creaturas que pareceis meigas e ternas, as que melhor sabem enganar e fingir?
E os olhos do mancebo, um instante fixos no sol magnifico que principiava a doirar Lisboa, baixaram humidos e tristes, perseguidos pelo circulo escuro que acompanha a vista do imprudente que se atreve a fitar o rei dos astros.
«E todavia as mulheres de Portugal valem mais do que os homens, em tudo que póde provir da intelligencia e do coração! Mais nobres, mais dignas, em tudo superiores a estes Belizarios do senso commum que apenas são capazes de adorar o veado de oiro, deus moderno cujo brilho offusca o da honra e o do talento, aos olhos d'esta miseravel Lisboa que só estima os que nada valem!
Que terra, a nossa, em que só se dá aos ricos!...
E ficou pallido, attonito, com a vista parada sobre o grande panorama de Lisboa.
Principiava a chegar-lhe aos ouvidos o motim confuso da população que encetava o seu gyro d'esse dia. Mas elle pensou n'esse momento na outra população, na outra Lisboa -- na que ainda dormia a essa hora, porque recolhera de madrugada dos bailes, do jogo, ou de Cintra. E um supremo impeto de coragem grandiosa, lhe encheu de repente a alma de resolução e de energia, porque lhe lembrou que se o amor fugira d'elle, restava-lhe a politica, e o jornal villarista havia de sair d'ahi a dois dias.
-- Querem aniquillar-me? exclamou. Pois vencerei! Agora eu, Lisboa!
XVI
Confidencias
Ao cair de uma linda tarde de Agosto, duas senhoras recostadas n'um elegante caleche que seguia na direcção do Cacem, conversavam tão preocupadamente, que nem viam alguns trens que durante o caminho as encontraram, nem tão pouco correspondiam ás saudações que lhes dirigiam.
Eram duas meninas, de mui desencontrada belleza todavia, que bem deixavam conhecer serem de familias diversas: tão dissimilhantes era as suas physionomias. Branca, loira, de olhos vivos, e azues como o azul do nosso ceu, uma d'ellas. A outra, pallida e de cabello negro. Aquella, altiva e brilhante de luz e de esperança; esta, triste e amargurada, mas de uma grandiosa e poetica expressão de olhar que revelava uma alma ardente e afflicta. Em cada póro do seio alvo e seductor da primeira, parecia ver-se uma estrella, em cada veia, um raio de luz. Toda a belleza da segunda, residia no olhar ardente e triste com que cobria tudo que a rodeava, deixando adivinhar a nobreza do seu pensamento e o poder da sua vontade. Espessas sobrancelhas resguardavam o brilho dos seus olhos, do mesmo modo, talvez que a sua dignidade de senhora occultava os seus desgostos de mulher. Via-se que já pelos labios lhe passara como um vento glacial, o sorriso da resignação na dor. Dir-se-hia que o perfume da sua alma ia morrer sem se exhalar, e sem que outro coração o respirasse!
As duas senhoras eram Maria Lucia Vidueira, e Sophia de Lima. Alguns dias haviam já decorrido depois do casamento da filha do barão de Sousa, mas era esta a primeira occasião em que as duas amigas podiam livremente falar-se, e contarem uma á outra os seus desgostos e os seus segredos.
Olharam-se por um momento com uma superior expressão de confiança e de mutua amisade. A conversação que entretinham parecia ser para qualquer d'ellas a suprema prova da reciproca amisade de ambas.
Até ao momento de passarem Bemfica, as duas senhoras haviam simulado que nenhuma confidencia tinham que revelar-se, e que nenhum dissabor as opprimia. Recostadas no caleche, conversavam pouco e vagamente, espalhando a vista com distracção e ao accaso sobre um monte ou uma quinta.
Quem as visse então diria que nenhuma d'ellas tinha cuidados no espirito, nem pesares no peito.
Estas estudadas apparencias, que servem na vida de Lisboa para occultar muitas vezes á sociedade magoas de espirito ou circumstancias de fortuna, empregavam-as agora as duas amigas para que ao vel-as dissessem todos que as conheciam: Para estas é que está a vida! Uma casada e feliz, a outra solteira e rica!
Porque as qualidades de caracter, e as eventualidades de fortuna, são julgadas sempre não pelo que realmente são, mas pelo que ao mundo parecem, e pelo que no mundo se diz d'ellas!
A conversação que as prendiam quando no principio d'estes capitulos as encontrámos havia começado do seguinte modo.
-- Se te mandei convidar para passares na minha companhia alguns dias em Cintra, disse Sophia é porque já era tempo para a minha alma de ter outra alma amiga com quem chorar!
-- Chorar! exclamou Maria Lucia. Então não és feliz, Sophia?
A filha do barão de Sousa soltou um suspiro, o primeiro desde que partira, e unico durante o caminho; mas a idéa da felicidade que ella havia antevisto outr'ora atravez do prisma encantado dos seus sonhos de donzella, a idéa da felicidade que havia sido para ella a unica cogitação e a unica esperança, porque a essa idéa ia reunido um futuro de amor e de paz, amedrontou-a agora -- essa idéa! Porque se encontrava sem horisonte na vida, enleada n'uma situação fatal, e -- na flor da existencia -- já sem amor e sem esperança!
-- Não és feliz? perguntou Maria Lucia. Tambem tu não és feliz!
-- Tambem! exclamou Sophia com um sorriso amargo. Tambem! Queres então comparar os teus devaneios com os meus desgostos, e julgas que -- sem amor e sem esperança, presa e escrava para sempre de um homem que me é indifferente, e a quem eu o sou tambem, -- tenho inguaes motivos na minha dor do que tu, por não teres ido hontem a um passeio, ou não te haverem talvez levado a um baile!
-- Os meus desgostos são maiores do que pensas, Sophia. Amo tambem, e querem casar-me com outro homem!
-- Oh! Pobre amiga! exclamou Sophia apertando entre as mãos os dedos delicados da sua companheira. Que haverá de fatal na vida de Lisboa para que nenhum sentimento e nenhum affecto possa brotar espontaneo e robustecer feliz?
-- Conta-me primeiro o que se passa comtigo, será sempre tempo para tratarmos de mim. Teu marido?
-- Ia fazer-lhe comprehender que havia sido obrigada a dar-lhe a minha mão, e que só poderia elevar-se a meus olhos considerando-me como uma pessoa da sua familia, mas respeitando em mim a mulher que lhe não pertencia de alma, quando elle foi o primeiro a explicar-me de que modo via a situação áe qualquer de nós, respectivamente ao outro: que tinha por mim a admiração e o respeito que as minhas qualidades mereciam, mas que nem me pedia amor nem m'o dava: que havia pedido a minha mão, por saber que tudo havia terminado entre mim e Guilherme, porque aliás, nem o seu melindre quereria sujeitar-se a uma derrota, nem a sua dignidade lhe permittia alguma traição com que desthronasse Guilherme do amor que eu lhe tinha. Conservei-me calada durante todo o tempo que levou a dizer isto, mas no intimo do peito chorava com lagrimas de sangue o destino que me encadeára a um vilão que me mentia!
-- Mentia!
-- Em tudo. Porque fôra elle quem planeára a mais vil, a mais degradante comedia que uma imaginação extraviada nos desatinos do calculo interesseiro e mesquinho póde ter sonhado. Elle fez com que Guilherme fizesse a côrte á Tomazia Villar, com o pretexto de que uma palavra d'ella a meu pae lhe alcançaria a minha mão, logo que elle lhe fizesse comprehender que d'este casamento dependia a sua fortuna; e depois aproveitando o engano em que vivi, e que tu em parte suscitaste, Maria Lucia, accusando aquella nobre alma que eu defendia ainda, elle usou então do plano que havia aconselhado a Guilherme, e aproveitando o meu despeito que só pedia esquecimento para o que aparentemente me trahia, e vingança para o destino que me atormentára, conseguiu da minha dôr que eu não recuasse um amparo para a minha existencia aflicta, uma voz que me consolasse na vida do que a vida me havia desvanecido n'um sonho, um companheiro, um marido! Mas na vespera do meu casamento, em tua casa, depois do theatro -- lembras-te? eu ouvi da bocca de Guilherme a verdade inteira e pura como ella sae sempre d'aquella nobre e elevada consciencia! Mas era tarde. Só um escandalo poderia quebrar tudo, um escandalo que ia desacreditar meu pae, e perder me. Perder-me! E que fui eu fazer com isto senão perder-me tambem!
-- Desde então...
-- Desde então, nem uma palavra entre mim e meu marido -- meu marido! Torna-se-me odiosa esta palavra. A maior parte dos dias não o vejo. Costuma recolher de madrugada -- quando se recolhe! Janta sempre fóra, e almoça no seu quarto.
-- E quando alguma vez, por accaso, se encontram n'um corredor, ou n'uma das sallas?
-- Falamo-nos como duas pessoas que se viram na vespera, mas a quem nenhuma intimidade liga.
-- Como passou a noite? -- Foi hontem ao theatro? -- Vae hoje?
-- As noites...
-- As noites passo-as no meu quarto, e algumas vezes no theatro. Meu pae vae muitas noites visitar-me, demora-se a tomar chá commigo, e leva-me tambem algumas vezes ao theatro.
-- Teu pae! E que diz elle...
-- Não estima meu marido. Deu-lhe a minha mão porque o marquez de Villar instou immenso e aconselhou muito este casamento, para se ver livre provavelmente dos requerimentos continuos da marqueza.
-- Que vida! disse Maria Lucia.
-- Julgas que sou a unica? Lisboa é fertil n'estes exemplos. Os casamentos aqui são muito infelizes, porque os pães de ordinario sacrificam as filhas aos interesses da sua casa, e nunca attendem aos impulsos do seu coração. Meu pae tem-me contado, para me consolar, historias fataes e medonhas que ahi vão por Lisboa, mais medonhas e mais fataes ainda porque a sociedade conhece-as e não as accusa!
-- E é exigente, escrupuloso, severo para comtigo! Prohibe te que saias, que recebas visitas, que te dês commigo por exemplo?
-- Não. Mesmo porque elle depende de mim em muitas coisas que estão ligadas á sua vida exterior. Parece que meu pae redigiu as escripturas pouco favoravelmente para meu marido. A minha fortuna pertence-me ainda, e ha de pertencer me emquanto eu quizer, porque só a legitima de minha mãe me coube por emquanto, e meu marido só se encontrou com o meu dote!
-- Que te parece, será gastador, perdulario?
-- Nada sei. Todavia anda um mysterio em tudo sto; esse homem gosta d'alguem, ama necessariamente uma mulher, tenho toda a certeza disto, apesar de nada me haverem dito, e de eu nada ter visto que robusteça esta idéa!
-- Que motivo então...
-- Nenhum motivo. Adivinho-o, presinto-o pelo ar inquieto em que o vejo, por algumas perguntas que meu pae me dirige.
-- Teu pae!
-- Digo-te que anda n'isto um mysterio, um mysterio que tambem envolve meu pae se não me engano.
-- Como assim!
-- Por muitas vezes me tem perguntado com anciedade a que hora meu marido se recolheu na vespera, quem o procura de manhã, se costuma receber cartas...
-- Pura curiosidade de sogro! disse Maria Lucia.
-- E' possivel; mas por que motivo tem meu marido de assignatura uma frisa em S. Carlos sem que nunca me con ide para ella, e uma frisa de bocca communicando para o palco!? Porque motivo, tambem, o distingue meu pae frequentes vezes entre os bastidores? Porque motivo, sobretudo, fez elle tanta diligencia para conseguir ser medico do theatro?
-- Para ter entrada, talvez; ouvi dizer que os escriptores publicos e facultativos da empreza tinham os seus logares.
-- Se fosse para ter entrada, que precisão teria de assignar para uma frisa! Não! Foi para ter entrada no palco, visto que as ordens são positivas e severas, e que só penetram no palco os que teem direito a isso.
-- Mas que te póde isso importar, se não o amas?!
-- Importa-me muito, apesar de não o amar, porque adivinho um mysterio, como já te disse, que tambem envolve meu pae, e é isso que me inquieta.
-- Pobre Sophia! exclamou Maria Lucia; sempre boa filha!
-- Meu pae, percebes tu, Maria, tem de ha muito tempo intimidade com uma pessoa do theatro. Como a companhia de canto varia todas as epochas, e a tal pessoa tem permanecido, é claro que pertence á companhia de baile, de que algumas primeiras dançarinas residem sempre em Lisboa. Ora, não te parece, Maria, que ha muita relação entre as perguntas curiosas de meu pae acerca de meu marido, e a assiduidade d'este nos bastidores de S. Carlos? Nenhum cuidado me dão taes amores, já pódes fazer idéa, porem sei que meu pae ha muito tempo que não sympathisa com meu marido, e ultimamente sei que até o odeia!
-- Odeia-o!
-- Sim. E tu não sabes quem é meu pae, e que almas são aquellas como a d'elle que se incendeiam por uma idéa, e sacrificam tudo a uma vingança! Pelo que ouvi dizer uma vez a meu pae, parece que n'uma ceia onde lhe apresentaram meu marido, começou esta antipathia invencivel do sogro para o genro, porque Lima, que a esse tempo não tinha provavelmente a menor idéa de requestar a minha mão, disse coisas horrorosas, segundo penso, a respeito das meninas bem educadas de Lisboa, e apresentou n'um quadro de escandalos os resultados que se tiram n'esta terra da educação do nosso sexo. Meu pae offendeu se por sua filha, e tomou o meu partido accusando de homem de mau gosto quem expendesse taes idéas, ou sequer as partilhasse. Data de essa noite a indisposição que atada lavra entre elles!
Depois de uma pausa em que as duas senhoras se olharam por instantes, sem que nenhuma ousasse quebrar o encanto d'aquella mudez expressiva que revelava que o mesmo pensamento as unia, a mesma dor as ligava, Maria Lucia perguntou como que medrosa á sua amiga:
-- E... elle?
-- Não o tornei a ver desde a vespera do meu casamento, disse a noiva.
E as lagrimas que lhe saltaram dos olhos terminaram a sua idéa, revelando de que saudade e angustia tinha sido todo este tempo em que a sua vista não havia encontrado nunca a d'elle.
-- Tel-o-has visto? perguntou depois anciosa.
-- Vi um artigo seu que em minha casa gabaram muito, e de que o marquez de Villar está contentissimo.
-- Sim, sei que escreve agora para o jornal d'esse partido, e que se estreiou na politica. Deus lhe dê fortuna, ao menos, no seu destino, já que tão desgraçado o fez para o nosso amor!
-- Vejo que o amas ainda, porque ainda te interessas por elle! Toma cuidado, Sophia, se a tua vida é n'esta occasião uma existencia de mysterio e de expectativa, não queiras que o remate de um futuro que nem prevês por emquanto, seja menos airoso á tua dignidade e menos favoravel aos teus creditos. Quem te diz que Guilherme da Cunha, envolvido na politica e nas, ambições que devoram os homens publicos, não venha a esquecer-te, e não chegue até a reflectir que a quebra d'esses amores auxiliou de certo modo o seu destino, porque emquanto cogitasse muito em ti e em te merecer, não teria decerto nem resolução nem força para emprehender a grande lucta a que ultimamente se propoz! Depois, tu não fazes idéa do que é a vida que levam esses escriptores publicos, os jornalistas principalmente que, segundo ouço dizer em minha casa, fazem da noite dia, principiam a escrever depois do theatro, e recolhem-se de madrugada! Todos os artistas de theatro os procuram e convidam para jantares com a intenção de alcançarem a sua benevolencia e alguns elogios; já vês que devem ser reuniões, a que tambem assistem as dançarinas, as actrizes, todas essas mulheres que valem menos do que nós em educação e em qualidades, mas que nos vencem em seducção e em prestigio: e então julgas que no centro da vida agitada em que se lançou possa viver o seu amor nobre e puro por muito tempo!?
-- Dizes-me tristes coisas! exclamou Sophia. Parece que a dor da minha situação devia merecer á tua generosidade algumas palavras de consolação e de esperança!
N'esta occasião sentiu-se o trote rasgado de um cavallo, que momentos depois, ao approximar do trem que conduzia as duas senhoras, abrandou de subito e continuou a passo.
Maria Lucia Vidueira virou a cabeça para vêr quem era o cavalleiro, e um sorriso quasi imperceptivel lhe assomou aos labios. N'este momento o trem seguiu com mais vagar, e o cavalleiro viu se obrigado a passar adeante, não sem olhar para as duas senhoras, e as cumprimentar.
-- E' para ti este comprimento? perguntou Sophia de Lima.
-- Para mim é, respondeu Maria Lucia, fazendo-se córada. Conheces esse rapaz?
-- Não me recordo de o ter encontrado nunca. Como se chama?
-- Teixeira.
-- O primeiro nome?
-- José.
Sophia de Lima olhou outra vez para o cavalleiro e para o cavallo: o cavallo bem se via que era de aluguer; o cavalleiro era, guardadas as proporções, tão insignificante como o cavallo. Pelo modo de cortejar, que é um dos segredos da elegancia e distincção do homem delicado, havia elle já revelado que poucas vezes na sua vida tinha cumprimentado senhoras. A pretenção do vestuario acabava de o fazer conhecer. Levava um fraque azul, de botões amarellos, em detestavel harmonia com uma calça cor de laranja, de lista larga côr de rosa e branca que, vendo se de costas, deixava adivinhar algum collete de padrão historico. Era um d'estes homens que preferem sempre as côres claras, mas que nem ao menos as combinam. Emquanto ao mais, bonito rapaz, bem feito, e sympathico aos olhos de alguma menina vulgar, d'essas que não faltam em Lisboa, louvado Deus, para reconhecerem e proclamarem como o typo da elegancia «a rapasiada fina da baixa que veste bem!»
-- Parece-te interessante? perguntou Maria Lucia com certo empenho que o tom da pergunta e a expressão do olhar denunciavam muito.
-- Parece me... um rapaz! respondeu Sophia, sorrindo-se. E' teu namorado?
-- Vae ser meu marido.
-- Casas-te! exclamou Sophia; e nem uma palavra me dizias a similhante respeito!
-- Reservava as minhas confidencias para quando acabasses de me revelar as tuas.
-- Tens-lhe muito amor, de certo?
-- E' um casamento de inclinação.
-- E teu pae...
-- Oppõe-se, e jámais consentirá.
-- N'esse caso...
-- Serei tirada por justiça! Fiz antes de hontem vinte e cinco annos.
-- E o teu namorado...
-- Queres dizer meu marido?
-- Seja! Teu marido... é rico?
-- Não accusei nunca a Guilherme de não o ser!
-- Porque Guilherme nunca tentou tirar-me por justiça sem ter o nosso futuro assegurado. Emfim, já por isso comprehendo que o teu namorado com quanto mais rico do que Job é mais pobre do que Cresso. Isso pouco importa, se as qualidades compensam a fortuna que Deus lhe não quiz dar. E' intelligente, activo, emprehendedor?
-- E' tudo isso, e muito mais ainda a meus olhos, escusas perguntar-me, porque o amo! Tudo nos parece grande e bello na pessoa que nos agrada.
Mas nem uma palavra explicou a indole e a occupação do cavalleiro que ia passando. Maria Lucia não disse onde o conhecera, não explicou de quem era filho, em que se occupava: n'uma palavra, não deu a saber a Sophia quem era o seu namorado.
-- Acautela-te, disse-lhe Sophia; desde o nosso tempo do collegio que me chamas scismatica e apprehensivel, mas raras vezes me illudem os meus presentimentos. Não engraço com a apparencia d'esse homem! Não ha dignidade no seu olhar, nem nobreza no seu sorrir, e as duas coisas que mais revelam um homem são o sorriso e o olhar!
-- Sei talvez porque elle te desagrada! disse Maria Lucia com um glacial sorriso.
-- Porque?
-- Não lhe achas os mil requisitos que a tua escrupulosa mania de romantismo não dispensa aos que tem a desgraça de «passarem sem novidade» e terem côr e saude, em vez de padecerem de qualquer coisa, e andarem pallidos, verdes ou amarellos a passearem em passo grave, a sua tysica elegante!
-- Que lembrança!
-- De mais a mais não é poeta, o pobre do rapaz! Não revela pelas olheiras, as vigiias consumidas em procurar uma rima! Tem o mau gosto de se fazer pentear pelo seu cabelleireiro, em logar de realisar o typo do poeta de abuns, vate descabellado e tétrico! Ignora que não se considera rapaz elegante, senão o que andar em dia com as novellas que ahi apparecem traduzidas, e com as comedias que estão a ensaios nos theatros, e que tenha o olhar a melancholia de torna viagem, que as preciosas desdentadas acclamam como suprema revelação de um geio!
-- Fazes-me então pertencer ao greio d'essas preciosas!
-- Não, minha querida, eras ainda muito nova para isso, quando mesmo a tua intelligencia não fosse, como é, cem vezes superior á das classicas litteratas de Lisboa, eruditas do Passeio Publico, que tudo sabem menos o que são as quatro partes da grammatica!
-- Se não engraças com os litteratos, pelo menos lhe tomaste o estylo das detracções de folhetim!
Maria Lucia deu uma gargalhada.
-- Estamos em Cintra! exclamou. Nunca o caminho me pareceu tão longo! Cala-te! Cala-te! quando falas de ti fazes maior lamuria que um pobre, e para as outras arvoraste em directora de collegio, saboreando o pitéo de desfazer um casamento!
-- Pois bem, redarguiu Sophia de Lima, quando esperas pertencer-lhe?
-- Dentro em dois mezes.
-- Deus queira que eu não tenha então de chorar a tua desgraça!
XVII
Vida e aventuras de José Teixeira
José Teixeira era um mancebo de vinte e seis annos, que accumulava os cargos de bonito rapaz e de vadio de primeira força.
Era filho de um confeiteiro que tinha desistido de lhe dar conselhos e prégar sermões, logo que o rapaz, aos vinte annos, lhe deu um sobresalto á burra, de que ella e o dono ficaram um tanto achacados.
O pae despediu-o de casa, depois de tentar, mas debalde, que o prendado filho lhe restituisse o dinheiro que lhe havia roubado.
José Teixeira sahiu do lar paterno, queixando-se de ter sido tão mal pago o seu comportamento illibado até á data d'essa.
Já se perceberá que, ainda em cima, desacreditou o pae por toda a parte, fez o romance dos amores paternos com a criada, retratou-o buccolisando no quintal com a cosinheira, soube tirar partido até das boas qualidades do velho, e o caso é que fez rir á custa d'elle todos os sucios do botequim onde costumava ir todas as noites jogar o bilhar até que horas!
Sahiu José Teixeira da casa do «auctor de seus dias» como elle lhe chamava sempre em estylo de comedia antiga, e sahiu sem muito incommodo nem grande despeza de bagagem: algum fato, dois cachimbos, um baralho de cartas sebento, mas que elle não cederia por dinheiro algum d'este mundo, porque para a cartomancia, ou deitar as cartas, como diz mais vulgarmente o povo, era esse baralho de desmedido valor e apreço, não só pelo estado de sujidade a que chegára, o que já de per si é um grande titulo, mas tambem por haver sido bifado a umas meninas infelizes (isto tudo é estylo purissimo de José Teixeira); e em quanto ao valor que á tal circumstancia ligava, nascia elle da crença em que anda a gente de baixa esphera de Lisboa, de que para um baralho de cartas ter virtude é preciso estar já velho, ter servido muito, e haver sido roubado de casa de mulheres de má vida.
Desde que perdeu as roupas domesticas, habituou se o heroe Teixeira junior, -- para não o confundir com o bom do senhor seu pae o confeiteiro, -- a jantar e cear em casa dos seus conhecimentos.
Mais graça terá dizer-se que José Teixeira era affamado conhecedor das casas de má nota, e muito estimado por essa casta de raparigas, que viam n'elle um moço espirituoso, e com grandes habilitações para os cargos sociaes, que não exercia por falta de pachorra.
José Teixeira era inquestionavelmente o verdadeiro homem para aquellas mulheres: tocava guitarra no requinte, cantava o fado tão bem ou melhor que os fadistas a quem tinham embranquecido os cabellos nas lides gloriosas da Travessa do Poço e sobretudo deitava as cartas com tal proficiencia, que ouvil-o depois expor, era o mesmo que escutar um oraculo.
As raparigas perdidas de Lisboa, é preciso ponderarmos isto, acreditam com cegueira e fanatismo no dom das mulheres de virtude.
Mas em Lisboa as mulheres de virtude teem desapparecido desd 1840, porque emquanto ellas existiram os gaiatos fizeram-lhe a cabeça doida, algumas vezes lhes arrombaram a porta e quebraram o que puderam pilhar; a população dava-lhes pouco credito, e não lhes guardava prestigio como em França ou em Hespanha, onde as senhoras da melhor sociedade são as que ás escondidas mais frequentam as barracas meias cahidas, especie de antros escuros e medonhos, onde as cartomancianas se acoitam.
As mulheres perdidas, acreditaram sempre em bruxarias, e quando as mulheres de virtude foram desertando, ellas recorreram então para saber dos azares e casos veridicos do seu futuro, a alguma velha dona de casa, que ficou com o segredo das mulheres de virtude por suas longas praticas com essas sabias adivinhas!
Mas a pouco e pouco o segredo foi-se divulgando: houve quem desconfiasse que da disposição das cartas, e não da inspiração de quem as deitava, é que sahiam os mysteriosos juisos e decretos.
Houve então quem se entregasse á tarefa de observar se effectivamente era da disposição das cartas, e do encontro das figuras, que resultava o juiso que a expositora formava.
Certa perspicaz intelligencia julgou comprehender que tudo dependia não só da disposição das cartas, mas da significação de cada uma d'ellas, e não sei até se foi José Teixeira o descobridor d'este novo mundo!
Em Lisboa acredita se com tanta cegueira em tudo que se não percebe, que a fortuna d'este novo oraculo foi rapida e facil.
Com uma pouca de penetração, -- e José Teixeira não se perdia por tolo, -- qualquer tira das cartas certos decretos por tal fórma vagos, que as consultantes, que de ordinario é gente destituida de intelligencia e de instrucção, accrescendo a isto estarem preocupadas pela circumstancia que as interessa, accommodam por alguma forma os confusos juisos que o expositor apresenta, á sua situação e á sua idéa.
José Teixeira tinha tal arte para atemorisar as consultantes, e sabia enfeitar por tal fórma as conclusões que tirava, que mereceu nas casas de má nota a reputação de um espirito perscrutador e profundo.
Era raro o dia em que um caso de sympathia não obrigava alguma rapariga a mandar pedir ao nosso heroe que apparecesse em sua casa levando as milagrosas, para as consultar a respeito do seu amante.
Depois, como este sabio hierophante se fazia passar por um cavalheiro, as pobres raparigas não podendo pagar-lhe como dantes ás mulheres de virtude um crusado por cada sorte, viam-se obrigadas a fazer-lhe de quando em quando presente de um collete, de um annel, de uma manta, e convidal-o a jantar, pelo menos um dia cada semana, favor que José Teixeira no fim já não podia acceitar porque a semana tem menos dias, do que elle tinha de convites.
Era curioso vel-o então. Especie de medico prestigiador, começava de ordinario as suas visitas de manhã, e quando eram dez horas já estava muitas vezes no meio de uma sala, cercado de raparigas sentadas no chão, umas a ouvirem no sem respirarem, sequer, outras escutando-o, e ao mesmo tempo continuando a pentear-se e a molhar o pente na chavena do bandolim, empastando o cabello n'uns bandeaux de pouco sympathica feição.
«Mau! Mau! Isto está muito mau! -- exclamava José Teixeira esbogalhando os olhos á proporção que voltava as cartas para resolver certo segredo com que o amante de uma das raparigas a andava martyrisando. -- Isto vae muito mal, é o que eu sei!»
«Então que dizem ellas? -- perguntava a consultante, já pallida e tremula.
«Que dizem ellas, ó Teixeira? -- perguntava em côro o resto das clientes.
O oraculo parecia recolher o seu espirito, depois dizia assim:
«A menina está marcada em dama de oiros, e aqui está o seis de espadas que marca umas más falas, e esta dama de paus que me está suspeita. Cá apparece elle no valete de oiros, e logo na pista o az de paz que são uns fandangos (amores), e está bem visto que estes fandangos tem logar com a mulher de paus com quem a menina tem umas más falas, e até lagrimas, porque já nos apparece o cinco de copas e o sete de espadas, que é um desgosto formal, ao pé do az de oiros, que marca uma prenda; e já se vê que o desgosto é por causa da prenda que elle deu a esta mulher e o tres de copas diz com certeza, o dois de paus a caminhos, e o quatro de paus marca prisão. -- Mau! Mau! Ou a menina ou elle, vão parar ao Carmo! E a espadilha affirma!
A pobre consultante ao ouvir isto desata em prantos, porque as nossas mulheres de marmore não riem sempre como as Marcós de França, e choram ás vezes lagrimas sinceras e verdadeiras.
«Ó Teixeira, deita as lá por mim. Sempre quero vêr o que ellas dizem a respeito do chinfrim que tive hontem com a Conceição no Baile Nacional...
«Pois sim, mas manda me buscar charutos!
«Ó Thereza, grita a rapariga dando dinheiro á criada, vae me buscar seis charuto? de pataco.
Depois, voltando-se para o mago lisbonense:
«Vá, vá! Esta sorte só em charutos já me custa doze vintens!
E José Teixeira levava assim as manhãs e as tardes. Á noite ia um bocado jogar o bilhar, outras vezes a Carriche acompanhando alguma funcção, e aos sabbados ao Baile Nacional no inverno, e ao Jardim Chinez no verão.
Tinha um comité de amigos onde a auctoridade da sua palavra era reconhecida, e onde o julgavam um moço dotado das mais bellas faculdades,.
O nosso homem tinha vinte e seis annos, era alto e bem feito, de physionomia agradavel e seductora, olhos azues, bigode loiro, cabello castanho finissimo, e certo ar de quem tem a consciencia de que é importante para alguma cousa, e considerado n'algum circulo.
Um olhar experimentado conheceria apesar d'isso no primeiro lance de vista, que José Teixeira era homem de má sociedade.
Apesar do extremo apuro que punha no vestuario, apesar mesmo de certa liberdade e franqueza de gestos, e da facilidade de movimentos que se observava n'elle, conhecia-se que era homem educado no centro de más companhias, e por mais que se ataviasse nunca conseguia ser elegante.
O elegante adivinha-se, presente-se. Basta um laço da gravata para lhe alcançar os creditos de homem de bom tom.
No traçar a perna, no erguer o braço, no tirar o chapeu, póde adquirir-se direito a elegante di cartello.
Na maneira de falar, no modo até certo ponto simples de metter as mãos nas algibeiras, no calçar da luva, no dobrar de um punho, no cheirar uma flôr, no partir de um fructo, no assestar da luneta, distingue-se o homem de qualidade.
Apesar d'isto, julgo falsa a opinião quasi universal de que a elegancia só a dá a natureza.
Não! A elegancia adquire-se; mas não se aprende nos botequins nem aos balcões, nem na convivencia extremamente intima com as desterradas filhas de Eva; aprende-se nas salas, nos boudoirs, nos pique niques campestres, nos bailes aristocraticos, no tracto usual com a sociedade polida e educada, impenetravel aos magericões eifectivos da Calçada de Carriche!
José Teixeira nem sequer dava idéa do côvado e do retroz, como tantos elegantes de má feição! o arquear dos braços não accusava o habito de medir fitas. Todavia usava sempre chapeus tão novos e de abas em tão bom uso, que logo se via que tinha poucas pessoas conhecidas a quem fosse preciso cortejar; na escolha das côres e no exagero das modas, revelava se o homem que ignora as regras da elegancia e da etiqueta.
Porque se o janota não é bem o elegante, tambem o typo que apresentamos em José Teixeira não chega ainda ao janota. O janota não é hoje o rei da moda, é o martyr d'ella: e o typo que o leitor está vendo, não é o martyr, é o sacrificador da moda. Aquelle, acceita-a como ella apparece, este exagera-a ainda por sua conta e risco!
E' talvez util para fazer sentir a verdade d'este typo que fiz encarnar em José Teixeira, tornar bem saliente a distancia que existe entre elle e o janota.
O janota gasta o que tem e o que não tem, em luvas do Baron e em fato do Keil. Deve aos boleeiros, ao sapateiro, á hospedaria, á engommadeira, ao estanqueiro, a todos os agiotas da capital, e até deve ao criado. Janta no Matta, tendo almoçado no Martinho. A noite toma chá e salame no theatro, ou vae a alguma cêa a que esteja convidado. Costuma dormir até ao meio dia, jantar ás seis horas, e deitar-se ás duas da noite.
Tem sempre uma amante, excepto quando tem duas.
Ás vezes, por commiseração, recebe de uma o que dispende com a outra: d'outras vezes, por magnanimidade, recebe de ambas!
A moda exige ao janota, propriamente dito, dois amigos que vivam á custa d'elle. O verdadeiro janota não só sustenta os seus dois amigos, mas veste-os. Dá-lhes hoje um fraque, ámanhã um collete, tudo, menos lenços de pescoço; a gravata é o seu distinctivo: a boa escolha de côres, a perfeição do laço, constituem o seu triumpho.
O janota vive até aos vinte e nove annos. Aos trinta ou é homem do mundo, ou não passa de um desgraçado.
E agora, voltando ao typo de José Teixeira, diremos que assim como em França ás raparigas de conducta equivoca que foram morar nas visinhanças da igreja de Notre Dame de Lorette, se lhes ficou chamando lorettes, por que não havemos nós de ficar chamando chineles, até para os differençar dos janotas, aos parasitas que alcançaram nome e se illustraram durante as noites de baile do Jardim Chinez?
Chinezes, serão Chinezes!
E o leitor passa desde já a ficar ao facto da vida d'estes novos heroes de Lisboa no seculo XIX.
O chinez é um rapaz na flôr da idade, sem eira nem beira, nem ramo de videira, mas que, á falta de outros dotes, tem o pé pequeno, um bonito cabello, e muita graça.
A muita graça do chinez consiste em falar sempre n'um tom de voz irrisorio, acompanhar as palavras de caretas e gestos contínuos, e ter sempre um dito que varía conforme as epochas:
«Ora não fostes!
«Domis tecum!
«Muito boa noite!
«Ora essa!
«P'ra que viva!
«São coisas!
«Não somos nada n'este mundo!
E mil outros anexins com que estes entes espirituosos enfeitam o encanto da sua conversação.
O chinez faz-se amar por seus dotes naturaes, e vive no gremio das raparigas de má sorte. Estas infelizes teem o costume de querer ser amadas, e a desgraça de tambem amarem. Cada uma tem o seu chinez, de quem só recebe os bons dias e as boas noites, e a quem ainda em cima costuma dar para fumar e para vestir.
O chinez serve para a amar, para a acompanhar pela rua ás vezes, e para dançar sempre com ella no Baile Nacional e no Jardim Chinez, porque não é rapariga que se respeite aquella que não tiver em publico sempre o seu amante ao lado! Ora, sendo José Teixeira o typo do chinez tão real e perfeitamente como elles estão no Baile Nacional, o leitor comprehenderá agora a que se expunha Maria Lucia com similhante homem.
Na sociedade que a filha de Militão Vidueira frequentava não apparecia nunca o seu namorado, é certo: comtudo ninguem lhe podia dizer quem elle era, porque não era conhecido ahi.
A pobre menina encontrou-se collocada entre a voz do seu amor, que advogava a causa d'esse homem, e as accusações de seu pae que o cobriam de infamias e de injurias: é escusado dizer que n'um caso d'estes, acreditou a voz do amor de preferencia á voz de seu pae!
Havia-o conhecido no Passeio Publico, n'uma tarde em que elle fora assentar-se a seu lado e não tirára mais os olhos d'ella.
Maria Lucia, que já estava sentada ha mais de duas horas, e que principiava a enfastiar-se mortalmente, resolveu-se a entreter o seu spleen acceitando por essa tarde a côrte com que esse moço, que ella nunca tinha visto, mas cujo exterior lhe não desagradava, tinha vindo como por milagre despertal-a da insipidez de que o seu espirito estava soffrendo, graças á patriarchal atonia que os frequentadores do Passeio Publico sabem manter n'este local respeitavel.
No Passeio Publico ninguem passeia. Ou se anda a correr ou se está sentado, passear não é permittido.
No Passeio Publico namora se, conversa-se, discute-se politica e litteratura, fazem-se e desfazem-se reputações, dizem-se verdades amargas a respeito dos ausentes, e mentiras obsequiosas na cara dos presentes, concedem-se titulos, pede-se uma menina em casamento, planea-se um enterro, promettem-se empregos publicos, solicitam-se candidaturas -- tudo se faz, excepto passear!
Observou Maria Lucia n'essa tarde, que nenhum dos rapazes conhecidos em Lisboa que alli se achavam, falou ao seu desconhecido, ou mostrou conhecel-o.
E' talvez do Porto! disse comsigo.
Mas a physionomia d'esse moço que ella a pouco e pouco observou com maior attenção, pareceu-lhe realmente interessante, e apesar do proposito que formára de que a distracção d'essa tarde findasse para sempre ao sair do Passeio, parece que os olhos azues de José Teixeira souberam seduzil-a e enleal-a por algum olhar expressivo e magnetisador, porque ao entrar para a carruagem, a filha de Milhão Vidueira como que sentiu pela primeira vez na sua vida que era capaz de amar alguem alem de Nini, isto é, a sua unica amiga Sophia de Lima, que a esse tempo era ainda Sophia de Sousa.
José Teixeira entrou n'uma sege da praça e disse apenas para o boleeiro:
«Segue essa carruagem.
Na rua de S. Francisco, a carruagem parou. Quando Maria Lucia descia sentiu parar uma sege perto de si; olhou, e viu o seu desconhecido do Passeio Publico, que se apeou e tomou a direcção de S. Carlos.
O olhar que trocaram rapidamente, teve já o valor de uma intenção; não era porventura dizer um ao outro:
«Vê que te segui!
«Ainda bem que sabes onde móro --?
Certo é que do dia seguinte em deante principiou José Teixeira a rondar os sitios, e desde que conseguiu comprar um dos criados e estabelecer com Maria Lucia uma correspondencia incessante, o mancebo pareceu dar parabens á sua fortuna.
Qual era seu fim e a sua idéa, seria difficil adivinhar. Durante todo o tempo em que fez a côrte a Maria Lucia, portou-se com uma generosidade, com uma abnegação, com uma sinceridade apparente tão elevada e propria, que a pobre menina não poude deixar de ponderar:
«Ninguem podia ser mais amante e ao mesmo tempo mais respeitoso do que elle!
Nunca lhe pediu uma entrevista em Cintra, alta noite; nunca lhe pediu um beijo sequer; todas as suas idéa s pareciam as de um namorado que só pede a Deus, vida e saude para alcançar a mão da sua bella.
Começaram as arguições da parte do pae de Maria Lucia, começou uma guerra desenfreada contra o rapaz, e nunca uma palavra d'elle, um gesto sequer mostrou o menor desacato para com Militão Vidueira, mas unicamente sentimento profundo de que o calumniassem por tal maneira.
E continuou apesar de nem já lhe poder falar senão uma vez por semana, porque era o dia em que Militão jantava em casa do Marquez de Villar, a ser reverente, sincero, ingenuo como sempre.
O que parecia querer este homem, para falar a verdade? Casar.
Assim pareceu a Maria Lucia, e assim pareceria a todas as Marias, a todas as Lucias, e a todas as Marias Lucias d'este mundo.
XVIII
Espectativa
Cinco mezes haviam passado depois dos acontecimentos descriptos nos ultimos capitulos do primeiro volume; e para os principaes vultos d'esta historia esses cinco mezes tinham marcado uma epocha memoravel.
Guilherme da Cunha lançara-se no jornalismo. O primeiro numero do Movimento, publicado dois dias depois do casamento de Sophia, deu como segundo artigo uma das mais elegantes verrinas jornalisticas que o nosso paiz tem lido, satyra vehemente que despertou a attenção publica pelo brilhantissimo das idéas, pelo fogo e ardor das apostrophes, por tudo emfim que revelia uma alma que se incendeia, um coração que agita, uma imaginação susceptivel ainda de se abrazar ao lume de uma idéa politica! Era-lhe precisa uma nova paixão para suffocar a que o devorava, e a politica foi a paixão que elle escolheu! Tentou entregar-se de alma á lucta que emprehendêra: que tinha elle a perder? Não sei até que ponto lhe era vantajosa a circumstancia de se empenhar apaixonadamente e de consciencia, n'uma lucta em que os collegas só entravam com o calculo pequenino de alcançarem um despacho, de serem dispensados de ir á secretaria, ou de ganharem direito a um logar mais rendoso. A politica é uma prostituta que arruina a saude moral: e Guilherme, que ainda tinha crenças, ia pelejar com os que já não teem alma nem paixões!
A guerra foi medonha, porque não foi declarada: os que lhe apertavam a mão atraiçoavam-o, os que se diziam seus amigos eram os mais invejosos, os mais perversos, os mais temiveis inimigos que elle tinha sem o saber!
Costumados a encastellar palavras, e agrupar phrases despidas de pensamento, os collegas escandalisaram-se de que o neophito apparecesse com idéas, n'um paiz como o nosso em que ellas não se usam!
Mas havia previsto tudo, opposição, maledicencia, rivalidades! Não se conserva durante mezes uma idéa sem a encarar em todos os sentidos: quando depois a apresentamos ao mundo já a temos vestido, despido, maltratado, preparado emfim para soffrer os ataques da mediocridade ou da inveja!
Mas é preciso que essa idéa triumphe: não é grande em Lisboa senão quem vence: só elle tem razão, só elle tem merecimento. Ninguem trata de saber de que modo foi a lucta, de que lado estava a força, e de que lado estava o direito: as ultimas impressões são as que ficam, o desfecho do drama é tudo; os espectadores da comedia da vida applaudem a peça. e chamam o auctor olhando apenas á scena final, e não se lembrando sequer se a acção fôra ou não bem preparada; os que vencem são os grandes homens, os homens honestos, os homens de bem!
Mas era justamente a idéa das dificuldades que o cercavam na lucta que tentára, que maior coragem dava a Guilherme, tornando-o cada vez mais ardente, mais receoso de a perder!
Cuidados, desgostos, privações, foram a maior voluptuosidade d'aquella alma crente, que tudo esperava ainda de Deus. Viveu entre lagrimas de saudade e lagrimas de esperança: esperanças de gloria e saudades de amor!
O frio, a miseria, e ás vezes a fome, opprimiam-o por momentos, mas logo voltava para aquelle espirito em que a crença era tudo, a idéa de que nunca a amisade, a maternidade, a devoção haviam conseguido uma tão heroica abnegação de si proprio.
Estudou e trabalhou durante esses mezes com a actividade incansavel do homem que intenta consagrar a paciencia e o talento ao interesse futuro da sua gloria.
Passou, todo este tempo, de sacrificio em sacrificio, e até d'esta situação colheu a alegria de provar a si proprio até onde podia ir o excesso da sua adoração.
Durante todos estes mezes ninguem o viu, ninguem soube d'elle senão pelos artigos do Movimento, que com quanto não fossem assignados, em breve constou serem obra de sua penna quasi ignorada até então, e que principiou logo a tornar-se popular e estimada. As satyras de Pedro d'Arezzo não foram mais vehementes, nem mais terriveis do que os artigos de Guilherme. -- «O que quer elle?» -- perguntaram os ministros a alguem, tentando ainda abafar as explosões d'aquelle inimigo imprevisto e inesperado, que os incommodava mais do que os classicos politicos da opposição systematica.
Falou-se-lhe da parte do ministro, propoz-se-lhe um logar de amanuense de 1.ª classe, e prometteu-se-lhe alcançar do governo que lhe désse uma commissão: quando o mancebo recusou, o ministro suppoz que tinha de frente um doido ou um poeta, porque é assim que Lisboa costuma chamar aos que presam a sua dignidade e a antepõem aos proprios interesses!
E o mancebo continuou na mesma vida de trabalho e de estudo, de privações e de miseria! Do ordenado que tinha do jornal, dividia metade com sua mãe: restavam lhe para elle dez mil réis, e com dez mil réis por mez sustentava-se, pagava a renda de uma pequenita agua-furtada, ao Soccorro, comprava papel, e vestia-se!
Pouca gente sabe quanto ha de nobre e de heroico n'estas luctas por muito tempo ignoradas, que devoram milhares de existencias. A miseria de Guilherme nem era ao menos d'essa miseria de luva branca, da miseria que dança nos bailes sem ter tido que jantar senão pão secco, porque ás vezes o estomago é lesado para attender ao luveiro!
Essa miseria era, porém, mais terrivel e penosa, era a miseria dos homens educados que não pedem esmola, que trabalham sem descançar, que se levantam mal a manhã desponta para aproveitarem os primeiros clarões do dia, e pouparem para a noite a vela que compram! Triste e pungente situação que a pouco e pouco faz entrar n'alma o desalento, até que um dia a victima já sem forças para luctar, vê fugirem-lhe com os ultimos raios do sol a sua ultima esperança e o seu ultimo desejo!
O marquez de Villar e a empreza do Movimento, comquanto não ignorassem a situação de Guilherme, não se lembraram nunca de o ajudar e proteger, augmentando-lhe o ordenado, e todavia bem sabiam elles que era aos artigos da sua penna que se devia a prosperidade do jornal. Quando d'uma vez Victor Marrocos lhes disse que Guilherme era o sustentaculo da folha, responderam-lhe que respeitavam a singular abnegação e modestia que o obrigavam a ceder exclusivamente ao collega os louros de uma victoria que tambem devia partilhar: quando elle accrescentou que Guilherme sustentava sua mãe, e que o ordenado que lhe davam não bastava para sua mãe nem para elle, quanto mais para ambos, os bons patriotas encolheram os hombros e mudaram de conversa.
Quasi, porém, no fim d'esses cinco mezes a mãe de Guilherme escrevia a seu filho e dizia-lhe na sua carta:-- «Estamos de luto por tua tia e minha irmã: hoje mesmo recebo esta triste noticia. Apesar das nossas dissidencias particulares, aquella boa alma no momento de partir para Deus lembrou-se de nós: -- estás seu herdeiro. »
Por antigas questões de familia, contendas domesticas que são frequentes sobretudo nas pequenas povoações, as duas irmãs tinham interrompido relações logo depois do casamento da mãe de Guilherme Viera servir de nova pedra de escandalo o não haver Guilherme completado o curso da Universidade de Coimbra, e ter seguido a carreira de escriptor publico n'um paiz em que se todos elles não andam descalços é porque nenhum vive exclusivamente d'isso!
A herança era apenas de tres contos, em inscripções e em bens; todavia isto mesmo foi para o mancebo um grande sopro da fortuna. Partiu para o Carvalhal, logarejo perto de Obidos, onde sua mãe vivia, pediu-lhe para que viesse para Lisboa estar em sua companhia, e um mez depois, senhor já da herança, alugou uma casa, mobilou-a, comprou livros, e escreveu uma carta ao marquez de Villar, em que lhe dizia: «Vossa Excellencia, melhor do que eu, avalia as vaidades do talento: suppondo mesmo que eu não tenha talento, conceda-me que tenha vaidades. Não é de certo nem ao meu merecimento nem ao meu nome ignorada ainda, que devo o haver recebido de vossa Excellencia a honra de me confiar uma parte na redacção do Movimento: de tal distincção é-me credora a protecção benevola que os homens politicos do caracter de vossa Excellencia costumam dar aos que apparecem desconhecidos e inexperientes, offerecendo apenas a força da vontade; no emtanto as minhas vaidades levam me a crêr que pelas minhas satyras ao ministerio, com que o meu espirito quotidianamente se recreia, possa eu de algum modo tornar odioso o jornal que as publica, sem que anteveja para mim vantagens na proporção dos encargos que estou dando a vossa Excellencia como proprietario d'esta folha E' possivel tambem que os senhores ministros não se dêem a lêr-me, e se não ignoram ainda que taes satyras se publicam, é porque o jornal que as insere é bastante notavel pela côr das idéas que advoga, para que todos se empenhem em lêr o que lhes ensina. De todo o modo, arrependo-me de haver escripto verrinas talvez improprias de um jornal grave, e antevendo consequencias talvez desagradaveis, peço a vossa Excellencia me considere desde já desligado da redacção do Movimento, e me permitta assignar-me: de vossa Excellencia muito respeitoso criado: G. da Cunha.»
-- Agora que sabem que não preciso d'elles, quero vêr se estendem, para pedir, a mão que não estenderam para ajudar!
O marquez de Villar recebeu a carta de Guilherme ás cinco horas da tarde; ás oito da noite os directores do Movimento decidiram que se lhe offerecesse cincoenta mil réis mensaes, e que por cousa alguma ficasse o jornal sem as vehementes verrinas que longe de o tornarem odioso, como dizia a carta, o tornavam lido, estimado e popular
N'essa mesma noite o marquez de Villar e Victor Marrocos procuraram Guilherme; foram encontral-o em casa da marqueza do Valle d' Arruda, onde estava passando a noite. Era essa a primeira vez desde o casamento de Sophia que alguem o viu n'um salão. A marqueza recebeu-o excellentemente, apresentou-o ás principaes pessoas que alli se achavam, ao duque de Sotto, ao ministro de França, ao visconde do Lago, a um primeiro addido da legação hespanhola, e a algumas senhoras que sabiam da historia dos seus amores, e que estavam curiosas de o conhecer e de lhe falar Houve da parte de todos, como é de suppôr, a delicadeza de não aventurar uma pergunta, uma allusão, que pudesse revelar a Guilherme que estavam ao facto da sua vida particular. Depois de muita insistencia da parte do Villar, e de alguns rogos de Victor de Marrocos, Guilherme acceitou a proposta que lhe fizeram, mas com o ar de superioridade de um homem que é bastante generoso para fazer um favor contra vontade. Quando o marquez se retirou, depois de lhe agradecer mil vezes, Guilherme deu o braço a Marrocos, unico que sempre lhe deu provas de estima, e disse lhe com um sorriso glacial:
-- Estes homens politicos do nosso paiz são o que até hoje conheço de infinitamente pequeno!
Desde então Guilherme da Cunha pertenceu ao numero dos escriptores publicos da moda. Os seus artigos, todavia, revelavam ás vezes que o seu espirito abusava do seu talento, e que podendo discutir uma questão com a gravidade de uma razão esclarecida, sacrificava tudo ao effeito de uma observação chistosa, ou de um epigramma a tempo. Agradaram os seus defeitos, e conseguiu fazer epoca. Deslumbrado pelas glorias ephemeras d'um triumpho momentaneo, chegou a persuadir-se que assegurava o seu destino por essas ovações de occasião, que são muito como promessa, mas que valem pouco como victoria definitiva. Cegou-o a luz de um relampago de gloria, e julgou haver vencido, na occasião em que ainda não tinha conseguido mais do que travar o combate.
-- Vae perder-se como os outros, como quasi todos os talentos de Portugal, a quem os primeiros triumphos impossibilitam de arriscar nova porção de vontade e de estudo para uma decidida gloria! disse Antonio Roma depois da leitura de um artigo de Guilherme, que já denunciava que elle havia confiado no seu talento para uma improvisação, que saiu feliz mas que desmentia o estudo da questão!
A este estado haviam chegado as cousas durante os cinco mezes que medearam dos acontecimentos narrados no primeiro volume, aos que n'este tentamos descrever.
Nunca durante este tempo Sophia e Guilherme se haviam sequer avistado. Raras vezes até o nome de algum d'elles havia resoado aos ouvidos do outro, expresso pelos labios de um extranho. Julgavam-se mortos um para o outro, e todavia nenhum d'elles se considerava esquecido: mas não devia a dignidade de ambos dar-lhes coragem para vencerem o desejo de se encontrarem de novo?
Dois mezes depois de Guilherme apparecer novamente no mundo, isto é, dois mezes depois da primeiro capitulo d'este volume, estando o barão de Souza uma noite a jogar no Gremio Litterario, ouviu em confidencia uma noticia que de tal forma pareceu desgostal-o, que pouco depois se ergueu da meza e saiu.
-- Maria Lucia fugiu de casa! disse elle logo que entrou no quarto de Sophia, com quem foi tomar chá n'essa noite.
-- Fugiu! exclamou ella; n'esse caso foi de certo...
-- Sedusida, disse o barão. Quando os pães não impedem a tempo os loucos amores que algumas filhas emprehendem, o resultado costuma ser a desgraça d'ellas e a deshonra das familias!
-- Coitada! exclamou Sophia, o amor póde tanto!
-- E' por isso que os pães teem de lembrar-se que lhes compete ainda maior poder do que o do amor! retorquiu o barão.
-- O homem que a roubou...
-- Ha de um dia prostituil-a! E' um d'esses miseraveis a quem a natureza recusou o dom da intelligencia, e a quem o destino não permittiu a educação, mas que por fatalidade nasceram perfeitos emquanto aos dotes physicos, o que é ás vezes bastante para apaixonar as mulheres, as mulheres de Lisboa sobretudo, que attendem muito ao exterior do homem!
-- Pela maior parte! disse Sophia.
-- Na generalidade, redargiu o barão. As excepções não constituem regra! Raras são as meninas de Lisboa que exigem de um namorado mais do que saber dançar, vestir-se bem e não ser feio!
-- Algumas encontraram na vida mais do que isso, disse Sophia com um suspiro; e tiveram de se sujeitar a dizer adeus á felicidade que tinham avistado!
-- A essas resta ás vezes alguma consolação ainda, replicou o pae: teem posição e o mundo dá-lhe importancia... em quanto ellas teem a coragem de não deixarem perceber que estão arrependidas da dignidade que teem conservado!
-- E' custoso apesar de tudo encontrar-se alguem na terra depois de haver sonhado o ceu!
-- Pequeno ceu é o d'esses amores! disse o barão com um triste sorriso: é um ceu sem Deus, ou antes é um Deus sem omnipotencia! Na vida positiva o amor póde tão pouco!
Houve uma pausa de alguns instantes. Nas palavras de Antonio Cypriano havia mais tristeza do que repercussão; durante a pausa que cortou este dialogo, os olhos do pae divisaram lagrimas nos da filha; então, parece que um impulso de coração fez com que esse homem extendesse a mão á victima que irreflectidamente sacrificara.
-- Estás desgostosa do mundo? disse elle.
A filha permaneceu calada.
-- Tenho-me accusado por vezes de não te haver deixado seguir a primeira inclinação da tua vida! A tua tristeza devora-me mais agora na sua mudez, do que d'antes me impressionavam as tuas supplicas! Perdoa-me, Sophia! Suppuz que era mais pequena a tua alma, e mais pequeno o teu amor!
Antonio Cypriano teve lagrimas nos olhos pela primeira vez na sua vida: Sophia chorava perdidamente com a fronte escondida entre as mãos.
-- Ao menos, continuou o pae, quero que as distracções da vida te compensem da esterilidade d'ella. D'ora em deante quero dar bailes, unicamente por ti. Se fosses tu que os désses o mundo accusar-te-hia talvez de leviandade! Fiz-te infeliz sem o querer, mas heide, a todo o custo, esmerar-me em resgatar parte da tua felicidade!
-- E' difficil! exclamou Sophia.
-- Enganas-te, pobre creança! Para ti ainda a vida se não apresenta despovoada de esperanças! Na tua edade qual é a situação que possa desvanecer os sonhos de uma alma ardente que confia em Deus! Pobres das almas que só no declinar da vida sentem aquecer se pelo sol dos affectos; para essas nenhuma esperança resta! Mas para ti que ainda agora experimentas o primeiro revez da sorte, quem sabe o que te estará reservado de felicidade no futuro?
-- Oxalá! exclamou Sophia; mas que a felicidade se não lembre só de mim!
-- Sempre a lembrança d'elle! disse o pae por entre os dentes. Quem sabe se o teu amor vive mais na cabeça do que no coração, e se é a tua phantasia que enfeita sempre essa idéa!
Sophia levantou os olhos para seu pae, e lançou-lhe um olhar de despeito que o obrigou a medir o que dissera.
-- Serias mais feliz assim! continuou elle. As idéas pungem menos do que os sentimentos! e quantas mulheres amam apenas n'um homem o seu proprio amor por elle!
N'esta occasião sentiu-se o ruido de uma carruagem no pateo.
-- E' teu marido que chega? disse o pae.
-- E' meu marido que vai sair! replicou a filha com um triste sorriso.
-- Sair! a esta hora, sair! Pois estava em casa e deixava-te aqui, só, sem teres com quem conversar com quem te entreteres! Nem ao menos fazer-te companhia durante o chá! Sair á meia noite! No trem! Tornar testemunhas do seu comportamento inexplicavel os criados e o publico! Mostrar bem ao mundo que gosta de te vêr sacrificada e que conseguiu ser o primeiro homem que ri de mim impunemente! Vilão!
Depois de um momento em que o silencio d' esse homem foi eloquente de cholera e de raiva elle disse com uma expressão de ira concentrada e violenta:
-- Hei de vêr a desgraça d'este homem! Preparal-a hei para assistir ainda a ella! Foram bem fataes as circumstancias que me não deixaram seguir o impulso da minha antipathia por elle desde a primeira vez que o encontrei! Foi o ultimo favor que devo á politica! Por ella te sacrifiquei, pobre filha, para não offender com uma recusa o chefe do meu partido!
E Antonio Cypriano apertou entre as suas as mãos delicadas de Sophia.
-- A condessa da Rocha dá uma soirée ámanhã. E' preciso que appareças, e que appareças alegre e descuidosa como quem vive feliz. E' de crer que te peçam para cantares...
-- Desde que casei que não me sento ao piano! Até a musica me recorda a peor situação da minha vida, a de julgar falso e traidor o peito que se estremecia por mim!
-- Esqueçâmos tudo. O passado e o puro nada é o mesmo. Vive-se pelo presente, e quando o presente é arido, amenizemol-o. Viver de saudades é sempre triste, quanto mais viver de tão tristes saudades como as tuas! E' querer ser infeliz! Distrae e esquece! Conheço bem que tens nas veias o meu sangue, e no coração a minha indole: eterna nos sentimentos! és bem minha filha!
Depois de uma pausa:
-- Irás ao baile ámanhã?
-- A solidão consola-me talvez mais do que o mundo, meu pae! O mundo não sympathisa com os que soffrem, porque não podem levar a alegria a um baile ou a uma festa, e vão pela maior parte das vezes tiral-a aos que ainda gosam d'ella!
«Estou costumada já a viver só. A atonia da minha existencia nem sequer me desagrada. Creio que nem sinto... senão quando me recordo! Uma unica imagem vem ás vezes esclarecer a melancholia dos meus sonhos, mas essa imagem fugiu para sempre e só em sonhos me apparecerá!
-- Irás ao baile, repito-te. Roubei-te a felicidade sem querer... restituir-t'a-hei. Irás ao baile -- e encontral-o has no baile!
Sophia de Lima estremeceu:
-- Vêl-o! Vêl-o de novo?! E com que olhar me cobrirão os seus olhos, Deus meu?
-- Com o mesmo olhar com que a tua alma o verá! O da felicidade!
Na noute seguinte teve logar a soirée da condessa da Rocha. Ainda a festa ia no principio e já o numero de convidados avultava. A condessa é uma das poucas fidalgas de Lisboa que todas as classes acatam e estimam. Typo da antiga aristocracia portugueza, da nossa boa e digna fidalguia, que á nobreza do sangue reunia a do caracter e a do saber, a condessa da Rocha, que era agora senhora de sessenta annos de edade, ainda possuia o dom de encantar os que a ouviam, pelo acerto da sua conversação.
E' talvez menos elegante o seu salão do que o das Villar, das Castello Branco, das do Lago, das do Valle, de muitas d'esta aristocracia de ha vinte annos, que pela maior parte nem são nobres pelas acções, nem pelos pergaminhos, nem pelas virtude! Mas não reina aqui a atmosphera infecta dos mexericos e calumnias, com que entre sorrisos frios como os seus corações, se entreteem essas modernas Pompadours em desfazerem reputações e ennegrecerem caracteres.
A reapparição de Sophia de Lima foi tão estimada, quanto a sua longa ausência fôra sentida nas sallas onde a sua voz era considerada como o ornamento indispensavel de um concerto. Mas, sentada ao lado de seu pae, e conversando unicamente com elle, a melancholia que o seu olhar revelava não escapou á perspicacia das pessoas que foram saudal-a.
Em pé, e junto d'ella, estava Luiz de Lima n'um grupo de homens, conversando com o marquez de Villar, Antonio Roma, João de Vasconcellos e Estevão de Mello. A conversação occupava-se das vehementes verrinas que o jornal o Movimento estava publicando contra o ministerio, quando Victor Marrocos, um dos redactores principaes d'esta folha, appareceu junto d'elles.
-- Tenho a cumprimental-o pelo seu artigo de hoje, disse-lhe Luiz de Lima; tem produzido sensação. Diz-se até que o ministro confessára que ninguem o havia ainda incommodado por meio da letra redonda com tão grande tacto jornalistico!
-- Ah! refere-se ao segundo artigo?
-- Que está brilhantissimo! disse o marquez de Villar!
-- Esplendido! disse Estevão de Mello.
-- Mas não fui eu que o escrevi, respondeu Victor Marrocos.
-- Não?! exclamou o marquez.
-- Pois quem? perguntou Luiz de Lima.
-- O meu collega na redação, Guilherme da Cunha.
-- Ah! exclamaram todos; e, por acaso talvez, todas as vistas cairam sobre Sophia de Lima
-- Começa o castigo! disse o barão a meia voz a sua filha, indicando-Ihe o medico, vê como teu marido se fez pallido!
-- Insultar-me-ha a ponto de se julgar com direito a ter ciumes? perguntou Sophia.
-- Não, de certo; mas o seu amor proprio feriu-se pelo triumpho do homem a quem atraiçoou vilmente para alcançar a fortuna que te suppunha!
Effectivamente Luiz de Lima mudára de expressão ao conhecer que fôra o proprio que, sem saber, encetára os louvores a um trabalho do seu inimigo.
-- Guilherme da Cunha é um grande talento, disse o marquez. Se os seus trabalhos não apresentam ainda a firmeza de um pulso litterario experimentado, revelam todavia o brilho de um genio ardente e original.
-- E' talvez uma vocação perdida nos campos aridos da politica, disse Victor Marrocos; o seu talento pedia mais! N'este paiz a politica vive tanto de coisas pequenas e de pequenos homens, que um genio superior sente-se suffocado no ambito mesquinho d'esta athmosphera! E' um homem que ha de conseguir muito pela grande força de vontade que possue, e pela opulencia de faculdades com que Deus o dotou.
-- Talvez cance: disse o medico; ás vezes ha talentos doirados que perdem o esplendor do espirito com as illusões da alma, e na politica as illusões da alma, perdem-se tão depressa...
-- Elle já não tem illusões, senhor Luiz de Lima! disse-lhe Victor Marrocos, acentuando pronunciadamente esta phrase e acompanhando-a de um ironico sorriso.
N'este momento Guilherme da Cunha appareceu na sala e dirigiu-se para o sitio em que estavam o marquez, o barão, Sophia, Luiz de Lima, Victor Marrocos e Estevão de Mello, sem ainda os ter visto.
-- E' elle! disse Sophia ao ouvido de seu pae, sendo a primeira a avistal-o.
O barão dirigiu a vista para o lado que sua filha lhe indicava, e viu effectivamente o mancebo que caminhava distrahidarnente na direcção em que elles se achavam.
-- Oh! chegaste a proposito, disse-lhe Victor Marrocos. Estava-se tratando do teu artigo de hoje.
Guilherme encontrou logo com a vista Sophia de Lima, e a sua phisionomia revelou que uma desagradavel impressão se apoderára do seu espirito.
-- Meu charo Cunha, disse-lhe o marquez, é inutil avisal-o de que era á nossa admiração pelo seu talento, que se deviam as nossas opiniões sobre o seu artigo.
-- Mais depressa talvez á estima com que me honram, e isso provará menos favoravelmente para o merito do artigo, mas de certo demonstra ainda mais o valor da sua amisade, e é tão grande esse valor pela raridade! disse o mancebo cobrindo com um olhar desdenhoso e insolente a figura do medico.
-- Escreve para ámanhã? perguntou-lhe Victor Marrocos.
-- Tenciono: depois do baile.
-- E' indiscrição censuravel o meu interesse se lhe perguntar o assumpto? disse-lhe o marquez.
-- Nem sei ainda, respondeu Guilherme; de alguma cousa que valha a pena de ser discutida!
-- Não se lembre do Conselho de Saude! disse-lhe Lima, que era essa a primeira vez, desde o seu casamento, que se encontrava com Guilherme, e que quiz experimentar se era possivel não se quebrarem relações, dirigindo-lhe esta pergunta como se nada houvesse tido logar entre elles.
-- Do Conselho de Saude! exclamou Guilherme sem olhar sequer para o medico que fazia parte do Conselho, pois temos Conselho de Saude! Peço perdão da minha ignorancia, mas tratarei d'elle quando elle fizer constar que existe e que faz alguma cousa!
Luiz de Lima tomou o partido de acompanhar com um sorriso a gargalhada com que foi saudado o epigramma.
-- Quero apresental-o sr. Cunha, ao nosso amigo o sr. barão de Sousa, que me manifestou o desejo de conhecer pessoalmente o estimavel escriptor que pelos seus artigos tanta predilecção tem sabido merecer!
O barão estendeu a mão a Guilherme com a mais pronunciada delicadeza e consideração. O mancebo recebeu com frieza os cumprimentos que Antonio Cypriano lhe dirigiu. Sem haver olhado directamente para Sophia, todavia distinguiu que era ella que estava sentada ao lado do barão.
Conversaram durante alguns instantes a respeito de politica, ou antes a respeito do jornal. Mas o barão tratou Guilherme com tanta attenção que Luiz de Lima sentiu-se ferido no seu amor proprio, vendo que o sogro dava mais importancia ao rival vencido, do que ao genro vencedor.
A instancias do barão, Guilherme da Cunha, sentou-se augmentando o circulo formado pelos homens que o leitor encontrou reunidos no baile, logo no principio d'este capitulo.
Os seus olhos encontraram então o fixo e melancholico olhar de Sophia e esse olhar ainda accordou na alma do mancebo todas as suas impressões e saudades.
Antonio Cypriano sem sequer se dar ao incommodo de attender ás «conveniencias», principiou a estabelecer uma conversação em que Sophia tinha necessariamente de tomar parte, pelo menos em responder a algumas perguntas de seu pae. A voz da antiga namorada soou aos ouvidos do mancebo como uma harmonia celeste e magnifica. Os seus olhos demoraram-se um instante a contemplar o pallido rosto d'essa martyr sublime, e quando ella ergueu a vista para Guilherme viu que estavam humidos de pranto os olhos com que parecia adoral-a!
-- Ainda me ama! disse Sophia a si propria; e se devéras não é illusão da minha alma julgal-o, então sou menos infeliz do que cuidava!
Apesar de Lima não dirigir mais durante toda a noite a palavra a Guilherme, todavia o mancebo conversou com o barão e com Sophia até ao momento de se retirar da soirée, quasi ás duas horas.
Ainda que conversaram muito, todavia nem uma só palavra revelou a menor intenção ao que se havia passado entre elles. Ao ver Guilherme e Sophia de Lima, ninguem diria que já se conheciam, quanto mais que já se haviam amado.
Ambos encontraram differença um ao outro; a magreza, a pallidez, uma não affectada melancholia, tudo revelava que ambos haviam soffrido durante o tempo em que nem se haviam avistado.
José de Athayde appareceu na sala, viu Luiz de Lima, e veio até ao circulo onde Guilherme estava, por assim dizer, reinando: tão prezas pareciam as attenções ao escutal-o!
O noticiarista que estava sem jornal havia tres mezes, e que tinha ido á provincia visitar parentes, chegara a Lisboa n'esse mesmo dia, e tivera apenas tempo de se fazer convidar para o baile d'essa noite.
Depois de cumprimentar Sophia e o barão, e de receber da parte de Guilherme uma secca saudação, viu que a palavra estava concedida ao antigo debutante dos folhetins do Rei e Povo, que n'esse tempo não só não era escutado em salões, mas nem sequer era admittido n' elles, e o noticiarista conheceu que para ambos elles havia mudado a epocha, e que emquanto elle ficára sem jornal, teria Guilherme encontrado algum!
-- Explica-me esta methamorphose digna de Ovidio! disse José de Athayde a Estevão de Mello puxando-o de parte. A quem está agora arrendada esta sobreloja do Rei e Povo?
-- Meu charo Athayde, respondeu Estevam, o que te sei dizer é que será elle o que d'entre todos nós alcançará fortuna com maior facilidade. E' um moço do mais elevado merito, e que principia a ter grandes protecções!
-- Que me dizes?!
-- A verdade. Guilherme está encetando carreira debaixo dos melhores auspicios. Has-de em breve vel-o nas camaras fazer uma brilhante figura! Só te digo que o considero tanto, que desejava devéras renovar conhecimento com elle.
-- Demonio, já estou arrependido de lhe haver o anno passado dirigido uns dois ou tres epigrammas...
-- Não t'os ficará devendo! replicou Estevão. Se não fosse o dom de palavra com que o destino o enriqueceu, este rapaz ainda hoje estaria a rabiscar folhetins sem ninguem lhe dar importancia. E' preciso que saibas que o marquez de Villar que nunca na sua vida o tinha visto, e que não tinha para com elle o menor motivo de protecção, depois de o ouvir uma noite atacar a epigrammas tudo e todos, encontrou-lhe tanto espirito que lhe confiou uma parte na redacção do Movimento.
-- Estás brincando!? Pois este Guilherme da Cunha é redactor do Movimento?
-- A redacção consta unicamente d'elle, e de Marrocos.
-- E aquelles artigos epigrammaticos que teem feito a fortuna do jornal...
-- São de Guilherme!
-- Aquellas satyras vehementes intituladas -- Os ministros da Autuerpia?...
-- São de Guilherme!
-- Pois meu charo Mello, dir-te-hei que fico considerando o rapaz como o maior talento de todos que n'esta época trepam pela politica com mais ligeireza do que um grumete pelo mastro de um navio! As satyras aos ministros actuaes rivalisam em valor litterario com as Nemesis de Barthelemy!
-- E' um talento que o amor formou! Tambem, o amor tem desfeito tantos, que era tempo de produzir algum!
-- Que tal se dá o Luiz com a mulher?
-- Creio que magnificamente! Trata-a com mil attenções, e se ella apparece pouco não é culpa d'elle, que segundo ainda ha pouco me contou, não póde por mais diligencias que empregue, conseguir que ella goste de divertimentos!
-- Pobre Luiz! disse Athayde; quem sabe se foi sacrificar-se com este casamento!
-- Ha 1/2 hora que essa idéa me assaltou tambem.
-- Porque?
-- Porque vejo o barão e a filha estarem conversando muito com Guilherme!
-- E que te parece? Diz-se talvez que o rapaz ainda...
-- E' natural! Sophia é romantica em extremo, e a situação de Guilherme deve alcançar-lhe muito soffriveis fortunas; tu sabes quanto o prestigio costuma cegar as mulheres!
-- Se sei! Com que, a teu vêr, o Luiz de Lima ainda vem a servir de assumpto para alguma satyra do Guilherme, satyra... que talvez se conserve inedita!
-- Desconfio que o rapaz quer vingar-se de não ter casado, e que a satyra do marido é a vingança que quer tirar! Já se vê que não ficará inedito como tu pensas, e que havemos de saborear algum escandalo.
-- Deus queira! Lisboa está n'uma semsaboria!
-- Insipidez incrivel. Estou com medo de que haja reacção nos costumes. Vejo todos os homens de espirito casarem, e quem sabe se serão elles que reformem a vida de Lisboa no que toca a escandalos conjugaes?
-- Não creias isso; n'um homem de letras ha sempre metade de um marido ridiculo! A maior parte das vezes é até o seu talento e o seu espirito que faz as despezas necessarias para a outra metade!
-- Mas quero dizer-te que não comprehendo esta subita sympathia que prende o barão a Guilherme, a quem, como sabes, nunca poude vêr com bons olhos, e que demais a mais o metteu no folhetim da Physiologia do Sogro!
-- Meu Athayde, bem se vê que chegas da provincia. Em Lisboa já ninguem ignora os mysterios d'este barão!
-- Que faz elle?
-- Vou começar por te dizer o que elle está fazendo n'este momento, depois te direi o que tem feito até aqui.
-- N'este momento! disse José d'Athayde, isso vejo eu!
-- Nao vês nada. N'este momento está-se vingando dos amores do genro com a Ritinha, entregando a filha a uma cavaqueação escandalosa com Guilherme diante de todos, e, peor ainda, diante do marido!
-- Pois o Luiz ainda continua a incendiar-se na chamma sagrada pela Ritinha!
-- Doido varrido! Nem tu imaginas, decerto. Quando os homens de pensamento se transformam aos quarenta annos em homens de coração, tornam-se pequenos Claudios Frolos de um ridiculo, de que não ha memoria!
-- Creio que vou percebendo: n'esse caso o barão vinga-se do genro, protegendo o Guilherme! Bem lembrada! Mas que deploravel papel representa o Luiz n'esta comedia immoral!
-- Não é tanto assim. A similhança do boticario de Nicolau Tolentino, o barão é o unico que perde n'este joguinho!
-- E a dançarina?
-- Morre de amores pelo Luiz de Lima. E' o que ainda mais concorre para que elle tenha dentro em pouco tempo de vêr por que modo Antonio Cypriano se vinga!
-- Por fim de tudo, o que tem mais graça é que fomos nós que fizemos este casamento! disse Athayde dando uma gargalhada.
-- De collaboração com Thomasia de Villar, que se encarregou dos couplets d'este vaudeville!
-- E cuidas tu que Guilherme não se vinga de nós, por havermos acceitado papeis n'aquella farça de meio caracter que se deu em casa da marqueza, na noite historica em que fizemos um curso de litteratura portugueza, e em que cada um de nós lhe deu tantos conselhos, que o pobre rapaz julgou decerto contrahir uma divida de gratidão para com quem mostrava tomar por elle tão decidido e pronunciado interesse?
N'este momento, Guilherme da Cunha desculpava-se para com a condessa da Rocha, que lhe pedia para recitar qualquer poesia a acompanhar uma walsa que a condessa de Castello Branco ia tocar: mas um olhar de Sophia pareceu rogar-lhe tambem para o ouvir, e Guilherme cedeu.
E' um costume tanto em moda nas salas de Lisboa, este de recitar poesias ao piano, e costume tão estimado pelas damas, que no momento em que principiou a walsa, todas as attenções pareceram presas á poesia de Guilherme.
Ao dizer o primeiro verso, os olhos do mancebo lançaram uma vista melancholica sobre os de Sophia de Lima, que apertou vivamente a mão de seu pae como agradecendo-lhe os momentos de felicidade celeste que lhe proporcionara n'esta noite.
Os versos diziam assim:
Amo-te ainda qual nos dias prosperos
Em que sómente de te amar vivi!
E nego, e juro que esqueci teu nome,
Que nunca mais me recordei de ti!
E se no mundo alguma vez te avisto,
Fatal destino só então deploro!
E minto sempre que a dizer m'esquivo
Que de alma ainda, meu amor, te adoro!
Se os labios, frios ao soltar teu nome,
Dizer parecem que este amor morreu,
Minh'alma attesta que a saudade, amiga,
Essa, a saudade! Sempre em mim viveu!
Mas, fria a voz e a feição traidora
Ao mundo attestam que já t'esqueci!
E amo-t'inda qual nos dias prosperos
Em que sómente de te amar vivi!
-- Ainda! pensou Sophia. E se estes versos falam verdade, quem sabe se a felicidade virá agora trazer-me maior desgraça ainda!
O sorriso que, em quanto Guilherme recitava, girou nos labios de todos que o escutavam; aquelle sorriso perfido de ironia e de malicia, moeda falsa que tanto corre pela praça do bom mundo, provou ao mancebo que a poesia havia produzido o resultado que elle planeára, porque n'um rapido ecomo que despreoccupado olhar que volveu para Luiz de Lima, encontrou-o pallido, e viu tornar-se acanhado e pequeno, á medida que um novo verso vinha despertar algum novo sorriso.
No momento em que Guilherme veiu de novo sentar-se junto do barão de Sousa, os olhos de Sophia humedecidos pela lagrimas espontaneas que as grandes felicidades, assim como os maiores desgostos, fazem ás vezes brotar, fitaram nos d'elle uma vista suave e meiga, que revelava reconhecimento e gratidão por essas mesmas lagrimas que o prazer lhe havia dado.
-- E' ainda bem suave a sua voz, Guilherme! balbuciou ella sem reflexão.
-- Porque ainda te amo! redarguiu o mancebo em breve tom de voz; porque te amo ainda e sempre!
Nada mais se disse; nem houve tempo para dizerem mais, nem força para o fazer. Essas palavras nasceram da perturbação de ambos: revelou o sentimento, o que a meditação por dignidade e prudencia, houvera calado!
A conversação tornou-se então geral entre algumas senhoras, o barão, Luiz de Lima, o Villar,
Estevão de Mello, Athayde, e Guilherme. Falou-se de musica, discutiu-se a antiga e a moderna escola, fez se a critica dos maestros mais illustres, e acabou a discussão por uma grave dissidencia entre partidistas daAlboni e da Castellan, questão que n'essa época devorava os espiritos e ateava os animos, a ponto de crear inimisades figadaes e implacaveis entre as senhoras portuguezas.
Havia unicamente de galante n'esta solemne guerra de partidos theatraes, uma pequenina circumstancia em que ninguem fez reparo. E' que as inimisades entre as senhoras não nasceram dos partidos albonista e castellanista, mas sim os partidos nasceram das inimisades entre senhoras! Esta é a verdade.
Em Lisboa é rara entre homens e entre damas, a coragem de uma antipathia declarada, em que o motivo não seja disfarçado.
As modistas pagam por muitas vezes os encargos d'este mau costume. Como D. Beatriz veste de casa de madame Levaillant, as suas inimigas espalham que madame Levaillant não tem gosto para vestidos: com esta asserção ganham terreno para estabelecerem depois que D. Beatriz veste sempre mal!
Os cantores, até os artistas estrangeiros, coitados! são victimas dos caprichos e quisilias que se trocam surdamente entre as damas de sociedade, que se beijam umas ás outras, como rollas, com vontade de se devorarem.
Guilherme, durante toda essa discussão gravissima, limitou-se a jogar alguns epigrammas que cairam desapiedados sobre uns e outros: era um verdadeiro sauve qui peut! Todavia, por uma attenção que tomou proporções grandiosas aos olhos de Sophia, o mancebo poupou unicamente o barão, que outr'ora o havia calumniado, regeitado, e despresado! Mas são as ultimas impressões as que ficam, e o mais recente inimigo é quasi sempre ao que mais se attende.
Guilherme teve já n'essa noite aquelle consolador sentimento da vaidade, que acompanha todo o homem que se ergue de repente, e chega a fazer dobrar os mais altos ao sopro temivel das ironias!
A mulheres de Lisboa adoram os homens que têem a arte de manejar com igual esmero o epigrama como Aretino, e a amabilidade como Lovelace, do mesmo modo que morrem de amor pelos homens que sabem ser bravos como leões, e meigos como donzellas; por isso para Guilherme a conversação d'essa noite, foi um d'esses triumphos de salão que muitas occasiões alcançam das duas para as tres horas da noite, quando o baile já não está animado e ardente, reputação e celebridade a um espirito ainda na vespera desconhecido, mas d'ahi em diante festejado, em menos tempo talvez do que uma flôr leva a desabrochar ao rocio da madrugada!
XIX
Melitao Vidueira
Melitão Vidueira costumava ter horas de ocio, a que elle chamaria as delicias do far niente se soubesse italiano.
Toda a gente tem para as suas horas de ocio uma occupação qualquer: a do nosso homem era simples; occupava-se em perder para sempre uma rapariga, alguma pobre infeliz que ao ficar orfã espalhára a vista pelo nebuloso horisonte do seu futuro e não antevêra senão a miseria e a fome, ou a deshonra e a prostituição!
Os moralistas aconselham que n'um caso d'esses se prefira a morte, mas a creatura humana que é menos perfeita do que as suas sentenças assusta-se perante a idéa de desamparar a vida na flôr da edade.
O que ha de notavel nos moralistas é que são raros os que hão reforçam o preceito de São Thomaz «olha para o que elle diz...» Os que accusam as pobres victimas da desgraça são quasi sempre os que as vão comprar se ellas se vendem, ou pelo menos os que lhes não dão esmolla se ellas mendigam!
Melitão Vidueira era dos que affastam a vista, implacaveis de seriedade, das infelizes que por ahi vão perdidas: eram tambem dos que não comprehendem a mulher de todos, e n'isso louvores sejam dados á pureza dos seus sentimentos; no que não punha escrupulo era em ser elle o primeiro que as perdesse, e lhes abrisse a porta fatal da prostituição!
São systemas. Cada uno tiene su modo de vèr las cosas!
Quando queria distrahir-se do mau humor a que os vicios são atreitos, porque os pobres por mais que me digam são dotados de um espirito mais tranquillo e mais alegre, ou pela ausencia de ambições ou pela serenidade de consciencia, Melitão ia espairecer até casa da Monica.
A Monica era uma mulher de cincoenta annos, gorda, bexigosa, vermelha, tão depressa gracejadora e galhofeira quando o dia lhe corria bem, como queixosa da fortuna quando o dia lhe ia torto, mas sempre prestavel a servir de interpretre a todos os caprichos mysteriosos dos seus protectores.
Estas Monicas de Lisboa são como as Monicas de todas as terras, com a differença de serem menos espertas, e de não saberem falar inglez, o que lhes faz ás vezes perder a esperança a grandes perspectivas de fortuna, quando chega alguma esquadra britanica.
Houve tempo em Lisboa em que as casas d'estas Monicas eram á saida do theatro o rendez-vous constante dos elegantes e da boa roda em geral: mas desde mil oitocentos e cincoenta os brasileiros e os embarcadiços ficaram substituindo os antigos frequentadores, com a sinples differença de não darem Champagne, não quebrarem as cadeiras, não irem para lá depois da meia noute, mas em compensação sairem com ellas depois das Ave Marias a passear, ou levarem-as para Carriche unico oasis conhecido d'estes maginosos sacrificadores dos prazeres faceis!
N'uma fria e chuvosa noute de janeiro em que o ceu negro e sombrio parecia prometter uma verdadeira noite de inverno, Melitão Vidueira que acabára de jantar ás cinco horas e que desejava entreter o tempo até ás nove para ir jogar o wisth ao Club, lembrou-se de consultar o seu souvenir, em certa folha onde costumava marcar o dia e a hora para alguma distracção encommendada.
Encontrou felizmente para o seu spleen a seguinte nota:
«21, ás sete horas, Monica.»
-- Apparelhem! gritou immediatamente a um criado.
-- Vae o coupé?
-- Vae.
-- V. Ex.ª quer falar ao João Rodrigues?
-- Que venha.
Um momento depois João Rodrigues apparecia. Era o cocheiro de Melitão, e o seu melhor confidente.
-- Que sabes? perguntou-lhe o amo.
-- Colhi tres opiniões, respondeu o cocheiro que se presava de ser homem bem falante.
-- Venha a primeira!
-- Que a menina casou já com o homem com quem fugiu. Elle é bom moço, alguma cousa extravagante, mas nem se dá ao jogo nem á pinga. Receberam-se ha dois dias, isto é, uma semana depois de fugir a menina, e hontem pelos modos foram para fóra de Lisboa.
-- Casou! Está bom. -- Dize a tua segunda opinião.
-- É que a menina não casou, que o homem com quem fugiu é má firma, e que ainda estão em Lisboa.
-- Não casou, e ainda estão em Lisboa! Os demonios me levem se eu te percebo. Emfim, dize a tua terceira opinião!
-- A minha terceira opinião é que das duas primeiras não se póde colher nenhuma!
Melitão Vidueira olhou muito sério para João Rodrigues, e depois de uma pausa disse-lhe a rir:
-- Não te faças ratão! Já passa de uma semana que minha filha desappareceu de casa, e são essas todas as novidades que me sabes dar, depois de haver querido encarregar-te de saber tudo!
João Rodrigues nem pestanejou.
-- Deves ter algum motivo para abrires d'esta vez tão singular excepção á tua regra de bom explorador. Dize a verdade, João Rodrigues!
O coheiro acompanhou a seguinte pergunta com um sorriso de malicia:
-- O senhor deseja que a menina torne para casa?
-- Não se me daria d'isso; a noticia creio que não tem corrido, e talvez fosse possivel ainda occultar este segredo aos olhos do mundo...
-- Pois então, ámanhã verá o senhor que eu ainda me chamo João Rodrigues.
-- Visto isso, persuades te...
-- Que talvez se arranjem as cousas de modo que a menina appareça! Amanhã de madrugada abalo com os cachimbos, e em sendo noite já hei-de ter certa porção de conhecimentos uteis!
-- Não sei! redarguiu Melitão; acho-te tão esmerado nas palavras, que receio tenhas fracas obras! Deu-te agora a mania de pilhar phrases a dente, e estamos frescos se já lês os jornaes!
Um criado veio dizer:
-- Está prompto o trem.
Melitão Vidueira entrou para o coupé e disse ao cocheiro:
-- Rua do Norte.
O trem parou á porta da casa de Monica. O agiota subiu.
-- Muito bem apparecido, excellentissimo! disse a velha introduzindo-o para uma saleta. Já não o esperava, com uma noite d'estas!
-- É quando mais gosto de a visitar, faz-me lembrar do meu tempo, em que não havia chuva que me assustasse para esta qualidade de emprezas!
-- Do seu tempo! exclamou Monica. Então não está a fazer se velho! Isso é bom para quem o não está vendo com tão bonita apparencia, e desembaraçado como se orçasse pelos seus vinte annos!
-- Tratemos do que mais me importa, disse Melitão: que noticias me dá?
-- Está-me vendo agoniadissima, respondeu Monica. A pequena de quem eu lhe falei tinha o pae doente havia dois mezes, e estavam sem recursos: a botica já não queria fiar-lhe e o cirurgião tinha dito que se despedia se lhe não pagassem as visitas que já tinha feito, vinha entregar-se para pagar tudo e salvar o pae.
-- Isso não importa a mim, replicou Melitão, vamos ao ponto culminante: ella vem esta noite?
-- Pois era ahi que eu me dirigia! O ponto culminante é que o pae morreu, e a rapariga agora diz que não quer.
-- Peor para ella! redarguiu o agiota. Não são felizes por sua culpa: preferem a fome. Teem bom gosto!
Monica encolheu os hombros com uma expressão de desdem pela virtude que agradou ao agiota.
-- Não está cá ninguem? perguntou Melitão tendo ouvido uma voz de homem.
-- Na Saleta côr de rosa está um brasileiro.
-- Um brasileiro? Está esperando alguem?
-- Uma joia linda como os amores, e nas mesmas circumstancias da tal que eu lhe promettera. Ah! o Brasil esta noite vae ser mais feliz do que Portugal, bem contra minha vontade!
-- E loira tambem!
-- Como uma libra! respondeu a Monica.
-- Melhor ou peor do que a outra?
-- Melhor ainda, se é possivel! Tem as mais bonitas mãos que se tem visto, e uns olhos azues que a mim propria, que não me deixo levar por essas coisas, fizeram-me estar de bôca aberta!
-- Assegura-me que é a primeira vez que entra aqui?
-- Assim eu seja Monica por dilatados annos!
Os olhos de Melitão ao ouvir semelhante afirmativa revelaram que o devasso havia recobrado animo.
-- Pois então, disse, é para mim que ella ha de vir.
-- Mas o brazileiro?!... redarguiu Monica.
-- Não estou costumado a replicas. Dou o dobro... agrada-lhe?
-- Vossa excellencia confia bem na sympathia que me inspira! Emfim, vou despedir o Rio de Janeiro!
-- Espere. Ia dizendo que na sala estão...
-- O Athayde que escreve para os papeis, e mais tres amigos: quer ser visto?
-- Não me importa. Vou entreter com elles em quanto espero. Tardará muito?
-- Ficou de vir ás nove horas.
-- Pois bem, pergunte a esses senhores se teem duvida em ser vistos.
Momentos depois, Monica que fôra á sala veio dizer:
-- Estes senhores respondem que teem o maior gosto pela sua companhia.
Quando Melitão Vidueira appareceu na sala, encontrou alli José d'Athayde, Victor Marrocos e Antonio Roma.
-- Se chega um instante mais tarde, disse-lhe Victor Marrocos, perdia o primeiro capitulo de uma historia que se vae contar.
-- Intitula-se os «Mysterios de Monica!» replicou José d'Athayde. Vem a proposito das mulheres casadas que são bastante imprudentes para virem a estas casas encontrar-se com um amante, e dos maridos que são suficientemente excentricos, para tambem cá virem sem se lembrar se encontrarão aqui as esposas!
-- Vejo que a historia é immoral! disse Melitão. Ha de ter venda!
-- Vou começar! exclamou o noticiarista. Peço a attenção de que é digna uma historia que seria prohibida pelo papa se eu a publicasse, mas faria a fortuna do meu editor!
-- Faze-lhe prologo, disse Ernesto Braga; respeitemos os costumes de Lisboa, não ha obra n'esta terra sem prologo, proloquio, e juiso critico! Deves dizer quantos annos tens, e a que escola se inclina a tua vocação.
-- Escola de Crébillon filho... correcto mas não augmentado; li o Sophá ao despontar- me a aurora da existencia, e a minha alma n'um anhélo blandissimo adivinhou a Justina, do marquez de Sades!
-- Fecha ahi o prefacio! gritou Victor Marrocos; o leitor já por isso presente um grande espirito no autor; data de Cintra, para dares côr ao prologo!
-- Comece a historia! disseram todos!
-- Era uma vez, começou o noticiarista, uma mulher casada que tinha trinta annos. Como qualidades dignas de menção honrosa possuia apenas as de ser bonita deveras, gostar muito do amante e não gostar nada de seu marido.
«Com tão sublimes virtudes póde-se affoitamente illustrar o seu seculo se se juntar a estas prendas de caracter ser dotada de algum espirito, que sempre augmenta quando a occasião precisa delle.
«Ora, a heroina de quem lhes falo era dotada de um espirito scintillante e agudo. Quero poupar-lhes o capitulo das descripções; não lhes direi se era córada ou pallida, se tinha olhos azues ou verdes. Imaginem-a casada e tendo trinta annos, imaginem-a ligada a um marido estupido que não a apreciava, e que, por mau gosto ou não sei porque, lhe preferia mulheres faceis e vilmente accessiveis. Ponham de parte todos os mandamentos evangelicos, esqueçam por um momento que as instituições são tão absurdas que prescrevem a uma mulher o ser martyr ignorada e ingloria, mesmo quando seu marido fôr como tantos maridos de Lisboa que adoram o vicio doirado, e que deliram pelas bacchantes do Jardim Chinez, colloquem-se na posição da minha heroina tendo um coração ardente e uma imaginação meridional -- e digam-me se não lhes parece que teriam, mais tarde ou mais cedo, necessidade de amar alguem?
«Não resa a historia se foi por motivo de urgentissima vingança, ou de capricho de coração, que a dama de quem lhes falo distinguiu entre toda a humanidade que lhe aborrecia, um homem que lhe agradou.
«Agradou-lhe, repito: e se assim aconteceu, é escusado relatar-lhes se era bonito ou feio, se usava frack ou kauchmann; agradou-lhe, não sei porque, nem que o soubesse o diria. Era talvez mais bello do que seu marido apenas por ser seu amante, emquanto aquelle era mais feio unicamente por ser seu marido: é possivel.
«Certo é que se tornava impossivel á dama dar em sua casa uma entrevista ao pobre do namorado; os amantes são sempre ferteis em más lembranças, e o sympathico moço julgou destruidas todas as difficuldades dizendo-lhe que elle tinha conhecimento com uma certa Lauriana, creatura dotada de superiores virtudes, sobresaindo a da caridade, que por tal fórma se condoía dos embaraços em que costumam encontrar-se dois amantes de posições diversas, que punha a seu serviço o seu prestimo e os seus bons desejos. Depois de algumas objecções que estavam a desejar ser destruidas, a dama consentiu, e o amante ergueu os olhos ao tecto, para agradecer tantos favores ao firmamento!
«No dia seguinte, a respeitavel Lauriana abriu a porta da sua mansão á heroina do meu conto, que tinha dito a seu marido que ia comprar o almanach para o anno proximo, prevenção que o consorte levou muito em gosto, porque em Lisboa o almanach do anno em que se está é já considerado um almanach antigo!
-- Citaste uma das pragas que devoram Lisboa, exclamou Estevão de Mello. Devem ter observado que, ou seja preparo para se acabar o mundo, ou resultado de qualquer phenomeno que eu não adivinho, nasce ultimamente menos gente do que nascia: ponderada esta circumstancia já não devem admirar-se tanto se eu lhes disser que n'esta época apparecem à luz em Lisboa mais almanachs do que creanças! Os recursos que este genero tira da poesia são inauditos, ainda que já não vive dos versos a ella e dos olhos azues, verdes, pretos, e côr d'aza de mosca! Em poesia as mulheres já não têem olhos. Agora cantam se os insectos e os animaes. A' borboleta! Ao Tigre! Ao Leão! É o Bouffon em verso rimado! Este genero ha de ter dura! Só a familia dos macacos dá para um volume: o orang-otang, o sagui, o sagú!
-- Continue a historia! gritaram os outros.
José d'Athayde proseguiu:
-- O namorado chegou pouco depois, e a utilissima hospitaleira achou n'esses cinco minutos de demora um lindo mote para um fluente improviso contra o nosso sexo, na opinião d'ella descuidado e desattencioso.
«Teria talvez passado meia hora, e bateram novamente á porta. Ella mesmo deu entrada a um homem de meia edade, nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, nem bonito nem feio. A senhora Lauriana entreteve-se em fazer sala, estiveram conversando acerca de diversas questões humanitarias, e teve argumentos esta Lauriana com os quaes provou, em sua honra o digamos, muita experiencia do mundo e não vulgar erudição. Porém, no melhor da conversa, a minha heroina que não sabia ter chegado um novo hospede, abre á porta, e dá face a face com seu marido!
-- Com a breca! exclamou Melitão Vidueira em grandes gargalhadas. Está-me interessando a historia! Interessam-me todas as historias n'este genero, que aliás é um dos poucos em Lisboa que não estão deteriorados!
-- Ouça-se a conclusão! gritaram todos.
José d'Athayde proseguiu:
-- A situação era delicada, e poucos romancistas saberiam sair d'ella airosamente; mas a minha heroina era superior a um engendrador de novellas, senão em as escrever, pelo menos em as pôr em acção! -- Tomou uma resolução repentina e fechando por fóra a porta do gabinete de onde saíra, habil prevenção para que o seu amante não apparecesse, dirigiu se firme e resoluta até seu marido que a contemplava pasmado, e agarrando-o pela gola do paletot, exclamou com uma expressão furiosa: -- «Encontrei o finalmente! Já não posso duvidar do que todos me dizem! é um ingrato e um falso! um falso e um ingrato!» E rompeu n'uma gritaria acompanhada de suspiros e lagrimas, que assustou o consorte, que se teve forças para lhe coxixar ao ouvido: -- «Perdôa-me por esta vez, minha bichinhal» -- «Infame! bradava a mulher casada: ingrato! -- «Tens rasão, mas vamos para casa!» respondia o caro spozo em tom de lamuria. -- E como por um impulso de generosidade, a heroina acompanhou seu marido depois de entregar ás escondidas um porte monnaie bem surtido, á virtuosa Lauriana que principiava a não perceber cousa alguma de tudo isto!
Depois do sorriso prolongado que costuma acolher as anecdotas, houve uma pausa durante a qual os tres homens de espirito que alli se encontravam, Estevão de Mello, José de Athayde e Victor Marrocos pareceram meditar a anecdota, em quanto Melitão Vidueira tomou uma pitada, e consultou o seu relogio impaciente e inquieto.
-- E' talvez singular, ponderou Victor Marrocos, como os lisbonenses, gente destituida da veia inventiva para todas as cousas sérias e graves, possuem em tal grau os instinctos do vicio para enganar e falsear, debaixo da eapa elastica d'essa proverbial reputação da sinceridade portugueza!
-- E' uma terra, esta nossa, em que as mulheres são mais feias do que os homens, e os homens mais parvos ainda do que as mulheres! A anecdota que o sr. Athayde contou, demonstra bem a segunda parte da minha asserção! disse Melitão Vidueira.
-- Emfim! acudiu Victor Marrocos, tambem ha exemplos que comprovam que o talento nasce ás vezes pra as mulheres do instincto de conservação!
A necessidade e urgencia de salvar a honra dá-lhes, ás vezes, o dom de saberem inventar boas farças!
-- Deixal-as mentir! poderóu Melitão, uma mulher mentirosa é, debaixo do ponto de vista social, uma mulher civilisada! Em Lisboa, durante muito tempo as mulheres não souberam mentir: o que resultava era que os maridos mais facilmente as apanhavam em erro, e se habituavam para mais prompto castigo, ao preceito dos hespanhoes -- pão e pau. As pobres mulheres de Lisboa principiaram a civilisar-se, a pouco e pouco chegaram ao estado de apuro em que hoje as vêmos, e o resultado de saberem mentir é que já não são os maridos que as castigam, mas sim ellas que batem nos maridos. Oh! prodigiosos effeitos da mentira!
A conversação durou ainda por algum tempo, animada, picante, e espirituosa por vezes. A chuva era cada vez mais forte, o vento rijo, e a trovoada, que já no principio da noite parecia estar ameaçando Lisboa, rebentou furiosa e atterradora.
Melitão Vidueira ergueu-se da cadeira em que estava, e foi abrir uma das janellas para poder julgar da imminencia em que ia a trovoada: e a noite estava por tal fórma escura que elle nem distinguia as casas fronteiras. Sentiu porém parar uma sege, e um secreto presentimento o advertiu que era a rapariga por quem esperava que desceu da sege. Porém, -- n'esse momento -- um relampago fortissimo o obrigou a recuar, e fechar de novo a janella atterrado e medroso.
A Monica abriu uma porta de mansinho e estendendo a cabeça disse em tom melifluo para o agiota que, cego pela luz do relampago, esfregava os olhos e se encostava á parede para não cair:
-- Parou uma sege, e se o meu coração não me engana é o sugeito que o procura, excellentissimo!
Melitão não respondeu: o relampago tinha-o amedrontado devéras. A Monica fechou outra vez a porta, e os tres jornalistas dirigiram ao agiota uma chuva de perguntas: -- «Quem é a deusa? -- É do theatro? -- É conhecida?
Melitão distrahiu o atterrado animo enfeitando de côres seductoras a aventura d'esta noite:-- E' um anjo de innocencia e de bellesa, uma flôr cujas pétalas viçosas o brilho de setenta libras vae fazer desabroxar!
-- Pétalas viçosas, que a fome ia talvez crestar! disse Estevão de Mello.
-- Faça uma boa acção, uma acção elevada e digna, exclamou Victor Marrocos: -- essa pobre victima que vem n'uma noite d'estas sacrificar para sempre o seu futuro, ha de amaldiçoar o ouro que vem compral-a: queira antes as bençãos de uma desgraçada, do que o remorso de a ter perdido; uma noite é uma noite, e a eternidade é sempre! Siga hoje o que eu lhe aconselho, e esta boa acção ha-de alliviar a sua consciencia dos erros que podem um dia opprimil-a. Entregue esse ouro á infeliz, e mande-a embora; talvez que ella ame alguem, e em Lisboa ninguem casa sem ter dote; diga-lhe que é esse o dote que lhe offerece!
Melitão Vidueira deu uma gargalhada.
-- De certo me tomou pelo seu secretario! Esteve ahi dictando um bello artigo! Aproveite essa pagina para alguma obra, edificante! Não desperdice por tal fórma os recursos de uma eloquencia feliz! Com que, setenta libras para fazer casamento á pequerruxa! Bem lembrado. Isso dava eu, sendo preciso, para impedir que ella se casasse! A trovoada produz lhe idéas virtuosas, sr. Marrocos!
E continuou em ironias e em gargalhadas.
-- E' que, redarguiu José d'Athayde, nós que não temos talvez completo direito a pertencer ao gremio dos homens serios, somos dotados de singulares maneiras de ver as cousas; o vicio entretem-nos ás vezes, a virtude não nos escandalisa nunca! Ha em Lisboa um grande numero de homens que julgam alcançar uma tal ou qual victoria em serem os primeiros a perder uma pobre rapariga, sem se lembrarem que a honra d'essa mulher era de tão pouco apreço, que bastou um punhado do seu ouro para a comprar.
N'este momento um trovão fortissimo fez estremecer a casa.
-- Julguei que a trovoada abrandasse com as suas sentimentaes idéas, mas vejo que até ella lhe resiste! Ah! ah! ah! disse o agiota rindo com gosto.
A Monica abriu n'esta occasião a porta e tornou a estender o pescoço.
-- Era ella? perguntou Melitão.
-- Em pessoa.
-- Bem! Excellente! Diga-lhe que entre para aqui, para estes senhores me dizerem quando a virem, se devéras teriam animo de só lhe tratar do casamento! Ah! ah! ah! Meus charos, a virtude é uma palavra antiga que ficou de conserva para abrir o appetite ao leitor n'um romance ou n'um artigo de fundo!
-- Eil-a! disse a Monica entrando e conduzindo pela mão uma linda figura de mulher, de fronte pendida, e olhos no chão. Não lhe fale muito de rijo para não a assustar, porque ella está toda tremula, não é assim, minha pombinha?
A rapariga conservou se de olhos baixos, e não respondeu uma unica palavra. Melitão tomou um ar galanteador, e dirigiu-se até ella:
-- Queira fitar nos meus olhos esses dois astros de luz! disse o agiota.
Mas no momento de pegar da mão á rapariga, que estremecêra toda ao ouvir aquella voz, ambos se encontraram n'um olhar e se reconheceram. Ella deu um dilacerante grito de angustia, e caíu desamparada sobre o chão. Emquanto a elle, livido e convulso, parecia querer reunir todas as suas idéas e forças, para alcançar a certeza de que estava atravessando por algum sonho fatal e horrivel.
No momento em que os tres jornalistas se ergueram, para levantar do chão a mulher desmaiada, o agiota arremeçou-se de encontro a elles, e impediu que lhe tocassem: cobriu-lhe então o rosto com os braços, e disse para Monica:
-- Apague as luzes!
Como a velha hesitasse por nada comprehender do que se estava passando, a mão do agiota, energica e pesada como manopla de ferro, apertou-lhe de tal fórma um dos braços, que ella prescindiu de segunda ordem, e apagou as luzes.
-- Que quer isto dizer? exclamou Victor Marrocos: para que se apagam as luzes?
Mas nem Melitão nem a Monica, que tremia toda, responderam. O clarão de um relampago veiu por instantes alumiar a casa, entrando pelas fendas da janella: os tres jornalistas poderam vêr n'esse momento Melitão Vidueira levando nos braços o vulto alvejante da rapariga, e ouviram o fechar por fóra a porta. Ás escuras mesmo, os tres homens tentaram approximar-se da porta e arrombal-a; no momento em que o conseguiram ouviu-se o rodar de um trem que fugia rapido. Os jornalistas logo que encontraram luz percorreram debalde todos os quartos da casa: Melitão e a rapariga tinham desapparecido.
-- Mas o que significa tudo isto! exclamou Estevão.
-- Que o Melitão veiu continuar a minha anedocta de ainda ha pouco, e que, se não encontrou como o outro sua mulher, veiu aqui encontrar a sua amante! Pena foi não lhe podermos vêr a cara!
-- Quem era esta rapariga? perguntou Estevão á Monica, que estava tomando goles d'agua, porque lhe haviam apparecido soluços.
-- Nem... nunca a. .. a... vi!
-- Mas quem lh'a trouxe, d'onde caiu esta mulher?
-- Do in... infer... no, para me... ral... rallar!
Os jornalistas sahiram, depois de procurarem debalde resolver o problema mysterioso de Melitão Vidueira.
Por mais perguntas que se lhe fizesse, a Monica não quiz responder em termos claros. Havia percebido que reinava um segredo em toda a historia d'esta noite, e receava perder tudo por falar de mais. A manopla de Melitão ainda parecia esmagal-a, e por mais goles d'agua que bebesse, os soluços cada vez eram mais!
XX
Diligencias de João Rodrigues. -- «A feira da Ladra.» -- As hortas. -- O theatro da Rua dos Condes. -- O Jardim Chinez.
Logo que viu romper o dia, João Rodrigues decidiu-se a desamparar Morpheu; e dispoz-se a levar ao cabo com exito satisfatorio a promessa que fizera ao bom do seu patrão, de lhe dar conta da filha quanto antes.
-- Negro seja eu feito, se não percebo já a cantiga! dizia João Rodrigues, escovando um bom collete de velludo de, todo o preço, que envergou momentos depois, dando novo realce ao exterior de sua recommendavel figura: sim! a cantiga já lhe eu percebo! A menina a estas horas lava-se em pranto que nem uma Magdalena! O melro tem-me seus ares de ser d'estes janotas de perna torta, a quem não chega o dinheiro para meia vara de linguiça! Deus queira que eu me engane, mas estava capaz de jurar que o rapasote deve ser amigo do Procopio, e que o Procopio é quem me ha de desdobrar a meada! Hoje é domingo, o sol já vae alto, d'aqui até à horta do Peru não levo menos de tres quartos d'hora, quero que chegue lá ás oito... E' o caso! Vou-me ao Procopio!
E Jcão Rodrigues pôz o seu grilhão, que tinha apenas a graça de trinta moedas de peso, metteu no dedo o annel dos dias santos -- magnifico e até enorme annel de brilhantes, que havia comprado já ia em tres annos n'uma barraca de ourives na feira do Campo Grande -- vestiu a sua jaqueta de panno azul, pôz na cabeça um chapéu de castor que tinha sido do amo, embrulhou n'um lenço de seda uma jaqueta de panninho, prevenção que sempre tomava quando se dispunha a ir passar o dia ás hortas, no que tambem levava em vista differençar-se do vulgo, que tem por costume n'essas funcções ficar em mangas de camiza.
Era um lindo dia de inverno, claro, frio e secco. A trovoada da vespera havia limpado o céu, e só raras nuvensinhas brancas appareciam.
João Rodrigues dirigiu seus passos na direcção do Campo de Sant'Anna, sempre scismando, como é de crer de tão delicada situação, na mais fina maneira de levar a agua ao seu moinho. -- «Quem me diz a mim que o Procopio não esteja hoje na feira? --» perguntava aos seus botões o bom do João Rodrigues, não obstante repartir a sua attenção em receber e retribuir as saudações de diversos amigos e conhecidos que o cortejavam pelo caminho, e lhe perguntavam em tom jovial e de estabelecida liberdade:
«Então, toca a ir até ao Collete Encarnado?»
«Hoje vae-se ao Peru, que tem lá um de dezeseis, que é de chupêta!»
«Branco ou tinto?»
«Tinto. Oh! mas aquillo é o summo da uva!»
E João Rodrigues, ás duas por tres, deu de cara com a feira de Ladra.
Os criticos perluxos querem talvez que eu descreva a feira da Ladra desde a entrada para o sol da praça dos touros, até á Carreira dos Cavallos. Hão de suas senhorias perdoar-me, se estiverem em maré de clemencia: certo é que não me proponho senão dar aos leitores das provincias uma idéa ligeira e fugitiva do que é a nossa popular feira da Ladra.
A feira da Ladra é a ultima expressão das cousas serias da vida. E' o livro que consumiu em noites de trabalho a imaginação de um homem de talento, livro que andou em mãos de senhoras, que foi lido e decorado n'uma certa época em que foi da moda, que se emprestou a um conhecido que nunca mais o restituiu, como costumam fazer todos os conhecidos a todos os livros que lhes são emprestados, que n'um dia de mau humor contra a lettra redonda, ou de ausencia de cobre para cigarros, o vendeu em companhia de um chapéu velho a que deu agua e escova, ultima droga com que estes Dulcamaras de trastes velhos, tentam por um supremo esforço da sciencia dos charlatães, apparentar de assetinado e lustroso o chapéu ruço e falto de pello, que a todo o instante obriga o philosopho de occasião, que hão tem dinheiro para outro -- a meditar quanto é devastadora e implacavel a marcha incessante do tempo!
Estas botas em segunda mão? Dançaram n'um baile de nupcias, calçadas nos pés do noivo! O polimento com o calor das luzes, e com a agitação phrenetica das walsas e das mazurkas, n'essa mesma noite estallou; foram ainda testemunhas, essas outr'ora lindas botas, de mil cousas doces e meigas que se disseram os noivos na alcôva nupcial: ainda ellas escutaram os primeiros beijos que se deram, e sobretudo os suspiros ardentes que o amor incendiava, tão forte era o fogo dos sentidos!... No dia seguinte passaram a ser propriedade do criado particular, que por algum tempo as conservou em seu poder sem as calçar por lhe não servirem, até que as vendeu ao criado da taboa que calçava pelo pé de seu amo. Pois bem! quatro mezes depois d'essa noite de nupcias, rica de esperanças de felicidade, estas mesmas botas calçadas nos pés do lacaio, acompanharam a carruagem que conduzia a senhora á primeira entrevista com um amante, á primeira infidelidade conjugal, á primeira traição da esposa! E no momento em que ella entrou d'outra vez para a carruagem, manchada já pelos beijos de um amante, envilecida pela consciencia do seu erro, o criado veiu fechar a portinhola, e as botas estalaram d'outra vez! Vendidas então a um ferro-velho, vendem-se hoje por pouco dinheiro; quem as quer, estas botas que tem ainda os canos em tão bom estado?
A cruel irrisão que parece presidir ao destino das cousas humanas, faz com que se exponha ás vistas do comprador ao lado de uma enxerga que a fome obrigou a vender a uma pobre orphã desamparada na vida, que levou o cumprimento dos preceitos de sua mãe até ao ponto de olhar mais á honra do que ás commodidades da vida, e querer antes passar as noites estendida nos lagedos humidos da sua pobre casa, mal embrulhada nos tristes andrajos da miseria, do que vender o corpo nos prostibulos doirados, onde o dinheiro dos ricos vae mercadejar a honra das desgraçadas -- essa pungente ironia do acaso faz com que ao lado d'essa enxerga vendida para ter pão, esteja o leito á franceza, que as prodigalidades de uma fidalga obrigaram a entregar aos crédores, que nem respeitaram aquelle ultimo direito dos penhorados -- agua e cama! A feira da Ladra é tudo quanto ha no mundo quando, já velho, arruinado, sujo, feio, inappetecivel, tem corrido de mão em mão, de comprador para comprador, de um basar para outro basar, de um ferro-velho para outro ferro-velho!
Este castão de marfim finissimo, que foi primeiro de uma bengalla, e foi depois de um chapeu de chuva, hoje que já está amarello e sem brilho, não é de um chapéu de chuva, nem de uma bengalla, é da feira da Ladra!
N'esse montão de chaves velhas e ferrugentas, algumas serviram n'outro tempo para abrir a porta de um boudoir, e conduzirem a um rendez-vous! Outras, foram encommendadas de proposito para roubar uma casa, por Cartouches domesticados que haviam tirado em cêra o molde á fechadura!
Lembraes-vos de haver encontrado no principio da vida uma certa rapariga loura, branca e de olhos azues, elegante, vaporosa, seductora por mil encantos magnificos, por ter as mãos longas e finas, os pés pequenos e bem feitos, a cintura delicada e breve, um sorriso cheio de illusões e de esperanças a brincar-lhe nos labios rosados e viçosos, que deixavam vêr ao entre-abrir se os mais brilhantes dentes que se póde sonhar? Depois, tendo-a perdido de vista durante muito tempo, durante dez annos, quinze annos, vinte annos, não haveis encontrado um dia uma repugnante figura de mulher, embrulhada n'um capote côr de pinhão, russo, velho, curto: e com um lenço de chita na cabeça, um lenço de chita azul meio sujo pelo tabaco, porque é ás pontas d'esse lenço que ella costuma assoar-se? E quando vos perguntam não tanto para experimentar a vossa remeniscencia, quanto para vos fazer sentir o que vale e póde a marcha incessante do tempo -- se não conheceis já essa mulher que n'outro tempo conhecestes tanto: quando, emfim, vos dizem que essa velha creatura é a que era n'outro tempo aquella gentil figura de mulher, loura, branca e de olhos azues, que perdeu com a mocidade as feições de mulher, e que hoje enrugada, embrutecida, repellente, nem se lembra do que foi, nem do que é...
Pois bem! essa mulher é a feira da Ladra! A feira da Ladra é aquella figura que encontrastes já na vida, e a quem amastes, que arruinada hoje pelo tempo e pela desgraça, nem já amaes, nem já conheceis! Dormistes n'esse leito á franceza, usastes esse chapéu de castor, andastes com essa bengalla -- e hoje terieis vergonha de passear com essa bengalla, terieis nojo de usar esse chapéu e de dormir n'esse leito!
-- Pschiu! pschiu!
João Rodrigues tinha por costume não olhar para traz unicamente por ouvir pschiu, e fez que não era comsigo, apesar de estar em duvida se era ou nao.
-- O sr. João Rodriges I você não ouve?
-- Ouço, mas não me chamo pschiu!
Isto disse em tom de superioridade este philosophico cocheiro, encarando com uma adéla gordanchuda que parou deante d'elle, e lhe bateu no hombro duas palmadas formidaveis.
-- Apre! que foi de rijo! sôra Quiteria! essas festas que me faz, quando me deixará pagar lh'as com caricias?
-- Já você principia a derreter-se, estamos perdidos!
-- A que devo o gosto de haver sido interpellado pela sua amavel?
-- Quiz saber noticias suas, e mais perguntar-lhe se está como parece?
-- Se pareço bem, você o dirá; que me sinto bom e rijo, lhe posso eu jurar! Tão rijo ou tão pouco, que vou na alhêta do Procopio até á horta do Peru, se não o encontrar na feira.
-- Pois vae perder o seu tempo, porque elle foi hoje jantar com o compadre ao Collete Encarnado.
-- Foi para o Collete Encarnado, aquelle ladrão? então querem lá vêr, não me faz tocar os machinhos pretos até lá!
-- Tivera eu as suas pernas, que me havia isso dar grande cuidado!
-- Possuira eu as suas, que por feliz me déra só de as vêr!
E ahi vae João Rodrigues, sempre com a imaginação envolvida nos calculos e planos que lhe estavam dando voltas ao juizo, caminho do Collete Encarnado, que fica á entrada do Campo Grande. Nada houve de notavel durante o transito de um a outro campo, e todavia desde o de Sant'Anna até ao Grande medeia uma legua, distancia sufficiente para cançar homens vulgares, mas que não serve aos Joões Rodrigues senão de abrir o appetite e dispôr o espirito a uma certa veia comica, que é do tom em quem vae ás hortas.
O Collete Encarnado é como o Peru, o Quintalinho, as Côrtes, uma horta como todas as hortas. A leitora terá por certo ouvido, de uma ou de outra vez dizer no theatro, algum personagem de farça de meio caracter -- Fomos ás hortas, vamos ás hortas, queres ir ás hortas?
As hortas por si são um local sem encanto, porém o ir ás hortas constitue a festa: o prazer não consiste em estar nas hortas, mas em ir ás hortas! O prazer consiste no passeio, na boa companhia e na liberdade que o caminho permitte, porque as hortas são quasi sempre fóra das portas da cidade.
O nosso povo gosta d'este passatempo. Ao domingo vae a gente das classes inferiores divertir-se fóra de Lisboa, a algum d'esses quintalões onde se passa alegremente o dia, cantando, tocando guitarra, jogando a malha, ou passeando. N'uma das extremidades da horta costuma haver uma casa de pasto, onde se não julga preciso haver lista, porque quasi sempre as iguarias se limitam ao «peixe frito» e «chouriço com ovos.» Uns «pasteis de bacalhau» augmentam ás vezes o banquete, e uns «queijos de marmelada» servem de lauta sobremeza.
Os homens com a merenda embrulhada n'um lenço branco pendurado ao varapau ou á bengalla, e as mulheres de capote no braço -- o capote classico das mulheres portuguezas, historico traste que só em Portugal se usa e que converterá em Clothos as mais primorosas nymphas sempre que se faça acompanhar do celebre lenço engommado na cabeça!
João Rodrigues e o Procopio desde o instante em que se encontraram deram logo o braço um ao outro, e coxixaram todo o santissimo dia. Foi segredo o que disseram, e como tal nem eu proprio adivinho: o que se sabe é que ao cair da noite o Procopio e o João Rodrigues retiraram em seu juizo, circumstancia que fez com que os assistentes ponderassem que devia haver caso de seriedade na vida de um d'estes heroes para que levassem a austeridade ao grau de ir ás hortas e não se embriagarem.
Durante o caminho vieram taciturnos, e apenas se percebia nos seus designios o firme proposito de irem ao theatro da Rua dos Condes.
A isto diz o leitor: porque iam então taciturnos?
Mas o mysterio que domina este capitulo impede-me fazer revelações intempestivas. O que é já para se contar é que era noite de beneficio, e que os heroes compraram a chave de uma torrinha por tres tostões!
Este theatro, o unico verdadeiramente popular que ha n'este paiz, e que possa dar uma idéa dos que no estrangeiro são exclusivamente consagrados ao genero de espectaculos que mais agrada ás classes inferiores, e que esteja ao alcance das classes menos abastadas, é talvez o que em Lisboa tem maior concorrencia, e aquelle cujo repertorio mais se sustenta, e se torna de maior utilidade para a empreza e para os auctores.
O que, sobretudo, alli diverte mais, é a comedia dos espectadores. A esse respeito contaremos o que um escreveu á familia, que vive fóra de Lisboa, correspondencia em que ha para notar certo espirito de observação, e atticismo, que só em Porto Brandão se encontra. Eis o caso:
Isidoro Mattoso Mattinho da Matta, estudante de S. João Nepumeceno, authenticamente natural de Porto Brandão, e chegado a Lisboa haveria um mez, concluira as suas matriculas em latinidade, e leves tinturas de francez, e resolvera entreter a noite no theatro da rua dos Condes, para o que marcara na lista das despezas miudas que na vespera tinha enviado á casa paterna -- «seis vintens para o cabello.»
Mas Isidoro não cortara o cabello! Esses seis vintens serviram para o estudante comprar á porta do theatro um bilhete da superior. O contratador embaçou-o desapiedadamente e lambeu-se com a idéa de que a poucos collegas succederia n'uma noite de beneficio vender bilhetes por tão alto preço.
Isidoro Mattoso escreveu á familia no dia seguinte, e mandou lhe dizer n'estes termos a fiel resenha de suas observações.
A carta principia em estylo de filho obediente, seguem se os cumprimentos que nada interessam aos leitores; e é depois que Isidoro começa a discorrer assim:
A sala (tinha vontade de lhe chamar cozinha) apresenta um aspecto animado, e chistoso. Nos camarotes agrupam-se, e encarapitam-se as familias sequiosas e soffregas de arte dramatica. Cada torrinha accommóda quatorze pessoas, que para felicidade do dono da casa não pertencem todas á mesma familia, e cujo todo consta das seguintes partes que aqui vou marcar em forma de rol da roupa suja:
Pessoas da casa........................................................................................... 5
Os primos das Janellas Verdes..................................................................... 4
Os compadres da Pampulha......................................................................... 3
A visinha do 5.° andar, e o menino............................................................... 2
Somma 14
N'um dos intervallos ha funcção no camarote. Reunem-se os comestiveis que os diversos convivas tiveram a lembrança de levar, e o dono da casa, que pendurou a sobrecasaca n'um dos cabides para chapeos, tira de uma algibeira uma garrafinha de certo e determinado vinhito que alegra o paladar, e espiritualisa a sociedade!
No meio do banquete dá se o signal para a symphonia: o pequeno da visinha logo que o panno sobe, trepa para cima de um banco para disfructar o jogo da scena, e deita ao chão a garrafa que se faz em pedaços. O publico pede silencio. Cada conviva se apodera do seu quinhão no pique-nique, e poem-se ás costas uns dos outros para gosar os encantos da declamação, conservando um silencio mais do que religioso. N'essas noites, porém, o espectador tem as suas regalias; póde gritar béo béo com mais desafogo, porque em noite de beneficio, e dia santo, as hortas de Santa Martha são aos olhos da auctoridade convenientemente representadas por um publico benemerito.»
Encarapitados n'uma torrinha, João Rodrigues e o seu amigo Procopio, revelaram pelo modo de olhar, que os agitava alguma idéa, porque sem prestarem a attenção á comedia magica que estava entretendo os animos, não faziam senão debruçar-se do camarote e correrem com inquietas vistas a platéa e as frisas, em ar de quem está procurando alguem.
Quasi no fim do primeiro acto, abriu-se uma das frisas de bocca, e appareceram quatros rapazes que chamaram a si a attenção do publico pelo motim que fizeram, e tom de voz em que conversavam.
João Rodrigues esbugalhou os olhos, e deu um pulo de contente quando ouviu o seu Procopio dizer-lhe com expressão de solemne jubilo:
-- Lá está elle!
-- Qual é? perguntou o cocheiro deixando que se lhe espreguiçasse no semblante o sorriso da intima alegria.
-- O da manta! respondeu o Procopio.
-- Depois, ambos examinaram em silencio um dos rapazes da frisa, mancebo louro e bem parecido que conversava com os seus amigos sem dar importancia á comedia, e não cessava um instante de saudar, ora abaixando a cabeça, ora acenando com a mão, diversos conhecimentos seus que lhe retribuiam com um sorriso amavel. De vez em quando olhava para os actores, e tão depressa piscava os olhos a um, como fazia uma careta a outro, obrigando-os a sorrirem-se para elle, e demonstrando ao publico a boa intimidade que reinava entre a sua pessoa e os artistas dramaticos, genero de elegancia presado por certa roda de Lisboa, que estima em muito tratar-se por tu com os actores e com as actrizes, apesar mesmo de terem a certeza de não possuir o amor d'estas, nem a amizade d'aquelles.
Logo que desceu o panno, João Rodrigues e Procopio aproveitaram o intervallo para darem execução ao projecto que haviam formado, e desceram a escada que conduz ao salão do theatro: quando chegaram á entrada do corredor das frisas, viram o rapaz da manta dirigir-se ao botequim do theatro.
-- Caluda! disse o Procopio ao cocheiro: cá temos o homem!
E foram sentar-se na meza proxima á que o rapaz escolhera.
-- Boa noite, José Teixeira! disse-lhe Procopio: queres-te servir de um café, ou de outra qualquer bebida?
-- Obrigado! respondeu o rapaz da manta. Vou tomar meio grog para me refrescar! Esta noite preciso d'estes gelados!
-- Então, vae torta esta noite se me não engano! replicou Procopio fazendo-se amavel.
-- Estou sem vintem, e sem mulher!
-- Ora, mulheres não faltam! accudiu João Rodrigues que entendeu dever tomar parte na conversa.
-- Abalou me hontem um peixe de recommendação!
-- Ah maganão! disse Procopio, amores novos! Agora por isso, d'esta vez não tenho eu dó de ti! Já por cá se sabe que a sua senhoria pertence-lhe agora certa menina... filha de certo menino...
-- O' que menino! disse João Rodrigues: até meninó! Se é o que eu penso, ó Procopio...
-- E' esse, sim -- o agiota Vidueira...
-- Ah! sabiam?! disse o rapaz da manta indo sentar-se á meza com os dois heroes: pois foi essa mesma. Abalou-me hontem!
-- Abalou te! exclamou Procopio: que me dizes?
João Rodrigues nem pestanejava.
-- Hontem á noite quando cheguei a casa, era pela volta da madrugada, e ainda não tinha apparecido! Assim que rompeu a manhã fui procural-a a uma casa onde ella tinha ido passar a noite e a dona da casa depois de me pôr os miolos a arder com respostas que não se entendiam, declarou-me que não sabia d'ella e que, desde as nove horas da noite, não a tornára a vêr!
Procopio deu um beliscão em João Rodrigues que lhe correspondeu pisando-lhe o pé. Começaram a beber, e instaram com o rapaz para que tomasse grog sobre grog: durante o tempo que levou a representar o segundo acto conseguiram pol-o em estado de já não poder entrar de novo para a frisa: lembrou-se elle de ir ao Jardim Chinez e teimou em que o acompanhassem porque sonhava encontrar alli a Proserpina raptada.
João Rodrigues e Procopio levantaram-se para pagar, e o cocheiro disse de relance ao seu amigo:
-- E' preciso sabermos que idéas eram as d'elle a respeito da menina!
-- Deixa-o commigo: agora que já está pio vae despejar os segredos!
Pelo caminho, Procopio perguntou ao rapaz:
-- Que idéas tinhas tu a respeito da pequena? querias casar com ella?
-- Casar! redarguiu o rapaz, rindo e cambaleando. Qual casar! Eu namorei-a porque havia um melro endinheirado que andava com a vista n'ella, e que me incumbiu de eu lhe fazer os meus rapapés a vêr se caia na ratoeira!
João Rodrigues fez-se fullo: o Procopio proseguiu:
-- E depois? Ella consentiu?
-- Não; mas eu fil-a passar fomes, e disse-lhe que não tinha vintem porque me falhara tudo com que eu contava! No fim de oito dias em que o pão não tinha ficado de um dia para o outro (para não endurecer! ponderou o rapaz com uma gargalhada) a pequena resolveu-se a ir pedir a meu padrinho (o tal melro é que havia de fazer de meu padrinho! ponderou o rapaz com outra gargalhada) que fizesse as pazes commigo, e que me alcançasse um emprego! Já se vê que o padrinho se encarregaria de a levar por bonitas palavras a acceitar as suas condições...
João Rodrigues comia o cigarro em que estava fumando, roendo-o como um desesperado.
-- E depois? perguntou ainda o Procopio.
-- Depois é que eu não sei! respondeu o rapaz. Hontem á noite é que ella foi, e não a tornei a vêr desde então!
Até á Praça da Alegria nada mais se disse: o cocheiro parecia deitar chammas pelos olhos, Procopio ficara scismatico, e José Teixeira, porque o leitor já o conheceu de certo que o rapaz da manta não é outro, continuava a cambaear.
Como talvez não cheguemos a entrar no Jardim Chinez e os leitores das provincias ficariam queixosos se não lhes fizessemos a descripção d'este divertimento, depois de havermos falado d'elle, é justo que abandonemos por um instante os tres heroes d'este capitulo.
O Jardim Chinez era um baile publico onde as raparigas de má conducta iam distrair-se ás terças-feiras e aos sabbados no verão, assim como iam ao Baile Nacional ás quintas-feiras no inverno.
As mulheres de marmore de Lisboa não são essas pobres infelizes: assim como na antiga Roma as verdadeiras cortesãs eram as mulheres dos imperadores e as filhas dos imperadores, assim em Lisboa as verdadeiras mulheres de marmore não são as que dançam no Jardim Chinez!
As raparigas perdidas de Lisboa distinguem-se por mil circumstancias curiosas.
Quem usa por casa sapatos de setim branco?
Quem gosta de vêr saltar rolhas de garrafas de Champagne?
Quem é que no theatro toma n'um entreacto chá, no outro sorvete, no outro chocolate, e no outro pasteis?
Quem usa meias de seda no inverno, e desdenha as de fil-d'Ecoce?
Quem usa sempre saias bordadas, e nos dedos mais de tres anneis?
Elias, sempre ellas, as pobres mulheres de... gesso de Lisboa. Todavia, oh abnegação sublime das grandes almas! preferem roubar um estrangeiro a arruinar um portuguez. Entre ellas a moda prescreve dois entes que attravessem a sua existencia -- um amante, e um inglez.
O inglez é o editor responsavel das idas a Carriche, dos camarotes em S. Carlos, e da renda das casas.
O amante é encarregado do coração.
Ainda assim para ser inglez não basta ser inglez. As mulheres de... gesso não consideram inglez senão o que é rico. Um homem pobre até perde a naturalisação aos olhos destas estimaveis creaturas!
A moda ainda lhes impõe mais um petrecho, é um cãosinho inglez para as acompanhar. A' falta de um king-charles póde servir um rapasinho até onze annos, especie de pequeno defensor d'aquella virtude.
Pelo entrudo vão a todos os bailes publicos, e a quarta feira de cinza vem encontral-as pallidas, desgrenhadas, e sem dinheiro. Estão dois dias a caldos de galinha o que para ellas é peor do que estar a pão e laranja, e ao terceiro dia enfeitam-se, pintam-se, e vão passear ao Passeio Publico.
Teem um dia em que são virtuosas e puras como as mais puras e virtuosas. N'este dia as raparigas de má vida de Lisboa nem estão á janella, nem recebem ninguem. E' em sexta feira de Paixão.
Depois, no sabbado d'Alleluia já lamentam não haver Jardim Chinez!
E' curioso vel-as num dia de procissão ou de parada, quando ellas se pavonêam n'uma carruagem de aluguer!
Ou n'uma tarde de touros, quando tomam aquelle divertimento como ligeiro pretexto para se apresentarem n'um camarote de primeira ordem, ao lado de uma duqueza, e por cima de alguns barões!
E conhecem-se, differençam-se, apontam-se entre mil, essas pobres infelizes que raras vezes são elegantes á força de se perderem pelo requinte e pelo extremo!
Tendo quasi sempre passado os primeiros annos da sua vida ou opprimidas pela miseria, ou ignoradas no centro do viver modesto de uma familia de condição mediocre, antevêem os triumphos do vicio e tentam depois ser felizes pelas sumptuosidades da vida exterior!
Reunidas no Jardim Chinez em companhia dos seus predilectos, têem ás vezes ciumes mais verdadeiros do que muitos que se affectam nas salas, e como não têem adoradores que por sua causa se batam á pistolla ou ao sabre, encarregam-se ellas mesmas da desaffronta e, modernas amazonas, arrancam os cabellos umas ás outras!
João Rodrigues quando se viu no meio da Praça de Alegria voltou-se para Procopio e disse-lhe a meia voz:
-- Ficâmos já despedidos, e obrigado por este encommodo. Faze favor de te deixares vêr pelas costas, porque tenho duas palavras a dizer cá ao menino, e não preciso pár para esta contradança!
O amigo Procopio apertou a mão do cocheiro, e fingiu demorar-se a examinar o numero de uma porta: logo porém que João Rodrigues e José Teixeira deram mais alguns passos, voltou para a direita e seguiu a rua da Gloria. Não chegára a metade d'ella quando ouviu gritos de soccorro e logo depois o som de apitos.
-- O João Rodrigues fez algum presente ao rapaz! disse este Procopio sem alterar o passo.
Era José Teixeira que estendido no chão chamava soccorro contra o seu companheiro João Rodrigues, que lhe déra uma facada e o deixára sem lhe dizer adeus.
XXI
No theatro de S. Carlos -- A imprensa e a platéa. -- As cartas da marqueza
Constou logo em sociedade a noticia da ligação que existia entre Luiz de Lima e a dançarina.
Por muitas vez a marqueza de Villar, em casa de quem já raras vezes apparecia o medico, dando sempre mil pretextos para não se encontrarem em casa da modista porque receava uma explicação, havia observado que o seu protegido amante não faltava a uma unica recita de S. Carlos.
Com o rempo foi acontecendo o que por estas occasiões costuma sempre succeder, e que deu a idéa para o proverbio -- a verdade é como o azeite -- isto é a marqueza ora por um epigramma que lhe jogava alguma amiga, ora por um surriso malicioso e perfido que se trocava entre pessoas da sua intimidade na occasião de Ritinha entrar em scena, percebeu ou desconfiou pelo menos de que havia alguma relação entre si e a dançarina, relação que ella ignorava ainda, mas que os olhos de Ritinha lhe deram a conhecer porque repetidas vezes se fitaram nos de Luiz de Lima.
A marqueza fez-se pallida de cholera.
-- Será possivel? perguntou a si propria. Trahida por causa de similhante mulher! esquecer-me e dar preferencia a uma dançarina, para que o ridiculo seja todo meu, e que as minhas amigas tenham o direito de se divertirem com a minha situação! Duvido ainda.
E duvidava devéras, e duvidaria sempre, porque o medico tinha sabido ser tão perfeito actor que o papel de «amante fiel» nunca havia sido declamado com tanta verdade de expressão, de olhar, e de meiguice.
As mulheres como a marqueza vaidosas e presumidas, são tão difficeis de se reconhecerem vencidas, e têem até ao fim tanta confiança no seu valor, que Thomasia de Villar não quiz ao principio ver em todo este successo mais do que um entretenimento de homem do mundo, entretenimento que elle quebraria logo que lhe dissesse que não o ignorava, e lhe explicasse quanto similhante devaneio offendia o melindre dos seus direitos de senhora amada.
Mas a marqueza esperava um sorriso, e encontrou uma negativa. O medico jurou que era tudo falso, que não conhecia Ritinha, que nunca a vira, que até lhe era desconhecido este nome.
Mentiu de mais.
Thomasia de Villar fingiu acredital-o, e preparou-se para uma investigação mais aturada. Um cruel presentimento lhe dizia, que eram falsos os juramentos e protestos com que o seu amante se justificava.
Na primeira recita que se seguiu, os olhos da marqueza examinaram attentamente atravez do oculo de theatro os mais leves movimentos de physionomia tanto da dançarina como do medico. Infelizmente para a tranquillidade do seu espirito, tudo que observou foi reforçar as suspeitas que concebera.
Ritinha ao terminar uma variação foi applaudida de diversos sitios da platéa, mas, ao agradecer, só olhou para o lado onde estava Luiz de Lima, e o «sorriso ao publico» -- aquelle clássico sorriso das dançarinas quando se lhes dá palmas -- foi dirigido especialmente ao medico.
Estes pequenos indicios que nada provam aos olhos de quem não estuda no theatro o espectaculo dos espectadores tomam todavia proporções gigantescas perante a analyse perspicaz dos dilletanti que vêem n'um olhar ou n'um sorriso todo o enredo de qualquer mysterioso drama de vida intima!
A marqueza, por meio de um acêno de cabeça, chamou um dos seus ajudantes-d'ordens que estava na platéa.
Estes ajudantes-d'ordens são vulgarissimos na sociedade lisbonense, e não ha dama de bom tom que deixe de ter os seus tres ou quatro. Ainda assim não vá cuidar a leitora que tiver a fortuna de não conhecer estes usos, que isto de ajudantes-d'ordens de uma senhora queira ser synonimo de amantes ou predilectos. Nada d'isto.
E' uma ramificação dos chevaliers des dames da França, e dos cavalieri sirvanti da Italia. Servem para dar palmas ou pateada, conforme a dama ordena, para armar uma intriga, propagar uma calumnia, e seguir á risca os preceitos da empresaria d'esta companhia de jovens desaforados.
Em recompensa de tão bons serviços, estes cavalheiros pedem pouco. Serem admittidos na sociedade escolhida da empresaria, passearem com ella no Passeio Publico, visitarem-n'a no camarote, serem convidados para os bailes que dér, jantarem a miudo em sua casa.
Ha primeiros e segundos ajudantes d'ordens; isto é, ha os que são admittidos á intimidade da empresaria, e que disfructam a honra de receberem de seus proprios labios os decretos que se digna communicar-lhes -- e os que não recebem as ordens directamente, mas por intermedio d'esses que têem a fortuna de conhecer pessoalmente a deusa.
Ora, os segundos ajudantes d'ordens não podem, já se vê, gosar das prerogativas de seus superiores, e por isso contentam-se com o bilhete de entrada, unica remuneração de seus serviços valiosos sempre que exercem, graças aos caprichos particulares das senhoras de sociedade, a claque que nos paizes estrangeiros costuma ser paga pelo empresario e pelos cantores.
E agora, que já os leitores da provincia estão ao facto de quem são os ajudantes d'ordens das senhoras de Lisboa, continue a historia.
-- Qual é a sua opinião acerca da agilidade d'esta dançarina Ritinha? perguntou a marqueza ao cavaliere sirvante.
-- A minha opinião..., respondeu o ajudante d'ordens... é...
-- E' que é pesada como chumbo e desgraciosissima, não é assim? tambem sou d'esse parecer.
-- Não tem elegancia nem facilidade de movimento, acudiu o segisbéo, e parece ter pernas de compasso, com a deslocação nos rins!
-- Pernas de compasso! ponderou Thomasia de Villar rindo com gosto; lembra bem! essa comparação é chistosissima! Por que não lhe dão pateada? Forme partido á outra, a francesita, que realmente executa bem o passo do segundo acto nas pontas dos pés: faz dificuldades e tem bastante gosto.
-- Tem bastante gosto, (repetiu o attaché). Bastante gosto.
-- Pois então constitua-se seu defensor: como se chama ella?
-- Marceline; um lindo nome!
-- Um lindo nome diz bem! redarguiu a marqueza: um nome doce, facil, e elegante; as mulheres de theatro nem sabem a fortuna que têem em possuir um bonito nome!
«Está decidido; depois d'ámanhã façam-lhe um triumpho. Em Lisboa têem-se concedido ovações a tantos artistas, até ás vezes abaixo do mediocre, que ninguem se ha-de admirar de presencear mais um! Encarrego-me das corôas, e dos bouquets. Darei ordem ámanha para que encommendem ao caseiro da quinta do Villar as melhores flores que por lá se encontrem. Veja se acha um poeta para lhe chamar gnomo, fada, sylphide em tres quadras trocadas por tres garrafas de Champagne: emfim, apesar de não haver em Lisboa bons claqueurs, diligenceie por distribuir uns trinta bilhetes; mas haja cuidado em que não as confundam e que não dêem palmas a Ritinha em vez de applaudirem a franceza. Fica incumbido d'esta missão; quero vêr como sae d'ella.
Na recita designada para enterrar a Ritinha, os ajudantes d'ordens giravam pelo salão, inquietos, agitados, buliçosos, impacientes. Desde as sete da noite que os mais afamados gaiatos de Lisboa -- esses illustres segura-cavallos cujo nome tem n'esta terra grande celebridade e grande prestigio -- o Lerias, o Maneta, o Casaca, ed altri, andavam ajoujados com cestos cheios de bouquets, caixas de riquissimas corôas em que o bom gosto e a perfeição de D. Vicente revelavam a ultima expressão da sua superioridade n'este genero de trabalhos, subindo e descendo as escadas dos camarotes, distribuindo as coroas, os bouquets e os papeis de côres em que um poeta descorado tinha escripto poesias sem cor, pelas torrinhas de bocca alugadas de proposito para esta festividade solemne. A um caricaturista de Lisboa, que já por si é uma caricatura, havia sido encommendado um desenho burlesco tirando partido da figura de Ritinha, e transformando a n'uma harpia. As estampas chegaram ás 9 horas da noite, tendo saido n'esse instante da lithographia, onde durante a tarde tudo andára n'uma dobadoura para que a essa hora pudessem estar tirados cem exemplares. Um peru, um magrissimo peru dos que nem mesmo pelo Natal podem tentar alguem a que os compre, serviu para parodiar o classico pombo que em Lisboa os proprios artistas costumam comprar para que o seu criado lh'o atire das varandas em signal de ovação, sendo ainda melhor a festa se o criado consegue apanhal-o outra vez, porque serve para o arroz da ceia!
No momento em que principiou a variação de Ritinha, os janotas preparam-se para uma batalha formal. A pateada rompeu furiosa; os espadachins de platéa, heroes famosos que fazem constituir a sua gloria em terem ido depois de furiosas pateadas passar por mais de cem vezes o resto da noite ao quarlel do Carmo, batiam nos bancos com a companheira effectiva das noitadas -- a grossa chave do trinco! Os meninos, janotinhas pequenos que em Lisboa formigam por todos os cantos tão depressa haja questão theatral, estafavam os tacões das suas botinhas de pulga! Um velho dilletanti, um d'estes avôs dos janotas que aos novinhos ensinam certas cousas e com elles aprendem certas outras, soltava por entre o motim um bravo de escarneo e de mofa. A platéa rompeu em gargalhadas, e o peru enfeitado de fitas côr de rosa saiu de uma torrinha de bocca e foi cair aos pés de Ritinha, que, aterrada já pelo acolhimento que os janotas lhe fizeram desde o começo de variação, se assustou por tal modo ao topar n'uma das azas do peru que estrebuchava nos paroxismos de uma morte mais verdadeira do que costumam ser as mortes no theatro que se perdeu da musica, tentando debalde a orchestra apanhal-a.
Foi um charivari completo.
As senhoras de sociedades riam; as dançarinas olhavam umas para as outras com o ar de quem não cabe em si de contente, e Luiz de Lima livido e convulso perdeu a cabeça a ponto de soltar o inconveniente grito que por vezes tem suscitado tantas questões de platéa -- «Fóra, canalha!»
No salão houve entre Luiz de Lima e dois partidistas contrarios a Ritinha, que se deram por offendidos da expressão que elle soltára, uma disputa acalorada e energica. Um delles era um janota pretencioso: Lima deu-lhe uma bofetada; o outro era um janota descabellado, dos que não se penteam, nem se desembuçam na platéa do contemporaneo chale-manta (contemporaneo, porque ainda não gosa das honras de classico), mas que pretendem heroes ser em bravura, e em desembaraço: Lima escarrou-lhe na cara. O administrador veio, em pessoa, ao salão, qual afamado beleguim e fez prender dois outros janotas, para não deixar cair em desuzo o rasoavel habito dos administradores de Lisboa de só capturarem os que não têem culpa!
Lima, tomou chá depois do espectaculo no botequim do salão de cima, em companhia de José d'Athayde, de Estevão de Mello, e de Antonio Roma.
-- A imprensa vale bem a platéa: vocês estão encarregados de me levantar a Ritinha. Enterrem a Marceline a todo o custo...
-- A Marceline dança admiravelmente, homem! disse Antonio Roma.
-- A admiração é um sentimento vulgar; redarguiu José d'Athayde; todo o critico illustre deve tão depressa olhar para qualquer cousa magnifica perceber-lhe o pequenino defeito que possa dispensal o de se extasiar!
-- E' claro! disse Estevão. A' falta de outro argumento diremos que a Ritinha é portugueza, e que o publico de Lisboa dá uma triste idéa de si, desfeiteando uma compatriota.
-- Apoiado! gritou Lima. O grande caso é que ámanhã appareça nos jornaes toda a historia d'esta noite, accusada pela critica conscienciosa!
-- O melhor é redigir-se aqui mesmo a noticia! disse Mello.
-- Vamos a isso; enriqueçamos o noticiario mentindo com desaforo! Rapaz, traze mais fiambre com papel e tinteiro!
José d'Athayde estava noticiarista do afamado jornal -- A Verdade, -- a maior folha que em Portugal tem saido, uma das mais bem redigidas, e todavia das que menos fortuna alcançaram, pela immensa despeza de redacção effectiva, e sobretudo de redacção fluctuante a quem a empreza do jornal pagava os artigos a 2000 a columna, cifra prodigiosa n'este paiz em que as lettras se vendem mais baratas do que os tremoços! Estevão de Mello estava redigindo uma folha ministerial, A Rectidão, e Antonio Roma collaborava effectivamente uma das mais acreditadas folhas de Lisboa, A Imparcialidade.
No dia seguinte lia se na Verdade:
-- «Injustiça inqualificavel . Um pequenissimo numero de espectadores emprehendeu desfeitear a sympathica dançarina Rita, prejudicando o bom andamento do espectaculo por uma pateada immerecida, que foi supplantada pelos applausos do publico intelligente E' de esperar que não se repita com tal escandalo da parte de cinco ou seis partidistas de mademoiselle Marceline, a quem debalde se quer elevar promovendo a queda da sua rival, uma scena que ainda mais faz com que se observe que não é grande nunca o merito de uma artista quando para ser applaudida se torna preciso fazer patear uma companheira.
A Rectidão dizia:
-- Acabamos de assistir á representação d'esta noite, no theatro de S. Carlos. Corria no salão que a pateada com que pela primeira vez foi desfeiteada a elegante dançarina Rita, havia sido encommenda de mademoiselle Marceline. Custa-nos a acreditar que uma artista desça a similhantes actos para assegurar tão ephemeros triumphos como o que esta noite alcançou!
A Imparcialidade dava como primeira noticia:
-- A dança em S. Carlos. Toda a platéa se indignou na recita de hontem do comportamento de tres ou quatro espectadores que tentaram desfeitear a graciosa bailarina Ritinha, compatriota nossa, por quem sempre os habitues de S. Carlos tiveram predilecção. Cumpre á auctoridade evitar que de novo se dêem d'estes escandalos contra os quaes a opinião publica protesta.»
O assignante que havia contado o caso á sua familia, via-se obrigado a esconder-lhe os jornaes porque não queria passar por mentiroro: os orgãos da capital diziam tudo ás avessas!
-- Ou esta gente lá não esteve, ou estive eu a sonhar! exclamava o assignante perdido em conjecturas: falam em tres ou quatro espectadores, quando mais de cem pateáram! A opinião publica indignada! e eu vi todos a rir! O publico intelligente supplantou a pateada! E' desaforo de cassoada, ou então grande confusão de meu espirito! De mais a mais não falam no peru! Não vejo aqui o peru! Que fizeram elles ao peru?! Querem vêr que os orgãos da opinião publica eliminaram o peru! Pois é nosso, queremol o: em qualidade de assignantes da folha temos direito a uma noticia exacta, a noticia sem o peru não é exacta! Vou largar o jornal. Estou roubado no peru!
Luiz de Lima foi ainda na noite da pateada visitar a dançarina, e encontrou a triste e chorosa.
-- Que mal lhes fiz eu? perguntou a pobre rapariga erguendo para o medico os seus lindos olhos orvalhados de lagrimas.
-- Affligem-te os encargos da vida de artista, e todavia são verdadeiras vantagens para a fama do teu nome! Nunca se falou tanto em ti como por estes dias se ha-de falar! O publico liga importancia áquelles que desfeitêa accaloradamente; se te dessem palmas por mofa, degradavam-te: com uma pateada de acinte, illustram-te!
-- Sabes o que me disseram?
-- Que foi?
-- Asseguraram-me que a pateada havia sido encommendada por uma fidalga que gosta de ti!
-- Talvez! disse Luiz com um sorriso de fatuidade.
-- Gostas então de uma fidalga?! exclamou a rapariga erguendo-se de um salto, vermelha de cholera.
-- Disseste «uma fidalga que gosta de mim» e não uma fidalga de quem eu gosto, por isso te respondi-- «Talvez!» Se isso é verdade, a fidalga é a Marqueza de Villar a quem se diz que eu aturei n'outro tempo!
-- Nunca me havias falado n'esses amores!
-- Porque nunca os trago na lembrança. Serias louca em teres ciumes de uma Venus de quarenta annos, apenas supportavel nas cartas que escreve, como estylista de primeira classe!
-- Quero vêr alguma carta d'ella: mostras-m'as?
-- Offereço-t'as até se fazes gosto n'isso! tenho duas ou tres que ainda não rasguei!
-- Vem ámanhã almoçar commigo, e não te esqueça trazel-as: essas fidalgas escrevem de ordinario com mais orthographia do que sinceridade, mas os homens levam se mais por palavras do que por sentimentos! Parece que uma fidalga que tem coupé e marido, escusava disputar o amante a uma pobre dançarina como eu! De quem o mundo havia de queixar-se era de mim se eu lhe desinquietasse o marido!
E a rapariga fez um magnifico gesto de desdem, e depois de um sorriso glacial começou a cantarolar uma estrophe da Vivandeira, de Palmeirim:
Ai que vida que passa na terra
Quem não ouve rufar o tambor.
Na manhã seguinte, quando Luiz de Lima se dispunha a ir almoçar com Ritinha, depois de haver tirado do cofre que continha as epistolas de Thomasia de Villar, tres cartas que escolheu d'entre muitas que alli se achavam, um criado lhe entregou o seguinte bilhete: -- «Estou na carruagem, e quero falar-lhe: faça com que eu entre pela escada particular, ou venha immediatamente encontrar-me.»
-- Faze entrar essa senhora! disse o medico ao criado.
Momentos depois, entrava no quarto do medico a Marqueza de Villar.
-- Não me esperava, de certo! exclamou Thomasia.
-- Desejo-a sempre! respondeu o medico com um frio sorriso.
-- Ponha de parte essas delicadezas mentirosas: deixemo-nos de phrases! Quando o amor foge d'uma vez, não é por palavras que se póde reconquistal-o!
-- E fugiu o seu amor por mim?
-- Perdeu o pouco que lhe tinha ainda! Ha creaturas por tal fórma perversas que se esquecem da mão que os salvou da desgraça e os restituiu á vida, unicamente por amor!
-- Por amor? perguntou o medico sorrindo.
-- Por amor, replicou a marqueza. Atreve-se a duvidar?
-- Duvido de tudo. Deixe-me contar-lhe uma historia: uma historiasinha breve e singela. Quer dar-se a ouvil-a?
-- Em que póde interessar-me...?
-- Verá!
Depois de uma pausa que a Marqueza aproveitou para se recostar n'um sophá, Luiz de Lima de pé e a fumar, começou assim.
-- Dava-se em Coimbra um jantar de estudantes. Eram dez amigos, todos na flôr da edade e do enthusiasrno, que principiaram logo depois da sopa a discutir o amor, o casamento, o adulterio, e todas as altas questões sociaes que sempre á meza se discutem com facilidade.
«O estudante tomava grande parte na discussão e expendia as suas doutrinas, com grave irreverencia á moral e á virtude.
«As mulheres devem apenas ser consideradas como instrumento necessario aos passatempos da vida, disse elle. Se ás vezes lhes ligamos tanta importancia é porque amâmos n'ellas não o que ellas são, mas o que nós as julgamos. A mim tem-me succedido até, amar apenas n'uma mulher o meu proprio amor por ella! Não creio na innocencia d'esses anjos que nos perdem. Ellas saem dos collegios virgens, ás vezes; castas nunca!
-- Vens de Lisboa sem illusões? perguntou-lhe um companheiro.
-- Deixei-as no vapor de Villa Nova. Mandei-as de presente a uma noiva que me ameaçou de se matar se eu deixasse Lisboa!
-- Uma noiva, retorquiu outro, caspite!
-- Ia cahindo na asneira de me apaixonar, mas salvei-me a tempo! Quero ser medico e ter fortuna. Em ultimo caso antes cirurgião do banco em qualquer hospital do que amante correspondido! -- Deita-me vinho!
-- E' alguma noiva de quarenta annos! Velha donzelona que pediu auxilio ao hyminêo!
-- Ao contrario, uma ingenua de dezesete annos, cuja natural excellencia de alma a leva a sympathisar com toda a gente, excepto... com seu marido! Nunca vi noiva mais esperançosa!
-- Pobre joia! por fim de tudo é talvez louca por ti!
-- Sympathisou provavelmente com uma casaca azul que eu tinha vestida no dia em que lhe fui apresentado! Não posso dar outra interpretação a similhante amor á queima-roupa com que me acommetteu! E' a primeira vez que se poz em pratica a phrase de carta d'amores. «Desde que a vi meu coração se abrasou!»
-- E' interessante?
-- Caracter de novella: já se vê que a sua paixão por mim não passava de um devaneio de menina romantica, Lamartinada!
«N'esta occasião um criado entregou ao estudante uma carta chegada pelo correio de Lisboa.
-- Oh! exclamaram os outros, parece letra de mulher!
«E abrindo a carta leu para si o que se segue:
«Tinha-te jurado que seria tua até á morte: cumpro. Acabo de me envenenar.
«Não te preveni eu para que não partisses de Lisboa?
«Nunca saberás que angustias me têem devorado a alma desde que deixei de te vêr. Mas não tive coragem para viver sem ti: perdoa!
«Quando lêres esta carta já eu não serei do mundo. Recebe um beijo da tua pobre -- Maria.
«O estudante tornou-se livido, e escondeu o rosto entre as mãos com uma expressão de terror indefinivel.
«Os companheiros não conseguiram d'elle uma unica explicação, e a mil rogos seus deixaram-o só, encostado de braços sobre a meza. No dia seguinte de manhã foram encontral-o na mesma attitude, com a fronte sobre a toalha roxa e molhada em ondas de vinho.
«Quando ouviu a sineta que o chamava á aula pareceu então acordar. O que ha sobretudo de extraordinario é que sendo n'esse dia chamado á lição, foi eloquente e magnifico, explicando e commentando os envenenamentos. Cita-se ainda hoje na Universidade essa lição memoravel.
Depois de uma pausa mui breve, Luiz de Lima disse:
-- A situação d'este homem ia tornar-se difficil. Ou iria acreditar todas as mulheres, julgal-as a todas tão sinceras e apaixonadas como a pobre Maria, ou tinha de fugir d'ellas, de renegar a idéa de amar alguem, porque seria indigno dar a outra o affecto que já uma lhe havia merecido, e que por amor deixára a vida.
«A idéa afflictiva e cruel de não haver comprehendido aquella grande alma de senhora, nem ter adivinhado de quanto era susceptivel o peito que tanto amor sentira, fez com que elle tivesse horror a si proprio, e que encontrasse o mundo deserto desde que essa mulher lhe faltára!
-- O estudante? perguntou emfim a marqueza, que escutára anciosa e convulsa a lenta e pausada narrativa do medico.
-- O estudante era eu! disse Luiz de Lima.
A marqueza fez-se livida como o marmore, e guardou silencio por alguns momentos. Ao cabo d'elles, tremula e agitada ergueu-se de um pulo, e dirigindo-se ao medico disse-lhe a meia voz:
-- É preciso ser muito vil para ter sempre por similhante modo enganado uma mulher!
-- Minha querida, n'este mundo não se deve attender aos factos, mas ás circumstancias, respondeu Luiz com um cynico sorriso. Demais, sejamos francos, que lhe devo eu, marqueza? meu casamento? Mas, Deus meu, a marqueza quiz casar-me porque entendeu que convinha mais aos olhos da sociedade que eu fosse casado do que solteiro, e que o mundo me daria maior importancia desde que «vivesse feliz e tivesse muitos filhos!» O classico desfecho das novellas do seculo dezoito é de uma moralidade que ainda hoje se acata e deseja. A maior parte dos homens fascinam-se pelos favores de uma senhora sem sequer observarem se ella emprega esses favores para se obsequiar a si propria! Por que me chama vil? Não se abusa assim de vocabulos affrontosos para castigar os que errarem por nossa propria culpa!
A marqueza mordia os beiços, impaciente e raivosa.
-- Emfim! exclamou depois de uma pausa, mudando de expressão e acompanhando estas palavras de um sorriso: -- Emfim, confesso que fui um pouco leviana, um pouco imprudente no que disse: não está em teu poder rehaver as illusoes do amor para as quaes morreste ao entrar da vida, nem eu poderia nunca luctar com uma recordação, vencer uma sombra, e tornar-me no teu coração superior á imagem que a primeira mulher que amaste ahi deixou gravada. Dos que morrem só nos lembram as qualidades: os defeitos, nunca! E uma pobre mulher que tem o defeito de viver, não poderá deixar de errar alguma vez! Os mortos levam nos essa vantagem.
«Sabes o que quero, o que desejo, o que peço, é que não appareças por estas cinco ou seis recitas em S. Carlos; se já não podes amar como eu quereria ser amada por ti, ao menos és ainda susceptivel d'estima, de sympathia por alguem; e se eu te mereço, se me julgas digna d'essa sympathia e d'essa estima, faz-me isto que peço! não pede muito quem por tanto amor que te tem tido tanto tinha direito a pedir!
Luiz de Lima sorriu-se.
«Seria realmente uma crueldade recusares-me um poucochinho d'amor! A mim, que me tenho sacrificado e compromettido por ti!
«Dize-me, é verdade! (continuou ella, passando um braço em redôr do pescoço do medico) que tens feito das minhas cartas, loucos e imprudentes testimunhos da minha fraqueza?
-- Tenho-as guardadas, Thomazia: pois que outro destino poderia ter dado a essas preciosas cartas, em que o teu espirito e o teu coração revelam o grande alcance do amor!
-- Todas guardadas! ponderou a marqueza com um sorriso meio terno, meio ironico. Se as houvesses perdido, rasgado... se tivesses acendido um charuto com alguma d'ellas... Não! Bem sei que d'isso és incapaz. Mas as mulheres são tão desconfiadas e escrupulosas! Eu, por exemplo; mal sabes qual era n'este momento o mais vivo e ateado desejo do meu espirito...
-- Dil-o-has!
-- Caprichos de mulher que ama, vês tu! Puras phantasias de quem vive pelo amor! mas phantasias e caprichos que tranquillisam a nossa alma, sempre agitada pelos argueiros a que o telescopio dos affectos presta o vulto de cavalleiros!
-- Mas, finalmente...
Finalmente, quero saber onde tu tens as minhas cartas!
-- No cofre d'ebano, de que me fizeste presente; é onde sempre as guardei, como sabes, e onde ainda as conservo, como podes vêr.
-- Como posso vêr! Ora ahi está de que nós gostamos, pobres mulheres -- da franqueza da facilidade em vêr cumpridos os nossos desejos por aquelle a quem adoramos! Pois olha, Luiz, quero vel-as, sim, quero vel-as agora: faze-me esta vontade!
Luiz de Lima lembrou-se n'esse momento das tres cartas da marqueza, que tinha n'uma algibeira para satisfazer ao pedido de Ritinha, que era de opinião que as senhoras da alta sociedade escrevem de ordinario com mais orthographia do que sinceridade.
Mas o cofre estava diante dos olhos da marqueza e era impossivel reunir ás cartas que continha, as tres que lhe faltavam.
-- Eil-as, disse o medico tomando uma deliberação, e abrindo o cofre.
-- Ah! exclamou Thomasia de Villar; com que prazer vou contal-as!
O medico estremeceu; que explicação poderia dar de ter tres cartas n'uma algibeira?
-- Uma, duas, cinco, dez, quinze, deseseis!
Deseseis cartas! Sempre eu era de uma fertilidade no estylo epistolar digno de uma educanda de quatorze annos! Ah! quantas pulsações de um coração apaixonado estas garatujas traduzem!
-- Valha-me isso! ponderou o medico comsigo mesmo. Não lhe sabia a conta.
E em quanto a marqueza se entretinha em passar pela vista algumas cartas, Luiz de Lima foi dentro dar ordens a um criado.
Mas ao voltar, como a porta ficara aberta, viu antes de entrar na saleta a figura da marqueza n'um espelho aproveitando os momentos de estar só para tirar do cofre as cartas e guardal-as.
O medico parou. Thomasia de Villar, que nem sequer lhe passava pela lembrança que o espelho poderia denuncial-a e trahil-a, pareceu respirar com mais liberdade no momento de fechar o cofre já vazio. Luiz de Lima entrou então, affectando um ar despreoccupado.
-- O que se dá hoje no theatro francez? perguntou elle.
-- Uma comedia nova, e tres vaudevilles antigos, respondeu a marqueza com a maior serenidade, collocando o cofre sobre a meza, e retirando a chave.
-- Sabes mais um capricho que tenho? Realmente tens razão se disseres que estou hoje extremamente exigente.
-- Não penses isso, meu amor, respondeu o medico. Ordena.
A marqueza sorriu-se.
-- Quero que consintas em que seja eu que guarde a chave d'este cofre.
-- Queres privar-me do prazer de repetir a leitura das tuas cartas que por tantas vezes me consolam das amarguras da vida? Cruel!
-- Era para não annuires ao meu pedido, que me dizias que ordenasse?
-- Eu disse que ordenasses? N'esse caso, cumpra-se essa imprudente promessa. Sacrifico-me aos resultados de uma phrase de que não medi bem o alcance. Guarda a chave d'esse cofre que tão preciosos segredos contem!
Thomasia de Villar estendeu-lhe a mão com um apparente enthusiasmo amoroso, e respondeu erguendo-se:
-- Como te adoro quando me fazes as vontades!
Depois das vulgaridades de uma despedida entre amantes, a marqueza sahiu sem que nenhum d'elles por um gesto ou por um olhar houvesse accusado -- ella o que fizera, e elle o que observara.
Ao sentar-se na sua carruagem, a marqueza soltou uma ligeira gargalhada, nervosa e phrenetica, de ironia.
-- Os homens teem a fatuidade da cegueira! exclamou. Ufanam-se de nunca serem enganados, quando é tão facil illudil-os!
«Ah! o sr. Luiz de Lima julgava ter-me presa ás minhas cartas! Tanto peor para elle! Tudo desde hoje terminou entre nós, e a minha liberdade é a bandeira que a conquista d'estas cartas faz tremular desassombrada.
Luiz de Lima estava a este tempo tirando de uma algibeira as tres cartas da marqueza que elle promettêra mostrar á dançarina, e dizia a si proprio:
-- O acaso é um grande auctor dramatico! Quantos dramas nascem d'elle!
«Emfim! se Ritinha quizer obedecer-me, poderá affoitamente deixar o theatro. O marquez e a marqueza serão os seus empresarios. Estas tres cartas hão-de valer uma boa escriptura!
XXII
Vingança
No dia seguinte á noite da pateada, á mesma hora talvez em que a marqueza de Villar roubava do cofre de Luiz de Lima as cartas que alli encontrou, recebia Ritinha uma carta do barão em que se despedia d'ella, dizendo-lhe que cedia todos os seus direitos ao preferido rival que ella lhe déra.
A dançarina, que infelizmente era mulher, pensou, movida pela vaidade, que o barão voltaria a requestal-a por não poder viver sem ella, e quiz ter a ostentação de não se curvar a pedir, nem se dar ao incommodo de procurar justificar-se. O medico aprovou esta deliberação, e respondeu-lhe por uma d'estas phrases imprudentes que os amantes arriscam em certas crises: -- «Tens-me a mim!»
Desde esse dia achou-se encartado na perigosa dignidade do amante poderoso, e principiou me diligencias de fazer ver ao mundo que a dançarina não perdêra nada em ser deixada pelo barão: sem lhe acudir á lembrança que as despezas a que se entregava eram para Antonio Cypriano o alvo dos seus desejos, e que a vingança do sogro não era outra senão a de o fazer gastar mais do que podia! Julgava ferir-lhe o amor proprio, e estava a dar-lhe glorias!
Estava-se em fins de junho, a epocha theatral pouco tardava a findar, e durante os mezes em que o theatro de São Carlos esteve fechado, e que Ritinha não vencia ordenado, o medico principiou a lembrar-se que não teria feito peor em conservar o voto de pobresa que fizera no começo da sua intimidade com a dançarina.
Lembrou-se de jogar, que é do que se lembram todos os homens que teem pouco dinheiro e desejam ter muito. Mas não querendo jogar em sala para não fazer saber ás classes altas de onde lhe vinha o dinheiro, se porventura ganhasse, resolveu-se a frequentar qualquer casa de jogo mais publica, na esperança de que menos gente encontraria alli das classes com quem mais estava em relação.
Qual seria portanto a sua admiração quando, na primeira noite em que foi a uma espelunca, encontrou ahi gente de todas as espheras sociaes, alguns até que na sociedade são considerados homens serios e com fortuna!
As casas de jogo de Lisboa quasi não teem feição; em Portugal quasi toda a gente joga, e todavia é rara entre pós a paixão do jogo: vive muita gente de ganhar dinheiro n'uma carta, morrem alguns de fome por já não terem que arriscar; mas não morre nem vive ninguem aqui das sensações ardentes e devastadoras do jogo.
Ao fim de um mez em que quasi todas as noites fôra tentar a sorte, Luiz de Lima estava de ganho de umas setenta libras. O dinheiro que se ganha ao jogo, não é como o dinheiro que o trabalho alcança: este presa-se e ama-se, aquelle incommoda-nos em quanto o não gastamos. Por isso, as setenta libras do primeiro mez, foram verdadeiros bens de sacristão, que cantando vem, e cantando vão.
Desejoso de fazer jogo mais forte, Luiz de Lima resolveu-se a frequentar algumas casas onde se reunia melhor gente. Encontrou então ahi Estevão de Mello, que vivia exclusivamente do jogo, o bom de seu sogro o barão de Sousa, que tinha sido nos seus tempos jogador de officio e que ainda jogava por distracção algumas vezes, o marquez do Valle da Arruda, que era terrivel aos dados, o conde do Payalvo, que estava arruinado por causa dos tres de oiros, carta da sua infeliz predilecção, e Guilherme da Cunha, que ia ás vezes em companhia de Victor Marrocos arriscar sobre uma dama as dez libras do seu ordenado mensal.
Luiz de Lima cortejou Guilherme, e deu-lhe a mão a tocar: Guilherme acceitou, e ficaram conversando desde então sempre que se encontravam.
Uma noite, estava-se jogando doidamente, infernalmente: Luiz de Lima estava de perda n'essa noite de duzentos a trezentos mil réis. Guilherme tinha sessenta libras de ganho. Um valete fez ainda perder dez libras a Luiz; uma dama fez ganhar mais dez libras a Guilherme.
-- E' feliz com as damas! disse-lhe um dos jogadores, velho enfezado e amarellento, olhando para o oiro com um triste sorriso.
-- Só com as damas das espeluncas! redarguiu Guilherme.
Continuava o jogo.
Luiz de Lima ia entregar ao acaso a ultima libra que levava.
-- No rei! disse elle, collocando-a sobre um feio rei de paus, que parecia estar fazendo uma careta á libra com o que o cobriram.
-- Ainda pela dama! disse Guilherme.
A dama foi a primeira carta que sahiu.
-- Está hoje de veia aziaga, doutor! exclamou o banqueiro.
-- A causa dos reis sempre faz victimas! este de paus levou-me a ultima libra!
Guilherme da Cunha, apresentou ao medico um monte de libras, e pediu-lhe que tirasse: o olhar de Luiz de Lima trahiu a lucta secreta de repugnancia e de desejo que n'esse instante agitou a sua alma. Foi então que viu sobre a meza uma carta tentadora, uns seis de oiros que lhe despertaram o presentimento de ganhar.
-- Acceito vinte libras, respondeu, contando-as do monte magnifico que estava diante de Guilherme. E vão as vinte nos seis!...
Os seis de oiros foi tambem uma infeliz carta para Lima, e uma carta feliz para Guilherme. A instancias do mancebo, o medico acceitou mais dez, depois mais cinco, depois mais vinte libras ainda. E tudo perdeu!
-- Cincoenta e cinco libras lhe devo! disse então voltando-se para Guilherme, e affectando o sorriso despreoceupado com que os jogadores tentam mascarar a raiva que se lhes desenha no semblante, quando perdem!
No dia seguinte, Guilherme da Cunha estava escrevendo, quando o seu criado lhe annunciou que alguem o procurava, e lhe entregou n'um bilhete de visita o nome d'essa pessoa: era Luiz de Lima.
O medico foi introduzido no gabinete de Guilherme.
-- Meu caro Cunha, nem posso demorar-me, nem desejaria estorval-o nas suas horas de trabalho. Venho agradecer lhe a bondade que teve para commigo.
E poz sobre a meza uma pequenina carteira que tirou do bolso.
-- Quasi me offende com a pressa que quiz dar-se! Não o julgava tão madrugador!
N'esta occasião o criado perguntou:
-- Sirvo já o almoço?
-- De certo, o meu caro Lima almoça commigo? E' impossivel que já hoje almoçasse!
-- Confesso que não, e acceito da melhor vontade.
Almoçaram juntos. Conversaram a respeito do theatro, dos cantores e do jogo.
-- Tambem tem a paixão do jogo? perguntou Luiz a Guilherme.
-- Não tenho. Distrae-me, não me electrisa. Para ter a paixão do jogo é preciso ter confiança n'esse doido deus -- Acaso -- e eu nada espero d'elle, ainda mesmo que julguem ser elle a grande mola dos destinos humanos!
Conversaram por algum tempo, fumaram depois do almoço, sahiram juntos, porque Guilherme affiançou que não tinha que trabalhar; andaram no Passeio Publico desde as tres ás quatro horas, foram juntos ao Marrare tomar vermuth para preparar o estomago, e como Lima instasse muito com Guilherme para que jantasse em sua casa, o mancebo acceitou.
Depois, como se nada houvesse tido logar entre elles, Luiz accrescentou:
-- São os annos de minha mulher! vou dar-lhe uma tarde monotona, mas nem por isso o dispenso.
Quando chegaram a casa, e o barão e Sophia viram apparecer Luiz de Lima em companhia de Guilherme, é impossivel descrever a impressão que os dominou. Ambos tentaram adivinhar a que se devia esta repentina ligação, sem lembrar a nenhum d'elles de que genero podia ser a cadeia que os prendêra.
Guilherme da Cunha conversou com as principaes pessoas que alli se achavam, a duqueza de Villa-Marim, as condessas de Payalvo, de Pinhel; da Rocha, a viscondessa do Lago, as marquezas de Azinhaga das Palmas, de Valle da Arruda, do Cedro, do Bombarral, e ainda outras que o receberam com o melhor agrado, e com quem elle entreteve conversação, para ganhar o direito de poder tambem conversar com Sophia, sem que isso fosse reparado. Quando, porém, trocavam falas, não havia da parte de nenhum d'elles a mais leve allusão ao que occupava todavia o pensamento de ambos.
Desde esse dia. Guilherme da Cunha ficou muito ligado com Luiz de Lima, e algumas vezes passou a noite em sua casa quando alli havia reunião. O barão, que diligenciára afastar da existencia de Sophia a tristeza que a devorava, ia conseguindo o seu intento: ás segundas-feiras pasmavam a noite em casa e recebiam; e Guilherme ia quasi sempre n'essas noites. Esse foi para Sophia o melhor tempo que passou desde o seu casamento.
Uma occasião, depois de jantarem juntos em casa de Guilherme na companhia da mãe d'este, senhora idosa mas affavel e conhecedora dos finos usos da vida, Luiz de Lima e Guilherme foram para um gabinete tomar cognac e fumar.
-- Eis a minha vida agora! disse Guilherme. Vou ás segundas feiras a sua casa, e ás quintas á da condessa da Rocha: o resto do tempo passo-o em casa com minha mãe!
-- Tambem eu estou retirado do mundo! exclamou o medico.
-- Como vae a marqueza? perguntou-lhe Guilherme.
-- Isso acabou!
-- Como, acabou!
-- Palavra d'honra. Acabou ha tres mezes, mas mal sonha ella que eu posso de um instante para outro perturbar-lhe a tranquilidade que desfructa...
E contou-lhe a historia das tres cartas que conservava em seu poder, á espera de uma crise melindrosa.
-- Essa crise melindrosa, proseguiu elle, chegou, porque Ritinha tem o theatro fechado, e ámanhã ou depois dou-lhe estas tres cartas para que ella se entenda com a marqueza e lh'as venda pelo menos a 20 libras cada uma!
-- São tres cartas, faz sessenta libras para Ritinha... Ser-lhe-ha indifferente a ella que seja eu quem as compre?
-- Perfeitamente indifferente! Tem gosto em as possuir?
-- Para ser eu que lh'as entregue. Capricho meu.
Lima sorriu-se e entregou-lhe as tres cartas que acabava de lhe mostrar. Depois separaram-se. Guilherme mandou no dia seguinte a Ritinha as sessenta libras do ajuste.
E quando, em casa, se dispunha a escrever á marqueza, preveniu-o o criado de que um homem queria falar-lhe.
-- Que entre o homem!
Este homem entrou: era João Rodrigues.
-- Para servir a vossa excellencia! disse o cocheiro em tom reverente.
-- Que ha?
-- Venho incommodar a vossa excellencia para me servir do seu valimento! Primeiro será bom que lhe diga e exponha a minha situação. Ha cousa de tres mezes e meio, vae em quatro, tive ahi de noite umas rezingas e ia dando cabo de um homem. Vae o ferido para o hospital, os cabos de policia na minha pista, porém como o meu andar é leve foi um sopro em quanto desappareci. Fui-me metter em casa, e callei-me como um rato Eu era cocheiro do sr. Melitão Vidueira, que sempre me tratou como se lhe fôra parente, (ainda hoje bebi á saude d'elle! observou João Rodrigues em tom de quem diz que metteu uma lança em Africa!). Certo é que logo na manhã do dia seguinte parece que tiraram uma devassa; o proprio ferido declarou quem o puzera assim, e aqui vou eu estar á sombra por mais de um mez. O homem melhorou, o que eu estimei, e deram-me ordem de tornar a poder dar o meu gyro pela capital, que ainda estimei mais! Porém, envergonhado para com o sr. Melitão, porque elle não levou a bem que eu incorresse n'aquelle excesso, que fez andar nas bocas do mundo certa historia que melhor fôra que nem o démo a sonhára, acanhei-me de para lá voltar, e fui para casa do sr. marquez de Villar.
-- E agora?
-- Agora é que vae o caso. Ha lá no palacio como criada grave uma menina de boa educação que caiu em pobreza sem ter parentes que a ajudem, e que se vale das suas habilidades; borda, engomma, e todo o trabalho mais fino de mãos lhe é conhecido. Está agora lá hospede em casa um sobrinho do sr. marquez, que é as meninas dos olhos da senhora marqueza... Este melro não sei se olhou assim mais tal para a criadita grave, que é menina de sentimentos, e que até traz um namoro ha mais de dois annos com um rapaz com quem se diz que casa, certo é que a senhora marqueza subiu-lhe a mostarda ao nariz, inflammada em ciumes, e foi fazer queixa ao sr. marquez de que a pobre menina era uma doida! Despediram a rapariga, que chorava como uma Magdalena, impedindo-lhe talvez por similhante calumnia de que o noivo se resolva a dar o nó! Fez-me aquillo como o outro que diz ferver o sangue, e fui me ao senhor marquez defender a pequena, e declarar que nunca a tinha visto cair nas loucuras de que a accusavam, e que o menino é que andava atraz d'ella. A senhora marqueza, que todo o seu desejo era vêr a rapariga pelas costas, foi-me dizendo a mim que podia ir tambem passear, e que fizesse as minhas contas! De modo que por infamia da fidalga é que estou sem commodo, e vinha pedir a vossa excellencia duas regras para o sr. Melitão me acceitar outra vez em casa! Este genio que tenho ha-de me dar na cabeça! Quem é fogoso como eu deve reprimir o seu temperamento e livrar se de questões! lá diz o outro que quem tem callos não vae a apertos!
-- As duas regras terás, respondeu Guilherme; e mais do que isso se quizeres servir-me, porque te posso dar um grande prazer!
-- Um grande prazer! ponderou João Rodrigues. Vae-me dar um copo de vinho?
-- Vou dar-te occasião de te vingares da marqueza, de a veres humilhada, abatida diante de ti.
João Rodrigues piscava os olhos como quem faz por perceber uma cousa que não entende.
-- Comprehendes o prazer que nos dá a gloria de vermos prostrados a nossos pés os que uma vez nos quizeram abater? Deixa que digam os poetas -- «Pequenos os que se vingam, grandes os que perdoam» -- Os poetas e as mulheres são as unicas creaturas que gostam de perdoar, por serem incapazes de affeições eternas, e de odios duradouros! E tu não és poeta, creio; em abono teu se diga!
-- Poeta! resmungou João Rodrigues: se eu era agora poeta tinha sua graça!
-- Ficate bem esse desdem pela poesia, homem! Os poetas são almas nobres quando se trata de pensar, e espiritos covardes quando tentam apresentasse como homens de acção Ha tal que defende o prazer da vingança, e que tendo na sua mão vingar-se vae ceder a outro esse prazer!
-- Dir-se-hia...; ponderou João Rodrigues.
-- Que o tal sou eu! Pois talvez seja!
-- Com que, é poeta vossa senhoria?
-- Ouve bem isto: é preciso que a marqueza de Villar se curve perante ti, e que não lhe poupes nenhuma das humilhações a que a tua situação te vae dar direito. A marqueza ha de vir para que se lhe entreguem duas cartas suas, escriptas a um amante, porque foi prevenida de que seriam entregues a seu marido ámanhã ao meio dia, se ámanhã até ás onze horas ella não viesse propriamente reclamal-as.
-- Tate! exclamou o cocheiro. Bem apanhada!
-- Ha entre mim e a marqueza uma antiga divida em aberto, e é tempo de saldarmos as contas. Virá persuadida de que seja eu que a receba, e encontrar-te-ha como senhor, a ti a quem ha dois dias, segundo disseste, expulsou de sua casa como lacaio! Resta-me ainda uma carta, porque possuo tres, mas reservo-a para outra occasião em que me seja util.
João Rodrigues deu um murro no joelho:
-- Ha-de amargar o que fez! Que é das cartas?
-- A'manhã bastará que t'as dê. Ficas a meu serviço em quanto não voltares para o de teu antigo amo.
-- Mais tenho que agradecer! respondeu o cocheiro retirando-se.
Guilherme dirigiu á marqueza de Villar a seguinte carta.
-- «Não será verdade, minha senhora, que segundo as suas contas faltam duas cartas não do numero das que subtrahiu do cofre do sr. Luiz de Lima, porém do numero das que lhe havia escripto?
«Não será tambem verdade que n'uma d'essas duas cartas se trata do casamento do sr. Luiz de Lima, e aconselhando lhe o modo por que deve andar para alcançar a mão da sr.ª D. Sophia de Sousa, e se ajusta um rendez-pous para o dia seguinte em casa da modista: e na outra se descreve uma vergonhosa scena que parece haver tido logar entre o sr. marquez e vossa excellencia, resolvendoo por uma vil comedia a pedir ao sr. barão de Sousa a mão de sua filha para o sr. Luiz de Lima?
«Pois estas duas cartas, senhora marqueza, hão-de ser entregues ámanhã ao meio dia ao sr. marquez de Villar, se até ás onze horas vossa excellencia não vier propriamente reclamal-as a esta casa, onde a fica esperando quem com a maior satisfação se assigna: De v. ex.ª, admirador e servo -- G. da Cunha.
No dia seguinte, ás sete horas da manhã João Rodrigues tinha já as cartas em seu poder, e recostado mollemente n'um sophá, esperava n'um pequeno gabinete que chegasse a senhora de Villar.
Ás sete horas e meia um criado veio prevenir que uma senhora pedia para falar ao sr. Guilherme da Cunha.
Que entre! disse João Rodrigues fazendo um cigarro.
A marqueza saira a pé, e fizera-se depois conduzir n'uma sege de praça, reenviando o criado. Vinha pallida e convulsa, não tanto de receio como de cólera. A idéa de que seu marido lendo essas cartas désse logar, por um divorcio, a um escandalo publico que para sempre a faria abandonar a sociedade de Lisboa, fazia-a soffrer. Ao mesmo tempo, encontrava a sua dignidade e a sua honra ao dispôr de um inimigo, e tornava-se-lhe insuportavel pensar que chegára a occasião de Guilherme se vingar da comedia com que a marqueza e Luiz de Lima lhe haviam roubado a felicidade!
Mas ao entrar no gabinete, e quando viu o cocheiro accendendo um cigarro, e, sem se levantar do sophá, cobril-a com um olhar de mofa e menos-preço, percebeu então mais do que nunca quanto era delicada e melindrosa a situação que a opprimia.
-- O sr. Guilherme da Cunha? disse ella em voz tremula pela desesperação.
-- O sr. Guilherme da Cunha incumbiu-me de fazer as suas vezes perante a senhora marqueza, e se quer dar-se ao incommodo de se sentar vamos regular este negocio.
-- Como? Disse que...
-- Disse que vamos regular este negocio; se quer. Isto é se quer. Aqui não se obriga ninguem. As cartinhas estão n'esta algibeirinha; olhe para ellas! Duas! São duas prendas que o meu amor lhe offerece, como costuma dizer o Procopio.
-- É notavel que o sr Guilherme da Cunha escolhesse para o substituir uma pessoa...
-- Uma pessoa como todas as pessoas! replicou o cocheiro. Tenho olhos, nariz e bocca, tal qual como o sr. Luiz de Lima... o cruel ingrato, como a senhora lhe chama n'esta carta, que eu para me rir um bocado tive a pachorra de passar pela vista...
-- Emfim! disse Thomasia tentando reprimir o desespero que a devorava: o que se exige de mim por me darem essas cartas?
-- Bagatellas, perfeitas bagatellas: faz favor a senhora de se sentar; olhe, tem aqui logar ao pé de mim, n'este sophá que é bem agradavel ao corpo!
A marqueza permaneceu de pé mordendo os beiços de cólera:
-- Similhante situação em frente de um homem que não conheço!
-- Não conhece? exclamou o cocheiro! Ainda antes de hontem me poz na rua despedindo me de cocheiro, e diz que me não conhece! Pois eu conheço-a como aos dedos das minhas mãos!
A marqueza estava livida de morte.
-- Vamos nós ao caso: sente-se, e depois falaremos.
-- É inutil sentar-me; visto que a entrega d'essas cartas tomou as proporções de um negocio, o que eu já previa, offereço lhe duzentos mil réis pela restituição...
-- Mais do que isso custaram ellas a meu amo para as ter em seu poder!
-- Ah! o sr. Guilherme da Cunha comprou essas duas cartas?
-- Por uma continha callada! parece que tem seus motivos para ter gosto em as possui... Mas não é para ganhar com ellas, porque me prohibiu de aceitar dinheiro da senhora marqueza...
-- E então...?
-- E então -- (palavras d'elle a este seu criado) -- «Exige todas as condições que te aprouvêr, com tanto que não recebas dinheiro!» Já a senhora vê que ha varias outras condições para onde appellar, se me aprouvêr!
-- Emfim! exclamou a marqueza tremendo toda de raiva: expliquemo-nos depressa porque desejo estar livre dentro de dez minutos, e quero entrar em casa pouco depois das oito horas.
-- Bem me importa a mim o que a senhora quer! Aqui, n'este momento, não ha marqueza de villar nem cocheiro João Rodrigues. Ha uma mulher que atraiçoa seu marido, uma mulher que tem por amante um homem casado; e um inimigo que possue duas cartas que essa mulher escreveu a esse amante! Não ha aqui fidalga nem lacaio: numa situação d'estas o fidalgo sou eu!
A marqueza deixou pender a cabeça sobre o peito, abatida e humilhada.
-- Tenho-a ao meu dispôr, porque está na minha mão a sua honra; posso perdel-a para sempre, enviando uma d'estas cartas a seu marido, para que o divorcio a castigue: uma só d'estas cartas, percebe a senhora? Precaução rasoavel para que, no caso de seu marido querer portar-se como é do tom entre alguns maridos da aristocracia de Lisboa, e fechar os olhos a esta vileza, resta-me ainda outra para um escandalo publico, fazendo-a inserir no Braz Tisana e no Asmodeu!
A marqueza sentindo se sem forças, cahiu sentada numa cadeira.
-- Mas nada d'isto farei, porque ligo menos importancia á sua honra, do que a esta ponta de cigarro que me está já queimando os dedos! Vá-se em paz a senhora marqueza com estas cartas que desde hontem lhe têem causado amargos de bocca, e quando doutra vez despedir algum criado, trate-o melhor do que me tratou a mim quando antes de hontem me poz na rua.
E João Rodrigues, sempre rindo, tirou da algibeira as duas fataes cartas que entregou na mão da marqueza. Thomasia de Villar respirou emfim.
-- Adeus! disse ella ao cocheiro. Se um dia precisares de mim, pede o que quizeres.
-- Agradecido! disse João Rodrigues.
Erguendo-se do sophá, abriu a porta á marqueza de Villar, que mal podia sustentar-se de pé, tão abatida ficára da terrivel scena por que havia passado, e acompanhou a até á sege dando-se ares de amabilidade e delicadeza.
-- Recommendaçõcs da minha parte ao sr. marquez! disse elle na occasião de se despedir.
Depois entrou no quarto de Guilherme, que durante todo o tempo em que o cocheiro estivera atormentando Thomasia, não tirára da lembrança a hedionda comedia que a marqueza havia forjado para o casamento de Luiz de Lima, porque receiava condoer-se da humilhante situação a que a entrega das cartas a forçava, e era preciso para a sua vingança não ter compaixão nem piedade.
-- Então? perguntou Guilherme.
-- Lá vae com as cartas! respondeu o cocheiro.
-- Humilhaste-a bem?
-- Não consegui fazel-a córar!
-- Podéra! as mulheres como ella fazem-se pallidas de cólera, mas não coradas de pudôr.
Nos fins do inverno de 1847, o barão de Sousa emprehendeu uma viagem a Paris, na esperança de levar em sua companhia Sophia de Lima cuja mortal melancholia principiava a inquietal-o. Sem que houvesse nunca alcançado de sua filha a certeza de que o acompanharia, e com quanto mesmo ella se tivesse escusado por mais de uma vez, o barão esperava até ao fim resolvel-a a partir. Rogos, instancias, conselhos, tudo foi baldado: Sophia resistiu á idéa de deixar Lisboa, dando como motivo da sua recusa o receiar ainda mais para a sua saude debilitada as incertezas de uma viagem, do que a monotonia da existencia que passava em Lisboa. O barão percebeu que a idéa de deixar de vêr Guilherme era superior á coragem de sua filha, e aceitando como boas razões os falsos pretextos de que Sophia se valeu para não ir, despediu- se d'ella por alguns mezes, e partiu só.
Luiz de Lima e Ritinha davam-se melhor que nunca; captivo e apaixonado, elle; ella alegre e feliz.
As mil prodigalidades inevitaveis na vida que se leva com uma dançarina para a querer conservar contente, iam causado de dia para dia o difficil futuro que os esperava. Os passeios a Cintra, os petits-diners a que eram convidados alguns cantores e algumas dançarinas, o coupé effectivo, a modista, o luveiro, os bouquets sempre das mais frescas camelias, o Champagne no camarim, os mil presentes que a rapariga tmha de fazer hoje ao choreographo, ámanhã á amante do choreographo, no dia seguinte ao primeiro bailarino, visto pertencer a este cargo o compôr os pas-de-deux; em fim as continuas e phantasiosas despezas que fazem com que a gente séria de Lisboa tenha medo de se aproximar, de vêr, de ouvir falar sequer d'esta casta de mulheres, faziam com que o medico dispendesse todos os mezes mais de duzentos mil réis.
Ritinha levava uma vida regalada, dispendiosa de mais para que deixasse de ter os inevitaveis ataques de spleen que perseguem os que possuem todas as commodidades da vida. Para ella, o amor deixou de ser um fructo prohibido, e tomou as proporções de um affecto de convenção: viviam quasi maritalmente, e tinham parte dos encargos da vida de casados, sem alcançarem nenhuma das vantagens d'esse estado. Luiz de Lima tornou-se o dono da casa; fatal idéa! a rapariga deixou de vêr n'elle o seu amante das horas furtadas aos direitos do proprietario legitimo, e principiou a olhal-o despido já do prestigio que a sua imaginação lhe dava no tempo em que só a occultas podia tel-o perto de si. Depois de o haver sonhado como um espirito grandioso e superior á esphera em que vivem os outros homens, teve de o vêr occupar-se de mil pequenos nadas da vida a que um dono da casa tem de attender. A idéa de que era elle que a sustentava, e que de certo modo comprava, com as monstruosas despezas que fazia, o direito de ser amado fez com que a rapariga tivesse saudades do tempo, em que elle não lhe dava em troco do amor d'ella mais do que algumas horas da doce felicidade dos amantes. Conheceu então que o amor tem medo do dinheiro, porque foge mal o avista!
Quando começou a nova época theatral cantou-se a Beatrice di Tenda, em que debutou um tenor que foi pateado. Era um mau tenor, dotado de uma bonita physionomia e de insignificante voz. Na apaixonada scena em que o amante se apresenta extenuado e livido, e vem contar as torturas que soffreu, o publico fazia-o sempre soffrer ainda mais pateando-o redondamente. O tenor, que era corista na sua terra, fingiu escandalisar-se com os dilletanti de Lisboa, e prevendo que a empreza ia quebrar-lhe a escriptura e reenvial-o, teve o bom juiso de ser o primeiro a despedir-se. Ora, por este mau tenor que não tinha voz, que desafinava, e que todas as recitas era pateado apaixonou-se Ritinha!
Quando as mulheres do theatro se apaixonam, esquecem todas as condições da dignidade do seu sexo, e perseguem com o seu amor o homem que lhes agrada. Ritinha foi a primeira a requestar o tenor, que se lembrara de todas as coisas extraordinarias, menos a de ser amado em Lisboa!
-- Vou deixar esta terra! disse-lhe elle.
-- Partirei comtigo, se quizeres levar-me! respondeu a rapariga.
Caracter inquieto e voluvel, Ritinha esqueceu o que sentira por Luiz de Lima, e explicou a si procria o amor que a devorava pela idéa de todos os inconstantes: «Quem sabe se é agora que amo pela primeira vez?»
Luiz de Lima ignorou sempre esta aventura, e continuou a satisfazer as obrigações a que se ligára.
O acaso porém, que nem sempre é favoravel, principiou a ser-lhe adverso. A roda da fortuna de dia para dia desandou. Ao cabo de um mez, em que perdêra mais de cem libras, encontrou-se n'uma manhã de outono, uma triste manhã de nevoeiro sem recursos, e sem esperanças.
-- Que farei? perguntou a si proprio, abatido e cançado moralmente.
Saiu a distrair-se, passeou ao acaso, e voltou a casa a jantar, mais triste do que nunca. No dia seguinte devia enviar dinheiro a Ritinha, e pagar uma conta avultada á modista.
Sophia tinha saido. O medico foi ao quarto de sua mulher, procurou numa gaveta o cofre das joias, escolheu as de maior valia, guardou-as em seu poder, e jantou com Sophia, sem lhe revelar o que fizera.
A' noite, já alegre e satisfeito, foi visitar Ritinha depois de haver vendido as joias por seiscentos mil réis.
Guilherme da Cunha continuava a frequentar as reuniões de Sophia, e Luiz de Lima sentiu que o seu amor proprio se inquietava pela presença do antigo namorado de esposa.
-- Desejo muito que o sr. Guilherme da Cunha me honre menos vezes com as suas visitas, disse elle a Sophia.
-- O sr. Guilherme da Cunha é uma das pessoas que mais illustram as nossas reuniões, é o mais digno de fazer parte d'ellas! respondeu Sophia.
Esta resposta desagradou ao medico, que desde esse dia começou a não poupar occasião de se mostrar inimigo do mancebo, apesar de por nenhuma maneira lh'o dar a conhecer quando o via presente.
Havia novamente contrahido relações com Guilherme, porque conhecia a generosidade e a delicadeza do seu caracter, e viu que ninguem melhor do que elle lhe podia ser util, agora que estava rico pela herança e pelo que ganhára ao jogo. Quando José d'Athayde lhe disse de uma vez: -- «E' tempo de ponderares quanto as tuas relações com Guilherme são prejudiciaes ao teu credito, em consequencia de tua mulher!» já o mancebo havia obsequiado o medico em mais de quinhentos mil réis. Sujeitou se Luiz de Lima á mais vil das situações de um homem casado, saber que outro faz a côrte á sua mulher e consentil-o unicamente porque este homem lhe é util, até ao momento em que julgou impossivel continuar a pedir dinheiro a Guilherme. Foi então que fingiu ter ciumes, e zelar a honra do seu nome e a dignidade de sua esposa!
Quanto ás joias, Sophia nunca mais abrira o cofre desde a noite da soirée da condessa da Rocha, e ignorava perfeitamente o roubo dos diamantes.
Alguns dias depois d'estes acontecimentos, o tenor partiu para a Italia em companhia da dançarina, que ainda na vespera passára parte da noite com Luiz de Lima, sem que uma palavra, um gesto, uma lagrima podesse deixar adivinhar que haviam de apartar-se no dia seguinte! O medico recebeu a noticia ás cinco horas da tarde, e o paquete havia saido ás dez horas da manhã. A dançarina não deixára para o seu antigo amante nem uma carta, nem um adeus!
-- Castigado estou! disse elle, pallido de colera. Mas vingar-me-hei d'ella! Irei a Italia encontral-a, e queimar-lhe-hei o rosto com vitriolo! Quero vêl-a feia e perdida!
N'essa noite jogou até ás duas horas, e escreveu depois a sua mulher a seguinte carta que ella leu de manhã.
-- «E' preciso ser-se tão desgraçado como eu, para dar valor ás angustias que acompanham a situação que me opprime. Valha-me, salve-me, Sophia!
«Uma divida de jogo, uma divida de honra, é a causa de todo o meu infortunio. São cem libras, Sophia -- cem libras que o conde de Foyos ha-de receber ámanhã á uma hora da tarde, isto é, hoje -- porque lhe estou escrevendo depois da meia noite. E estas cem libras representam mais do que a minha honra, representam até a minha vida; se não puder entregal-as farei saltar os miolos com uma bala: juro-lhe pela sua salvação que assim o farei. O sr. Guilherme da Cunha já a esta hora deve saber que perdi sob palavra de pagar á uma hora da tarde de hoje; já vê de que melindre é para mim tal divida, e que empenho terei em não desdourar o meu nome aos olhos do peior dos meus inimigos!
«O que tenho feito para assim me encontrar agora perdido -- irremediavelmente perdido -- não sei! O que, porém, afirmo é que nasceram da imprudencia -- da temeridade d'este nosso casamento -- as prodigalidades, as dissipações, as loucuras com que tenho tentado suffocar o remorso de a haver para sempre encadeado ao meu destino sem que nenhum de nós sentisse pelo outro mais do que a fria indifferença de estranhos que só de nome se conhecem.
«Comprehendo o ciume sem o amor, e apesar de não me atrever agora a adoral-a, tenho ciumes de si. Porquê?
«Não julgue que seja o inevitavel amor-proprio dos maridos que faz com que tambem eu agora seja zeloso de quem não é minha senão pelo dever.
«Tenho horror á minha fraqueza e á minha decadencia. Evite, porque o póde conseguir, que eu chegue ao estado cruel de que já vou proximo em que sinta despreso por mim proprio!
«Estou abatido e prostrado. Foi longo o meu somno de indolencia, e acordo desesperado amaldiçoando a vida!
«Incapaz me sinto até de me reconquistar por um supremo exforço de desespero!
«Mas se é por em quanto a minha consciencia o meu unico juiz, salve-me de que o mundo venha a accusar me como eu proprio me accuso, e livre- me da vergonha publica!
«E' delicada de mais a sua alma para cair no aviltamento de uma vingança que só póde perder-me, mas não salval-a; esqueça e calle tudo; as mulheres nobres e dignas fazem por vezes consistir a sua gloria no perdão!
«Hão-de faltar lhe as suas joias, mas no momento de o saber lembre se que a extremidade do desespero tem delirios fataes!
«Se para as mulheres, assim como para os homens, fosse um inevitavel resultado do tempo e da vida arrancar do coração as mais doces esperanças e as mais divinas ficções, se as senhoras estivessem, como nós, sujeitas a este natural desencanto, -- quando um dia a sua experiencia tivesse enchido o abysmo que nos separa hoje, -- é provavel que então não me condemnasse nem despresasse, como agora fará de certo!
«Vou deixar Lisboa, e para sempre. O dever que imponho a mim proprio está muito acima da coragem banal que o mundo prescreve aos que erraram como eu! Por Deus lhe juro que não recearia o descredito, nem me causariam medo os motejos do publico, se não fosse a idéa de que o ecco das injurias ainda iria affligil-a e atormental-a!
«Esqueça tudo, e dê-me o seu perdão. Não quero partir sem o alcançar! Quando é tarde para aconselhar, é tarde para emendar: que resta senão perdoar?»
Sophia leu toda esta carta sem a mais leve sensação, e depois abriu o cofre, e examinou as poucas joias que seu marido lhe deixára; soltou um triste sorriso, e disse a si propria:
-- Cem libras, e partir! Oh! tudo que tenho lhe daria para que de uma vez se ausente!
Luiz de Lima e Sophia não tornaram a vêr-se. As cem libras foram entregues ao medico por um criado. N'essa mesma noite deu parte aos seus amigos que ia viajar, e apresentou-se triste e enfastiado da vida de casado, o que deu motivo a que se espalhasse por Lisboa que elle partia para se esquivar ao escandalo de um divorcio, a que a extrema intimidade de Sophia e Guilherme viria a obrigal-o!
No dia em que o medico partiu, Guilherme da Cunha foi visitar Sophia. Era ao cair da tarde, sentaram-se junto um do outro perto de uma janella que dava para o lado do mar, e demoraram a vista vagamente n'uns montes que se avistavam frouxamente illuminados pelos ultimos raios do sol que se mergulhava nas ondas.
Depois retiraram a vista ao mesmo tempo e encontraram-se n'um olhar de infinita melancolia.
-- Eis-me só! disse Sophia ao fim de uma pausa, querendo evitar que alguma perigosa conversação seguisse o silencio eloquente a que por momentos se entregaram olhando-se. Bem vê, Guilherme, que o mundo póde julgar mal da assiduidade das suas visitas, n'esta occasião em que se encontram ausentes meu pae e meu marido! Venha ver-me, nem eu teria alma de lhe pedir o contrario, mas venha menos vezes do que até aqui. Se me ama ainda, deve presar mais do que eu propria a minha dignidade, e esmerar-se em não me tornar mais infeliz.
Depois de a cobrir com um suave olhar d'amor, Guilherme formou a Sophia um collar com os seus dois braços.
Mas ella ergueu-se de repente, e a tremer lhe disse:
-- Não queira que eu me arrependa de consentir em o receber estando só, Guilherme!
-- Ainda menos desejo arrepender-me um dia por não me haver vingado d'elle!
Sophia callou-se, e Guilherme não proseguiu; depois estiveram á janella conversando vagamente, até que o mancebo se despediu e saiu.
-- Vingar-se! pensou Sophia comsigo. Então será por vingança, e não por amor que me deseja?
XXIII
Ter medo da felicidade!
A sociedade lisbonense que concede todas as indulgencias possiveis e impossiveis aos erros de uns, e que ostenta melindroso escrupulo para os de outros, que não tem pudor para afastar a vista dos leprosos moraes que por ahi andam, mas que se escandalisa dos leves erros de amor a que o amor e a pouca edade obrigam -- esta virtuosa sociedade de Lisboa, verdadeiro modelo de costumes, condoeu-se em extremo da situação de Luiz de Lima, que partia por ter brio, e não poder vêr a olhos enxutos o comportamento de sua esposa para com Guilherme da Cunha. Isto foi o que disse em tom cathedratico e grave, a sisuda e moralissima sociedade de Lisboa: e como no mundo as creaturas não são julgadas pelo que são, mas pelo que parecem, as visitas de Guilherme a Sophia acabaram de a comprometter aos olhos do publico.
Em casa da Villar, da Foyos, da Valle, da Arruda e da Castello-Branco, discutiu-se muito o comportamento de Sophia.
-- Se fosse minha visita, disse a marqueza de Villar, deixaria de a receber! Emquanto a vocês, minhas queridas, se presam a minha amisade, deixem até de lhe falar! Não quero que me succeda a semsaboria de ter de quebrar relações comsigo, unicamente para estar livre de me encontrar em casa de vocês com essa perdida creatura!
Passára se um mez depois da partida de Luiz de Lima. Estava em scena em S. Carlos a Sapho, e Sophia que ainda não ouvira a celebre opera de Paccini, foi uma noite ao theatro.
Quasi no fim do primeiro acto entrou Guilherme na platéa, Guilherme que nem sabia que Sophia estava no theatro; e as preciosas mexeriqueiras disseram ao ouvido: -- «Fazem gala em dar nas vistas!»
Quando Quilherme foi visitar Sophia, num entreacto, disse-lhe:
-- Foi n'esta mesma frisa que eu te vi da primeira vez, lembras-te? mas n'esse tempo tudo parecia prometterme que serias minha, e que eu seria feliz! Ha tres annos que isso foi, Sophia, e estes tres annos teem-me levado todas as illusões e esperanças; hoje és d'outro, e eu sou tão miseravel que ainda te amo! Que fiz da minha força e da minha dignidade, eu a quem tu humilhaste e perdeste!
-- Guilherme... Guilherme, disse-lhe Sophia, repara que nos observam, e que todas as vistas estão fixas no meu camarote. É perigoso o teu genio, Guilherme, e eu tenho medo das explosões da tua colera, que aliás é justa!
Guilherme despediu-se d'ella, e saiu. Estava aberta a porta da frisa da Castello-Branco, e o mancebo ao atravessar o corredor ouviu a voz da condessa chamar pelo seu nome, e entrou na frisa.
-- Não ha quem o veja! sr. Guilherme da Cunha! disse-lhe a Theresinha Castello-Branco no mais amavel tom de familiaridade. Ora, pois, resigne-se a fazer me companhia durante este acto; julguei que a Constança Pinhel viesse passar a noite commigo, mas como faltou, eis-me solitaria como vê. Sabe que está muito interessante a sr.ª Lima?! Quando olhei para ella não a conheci ao principio, e perguntei a mim mesmo: -- Quem será aquella pallida senhora, de cabellos tão negros e dentes tão brancos? -- Apparece tão raras vezes! O marido foi viajar, não foi?
E a condessa continuou n'um diluvio de perguntas, a que nem dava tempo de se responder, porque falava sem descançar.
No fim do espectaculo, Guilherme que se havia conservado na frisa da Castello Branco, quiz acompanhal-a até á carruagem. O corredor do picadeiro estava apinhado de senhoras que esperavam pelos trens, entre outras a marqueza de Villar, a duqueza do Sotto e a viscondessa do Lago.
Quando Guilherme chegou acompanhando a condessa, mal havia campo para poderem estar. Therezinha Castello-Branco foi beijar as suas amigas; á proporção que chegavam os trens, iam partindo as familias, e o corredor ficou mais livre. Formou-se um circulo de senhoras em redór da condessa, e Guilherme viu-se na coalisão de cortejar a marqueza de Villar, que se tornou livida ao encontrar o ironico olhar do mancebo, e ao lembrar-se da fatal scena do cocheiro.
N'este momento appareceu Sophia de Lima, que atravessou o corredor até perto do atrio sem avistar o seu criado, e teve de esperar que lhe chegasse o trem, só, desacompanhada de todas as senhoras que alli se achavam, que voltaram o rosto logo que a viram, para se esquivarem a falar-lhe.
Guilherme da Cunha viu tudo isto, e tornou-se pallido de indignação. Atravessou por entre o grupo que formavam as Villar, Sotto, Castello-Branco, Eiras e Algubér, e dirigindo-se a Sophia que ficára attonita por vêr o modo por que as suas amigas a tratavam, disse-lhe:
-- Quer vossa excellencia acceitar o meu braço?
Sophia agradeceu-lhe por um doce olhar de gratidão, e, dando lhe o braço, passaram ao lado do grupo das preciosas que escrupulisavam por ridicula e baixa hypocrisia falar a Sophia de Lima, unica que alli havia que fosse honesta, e que os cobriram com um desdenhoso olhar de menos-preço
-- Senhora marqueza! disse Guilherme quando passou ao lado da Villar: O cocheiro João Rodrigues tem mais uma carta em seu poder, e o sr. marquez ámanhã ha de dar novas d'ella a vossa excellencia!
A marqueza estremeceu de terror, e na confusão em que ficou ao ouvir a ameaça de Guilherme, curvou insensivelmente a cabeça, e cortejou Sophia, que lhe não correspondeu.
Depois, ao chegarem á carruagem, Sophia de Lima disse a Guilherme:
-- Venha tomar chá commigo!
-- E o mundo? replicou Guilherme pensando no que diria quem os visse entrar para a mesma carruagem.
-- Que me importa! disse ella, dando-lhe um logar a seu lado.
Mas quando chegaram a casa, apoderou-se da pobre senhora uma tristeza infinita.
-- Que fiz eu ao mundo, para que o mundo me condemne sem eu errar!
-- Esquece! exclamou Guilherme: essas mulheres que tiveram pudor de te falarem, quizeram os- tentar a falsa dignidade das mulheres perdidas, que fingem ter horror ao vicio quando o veem nos outros! Se ellas fossem honestas não fugiriam de ti, antes se condoiriam da tua situação, quando mesmo tu não fosses digna e pura como és!
E Guilherme apertou as mãos de Sophia e beijou-as com enthusiasmo.
-- E' das mulheres honestas que o mundo se occupa quando o mais leve indicio de leviandade lhe acorda suspeitas de um erro d'ellas: essas que ha pouco te voltaram o rosto estão já discutidas de sobejo, e ninguem trata de questionar os seus creditos, porque todos as conhecem como creaturas indignas e miseraveis! O que n'isto encontro de curioso é que sejam ellas, Messalinas modernas, que não saem de noite do palacio de Claudio, mas que entram de dia nos boudoirs das modistas, as que maior indignação affectam para com os erros dos outros!
Depois, o mancebo fitou em Sophia um doce olhar d'amor, e enlaçando-a com um dos braços, perguntou-lhe em voz debil:
--Não has de nunca mais ser minha?
-- Não! nunca! respondeu ella: o mundo tem ainda alguma contemplação para com os que conservam animo na desgraça, e que veem a luz que os encanta, mas não se approximam por medo de se queimarem!
-- Enganas-te, louca! o mundo condemna-te ou absolve-te ao acaso. O mundo ainda esta noite afastou de ti os olhos, e todavia ainda não erraste! Não te lembres do mundo, mas do nosso amor que elles insultaram, da nossa felicidade que elles destruiram!
-- Não deves exigir mais de mim do que o que te concedo. O nosso destino perderia toda a poesia que o suavisa, se eu commettesse uma traição vulgar.
-- E se por um momento eu tivesse a idéa de que amas teu marido?
-- Essa idéa era impossivel assustar-te: tu sabes que te amo, e eu sei que te adoro: mas ceder, envilecer-me a meus olhos, depois de me haver purificado do erro de uma noite por muitas noites e muitos dias de isolamento e de martyrio... Isso não!
«A's vezes, continuou eila, tambem eu me afflijo por um pensamento, e esse pensamento era talvez o unico a que eu não tenho direito, mas tambem é o unico capaz de desvairar a minha alma...
-- Qual? perguntou Guilherme.
-- Que has de gostar de outra mulher, beijar outra mulher, pensar n'outra mulher!
-- Só penso em ti, Sophia, e só por ti tem palpitado este coração, que foi teu na ventura, e que ainda ficou sendo teu no abandono!
-- Sim, estou certa que sou amada, disse Sophia, mas tambem estou certa que apertas as mãos de alguma mulher como n'aquella noite me apertastes as minhas, que collas os beiços aos d'outra mulher como n'essa noite os collaste aos meus, que gozas com outra mulher o que n'essa noite gozaste commigo!
-- O meu amor é superior ao que imaginas, mas é a tua crueldade para commigo que te suscita talvez essa lembrança! E' a tua consciencia que te diz que devias ser tu que me desses os momentos de felicidade e de amor que a tristeza da minha existencia poderia ir pedir a outra mulher!
-- A minha consciencia diz-me que faço bem em não ceder, Guilherme. Um unico erro póde provar o amor, e já um erro meu te provou que te adorava, mas muitos erros só poderiam nivelar-me ás peores creaturas do meu sexo!
«Ha um mundo de rasões que as mulheres nobres e delicadas reservam para defender a sua alma e que os homens não podem entender, Guilherme!
« A's vezes para ceder aos desejos de um homem, para lhe agradar, para o tornar feliz, para dissipar as suas amarguras, entreter e animar a sua existencia, deixamo-nos levar de tentações... Mas são elles os proprios que, d'ahia a tempo, accusam os nossos esforços e tentativas como inspirados pelo espirito da depravação!
-- Tu eras minha e tinhas de ser minha. De repente uma circumstancia imprevista, um acaso fatal desfez o que o nosso amor formára e o que o destino havia até então protegido... E ha-de esse homem a quem nunca te havia ligado um pensamento, um olhar, nenhum desses laços que prendem os sexos pelo amor, ha-de esse homem roubar-me impunemente as minhas esperanças e a minha felicidade! Ha-de possuir-te e dispôr de ti, que não o amas, e eu que sou amado terei de curvar a cabeça submisso á idéa de que elle póde dizer-me desassombrado: -- Esta mulher é minha, e não tua, porque a benção d'um padre decidiu para sempre do seu futuro!
«Não! Isso é impossivel e isso não ha-de ser. Não quero, não posso, não consentirei nunca!
«Consentir! De que vale a minha vontade, se o mais vivo dos meus desejos nem a ti commove! Como queres que dê credito a esse amor que me protestas, se os teus labios gelaram com os meus primeiros beijos, e o teu espirito serenou da ancia e ardor que te conheci ao principio!
«Não! eu não creio no amor que calcula, no amor que medita, no amor que vê o perigo e foge d'elle. Ou então creio n'esse amor como o unico affecto de que são susceptiveis as almas acanhadas e frias, incapazes de se perderem pelo infinito das paixões...
«Vae-te, vae-te! Tu já não és a mesma. O halito d'esse homem manchou-te e perdeu-te!
«E' d'elle o teu corpo, pois seja tambem d'elle a tua alma: não a quero, fria e estéril como a tens agora!
«Receio! receio de ser feliz nos meus braços, já que não és feliz nos braços de outro! E queres que eu supponha que uma mulher quando sente o amor verdadeiro e vehemente possa sujeitar o ardor dos seus desejos aos conselhos da sua razão?
«E não encontrando a felicidade senão no seio palpitante do seu amante, não ha-de essa mulher esquecer o mundo para se lembrar apenas do amor que a devora, e não irá anhelante de prazer reclinar sobre o coração do homem a quem ama, a fronte escandecida pela febre dos affectos e dos desejos?
«Ter medo da felicidade! Mentes. Tu já não me amas!
Sophia apertou entre as suas mãos as de Guilherme que as repelliu phrenetico e nervoso, e deixou depois pender a fronte sobre o hombro d'elle orvalhando-o de lagrimas; mas Guilherme, como desvairado, aftastou-a de si, e exclamou cobrindo-a com um glacial sorriso de desprezo:
-- Desejavas por ventura, como a maior parte das mulheres de Lisboa, ser antes de um homem de quem todos gostam, do que d'aquelle de quem tu gostavas? Fazia-te peso na consciencia a idéa de levares á felicidade um homem que só a fazia consistir em ser amado por ti, e não dividia as suas ambições pela politica, pela gloria, por alguns ephemeros triumphos sociaes, porém as concentrava todas em te merecer e alcançar? Como podeste renegar da tua fina intelligencia a ponto de te illudires com a pretendida superioridade de um desses homens, que Lisboa aceita e admira sem os julgar, capacidades devidas ao acaso, ao charlatanismo, e á ignorancia dos que os toleram por não guerrearem senão os talentos verdadeiros que fazem sombra aos invejosos e humilham os ineptos? O que fez elle que seja grande e notavel? Acrescentou uma descoberta á sciencia, deu uma pagina boa ás nossas lettras, alcançou um triumpho para as nossas artes, engrandeceu por uma revolução os destinos da nossa terra, consagrou a sua vida a uma
causa, os seus creditos a uma idéa, o seu futuro a uma vocação? Mendigou durante uma viagem longa para ir ver a sua amante, trabalhou de noite e dia para sustentar sua mãe, teve um duello de morte para defender a honra do seu nome, encontrou se uma vez na miseria e conquistou pelo seu talento a consideração e a gloria? Gastou uma fortuna de dois milhões em prodigalidades, foi elegante como Brummell, commetteu algum grande crime, foi um jogador celebre, um atrevido cheio de coragem, um homem interessante e bello, de olhos expressivos e barba negra?
«Em que é elle grande então, e em que são grandes esses a quem Lisboa considera e acata? O amor, vês tu, rebenta ás vezes ardente e indomavel, sacrificando tudo quanto o coração adorava até esse instante: e eu perdoava-te se houvesses amado outro homem deixando-te abrasar pelo fogo vehemente de uma sympathia repentina: o que não te perdoarei nunca é haveres calculadamente observado um homem que se te apresentava como homem notavel, e teres, mesmo sem o amar, aspirado apenas á gloria de lhe pertencer!
«Não! nem as lagrimas do arrependimento te valem, nem as da agonia resgatam o teu passado! Soffre! soffre como eu soffri e como soffro, e chora angustiada os tristes effeitos do teu capricho de mulher! A piedade não é para ti que me sacrificaste ao calculos da tua dignidade de senhora, e que preferiste ser de outro a um dissabor de familia, a um escandalo da sociedade, e foste quente ainda dos beijos que o meu amor te déra, das caricias que o delirio do meu enthusiasmo te prodigalisára, entregar-te a um homem que não amavas, movida talvez por um ridiculo receio da publicidade do teu amor por mim!
«Que te deu elle de affectos que pagassem o ardor da paixão que me devora, e te fizessem esquecer aquella noite de amor que não voltará para nenhum de nós? O que te deu elle de estima, de consideração social ao menos, para que preferisses ser esposa de um vilão, a seres em ultimo caso amante de um homem que se enternecia de amor por ti?
«Não! nem piedade, nem misericordia para ti, que não tiveste por mim nem misericordia nem piedade! Deixa que as lagrimas do arrependimento lavem da tua fronte os beijos com que esse homem te manchou! E se um dia, purificada pela dôr, eu te vir amaldiçoar o momento em que a tua razão vendeu a tua alma, então, ai! talvez que então eu te diga: -- Vem, que te perdôo!
Depois, como Sophia estivesse chorando perdidamente, o mancebo sentiu-se impressionado e commovido, e mudando de expressão e de tom acrescentou estendendo-lhe a mão:
-- Adeus! Amanhã virei vêl-a!
E saiu sem ter animo sequer de olhar para traz porque a sua vontade n'esse instante era deitar-se-lhe aos pés e pedir-lhe perdão de ter dito coisas que haviam agravado o estado de soffrimento em que a triste scenano corredor do picadeiro do thea-tro a tinha posto.
-- Ficar! disse Sophia a si propria no momento de se encontrar só: ficar para me expôr de novo a tão tristes scenas como a d'esta noite, em que as minhas amigas se envergonharam de me falar em publico! Ter a vergonha sem a culpa, e não me acreditar ninguem se eu lhe jurar que não errei! Tornar-me victima de uma idéa, não querer envilecer-me a meus olhos, e todavia estar-me degradando aos olhos do mundo, pelas enganosas apparencias da vida! Ficar, para entre humilhações e lagrimas passar uma existencia que só me alcança desgostos? Ser reprovada pelo mundo, e ter medo da felicidade que nenhum mal me traria senão o descredito que já tenho, o descredito que veio para mim primeiro do que a culpa! Oh! não... não! fugirei de quem me accusa e de quem me tenta: do mundo e de Guilherme!
Toda essa noite se passou a fazer as mallas, e ao primeiro alvor da madrugada estavam promptos os trens, despedidos os criados, e fechadas as portas. Sophia de Lima deixou Lisboa levando apenas saudades d'aquelles dias que passaram breves, quando ainda tudo parecia prometter-lhe com o amor de Guilherme a felicidade e a paz! Ao passar, volveu rapidamente os olhos para o mirante, que mil vivas lembranças lhe recordava d'aquella noite de amor que enchera a sua existencia de recordações e de saudades. Os primeiros raios do sol principiavam a doirar o muro do jardim. Soltou então um intimo suspiro, e disse á sua alma:
-- Foi alli!
XXIV
Vem depressa!
Aquella rapariga louca que desmaiou em casa da Monica na occasião de vêr o agiota Melitao, era Maria Lucia! O cocheiro João Rodrigues, na historica noite do theatro da Rua dos Condes, depois da facada em José Teixeira quando iam perto do Jardim Chinez, foi esconder-se em casa do amo, e encontrou o agitado e inquieto.
-- Tate! disse João Rodrigues: querem ver que ouviram os apitos, e que desconfiam d'este seu venerador!?
-- João Rodrigues! disse-lhe o amo em tom cavernoso: desempenhaste bem a tua missão! pouco faltou para cu ter de me arrepender toda a vida por t'a haver confiado.
-- Sim?! perguntou o cocheiro muito pasmado: pois todo o santissimo dia tenho andado em diligencias, e já sei onde a menina pára.
-- A menina está já em casa, João Rodrigues!
-- E' brincadeira!? exclamou o cocheiro em tom desconfiado.
-- E' como estou dizendo. Encontrei-a eu, nem tu sonhas onde, e tomára eu que ninguem o adivinhe! Certo é que está alli no seu quarto, e este é o caso. Ora vamos nós, João Rodrigues, a conversar um pedaço.
-- Conversemos! disse o cocheiro.
-- Conta-me primeiro o que fizeste hoje, e que proveito tiraste das tuas diligencias.
João Rodrigues contou o que se tinha passado, menos a facada que déra.
-- Que comedia, João Rodrigues, exclamou o consternado agiota: que comedia em que estou metido! Emfim, já tu reconhecerás a necessidade de fazer um casamento á menina o mais breve possivel para evitar com mais segurança que se acredite o boato do que nos succede. A'manhã, João Rodrigues, vou tratar de casar minha filha: ella confessou-me tudo, e se não receasse dar que falar ao mundo, o seductor ia-me por uma barra fóra! Emfim, vae-te deitar, que eu vou pensar mais maduramente n'este casamento!
No dia seguinte o cocheiro estava no Limoeiro: um mez depois Maria Lucia estava casada.
Lembra-se o leitor d'aquelle advogado Affonso de Mendonça, com quem tomou leve conhecimento no primeiro volume d'esta obra? Esse advogado fôra a Paris, e viera mais tolo ainda do que tinha ido, cousa que se vê acontecer a quasi todos que vão a Paris: voltára com a mania de fazer um casamento rico, e como trazia as suissas talhadas por certo cabelleireiro da Chaussée d'Antin, tinha na pronuncia uma leve accentuação afrancezada, e dizia desde que chegára, servindo-se de um gallicismo de sua lavra: -- «Embesto-me aqui horrivelmente!» -- julgando-se apto para merecer as attenções publicas. Ora, em Lisboa com quanto haja um escriptorio de criados de servir, não existe ainda um escriptorio de noivos (estabelecimento ainda de mais reconhecida utilidade, n'esta época em que duas pessoas que gostam uma da outra são as unicas que não casam); todavia, á falta de escriptorio, ha uma especie de avisador lisbonense, um Gratis vocal que o substitue. Isto é, todo o homem em Lisboa que quer casar rico, andao dizendo por toda a parte durante seis mezes, para que a população esteja ao facto dos seus designios, e que quando um pae queira casar uma filha, por qualquer circumstancia, tenha conseguido os seus desejos dirigindo-se ao annunciante.
Foi o que se deu entre Melitão e o advogado que veiu de Paris.
Quando o annunciante tem ido a Paris, nunca apresenta outro titulo de recommendação: não fará constar que é «fulano» filho de um homem de bem, que teve este ou aquelle emprego; porém que é «fulano» que veiu de Paris!
Melitão fez-lhe chegar aos ouvidos que dava a sua filha sessenta contos de dote, e o sr. advogado Affonso de Mendonça nem sequer aspirou ao tom de se fazer grave: acceitou logo. Maria Lucia viu n'elle um miseravel que se prestava a acceital-a por esposa sem ser amado por ella, e apenas attrahido pelo interesse, e não teve por seu marido a consideração que na vida dos casados fórma um dos principaes titulos á fidelidade da esposa: em vez de o respeitar, despresou o. Nasceu d'este casamento o tornar-se Maria Lucia uma d'essas mulheres sem consciencia nem dignidade, que muitas vezes se perdem menos por maldade de caracter, do que por causa dos casamentos que se fazem em Lisboa, em que os noivos, a maior parte das vezes, nem se amam nem se respeitam mutuamente
Mas a sociedade não a accusou, porque ella teve o bom gosto de não escolher para amante um homem de lettras, como Sophia, porém um cirurgião; e a sociedade de Lisboa só accusa as infidelidades conjugaes quando não sympathisa com os amantes que essas mulheres escolheram! Ora, aos olhos da população lisbonense um cirurgião, que estudou cinco annos, é um espirito aproveitado -- e um homem de lettras, que estuda toda a vida, é um espirito perdido!
Pelo que diz respeito a Guilherme da Cunha, seria difficil contar a impressão que lhe causou a repentina desapparição de Sophia, quando, no dia seguinte á noite do theatro, indo com tenção de visital-a, encontrou fechadas todas as portas e viu escriptos nas janellas. Perguntou a si proprio se estava sonhando, e foi doloroso para a sua alma ter de convencer se que tudo que estava vendo era verdade. Apesar das indagações a que se entregou, inquirindo por toda a parte e a toda a gente, durante o primeiro mez que se seguiu á partida d'ella, não conseguiu o mais leve indicio do sitio em que estaria.
A lembrança de ser por sua causa que o mundo a accusára, e ser por causa do mundo que ella provavelmente o deixára, dava-lhe agora aquelle triste e surdo desespero que se apodera dos espiritos e os devora pela agonia ou os conduz á imbecilidade.
Para se esquecer de Sophia entregou-se a todas as prodigalidades e loucuras que um espirito extraviado aproveita na esperança de que as sensações variadas da vida dos estravagantes lhe alcancem senão a felicidade, o esquecimento ao menos.
Mas o jogo enfastiava-o, os licores sabiam-lhe mal, e aborreciam lhe as mulheres!
A's vezes partiam para Cintra uns poucos de trens, depois do theatro, formando alguma louca caravana de rapazes e raparigas. Guilherme fazia sempre parte d'essas bachanaes, mas a mulher que lhe caía por companheira da noite, queixava-se sempre de que elle na madrugada a deixava, sem se despedir dos seus amigos e voltava só para Lisboa. Espirito inquieto e febril, só desejava estar no logar em que não estava!
No fim de mez e meio, em que raras vezes se encontrara em estado de reunir as suas idéas e concentral-as a um ponto fixo, do que resultára raras vezes ter escripto para o jornal, elle proprio conheceu que o seu espirito estava incapaz das aturadas e quotidianas lucubrações do jornalismo, e despediu-se do Movimento.
Passou então uma vida estragada e perdida, sem conseguir distrahir-se nem afastar de si a lembrança que o devorava. A dispendiosa existencia a que se entregou, fez com que mais depressa dissipasse a pequena herança que tivera: o jogo foi-lhe infiel, e a carta afortunada que por tantas vezes o fizera ganhar -- a dama -- pareceu juntar-se ao numero dos seus inimigos.
Tentou trabalhar e não poude: tudo que escrevia ficava de tal fórma confuso, que nem elle mesmo depois percebia o que tinha querido dizer.
-- «Quebraste a penna?» perguntou-lhe de uma vez Victor Marrocos.
-- «Precisa aparada, respondeu o mancebo; está grossa de mais!»
Quasi tres mezes depois da partida de Sophia, Guilherme que nem escrevia nem já tinha dinheiro para continuar a entregar-se á pródiga existencia que levára, sentiu-se realmente sem animo de proseguir n'uma existencia que se lhe tornava cada vez mais diificil, e lembrou-se até de se suicidar. É uma idéa de rapaz, esta do suicidio, porém na situação em que elle se encontrava, havia muita sinceridade no desejo de deixar a vida.
Uma tarde andava no Chiado passeando ao acaso. Viu passar a marqueza de Villar no seu caleche, cobril-o com um olhar insolente, e dizer á Foyos, que ía a seu lado, alguma coisa de que ambas se riram com desdem.
Ha caracteres a quem apenas o despeito dá coragem, e Guilherme era assim. O despreso com que a Villar o olhára deu-lhe mais animo, do que as palavras affectuosas com que alguns amigos o consolavam. Voltou a casa e escreveu toda a noite, com a mesma facilidade e o mesmo ardor que d'antes tinha. -- «Estou salvo! disse elle a sua mãe: acordei!»
No dia seguinte appareceu em casa de Melitão, que, como o leitor sabe, era editor do jornal, e renovou o contracto com o Movimento, entregando logo o artigo que escrevera durante a noite, e que tomava cinco columnas do jornal.
-- Que é feito do marquez? perguntou o mancebo a Melitão.
-- Hei de jantar com elle hoje, respondeu o agiota: é o dia d'annos da marqueza.
-- Ah! são os annos d'essa senhora! ponderou Guilherme, lembrando-se do despreso com que ella na vespera tinha olhado para elle. E' justo que eu lhe faça o meu presente!
-- E escreveu ao marquez: -- «Vossa excellencia terá a bondade de apresentar os meus respeitos á senhora marqueza, e dizer -lhe que a carta que acompanha esta é a prova que lhe dou de lembrar-me d'este dia.»
E a carta a que alludia, e que juntou a esta, era a ultima das tres que elle havia tido em seu poder, e de que só entregára duas ao cocheiro João Rodrigues. O marquez recebeu-as pouco antes de jantar, e depois de as lêr fez annunciar á marqueza, que estava a vestir-se no seu quarto, e que precisava falar-lhe quanto antes.
Tiveram uma larga conferencia, em que houve choros e supplicas. O marquez não podia deixar de ser severo, porque tinha a certeza de que alguem já tinha visto a carta que Guilherme da Cunha lhe mandou. Thomasia de Villar teve de apparecer á meza, e affectar uma jovialidade inalteravel. Não obstante, os convivas adivinharam na frieza do marquez para sua esposa, que alguma coisa grave havia succedido entre elles. Desde esse dia, a marqueza de Villar nunca mais gosou da liberdade que tivera, porque seu marido fazia-a vigiar constantemente por um criado antigo, inimigo velho da marqueza. Quando alguma vez se pronunciava diante d'ella o nome de Guilherme da Cunha, viam-n'a todos tornar-se pallida e tremer de colera.
Tres mezes e nove dias haviam passado depois da partida de Sophia, quando uma tarde o mancebo recebeu esta carta d'ella:
«Tenho estado muito doente e dizem os medicos que poucas melhoras tenho; mas elles não entendem bem do que eu soffro, e sou eu propria a unica que o sei: soffro por te não vêr! Fugi de Lisboa ha tres mezes, e comtigo fugiu para mim aquelle resto de alegria que ainda me deixava viver. Parti na madrugada da triste noite do theatro, e os acontecimentos d'essa noite fatal causaram-me tão profundo desgosto, que logo depois adoeci. Queria eu voltar para Lisboa, porém não m'o querem consentir os medicos. Dizem elles que estou mais doente do que cuido, mas não estou. A febre é o que mais me incommoda, e se não fosse ella, nem faria caso da doença, que bem conheço não valer nada. Não percebem elles, meu Guilherme, que a gente possa adoecer por amor e por saudade: e não é outra a minha doença. A's vezes oiço-os falar com o padre prior d'esta terra, -- pessoa a quem estou muito reconhecida pela maneira porque me tem tratado, dando se a taes extremos que, por assim dizer, é elle o meu enfermeiro -- e já algumas vezes os tenho ouvido dizer que temem pelos meus dias. E não ha palavras para os convencer do contrario! Se eu estivesse tysica, como parecem persuadir-se, vê se era possivel sentir-me com tanta vida como n'estes ultimos dias, desde que formei tenção de te chamar para te vêr! Em tu chegando despeço-os, porque o medico para a minha doença são os teus olhos, que sem os vêr não descanço! É um crime perder um minuto a olhar outro rosto que não seja o teu! E quando a mim propria digo o teu nome, gostaria que as syllabas d'elle fossem eternas, para nunca acabar de o dizer! Vem depressa, e verás quanto é doce viver aqui: são tão poeticos estes campos e estes montes, e é tão leve este ar, que quanto aqui se respira e se vê dá muita idéa da felicidade! Vem depressa, porque vamos agora gosar a vida, socegados e esquecidos. Havemos de lêr ás tardes a Adosinda de Garrett e os versos de Bulhão Pato. Vem, anjo da minha alma! Estou em Santa Eulalia, a meia legoa da Povoa de Santa Iria. Vem já! vem ainda esta noite, que é a de S. João; não te demores um instante, parte e vem. Vem depressa. Depressa!»
XXV
Noite de S. João
Era a noite de S. João.
Como Guilherme se pozesse a caminho tão depressa leu a carta, que o encheu de alegria e de esperanças, chegou á Povoa de Santa Iria ao cair da noite, e a Santa Eulalia ao acender das fogueiras.
Tudo respira amor e poesia n'esta noite amena de S. João, que é a mais curta e a mais linda do anno!
Ao passar por Via Longa ouviu Guilherme as cantigas populares que as raparigas entoam em louvor do Santo, queimando a alcachofra agoureira, umas vezes esperançadas em que ha-de florir, e outras vezes receiosas que se faça em carvão para ter de reduzir se a cinzas como o amor que ellas perderam!
Já preparavam as donzellas as sortes que deviam adivinhar-lhe o noivo, e esperavam anciosas o bater da meia noite para deitar no copo cheio de agua a clara de ovo que havia de transformar-se na imagem do destino que as esperava!
E rompiam as danças em redor das fogueiras, e o motim dos descantes subia aos ares com o perfume da erva pinheira queimada!
Mas no momento de chegar a Santa Eulalia, o mancebo estremeceu de terror. Esperava que tudo alli estivesse alegre e festivo, e tudo encontrou ermo e triste. Ao clarão das fogueiras succedeu a escuridão da noite, e ao motim dos descantes o silencio dos sepulchros. Nem danças nem festas, nem signal de que se estava em noite de S. João, mas apenas um vento abafadisso, e uma vaga tristeza de morte se espalhava em tudo!
Passou a ermida, e chegou emfim á antiga casa do alpendre. Escutou por um momento á porta, e nem uma voz se ouvia.
Um triste e indefinido presentimento lhe principiou a angustiar o espirito. Poderia dar-se que estivessem deitados já áquella hora? E não deveriam esperal-o, depois de tanto se lhe ter recommendado na carta: «Vem depressa!»
Bateu na porta, e o som da argolada teve não sei o que de lugubre Uma velha criada appareceu no fim de um pouco de tempo, e quando ia a dizer-Ihe alguma coisa suffocou-se em lagrimas, e fugiu diante d'elle!
Guilherme atravessou um extenso corredor mal alumiado, e ouviu vozes que saiam do interior da casa: vozes roucas e compassadas n'um triste tom de rezas. Quando chegou a esse quarto cujas portas estavam abertas de par, viu um corpo estendido e uns padres em redor: os ministros da egreja resavam o responso dos mortos!
Quando entrou, impetuoso de anciedade e de susto, reconheceu o cadaver, e soltou um grito de profunda e dolorosa agonia. Depois, aterrado e immovel, ficou com a vista pregada n'aquelle vulto branco! Caiu então de joelhos, e como acordando por um supremo impulso de afflicção, apertou entre as suas as mãos geladas do cadaver como se tentasse restituil-o á vida pelo ardor da paixão que o devorava!
Havia tanta grandeza n'aquella dôr que ninguem se atreveu a affastal-o do cadaver quando se lhe abraçou n'um solemne delirio de angustia! Os padres terminaram as rezas e sairam: apenas se ouvia o soluçar do choro com que a velha criada in- terrompia aquelle silencio pavoroso!
Ao cabo de algum tempo, o mancebo caiu n'um estado de imbecilidade e de atonia. Levaram-o d'aquella casa sem que soltasse um suspiro nem oppozesse a menor resitencia.
Passou a noite com o parocho de Santa Eulalia, que o levou para sua casa: debruçado n'uma meza com o rosto occulto entre as mãos, assim se conservou até de madrugada sem soltar uma só palavra. O padre tentou por vezes consolal-o com suaves expressões de religião e de fé, mar nem elle o ouvia!
Pelo fim da noite o estado de prostração que o opprimia produziu-lhe um somno profundo e pesado, o somno que vem sempre depois das grandes catastrophes da vida.
Ao acordar, espalhou a vista em redor de si, e encontrou o olhar fixo do padre que o contemplava com uma triste expressão de piedade; procurou reunir as idéas perdidas e confusas, e no momento de se recordar perguntou ancioso e tremulo como desejando persuadir-se que estava sendo victima das recordações de um sonho: -- Sophia?
O padre estendeu-lhe os braços, e, apertando-o affectuosamente ao peito, balbuciou com expressão resignada:
-- Sophia está no ceu!
Então, essa pobre alma afflicta ficou mais abatida do que nunca, e rebentaram-lhe dos olhos as primeiras lagrimas d'aquella grande dôr!
Quiz depois saber tudo que se havia passado, e escutou chorando esta triste narrativa do parocho:
-- Nos primeiros dias de março d'este anno a sr. ª Lima veio para Santa Eulalia. Quando de uma vez lhe fiz sentir a admiração que me causava vel-a abandonar o mundo, ella, que era um dos seus ornamentos, disse-me que a sua alma precisava socego, e que a aterrava mais a sociedade do que a solidão. No fim da terceira semana de aqui estar principiou a sentir-se doente, e consultou os medicos. Aconselharam lhe que attendesse muito á sua saude, e disseram-lhe que estava mais doente do que pensava. Despresou sempre às prescripções da sciencia, e a continua agitação de espirito em que estava cada vez augmentou mais o mal que começava a devoral-a. Os medicos haviam-lhe encontrado ao principio os symptomas de uma tysica violenta e aguda: no fim de dois mezes estava confirmado para a sciencia este triste prognostico. Tinha muita dificuldade em respirar, e qualquer cousa a cançava; quando ás vezes queria que entretivessemos uma parte da tarde conversando, por maiores cuidados que eu empregasse para que a conversação não lhe desse assumpto para discutir, principiava logo a agitar-se aquelle espirito, e á proporção das idéas vinham as palavras, mas com ellas a tosse! Tornava se-lhe então o pulso ainda mais febril, e ao cahir da tarde era certo um acesso! Ficava animada, espirituosa, e dava lhe não sei que triste encanto aquelle lindo rubôr que a doença concede aos que vae matar! Nos primeiros dias d'este mez havia chegado a um estado de consumpção e de magreza, que metia dó! pallida, com as feições extinctas, os pomos proeminentes, e o o olhar tão depressa languido pelo abatimento e pelo cançasso, como animado e vivo quando a febre o incendiava! Peorou de dia para dia sem querer persuadir-se de que estava doente. «São saudades, dizia-me ella: de saudades é que eu estou doente, sr. prior!»
-- Pobre alma! balbuciou commovido o mancebo.
-- Pobre alma que já Deus tem! replicou o prior enxugando uma lagrima.
Houve uma pausa por nenhum d'elles ter força para falar, nem para ouvir.
-- Depois? perguntou Guilherme no fim de alguns instantes.
-- Depois, proseguiu o padre, principiou a ter dois accessos por dia, e a dizer sempre que se sentia melhor, e que o queria vêr. Por muitos dias falou n'isto, até que hontem de manhã lhe escreveu uma carta: da agitação em que as suas idéas ficaram e do cançasso de a escrever, resultou talvez maior brevidade em terminar a existencia que estava levando na terra! A carta partiu de Santa Eulalia ás nove horas da manhã, e momentos depois a morte veiu encontrar a pobre senhora que não a esperava: tanto a animavam as esperanças que nunca desamparam os tysicos! Morreu proferindo o seu nome, que nem acabou porque a morte lhe gelou a voz nos labios: deixou pender a cabeça para um lado, e quando se julgou que estava procurando socegar e adormecer, já não era da terra!
Ficaram depois silenciosos por muito tempo, e choraram juntos. Por um effeito ordinario das fortes e poderosas sensações, uma especie de estasis se apoderou de ambos.
O parocho de Santa Eulalia era uma nobre e respeitavel figura de sacerdote: ainda que a sua estatura pouco excedia de mediana, havia comtudo na physionomia d'este homem que antes de se votar á egreja conhecera e frequentára o mundo, a doce e resignada expressão das almas que depois de atravessarem grandes desgostos na vida, se fortificaram pela fé e pela religião. O clero portuguez, em geral, é infelizmente de tão proverbial ignorancia, que causa admiração quando de um padre se recommenda o talento e a lição. Mas ha excepções, por felicidade, e crescem ellas agora, porque cada vez se cuida mais da educação do clero como compensação do pouco que até hoje se lhe ha attendido: o velho parocho de Santa Eulalia reunia ao saber que em poucos padres se encontra, a crença e a austeridade de principios que ainda são mais raros de encontrar.
Passaram juntos ainda mais algumas horas, mas calados ambos e pensativos.
-- Que será de mim agora? disse o mancebo soltando um intimo suspiro. Em triste situação me encontro, pois que só me lembro de terminar a vida! Entre o suicidio ou a miseria, que deverei escolher?
-- Quando se está ainda na força da vida, ninguem deve lembrar-se da miseria mas do trabalho!
-- Oh! Não poderei agora trabalhar, senhor prior! Sinto a minha alma despovoada de illusões e de esperanças, e falta-me coragem para proseguir a lucta que travei! N'estes ultimos tempos, sr. prior, conheci uma triste verdade, -- que o talento do homem morre ás vezes antes d'elle! Sinto a imaginação debilitada, e vejo descorado e palido o espirito, outr'ora ardente e febril! Tudo que ultimamente tenho escripto accusa em extremo a tristeza que me devora, e a raiva de impotencia que me extenua o animo. Fogem-me as idéas, e no momento de as sentir de novo, não encontro a expressão propria d'ellas! D'este estado de espirito resulta uma grande dificuldade de trabalho, impossivel de harmonisar com as necessidades da vida litteraria para os que, como eu, desherdados da fortuna, têem, n'um paiz como o nosso, de combater com uma penna todas as dificuldades do destino!
-- Que vida! disse o prior.
-- Uma vida de homem! respondeu o mancebo com supremo gesto de melancolia.
-- Não desespere! disse o padre fitando em Guilherme um olhar de consolação, e apertando-lhe a mão com affecto. São cobardes as almas que succumhem aos primeiros revezes da sorte.
-- Primeiros?! exclamou o mancebo: que pode então o destino reservar-me de mais agudas dôres?
-- O homem que lhe está falando atravessou a vida entre lagrimas, e todavia tem ainda esperança em Deus!
-- Que posso eu esperar, padre, se ella está morta, e eu sem fé?!
-- Oh! não blaspheme! não blaspheme! Quantos maiores são os revezes da vida, mais se deve recorrer a Deus para que elle ampare a nossa alma pelas suas graças e pelo seu soccorro!
-- Deve ter soffrido muito ou muito pouco, sr. prior, para que tanto espere do ceu!
-- Ha poucas pessoas de quem não se forme tres ou quatro reputações differentes, e a maior parte das vezes não entra n'este numero a que mereciam ter! disse o ancião. Assim succede commigo. Sei que me accusam até de criminoso, e que a melancolia do meu caracter fornece assumpto para mil conjecturas imprudentes. Procuram debalde o segredo da minha vida. Perde-se por estes montes o ecco dos meus queixumes. Raros solto, e esses mesmos enfraquecidos já por dôr longa e aguda acodem d'alma aos labios, mas nos labios morrem.
«Soffro, e todavia ha uma idéa que dá vigor ao meu espirito -- o saber que me hei de salvar! Por que Deus não cura todos os doentes espirituaes, e só attende aquelles que certas condições acompanham, aquelles que passaram em lagrimas a sua existencia, e que não souberam nunca que cousa é ter olhos sem pranto, coração sem dôr, e alma sem pena...
«E é da parte de Deus uma misericordia o succeder assim! Porque se distribuisse igualmente as suas graças a todos os estados, não haveria prudencia em escolher um de preferencia a outro; e se a salvação fosse igualmente facil nas situações commodas, ninguem escolheria a penitencia e a austeridade como unicos meios de alcançar o céu.
«Dirá que deve haver na minha vida algum triste poema de dôr e de lagrimas, assim é! A austeridade a que sujeito a minha existencia não é especulativa como a maior parte das virtudes humanas, que querem a abstenção dos gosos com o fim de alcançar de Deus o perdão de passadas culpas.
«Não! Para mim este ermo, triste e arido, consola-me pela sua aridez e pela sua tristura. Era-me preciso um logar que estivesse em harmonia com a desolação da minha alma. A's vezes, ao cair da tarde, sopra n'estes montes um vento glacial e funebre, que ainda acarreta os ultimos sons da agonia das cidades... E' triste então porque julgo ouvil-a... a ella, soltar com a sua voz fraquinha e debil o primeiro grito de afflicção e de terror... Depois, as chammas crepitarem ambiciosas e aterradoras... Desabarem aos pedaços as paredes... Cahirem os quadros consumidos pelo fogo... Os quadros! os retratos de minha mãe e d'ella... da innocente! Fugir, era impossivel. A porta cercada de chammas, a janella... Havia de querer despedaçal-a n'uma queda inevitavelmente mortal?... Restava me sempre uma esperança; quando o perigo chegára ao auge, quando tudo era horror, quando não havia que esperar já, eu esperava ainda! O que esperava não sei. Salvar-me, não, mas salval-a; nem sei de que modo, nem por que meio, nem por que esperança, mas salval-a!
«As desgraças da vida marcam na fronte dos martyres o sello do infortunio: o da desesperação nem sempre! Quem póde saber se o braço omnipotente de Deus, não quereria evitar pela morte um castigo, peor ainda, de alguma remota culpa? Misanthropo e taciturno, a sociedade não quereria agora receber-me. A reclusão da minha existencia, e a insociabilidade do meu espirito, faz com que as mulheres tenham horror á minha tristeza, e as creanças medo do meu olhar: chamam-me o monge de Santa Eulalia, porque a minha austeridade de religião e a aridez da minha vida, dão talvez idéa do desolado viver dos monges, homens para quem a fé era tudo, e a idéa de Deus conseguia salvar do desalento a que a sociedade havia levado a sua alma.
«Foram ás vezes durante os primeiros annos da sua vida grandes viciosos, foram até por vezes criminosos esses homens para quem depois a penitencia e a compunção teve o valor de uma existencia nova! Mas foram tambem grandes martyres, e no ardor da contricção se illuminou ainda muita alma que pelo amor penára, muito coração que pelo amor soffrêra! Victima de um grande affecto como a maior parte d'elles, o mesmo infortunio me coube e o mesmo destino me compete.
«Amei! Amei desabridamente, doidamente, perdidamente. A mulher que eu amava enganou-me, atraiçoou-me, envileceu-me. Mas no momento de a esquecer para sempre, o Senhor me reservava ainda maior e mais santo amor: restava-me uma filha! A minha filha! aquelle anjo que eu e ella tinhamos sonhado no tempo em que cada um de nós era digno do amor do outro, no tempo em que ella ainda era grande e nobre, no tempo em que ainda tinha alma, no tempo em que ainda mereceu a Deus dar-lhe esse anjo de formosura e de luz! Essa filha foi então tudo que me restou d'ella e do meu amor por ella. Um convento recebeu da mãe os ultimos suspiros de um amor illicito; o meu peito pediu á filha as ultimas consolações para um affecto vilipendiado!
«Tinha doze annos aquella linda miniatura, em que a natureza parecia ter querido realisar o ideal dos artistas e dos poetas, para provar que é frouxo e pallido tudo que o genio concebe perante o que Deus illumina! Doze annos durante os quaes eu a tinha visto a todos os instantes, beijado a todas as horas, pedido ao céu por ella a todos os momentos! Parecia ter por destino ser na vida uma dessas creaturas, cujo olhar revela um raio da luz divina! Era loira e alva, de olhos azues como o azul do nosso mar e do nosso firmamento! O amor em toda a sua furia indomavel.
«Uma noite, o incendio lavrou no predio em que habitavamos. Era alta noite, acordámos ao ruido dos sinos, ao motim do povo, aos gritos dos visinhos: o incendio começára no andar inferior, a escada principiava a estar impraticavel, os soccorros tardavam, o susto estava em todos os corações, o terror em todas as physionomias e em todas as vozes.
«Minha filha, a minha querida filha, olhava-me com uma expressão angelica e celeste. Tomei-a ao collo, e ancioso e tremulo tentei descer ainda a escada; mas ao chegar ao primeiro lance vi os ultimos degraus abaterem e sepultarem-se nas chammas que se erguiam medonhas, furiosas, implacaveis.
«A creança chorou então! Mas as lagrimas que deslisaram por aquelle candido rosto de anjo, depressa enxugaram, e os olhos parados, attonitos, espargiram por tudo que nos cercava o olhar medroso, irresoluto e assustado de quem vê o perigo e nem sequer o comprehende bem.
«Cheguei á janella, e olhei para a rua: uma nuvem de fumo ia espalhar-se sobre outra nuvem de cabeças: não se ouvia mais do que os gritos inintelligiveis de uma multidão de homens que gritavam a um tempo.
«N'esta occasião atiraram-me uma escada de corda. Não havia um instante a perder: o incendio que lavrava no andar inferior já parecia querer devorar o tecto, porque as taboas rangiam debaixo dos meus passos. A creança olhava-me com expressão de terror indefinivel; por instantes os seus olhos demoraram um olhar triste e amedrontado no reflexo que as chammas produziam na parede fronteira. Ia dar-lhe um beijo de consolação e de esperança, mas senti o sobrado estallar, e tive medo de perder um só momento. Agarrei na escada de corda, comecei a prendel-a á janella, e disse á innocente:
«-- Vem! salvemo-nos!
«Um homem subiu n'este momento pela escada de corda, e entrou em minha casa para ajudar a salvar-nos. A creança chegou á janella, viu o clarão que as chammas produziam, e recuou aterrada e chorosa.
«-- Vem, fujamos, minha filha! gritei eu de novo estendendo os braços para a segurar.
«-- Venha! disse o homem tentando tomal-a ao collo. Venha! se perdemos tempo, vamos morrer aqui!
«A creança tremeu toda, recuou, e fugiu de nós cheia de susto, mas apenas teria recuado dois passos, o sobrado abateu, e eu vi minha filha supultar-se nas chammas!...
«O braço d'esse homem que tentára salvar-nos, impediu-me de me precipitar atraz da innocente... Perdi o animo, e desfalleci horrorisado como sentindo-me morrer.
«Quando acordei d'esse lethargo medonho e tenebroso, durante o qual julguei vêr a innocente creança luctando debalde com os furores do incendio, encontrei-me no mundo perdido e isolado!
«Desterrei-me da sociedade e pedi auxilio á solidão: é Santa Eulalia o retiro tranquillo, onde a minha alma tem dado soltas ás suas recordações!
«Deus terá piedade da minha dôr, e serei feliz n'uma outra vida em que de novo hei de encontrar aquelle anjo que fugiu para o céu, e que verei ajoelhado aos pés do Senhor!
«As minhas desgraças fizeram com que eu confie tudo no céu: nada n'este mundo!
-- E que póde alguem esperar aqui, sr. prior, n'esta longa peregrinação de dôres e de prazeres ephemeros, n'este mundo para o qual se entra tendo já a certeza de que havemos de vêr morrer os que na vida nos são queridos?
Houve uma pausa em que ambos se encontraram n'um olhar de melancolia.
-- Qual de nós soffreria mais, senhor? perguntou o prior com um sorriso cheio de doçura.
-- Qual de nós amaria mais, padre? replicou o mancebo com magnifica expressão de superioridade.
-- Breves serão as desventuras do seu destino, se se resignar com viva fé! Mas que toda a sua esperança resida em Deus, e os seus olhos apenas procurem as regiões celestes onde a divindade é tudo!
-- Obrigado pelo que me tem dito, sr. prior; se algum auxilio podia haver na terra para a minha alma, nenhum melhor do que o dos seus conselhos!
-- Só vê ainda como futuro a miseria ou o suicidio, sem se lembrar que os ineptos e os cobardes são os que tal destino esperam?
-- Mudei de idéa; deixarei Lisboa! Em Lisboa não se dá senão aos ricos; eu, que sou pobre, nada posso esperar! Senhor prior, adeus! Até um dia, talvez!
-- Que Deus o acompanhe sempre! exclamou o prior abraçando o mancebo, e acompanhando-o até á porta. Se persistir na idéa de partir...
-- Voltarei a vêl-o! E não se esqueça nunca, sr. prior, de pedir a Deus por aquella alma querida!
Abraçaram-se outra vez e separaram-se: o mancebo desceu a ladeira que conduz a Via-Longa, e quando ao cabo d'ella voltou a cabeça, viu ainda o prior que o olhava de longe e lhe disse adeus com lenço.
Quando chegou a Lisboa recebeu a noticia de que o marquez de Villar estava ministro desde a vespera, e que ía suspender a publicação do Movimento. Mediu bem então a situarão em que se achava, e reconheceu mais do que nunca a necessidade de partir.
Apesar do que promettera ao prior, não teve animo de voltar a Santa Eulalia. Vendeu os livros e os moveis, e alcançou por tudo perto de trezentos mil réis; guardou duzentos para si, e deu o resto a sua mãe, a quem pediu que voltasse para a casa do Carvalhal, e que se resignasse a viver como outrora do que as colheitas rendessem.
Depois, no primeiro barco que saíu, Guilherme da Cunha partiu para o Rio de Janeiro.
Desprotegido e sem recursos, teve de passar pela ultima feição da vida de Lisboa -- ir pedir pão ao Brazil!
FIM DO SEGUNDO E ULTIMO VOLUME
NOTAS
Quasi todos os jornaes da capital deram noticia da publicação do primeiro volume d'esta obra, e por essa occasião alguns dispensaram ao auctor louvores que sobremaneira o penhoraram; são-lhe porém tão lisonjeiros esses artigos, principalmente os da Opinião, Rei e Ordem, e Jornal de Bellas-Artes, que não quiz o auctor consentir em que os transcrevessemos aqui, como desejavamos, temendo talvez que o taxassem de immodesto. Os artigos da Nação e Portuguez, por serem de um caracter mais critico e austero, aqui os damos primeiro até, do que as explicações que lhes servem de resposta, e auctor de defeza.
«Acaba de publicar o primeiro volume de um romance, a Vida em Lisboa, n'uma edição nitida e elegante, o sr. Julio Cesar Machado.
O seu começo despretensioso, segundo o juizo do seu proprio auctor, é mais um extenso folhetim com todas as liberdades d'este genero litterario, do que um romance.
Cumpre porém advertir que os tres ultimos capitulos d'este primeiro volume já aspiram a mais elevada apreciação.
Se este fosse o logar d'essa apreciação, desde já diriamos ao auctor, que esses tres capitulos, ainda que satisfazem a arte em quanto ao caracter das personagens e desenho da acção, não satisfazem comtudo a moral em quanto aos seus melindres fundados em principios immutaveis.
Mancebo, como o auctor é, ainda é esta a occasião de dizer-lhe:
Revela talento o seu escripto, ha movimento e vida, ha côr e desenho n'algumas das scenas do seu romance. Ha sobre tudo vocação litteraria nos tres ultimos capitulos do primeiro volume.
Faltam dois elementos, um que pertence ao escriptor, outro ao homem social, que o sr. Julio Cesar Machado ha-de adquirir, não só porque é moço ainda, mas porque tambem sabe que a penna, que escreve estas linhas, é conscienciosa e amiga.
Estes elementos são para o escriptor a correcção e elegancia do estylo, para o homem social o respeito pela base constitutiva das sociedades, que é a moral, que nasce da religião.
O sr. Julio Cesar Machado sabe que o talento é sempre grande quando é bello; confiamos em que tambem ha-de provar-nos que o talento é bello quando é moral, e grande quando é religioso.»
(Nação).
«Se não avultasse no nosso mercado litterario tão grande montão de traducções, é natural que attribuissemos a falta de romances portuguezes á circumstancia de não se lêr romance em Portugal; mas se vemos que a esmo se fazem versões de tão triste exemplo para as letras, versões em que duas linguas são sacrificadas -- aquella de que traduzem e esta para que traduzem -- e se apesar do despeito que o animo publico já sente por essas miseraveis trasladações, a venda é consideravel, os compradores affluem, e o mercado prospera, poderemos deixar de açcusar a inercia dos talentos, que adormecem sobre os primeiros louros de muito disputaveis glorias, sem terem o animo de se rebellarem contra a deploravel moda das traducções, e de a guerrearem trabalhando em obras portuguezas, que mais possam convir e por ventura agradar do que esses vergonhosos romances, charadas e enygmas pelo que diz respeito á linguagem, que por ahi surgem, por ahi se vendem e por ahi são lidos!
O romance historico, encetado entre nós pela fecunda penna do sr. Alexandre Herculano, já nos deu o Monge de Cister, que é um monumento; a Abobeda, que é uma maravilha; os Irmãos Carvajaes, que são umas poucas de soberbas paginas; o Odio velho não cança, que é uma interessante chronica; a Mocidade de D. João V, que é um lindo romance; e o Anno na côrte, que é um bom romance histórico.
Mas o que nos tem dado o romance contemporaneo, se não é as Memorias de um doido, livro que se faz valer pelo estylo á custa muitas vezes da verdade, do desenho do quadro e das figuras, e que se deleita pela elegancia da linguagem do sr. Lopes de Mendonça, tambem accusa a extrema leitura de romances francezes, não tanto pela phrase, não tanto ainda pelo enredo, como pelos typos! O que nos tem dado o romance contemporaneo, se nao são os livros do sr. Camillo Castello Branco, muito original e muito distincto talento, muito activo e esmerado trabalhador?
Mas serão estimados em Lisboa, como romances contemporaneos e de usos da nossa sociedade, as Memorias de um doido, em que não ha typo que seja nosso; e os romances do sr. Camillo Castello Branco, que como escriptor portuguez, só descreve nas suas excellentes obras os costumes, scenas e caracteres do Porto e das provincias?
Se não falamos n 'alguns outros romances que por ahi correm, não nos lembra se apresentando-se como contemporaneos ou não, é porque elles se distanceiam tanto do que se considera realisar as condições de livro, que é até trabalho em vão dar-se a critica a castigar obras de tão insignificante vulto!
Ultimamente se annunciou o primeiro volume de um romance contemporaneo; e se este genero obriga a muito, a mais por certo obriga ao auctor o titulo que deu á sua obra: é a Vida em Lisboa. Será deveras um romance contemporaneo, e dir-nos-ha a vida de Lisboa?
Esta foi a idéa de hesitação e desconfiança com que nos dirigimos a procurar o primeiro volume, reforçado, digamol-o sem querer n'isto offender o auctor, pelo costume em que estamos de vêr que os escriptores novos procuram deslumbrar com um titulo, por serem incapazes de deslumbrar com um trabalho.
Já o nome do sr. Julio Cesar Machado nos era sympathico, por muitos dos seus folhetins da Revolução de Setembro, que revelam talento e vocação para escrever; mas até esta nova obra os escnptos do sr. Machado accusavam repetidas vezes poucos conhecimentos litterarios e muita negligencia no estylo, que lhe é naturalmente elegante, mas que precisava ser educado aproveitando maior sabor portuguez, e não deixando presentir tão pouca leitura dos nossos classicos.
Porém é de justiça confessar que esta obra se distanceia infinitamente dos seus outros escnptos e denota progresso do seu talento e cultivação aturada de estylo, que da primeira á ultima pagina se conserva o mesmo, deixando já observar bastante individualidade de fórma.
Vê-se no primeiro volume d'esta obra certa novidade de expressão, que nem sempre nos agrada: é de proposito e não por erro involuntario, que o auctor cae n'isso que é a nossos olhos defeito, porém nem assim lhe perdoamos. Quer ou parece querer introduzir na nossa lingua termos que não estão admittidos e de que apenas se usa quando se fala, porém improprios de um livro, não por indecentes nem indecorosos, que em nada o são, mas por não serem portuguezes, como cavaqueação, e muitos outros que no livro do sr. Machado nem sequer estão em typo italico, o que denota que os considera como palavras de accepção justificada.
Em quanto á acção do romance, parece-nos bem disposta e o andamento d'ella apresentar novidade: os typos são fieis e bem desenhados. Guilherme da Cunha é um caracter que prende a attenção do leitor, e Sophia de Sousa um original typo de mulher; os jornalistas Athayde, Mello, Roma; os homens politicos Marrocos, Villar e João Secco; a dançarina Ritinha, sobre todos, pela verdade e originalidade de desenho; a marqueza de Villar, em quem o auctor parecer querer castigar a aristocracia moderna; o barão de Sousa, que é um verdadeiro typo portuguez; e Luiz de Lima, que é d'esses caracteres que hoje são de todos os paizes, porque a civilisação tem tido o poder de dar uma só feição aos homens, do mundo: eis os principaes vultos que se encontram no primeiro volume do romance a Vida em Lisboa, cujos ultimos capitulos são realmente notaveis pelo estylo e pelo interesse que despertam.
Seja o sr. Julio Cesar mais cuidadoso na construcção da phrase, que é isso que ainda accusa a leitura de livros francezes, que sempre é bom lêr, mas em conta que não estrague depois tudo a que queiramos dar sabor propriamente portuguez; e anime-o ver que o primeiro volume d'esta sua obra tem feito impressão no publico de Lisboa, e igual a colhimento alcançará nas provincias e no Brazil, onde é grande a curiosidade de conhecer a vida de Lisboa, e deve ser grande a satisfação de a poder lêr tão bem contada.»
(Portuguez).
A critica, com quanto se mostrasse extremamente benevola para com o primeiro volume d'esta obra, accusou o auctor de haver empregado termos que não são portuguezes; e, para exemplo, a critica cita cavaqueação.
O auctor responde humildemente que lhe parecem aproveitaveis para um romance de scenas contemporaneas todos os termos que sem strem obscenos sejam populares, sempre que se lhes dê cabida em dialogos facetos que figurem passar-se entre pessoas, e em localidades que estejam em harmonia com esses termos de que a gente se serve habitualmente. Ora, no romance a Vida em Lisboa não se encontram d'essas palavras, que a similhança de cavaqueação não podem dizer-se portuguezas, (mas que por ahi se ouvem introduzidas nas conversações familiares) senão em dialogos de rapazes; e não se passam senão no Marrare, na Floresta Egypeia, n'uma ceia com dançarinas, n'um almoço entre dois amigos. São, por via de regra, situações estas em que a eloquencia não costuma elevar-se ás pompas de um estylo quasi lyrico!
Todos sabem que os termos adoptados, são em muitos casos insuficientes para representar fielmente uma idéa. O auctor das Viagens na minha terra sentiu por vezes esta difficuldade, sendo o primeiro n'este paiz a mostrar que todas as coisas se dizem melhor quando se dizem naturalmente, e melhor se fazem comprehender quando são expressas por palavras de que todos usam e que ninguem desconhece. Tinha o auctor d'esse livro auctoridade para crear novos termos, e eu não; bem o sei; porém o que não será facil demonstrar é que cavaqueação seja menos portuguez do que, por exemplo, flanar, desapontado, etc.
Quando uma palavra faz sentir bem uma idéa, nunca é inutil admittil-a. Se não a temos, adoptemol-a.
Para os dialogos familiares ha um estylo proprio, que é o estylo da conversação despretenciosa. Não somos como os francezes, que falam e escrevem da mesma maneira; antes escrevemos de muito differente modo do que falamos: nasce d'aqui que para o dialogo no Marrare ter feição e côr é preciso ser escripto no estylo em que alli se conversa, aliás parecerá ao leitor estar ouvindo deputados no parlamento, e não rapazes n'um botequim.
Fazer que o romance contemporaneo seja dialogado no estylo em que na vida se conversa, foi a idéa do auctor; idéa talvez boa, e que, se um nome mais auctorisado a sanccionasse, em vez de accusada como um erro, seria por ventura reconhecida como um serviço.
Reprehenderam o auctor de nem sempre no seu livro haver sido moral; todavia ponderem que curioso romance de costumes seria aquelle que só emprehendesse o quadro das virtudes de um povo! O maior triumpho que esta obra poderá alcançar é o de conseguir que os leitores, espiritos diversos ainda que reunidos por sentimentos communs e idéas geraes, reconheçam no romance alguma coisa de si proprios, e o acceitem como interprete das verdades cujo germen existe em cada um!
A que o auctor aspirou, e o que deseja ter conseguido, é que o leitor reconheça verdadeira a idéa e propria a côr -- e para alcançar este resultado evitou quanto poude o falso e o impossivel, porque acredita que só pela verdade da narração é que um livro consegue viver, e tem observado que os escriptores que não gostam dos meios simples são quasi sempre talentos estereis!
Não quiz nunca perder de vista que não era um romance apenas, mas uma phisiologia tambem, esta obra que escrevi: deve-se a isto não poderem certos leitores, que tudo querem que se lhes diga, encontrar o desfecho da acção á medida das condições que o uso prescreve a este genero de obras; gostam elles muito de assistir ao funeral dos personagens que mais interesse lhes despertaram na leitura do livro, e apenas descança a romantica curiosidade do seu espirito, quando chegam ao ponto de os ver metter na cova e deitar-se-lhe terra em cima! Mas se não fiz morrer o heroe do meu livro por um duello ou por um suicidio, o que seria de grande effeito n'um romance, é porque preferi apresental-o, no momento de abandonar Lisboa, perdido e sem recursos, e indo tentar fortuna ao Brazil, sujeitando-se a uma existencia nova; e se isto não é tão bom como romance, é muito melhor como phisiologia.
Em quanto á linguagem, tomei os conselhos da critica amigavel, e estou persuadido que n'este segundo volume se ha de achar mais propriedade de estylo, mais correcção e mais d'aquelle sabor portuguez que se encontra em Bernardes e Vieira, cujas obras procurei lêr e estudei attentamente.
Li tambem muito as Viagens m minha terra, ou antes as li pouco, porque sempre se tem lido poucas vezes similhante livro por mais vezes que se leia! E se ha obra que devesse servir-me de modelo para o estylo do meu romance, é esta do sr. Garrett, e eu logo o senti: mas os que entendem de letras é que sabem quanto é difficil o estylo a que chamam natural, e que trabalho dá escrever as coisas de modo que pareçam estar acudindo aos bicos da penna e não haverem soffrido a mais leve correcção. Foi essa a difficuldade maior que encontrei, porque desejei primeiro que tudo ser natural e claro. Não o consegui n'esta obra? Procurarei conseguil-o n'outra. A critica foi tão indulgente, que me encheu d'animo, tanto mais que sou de opinião que o primeiro livro de um escriptor só é de todo máu, quando a essa obra má não succede outra soffrivel, que deixe esperar que o seu talento produza obra boa. E porque não ha de a esta, seguir-se outra?
Lisboa 30 de abril, 1858.
O Auctor.
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- TextGrid Repository (2023). Portuguese ELTeC Novel Corpus (ELTeC-por). A vida em Lisboa: Edição para o ELTeC. A vida em Lisboa: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001D-4462-6